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8/18/2019 Perséfone: Tragédia em Quatro Atos
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PERSÉFONETragédia em Quatro Atos
Caio Aniceto
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PERSONAGENS
PERSÉFONE: Filha de Deméter. É raptada por Hades.HADES: Deus do Submundo. É o raptor de Perséfone.
DEMÉTER: Deusa da Agricultura. Procura sua filha, Perséfone.AFRODITE: Deusa da Beleza. Testemunha do rapto.HERMES: Mensageiro dos Deuses. Auxilia Deméter.
SOMBRAS: Almas do que estão no Inferno.NINFAS: Habitantes da floresta.
PERSONAGENS OPCIONAIS: Ninfas que acompanham Afrodite.
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ORIENTAÇÕES DE TEMPO E ESPAÇO
PRÓLOGO: Ocorre nos ARREDORES DE ELÊUSIS, durante a NOITE DATERRA. Sugere-se o uso de luz em tons frios, para transmitir o carátersombrio da maldição de AFRODITE.
PRIMEIRO ATO: Ocorre no SUBMUNDO, nos APOSENTOS DE HADES.Há um trono no centro do palco.
SEGUNDO ATO: Ocorre nos ARREDORES DE ELÊUSIS, durante aMANHÃ DA TERRA. Como é o mesmo local onde se passa o PRÓLOGO,altera-se apenas a luminosidade.
TERCEIRO ATO: Ocorre no SUBMUNDO. As CENAS I e II se passam noABISMO DO TÁRTARO: sugere-se o uso do mesmo ambiente do
PRIMEIRO ATO, retirando deste apenas o trono, que simboliza o paláciode HADES. As CENAS III e IV se passam nos APOSENTOS DE HADES.
QUARTO ATO: Ocorre no SUBMUNDO. As CENAS I e II se passam noABISMO DO TÁRTARO, e as CENAS III e IV nos APOSENTOS DE HADES.
EPÍLOGO: Ocorre no SUBMUNDO, nos APOSENTOS DE HADES. Deverãoexistir dois tronos no centro do palco.
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PRÓLOGO
[AFRODITE entra acompanhada de duas ninfas, uma segurando umespelho médio ou grande e a outra carregando o manto da deusa. As
ninfas devem se posicionar sempre atrás da deusa, que se dirige ao público em sua fala].
AFRODITE:Olhai, pequenos, olhai!No topo deste monte que respiraos ares luminosos de Elêusisentre as brumas místicas da Aurora,entre os campos ebúrneos de narcisos,dança Perséfone bela.
Seu rosto cintila como ouroe o sorriso é centelha divina.Mal compreende, no entanto,quão sombria é sua sina.
Deixemos o depois para o depois,Ouvi: no fim desta noite aindaneste solo enfeitiçadoabriu-se uma fenda negra
eterna, inexorável.
Como surgiu, não sabemosvós mortais até dizer poderíeisque forma na rocha uma passagem:mesmo vós isto verieismas ela cruzaríeis jamais.Esta escara no chão profundoestende-se até o Submundoe o Inferno expõe à luz do Sol.
Eis que surge diante dos olhosuma chama negra irrompenterevelando cem cadavéricos corceise uma carruagem de fogo e cinzas.
Seu condutor, vê-se ao longeé uma Força em mármore esculpida,
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descem os pútridos equinos ao abismoe de Perséfone bela, vê-se apenaso longo cabelo a balouçar.
Foi-se! Acabou-se o rapto!
E do terrível ato sobra apenasgentil e branca evidência:um narciso que a jovem colhia,e que jaz no chão solitário.
Sabereis agora o que ocorre quandouma flor afastada da luz permanece:na treva imensa desabrochaou em angústia eterna perece?
PRIMEIRO ATO - ÁNOIXISCENA I
NOITE NO SUBMUNDO, APOSENTOS DE HADES.
[PERSÉFONE está ajoelhada no centro do palco, cercada pela névoa doSubmundo].
PERSÉFONE:
Eu sou o Silêncio, e nele sou o Todo.
Não mais dançam as flores rubras
Morreram as vozes e os cantos da floresta
Apenas o canto lacrimoso das almas
Inunda espectral a névoa.
Tendo apenas o Horror como amigo
E do Érebo o pranto exaustivo
Pergunto-me se fora feliz, certa vez
Mas a memória me é fugidia.
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Cerro os olhos,
Mas o Sono não vem.
Pudera eu, pelo menos, sonhar
Estrangular o medo por um momento
Rever as ninfas, as águas, os bosques
Que comigo dançavam previamente.
Foi real, ou foi outra ilusão?
Há quantos dias, anos, séculos
Estou presa neste vil tormento?
Nesta imensa caverna
Por desolação e treva tomada
Já perdi os sentidos comuns
Não sinto mais este corpo como o meu.
Estarei também me transformando?
A gélida água do Rio Leto,
Da qual bebo todos os dias
Terá me feito olvidar algo importante,
Que perdi, em tempos distantes?
Desperta, Perséfone! Lembra-te de quem és!
Vejo meu corpo mudar incessante
Como o reflexo da cor nas águas turvas
Transmutam a Beleza em Caos.
Vejo escaras a todo instante,
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Mas não sei quais são reais.
Um canto distante posso escutar
Tive eu, por acaso, certa vez
Alguém que de mim cuidasse?
Vejo um rosto entre lampejos
De memórias absortas fragmentadas
Um rosto similar ao meu, que abraça
E afaga meus cabelos com carinho...
Tive eu alguém? Alguém que me amasse?
