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Os valores-notcia como efeitos de verdade na ordem do discurso jornalstico1
Leonel Azevedo de Aguiar2 Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro/PUC-Rio Resumo
A partir da premissa de que os discursos jornalsticos so dispositivos que produzem representaes sociais da realidade, este artigo visa contribuir com determinadas questes para a Teoria do Jornalismo. Para esta tarefa, identifica conceitos na obra de Foucault que possam ser utilizados para a compreenso da ordem do discurso jornalstico: relaes de poder, vontade de saber e efeitos de verdade. Levanta a hiptese de que os valores-notcia so conjuntos de regras annimas e histricas que definiram as condies de exerccio da funo enunciativa do discurso jornalstico. Palavras-chave Discurso jornalstico; relaes de poder; ordem do discurso; efeitos de verdade; valores-notcia.
Introduo
Pela teoria do newsmaking, o discurso jornalstico constitui-se como um
dispositivo de produo da realidade. Para ser mais exato, conforme aponta Traquina
(2005a), na dcada de 70, um novo paradigma manifesta-se nos estudos sobre o
jornalismo: as notcias enquanto construo discursiva. Se, para o senso comum da
comunidade interpretativa dos jornalistas, as notcias so relatos verdadeiros de fatos
significativos, para os tericos do newsmaking, no mais possvel entender a
informao jornalstica como mero reflexo do real, um espelho que reflete fielmente o
que se d a ver.
A tica profissional dominante, entretanto, acredita que o fato e o relato
jornalstico possuem uma ntida demarcao epistemolgica. Disso resulta que a
credibilidade e a legitimidade da atuao dos jornalistas esto sedimentadas na crena
de que as notcias retratam, com objetividade e neutralidade, os fatos. Respeitando esses
parmetros ticos que norteiam a profisso, os jornalistas realizam seu trabalho de
relatar os fatos, apresentando-se como simples mediadores que reproduzem, na notcia,
a realidade social. Para situar melhor a idia de que o jornal reflete a realidade, a viso
histrica de Lage (1979) sobre a tcnica da notcia permite compreender o
desenvolvimento do formato do jornalismo informativo, demonstrando como as
1 Trabalho apresentado no VII Encontro dos Ncleos de Pesquisa em Comunicao NP de Jornalismo. 2 Doutor em Comunicao/UFRJ. Professor do Departamento de Comunicao Social da PUC-Rio, onde ministra aulas no Programa de Ps-graduao e na graduao. Exerce o cargo de coordenador do curso de Jornalismo.
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empresas jornalsticas emergentes criaram uma linguagem adequada aos novos padres
industriais e as necessidades da sociedade de massas.
Ao contrapor diferentes teorizaes sobre o campo jornalstico, as pesquisas que
abordam a parcialidade do jornalismo a partir de conceitos como manipulao
ideolgica e distoro das notcias no se sustentam. Como no questionam a distino
entre fato e relato, na qual se assenta a teoria do espelho, os estudos sobre a ao
social das notcias se limitam ao questionamento da ideologia das empresas
jornalsticas. O enfoque da manipulao das notcias no s favorece uma perspectiva
moral ou psicolgica da imparcialidade como tambm dificulta a compreenso do
discurso jornalstico enquanto um processo historicamente situado. Desse modo, o que
nos interessa entender que as notcias so construes discursivas que produzem as
condies de possibilidade atravs das quais a realidade se torna visvel e dizvel. Para
este percurso terico, procuramos nos mtodos arqueolgico e genealgico de Foucault
noes que funcionem como uma caixa de ferramentas (Foucault, 1979: 71) para a
reflexo sobre o discurso jornalstico contemporneo.
Discurso: poder e saber a ordem do discurso que estabelece, para Foucault (1996), as possibilidades
de organizao do real. Esta ordenao, alm de possuir uma funo normativa e
reguladora, age por meio da produo de saber, de estratgias de poder e de prticas
discursivas. Tomando as noes tericas foucaultianas, podemos afirmar: discurso no
, apenas, o lugar onde o desejo se manifesta ou se oculta, mas , antes de tudo, o objeto
do desejo. Mais ainda: o discurso traduz mais do que as lutas polticas, pois se torna,
principalmente, o poder pelo qual se deseja lutar para exerc-lo; portanto, preciso
pensar o discurso como o lugar do exerccio do poder.
