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PESQUISA COLABORATIVA: REVELANDO A POTÊNCIA DA ESCOLA NA
INCLUSÃO DA CRIANÇA PSICÓTICA
Rita Vieira de Figueiredo – PhD. Universidade Federal do Ceará
Caciana Linhares Pereira – Dra. Universidade Federal do Ceará
Resumo
O presente trabalho apresenta as trilhas metodológicas e as proposições gerais oriundas
de uma pesquisa colaborativa realizada em duas escolas de Fortaleza, no período de um
ano. A pesquisa investigou crianças que apresentam um funcionamento psicótico - o qual
depreendemos a partir de sua relação com a linguagem e com a realidade - e buscou
apreender as mudanças subjetivas que podem ser creditadas à experiência escolar. A
fundamentação teórica articulou as proposições psicanalíticas sobre a relação da criança
psicótica com a linguagem e com a realidade e as proposições sustentadas pela
perspectiva inclusiva, que se volta para as práticas de sala de aula com vistas a
problematizar o modo como os alunos se relacionam e aprendem. A linguagem se
configurou como a categoria que, por excelência, permitiu aos dois campos encontrarem
uma base comum para a interlocução proposta.
Palavras-chave: Pesquisa colaborativa - Inclusão escolar - Psicoses infantis
Introdução
Este trabalho apresenta os objetivos, os achados e os procedimentos
metodológicos, bem como as proposições gerais oriundas de uma pesquisa colaborativa
realizada em duas escolas de Fortaleza, no período de um ano. A pesquisa investigou
crianças que apresentam um funcionamento psicótico - o qual depreendemos a partir de
sua relação com a linguagem e com a realidade - buscando apreender as mudanças
subjetivas que podem ser creditadas à experiência escolar. No âmbito deste trabalho,
optamos por enfatizar a apresentação da metodologia utilizada e as proposições gerais
que podemos fazer à escola a partir dos resultados desta pesquisa.
Trilhas Metodológicas de uma Pesquisa Colaborativa
O acompanhamento colaborativo foi realizado em duas escolas da rede municipal
de Fortaleza. Em cada escola uma criança foi acompanhada. Três professoras
participaram como colaboradores: em uma escola a professora de sala de aula e a
professora responsável pelo atendimento educacional especializado – e em outra a
professora do atendimento educacional especializado. Foram informantes os pais das
crianças e os funcionários da escola. Os nomes de todos os sujeitos e colaboradores da
pesquisa são fictícios. Como procedimentos metodológicos utilizamos a observação das
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crianças na escola, as entrevistas com os pais, os questionários informativos do início da
pesquisa e o acompanhamento colaborativo. O acompanhamento foi estruturado a partir
de encontros regulares com as professoras - nos quais buscava-se trabalhar na vertente da
conversação e da confrontação – Foram situados em três etapas:
A co-situação: nessa etapa as professoras fizeram a indicação das crianças e
falaram sobre a situação geral de seu processo de escolarização. Já foram situadas as
problemáticas a serem investigadas. A cooperação: nessa etapa a co-construção do saber
é operante, as professoras falam sobre suas experiências com as crianças, levantam
questionamentos, elaboram proposições e analisam o percurso que vai se construindo. A
co-produção: nessa etapa os achados da pesquisa são ordenados na redação de um texto
final. Como observa Anadón, o prefixo co- não deve ser tomado como exigência de um
mesmo modo de participação dos professores em cada uma das etapas do
acompanhamento. A autora observa que a etapa de co-produção pode se configurar de
forma que o pesquisador se encontre mais solitário na elaboração dos achados produzidos
no acompanhamento.