Quando para cá fui trazida, nos braços
Do deus das Trevas, de olhar mortificado
Lembro-me do desespero,
Da luz morrendo lentamente,
Em um vórtice de lama e breu.
Mas hoje se perdeu este pavor
Dentro de mim, calam os gritos
A cada momento a serenidade
Também clama por liberdade.
Estarei eu sendo dominada?
Se mesmo prisioneira me sinto livre
Como não cerrar as bocas que me alertam?
Resta-me apenas a quietude
E a imensidão completa do Silêncio
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Que comigo é um, e um somente
Eu sou o Silêncio, e nele sou o Todo.
CENA II
[Entram as SOMBRAS.]
SOMBRAS:
Pobre alma divina, imortal
Que a poeira umedece com suas lágrimas.
O que vos atormenta?
PERSÉFONE:
Deixai-me, Almas
Basta que vosso amo me atormente.
Sinto a prisão fechar-me o peito a cada dia
Se puder haver dia onde o Sol não toca.
Sinto falta do que lá havia, lá em cima
Sei que haviam cores, perfumes, rubores
Carícias, sorrisos, sabores...
Nada há aqui além de Sombras
E esta Dor já me é insuportável!
SOMBRAS (1º SEMICORO):
Resisti, deusa primaveril
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Tua luz para nós também é benção.
SOMBRAS (2º SEMICORO):
Tens razão, não há cor neste mundo
E mesmo assim, cá estás tu iluminada.
PERSÉFONE:
Mas até quando?
Os prazeres que me faltam tornam-se
Cada vez mais diáfanos.
Desperto infinitas vezes e assim mesmo
Penso estar em escuro sonho.
Vejo uma figura a sorrir, a me guiar
Para longe deste pesadelo eterno
Porém tudo se desfaz, como a luz
Encoberta pela tempestade!
1ª SOMBRA:
Dar-te esperança não podemos,
Sombras rútilas que somos.
2ª SOMBRA:
Mas não foste abandonada,
Saiba somente.
PERSÉFONE:
Que dizei?
3ª SOMBRA:
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Não te recordas mais de quem eras, deusa bela?
Olvidastes quem a nutriu em tenra idade?
PERSÉFONE:
Contai-me mais, ó Almas
Que como eu no tormento
Estão vós aprisionadas!
Ajudai-me a enxergar, a tocar
Esta miragem que me desperta todas as noites!
4ª SOMBRA:
Tudo escuta e tudo vê na escuridão
O deus das dores eternas.
Ele se aproxima.
[As SOMBRAS ficam em segundo plano no palco, encolhidas umas àsoutras, como se tivessem medo].
CENA III[Entra HADES].
HADES:
Com quem estás a falar?
Nada vejo além das sombras.
Estarão elas vos estorvando?!
[HADES faz um movimento com a mão e as SOMBRAS se contorcem dedor, no chão.]
PERSÉFONE:
Parai! Não vês tu,
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Que elas estão aflitas?!
[As SOMBRAS encolhem-se novamente].
HADES:
Apieda-te das patéticas almas?
PERSÉFONE:
Não têm elas melhores
Condições que as minhas.
HADES:
Cessa o lamento, flor pequena,
O Submundo é a tua casa, somente
Crês tu ter outro lugar no mundo?
PERSÉFONE:
As vozes em meus sonhos,
Dizem que pertenço à superfície.
HADES:
Acreditas no sonho ainda?
Saiba tu que o Sono e a Morte,
São irmãos, do mesmo ventre,
E ao mundo inferior pertencem.
PERSÉFONE:
Diga-me, deus sombrio,
Quem é a mulher que me afaga
Quando fecho os olhos, somente?
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HADES:
Estás confusa.
Os mortos aguardam em agonia
Por aquela que será sua rainha.
Cá está o Fruto dos Mortos.
Aceita teu destino, flor amada.
[HADES entrega um romã para PERSÉFONE, que o rejeita].
Recusas? Como?
Obedece, neste instante!
PERSÉFONE:
Deixa-me!
[HADES oferece o fruto novamente, e PERSÉFONE atinge HADES norosto].
HADES:
Ainda não estás pronta?Entendo...
Ainda crês teres sido feliz na superfície
Onde eras mimada, fraca e inútil?
Mereces mais, Perséfone, muito mais:
Não deverias estar encolhida entre as sombras miseráveis
Mas sobre elas presidindo, como a soberana que és.
Não percebes o poder que tens no Submundo?
[PERSÉFONE se desvencilha de HADES e sai de cena correndo].
CENA IV
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[HADES, em frente ao palco].
HADES:
Preciso agir rápido.
Sinto uma presença cada vez mais próxima...
Não demorará até que a deusa mãe estarrecida,
Descubra que no submundo jaz sua filha.
Nem mesmo a água do Rio do Esquecimento
Parece surtir efeito contra o poder de Deméter!
Mas a Escuridão, eventualmente,
Cobre o dia com negro véu.
Perséfone me amará, tornar-se-á rainha
Do eterno mundo dos mortos!
Perséfone é minha, minha inteira
Sempre! Minha somente.
[Sai Hades].
CORO:
Acima de nós, neste instante
Ceifando amarga as flores secas de Elêusis
Jaz Deméter.
Deusa que a esperança plantava,
Hoje colhe apenas desespero.
SEGUNDO ATO - FTHINÓPORO
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CENA I
MANHÃ NA TERRA, ARREDORES DE ELÊUSIS
[DEMÉTER caminha pelo palco, como se estivesse desorientada].
