Post on 21-Mar-2021
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Aurora Aparecida Fernandes Gonçalves
De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Aurora Aparecida Fernandes Gonçalves
De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.
SÃO PAULO
2014
Banca Examinadora
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Dedico este trabalho à Zoé, a protagonista da história de vida, que “deu vida” à minha investigação e me permitiu alcançar mais um objetivo. Sem a profunda e envolvente narrativa que ela concedeu, esta tese não teria sido possível.
E à minha mãe Aurora dos Reis Fernandes, uma longeva anônima que, juntamente com tantas outras – longevas ou não – ajudaram, com suas histórias, a construir a mulher para o século XXI.
E, ao final dos encontros, quando demos por encerrada a nossa tarefa eu olho para ZOÉ e procuro aquela mulher velha que atendeu ao meu pedido de pesquisadora e não a encontro; não vejo uma velha de 90 anos e sim, uma bela senhora, vestida com simples elegância. Seu rosto transparecia serenidade e seus olhos azuis resplandeciam como os de uma criança; o cabelo curto, porém, cheio de estilo, maquiagem suave, apenas delineando os traços nórdicos. Dava a impressão de ser, ao mesmo tempo velha como Eva e nova como a aurora. Ela não tinha tempo, não tinha idade, mas tinha uma história; a história de vida que me fora contada.
AAFG
Agradecimentos
Meus agradecimentos vão para: A minha família constituída, que com seus movimentos nem sempre harmônicos com os meus, me faz renascer e evoluir a cada dia, tornando-me mais “humana”. O meu amor ao Sebastião, meu marido, Diego, meu filho, Marcella minha nora, Pedro, meu neto e Ana Carolina, minha afilhada. Os colegas do Departamento de psicologia social e institucional da Universidade Estadual de Londrina, pela sensibilidade em entender que fazer o doutorado pode ser importante para uma professora em contagem regressiva para a aposentadoria compulsória. A todos, o meu sincero agradecimento. Os professores das disciplinas cursadas no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, pelo inusitado do seu conhecimento transformando-se para além das exigências acadêmicas, em ensinamentos para o cotidiano, para a vida. Ao Raul, Fúlvia, Bader e Odair o meu apreço. O Ciampa, pela oportunidade única de conviver pelos “Corredores e salas” da PUC, com a minha principal “referência bibliográfica” materializando-se em um professor-orientador competente e amigo. A ele toda a minha gratidão e reconhecimento. Os colegas do NEPIM, cada qual com o seu problema de pesquisa, suas dúvidas suas descobertas sendo compartilhadas, generosamente, nos encontros do núcleo. Em especial ao Juracy, membro honorário e indispensável para as discussões sobre o sintagma: Identidade-metamorfose-emancipação. A professora Dra. Maria Amélia Almeida da Universidade Federal de São Carlos pelas preciosas observações e sugestões feitas principalmente em relação à metodologia de história de vida.
Em especial agradeço aos inúmeros colegas e amigos que se dispuseram, em ocasiões informais a ouvir as minhas primeiras e incipientes considerações sobre a tese que pretendia desenvolver. Alguns me ajudaram bastante, mesmo não tendo consciência disso.
GONÇALVES, Aurora Aparecida Fernandes. De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva. Tese de doutorado em psicologia social. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo, 2014.
RESUMO
Esta tese analisa os processos de identidade-metamorfose-emancipação, de início, para compreender como o sentido da vida e do vir a ser se estabelecem na construção social do sujeito, para, em seguida, focalizar a condição da mulher, suas determinações sócio-históricas e as revelações que a identidade, assim constituída, podem fazer para explicitar o contexto sociocultural hoje vivido. A pesquisa empírica, de caráter qualitativo, deu-se pelo estudo da história de vida, uma metodologia de natureza biográfica, com a obtenção do relato de uma mulher de 90 anos, expondo sua trajetória pessoal e profissional, seus amores, suas paixões, vínculos e rupturas. Configura-se um estudo de caso que correlaciona a vivência da velhice em idade avançada com a expressão de uma ótica sobre o mundo e sobre o país. Por ter sido testemunha direta de acontecimentos, pelo fato de ter nascido na primeira metade do século XX, ter tido acesso a uma educação completa (teve carreira como professora), e por ter sido avançada para sua época (rebelou-se contra barreiras de gênero, enfrentando as consequências) – a protagonista reunia as condições específicas para relatar e avaliar fatos que podem projetar uma compreensão mais refinada sobre os modos de ser que vêm determinando, desde então, a identidade feminina com suas coerências e contradições. O pressuposto adotado é o de que, ao se explicitar o contexto sociocultural no qual se circunscreve o sujeito estudado, eleva-se a condição de apuro no olhar sobre fatos de que se aprendeu apenas pela história. Um primeiro cuidado a tomar teve que ser o de adotar, como conduta metodológica, um processo de desnaturalização do fenômeno da velhice e considerá-lo como uma categoria social e culturalmente construída, sem o que se projetaria uma abordagem unidirecional, incompatível para um fenômeno de múltiplas faces. Assim, como resultado, obteve-se compreensão sobre a formação da identidade dessas mulheres idosas “em idade avançada” no que contribui para revelar sobre grupos de pertencimento, sobre a sociedade contextualizada, sobre as formas simbólicas, sua recepção e interpretação –condição hermenêutica fundamental da pesquisa sócio-histórica, um campo-sujeito, onde as formas simbólicas são pré-interpretadas pelos sujeitos que constituem esse mesmo campo.
Palavras-chave: Identidade-metmorfose-emancipação. Contexto sociocultural. Envelhecimento. Mulher para o século XXI
GONÇALVES, Aurora Aparecida Fernandes. From oppressed and exploited to liberated and autonomous: the female empowerment revealed by the universe of women in longevity. Doctoral thesis in social psychology. Postgraduate Studies Program in Social Psychology – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo, 2014.
ABSTRACT
This thesis is intended to analyze the processes of identity-metamorphosis-emancipation, first, to allow for an understanding of how the meaning of life and that of the coming to be, are settled in the social construction of the subject, and second, to appraise the condition of the woman, her socio-historical determinations, and to what extent the revelations that identity, so constituted, explain the current sociocultural context. Empirical research, with qualitative approach, was conducted by using the history of life, a methodology biographical in nature, with the report of a 90 year old lady explaining her personal and professional path, her loves, her passions, attachments and ruptures. The collected data shaped a case study and that enabled to correlate the experience of old age with the expression of a viewpoint about the world and about the country. Because of her being able to directly witness a number of events, as a consequence of having been born in the first half of the 20th century, added to that the fact that she had access to a complete education (she held a career as a teacher), and by her having been always ahead of her time (she rebelled against gender barriers and accepted the consequences) – the protagonist matched the specific conditions required for the description and assessment of facts that could refine a comprehension of the living styles that have ever since determined the consistencies and contradictions of the feminine identity. The presupposition was that explaining the sociocultural context of an individual is instrumental to sharpen the skill to observe facts that have been learned through history only. The methodological procedure was conducted with a preliminary caution, that of adopting a denaturalization process when dealing with the phenomenon of old age, to consider it a category that is socially and culturally built. Failing to do so would lead to a unidirectional approach, inadequate to treat a multifaceted phenomenon. Hence, a greater comprehension of the formation of identity of women in older age developed to an extent that contributed to further understanding of issues such as groups of belonging, contextualized society, symbolic forms, their reception and interpretation – all of them a key hermeneutical condition to sustain socio-historical research, a subject field, where symbolic forms are pre-interpreted by the subjects that make-up this same field.
Keywords: Identity-metamorphosis-emancipation. Sociocultural context. Aging. Woman for the 21st Century
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................11
PRIMEIRA PARTE PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E PSICOSSOCIAIS ...... 20
Capítulo 1 O sentido da vida e a construção social do sujeito ........................... 21
Capítulo 2 A identidade como metamorfose humana: considerações sobre o segundo sexo ...................................................................................................... 33
Capítulo 3 De oprimida a empoderada .............................................................. 49
Capítulo 4 Mulheres no Brasil ............................................................................ 58
SEGUNDA PARTE O ENVELHECIMENTO: ENFASE NA MULHER .................. 66
Capítulo 1 Diversas visões sobre mulheres velhas ............................................ 67
Capítulo 2 Identidade feminina no presente: passado e futuro ........................... 89
TERCEIRA PARTE ESTUDO DE CASO: DESVENDANDO O UNIVERSO DE UMA MULHER LONGEVA ................................................. 98
Capítulo 1 A fase estrela solitária ....................................................................... 99
Capítulo 2 A fase da mesmice à mesmidade ................................................... 104
Capítulo 3 Fase intensas procuras ................................................................... 119
Capítulo 4 Fase felizes encontros .................................................................... 133
Capítulo 5 A Fase Velhice ................................................................................ 143
Capítulo 6 Reflexões sobre as análises ............................................................ 150
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 152
REFERÊNCIAS ...........................................................................................159
2
Esta tese encontra seu verdadeiro motivo numa inquietação muito
particular acerca da vida. As metamorfoses das pessoas, suas idiossincrasias,
seu caráter paradoxal, sempre foram alvo de meu interesse particular e científico.
E o recorte em mulheres longevas se deve a basicamente duas questões: a
primeira, a experiência pessoal em família longeva, com suas histórias
percorrendo e perpassando a minha própria; e segunda, a experiência
profissional, trabalhando por mais de duas décadas com o processo de
envelhecimento e aposentadoria, em que a “performance” feminina sobressaía
em sua perturbadora agitação e comovente desassossego.
A questão da identidade como metamorfose, ao ser analisada pelo tema
das vivências de uma mulher longeva, recebe outro recorte, o do problema de
pesquisa, agora possível de ser expresso numa pergunta desencadeadora do
estudo: que sentidos e significados, podem ser trazidos pela narrativa de uma
longeva e em que medida sua fala é capaz de revelar detalhes sobre
singularidades da identidade feminina? A narrativa da história de vida
apresentada contém um universo subjetivo carregado de sensações e emoções
das inúmeras personagens advindas do processo de metamorfose em busca de
autonomia emocional e financeira. A pessoa estudada expõe singularidades que a
tornam um sujeito de grande preciosidade como portadora de experiência: é uma
mulher que esteve à frente do seu tempo, apresentando valores e condutas não
compatíveis com a época em que nasceu e viveu, quando vigiam, com maior
intensidade, as regras, normas e costumes da sociedade patriarcal.
A história narrada trouxe à tona dificuldades e conquistas num movimento
de empoderamento pessoal e rompimento com o convencional, uma figura
feminina emblemática, cujas decisões e ações divergiram das esperadas – com
sérias consequências que ela aceitou enfrentar. Essa pessoa pertence ao grupo
daquelas lutadoras por movimentos emancipatórios tão presentes na mulher
atual, indeterminada e autônoma. Assim, em grande medida, compreender a
mulher que ela foi lança luz sobre as consequências da realização dos anseios
que se concretizam na mulher dos nossos dias.
Na pesquisa qualitativa, a investigação ganha novos contornos, com foco
na qualidade dos dados e nos elementos significativos também para a
pesquisadora, ou seja, essa abordagem permite que o observador expresse a sua
3
posição numa forma de complementaridade com a posição do sujeito. Esse
aspecto, para Holanda (2006), evidencia uma perspectiva hermenêutica, cuja
grande contribuição está no centro de sua metodologia e de seu projeto, a saber
“a idéia de inter-relação entre ciência, arte e história, para a elaboração de uma
interpretação condizente” (HOLANDA, 2006, p. 368). Sem se perder em relatos
meramente emocionais, a pesquisa traz reminiscências da vida da pesquisadora,
já tratadas formalmente em obra escrita, de caráter biográfico e de cujos
elementos se utiliza para proporcionar maior veracidade às questões vivenciadas
pela protagonista do caso, que certamente teve, diga-se assim, “parceiras”
incógnitas no processo emancipatório das mulheres brasileiras.
Num contexto mais intimista, portanto impregnado de emoções intensas, a
história de vida de minha mãe, uma brasileira nascida em 1919, representou
senão a única a mais importante fonte de indagações, interesse e crenças acerca
da vida, da identidade e do envelhecimento em suas diferentes manifestações:
suas nuances nada previsíveis, das expectativas não concretizadas, do
inesperado tornando-se realidade, enfim de um processo existencial carregado de
metamorfoses criadoras de autonomia e emancipação.
(...) mamãe se limitava a ser a sombra de papai. Até que ele, convalescendo de um acidente que quase lhe tirou a vida, resolveu abrir seu coração. Contou-lhe um “quase” (segundo ele) envolvimento com outra mulher. Foi o suficiente para que mamãe, essa mulher simples e submissa, mudasse de vida, surpreendendo a todos. Sozinha providenciou seus documentos: título do eleitor, carteira de identidade e CPF. De semianalfabeta, passou a ler e escrever, e, a partir daí, controlou a sua própria vida, transformou-se na cidadã Aurora dos Reis Fernandes1 (FERNANDES, 2008, p. 79).