Ao realizar uma investigao crtica sobre a temtica do poder, Foucault
assegura que uma questo emprica como se exerce o poder? no tem por funo
denunciar como fraude uma metafsica ou uma ontologia do poder. Afirmar que as
relaes de poder se exercem atravs da produo e da troca de signos (Foucault, 1995:
241) ressaltar a positividade produtora do poder, pois aponta para a construo da
realidade, j que o poder produz campos de objetos e rituais de verdade (Foucault,
1977: 172). Este o contraponto em relao a tese de que o poder age apenas por
violncia ou pelo convencimento ideolgico. Ao pensar em uma microfsica do poder
atuando como uma rede produtiva que atravessa com eficcia todas as instncias da vida
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social, Foucault destaca o poder como produo e no apenas como represso. O poder
produz saber, imbricando continuamente poder e saber, de modo que no h relao de
poder sem a constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e
no constitua, ao mesmo tempo, relaes de poder (idem, 30).
A noo foucaultiana dos jogos de poder-saber contesta a idia de que o poder
localiza-se nos aparelhos ideolgicos de Estado subordinando-se, portanto, a uma
infra-estrutura econmica, ao modo de produo , pois as relaes de poder so
imanentes a todos os tipos de relaes, no estando em posio de superestrutura, mas
possuindo, l onde atuam, um papel diretamente produtor (Foucault, 1980: 90). Logo,
se o poder no est localizado nos aparelhos de Estado, o prprio Estado que se torna
o resultado de uma multiplicidade de engrenagens e de focos que constituem uma
microfsica do poder. O poder passa a ser menos propriedade de uma classe e mais uma
estratgia: o poder se exerce mais do que se possui, no sendo o privilgio adquirido ou
conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posies estratgicas.
No existindo mais um lugar privilegiado de onde possa ser exercido, o poder torna-se
difuso, no localizvel, sendo exercido a partir de inmeros pontos e em meio a relaes
desiguais e mveis.
Para Foucault, justamente no discurso que se articulam poder e saber. Sendo
assim, preciso conceber o discurso como uma srie de segmentos descontnuos, cuja
funo ttica no uniforme nem estvel (idem, 95). Admitir a complexidade e a
instabilidade de um jogo em que o discurso pode ser, simultaneamente, instrumento e
efeito de poder e, tambm ponto de resistncia e ponto de partida de uma estratgia
oposta aceitar a regra da polivalncia ttica dos discursos. O discurso veicula e
produz poder; refora-o, mas tambm o mina, expe, debilita e permite barr-lo (idem,
96). Enfim, o que devemos ter em mira so os efeitos recprocos de poder e saber que os
discursos produzem. Tambm devemos perguntar qual a conjuntura e correlaes de
foras que tornam imprescritvel a utilizao do discurso como articulao entre poder e
saber.
Os discursos so, portanto, blocos tticos no campo das correlaes de fora: os
efeitos recprocos de poder e saber proporcionam sua produtividade ttica. J a sua
integrao estratgica dos discursos implica na produo de efeitos de verdade.
Vivemos em uma sociedade que produz e faz circular discursos que funcionam como
verdade, que passam por tal e que detm, por este motivo, poderes especficos
(Foucault, 1979: 231). Assim, alm da vontade de saber e da vontade de poder que
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atravessam os discursos, a vontade de verdade constitui e, simultaneamente,
constituda pelos discursos. Desse modo, o conceito de ideologia e, por conseguinte, o
de manipulao ideolgica pode ser descartado por estar vinculado a idia nostlgica
de um saber transparente e livre do erro e da iluso.
Em seu conceito moderno, a ideologia apresenta-se em oposio a verdade; ou
melhor, ope-se a um discurso capaz de revelar a verdade, j que a ideologia representa
o falso. Alm disso, a ideologia vista como uma produo discursiva realizada por um
sujeito com o objetivo impedir o conhecimento da verdade. Neste caso, o papel do
intelectual seria o de denunciar o discurso falso isto , ideolgico e, ao mesmo
tempo, apontar que a ideologia situa-se secundariamente em relao a uma dimenso
objetiva a infra-estrutura econmica que determina, em ltima instncia, a
superestrutura ideolgica. O que se deve observar, para Foucault, como os efeitos de
verdade so produzidos dentro dos discursos que, em si mesmos, no so falsos nem
verdadeiros. O que ele se prope a estudar o regime da verdade enquanto um
componente efetivo na constituio das prticas discursivas.