DEMÉTER:
Flor minha, minha somente
Onde deixaste teus sonhos?
Estes campos não mais tomados
De cor e néctar estão.
As pequenas criaturas que, graciosas,
Brincavam contigo em sorrisos
Não são mais que pó, uniram-se
A Terra à chorar por ti.
Desde que te foste, filha amada
Não mais surgiu o Sol em meio às nuvens
Não mais caem as lágrimas da chuva:
Secaram, como as minhas,
Que brotam invisíveis apenas.
Desde que sumiste, meu coração
Os pássaros não cantam, não germinam
as sementes plantadas nos campos.
Pergunto-me, muitas vezes,
Quanto tempo faz.
Lembro-me então, somente,
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Que a dor se mede em eternidades.
Parece que ali, ali tão perto,
No riacho em que brincavas contente
Deixei-te só, a colher flores...
Ó, Perséfone! Tão mais suportável seria
Fosse eu mortal, esquecer-te-ia
Ou simplesmente, no solo, de joelhos
Esperaria sorrindo a morte!
Mas esta coroa que hoje em mim despetalada
Quebradiça como os galhos da floresta
E que a vida dá e tira,
Não pode o próprio espírito deteriorar!
Quando as mãos da solidão me abraçam
Até que eu não possa mais respirar
Atiro-me ao mar, jogo-me ao fogo
Penso que finalmente serei liberta...
Penso poder reencontrar-te.
Mas a água em meus pulmões não entra
E o fogo meu corpo não consome.
Não me incomoda mais a escuridão eterna:
Perdi a luz de minha existência.
CENA II
[Entram as NINFAS, lentamente, como em um cortejo fúnebre].
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NINFAS:
Ó, deusa grandiosa,
Que mal nos faz vossa tristeza...
E a natureza sofre contigo.
1º SEMICORO (NINFAS):
Desde que sumiu Perséfone,
Não mais floresceram os campos.
O gado morre na cruel seca
E as mães aflitas não produzem leite.
Tememos por vós, tememos por nós.
2º SEMICORO (NINFAS):
A brisa agora é invisível fogo,
O Sol cruel devora as plantas.
Os dias são cada vez mais longos
E as noites cada vez mais frias.
Tememos por vós, tememos por nós.
DEMÉTER:
Desde que sumiu Perséfone...
Como garantir nutrição ao gado,
Quando me alimentar não posso?
Como fazer jorrar o materno néctar,
Quando eu mesma mãe não mais sou?
NINFAS:
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Os rios secam à medida
Em que vossas lágrimas correm.
Não tardará até que a fome e a sede
Obriguem outras mães a enterrarem seus filhos.
DEMÉTER:
Meu poder esmorece com o tempo...
Que morra o mundo junto comigo.
NINFAS:
Vossa pele possui as mesmas
Rachaduras no solo presentes.
Vosso semblante divino,
Nada mais é que uma sombra agora.
DEMÉTER:
Ó Ninfas, pequenas ninfas,
Que devo eu fazer?
Não estáveis vós a brincar
Com Perséfone naquele fatídico dia
Em que ela desapareceu?
Contai o que ocorreu de fato
Nada escondei de mim!
NINFAS:
Nada vimos, nada sabemos
De Perséfone resta apenas
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O rastro florido da memória.
[DEMÉTER dirige-se ao público, implorando]
DEMÉTER:
Vistes vós minha filha?
É pequena como um idílio,
Seu sorriso chega a ser incandescente
Estais vós certos de que não a viram?
Estava aqui, bem aqui,
Colhendo narcisos para uma coroa
Dançando em meio às flores
Quando... Como?
Perdi-a de vista por um segundo
E nunca mais nossos olhos se cruzaram!
[DEMÉTER cai de joelhos, chorando. O CORO DE NINFAS tenta consolá-
la. Repentinamente, todos se empertigam]
DEMÉTER:
Sinto aterradora presença a nos cercar...
Decerto não pertence a um mortal esta aura.
[Dirige-se às NINFAS].
Saiam, pequenas,
Nada aqui vos resta.
[Saem as NINFAS. DEMÉTER fala em tom de ameaça].
Quem se aproxima e ousa
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Presenciar de Deméter o sofrimento?
Apareça, neste exato instante exijo!
CENA III
[Entra AFRODITE].
AFRODITE:
Não é feitio teu chorar desta forma
Deméter, rainha entre ninfas.
Arrebata-te a solidão desta maneira?
Teu manto antes florido hoje é
Mortalha melancólica somente.
DEMÉTER:
Compraz-te com minha dor, Afrodite?
Deves tu estar contente! A mesma Deméter
Que antes ria de teus poderes
Hoje se desfaz em agonia.
Se algum respeito por mim já tivestes
Retira-te, peço somente:
Deixa-me só com minha dor.
AFRODITE:
Grande deusa mãe, ouvi o que tenho a dizer-te.
Se cá estou, humildemente
Diante da ti é somente
Pois a culpa me consome a cada dia.
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DEMÉTER:
Não compartilhas de minha dor.
Não sabes o que é perder um filho.
AFRODITE:
Engana-te; de tua dor compartilhamos eu
E a natureza inteira. Não vês que mal faz
A falta de sacrifícios a nós deuses?
DEMÉTER:
Desejas de volta teus brinquedinhos?
Zeus ignorou meus apelos.
Que pereçam os homens aos milhares.
AFRODITE:
Não é apenas o louvor que desejo.
Vim para trazer justiça.
Não desejas tu conhecer
O paradeiro de vossa amada filha?
DEMÉTER:
Que dizes?!