A pesquisa ora apresentada está vinculada ao interesse da psicologia
social em estudar as categorias fundamentais do psiquismo humano e suas
mediações, orientando-se por pressupostos epistemológicos críticos. Nessa
perspectiva, o objetivo geral deste estudo é investigar, através da narrativa de
história de vida de uma mulher longeva, os elementos constitutivos da identidade
1 Este é o nome de minha mãe, e a citação aqui apresentada é de uma obra de minha autoria.
4
feminina e de que maneira as experiências pessoais podem trazer luz para
compreensão do sintagma: Identidade- metamorfose-emancipação.
Os objetivos específicos são:
Identificar os pontos críticos da história de vida relacionados com os
projetos para o vir a ser;
Descrever os processos de ruptura com o convencional geradores de
metamorfose;
Analisar a contextualização da história de vida com o período da história da
sociedade em que viveu a protagonista.
A proposta da pesquisa pautou-se numa investigação teórico-metodológica
que se inscreve no contexto da interdisciplinaridade; e como tema metodológico
essa perspectiva indicou as áreas de conhecimento a serem utilizadas. Houve
envolvimento pessoal da pesquisadora em alguns aspectos abordados que
entendeu serem relevantes para a análise, pois em um modelo interpretativo, o
pesquisador deve ser capaz de se colocar na narrativa e assumir seu ponto de
vista. (CRESWELL, 1998)
Os métodos qualitativos pesquisam, explicitam e analisam fenômenos que,
por essência não são passíveis de serem medidos, pois possuem as
características dos “fatos humanos”. O estudo desses fatos se realiza mediante o
uso de técnicas de pesquisa e de analise que deixando de lado a sistematização
dos dados repousam essencialmente sobre a presença humana e a capacidade
de empatia, de uma parte, e sobre a inteligência indutiva e generalizante de outra
parte. Nessa perspectiva a realidade não é tida como algo objetivo, mas, “o que
é”, emerge da intencionalidade da consciência voltada para o fenômeno a ser
pesquisado, quando se busca a explicação de processos que não estão
acessíveis à experiência, pois existem em “(...) complexas e dinâmicas inter-
relações que, para serem compreendidas, exigem o estudo integral dos mesmos
e não sua fragmentação em variáveis” (GONZALES REY, 1999, p. 54).
O estudo é apresentado em três partes, cada uma com capítulos que
formam uma unidade em seu conjunto, de modo a fazer aparecer toda a
5
organização dos conceitos, o encadeamento dos temas discutidos, e a
estruturação do relato da pesquisa. Por essa razão, não contêm subtítulos, com a
intenção de permitir que as discussões sejam encaminhadas e funcionem como
complemento do anterior em preparação ao capítulo seguinte.
Na parte I, são trazidos questionamentos sobre o ser, interrogando sobre o
sentido da vida, o vir a ser e a formação social do sujeito, com aporte das
contribuições de Heggel (2012), Habermas (2012) e Berger & Luckman (1976).
De posse desse conteúdo, nos debruçamos sobre o sintagma: identidade-
metamorfose-emancipação com base em Ciampa (1978), Lima( 2010) e Almeida
(2005). Ainda nesse primeiro momento da pesquisa teórica, o trabalho abordou
considerações sobre o segundo sexo e a identidade feminina adentrando a
realidade das mulheres no Brasil nos séculos XIX e XX, com base em Beauvoir
(1967), Saffioti (1976) e Del Priore (2012). Essas questões desencadearam novas
vertentes na busca pela compreensão da realidade vivenciada por mulheres
nascidas na primeira metade do século XX e o processo de envelhecimento com
qualidade: a questão das convenções e das virtudes como elementos essenciais
para a capacidade de romper com o convencional, trazendo neste momento as
contribuições teóricas de Sponville (1999) e Lypovetski (2000).
A parte II, o envelhecimento humano com ênfase na mulher, contém uma
discussão que vai desde aspectos mais genéricos sobre a realidade do idoso –
numa perspectiva pessoal, social e histórica –, até a abordagem de quatro teorias,
representando quatro visões sobre o envelhecimento feminino: 1) o modelo do
curso de vida; 2) a teoria do construcionismo simbólico; 3) a teoria crítica e 4) as
teorias feministas.
Buscamos, nos estudos sobre memória (Bosi, 1994; Stano, 2001), a
compreensão do sentido da velhice através das lembranças de um passado
repleto de significações, de transformações identitárias e de projetos de vida.
Chegamos então, a uma discussão sobre as mulheres longevas e a sua postura
emblemática [não se consideram velhas] diante da vida em busca de autonomia e
6
emancipação, bem como do direito ao envelhecimento e a vivência da velhice em
idade avançada, com qualidade e satisfação2
A parte III consiste em um estudo circunscrito a uma história de vida
pesquisada em profundidade, em encontros semanais, com duração de três horas
cada um, durante os meses de setembro a dezembro de 2013 somando 24 horas,
acrescidas de mais três encontros no mês de fevereiro de 2014 para a
confirmação de alguns dados não totalmente claros ou ainda incompletos,
totalizando, portanto 33 horas. O procedimento foi gravado com a autorização da
depoente, e os dados foram transcritos, na íntegra, para posterior analise. Apenas
os três últimos encontros não foram gravados com o objetivo de permitir, numa
intervenção menos formal, a expressão de emoções que foram geradas ao longo
do processo e que careciam de um canal mais afetivo para se manifestarem.
O método narrativa de história de vida possibilitou, a seu autor, falar sobre
sua existência – o tempo vivido – quando, com o recurso da memória, permitiu
reconstruir os acontecimentos considerados relevantes e significativos, e delinear
as relações com os membros de seus grupos de pertencimento, sua camada
social e com a sociedade nascente e contextualizada de onde viveu: Norte do
Paraná, na década de 1950, quando as cidades sequer existiam como tal, eram
“(...) só meia dúzia de ruas tortas cortando a estrada que acabava no rio, ruelas
empedradas e buraquentas, casebres e casas caindo aos pedaços, pobreza por
todo lado; aquilo não podia ser a entrada de uma vida nova” (PELLEGRINI, 1998,
p. 98)
O estudo de caso teve como foco da investigação, a história de vida vista
em sua singularidade, sugerindo uma metodologia hermenêutica e uma
interpretação holística, tomando-se o caso por inteiro para evitar fragmentações
das falas que pudessem tornar a analise excessivamente subjetiva. Para a
interpretação dos dados, fez-se inicialmente o que a literatura refere como “leitura
flutuante” em que o texto foi analisado como um todo quando a pesquisadora
2 As palavras da depoente exemplificam esse aspecto, quando disse: - (...) eu quero viver, eu gosto da vida, eu acho a vida linda! Eu gostaria de ser quem eu sou, ser o que sou porque eu gosto do que fui (...) eu me considero uma mulher valente e me sinto muito feliz! Então o que que eu quero mais que isso?
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deixou-se invadir por impressões e sensações. Pouco a pouco, a leitura foi se
tornando mais precisa e possibilitou o destaque de falas e contextos que foram,
posteriormente, articulados com a teoria estudada.
A leitura preliminar propiciou a exposição dos fatos por períodos de
existência, quando se observa cinco fases distintas: A primeira fase estrela
solitária expressa uma relação quase simbiótica com a mãe e total submissão aos
preceitos da igreja protestante no seio da qual foi criada. Essa fase caracteriza-se
pelo abandono, ainda que não proposital, em internatos, pensões e casas de
conhecidos quando prevalecia o medo, a insegurança e a tomada de consciência
do seu total estado de solidão.3
A segunda fase mesmice/mesmidade abrangendo a pré-adolescência,
idade adulta e maturidade, dos 12 aos 40 anos, caracterizou um processo de
permanente reposição da identidade de filha, quando a depoente foi forçada, pela
imposição da mãe e pela normatividade da igreja, a abrir mão dos desejos,
necessidades e anseios próprios da idade, o que a levou a sublimar sua
sexualidade, romper com o convencional para a mulher na época (ser esposa e
mãe) para priorizar exclusivamente o estudo superior e o trabalho. Emerge a
personagem “solteirona” que se vestia, morava, comia, enfim, vivia em total
dependência das determinações institucionais da igreja e da relação materna –
não havia como fugir do que a igreja prescrevia e do que a mãe fazia questão de
exigir. Há, portanto, a presença da forte repercussão do outro significativo [mãe]
na formação da identidade primária, quando a depoente enfatiza no seu relato a
sua ligação quase simbiótica com a mãe – eu era a sombra dela; e do outro
generalizado, quando, em suas palavras, expressa que a aceitação da
normatividade da igreja era mais por obediência à mãe do que como uma
manifestação de natureza mais espontânea. Tem-se então que ela entendia que
3 Isso se evidencia quando a depoente diz: - e eu chorava de saudade da mamãe eu criava na minha imaginação que funcionava com pouca coisa que eu tinha assim para brincar (...) mamãe comprava livros grosso dos contos de Andersen, não é? Então eu via aquilo esperando por ela.
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cumprir os ditames da igreja era sua obrigação de filha, e com isso aceitou
permanecer sob a tutela materna por 40 anos.
A terceira fase intensas procuras tem início com a morte da mãe e o
consequente rompimento com a igreja, aos 40 anos de idade, quando a depoente
dá vasão aos desejos contidos por décadas, e assume uma postura licenciosa
para a época, nas questões amorosas e sexuais. Emerge a personagem “amante”
com todas as suas consequências, quando mais uma vez ela rompe com as
convenções e vive, pela primeira vez, a “a vida que queria viver”. A vivência dessa
fase, de modo intenso e licencioso, lançou a base para o que se verificou na fase
seguinte: ela extravasou energias represadas, eliminou possíveis fontes de
tensão, desconsiderou fontes de ameaça e riscos sociais e, com isso, entrou na
fase felizes encontros que tornou exequível seu grande projeto de vida, a iniciar-
se com o casamento. Ou seja, ela não levou para essa fase inibições,
autolimitações, ansiedades e temores que só prejudicariam ou trariam mais
demora ao que efetivamente queria que sua vida se transformasse.
A quarta fase felizes encontros segundo a depoente, um período de
estabilidade e felicidade com a conquista do estatuto de casada [seu grande
projeto realizado] aos 50 anos de idade, numa condição muito parecida com a
experiência infantil da separação dos pais. Há um envolvimento com um homem
casado, que deixa a família para assumir o relacionamento, fazendo nela surgir a
personagem “esposa”.
A quinta fase velhice tem de fato início, aos 83 anos de idade, com a morte
do marido. Ressurge a personagem “estrela solitária” que convive com as
limitações da idade, que a depoente ainda não aceita e que a faz sofrer muito. O
fato de retardar essa aceitação é expresso em sua narrativa com um alto teor de
postura arrogante e de desprezo por toda argumentação em sentido oposto.
Mesmo assim, não há prejuízo de sua postura corajosa e emblemática diante da
vida que a impulsiona a elaborar e concretizar projetos de vida de curta e média
duração. Convalescendo de um AVC, programa-se para voltar a ter a autonomia
conquistada a partir da fase intensas procuras.
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Sem a pretensão de serem conclusivas, pois resultam de interpretação do
pesquisador, as formulações, os pressupostos e as afirmações deste trabalho
devem ser vistas em seu caráter de provisoriedade como em toda pesquisa, e
com isso, abertas a discussões e contestações que propiciem novas
investigações. As questões levantadas englobam conceitos e estruturas teóricas
muito complexas, porém de inegável contribuição para o enriquecimento da
investigação que é própria do campo da psicologia social.
Neste sentido, foi que a introdução aqui apresentada teve um tom pessoal,
com uso consciente de primeira pessoa (singular e plural) numa liberdade
autopermitida, e sem a intenção de ferir propósitos de padronização tão
largamente cobrados no texto científico. O restante do trabalho terá, assim,
predomínio da terceira pessoa, tanto para expressar conceitos provenientes dos
autores convocados como referência, quanto para expor o relato da história de
vida. O toque pessoal retornará, no entanto, no momento das análises e das
conclusões, justamente para marcar os elementos de subjetividade e o alto teor
de interioridades presentes nessa etapa do trabalho.
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Capítulo 1 O sentido da vida e a construção social do sujeito
[...] o sentido de nossa vida está em questão no futuro que nos espera; não sabemos quem somos, se ignorarmos quem seremos: aquele velho, aquela velha, reconheçamo-nos neles. Isso é necessário, se quisermos assumir em sua totalidade nossa condição humana (BEAUVOIR, 1970, p. 12).
Segundo Veras (2002) os estudos desenvolvidos em forma de dissertações
e teses sobre o tema do envelhecimento, em ciências sociais e humanas
(sociologia, antropologia, psicologia, serviço social, educação e comunicação),
giram em torno de alguns eixos: o idoso de hoje diante do mundo, evocando seu
passado por meio da memória, vivenciando experiências de inúmeras
transformações, nos mais diversos campos da vida. O envelhecimento e a
velhice, em especial, são tratados por meio de representações sociais dos
próprios idosos, de seus familiares, de cuidadores e de profissionais de saúde. Os
pontos de reflexão dos estudos nesse campo se concentram na identidade, no
sentimento existencial e na autoestima. A perspectiva feminina, no entanto,
aparece em aspectos mais específicos como a sexualidade, a menopausa, a
solidão, o uso de medicamentos e alguns agravos à saúde.