Consideramos importante criar um espaço reflexivo ou uma zona interpretativa
entre os pesquisadores e os participantes envolvidos com a experiência de inclusão
escolar (ANADON, 2007; GIOVANNI, 2000). A pesquisa pôde, então, atuar como
instrumento de reflexão e questionamento sobre a prática escolar proporcionando a
formulação de propostas de trabalho que se realizava na interação entre as professoras –
a do atendimento educacional especializado e a de sala de aula do ensino comum
ampliando-se, a intervenção, para os outros sujeitos que fazem a escola, em uma produção
de saber permanente. Ao mesmo tempo em que o trabalho colaborativo buscava respostas
para essa pergunta, sem descurar da dimensão desejante, o confronto das professoras com
as problemáticas enfrentadas também nos levava a formular proposições concretas que
pudessem contribuir no processo de escolarização das crianças. A exposição dos
obstáculos e das especificidades das crianças ia permitindo às professoras certo
estranhamento de sua prática, uma crescente complexidade na reflexão e sua partilha,
bem como uma postura investigativa onde o questionamento, a confrontação do seu
próprio dizer com a prática escolar faziam emergir novas perspectivas de compreensão
da prática escolar em curso.
As proposições que se foram urdindo em todo o percurso da pesquisa foram,
então, produzidas pelas professoras, mediadas pela escuta propiciada pelo
acompanhamento colaborativo, que na realidade funcionou como um grupo sujeito, capaz
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de teorizar sobre a prática que se processava na escola. A pesquisa permitiu demarcar
que, de fato, há um saber situado na escola que já permite um avanço considerável no
processo de inclusão das crianças. Esse saber pode ser catalisado e poderá produzir
reflexões crescentemente complexas se a escola investir na construção de espaços de
conversação e de confrontação, diálogo interdisciplinar e leitura permanente da prática.
Na verdade, professores que, em sua prática, colocam problemas de pesquisa, buscando
teorizar ou produzir saber contínua e sistematicamente sobre o que fazem, resultam por
transformar as visões das potencialidades da criança psicótica e do curso de sua evolução
junto aos outros.
É inequívoca a importância do saber das professoras e de sua potência na
modificação do eixo de uma visão predominantemente bio-médica da psicose, para uma
compreensão do psíquico mais aberta – que no contexto da inclusão tem vivido
apagamentos –, trazendo o potencial da educação que, como pudemos constatar, se
desenvolve quando a criança psicótica se inscreve no contexto da escola regular
(BASTOS, 2005; YAÑEZ, 2001; VASQUEZ, 2006; PETRI, 2003; COLLI, 2005). A
pesquisa mostrou a riqueza da interdisciplinaridade, que fez emergir de modo
crescentemente mais consciente a relação intrínseca entre aspectos cognitivos e
desejantes, que costumam estar apartados, em uma hipertrofia do cognitivo que, não raro,
empobrece a abordagem do acesso ao outro e à linguagem, em particular a produção da
escrita pela criança psicótica (COMBRES, 2005; LERNER, 2008). Essa perspectiva
mostrou sua fertilidade, ao trazer o conhecimento advindo da teoria psicanalítica sobre a
experiência da criança para compor os percursos de construção de saberes vividos na
pesquisa colaborativa, que se articularam intimamente também com todo um caminho de
luta social que trouxe a reflexão sobre inclusão na escola regular.
A articulação desses saberes heterogêneos permitiu a construção de algumas
proposições. Temos, ao final da pesquisa, proposições que chamaríamos de caráter
“misto” - proposições em que os aportes da pesquisadora estiveram mais presentes e
foram articulados ao saber das professoras -, e proposições que diríamos que nos trazem,
em alguma medida, “o estado da questão”, hoje, em termos de inclusão na escola, e que
poderíamos dizer que já eram produções reflexivas acumuladas pelo saber social que a
pesquisa recolheu e sistematizou, mas que já se faziam presentes, de algum modo, na
prática das professoras. Em relação à metodologia escolhida, confirmamos o que indica
Giovanni (2000) e Poulin (2007): a metodologia colaborativa focaliza questões de ordem
prática e teórica; a pesquisa cria uma estrutura de reflexão e ação que privilegia as práticas
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escolares; a estrutura colaborativa incentiva interações importantes no contexto complexo
da vida escolar; as dificuldades entre os professores se revelam mais nesse tipo de
pesquisa e os saberes de experiência são postos em movimento; a pesquisa legitima o
conhecimento prático dos professores e sua importância na definição das problemáticas
abordadas (válidas para a pesquisa e para a atuação dos professores); a interlocução que
se estabelece diminui o risco da separação mecânica entre o que se denomina
“levantamento de dados da pesquisa” e “análise dos dados da pesquisa”; a pesquisa se
relaciona de modo estreito com o trabalho desenvolvido pelo professor e pelos
profissionais da escola; os professores passam a estabelecer uma relação mais intensa
com a pesquisa, com a posição de pesquisador, tomando sua experiência como objeto
permanente de análise.