Sabes de Perséfone?!
Dizei de uma vez!
Não me tortures nem mais um instante!
AFRODITE:
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Cá estava, neste mesmo monte
Quando avistei Perséfone a brincar.
Em meio às ninfas cantava e dançava
Mas o medo a fez silenciar.
Distanciou-se, sonhadora, a pobre menina:
Colhia as mais belas flores para trazer-te
Nem ao menos percebeu que entre os lírios brancos
Crescia um narciso negro.
Apanhou-o, ingênua, pobrezinha...
No mesmo instante, abriu-se uma fenda no solo
E dela emergiu o soberano dos mortos:
Hades, em negro manto, arrebatou Perséfone
Seus gritos silenciados foram pelas trevas
A terra os engoliu, e isso foi tudo.
Por mais que eu tentasse, nada pude
Fazer para impedi-lo.
DEMÉTER:
Não... Não...
Não é possível!
Minha filha, minha pequena flor,
Nos braços da escuridão imersa?
[Em desespero, fala consigo chorando].
Foi minha culpa.
Eu deveria ter imaginado que os tremores
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No ventre da terra eram sinais.
Eu poderia tê-la ao meu lado.
Perséfone deixava-me, escondida
Saía de seu leito, ia ao bosquePara surpreender-me com as mais belas flores
Quando eu notasse sua ausência.
Eu sabia dos perigos... Mas não pude
Pedir a ela que parasse...
Ela...
Ela colhia flores...Aquele monstro a levou...
Ela está confusa... O frio...
[Soluça entre as palavras].
Perséfone está só!
AFRODITE:
Quis trazer a ti a sombria mensagemPorém Zeus impediu-me...
Ele esperava que você esquecesse.
DEMÉTER:
[Sai do transe].
Zeus? Zeus, que ignorou minhas súplicas?
Por quê seria ele cúmplice
De tão hediondo crime?
AFRODITE:
Pois o soberano das trevas
Fez de Perséfone sua rainha.
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Já não importa.
Perséfone não está mais em meus braços.
O Olimpo recusou-me ajuda.
Pois bem.Nunca mais terão os deuses sacrifícios
Pois não haverá mais gado que sobre a terra ande.
O sangue nunca mais será derramado em sua glória
Zeus! Rei dos deuses!
Por abandonar uma irmã que vos suplica
Por ignorar os lamentos de uma mãeReceberá em seu reino a maldição da natureza
Pois aquela que dá é aquela que tira.
A vida que semeio, posso ceifar em um instante:
Os homens chorarão quando a seca assolar a terra
Até que não haja mais água em suas lágrimas.
Deuses do Olimpo!Os cantos que antes os divertiam
Os sacrifícios que os alimentavam
Tornar-se-ão pó frente à ira de Deméter!
E tu, Hades... Senhor do Submundo
Receberás dentre todas a pior punição
Teu reino ficará de tantas almas repleto
Que nem os juízes do Inferno poderão cerrar
Os olhos em descanso por um momento!
Descerei até tua fortaleza, deus vil
E recuperarei a flor
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Que tu tão cruelmente roubaste!
Mesmo que sozinha for, juro
Com todas as forças que me restam
Que resgatarei Perséfone.A Terra congelará, e junto com ela seus filhos
Até que seja satisfeita minha busca.
[Dirige-se à Afrodite.]
Deusa da beleza, se o que dizes é verdade
Aponta-me o caminho da escuridão
Descerei ao Tártaro e trarei minha filhaDe volta a onde ela pertence.
AFRODITE:
Há uma porta para o Mundo Inferior
Logo ali, atrás das rochas do Elêusis
Basta que escutes o lamento das almas
E as sombras guiarão o teu caminho.A entrada do Submundo jaz sempre aberta.
Tens cuidado, no entanto, com Hades
Pode qualquer um penetrar em seus domínios
Mas nunca alguém de lá saiu.
DEMÉTER:
Será feito.
Pela porta que entrar hei eu de sair:
E ao meu lado, Perséfone estará.
[Determinada, DEMÉTER sai de cena pelo caminho indicado por AFRODITE.]
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CENA IV
AFRODITE:
[Solilóquio, em tom irônico.]
Vai, deusa sofredoraBusca tua filha, traidora
Que os teus virginais passos
Ameaçava seguir com afinco.
Em meu objetivo, tive sucesso:
Ama agora o deus das trevas.
Até onde irás por tua pequena, Deméter?Resistirás mesmo aos confins do Submundo?
És uma peça nova no jogo do amor
Em que luz e trevas um se tornaram.
Não há nada que construa o amor materno
Que o doentio desejo não desfaça.
[Sai AFRODITE.]
TERCEIRO ATO - THÉROSCENA I
SUBMUNDO, ABISMO DO TÁRTARO
[DEMÉTER caminha desorientada pelo palco, olhando o ambientevisivelmente assustada.]
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DEMÉTER:
Não sei mais por quanto tempo
Estive a perambular por estas cavernas.
O aroma pútrido da rocha exalaE a névoa dos mortos cobre o mundo.
Não há pequena luz que ilumine
Meu solitário caminho
Continuarei andando, nem que
Rastejar preciso for:
Já sinto tua presença, PerséfoneAcalma-te, logo encontrar-te-ei.
Esta prisão pulsante
De pedra e escuridão composta
Não impedirá teu florescimento.
Mas quando penso estar mais perto de ti
Some novamente tua presença!Mas não me consumirá o desespero
Podem ter os deuses nos abandonado,
Perséfone, minha querida
Mas jamais eu a abandonarei.