São raros os estudos que se debruçam sobre a mulher “velha” no seu dia-
a-dia, a mulher comum, saudável, a não asilada, a não solitária; A interioridade
das mulheres que ao longo de gerações foram excluídas, seja pelo sexo, seja
pela classe social ou pela raça, da vida política, intelectual e social. Mais raros
ainda são aqueles que se debruçam sobre a mulher que viveu e envelheceu de
forma independente, econômica e afetivamente, considerada emblemática por
estar à frente do seu tempo.
As teorias pós-modernas, com tendências a desconstruir conceitos e
valores trazem, por consequência, novas formas de questionamentos que tendem
a quebrar o universalismo de categorias já definidas; assim, a categoria “mulher”,
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se apresenta com novas questões sobre corpos e subjetividade. Pode-se dizer
que existe uma pluralidade nesse conceito “mulher”.
A história está repleta de situações em que o humano se supera driblando
a inevitável mortalidade, adiando o desfecho de sua vida até o limite do
suportável. E nesse contexto, as mulheres tem-se apresentado como
protagonistas de uma história, na qual quase sempre se situam entre as
“sombras”, mas que ainda assim, as faz detentoras de extensas trajetórias de
vida. Mas o que é a vida? Que sentido ela tem? A que nos leva? Como vivê-la?
Para Cortella (2013, p. 81) “(...) a pessoa fica viva e realiza coisas porque tem a
perspectiva de futuro. Porém, morre em vida quando não tem mais essa
perspectiva.” Assim, o desafio que se coloca é que diante da expectativa de vida
podendo atingir os 120 a 130 anos, quais serão as estratégias a serem adotadas
pela sociedade contemporânea para garantir uma vida longeva livre dos
estereótipos e estigmas que ainda cercam a velhice em idade avançada no
Brasil?
Responder a questões tão abrangentes requer segundo Pereira (2005) a
interlocução interdisciplinar da Psicologia com a Filosofia, Sociologia, pois essa
articulação além de contribuir para o avanço do conhecimento em si, traz
subsídios para capacitar a sociedade em como lidar com as urgentes questões do
envelhecimento. E Neri (2001, p. 31) nos diz:
O estudo do desenvolvimento e do envelhecimento exige a contribuição de várias disciplinas [...] os conceitos de tempo, idade e estágio, curso, ciclo e extensão da vida, e desenvolvimento e envelhecimento encontram expressões peculiares em disciplinas afins cujas linguagens não são uniformes, mas cujo conhecimento por praticantes de diferentes filiações favorecem a comunicação científica e a compreensão dos fenômenos evolutivos.
Podemos dizer, em consonância com Habermas (1990), que a vida
constitui um questionamento profundo, filosófico acerca da existência humana,
demarcando a interpelação do homem sobre seu relacionamento com o mundo,
ou seja, o sentido da vida. E esse sentido certamente será distinto de pessoa para
pessoa, podendo ainda alterar-se no decorrer da existência de cada um. Nos
dizeres de Berger & Luckman (1976, p. 36) a busca de sentido está na
continuidade histórica; no acervo social do conhecimento, uma espécie de
reservatório do sentido, fonte de nutrição para as pessoas. E esse acervo
13
histórico não se constitui apenas das realizações já concretizadas, mas também
de projetos que aguardam o momento mais propicio para a sua realização.
Na filosofia antiga o sentido da vida consistia na busca pela felicidade
(emdaimonia); característica mais desejada. Em diferentes escolas se encontram
diferentes concepções sobre a felicidade e principalmente em como alcançá-la.
Para Platão (1991)4, por exemplo, a alma imortal atingiria a felicidade através do
equilíbrio entre a razão, coragem e instintos. Já para Aristóteles (1984)5, a
felicidade não se apresentava como algo estático, mas sim como uma constante
ativa da alma e seria encontrada na contemplação da vida (bios theoretikos). Para
o Estoicismo6 ela estaria quando do alcance pelo homem do estado final: a “paz
estóica.” E para Epicuro7 o sentido da vida estaria na superação do medo e da
dor.
Todas essas concepções apresentam um espaço importante para reflexão
sobre o sentido da vida para mulheres e, em especial para as longevas, pois,
viver muito acrescenta experiência que revela a transcorrência de um tempo
histórico com sentido, no qual a mulher interferiu e sofreu interferência; a trajetória
de vida, necessariamente, incluirá a busca pela felicidade, o equilíbrio, a
superação da dor e do medo. Partindo do entendimento de que cada um é, ao
mesmo tempo, produto e produtor da sociedade, aí evidencia-se que se trata de
4 Platão - Em “diálogos socráticos” desenvolveu discussões sobre ética, procurando definir determinadas virtudes (coragem, Laques; Piedade, Eutrífon; amizade Lísis; autocontrole, Carmides). Mas são diálogos aporéticos, ou seja, fazem o levantamento de diferentes modos de se conceituar aquelas virtudes, denunciam a fragilidade dessas conceituações, mas deixam a questão aberta, inconclusa.
5 Aristóteles no texto “Ética a Nicomano” investiga o tipo de saber que se pode obter acerca da conduta, levando em conta a situação concreta do homem, um ser que está acima do animal, mas que não pode ser definido apenas pela pura razão. Neste meio-termo se colocará o que se deve entender por virtude.
6 Estoicismo “apatia” insensibilidade diante dos acontecimentos da vida. “No dizer dos estóicos a tarefa essencial da filosofia é a solução dos problemas da vida; em outras palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade.” (FIORIN, 2007, p. 28).
7 Epicuro Defendia ardorosamente a liberdade humana e a tranquilidade do espírito. O atomismo, acreditava o filósofo, poderia garantir ambas as coisas desde que modificado. A representação vulgar do mundo, com seus deuses, o medo dos quais fez com que se cometessem os piores atos, é obstáculo à serenidade. Todas as doutrinas, salvo o atomismo, participam dessas superstições (WIKIPEDIA, 2013).
14
processo em que, numa relação dialética, constrói-se a identidade e,
consequentemente, o sentido da vida. O sentido da vida está, pois, na
interpretação do relacionamento entre o ser humano e seu mundo.
Na referência ao homem pela busca do sentido da vida, vários filósofos se
encontram e se desencontram na tentativa de estabelecer nexos possíveis em
suas formas de pensar a questão. São esforços teóricos, indiretos, tarefa da qual
o filosofo não está dispensado, ainda que isso lhe custe algumas revisões sobre o
seu próprio pensamento. Pode-se dizer então, que a vida se faz numa
multiplicidade de vontades de exigências, numa constante relação entre os
“seres” e os próprios “seres” num contexto pluralista, relacional e dinâmico. Diante
da realidade dos centenários de todo o mundo, representando hoje significativo
percentual da população do planeta, e, dentre eles, uma maioria de mulheres, o
que pensar sobre o sentido de suas vidas? Sendo uma experiência pessoal e
mutável, a vida de cada um segue uma trajetória que poderá trazer, com o passar
dos anos, uma sensação de limitação e estreitamento ou pelo contrário, pode
representar novas e inusitadas formas de sentido.
A idade avançada (...) acrescentou em mim tantas coisas (...) quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo” (JUNG, 1986, p. 149)
Ou seja, a capacidade para resistir e lutar e exercer o domínio sobre a vida
constitui elemento inerente dessa mesma vida. É justamente nesses embates
entre as regras sociais, os conceitos e valores vigentes e as necessidades
individuais que os organismos se constituem, se transformam e adquirem a
capacidade de resistir e de querer ir além num movimento de eternas “procuras.”
Na música – Vida – de Chico Buarque de Holanda, isso é retratado com
notável sentido poético:
[...] Luz, quero luz, Sei que além das cortinas São palcos azuis E infinitas cortinas Com palcos atrás Arranca, vida
15
Estufa, veia E pulsa, pulsa, pulsa, Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais Nem que todos os barcos Recolham ao cais Que os faróis da costeira Me lancem sinais Arranca, vida Estufa, vela Me leva, leva longe Longe, leva mais [...]
Quando pensamos a questão do sentido do ser não há como não
questionar: Quem sou eu? Quem somos nós? Eu não sou. Eu fui, e, serei. Essa
afirmação nos parece digna de ser analisada, pois o que sou (daí o não sou) soa
como efêmero já que passa a ser passado no momento mesmo em que se instala
e nos faz pensar, então, que estamos sempre deixando de ser alguém para nos
tornarmos outro [nós mesmos] - Metamorfose Humana - (CIAMPA, 1987).
Habermas (1990) em “pensamento pós-metafísico” afirma que o
questionamento sobre o que é o homem é fonte natural de problematização do
pano de fundo mais familiar do mundo em geral e que empresta às questões
filosóficas a sua relação com o todo, bem como o seu caráter integrador e
conclusivo. Segundo Habermas (1990, p. 26), Kant mostra que “elas não podem
ser enfrentadas pelo pensamento, a não ser por caminhos auto-referentes e, por
isso, antinômicos.” Esses pressupostos apontam para a necessidade do trabalho
cooperativo entre as ciências, para uma outra leitura de homem e sociedade, pois
as pesquisas de uma determinada área trazem a expectativa de contribuir para a
reconstrução das teorias, buscando superar a visão unilateral do conhecimento.
Assim, procuraremos problematizar como que diferentes autores, de diferentes
linhas teóricas, abordaram a questão do ser humano, numa perspectiva
interdisciplinar.
A postura interdisciplinar está presente no campo do conhecimento desde
os sofistas gregos, através de um programa pedagógico “enkuklios Paidéia”, que
dada a sua dinâmica – ensinamento circular – cobria todas as disciplinas que
compunham a ordem intelectual. Também o Centro de cultura helênica, em
16
Alexandria, utilizou por mais de meio século um projeto semelhante, que
agrupava as ciências, as letras, as artes e as técnicas, reunindo estudiosos de
todas as áreas numa missão comum. De modo similar a Universidade medieval
confiou à faculdade de Letras a gestão das “artes liberais”, com disciplinas que
permitissem a liberdade de espírito: “O Trivium” (gramática, retórica, dialética) e o
“Quadrium” (aritmética, astronomia e música). Essa pedagogia da totalidade foi
retomada no período da Renascença sob o domínio do humanismo. A
preocupação unitária, uma das idéias centrais do iluminismo só foi abandonada
com o advento do positivismo no século XIX (MINAYO, 1994).
Aponta-se dessa maneira que pensar o humano e sua inserção social
requer reflexões que extrapolem concepções fechadas para uma abertura
epistemológica capaz de demonstrar a complexidade da questão, ao mesmo
tempo em que delineia o caminho mais coerente a ser seguido. Conforme
Ciampa8, “nascemos humanizáveis e nos tornamos humanos” e o ‘tornar-se’
humano tem, por conseguinte, inúmeras interpretações. Acrescente-se que a
pulverização do saber em setores cada vez mais limitados coloca os cientistas
numa espécie de “solidão paradoxal” uma vez que o saber setorizado os leva a
perder o sentido da vida e da verdade do universo como um todo, que para
Minayo (1994) era a causa comum que os reunia.
Habermas (2012) propõe uma nova racionalidade com a aproximação da
filosofia com a ciência e o mundo da vida. Com essa macro visão, a teoria
habermasiana se contrapõe à razão instrumental que domina a sociedade
moderna. Assim, com base em uma coerência de linguagem entre diferentes
teorias se unem forças para uma abordagem teórica mais ampla, onde segundo
Minayo a cooperação interdisciplinar manteria atitudes críticas fundamentais. Por
um lado essa crítica se faria em relação à racionalidade técnica, instrumental e de
outro, em relação à tentativa de colonização do mundo da vida pela ciência e
pelas tecnologias sofisticadas justificadas pela ideologia funcionalista.
8 Anotação de aula 2012
17
Nessa busca pelo caminho interdisciplinar para a abordagem da
construção do sujeito, nossa atenção repousa em Hegel, ainda que
sinteticamente, e na sua reflexão sobre a experiência, entendida como movimento
dialético da consciência em direção ao conhecimento de si. Em Hegel (2012, p.
36) temos: “Se o embrião é de fato homem ‘em si’, contudo não é ‘para si’:
somente como razão cultivada e desenvolvida que se fez a si mesmo o que é ‘em
si’ – é um homem para si; só essa é sua efetividade.” Através da razão, no agir
conforme um fim é que se dá o processamento da consciência-de-si que leva o
homem a ser capaz de organizar as suas relações com o mundo e com os seus
semelhantes, ou seja, tornar-se humano e autônomo. Porém esse resultado por
sua vez é imediatez simples, pois é liberdade consciente-de-si que em si repousa,
e que não deixou de lado a oposição e ali a abandonou, mas se reconciliou com
ela.
A consciência-de-si agora captou o conceito de si, que antes era só o nosso a seu respeito – o conceito de ser, na certeza de si mesma, toda a realidade. Daqui em diante tem por fim e essência a interpenetração movente do universal – dons e capacidades – e da individualidade. (HEGEL, 2012, p.275).