Seguindo essas proposies foucaultianas, podemos entender a verdade como
um conjunto de procedimentos regulados para a produo, distribuio e funcionamento
dos discursos. A verdade est circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem
e a confirmam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem (Foucault, 1979:
14). O regime da verdade no meramente ideolgico ou superestrutural, pois atuou
como uma condio de formao e desenvolvimento do capitalista. A questo central,
conseqentemente, no a conscincia alienada pela ideologia, mas o prprio regime
poltico e institucional de produo da verdade, j que o saber no est em uma relao
superestrutural com o poder.
O trabalho de Michel Focault sobre as relaes de poder nos oferece importantes ferramentas analticas. Foucault distingue entre explorao, dominao e sujeio. Ele argumenta que a maioria das anlises sobre o poder concentra-se exclusivamente nas relaes de dominao e explorao: quem controla quem e quem extrai os frutos da produo dos trabalhadores. O terceiro termo, sujeio, enfoca aquele aspecto do poder mais distante da aplicao direta da fora. Esta dimenso das relaes de poder onde a identidade de indivduos e grupos est em jogo, e onde a ordem, num sentido amplo, toma forma. Este o espao no qual cultura e poder esto mais proximamente interconectados. (Rabinow, 1999: 102).
Os mtodos foucaultianos concentram suas anlises exatamente nas prticas
culturais em que o poder e o saber se cruzam. Dentre essas prticas, ele destaca o
jornalismo, inveno fundamental do sculo XIX (Foucault, 1979: 224), ressaltando a
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importncia da materialidade dos meios de comunicao, comandados por interesses
econmico-polticos e que obedecem a mecanismos do poder. Mais especificamente, o
discurso jornalstico alm de produzir e ser produzido por relaes de poder-saber e
pela vontade de verdade formado por um conjunto de enunciados que se apia em
um mesmo sistema de formao. Nossa hiptese de trabalho que, se de um modo
geral o discurso constitudo por um nmero limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de condies de existncia (Foucault, 1997: 135), o
discurso jornalstico se constri por um conjunto de regras annimas e histricas que
definiram as condies de exerccio de sua funo enunciativa. Esse conjunto de regras
pode ser denominado como valores-notcia e esto vinculados aos critrios de
noticiabilidade, que passaremos a discutir.
Discutir valores-notcia
Conforme Wolf (2003), os valores-notcia derivam de pressupostos implcitos e
que so relativos a cinco critrios. Para este autor, a noticiabilidade um conjunto de
critrios, operaes e instrumentos que controla a quantidade e qualidade dos
acontecimentos para selecionar os que sero produzidos como informao jornalstica
e a sua aplicao est baseada nos valores-notcia. Essa noo news values
(Tuchman, 1983) constitui a resposta a esta questo central no jornalismo: quais so
os acontecimentos considerados suficientemente interessantes e significativos para
serem formalizados na ordem do discurso denominada notcia? A metodologia adotada
prev mostrar que as diferentes estratgias que se desenrolam no discurso jornalstico
derivam de um mesmo jogo de relaes: ordenar, disciplinar, discorrer e controlar
(Gomes, 2003). Passemos, ento, a resenhar os valores-notcia.
Os critrios substantivos vinculam-se s caractersticas do contedo das notcias;
ou seja, ao acontecimento se transformar em notcia. Por sua vez, os critrios
substantivos articulam-se em dois fatores: a importncia e o interesse da notcia.
A importncia pode ser determinada por quatro variveis. A primeira
notoriedade implica no grau e nvel hierrquico dos envolvidos no acontecimento
noticivel; isto , dos indivduos em suas hierarquias sociais referentes s instituies
governamentais ou privadas. A hierarquia governamental claramente visvel e est
definida em termos de autoridade, o que facilita a tarefa dos jornalistas nas avaliaes
de importncia. Outros fatores que definem, operativamente, o valor-notcia
importncia de um acontecimento so: o grau do poder institucional, o relevo de
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outras hierarquias no institucionais, a possibilidade de serem reconhecidas para alm
do grupo de poder em questo e a amplitude e o peso dessas organizaes em termos
sociais ou econmicos.