Ao final da pesquisa, Rita (professora do AEE e participante da pesquisa)
construiu um projeto de acompanhamento colaborativo para dar continuidade ao trabalho
desenvolvido junto às crianças participantes deste estudo. Incluiu mais três crianças por
ela atendidas e ampliou os participantes (trouxe mais professores, um coordenador e a
diretora). Edna, a outra professora, diz que quebrou a ideia que tinha dos pesquisadores.
Suas amigas diziam: “Pesquisador na minha sala não entra”. Hoje ela observa: “Pois não
é interessante? Eu aprendo...”. Havia uma ideia muito forte por parte das professoras de
que pesquisar seria fiscalizar, julgar... Os “outros” pesquisam e elas são “fiscalizadas”.
Observamos o quanto a pesquisa colaborativa pode contribuir para mudar essa concepção
– e sugere-se que modalidades de reflexão-ação conjunta, sistemática, possam ser vividas
pela escola, em seu cotidiano. De fato, essa modalidade de pesquisa articula instâncias
geralmente separadas: a prática da pesquisa e a formação. Conferindo espaço para a
experiência e o saber-fazer do professor (ANADON, 2007) a pesquisa se transforma em
um trabalho em parceria e em produção de teoria a partir da experiência.
Dois momentos se relacionam de forma dialética na pesquisa. O primeiro é
constituído pelo “recorte” do objeto (recorte que visa a experiência da criança psicótica
em escola regular) e as implicações desse recorte para a prática, o que se articula com a
entrada em cena das professoras e a apresentação da experiência escolar das crianças. A
partir das interrogações das professoras, provocamos uma interlocução entre os saberes
advindos de sua experiência e aqueles advindos de sua (e nossa) formação.
Problematizando a experiência que traziam e a que se gestava no processo educacional
em curso, junto às professoras, recortamos temas que expressavam esse cruzamento de
saberes. Com estes recortes temáticos buscamos organizar, sistematizar a experiência e
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as proposições que iam surgindo. Essas proposições passavam a ordenar o trabalho das
professoras junto às crianças, de forma que a avaliação ou análise ocorria em processo.
Percebemos, com a evolução da pesquisa, que as proposições poderiam ser
“aplicadas” por outros professores, mas seria preciso “ler” e “interpretar” o contexto para
tomar das proposições aquilo que elas indicam de “princípios” ou “elementos norteadores
da prática”. As proposições poderiam assumir uma precisão na experiência da pesquisa,
mas só poderiam ser aplicadas a partir de seus princípios. Podemos exemplificar com a
proposição que formulamos sobre a importância de uma das crianças participar do recreio.
Seria uma extrapolação mecânica e redutora afirmar que as crianças devem participar do
recreio. O principal não seria isso, mas a reflexão que sustentou essa proposição: a
importância, para a criança, de estar junto com seus iguais, vivendo experiências de jogo
e brincadeira sem que algum professor coibisse por demais sua expressividade.
Consideramos essa especificidade da metodologia interessante porque joga com o
geral e o particular. Ou seja: as proposições valem para esta experiência (não almejam
validade para toda e qualquer experiência), mas permitem alcançar princípios que devem
ser, a cada nova situação, ajustados. Assim, podemos garantir uma transmissão que
contribui para outras experiências, considerando que a cada nova situação caberá aos
professores inventar, criar o novo, problematizar saberes ante os desafios do presente.
Penso que essa forma de conceber as proposições está de acordo com a proposta de uma
educação inclusiva, por questionar o ideal de homogeneidade e, portanto, o ideal de que
existiriam estratégias que valeriam para todas as situações.