Heidegger (2001)9 aborda de maneira muito particular uma das mais
antigas questões da humanidade e da filosofia: a questão do ser. Numa
interpretação existencialista do pensamento de Heidegger pensar o “ser” significa,
acima de tudo, pensá-lo como sendo o homem; um ente talvez privilegiado, que é
o único que se pergunta sobre o “ser”, sobre o seu estar no mundo – “o ser aí”
(Dasein); termo utilizado por Heidegger e que nos permite entender o “ser-aí”- o
homem individual como sendo um projeto indefinido, auto dirigido e
perpetuamente inacabado. Para o filósofo, a história da metafísica atinge, na obra
de Hegel, o momento de sua consumação. E para que Heidegger formulasse a
questão do sujeito supõe-se uma necessária leitura em Hegel. A questão do
sujeito em Heidegger teria, segundo Estrada (1996), uma proveniência hegeliana.
9 A obra “Ser e Tempo”, publicado em 1927, um marco na caminhada do pensamento pela história do ocidente.
18
Importante a ressalva feita por Torres (2005) de que o conceito de
aproximação indica distanciamento e diferença nunca identidade. Assim, se Hegel
concebe o modo de ser do homem como sendo subjetividade absoluta, Heidegger
pretende erradicar toda subjetividade. Dasein, termo que pretende substituir o
metafísico – sujeito – é a superação do sujeito, é o sujeito que não é mais sujeito
(ESTRADA, 1996).
Numa tentativa de expor, talvez, a importância do pensamento
interdisciplinar, Brüssek e Sell (2006) enfatizam que a curiosa aceitação do
conceito “mundo da vida” entre os marxistas de hoje não deixa de ser um sintoma
tardio do “pragmatismo” que está na raiz da confusão e, por vezes, convergências
de diferentes perspectivas. E salientam: “Ernest Bloch, na sua “Introdução à
Filosofia” de Tübingen não tinha nenhum problema em mesclar resultados da
analise do ser-aí (Daseinsanalytik) com uma perspectiva marxiana”( BRÜSSEK E
SELL, 2006, p. 16).
Na modernidade, apesar dessas e outras diferenças teóricas sobre o ser, o
indivíduo, na sua presença no mundo e em sua singularidade, é ainda pensado
como sujeito. Honnet (2003) tenta aproximar as teorias de Hegel e Mead com um
referencial que nos estimula a questionar: O desenvolvimento da autoconsciência
está, necessariamente, na dependência da existência de um outro sujeito? A
autoconsciência, a consciência de si só pode ser adquirida na relação
intersubjetiva, na medida em que o sujeito começa a perceber sua própria ação
na perspectiva do outro. Assim, a formação da consciência de si se origina de
algo exterior, pode-se dizer, uma importação dos objetos sociais para a
interioridade.
Dentro da categoria de pensadores da atualidade, Habermas (1990)
anuncia em Pensamento Pós-metafísico o fim da metafísica enquanto
pensamento totalizador e autorreferente com pretensões de um acesso
privilegiado à verdade. Contrapondo-se ao pensamento de Heidegger de que “o
fim da metafísica não prenuncia uma era pós-metafísica”, Habermas (1990)
afirma que a desvalorização do modo de pensar metafísico traça um caminho
para o que ele denomina: “pensamento pós-metafísico”, que traz a exigência de
um redimensionamento do papel da filosofia, uma vez que, necessariamente, um
novo cenário de pensamento se instaura.
19
Para Bicca (1993), pós-modernidade sugere o esgotamento do potencial
filosófico dos pensadores modernos, sobretudo naquele aspecto que pode ser
encarado como paradigma de sua racionalidade: o conceito de sujeito – junto com
o qual soçobrariam outros conceitos básicos e um modelo filosófico ou uma
postura elementar de reflexão: a oposição sujeito/objeto. Essa relação
sujeito/objeto é substituída, segundo Habermas (1990, p. 15) na relação entre
linguagem e mundo, entre proposições e estados de coisas. “O trabalho de
constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental
para se transformar em estruturas gramaticais.” Observa-se um abandono do
sujeito em favor de uma intersubjetividade.
Nessa perspectiva Habermas (1990) demonstra a sua filiação a um outro
paradigma filosófico que consistiria em abandonar a filosofia do sujeito com suas
esperanças transcendentais para definir uma fundamentação diferente para o
fazer filosófico: filosofia da linguagem, que se convencionou chamar de “guinada
linguística” quando então, o fazer filosófico volta-se para o seu objeto: a razão.
Habermas encontrou em Mead a sustentação que precisava para compreender o
processo de formação do sujeito por meio da socialização e sintonizou-se com ele
quanto ao fato de que a individuação caracteriza um processo de socialização e
de constituição da autoconsciência mediado pela linguagem.
G. H. Mead protagonizou a produção de um conhecimento científico que
fomentou uma nova perspectiva em psicologia social. A multiplicidade de
conceitos desenvolvidos por ele permitiu uma melhor compreensão da relação
entre indivíduos e sociedade. Seus estudos ampliaram a reflexão sobre o
processo de interação social, colocando a linguagem como ponto central na
formação do “self” e da gênese constitutiva das identidades sociais.
É significativa a discussão que Pereira (2000) faz sobre a teoria do sujeito
proposta por Mead. Lembra a autora que esse estudioso coloca o sujeito como
ser ativo determinado e determinante do processo social. A fase do self que se
relaciona ao social ou a sua internalização, constituindo um indivíduo com seu
grupo social - o “me” (self empírico), resulta do mecanismo de adoção de atitudes
dos outros que são internalizadas e organizadas, estando, portanto, estreitamente
vinculado ao que está posto socialmente; seria a parte mais convencional do
20
‘self’. Já o ‘eu’ seria a resposta do indivíduo à comunidade, é a ação do sujeito
propriamente dita.
Compete, portanto ao ‘eu’ o estabelecimento do novo, pois o mesmo
encerra em seu cerne a sensação de liberdade e de criatividade. É nesse
potencial criativo do ‘eu’ que se concentra a possibilidade de desenvolvimento das
ações que constituiriam o “motor” capaz de gerar o movimento individual e crítico.
O ‘eu’ “é sempre algo que não está dado no ‘me’ e, nesse sentido, instala a
possibilidade de um vir a ser diferente do que está posto nesse nível” (PEREIRA,
2000, p. 52-53). E esse vir a ser natural é parte essencial do ser humanizado e
socializado e pode se concretizar, nas ações cotidianas, através da transgressão,
do rompimento com o convencional.
Morris (2010) aponta que Mead realiza, num quadro teórico pós-metafísico,
a fundamentação naturalista da ideia de Hegel, fundamentação empírica e não
especulativa, através da psicologia social; e com isso dá forma a um conceito
intersubjetivista de autoconsciência. Caberia a psicologia esclarecer antes os
mecanismos através do qual pode desenvolver-se na interação humana uma
consciência do significado das ações sociais. Ou seja, a interlocução entre o “eu”
e o “me” proporcionaria o entendimento da formação da identidade. Se a
autoconsciência nasce a partir da interação e da percepção do ‘outro’, o modo
através do qual nos tornamos socialmente aceitos, vem na medida em que nos
reconhecemos no outro, na ação do outro. Assim, interiorizando suas ações nós
as reproduzimos externamente, tornando-as (as ações) parte da comunidade que
partilha uma mesma dinâmica e forma de ações normativas.
Berger e Luckman (1976) afirmam que os pressupostos utilizados para o
desenvolvimento do seu pensamento em relação à “construção social da
realidade” receberam importante influência de Georg Mead e destacam a
linguagem como elemento fundamental, descrita por ele em 1903 que a
considerou um ‘medium’ essencial na formação do “self” no processo de interação
entre o indivíduo e a sociedade. “A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me
continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas
adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim.”
(BERGER &LUCKMAN, 1976, p. 38).
21
Segundo Habermas (2012, p. 185), Mead tem o mérito de ter acolhido
certas considerações encontráveis em Humboldt e Kierkegaard de que o
processo de individuação não representa a autorrealização de um sujeito
autoativo na liberdade e na solidão, e sim, como um processo linguisticamente
mediado da socialização na constituição de uma história de vida consciente de si
mesma. Assim, a identidade de indivíduos socializados forma-se simultaneamente
em meio ao entendimento intrassubjetivo-histórico-vital consigo mesmo. Forma-se
então, a individualidade num processo de reconhecimento intersubjetivo e de
autoentendimento mediado intersubjetivamente.
A sociedade que Berger e Luckman (1976) concebem como sendo ao
mesmo tempo uma realidade objetiva e subjetiva, entendida como um processo
dialético compõe-se de três momentos: exteriorização, objetivação e
interiorização que não devem ser pensados numa sequência temporal. Ao mesmo
tempo em que o indivíduo exterioriza o seu próprio ser no mundo ele interioriza o
mundo circundante como realidade objetiva. E essa apreensão de um
acontecimento objetivo como dotado de sentido, ou seja, como manifestação da
subjetividade de outrem, torna-se, nesse processo, significativo para esse
indivíduo.
A socialização do indivíduo passa segundo os autores por duas vertentes.
Na socialização primária o que o indivíduo experimenta na infância, na relação
com os seres humanos mais próximos – o outro significativo - (pais, avós, etc.)
terá maior valor e indicará que toda a socialização secundária deverá assemelhar-
se a ela. Daí a força indiscutível do “outro significativo” na vida das pessoas, pois
“o aprendizado implica mais do que o aprendizado puramente cognoscitivo;
ocorre em circunstâncias carregadas de alto grau de emoção” (BERGER;
LUCKMAN, 1976, p. 176).
Essa importância do outro significativo se sustenta na medida em que a
interiorização só se realiza quando há identificação e nisso reside a absorção dos
papéis e das atitudes que a criança interiorizará, tornando-os seus; e essa
‘importação’ de significados faz com que o sujeito se identifique consigo mesmo
adquirindo uma identidade subjetivamente coerente e plausível. Observe-se que
“não é um processo unilateral nem mecanicista, implica uma dialética entre a
22
identificação pelos outros e a auto-identificação entre a identidade subjetivamente
apropriada” (BERGER; LUCKMAN, 1976, p. 177).
Na socialização primária não há problemas quanto à identificação com este
ou aquele outro significativo, pois os pais nos foram “dados” sem a nossa
participação, e sem escolha, a criança identifica-se automaticamente com eles e a
interiorização dessa particular realidade é quase inevitável. A criança não
interioriza o mundo dos outros que são significativos para ele como sendo um dos
muitos mundos possíveis. Assim, interioriza-o como sendo ‘o mundo’ o único
mundo existente e concebível – “tout court.”
Cabe ressaltar a impactante afirmação de Berger e Luckman (1976, p.
182):
A socialização primária realiza assim o que [...] pode ser considerado o mais importante ‘conto-do-vigário’ que a sociedade prega no indivíduo, ou seja, fazer aparecer como necessidade o que de fato é um feixe de contingências, dando deste modo sentido ao acidente que é o nascimento dele.
O mundo que a criança absorveu como seu, faz com que a mesma tenha
confiança nas pessoas dos outros significativos e nas suas definições das
situações por eles apresentadas. Assim, o mundo absorvido pela criança, na
socialização primária, faz todo o sentido, pois é, sem qualquer sombra de dúvida,
real.
A formação na consciência do outro generalizado constitui uma fase
decisiva no processo de socialização já que implica a interiorização da sociedade
enquanto tal e da realidade objetiva que nela se estabelece e, ao mesmo tempo
proporciona o estabelecimento subjetivo de uma identidade coerente e contínua.
Os autores compartilham do pensamento de Mead ao entenderem que para o
sujeito pertencer a um grupo social, ele precisa reproduzir valores e símbolos
compartilhados pela comunidade na qual se insere. Ao mesmo tempo em que se
adapta a ela, afirma-se como indivíduo autônomo lutando contra a coletivização
massificada, ou seja, na articulação indissociável do “me” e do “eu.”
Com a interiorização da sociedade e da realidade objetiva nela
estabelecida ao mesmo tempo em que, ocorre o estabelecimento subjetivo de
uma identidade coerente e contínua, termina a socialização primária e estabelece-
23
se o conceito desse outro generalizado. O indivíduo nesse momento passa a ser
um membro efetivo da sociedade e possui subjetivamente uma personalidade e
um mundo.
Com esta incursão teórica sobre o sentido da vida e a construção social do
sujeito, obtemos as evidências necessárias para o entendimento de que a mulher,
antes de sê-lo, constitui-se em um ser, em um sujeito inserido num determinado
contexto histórico e social do qual decorrem suas determinações e as
possibilidades, os modos e as alternativas de identidade.
24
Capítulo 2 A identidade como metamorfose humana: considerações sobre
o segundo sexo
[...] o conteúdo que surgirá dessa metamorfose deve subordinar-se ao interesse da razão e decorrer da interpretação que façamos do que merece ser vivido. Isso é busca de significado e invenção de sentido. É autoprodução do homem. É vida. (CIAMPA, 1987, p. 241-242).