Que vejo? Uma centelha se aproxima...
Estarei sonhando?
Prega-me peças o Submundo?
Quem se aproxima?
És tu, Hades, déspota obscuro?
Mostra teu rosto àquela que matastes!
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CENA II
[Entra HERMES.]
HERMES:Não temas, deusa da colheita
Trago-te auxílio divino:
Condolências do Olimpo, apenas
Ordens de Zeus, rei do Firmamento.
DEMÉTER:
Hermes!O que faz aqui o mensageiro dos deuses?
Vós abandonastes à mim e à minha filha.
Da piedade de Zeus não necessito:
Caiam vós, um a um, como folhas mortas.
HERMES:
Jamais esqueceu de ti o pai dos deuses.Zeus, por tua obstinação comovido
Pediu que ao Submundo eu descesse, para guiar-te.
DEMÉTER:
Pensa Zeus que sou tola?!
Se estás aqui, Hermes,
Não é pela comoção do Olimpo
Mas porque enfraquece o panteão sem o sangue
Derramado de seus sacrifícios.
Já não é tão doce o néctar do qual usufruíam os deuses
E a ambrosia agora é pó em suas bocas.
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Por que não interviu Zeus quando dele precisei?
HERMES:
Mesmo o rei dos deuses deve respeitar
As decisões de seus irmãos.
Hades tomou Perséfone por esposa,
E mesmo o Submundo precisa de uma rainha.
DEMÉTER:
Dentre tantas deusas na superfície
Tinha Hades justamente de levar
Aquela que é minha filha?Nunca deixei que qualquer um se aproximasse
De Perséfone, homem ou deus.
Todos aqueles que ousaram avistá-la
Garanti que nunca mais enxergassem.
Hades não pode manter Perséfone.
HERMES:Cá estou para que possamos resolvê-lo.
Segue o caminho que para ti iluminei:
A luz divina a guiará até tua filha.
DEMÉTER:
Se existe algum deus, no Olimpo
Que algum traço de bondade guardaEste és tu, Hermes, célere mensageiro.
Acompanha-me em meio à noite eterna.
[HERMES ajoelha-se e é abençoado por DEMÉTER, que seguedeterminada pelo caminho indicado por ele. Após a saída de DEMÉTER,
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HERMES dirige-se à plateia].
HERMES:
No Submundo, dizem os deuses,
Perséfone ainda floresce.As sombras que aqui perambulam
Agora o fazem, parece, sorrindo:
Perséfone tornou-se uma mãe
Para as almas aqui perdidas.
Sua luz traz esperança aos vivos
E aos mortos, indistintos.Estava Perséfone realmente livre ao lado de sua mãe
Ou era prisioneira e não o sabia?
Aqui a garota cresceu, tornou-se rainha
É ela tão soberana no Tártaro
Quanto é Deméter na superfície.
Terá Perséfone nas trevas se encontrado?[Sai HERMES.]
CENA III
SUBMUNDO, APOSENTOS DE HADES
[PERSÉFONE está sentada pensativa. Não há sinal de tristeza em seurosto, apenas de lividez]
PERSÉFONE:
Mesmo a água do Rio do Esquecimento
Parece agora não surtir qualquer efeito.
Ouço a voz, cada vez mais próxima:
Ela me chama, como doce canto.
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No entanto, sinto que a este lugar pertenço.
Cada vez mais a Escuridão me abraça
Carinhosamente, quase como em afago
As flores, os frutos da superfície me parecemCaprichos, presentes sem valor
Se comparados ao papel que aqui possuo.
As almas contorcem-se em dor
E, no entanto, alegram-se quando me aproximo.
Será esta a minha função, afinal,
Ser o bálsamo... A luz no fim da escuridão?
[Entra HADES, carregando um invólucro.]
HADES:
Perséfone?
PERSÉFONE:Cá estou.
HADES:
O que ocupa tua mente?
PERSÉFONE:
Nada me preocupa, Hades, creia-me.
Penso apenas no que era, e no que sou agora
Quem fui e quem deixei de ser.
HADES:
Ainda falta-te o mundo superior?
PERSÉFONE:
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Naturalmente. Mas ainda sim
Sinto que na Escuridão
Devo eu permanecer.
Não sei até que ponto isto é truqueOu concreto sentimento.
Tens algo a dizer?
[HADES retira do invólucro flores brancas.]
HADES:
Deixaste estas pequenas caírem
Quando adentraste o portal do Submundo.Encontrei-as intactas, ainda.
[PERSÉFONE toma as flores de HADES, esboçando um sorriso.]
PERSÉFONE:
Puras, tão alvas
Quanto no dia em que as colhi.
Mesmo depois de tanto tempoNas trevas imersas, elas vivem...
Continuam iguais, e ainda sim,
Parecem mais belas na névoa.
HADES:
Como a ti.
Se eras deusa comum, na superfície
No submundo és única regente:
A centelha que a escuridão completa.
[PERSÉFONE se afasta, pensativa com as flores nos braços. HADESdirige-se à frente do palco, como se falasse consigo mesmo.]
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HADES:
Ela está aqui, já posso sentir:
Deméter desceu ao Submundo.Perséfone logo será rainha...
Não posso permitir que atrapalhe
Meus planos a deusa da colheita.
[Sai HADES.]
CENA IV[Entram as SOMBRAS.]
SOMBRAS:
Grande deusa, entre nós soberana
Não mais choras como outrora?
Tens em teus braços as floresMas delas não sente falta.
Mudou a ti o Submundo?