A varivel proximidade relaciona-se com o impacto sobre a nao e sobre o
interesse nacional, em termos de proximidade geogrfica ou de proximidade econmica,
poltica ou cultural. Portanto, o segundo fator que determina a importncia de um
acontecimento a sua capacidade de influir ou incidir no interesse do pas. Para ser
noticivel, o acontecimento deve ser significativo; isto , suscetvel de ser interpretado
no contexto cultural do leitor. Associado a este fator est o valor-notcia da
proximidade, sobretudo em termos geogrficos, mas tambm em termos culturais.
Notcias culturalmente prximas referem-se a acontecimentos que j fazem parte do
repertrio informativo dos jornalistas e do pblico. A proximidade geogrfica refere-se
regra prtica das notcias internas de um pas. Em relao s notcias externas,
preciso ressaltar que a distncia geogrfica distorcida pelos mecanismos de apurao
das informaes.
J a varivel relevncia aponta para a quantidade de pessoas que o
acontecimento, de fato ou potencialmente, envolve. A comunidade dos jornalistas
atribui importncia a acontecimentos que dizem respeito a muitas pessoas. Este valor-
notcia determina que a noticiabilidade tem relao com a capacidade do acontecimento
incidir ou ter impacto sobre diversos grupos sociais ou sobre o pas. Neste fator, existe
complementaridade dos valores-notcia, j que est ligado diretamente ao fator da
afinidade cultural e da distncia: existe uma correlao negativa entre proximidade ou
poder no cenrio internacional e negatividade do acontecimento.
A quarta varivel significatividade relaciona-se com a importncia do
acontecimento quanto evoluo futura de uma determinada situao. A cobertura
jornalstica reservada aos primeiros episdios de um acontecimento que tm uma
durao prolongada adquire uma importncia muito maior do que os episdios
intermedirios.
Apontamos dois critrios substantivos: a importncia e o interesse da notcia. Se
as notcias avaliadas como importantes so selecionadas obrigatoriamente, o fator
interesse provoca uma avaliao mais aberta s opinies subjetivas. O interesse da
notcia est vinculado s representaes que os jornalistas tm do pblico e ainda ao
valor-notcia definido como capacidade de entretenimento. A capacidade de uma notcia
em entreter o leitor situa-se em uma posio elevada na lista dos valores-notcia, seja
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como fim em si mesma ou como instrumento para concretizar outros ideais
jornalsticos, como superar a concorrncia. So consideradas interessantes as notcias
que procuram dar uma interpretao de um acontecimento baseada no fator interesse
humano; ou seja, as curiosidades e o inslito que atraem a ateno.
A categoria critrios relativos ao produto vincula-se disponibilidade do
material e s caractersticas especficas do produto informativo; ou seja, ao conjunto dos
processos de produo e realizao. Em relao disponibilidade, trata-se de saber
quanto o acontecimento acessvel para os jornalistas e quanto tratvel,
tecnicamente, nas formas jornalsticas habituais (Elliott e Golding, 1979: 144). Os
critrios relativos ao produto podem ser explicados em termos de consonncia com os
procedimentos produtivos, de congruncia com as possibilidades tcnicas e
organizativas, com as restries de realizao e com os limites prprios de cada meio de
comunicao.
Nesta categoria tambm est includo o critrio da brevidade: por um lado,
brevidade est associada aos valores-notcia relativos ao produto e, por outro, ao
mecanismo de seleo de notcias. Limitar as notcias aos seus elementos mais bvios
essencial para que se deixe espao para uma mnima seleo dos acontecimentos do dia.
Nos critrios de relevncia concernente ao produto, engloba-se tambm aquele
que se refere notcia como resultado de uma conceituao da informao, baseada, por
sua vez, na histria dos sistemas informativos e do jornalismo. O acontecimento que se
constitui em notcia aquele capaz de alterar a rotina cotidiana: quanto mais negativo
nas suas conseqncias um acontecimento, mais probabilidade tem de se transformar
em notcia. Diversos elementos, complementares entre si, esto enraizados na noo de
notcia: a origem e o tipo de evoluo que as empresas jornalsticas tiveram e o gnero
de opinies relativas ao pblico partilhadas pelos jornalistas. Um dos princpios
fundamentais do jornalismo que, quanto mais inslito ou mais sangrento o
espetculo, maior o valor-notcia (Schudson, 1978). Por conseguinte, a ideologia da
notcia est estreitamente ligada ao carter fragmentrio da cobertura informativa.