Os estudos sobre identidade, do ponto de vista psicológico são abordados,
de acordo com Laurentti e Barros (2000), geralmente pela Psicologia Analítica do
Eu e pela Psicologia Cognitiva; abordagens essas que compartilham a noção de
desenvolvimento marcado por estágios crescentes de autonomia,
compreendendo a identidade como produto da socialização, mantida pela
individualização. Na Psicologia Social, a identidade ocupou lugar central nos
estudos de Willian James; e na tradição do Interacionalismo Simbólico as
referências aproximam-se nos trabalhos de Georg Mead.
Estudar a identidade humana enquanto categoria de analise conduz a uma
compreensão do indivíduo e os processos sociais em seu entorno. Porém,
estudá-la sob a ótica do sintagma: identidade-metamorfose-emancipação, amplia
essa compreensão, fazendo uma articulação da subjetividade com a objetividade
da natureza, a normatividade da sociedade e a intersubjetividade, apurando o
olhar para o sujeito como essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo,
constituído na e pela linguagem.
Na obra de Ciampa (1987), observamos a pontual referência de que no
processo de construção da identidade a diferenciação de si e consciência do
outro é fundamental. E isso evidencia a sua vinculação teórica sobre o sujeito e
sociedade com Berger e Luckman (1976, p. 174) já que para os autores “a
interiorização [...] constitui a base primeira da compreensão de nossos
semelhantes e, em segundo lugar, da apreensão do mundo como realidade social
dotada de sentido.”
Na construção da Teoria da Identidade, além da categoria Atividade
[Trabalho] Ciampa (1987) buscou na categoria Consciência a compreensão da
narrativa, que pontua que só se tem acesso, nas histórias de vida, aos elementos
25
conscientes, que para o autor, se referem à dimensão dos sentidos e dos
significados.
Para Carone ([19--]) todas essas asserções são derivadas, sem
mistificação, do materialismo histórico, melhor dizendo, são baseadas em Marx e
numa boa tradição do marxismo, que supõe que o singular encarna o universal,
porque ele é mediatizado pelas relações sociais, tais como elas são criadas
historicamente.
Na Teoria do Agir Comunicativo de Habermas (2012), encontram-se outros
subsídios que sedimentam uma abordagem “subjetivista” vendo a sociedade
estruturada em termos de “sentido”. O filósofo buscou, na concepção meadiana
de self a compreensão do desenvolvimento individual da identidade e em Hegel a
diferenciação entre a singularidade e a individualidade. Lima (2012b), fazendo
articulações das concepções de Mead e Habermas, deixa claro que a tensão
entre o “me” e o “eu” é que possibilita Habermas pensar a identidade de uma
forma diferente daquela que a vê como estática ou idêntica a si mesma,
“cristalizada”, portanto. Com essas bases teóricas do significado e da
individuação passa-se a pensar a identidade-eu não convencional como sendo
formada socialmente, gerada comunicativamente, de onde emergirá a
autoconsciência em busca de autorrealização. Ou seja, a identidade pós-
convencional, emerge no coletivo onde o indivíduo vai buscar subsídios para a
solução de problemas resultantes da relação que mantém com seu ambiente
natural e social.
O homem, um ser imerso em temporalidades tem que ser pensado nos
diferentes níveis dessa temporalidade, desde os mais ligados à interioridade até
aqueles voltados à exterioridade. Assim, temporalidade associa-se com
subjetividade, identidade e memória, indiscutivelmente. E, para se pensar a
identidade, oportuna é a afirmação de Habermas de que “uma identidade bem
sucedida do “eu” seria aquela que conseguisse manter sua autenticidade perante
as mudanças sociais” (LIMA, 2012b, p. 256)
Tudo o que somos, desde os elementos que nos foram dados (nome,
filiação, orientação religiosa ou não, etc.), representam uma base, uma plataforma
para o eterno devir e, muitos dos projetos engendrados ao longo da existência
acabam sendo abortados por não encontrarem uma via de concretização. E isso
significa que podemos ser ou deixar de ser inúmeras personagens, ou seja, a
26
identidade do eu comporta, ao mesmo tempo, o exercício de diferentes
identidades de papéis (mulher, professora, ativista, mãe, etc.) em distintos re
recortes da identidade pessoal (identidade religiosa, identidade profissional,
identidade de gênero, etc.).
Segundo Mead (apud MORRIS, 2010) a formação da identidade é um
processo de aprendizagem social intersubjetiva. A capacidade de modelar o ‘self’
de acordo com as atitudes dos outros toma a forma de uma capacidade de
compreender essas atitudes por meio da assunção dos papéis dos outros, isto é,
de ver seu próprio comportamento à luz do ponto de vista do outro. Ou seja, a
individualidade “forma-se em condições de reconhecimento intersubjetivo e de
auto-entendimento mediado intersubjetivamente” (HABERMAS, 1988, p. 186-
187).
Ciampa (1987) ao falar sobre a identidade que inicialmente assume a
forma de um nome próprio, vai adotando outras formas das predicações, como
papéis, especialmente, mostrando um vínculo com a Teoria dos Papéis em
Psicologia social, numa aproximação com Mead e com Goffman e com “todos
aqueles que tentaram fazer uma psicologia social baseada no modelo e na
representação, como encarnação do papel, como vivência e desempenho do
papel, que é socialmente estabelecido” (CARONE, [19--], p. 2). Para Lima (2010,
p.166) “A identidade deve ser compreendida como metamorfose humana, que é,
por sua vez, luta por reconhecimento em face de uma sociedade capitalista que
tende a reduzir a identidade a personagens feitichizadas que negam sua
totalidade em favor do universal dominante: o “capital.”
Como tantas outras questões que são dominadas pela lógica capitalista, o
assunto da velhice foi “estatizado” e “medicalizado”, transformando-se ora em
problema político, ora em problema de saúde, seja para ser regulado por normas,
seja para ser pensado de forma preventiva “[...] assim, numa atitude de negação
da idade, os idosos buscam parecer mais jovens para serem aceitos e acolhidos,
‘obscurecendo’ suas características, seus atributos e sua identidade” (BARROS,
2002, p. 14)
A memória como condutora e mediadora da evocação do tempo, na velhice
assume um papel importante de redefinição de identidades (...) esse ser que vai
envelhecendo carrega consigo um tempo existencial que lhe permite,
paradoxalmente, renovar a própria existência, justamente por se um ser temporal
27
(STANO, 2001, p. 55). Sendo um fenômeno social, os estudos sobre a identidade
não podem ser dissociados daqueles que procuram compreender a sociedade,
pois é do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas
determinações e, consequentemente, emergem as possibilidades ou
impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade. As teorias sobre a
identidade, em decorrência, se encontram “sempre encaixadas em uma
interpretação mais geral da realidade, são “embutidas” no universo simbólico de
suas legitimações teóricas, variando com o caráter destas últimas. A identidade
permanece ininteligível a não ser quando é localizada em um mundo.” (BERGER;
LUCKMAN, 1976, p. 228)
Cada época imprime, no sujeito, uma forma de pensar e agir. Uma incursão
pela história da humanidade permite perceber que alguns momentos marcaram,
sobremaneira, a construção da identidade, como por exemplo, a supervalorização
espiritual na Idade Média ou a descoberta dos valores humanos no período
Renascentista, ou ainda a acentuada valorização das faculdades intelectuais no
Iluminismo.
[...] para a constituição de si mesmo, do self, o sujeito agrega tendências específicas do conhecimento, reduzindo por exemplo a estímulos e respostas na concepção behaviorista, ou a determinismo social na perspectiva histórica e antropológica, assimilando, em sua construção identitária, particularidades e valores específicos de cada momento. (VIEIRA, 2005, p. 210)
E, nas sociedades que mantêm uma estrutura de poder que preconiza
certos privilégios a alguns em detrimento de outros, verificam-se, no dizer de
Almeida (2005) políticas de identidade que favorecem e reforçam relações
assimétricas, afetando grupos minoritários: idosos, mulheres, indígenas, etc.
numa busca pela manutenção dos processos sociais vigentes. Esse rigor
sistêmico, próprio das sociedades capitalistas onde “(...) Tendo em vista o
interesse emancipatório, a identidade afigura-se uma ferramenta importante para
dar conta, por um lado, dos processos de “emudecimento do outro”, que induzem
a conformidade e a mesmice e, por outro lado, dos processos de autorreflexão e
entendimento que estão na base da autonomia e da assertividade pessoal
(ALMEIDA, 2005, p.4)
Abordar a dimensão política das identidades envolve, segundo Pereira
(2000, p. 2) de um lado, uma preocupação sociológica, mas, de outro, trata-se
28
fundamentalmente de apreender o sujeito do ponto de vista da dialética:
indivíduo-sociedade, enfatizando a capacidade transformadora do indivíduo e
“isso é tarefa da psicologia social.” E acrescenta que a pretensão de abordar a
política de identidade vai exigir que o pesquisador trabalhe com um conceito mais
amplo de sujeito, aquele que tem a capacidade efetiva de produzir mudanças
sociais.
Segundo Hall (1997), as políticas de identidade estão articuladas como
uma política de representação, ou seja, o envolvimento dos sujeitos que até então
poderiam estar localizados “nas margens”, para reclamar alguma forma de
representação. É a partir de um espaço que pode ser identificado com o âmbito
do local, que passam a aparecer novas representações, novos sujeitos que
mediante diferentes embates alcançam meios de falarem por si mesmos. Ainda
segundo o autor, as políticas de identidade trazem em seu bojo a questão da
etnicidade enquanto reconhecimento de que todos nós falamos a partir de um
lugar, de uma história, de uma experiência, de uma cultura particular “Nesse
sentido, nós todos somos etnicamente situados e nossas identidades étnicas são
cruciais para nosso senso subjetivo de quem somos” (HALL, 1997, p. 447)
Habermas (1983) defende a ideia de que o processo de desenvolvimento
da identidade passa por três momentos distintos que ele denomina: identidade
natural, identidade de papel e identidade do eu. A identidade natural refere-se ao
primeiro estágio do desenvolvimento e nesse momento, os atores – crianças -
ainda não estariam inseridos no universo simbólico, ou seja, as suas ações
estariam sendo orientadas por outros. Seria esse, o segundo momento da
socialização primária, onde o papel do outro significativo se faz intenso. Já com a
preponderância da socialização secundária, emergiria o terceiro estágio onde o
sujeito socializado assumiria os papéis da realidade social. E ao buscar essa
identidade de papel, o sujeito, gradativamente, busca a identidade do eu “que se
expressa numa paradoxal na medida que o “eu”, como pessoa é igual a todas as
pessoas, ao passo que enquanto indivíduo é diverso de todos os demais
indivíduos” (LIMA, 2012a, p. 256)
A biografia subjetiva não é completamente social, pois o indivíduo
apreende-se a si próprio como um ser ao mesmo tempo interior e exterior à
sociedade. Assim, a sua biografia será sempre produzida “in acto”. E Habermas
(1983, p. 80) afirma: “Desse modo, em sua expressão concreta, a identidade do
29
eu se manifestaria na capacidade de construir novas identidades, integrando
nelas as identidades superadas e organizando a si mesmo e as próprias
interações numa biografia inconfundível.”
Minayo e Coimbra Junior (2002) observam que, não sem dor e conflitos,
os papéis sociais estão mudando e podem mudar mais, à medida que as pessoas
longevas se coloquem como atores das transformações com que sonham. E, o
palco para a ação desses atores sociais configura-se no mundo da vida, o lócus
da integração social, onde os seres humanos podem, através do agir
comunicativo,
levantar suas pretensões, argumentos e submetê-los à crítica daqueles com quem o compartem. Em sua esfera, o mundo da vida é coordenado pelo médium da solidariedade entre aqueles que nele agem e falam. Ele permite a busca pelo entendimento mútuo necessário ao estabelecimento de acordos racionalmente motivados (MAGALHÃES, 2012, p. 5).
No contexto feminino, a condição de esposa e mãe imposta,
indiscriminadamente, pela sociedade nos mais distintos períodos históricos,
precisa ser dissecada em seus meandros mais profundos, com o objetivo de, ao
se revelar as feridas existenciais dessa condição, as mulheres da atualidade,
moças e velhas, possam ter um “ressarcimento psicológico” que não apenas as
ajude a cicatrizar as feridas atávicas, como também, as faça vislumbrar um devir
que lhes permita superar as convenções, encontrando as vias adequadas para
uma metamorfose realmente emancipadora; e dessa forma terem a possibilidade
de usufruir da velhice com qualidade e satisfação.
Ciampa (1987, p. 58) enfatiza na trajetória de Severina, quando a mesma
acalenta o desejo humano de transformar-se em esposa e mãe como sendo “uma
alternativa de mudança de identidade desejada por muitas moças – até mesmo
de classe média e com família – ser esposa, dona-de-casa, mãe...”; ou seja, uma
metamorfose para trilhar os caminhos anteriormente traçados, sem romper com o
modelo convencional do que é, e do o que deve ser a mulher. Se dá, portanto, a
mesmice, ou seja, a simples reposição de papéis, sem a mediação da reflexão.