Quando apresentaram as crianças, as professoras fizeram recortes que foram
sendo articulados aos aportes que eu trazia como pesquisadora. Rogério, o sujeito do
primeiro estudo, apresenta a ausência de um ponto de ancoragem capaz de permitir à fala
organizar-se em torno de um centro. Encontra dificuldade em produzir uma significação
a partir da reunião de elementos, sejam palavras, frases ou ilustrações. Se “ausenta” a
todo instante, voltando-se para o próprio corpo. Chega na escola calado, a ponto de não
saberem se ele “ouvia”. Outro aspecto destacado foi o medo, a passividade acentuada,
vivida por Rogério. Esse medo de algo que não era nomeado passa a aparecer nas estórias
de babaus e zumbis. A partir de então, tem medo dos babaus e zumbis e passa a contar
suas estórias para a turma. Rejane, por sua vez, causa nas professoras um estranhamento:
não parecia “gente”, por se apresentar em um nível arcaico em relação às aquisições
fundamentais da criança e também por se apresentar de forma “bizarra”. Apresenta nos
olhos uma “palpitação” e não fixa o olhar. Ao corpo também falta direção. Dirige-se a
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vários objetos, saltando de um em um. É atraída pelos objetos – em relação aos quais fica
interditada pelas mãos da mãe - e, se pode soltar-se, arremessa-os com força, bate uns
contra os outros. Depois que o objeto é lançado, não parte em sua busca, não joga o jogo
de perder e reencontrar. Sua presença é descrita como “um furacão”: errante, segue sem
ponto de ordenação.
Nas duas crianças, observamos uma “errância”: em Rogério, predominantemente
manifesta no nível das palavras; em Rejane, no nível motor. O que se depreende de
comum é a ausência de fixação da libido, ausência de certa secundarização responsável
pela introdução de barreiras no fluxo móvel. Assim, objetos ou palavras deslizam de
forma “frouxa”, sem fazer conjunto, sem ordenar-se em torno de um centro. À errância
das palavras corresponde a errância motora, apontada por Jerusalinsky como “uma forma
de comportamento muito comum nas crianças psicóticas precoces, que passam de uma
coisa a outra sem poder parar em nada, em um estado de agitação constante. Pegam um
objeto, e logo pegam outro e o soltam, sem chegar a fazer nada com nenhum deles”
(JERUSALINSKY, 1996, p. 161).
Proposições à Escola
Depreendemos da experiência escolar um efeito da palavra: quando começamos a
falar com as crianças, o corpo vai se fechando, um corpo vai se constituindo a partir do
fechamento das bordas. Esse fechamento pressupõe justamente uma presença-ausência,
pois se trata de abrir e fechar. Quando não há o controle dos esfíncteres, o fechamento
das bocas, as bordas não estão recortadas. Consideramos as palavras no amplo contexto
da escola, que faz operar ritmos e espaços que introduzem a escansão, o corte, a borda.
No nível das práticas observamos que as crianças tendem a fazer par com o professor, em
uma exacerbação da relação diádica que então se instaura, ignorando o coletivo dos
companheiros; vimos, assim, que essa forma de estabelecer as relações em sala dificulta
as interações entre os pares. Planejar e realizar a aula, e as situações gerais da escola, de
modo a favorecer as relações entre os pares trouxe avanços para todos. As professoras,
de um modo geral, têm a concepção de que as crianças devem referir-se umas às outras,
sem estabelecer uma relação de exclusividade que as torna voltadas e dependentes de um
só aluno. Para estas professoras, a sua atuação não deve colocar o aluno na posição de
exceção: não deveríamos realizar atividades endereçadas só a ele, nem tratá-lo como
alguém que não pode fazer as coisas por si. As professoras consideram importante
considerar que o aluno pode se situar no contexto da sala, que pode se localizar em meio
ao coletivo e ante o que acontece na escola. Esse é um aspecto rico da cultura escolar, que
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se observou ter sido desenvolvido em vários âmbitos junto às práticas de inclusão escolar.