Outro valor-notcia em estreita conexo com o produto informativo a
atualidade. A periodicidade da produo informativa um fator constituinte, por si
prpria, do quadro de referncia em que os acontecimentos so captados: a produo
cotidiana estabelece um quadro dirio e os fatos noticiveis devem ter acontecido
durante as 24 horas de intervalo entre um noticirio e outro para serem includos.
Existem alguns critrios operativos para se estabelecer o tipo e o percentual de
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atualidade que os acontecimentos devem apresentar para se transformarem em notcias.
No critrio atualidade interna, os jornalistas avaliam se uma notcia atual para eles
prprios e, caso seja, tambm o ser para os leitores. Outro critrio inerente atualidade
o tabu da repetio: se uma notcia classificada como repetitiva ou semelhante a
outras, no considerada suficientemente noticivel. Isto, entretanto, no vlido de
forma indiscriminada, dado que o valor-notcia importncia prioritrio e permite
coberturas jornalsticas, de modo constante e repetido, de personagens e temas que nele
se inserem.
Outro valor-notcia referente ao produto a composio equilibrada do
noticirio em seu conjunto. O limiar de noticiabilidade de certos fatos depende da
quantidade de uma determinada categoria de acontecimentos que j existe no produto
informativo: se no existe, a notcia tem probabilidades de ser aprovada, mesmo que
no seja muito importante, exatamente porque serve para equilibrar a composio global
do noticirio.
Na terceira posio, alinham-se os critrios relativos ao meio de comunicao.
As conexes e as avaliaes, que se cruzam com outros valores-notcia, tornam os
critrios vinculados ao meio de comunicao mais complexo do que pode parecer. Alm
disso, este valor-notcia est diretamente associado a todos os critrios de relevncia
atrelados ao pblico, seja quanto finalidade de entreter e de fornecer um produto
interessante ou ao propsito de no cair no sensacionalismo. Mesmo no jornalismo
impresso, a avaliao de noticiabilidade de um acontecimento tambm tem relao com
a possibilidade de fornecer imagens que no correspondam aos modelos tcnicos
normais, mas que sejam tambm significativas.
Outro critrio de noticiabilidade relacionado ao meio de comunicao a
freqncia, relacionada ao lapso de tempo necessrio para que um acontecimento tome
forma e adquira significado. Quanto mais a freqncia do acontecimento se assemelhar
freqncia do meio de informao, mais provvel ser a sua seleo como notcia.
Em quarto, esto os critrios sujeitos ao pblico. Esses critrios referem-se ao
papel da representao que os jornalistas fazem do seu pblico leitor. Trata-se de um
aspecto difcil de definir e rico em tenses opostas. Por um lado, os jornalistas
conhecem pouco o seu pblico e suas preferncias: o seu dever profissional produzir o
noticirio mais do que satisfazer a um pblico. Por outro, a referncias s necessidades e
s exigncias dos destinatrios constante e, nas prprias rotinas produtivas, esto
presentes pressupostos implcitos acerca do pblico.
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Os jornalistas explicam o seu conhecimento dos interesses do pblico fazendo
referncias s noes correlativas de profissionalismo, empenho e experincia. Trata-se
de um argumento circular: dada a sua capacidade de discriminao, derivada de sua
imerso no universo das notcias, o jornalista encontra-se na melhor posio para
discernir o que interessante para o pblico. Esta explicao, entretanto, no fornece
nenhum critrio independente. Segundo Wolf (2003: 213), o termo de referncia
constitudo pelas opinies que os jornalistas tm acerca do pblico e os limites dessa
referncia so um dos aspectos mais interessantes e menos aprofundados na temtica do
newsmaking.
Na quinta posio alocam-se os critrios ligados concorrncia. A situao de
competio entre os jornais d origem a trs tendncias, que, por sua vez, se refletem
sobre alguns valores-notcia, reforando-os. Os jornais competem na obteno de
material informativo exclusivo e tambm na inveno de novas rubricas editoriais. Em
conseqncia, acentuam-se os impulsos para a fragmentao, para centrar a cobertura
informativa em personalidades da elite e para todos os demais fatores co-responsveis
pela distoro informativa que pretere uma viso articulada da realidade social. A
segunda tendncia consiste nas expectativas recprocas: uma notcia pode ser
selecionada porque se espera que os concorrentes faam o mesmo. Em terceiro, as
expectativas recprocas se transformam num lao comum, desencorajando as inovaes
na seleo de notcias. Isto poderia suscitar objees por parte dos nveis hierrquicos
superiores, o que, por sua vez, colabora para a semelhana das coberturas jornalsticas
entre os concorrentes.