Quando se fala em identidade mito, a referência é a impossibilidade de o
indivíduo conseguir atingir a condição de “ser-para-si” através da superação das
contradições. Para Castoriadis (1987) o para-si quer dizer mundo próprio, fonte de
criação de um mundo próprio, a identidade vista como um conjunto de qualidades
30
ideais, construídas, social e historicamente. A fetichização das personagens
impossibilita o alcance da condição de “ser-para-si”, encobrindo a identidade
como metamorfose (MATIAS, 2007).
As dificuldades ainda são enormes para que a mulher possa reconhecer-se
enquanto sujeito, tendo o desafio de construir sua identidade em uma sociedade
que já havia apregoado, nas premissas modernistas, a possibilidade de
recuperação de uma subjetividade mascarada pelo modelo masculino de
civilização. Pesquisar, então, sobre identidade, na perspectiva de Ciampa (1987)
significa um rompimento com a questão meramente descritiva para uma
perspectiva de compreensão, de entendimento: “precisamos captar os
significados implícitos, considerar o jogo das aparências. A preocupação é com o
que se oculta, fundamentalmente com o desenvolvimento do que se mostra
velado.” (CIAMPA, 1987, p. 138)
Nesse sentido, as tentativas da mulher contemporânea esbarram na forte
presença da hegemonia do discurso masculino, que teima em se fazer
preponderante na construção da identidade feminina. É fundamental, pois,
encontrar discursos alternativos para levar conta questões que envolvam as
diferenças e as desigualdades do gênero quase sempre “invisíveis” que acabam
por cristalizar a identidade feminina no papel de esposa e mãe. É essa noção de
identidade feminina, que ainda precisa ser desconstruída através de
questionamentos sobre sua universalidade, sua fixidez e, sobretudo pela noção
de corpo como base biológica e material incontestável da identidade.
Foram anos de muito sofrimento para que as mulheres tivessem direito de
estudar, votar, enfim de serem cidadãs numa articulação entre atividade e
consciência. Define-se aí a mesmidade, que configura a identidade um caráter de
movimento e plasticidade, num rompimento com o convencional, já que possibilita
às mulheres um ato de reflexão sobre o que foram e o que desejam ser. A
mesmidade configura-se, portanto, com o desejo humano de saber mais, de
conhecer e de refletir sobre os eventos e conhecimentos, recusando-se a
reconhecê-los como realidade absoluta. Assim, as novas experiências “[...]
quebram a rotina daquilo que é auto-evidente, constituindo uma fonte de
contingências [...] atravessam expectativas, correm contra os modos costumeiros
de percepção, desencadeiam surpresas, trazem coisas novas à consciência.”
(ALMEIDA, 2005, P. 126)
31
Como questão científica, social e política, a identidade extrapola o âmbito
acadêmico para tornar-se uma questão humana: um complexo de conceitos e
entendimentos sobre o ser e o estar no mundo. Para Ciampa (1987) a Identidade
Metamorfose é vista como a unidade da atividade, da consciência e da identidade
“Como o real é sempre movimento, transformação incessante, não deveria nem
mesmo atrair a nossa atenção uma afirmação como essa, que identidade é
metamorfose; ela é óbvia; nem mesmo deveria ser considerada problema ou
questão a ser pesquisada, já que compartilha da natureza de tudo que existe.”
(CIAMPA, 1987, p.148). Fica então a constatação de que se tudo se transforma,
continuamente, a não-metamorfose, ou seja, a ilusão de não transformação,
ganha espaço na discussão que se apresenta.
A metamorfose quando gera emancipação, não deixa dúvidas, não ilude,
não necessita ser desvelada, pois o ato transgressor, ao romper com o
convencional por si só, se define, se apresenta e se instaura na vida de quem
transgrediu para atender aos seus desígnios mais profundos: libertar-se. Sendo
ativa a mulher projeta-se na vida a afirma-se como sujeito. Portanto
diferentemente da metamorfose “óbvia”, a ação transgressora exige uma
compreensão diferenciada porque faz emergir uma Identidade que se
convencionou chamar de emblemática [pós-convencional].
Saffioti (1976) afirma que a capacidade de mudar e gerar um novo lugar no
mundo, uma nova identidade, uma nova forma de ser e estar consiste num ato de
transgressão, e a transgressão é de suma importância nas mudanças sociais. É
nela e por meio dela que a sociedade se transforma e com isso, transformando
em seu âmbito mais profundo, a própria vida. Pela ausência de transgressão duas
coisas ficam comprometidas: a qualidade de vida e a possibilidade de
continuidade. E se a vida em constante transformação é expansão, é
metamorfose; transgredir é necessário.
A autoconstrução da identidade feminina, mais do que a expressão de uma
essência, é a afirmação de poder quando as mulheres se mobilizam para alterar o
estado de coisas que a história lhes impingiu. A identidade se constrói, pois, na
afirmação do poder e não como a expressão de uma essência. O poder no
sentido de as mulheres se mobilizarem para promover alterações de como são
para como desejam ser; essa reivindicação de uma identidade é construção de
poder – empoderamento feminino.
32
Beauvoir (1967, p. 8) traz a seguinte afirmação de Kierkegaard “Que
desgraça ser mulher! Entretanto a pior desgraça quando se é mulher é, no fundo,
não compreender que sê-lo é uma desgraça.” Conforme a autora é o
desconhecimento sobre a sua condição que torna o fato de ser mulher tão terrível.
As mulheres, senão todas, muitas delas, não compreendem, de fato, quem são ou
quem deveriam ser numa sociedade que as relegou, por séculos, a uma opressão
impiedosa.
Beauvoir (1967), num percurso sob o enfoque existencialista, discute a
aprendizagem das meninas acerca da sua condição, que as encerra no contexto
sociofamiliar, bem como delineia as pequenas possibilidades de “saídas” que lhes
são permitidas no cotidiano e afirma que uma das maldições que pesam sobre a
mulher é o fato de, em sua infância, serem elas abandonadas nas mãos das
mulheres. E esse universo por assim dizer, homogêneo, favorece a manutenção
e reprodução do modelo de conduta a elas imposto pela suposta supremacia
masculina, da qual advirá uma identidade ‘dada’, pressuposta, portanto.
Há, nas considerações da autora, a constatação em forma de denúncia de
que a mulher sempre foi considerada fisiologicamente inferior e, por isso, escrava
da espécie. E esse ‘status’ de inferioridade lhe conferia papéis subordinados que
a identificavam como mera reprodutora biológica. Assim, todas as mulheres eram
iguais. Em consonância com Beauvoir (1967), essa identidade sexual de mulher,
carregada de ideologias não será usada aqui, como um arquétipo ou como
referência a alguma essência imutável. Entendemos que a categorização de
mulher deve-se a um aprendizado construído socialmente e pode, perfeitamente
ser revisto e modificado. E essa construção do feminino acontece com a
mediação de outrem e somente essa mediação pode constituir um indivíduo como
‘um outro’.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher [...] não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada (BEAUVOIR, 1967, p. 8).
Antes do movimento feminista na década de 70 do século passado, a
mulher era realmente referenciada apenas segundo os fatores biológicos:
33
rebaixada força física, estatura menor, pouca capacidade intelectual dentre
outros, que a limitavam ao processo reprodutivo. Esse conceito de ‘inferioridade
biológica’ era predominante tanto no discurso científico quanto na sociedade
como um todo. E assim delineou-se a coerência entre as condições físicas
empobrecidas e as funções sociais de menor prestígio e essa divisão sexual,
dividiu também, o âmbito de atuação entre o privado, para a mulher e o público
para o homem, com todos os privilégios advindos dessa determinação arbitrária,
favorecendo o homem. Essa desigualdade imprimiu na mulher, uma identidade
validada apenas pelos papéis sociais a ela atribuídos.
Há um caso bastante ilustrativo à respeito de “tornar-se” homem ou mulher,
registrado pela fotógrafa norte americana Jill Peters sobre as últimas “virgens
juramentadas” da Albânia. Para sobreviver às rígidas restrições impostas às
mulheres entre as comunidades das montanhas dos Balcãs, sudoeste da Europa,
elas ignoravam suas identidades e passavam a viver como homens. Esses
camponeses viveram sob as normas do ‘kanum’, um código de honra que vigorou
por 500 anos (até o início do século XX). Essas regras limitavam a vida das
mulheres aos cuidados dos filhos e da casa; elas eram proibidas de ter uma
profissão, dirigir, beber, fumar, cantar; não tinham direito à herança e tornavam-se
propriedade do marido.
O ‘Kanum’ permitia, porém, que a mulher se proclamasse homem,
passando a viver como eles; a partir de então, podiam trabalhar e tornar-se
patriarcas. Essa regra teve origem nas precárias condições de sobrevivência nas
montanhas da Albânia que chegava a dizimar todos os integrantes do sexo
masculino de uma família. Na ausência de um herdeiro, a mulher mais velha era
‘obrigada’ a proclamar-se virgem para garantir o sustento e a honra dos
familiares. Outras, por opção, proclamavam-se ‘homens’ para ter autonomia. Para
isso, elas faziam um juramento público de virgindade e celibato, cortavam os
cabelos e adotavam trajes e trejeitos masculinos para a vida toda. Deixariam a
condição de serva se também deixassem de ser mulher, se renunciassem ao
sexo, à maternidade e à identidade. É, de certo modo, um matar a si mesma.
Evocando Beauvoir (1967, p. 35) “Jogos e sonhos orientam a menina para a
passividade: mas ela é um ser humano antes de se tornar uma mulher, e já sabe
que aceitar-se a si mesma como mulher é demitir-se e mutilar-se; e se a
demissão é tentadora, a mutilação é odiosa.”
34
Um olhar para a história procurando as evidências de movimentos pela
igualdade entre homens e mulheres e pela libertação de preconceitos e opressão
evidenciam que a desigualdade/inferioridade feminina tem suas origens na
sexualidade. Esse olhar que privilegia, neste momento, o caráter teórico,
engendra-se, no entanto, na compreensão de uma realidade vivida
cotidianamente pelas mulheres nascidas na primeira metade do século XX e que
foram seriamente impactadas pelas normas vigentes na época. E hoje, “a mulher
velha é vítima dessa negação de toda vida privada, dessa metamorfose de ser
humano em puro objeto, que lhe é imposta [...].” (BEAUVOIR, 1970, p. 320).
Saffioti (1976) considera que a trajetória feminina, sua história, suas
conquistas precisam ser descritas para que haja empoderamento da categoria
social que elas representam, pois as mulheres ainda são na contemporaneidade,
objeto da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de
trabalho e de novas reprodutoras. E acrescenta que, como categoria social, a
sujeição das mulheres, também como grupo, envolve prestação de serviços
sexuais a seus dominadores. Esta soma/mescla de dominação e exploração a
autora entende como opressão.
Duby e Perrot (1991) questionam, em relação à “História das mulheres”
que teve seu inicio na década de 60: Terão mesmo, as mulheres uma história?
Para as autoras, sendo excluídas do espaço público, as mulheres foram lançadas
no silêncio do relato histórico. O movimento “História das mulheres” trouxe, em
seu início, através dos historiadores sociais, a idéia de uma categoria
homogênea, entendida como “identidade coletiva.” Essa suposição, que distinguiu
os primeiros estudos sobre a condição da mulher contribuiu para consolidar o
antagonismo homem/mulher, o que instigou o movimento feminista na década de
70. Priore (2012, p. 8) nos diz:
Teria então chegado o tempo de falarmos, sem preconceitos, sobre as mulheres? Teria chegado o tempo de lermos, sobre elas, sem tantos a priori? Muito se escreveu sobre a dificuldade de se construir a história das mulheres, mascaradas que eram pela fala dos homens e ausentes que estavam do cenário histórico. Esta discussão está superada.
Permanece, então, a história individual, subjetiva, onde cada gesto, cada
silêncio guardam “tesouros humanos” de riqueza incalculável. Assim, em
oposição a essa ausência de fontes históricas, existe uma abundância de
35
representações e discursos acerca do que a mulher é ou deveria ser “fazendo-nos
ver, ouvir e sentir através da narrativa de histórias de vida, como nasceram e
viveram as mulheres no século passado e como se mantém “vivas” nos dias de
hoje” ( Priore, 2012). Essas inúmeras histórias que hoje se contrapõem à história
universal, ou seja, a história das mulheres, dos negros, dos velhos, etc.
distanciam-se de uma visão global do desenvolvimento da humanidade,
aguçando a sensibilidade para o diferente, o particular.
Na década de 70, baseadas na gerontologia social, surgiram as Teorias e
Perspectivas Feministas que incorporaram questões como a diversidade no
processo do envelhecimento feminino, bem como entendiam o gênero como um
dos principais organizadores para a vida social, não apenas durante uma fase,
mas para todo o curso de vida. A ênfase nas relações de poder no processo do
envelhecimento e na velhice em idade avançada, com foco em questões
relevantes para a maioria das mulheres idosas, as teorias feministas acabam por
fornecer importantes subsídios para os órgãos públicos para a elaboração e
implementação de políticas públicas e sociais (SIQUEIRA, 2001).