PERSÉFONE:
Não sei mais o que se passa...
Antes não podia eu impedir
Que as lágrimas fluíssem correntes
De dor, agonia e desespero!
Agora bate meu coração devagar
Meus olhos tranquilos agora
Refletem apenas a fria decisão.
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Este fruto, amargo e sombrio
Nascido de toda escuridão do mundo
Mostra-me dois caminhos:
Deixá-lo e procurar uma saídaVoltar à superfície, reencontrar
Aquela que me acalanta nos sonhos...
Colher as flores, comer as frutas
Cantar, dançar, sorrir.
Ou então, posso provar
Do Fruto dos Mortos as sementes:Cá ficarei, convosco, sombras
Vós que alegram-se ao meu lado
Que em minha presença colorem-se
E lembram-se de quem eram, lá em cima:
Serei vossa rainha, a soberana sombria
Que ao lado de Hades julgará e acolherá os mortos.Aqui, não vejo mais correntes a segurar
Quem realmente sou... Ou deveria ser.
A voz que em sonhos me acalma
Também me exige para si...
Poderia eu, na superfície,
Florescer como aqui floresço?
Se antes eu sorria sem motivo aparente,
Ignorando a dor e a tristeza do mundo,
Aqui posso enxergar a doença do universo
Posso ser uma cura, momentânea,
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Mas eterna na memória dos que padecem.
Que devo eu fazer, ó sombras, dizei-me!
SOMBRAS:
Deusa radiante és para nósUm milagre e uma benção.
Não podemos escolher por ti,
Mas não te olvidaremos jamais.
O Fruto dos Mortos traz dentro de si
Um poder como nunca visto.
No entanto, traz com eleA maldição da eternidade:
No momento em que provares de seu néctar
Pertencerás, eternamente, ao Submundo.
PERSÉFONE:
Eternamente...
SOMBRAS:Há uma graça, que concede
O Fruto dos Mortos àqueles que o devoram:
Durante um dia, um dia somente,
Nos eternos ciclos de vida e morte da Terra,
Poderás tu pôr os pés na superfície.
PERSÉFONE:
Um dia... Um dia apenas.
Novamente ouço a voz dos meus sonhos...
Sinto o Sono a envolver-me, como seda...
[PERSÉFONE adormece.]
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SOMBRAS:
Ó, gentil deusa... Que podemos nós
Meras sombras, fazer por ti?
Enquanto falamos, caminha pelo SubmundoTua lacrimosa mãe:
Hades logo encontrará Deméter,
Luz e Trevas chocar-se-ão.
Perséfone!
Que na superfície é garota contente
Perséfone!Que aqui é justa regente
O que reservaram a ti as Parcas?
Escolherás teu destino:
Come o Fruto ou deixa-o,
Abandona a Escuridão
ou torna-te uma com ela.Escolhe com cuidado, amável deusa
Pois deste caminho não há volta:
Em breve, terás tu de decidir
A qual dos dois mundos pertenceis.
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QUARTO ATO – CHEIMÓNAS
CENA I
SUBMUNDO, ABISMO DO TÁRTARO
[DEMÉTER e HERMES caminham pelo SUBMUNDO.]
DEMÉTER:
Não posso mais me mover...
Meus passos estão cada vez mais lentos
Como se cruzássemos um pântano eterno.
Quanto tempo mais, HermesQuanto tempo mais até que encontremos Perséfone?
HERMES:
O Submundo é um labirinto.
Nunca antes foi encontrado o caminho
Para o Palácio de Hades.
Zeus indicou-me, no entanto,
O correto a ser percorrido.
Vês a espessa névoa, as negras paredes?
Logo nos aproximaremos de Cérbero,
O guardião do trono dos mortos.
Perséfone cá está, tenho certeza
Precisamos seguir adiante.
DEMÉTER:
Perséfone está próxima? Sim, posso sentir
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Como se estivesse aqui... Diante de mim!
[Começa a chamar por PERSÉFONE.]
Perséfone!
Perséfone!
Siga minha voz, filha amada
Perséfone!
Tua mãe veio por ti!
HERMES:
Não chames mais, deusa-mãe
Tudo escuta Hades em seu reino
Pois tornou-se um com ele.
Se nos encontra o deus dos mortos
Poderá ele frustrar nossa busca.
DEMÉTER:
Pode Hades distorcer as leis
Por Zeus impostas entre os deuses?
HERMES:
Nem mesmo Zeus pode interferir
Nos domínios do Mundo Inferior:
Cá pode Hades prender-nos
Ou criar ilusões para que andemos
Perdidos, pelo infinito.
Pode até mesmo causar-nos dor, se assim desejar.
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As regras das Trevas ele mesmo escreve.
DEMÉTER:
Hermes...
O que é isto?
Sinto frio... Meu corpo...
Parece tornar-se um com as pedras infernais.
A escuridão devora minha existência!
HERMES:
Hades se aproxima.
CENA II
[Entra HADES.]
DEMÉTER:
Monstro vil!
Ser de ódio e gelo tomado
De olhos petrificados e mortos
Devolvei o que me tirastes!
Devolvei minha amada filha!
HADES:
Mal faz teu amor à ela,
Como a ti faz o bem.
Vieste até aqui, devo admitir
Que teus esforços superaram pensamentos.
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Suportas o Submundo?
[Olha para HERMES.]
Trouxeste contigo um criado do Olimpo?
Que pertinente!
Serves ainda ao meu irmão acima das nuvens
Que com trovões e raios tudo toca?
Em meu reino estais vós agora:
Lampejos do céu não podem me alcançar.