A competio implica, ainda, como conseqncia, em contribuir para o
estabelecimento dos parmetros profissionais e modelos de referncia. No caso da
imprensa norte-americana, esta funo desempenhada pelo New York Times e pelo
Washington Post (Wolf, 2003: 215). No Brasil, os atuais modelos de referncia
profissional so os jornais O Globo, Folha de So Paulo e O Estado de So Paulo.
Em sntese: os valores-notcia so as qualidades da construo jornalstica dos
acontecimentos, conforme apontam Elliott e Golding (1979: 114). Bourdieu j afirmou
que os jornalistas possuem culos especiais atravs dos quais vem certos
acontecimentos e no outros e vem de uma certa maneira as coisas que vem
(Bourdieu, 1997: 25). Esses culos so os valores-notcia atravs dos quais os
jornalistas operam uma seleo e uma produo discursiva daquilo que selecionado.
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Ou seja, so as condies de possibilidades de ver e dizer sobre a realidade social que
esto estratificadas na comunidade interpretativa (Traquina, 2005b) dos jornalistas.
Consideraes finais
Esses modos do visvel e do dizvel sobre o real implicam, para as comunidades
interpretativas, relaes de poder-saber e produes discursivas atravessadas por efeitos
de poder. Assim, analisar os dispositivos do poder a partir de uma estratgia imanente s
correlaes de fora apontar para os investimentos na ordem do discurso.
Dentro das quatro regras que funcionam mais como prescries da prudncia do
que como imperativos metodolgicos, Foucault nos recomenda que afirmar a regra da
imanncia dizer que no h nenhuma exterioridade entre as tcnicas de saber e as
estratgias de poder, ainda que cada uma tenha seu papel especfico e que se articulem
entre si a partir de suas diferenas. Estratgias e tcnicas, conjuntamente, constituem
focos locais de poder-saber. O que devemos buscar o esquema das modificaes que
as correlaes de fora implicam atravs de seu prprio jogo. A dinmica extremamente
mvel de funcionamento do poder ressalta que as relaes de poder-saber so matrizes
de transformaes. Esse movimento de transformaes est inserido dentro de uma
estratgia global que, por sua vez, se apia em diversas relaes locais de poder.
J a relao que se estabelece entre o nvel estratgico e global e o nvel local e
ttico implica em um duplo condicionamento, no qual no h descontinuidade nem
homogeneidade, apesar das diferenas e especificidades. O modo de articulao dos
dispositivos de poder e as estratgias globais so caracterizados exatamente por esta
determinao recproca. Duplo condicionamento: de uma estratgia, atravs da
especificidade das tticas possveis; e das tticas, pelo invlucro estratgico que as faz
funcionar (Foucault, 1980: 95).
O que este ensaio pretendeu foi uma primeira aproximao entre a metodologia
foucaultiana e os conceitos da Teoria do Jornalismo para circunscrever a noo de
valores-notcia como um obscuro conjunto de regras annimas que formatam a
produo da ordem do discurso jornalstico. A noticiabilidade de um acontecimento
sempre depende dos jogos de poder-saber estabelecidos entre as empresas jornalsticas e
a comunidade interpretativa dos jornalistas: se, por um lado, os critrios de relevncia
so flexveis e variveis quanto mudana de certos parmetros, por outro, so sempre
considerados em relao forma de operar do meio de comunicao que produz a
informao. No h um processo rigidamente fixado e uma avaliao esquematicamente
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pr-ordenada da noticiabilidade: suas margens de flexibilidade e de ajustamento
induzem, portanto, a avanarmos na direo de uma hiptese sobre o carter negociado
dos processos de produo da informao. O produto informativo parece ser o resultado
de uma srie de negociaes micropolticas que tm por objeto aquilo que publicado e
o modo como editado no jornal. Essas negociaes so efetuadas pelos jornalistas em
funo de fatores que possuem diferentes graus de importncia e ocorrem em diversos
momentos do processo produtivo.
Em suma: o processo de fabricao da informao jornalstica configura-se
como um espao pblico de lutas micropolticas no qual diversas foras sociais,
polticas e econmicas disputam, pela construo discursiva, a produo de sentido
sobre a realidade social.
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