Durante as duas últimas décadas do século XX, surgiram questões no
movimento feminista que apontam para a análise das relações de poder ligadas à
sexualidade e Rubin (1984) traz considerações sobre o fato de que o feminismo,
em suas premissas, acaba por mistificar as mulheres ao limitar as possibilidades
em relação à sexualidade ao associar sexo e gênero. Agrega-se a isso a
constatação ainda, de uma visão simplista de que o feminismo se caracteriza por
uma “guerra entre os sexos” o que sobrecarrega o ser feminista de uma
conotação negativa, nascida no século 18, compartilhando, portanto, dos valores
iluministas como: a centralidade do sujeito indiviso e universal, a racionalidade, a
igualdade e a liberdade que até hoje se mantém nas sociedades ocidentais. “Essa
concepção de sujeito iluminista corresponde a uma identidade compreendida
como coerente, fixa e que é central na constituição do indivíduo moderno.”
(BONETTI, 2012, p. 41-42).
Para Beauvoir (1967) a “inferioridade” atribuída à mulher e geradora das
desigualdades, tem sua origem na sexualidade, fonte de toda opressão.
Diferentemente do feminismo, onde a ação é grupal em defesa dos direitos da
mulher, no processo de metamorfose a ação é individual e pode acontecer em
atos que rompem com as normas historicamente estabelecidas para o
36
comportamento feminil, desde tempos imemoriais. Enquanto as ações de gênero
pretendem, através de debates públicos desconstruir as diferenças, questionando
os papéis fixados e naturalizados pela sociedade acerca da correspondência
entre o discurso político e as práticas sociais, a metamorfose que transgride se
vale de virtudes, para subverter a noção de “hybris” que na sociedade
democrática ateniense, consistia em uma ação, através da qual se ultrapassa o
“metrion” (justa medida) ocasionando agressão à ordem social estabelecida.
Assim como o marxismo, o feminismo é uma reação à forma como o
Estado burguês se instaurou. As ideias feministas nem sempre foram bem
recebidas no âmbito da luta revolucionária, cujos militantes estavam apegados a
determinismos econômicos. E diz a história mais recente que as mulheres foram à
luta denunciando as barbáries a que foram submetidas: elas foram guilhotinadas,
queimadas e presas. E num movimento libertário “queimaram sutiãs” e foram para
as ruas e as praças exigindo os direitos que lhes eram negados: conquistaram o
direito de votar, de trabalhar, de ser mãe no momento que lhes aprouvesse, enfim
passaram a ter as rédeas da vida em suas mãos, passando por profundas
metamorfoses identitárias.
Ser mulher, ou melhor, ‘se perceber mulher’; uma metamorfose baseada na
vergonha e no remorso (ser objeto) é segundo Beauvoir (1967, p. 39) “uma
estranha experiência, para um indivíduo que se sente como sujeito, autonomia,
transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a
inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora de um,
ser revelado a si mesmo, como alteridade [...].
É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo,
nele se percebe mulher. Envolta na “pureza”, na inocência é num repente que a
menina descobre em si e em derredor os perturbadores mistérios da vida e do
sexo. E nessa transição, a mulher vive um conflito entre sua existência autônoma
e seu “ser-outro”; Ela foi ensinada que para agradar é preciso fazer-se objeto e,
para isso é mister que renuncie à sua autonomia. “Fecha-se assim um círculo
vicioso, pois quanto menos exercer a sua liberdade para compreender, apreender
e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará
afirmar-se como sujeito.” (BEAUVOIR, 1967, p.22).
Essa “passividade” histórica que caracterizou a mulher como
essencialmente “feminina” é um traço que tende a cristalizar-se pela vida adulta
37
caso a mulher não encontre as vias de libertação. As denúncias contundentes nos
anos 70, instituíram um novo feminismo, um novo paradigma contestatório em
relação à identidade feminina.
São corolários desse paradigma a compreensão de que as mulheres compartilham de uma realidade separada e radicalmente distinta da realidade masculina, de que o poder emana dos homens sobre as mulheres, de que os sistemas de dominação são transculturais e trans-históricos e estão imiscuídos aos modos de produção e de reprodução sociais. (BONETTI, 2012, p. 42).
As bandeiras atualmente levantadas por movimentos femininos em várias
partes do mundo são indicativos de que ainda não se conquistou o suficiente. A
Marcha das Vadias do grupo ucraniano Femen, com jovens mulheres protestando
em eventos públicos, com os seios à mostra ou vestidas apenas com lingeries, é
uma demonstração de que o feminismo continua sua luta contra os mais recentes
abusos que se praticam: o racismo, o lesbo-homofobismo, o capitalismo, etc.
Ainda que sujeito a inúmeras críticas, o movimento atual das mulheres anuncia
que:
(...) em tempos que ser mulher não é mais exclusivamente definido pela materialidade da biologia, o corpo feminino ainda é onde se manifesta tanto a opressão quanto a resistência a ela (...) e, insiste em nos fazer ver que é necessário lembrar que o seu corpo é o seu território, sobre o qual nem o Estado e nem as Igrejas devem ter ingerência. (BONETTI, 2012, p. 43).
Esse conjunto de valores entendido como ideologia política, fez emergir a
constituição de uma identidade coletiva baseada na ideia de que todas as
mulheres compartilham, não só experiências de opressão, como interesses em
reverter essa condição calcada no fato de terem nascido mulheres e, portanto,
com as marcas corporais dessa condição. E dessa resistência, o projeto político
feminino as levaria às ações que as emancipariam do poder e da opressão,
criando-se uma nova identidade coletiva para elas “marcada pela liberdade e pela
igualdade, o que redundaria em outra forma de vida em sociedade” (BONETTI,
2012, p. 42). Como se observa, o feminismo investiu a categoria social mulher, a
38
partir de uma concepção identitária assentada no corpo feminino (aparato
biológico).
Esses movimentos mostram, sem dúvida, que há ainda muito a ser feito
inclusive na própria constituição da ideologia política feminista e nas suas formas
de resistência. São necessárias transformações na essência mesma do
movimento para se compreender a persistência histórica das violações às
mulheres e ao feminismo. Para Lypovetsky (2000) com o esgotamento das
ideologias revolucionárias, as mulheres querem tudo, menos apagar sua
feminilidade. O momento já não é de negação dos sinais estéticos da diferença,
mas de reafirmação das identidades.
Ao aceitar a especificidade de seu corpo a mulher, não se atém a biologia, pelo contrário, livra-se da definição dada pelo homem, que tem ignorada sua própria natureza. Na ordem masculina, as mulheres serão sempre aniquiladas por suas características de fora de sua experiência primordial, corporal: seus corpos têm sido reinterpretados e suas experiências reformuladas pelos homens. Somente com a reconstrução de suas identidades com base em suas especificidades biológicas e cultural as mulheres conseguirão tornar-se elas mesmas. (CASTELLS, 1999, p.233).
Podemos considerar que realmente “os tempos são outros”, porém, apesar
do desenvolvimento e das transformações favoráveis ao nivelamento entre os
sexos, ainda existe na contemporaneidade, um conjunto de atribuições
tradicionalmente femininas que continuam a fomentar a visão ‘falologocêntrica’ da
sociedade, com a predominância dos conceitos opostos que sempre
caracterizaram a relação entre o homem e a mulher, razão/emoção;
atividade/passividade; social/individual; público/privado. Apesar de se contar, no
cenário da sociedade contemporânea, com mulheres que romperam com muitos
valores convencionais e preconceitos do passado, continua-se a visualizar certa
prevalência de valores profundamente retrógrados e enraizados.
Na perspectiva da lógica liberadora do individualismo contemporâneo,
como entender que a predominância estética da mulher (foco no corpo) continue
a afirmar-se enquanto as reivindicações igualitárias não cessam de ganhar
terreno? Para Lipovetsky (2000, p. 195) “é impossível, naturalmente, separar a
perenidade da preeminência feminina da beleza do peso de um passado milenar,
da força dos papéis de sexo que mergulham suas raízes na longuíssima duração
39
histórica.” Ou seja, a mulher divide-se entre o desejo legítimo de autonomia e de
realização pessoal e o de agradar a si mesma e aos outros numa constante
vigilância narcísica do corpo. Ainda para o autor a otimização da aparência, todos
os nossos valores tecnoprometeicos, individualistas e consumistas levam a querer
o que há de melhor para si e a recusar a fatalidade dos desfavores físicos e os
estigmas da idade “(...) aconteceu que um homem, atraído pela juventude de sua
silhueta, seguiu-a na rua; no momento em que passou por ela e viu seu rosto, ao
invés de abordá-la, apressou o passo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 354)
A apreensão do caráter histórico da condição feminina e de sua identidade
social, tanto através do teórico quanto do empírico, se faz imprescindível para que
possamos desvendar as implicações dessa imposição à subjetividade feminina e
o sentido de vida estabelecido como padrão, bem como, as mudanças
ocasionadas pelo pluralismo da modernidade que, certamente, possibilitaram
transformações; E com isso, a possibilidade de se reverter o antigo paradigma
“dado como suposto” e que norteou a vida das mulheres ao longo da história.
Não se pode negar que o “alargamento dos horizontes culturais da mulher
urbana, a limitação da natalidade, o recurso crescente ao processo legal da
separação conjugal constituem dados reveladores de que a posição social da
mulher vem sofrendo uma redefinição constante.” (SAFFIOTI, 1976, p.180).
Porém, as liberdades cívicas permanecem abstratas e insuficientes se não forem
acompanhadas da autonomia econômica. As conquistas pelas mulheres do direito
ao voto e ao trabalho assalariado, por exemplo, são insuficientes para se
constituir em autonomia. A mulher sustentada por anos a fio, não se libertou por
ter nas mãos uma cédula de voto; E a simples justaposição dos direitos
adquiridos a um ofício não lhe garantiu a perfeita libertação. A partir da
incorporação e da articulação da categoria de gênero é que se dá um impulso
importante ao processo de questionamento da identidade da mulher fixada no
sexo; elementos como raça, idade, religião, classe, nacionalidade, ocupação,
dentre outros, formam um novo corolário para se pensar a mulher como um ser
multifacetado, um ser político.
Nos dias atuais, a luta pela emancipação da mulher continua. Ao dizer ‘não’
à resignação a mulher se coloca numa posição de independência até então pouco
conhecida no mundo controlado pelos homens e isso pode trazer dificuldades
40
ainda maiores. De qualquer modo, o fato é que os homens começam a
conformar-se com a nova condição feminina.
41
Capítulo 3 De oprimida a empoderada
(...) que a nossa mente... quando seguir seus sentidos e se estender por meio deles através das coisas exteriores, seja dona destas e de si própria. Desse modo, resultará uma unidade de força e de poder em conformidade com ela própria, e nascerá uma razão segura, sem hesitação ou divergência em seu ponto de vista e compreensão, nem em sua convicção. (SÊNECA, 2012, p. 18).
Observa-se que desde os tempos antigos a questão das virtudes se insere
nas preocupações dos filósofos numa busca constante por uma vida plena de
realizações. Para Sêneca (2012, p. 16-17) “A virtude é algo infatigável... você a
encontrará no templo, no fórum, na cúria, vigiando muralhas. Anda coberta de
poeira, queimada de sol e com as mãos cobertas de calos.” E numa perfeita
oposição aos prazeres, as virtudes abrem mão dos mesmos por não ter deles
necessidade. Os antigos recomendavam seguir a vida melhor e não a mais
agradável, de modo que o prazer se torne um aliado e não o guia da vontade
digna e honesta.
“Aretê” que na Grécia antiga significava a coragem e a força para enfrentar
todas as adversidades da vida, passou a incorporar, por volta do século IV a. C,
outros significados, como “dikaiosyne” (justiça) e “sophrosyne” (temperança),
dando a idéia de perfeita adaptação, excelência, conceito esse ligado à noção de
cumprimento do propósito a que o indivíduo se destina, coincidindo, portanto, com
a realização da própria essência dos seres humanos. Se a virtude é fazer aquilo a
que cada um se destina (Sócrates) o que, no plano objetivo é a realização da
própria essência, no plano subjetivo chama-se “Felicidade”. As virtudes pois
usadas como força pessoal no nosso cotidiano, nos permitem sentir vitalizados e
com maior fluidez naquilo que fazemos.
A busca por desenvolver procedimentos efetivos para o fortalecimento das
virtudes pessoais, interessa, sobremaneira às áreas de estudos psicossociais,
uma vez que nessa perspectiva, as investigações científicas poderão subsidiar
com os seus resultados o bem estar subjetivo, a felicidade, a qualidade de vida, a
superação de adversidades, as emoções positivas, a consciência plena, a
42
sabedoria, o curso de interações entre as pessoas e a sua relação com o mundo
natural.