Observamos que o professor pode construir situações (todas as situações de
criação aqui são válidas) que permitam ao aluno conferir um lugar aos objetos que
aparecem regularmente em suas falas. Esses objetos, como vimos, geralmente
comparecem isolados, apartados de uma ordem. A tentativa é de que a criança realize
uma composição na qual possa situá-los. O trabalho com estórias permite à criança
“ligar” o que se apresenta apartado: os "babaus ", quando surgem, exigem que sejam
inseridos em uma ordem, o que permite restaurar a organização do mundo do sujeito. Esse
trabalho. que permite à criança habitar um mundo, habitando a linguagem, restaura duas
ordens que aparecem apartadas: o código e a mensagem - o significante como diferença
pura (como aquilo que tem a natureza de um “dever falar”) e a significação que é fruto da
suposição de uma “intenção”. Entre o código e a mensagem, o Outro se apresenta como
o que faz conjunto dos significantes. O Outro, além de ser o tesouro dos significantes, é
responsável por sua “ordem”. Na esquizofrenia, o que está em questão é essa função do
Outro de fazer conjunto. Trata-se, desse modo, de construir um Outro, de conferir uma
ordem que faça conjunto dos significantes (LACAN, 1985; LACAN, 1956). A aquisição
de uma escrita e a possibilidade de ler participam desse trabalho de ordenamento, onde a
criança reúne o que se encontra fragmentado.
Na experiência das crianças que não vivem o espaço escolar, observamos certa
ausência de mediação da palavra. Quando chegam à escola, professores e crianças se
dirigem ao seu corpo, manipulando-o, "levando" a criança na direção de suas ações.
Promover uma ruptura é imprescindível para criar um espaço de surgimento da palavra.
A escola pode criar novas formas de endereçamento e para isso o professor deve observar
como a criança se posiciona frente ao outro. Se fica na posição de objeto manipulado,
fora da palavra, a escola pode introduzir a palavra, o desenho, a escrita, com vistas a
interpor alguma “escrita” entre a criança e o outro. O princípio é romper uma relação não
mediada, uma relação em que nada se interpõe entre a criança e o outro. Permanecer com
esse tipo de relação reproduz a posição de objeto da criança e opera contra a emergência
de perceber-se separada do outro. O corte na reprodução dessa situação de objeto, que
vivia a criança, abre um campo de possibilidades que permite à criança ocupar lugares
distintos, variados, na escola.
Por outro lado, a escola vai exercer um papel fundamental uma vez que solicita à
criança “ser com os outros e ser como os outros”. Para uma criança que vive um estado
de dispersão e apresenta uma problemática em torno da constituição do eu, “ser como o
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outro” é importante. Estamos nos referindo à face imaginária que no processo de
escolarização coloca em jogo a dimensão de alienação a uma imagem. O agenciamento à
imagem, feito pela escola, ao convocar o “ser como os outros” na esquizofrenia,
contribuiria para o ordenamento do que se encontra disperso. Se “ser como os outros”
favorece a compensação imaginária do que se encontra disperso, por outro lado as
diferentes posições a ocupar na escola retiram a criança da identificação massiva à figura
do doente mental. O agrupamento agenciado pelos iguais praticamente não tem efeitos
nesse plano dos diferentes significantes que irão agenciar as posições. Na escola comum,
a ênfase irá recair sobre a possibilidade do engajamento em uma organização escolar e da
filiação a nomes que permitam alguma inscrição na ordem social. Ao entrar na escola,
geralmente as pessoas não sabem como se dirigir a determinadas crianças. Não há, para
o outro, significante que possa agenciar o endereçamento: “o que é ela?”. Com a entrada
na escola, o significante criança e aluno permitem aos outros (da escola, do bairro, da
família) situar a criança em um coletivo que filia e, desse modo, marca a ordem da cultura,
na civilização. Os espaços que agrupam os sujeitos pela doença mental fortalecem o
endereçamento ao sujeito como aquele que está fora da civilização.
Do lado da criança, estudar em uma classe comum favorece o contato com os
significantes que organizam o mundo das crianças da sua idade e do seu bairro. Sua
experiência será ordenada pelos significantes trazidos pelas outras crianças e que
compõem a experiência de um coletivo de crianças que, ao falarem, “escrevem” suas
marcas e seus lugares. As brincadeiras, os temas de discussões e conversas, as roupas, as
palavras – todos esses elementos são apresentados à criança como índices de filiação,
construindo algum relevo na desertificação de seu mundo. Com outras crianças – que
estivessem reunidas sob a rubrica da psicose, do autismo ou da deficiência intelectual – a
filiação aos nomes da cultura ficaria achatada sob a predominância das identificações
imaginárias postas em marcha através das aquisições funcionais. Aproveitar a
heterogeneidade da turma é outra proposição fundamental, pois o aluno vive situações
sempre diferentes, que dificultam sua fixação em uma única posição. O trabalho em
duplas ou grupos assume um papel fundamental nas práticas de sala, quando se trata de
um ensino voltado para as diferenças. As práticas de sala que movimentam composições
diferentes entre as crianças (duplas, trios, grupos maiores) potencializam a aprendizagem,
pois colocam em cena perspectivas diferentes e mobilizam os alunos a viverem situações
novas (FIGUEIREDO, 2006; FIGUEIREDO, 2010).