DEMÉTER:
Tende audácia ainda de julgar-te
Acima dos julgamentos divinos!
HADES:
Audácia ou valor, dizei como queiras.
Conquistei na escuridão este direito
Assim como Zeus que, tomado pela glória,
Deu às Trevas juízo absoluto.
DEMÉTER:
Cala-te, leva-me à Perséfone
A Terra acima de nós perece sem alento.
Até que me retornes o que roubaste
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Ficará toda a criação sofrendo
Sob a seca e o sol eterno.
HERMES:
Sem os sacrifícios que lhes são devidos,
enfraquece o Firmamento.
Devolvei Perséfone, deus dos mortos,
Antes que tarde seja.
HADES:
Que dizes?
No Submundo não chegam os lamúrios
Dos deuses, pobres moribundos.
Deixe que mate a seca, o sol eterno
Os campos de asfódelo nunca tão repletos
estiveram de sombras a gritar seus nomes.
E mesmo que não haja no frio Érebo
ou nos luminosos Campos Elíseos
Espaço que lhes caiba
Que fiquem para sempre vagando
Esperar podem, para sempre que seja.
HERMES:
As sementes não germinam na pedra
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Nem as flores desabrocham nas sombras
A Perséfone que tens, por certo,
Não é mais a que raptaste.
HADES:
E é assim que tua filha
Agora é minha, para o infinito.
Uma flor sem pétalas e cor
Ainda é uma flor.
DEMÉTER:
Pagarás!
HADES:
Poupe-me de tuas vãs ameaças.
Fazes tudo por tua pequena?
DEMÉTER:
Não há o que uma mãe por sua filha não faça.
Ela não será mais prisioneira!
HADES:
Engana-te, deusa lacrimosa.
Mantiveste tua filha prisioneira como eu.
DEMÉTER:
Que dizes?!
HADES:
Sóis e luas cruzaram a abóbada celeste
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Sem que Perséfone deixasse teus braços.
Tomá-la por infante, afasta-a de pretendentes
Secaste mais paixões no coração de tua filha
Do que rios na insolente Terra.
Perséfone agora me pertence.
Ela não é mais tua filha.
Rainha da Escuridão tornou-se.
DEMÉTER:
Perséfone sempre será minha filha!
Fiz o que fiz para protegê-la
E se errei, que ela possa me perdoar, um dia
Quando estiver fora deste abismo de horror!
Farei com que implores, Hades
Por cada momento mais que me privares
Da outra parte do meu coração!
HADES:
És uma tola.
Resgatá-la, pouca diferença fará
Ela é uma de nós agora.
As sementes do Inferno tornaram
Certo e irreversível o processo.
HERMES:
Obrigaste-a a comer do Fruto dos Mortos?
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Mesmo tu cometerias tão hediondo crime?
DEMÉTER:
Não!
Não... Ela me reconhecerá.
E tu Hades, perderás a vida por isto!
HADES:
Já vos disse que não me ameaceis.
Os únicos que aqui podem perder
A coisa que nos torna distintos
E a que chamai de vida
São vós, deusa da colheita
e teu patético mensageiro.
Apenas um deus pode ferir um deus
E vossa posição desfavorece.
Desafias um oponente cujo poder a assombra
E pensas ser capaz de vencer?
Não compreendo.
Se for devido a isto que chamas coração
Perdeste tua filha por sua fraqueza.
O sol já se pôs em minhas mãos.
DEMÉTER:
(desespero)
Eu posso...
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Eu irei impedir-te!
HADES:
Tentai, se tanto desejas!
Deverias agradecer-me.
Tua morte representa
Uma nova vida para tua filha.
DEMÉTER:
Não se pode viver na escuridão!
HADES:
As trevas do Submundo nada são
Além de sonhos passageiros
Que se dissiparão quando tua filha
Tornar-se uma comigo.
Uma flor que definha sem nunca morrer,
Será, um dia,
Mais forte que qualquer outra.
[HADES sai de cena.]
DEMÉTER:
Hades não a possui ainda.
Certa disto estou.
HERMES:
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Deméter, deusa mãe
Se Hades diz a verdade, não há motivo
Para que permaneçamos aqui.
Podemos somente imaginar o estado
em que se encontra Perséfone.
DEMÉTER:
Peço que deixes o Submundo,
Mensageiro dos Deuses.
Este dever é meu, já fizestes o bastante
Ao mostrar-me o caminho.
O coração não mente,
E o de minha filha ainda bate.
Devo continuar minha busca solitária.
[DEMÉTER e HERMES saem de cena por lados opostos. HERMES olha
para trás hesitante, porém DEMÉTER segue sem se virar até deixar o palco.]
CENA III
SUBMUNDO, APOSENTOS DE HADES.
[PERSÉFONE encontra-se ajoelhada diante do fruto infernal, comexpressão sombria. As SOMBRAS a rodeiam.]
PERSÉFONE:
Na hora mais sombria
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Em que a alma volta ao recôndito
Das antigas aspirações e arrependimentos
Volto a tornar-me uma com o Nada
Volto a ser o Silêncio, sendo este o Todo.
A escolha foi feita.
Se destinada estou à imortalidade
Que seja esta sombra, não vaidade.
Esqueças tu, Perséfone,
O brilho do dia, o perfume das flores
Este mundo não pertence mais a ti.
Encarna o caos, dança na escuridão,
Abraça ao medo como a um filho
Pois só assim poderás crescer.
Sob as asas da liberdade, ilude-te!
Fostes prisioneira na superfície
Como o és nas entranhas das Trevas.
[PERSÉFONE toma o fruto nas mãos, e as SOMBRAS movimentam-se.No instante em que PERSÉFONE faz seu monólogo final, as SOMBRAScomeçam a emitir lamentos e sussurros baixos e rítmicos, queaumentam gradativamente.]
Quando se está diante do abismo,
Basta um passo para que a existência
Transfigure-se pela eternidade.
Sombras! Almas perdidas, por vós clamo!
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Ouvi os apelos de Perséfone,
Filha Esquecida, Deusa Abandonada,
Amo-vos! Como nunca qualquer um vos amou!
Sou neste instante vossa Mãe!
Possa eu tornar-me a Luz
Que lhes foi negada pelo Desespero!
[PERSÉFONE come o fruto e as SOMBRAS passam a movimentar-sefreneticamente e a contorcer-se pelo palco. Seus lamentos tornam-segritos.]
[PERSÉFONE cai e tapa seus olhos com as mãos, como se estivessetendo uma visão terrível. Bruscamente, os gritos e movimentos dasSOMBRAS param, e elas ficam imóveis diante de PERSÉFONE.]
[Lentamente, ainda com as mãos sobre os olhos, PERSÉFONE selevanta. Sua postura muda, tornando-se mais ereta. Seu rosto nãoapresenta qualquer traço de sentimento. Gradativamente, PERSÉFONEabaixa os braços, com olhar fixo.]
[PERSÉFONE abre os braços. No mesmo instante, as SOMBRAS curvam-se diante dela.]
SOMBRAS:
Coroada pelas Trevas
Sejas eternamente louvada
Soberana do Reino dos Mortos
Mãe das Sombras
Perséfone!
Perséfone!
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Perséfone!
CENA IV
[DEMÉTER entra em cena.]
DEMÉTER:
Minha filha!
[DEMÉTER corre para PERSÉFONE, e tenta abraçá-la mas não consegue,como se houvesse uma barreira invisível entre as duas. DEMÉTER sedesespera.]
PERSÉFONE:
Deméter, deusa radiante,
Não sou mais a filha que gerastes.
Tuas mãos são a dádiva da vida
Enquanto as minhas acolhem a morte.
Jamais poderemos estar juntas.
DEMÉTER:
É tarde. Não pude impedir
Que as trevas tomassem conta de ti.
Eu falhei.
Perdoa-me, Perséfone
Imploro-te...
PERSÉFONE:Entristece-me tua agonia.
Não posso perdoar-te, uma vez que nada fizestes.
A escolha foi minha, e minha somente.
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Levanta-te, deusa da vida,
Teu trabalho na superfície ainda não terminou.
DEMÉTER:
Como posso prosseguir semeando abundância,
Se minha existência seca em miséria?
Como posso dar cor às pétalas,
Se meu coração desfez-se em cinzas?
Não.
A vida deve ser destruída
E a Terra junto com ela.
Se não posso tê-la em meus braços,
Que tragam a chuva e o fogo, breve fim.
PERSÉFONE:
É justo que tantas mães fiquem sem seus filhos
Pois crês ter perdido a tua?
Cá estou.
Não me perdestes.
Faço a vós último apelo:
Se de fato és minha mãe
E ainda nutre por mim sentimento
Não deixarás que isto ocorra.
Se o destino privou-me de uma vida ao seu lado,
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Não a tires tu daqueles que ainda estão juntos.
Eu sempre estarei aqui, minha mãe,
Não a esquecerei jamais.
[PERSÉFONE desfaz o véu que a separava de DEMÉTER e a abraça. A luzfocaliza as duas deusas uma última vez, antes de se apagar.]
EPÍLOGO
[HADES e PERSÉFONE estão sentados em tronos no centro do palco. Nafrente dos dois está o CORO DE SOMBRAS.]
CORO DE SOMBRAS:O Todo é o Silêncio, e o Silêncio é o MundoLuz e Trevas unidas pela eternidade.
SOMBRAS (1º SEMICORO):Às margens dos rios letais, governaPerséfone, a semente luminosaQue sob a terra floresce.
SOMBRAS (2º SEMICORO):Restaura à superfície o equilíbrio
Deméter, esculpindo na NaturezaA lembrança de sua filha.
1ª SOMBRA:Eu sou o VerãoA esperança que antecede o ventoO Sol radiante que surge nos céus clarosQuando Deméter abençoa a Terra com sorrisosE dá à vida a alegria de Perséfone.
2ª SOMBRA:Eu sou o OutonoO vento que antecede a morteO sopro doloroso que derruba as folhasQuando Deméter castiga a Terra indignadaE dá à vida a solidão de Perséfone.
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3ª SOMBRA:Eu sou o InvernoA morte que antecede o renascimentoO frio, a seca e a fomeAs lágrimas de Deméter, o sussurro gélido
A destruição da vida, o desespero de Perséfone.
4ª SOMBRA:Eu sou a PrimaveraO renascimento que antecede a esperançaAs flores e os frutos. Ressurge a luz do escuro soloA beleza de Deméter, o final encontroA ressurreição da vida no amor de Perséfone.
SOMBRAS:
Move o mundo o indestrutível laçoDos ciclos de Perséfone e DeméterMãe e filha, que nas trevas imersasRessurgem na luz que a Terra cobre.
Há sempre momentos em que o choro não corre.A tempestade, como o sol, também se renovaComo se cansasse da fronte sempre escura.
Neste instante no mundo uma flor morre
Mas nos restos espásmicos de sua covaDeixa que outra nasça, limpa e pura.