Fala-se de adaptação curricular quando o professor acompanha o movimento dos
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alunos e modifica seus planos e estratégias de ensino considerando a turma toda. Assim,
a avaliação das necessidades de um aluno, uma atividade pode ser mais explorada e
contribuir com toda a sala (FILIDORO, 2001; TRINDADE/GONÇALVES, 2010). A
sugestão de investir mais nas estórias (ordenação, composição, etc), no nosso caso,
poderia favorecer aos outros alunos que estavam em situação de dificuldade em relação
à leitura e escrita de textos. Analisando a fala de professores, demarcamos a importância
que esta professora confere à instauração de um ritmo, de uma marcação da diferença
entre os tempos e espaços. Extraímos daí uma proposição de investir na marcação dos
tempos e espaços. E há outro aspecto específico que permite desdobrar essa proposição:
a escola privilegia o tempo partilhado, aquele em que “determinado grupo faz assim”.
Daí o desdobramento que nos indicava a necessidade de investir na dimensão de um
“fazer comum”, de um “fazer partilhado”. Essa proposição se particulariza com a
participação nos rituais escolares: o momento de entrar, marcado pela acolhida no pátio;
o momento de ir para a sala, marcado pela fila; a saída da sala para o recreio, marcada
pelo toque (música) e pela indicação da hora; o recreio, com o momento de ir à mesa
lanchar e o momento de correr e brincar no pátio; as festas comemorativas, com tudo que
elas envolvem de acessórios, roupas e encenações ensaiadas.
Algumas crianças se colocam fora de toda atividade comum e essa dimensão de
entrada numa ordem simbólica, ordenada, como os rituais e a língua, assumirá uma
relação fundamental com qualquer possibilidade de laço. A forma como as atividades são
vividas na escola nos mostram a todo instante uma operação de regulação pulsional.
Enfatizamos, portanto, na organização do tempo e do espaço escolar, um aspecto que me
parece próximo do que alguns professores põem em relevo: a instauração de uma ordem
que articula o acontecimento ao nome e que articula o sujeito ao seu semelhante, da ação
à palavra. Há ênfase na relação entre acontecimento e nome (a nomeação per si) quando
a escola insiste na instauração de um ritmo e ênfase na função do fazer “como se” quando
insiste no “fazer segundo a imagem do outro como semelhante”. Na nomeação e no ritmo
há prevalência do simbólico - do que diz respeito à alteridade - e no “como se” há
prevalência do imaginário – operações fundantes do eu. Nesse jogo que a escola sustenta
vimos, ainda, que há uma dimensão fundamental que lhe atravessa: a articulação entre o
interdito e a transmissão das normas da língua.
O funcionamento escolar, com seus horários, espaços definidos de acordo com as
atividades, regras de convivência, confrontam a criança com o preço que se paga pelo
desejo. A criança quer brincar na sala de informática, mas isso só é possível em
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determinado horário. Se quer brincar com um amigo, isso se faz ao preço de não matar
ou apropriar-se de seu corpo. Sabemos que a especificidade da psicose se define pela não
instauração da lei do pai, ou seja, o sujeito não se organiza a partir de uma lei fundada no
interdito. Poderíamos encontrar, então, um contra senso na proposição que indica a
importância dos interditos. Concordamos com Mannoni (1988;1981) e sua afirmação de
que qualquer sujeito pode sofrer os efeitos de uma “inacessibilidade” e submeter-se em
algum nível aos limites impostos à satisfação pulsional. Há uma aposta nessa forma de
abordar a questão: ainda que o modo como o sujeito aborda a realidade não se sustente
na Lei é possível que o trabalho civilizatório tenha algum alcance sobre o sujeito. Para
Mannoni, essa aposta coloca a tarefa de subverter um tipo de relação perversa que se
estabelece com a palavra do louco. Como assinalamos, de um lado temos o discurso que
sustenta a instituição psiquiátrica e, de outro, a crítica ao hospital que se fundamenta no
preceito ingênuo de uma loucura que deveria preservada de uma sociedade que não a
compreende. Nas duas situações temos como consequência o regime de exceção, próprio
do laço perverso.
A entrada na cultura se faz com um passaporte: algo se paga, algo se perde, para
entrar. Não poder morder o colega de sala, não poder furar os olhos dos outros, não poder
derrubar todos os objetos que se vê pela frente são “preços” a pagar para que a vida social
possa se estabelecer. Sem esta troca não há sociabilidade possível. Mas não é a criança
que, sozinha, entrega seu passaporte, seu quinhão. A escola, aqui, se apresenta com sua
potência de introduzir a criança na dimensão das trocas. Essa dimensão diz respeito à
sociabilidade e, também, à linguagem, pois, para falar, é preciso que haja uma inscrição
que implica em uma perda de gozo. A operação que se dá no plano da linguagem se
relaciona com as trocas que ocorrem no plano da sociabilidade, uma vez que ambas
trabalham com uma perda de gozo que se situa na base de todo traço, de toda inscrição,
de toda marca. Inscrito, o sujeito circula e também escreve. Mannoni observa que,
justamente, é quando se traçam limites, barreiras, interditos, que as crianças passam a
circular, a estabelecer relações em que comparece a possibilidade de estar com os outros
ou não, de falar ou não, de comer ou não, de entrar ou não, de sair ou não. É a criança
mesma que fica em posição de ficar ou sair, de se proteger da onipresença do outro. A
apresentação de uma forma de escrita à criança é uma face do trabalho civilizatório, pois
se assenta num ato de extrema renúncia pulsional e de submissão às normas que advém
do campo da Língua – do Outro da língua, do código. Portanto, o fato de que a escola
privilegie um objeto – a escrita – não é sem consequências no caso de crianças para quem
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o Outro se encontra em posição de aniquilar o sujeito. A apresentação de seu
“funcionamento” – o funcionamento da Língua como funcionamento do Outro – permite
à criança psicótica proteger-se dos caprichos do Outro sem barra, na medida em que pode
esquadrinhá-lo, bordeá-lo, escrevê-lo. A aquisição da escrita – como submissão às normas
de uma forma de escrita – equivale à possibilidade de situar-se no mundo a partir de suas
"leis de linguagem".
Considerações finais
Os professores do AEE podem promover a circulação de saberes e experiências
entre os professores – tanto no âmbito das trocas entre os professores da escola como no
âmbito das trocas entre as escolas. Podem realizar um trabalho permanente junto aos
professores das salas dos alunos e, também, junto aos professores, coordenadores,
diretores, merendeiras, bibliotecários, etc. É interessante quando o professor trabalha com
a interrogação, com o tempo de olhar e ouvir dos professores. Interrogação que, no
entanto, não se confunde com indiferença, precisando se sustentar numa aposta. Esse
professor, por sua função, pode promover a produção de interpretações que transformam
concepções cristalizadas sobre as crianças.
Mannoni fala da angústia mobilizada nos sujeitos (sobretudo, psicóticos) diante
da ruptura da rotina institucional. Kupfer (2000; 2001) fala da angústia mobilizada nos
professores: por quê ensinar a uma criança que não pode aprender? A angústia situa-se
na passagem dos lugares de tratamento para os lugares de vida. A experiência que
constituiu essa pesquisa e as proposições que lhe são decorrentes confirmam que os
“lugares de vida” contrastam com os “lugares de tratamento”, sobretudo porque
possibilitam às crianças e jovens experiências que lhes abrem diferentes perspectivas
diante da vida, diferentes posições a ocupar frente ao outro. A escola pode ser um lugar
de vida. Tudo na escola permite que ela assim seja designada. O que pode impedir essa
designação não está na escola - na ordenação da vida escolar - mas nas concepções sobre
a doença mental que adentram a escola e que foram construídas desde muito longe no
tempo, advindas que são da forma como o chamado louco foi tratado historicamente.
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