André Comte Sponville (1999), filósofo contemporâneo francês, no livro:
Pequeno Tratado das grandes virtudes selecionou e analisou 18 virtudes e, dentre
elas destaca-se três: (Temperança, Coragem e Justiça). Destaque também para a
Transcendência, da proposta de Martin Seligman – psicologia positiva - virtudes
essas que se considera como fundamentais para as ‘ações transformadoras’ a
que se faz referência quando se fala da condição feminina e o anseio das
mulheres por uma vida livre de opressão. Essas ações serão denominadas
Transgressão. E, em consonância com Saffioti (1976), entende-se que através da
transgressão é possível conseguir a transformação da sociedade no domínio da
sexualidade e de todos os espaços sociais, geradores de opressão. Mas,
transgredir é um processo, e o momento em que se volta para outra direção
marca um novo segmento das histórias individuais e coletivas. O corpo e sua
moral, por sua vez, percebem esse ato como uma “desorientação” (BONDER,
1998). E, nesse processo, a força das virtudes aparece como essencial.
A Temperança, que, em princípio parece não condizer com a necessidade
de mudar o que está posto, uma vez que é a virtude que protege dos excessos,
tem, quando melhor analisada, características que fazem dela, uma virtude
necessária às mulheres emblemáticas. “A temperança é a moderação pela qual
permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos.” Ser
senhor de si é ter independência (autarkéia). E, quando se absorve essa
realidade de si, torna-se possível anular, ou pelo menos não aceitar qualquer
coisa que esteja em dissonância com isso “[...] fazer da virtude escrava do prazer
é coisa de uma alma incapaz de algo maior. Que a virtude seja quem leva o
estandarte. Dos prazeres, devemos fazer uso moderado” (SÊNECA, 2012, p.18).
A Coragem é a virtude mais admirada e estimada de um ponto de vista
psicológico e sociológico. Quando colocada a serviço de outrem, essa virtude
ganha status de moral, pois vai além dos interesses egoístas. “Coragem para
durar e agüentar, coragem para viver e para morrer, coragem para suportar, para
combater, para enfrentar, para resistir, para perseverar.” (SPONVILLE, 1999,
p.60) Eis a virtude necessária para a mulher que deseja e se esforça por manter-
se viva para alçar os vôos da liberdade. A coragem é a própria vida: “[...] numa
43
ânsia de vida eu abria o vôo nas asas impossíveis do sonho. (CORA CORALINA,
1998. p.73-76)
A Justiça é, conforme Platão o que reserva a cada um sua parte, seu lugar,
sua função, preservando assim a harmonia hierarquizada do conjunto. Quando
associada à generosidade, é a consciência da liberdade de si mesmo com
responsabilidade e com a disposição de perseverar no ser, o mais possível, o
melhor possível, para agir e viver.
E, a Transcendência que é a virtude que faz conectar com a amplitude do
universo e provê o ser humano de um sentido para a vida. São atributos dessa
virtude pessoal: a apreciação da beleza e da excelência, a gratidão, o otimismo, o
humor e a espiritualidade. Agir por virtude é o mesmo que viver e conservar-se; é
buscar o que se considera útil para si próprio; “(...) não há nada em que o homem
livre pense menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da
morte mas da vida” (SPINOZA, 2012, p. 343) – Eu acho a vida linda (...) eu
adoooro viver! (ZOÉ, 2014)
A Metamorfose humana, do ponto de vista da transgressão, assume um
caráter que implica numa prática como não “obediência mecânica às regras”; e na
perspectiva do gênero fomenta o debate acerca da consonância entre o discurso
social e sua prática (BOURDIEU, 2012). Transgressão é, pois, a ação humana de
atravessar, exceder, ultrapassar noções que pressupõem a existências de normas
a demarcar limites. E a mulher transgressora é o agente solitário que opera a
superação de si mesma na ruptura com o mundo que a cerca para criar o para –
si, fonte de criação de um mundo próprio.
As mulheres atenienses, inspiradas pelas heroínas trágicas (Ésquilo),
transgrediam, por meio de estratégias produzidas pelo “habitus”, ao modelo
comportamental instituído na democracia ateniense, onde era necessária a
integridade e a preservação do “Oikos”. Também as mulheres adultas do século
passado, as “velhas em idade avançada” da atualidade, valendo-se das virtudes
adquiridas, talvez, em razão do sofrimento causado pela opressão, às vezes
transgridem na sua condição de sexualmente dominadas, desvencilhando-se das
amarras que lhes foram impostas, transformando-se em mulheres emblemáticas:
mulheres à frente do seu tempo, destemidas e indeterminadas. Foi através
dessas características que essas mulheres superaram as mais variadas
44
adversidades existentes ao longo da vida, pois as forças e virtudes do caráter são
capacidades pessoais que, ao serem colocadas nas práticas cotidianas, trazem
vitalidade e fazem aqueles que delas se utilizam, seres profundamente
recompensados pelos resultados obtidos. Elas os empoderam. O ser
emblemático, na verdade é aquele que age no sentido de obter o que se
convencionou chamar de empoderamento.
Emblemático, segundo o dicionário, se define como “fato de grande
significado social e histórico; fato que de tão original na descrição, serve de
exemplo a diversas outras situações.”(EMBLEMÁTICO, 2009). Além de designar
fato, emblemático se refere também a pessoas, situações, lugar, sempre com a
conotação de algo extraordinário. Etimologicamente, a palavra vem de
“Emblema”, aquilo que rotula ou representa um cenário ou que define uma
característica como padrão, modelo. Dos postulados de Sponville (1999); na
definição de Spinoza (2012) de coragem como sendo a “firmeza de alma”
(animositas) e de que toda coragem é feita de vontade formula-se uma definição
de mulheres emblemáticas, como sendo: Aquelas que se destacam por
apresentarem, em suas ações cotidianas, a capacidade de transgredir, gerando
novos lugares e novas formas de ser e estar no mundo, demonstrando coragem
para viver e morrer, para suportar, para enfrentar, para combater, para resistir e
perseverar.
O conceito de empoderamento, por sua vez, surgiu nos anos 1970 com os
movimentos pelos direitos civis, nos Estados Unidos e pode ser definido como “o
mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam
controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam
consciência da sua habilidade e competência para produzir e criar e gerir.”
(COSTA, 2007, p. 7).
O movimento de mulheres, ainda nos anos 1970, começou a utilizar-se do
termo, compreendendo o empoderamento como a alteração radical dos
processos e estruturas que reduzem a posição subordinada das mulheres como
gênero. As mulheres tornar-se-iam empoderadas através da tomada de decisões
coletivas e de mudanças individuais. Segundo Stromquist (1997) o processo de
avanço das mulheres se dá através de 5 níveis de igualdade: Bem estar, acesso
45
aos recursos, conscientização, participação e controle; níveis esses que
promoverão maior igualdade e maior empoderamento.
Em meios aos estudos acerca dessa temática e que não estejam,
necessariamente, relacionados ao feminismo, observa-se vertentes comuns que
consideram que uma perfeita definição de empoderamento deve incluir os
componentes cognitivos, psicológicos, políticos e econômicos, em que:
O Cognitivo: compreensão sobre sua subordinação assim como suas
causas em níveis micro e macro da sociedade. Inclui conhecimentos sobre as
relações e ideologias de gênero, sexualidade, direitos legais, etc.
O Psicológico: sentimentos que podem pôr em prática em nível pessoal e
social para melhorar sua condição; ênfase na crença de que podem ter êxito nos
seus esforços por mudanças.
O Político: habilidade para analisar o meio circundante em termos políticos;
capacidade para organizar e promover mudanças sociais.
O Econômico: supõe independência econômica; esse é o componente
fundamental de apoio ao componente psicológico.
Representando um desafio ao poder patriarcal, que ainda se faz presente
em alguns segmentos da sociedade atual, o empoderamento feminino significa
uma drástica mudança na dominação dos homens sobre as mulheres, a elas
garantindo autonomia no que se refere ao controle de seus corpos, da sua
sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como um “basta” ao abuso físico e a
violação sem castigo e as decisões unilaterais que afetam toda a sociedade.
O empoderamento possibilita a conquista de poder e dignidade a quem
desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e
controlar o seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro. Nos
dizeres de Pereira (2009):
O empoderamento possibilita tanto a aquisição da emancipação individual, quanto à consciência coletiva necessária para a superação da ‘dependência social e dominação política’. Enfim, superação da condição de desempoderamento das populações pobres [...]. (PEREIRA, 2009).
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Em relação ao envelhecimento feminino, o empoderamento implica no
rompimento com a lógica assistencialista dominante quando a relação passa a ser
de parceria e não hierarquizada. Traz, portanto, à tona uma nova concepção de
poder assumindo formas democráticas; construindo novos mecanismos de
responsabilidades coletivas, de tomada de decisões e responsabilidades
compartidas, no sentido de superar a falta de participação do Estado na vida
social brasileira [um reflexo da política neoliberal] da contemporaneidade,
marcada pela tendência ao individualismo e ao isolacionismo.
Dada a extensão dessa conquista o empoderamento pode ser comparado
à Epifania, descontado, certamente, o seu caráter religioso, “I Just a epiphany”
[pensamento único, indescritível]. O termo vem do grego “epiphanéia” e significa
aparição. No contexto filosófico pode ser entendido como uma sensação profunda
de realização no sentido de compreender a essência das coisas, tudo o que pode
estar no âmago das coisas ou das pessoas, isto é, poder considerar que a partir
de agora sente como solucionado, completado, aquilo que estava tão difícil de
conseguir. O empoderamento feminino traz à tona então, uma nova concepção de
poder, assumindo formas democráticas, construindo novos mecanismos de
responsabilidades individuais e coletivas.
Desse movimento que rompe com o convencional, de forma
individualizada, emerge uma identidade pós-convencional, ou seja, a mulher que
se revolta contra o jugo masculino, não para se igualar a ele e sim, dispondo-se a
assumir novos personagens, novos papéis, nova identidade numa articulação
entre as diferenças. Mulheres detentoras desse perfil, emblemáticas, portanto,
são aquelas que romperam com o convencional (de forma muito particular) numa
ação associada às virtudes como coragem, temperança e justiça, em aspectos da
vida cotidiana carregados de preconceitos, movendo-as não só para o ato
transgressor como também para a capacidade de neutralizar os efeitos, se,
nocivos, desse mesmo ato.
Essa mulher, simples e humilde, deu mais uma vez uma volta na vida. Transformou-se completamente. Hoje aos 89 anos, é uma pessoa alegre, bem humorada, saudável. Mora sozinha, é independente e descobriu o seu maior prazer: dançar. Vai ao clube três vezes por semana e dança por horas a fio, sem cansaço; tem seus amigos que dançam com ela por gosto e não para agradar uma senhora de idade. (FERNANDES, 2008, p. 79)
47
Lypovetsky (2000) em “A terceira mulher Permanência e Revolução do
Feminino” fazendo um percurso histórico desde a Grécia antiga, apresenta em
sua obra a figura da mulher reconhecida para procriar: a Primeira mulher,
perpassando pela mulher enaltecida: a Segunda mulher, para chegar até a mulher
atual que tem governo de si: a Terceira mulher. Evidencia-se, no estudo do autor,
ainda que indiretamente, os movimentos identitários que a mulher vivenciou ao
longo da história.
No período chamado clássico (século V e IV a. C) a “polis” de Atenas
instituiu um modelo de comportamento feminino que deveria ser seguido pelas
mulheres dos cidadãos atenienses, filhas, mães, enfim, as mulheres “bem
nascidas.” Esse modelo, fruto da consolidação da democracia, enumerava um
conjunto de virtudes a serem seguidas pelas mulheres. Era o modelo “Mélissa”
que representava a mulher ideal, que numa curiosa comparação com a abelha
prescrevia uma vida pura e casta, com atividade sexual discreta, hostilidade aos
odores, à sedução e exigia fidelidade conjugal (SILVA, 2011).
A adoção dessa prática segregava a mulher ao papel de reprodutora de
cidadãos, isto é, de herdeiros varões dos chefes de família. Essa lógica de sub-
valorização aparentemente era minimizada pela maternidade, afinal ela era capaz
de gerar a vida. Porém segundo Lypovetsky (2000) essa capacidade ainda
remetia à inferioridade já que a mulher era vista como mera depositária de uma
semente que o homem criou e deixou dentro dela.
Inspiradas pelas heroínas trágicas da literatura da época, as mulheres
atenienses transgrediam, por meio de estratégias produzidas pelo “habitus”, a
este modelo de comportamento feminil, e por isso, eram consideradas como
ardilosas, dissimuladas, dissolutas e perigosas. Dessa mística que lhe foi
atribuída, merece destaque o fato de que isso fez nascer a idéia de que as
mulheres eram detentoras de poderes ocultos, selvagens, místicos e, portanto
irracionais; como a lógica masculina não alcançava essa realidade, instalou-se
um temor, até certo ponto justificável, porque apesar de marginal, o poder das
mulheres no mundo antigo, foi imenso. Assim, o controle e o domínio do poder
feminino se fazia necessário, para a manutenção da ordem social.
48
Dos mitos selvagens ao relato do Gênesis, domina a temática da mulher, potência misteriosa e maléfica. Elemento obscuro e diabólico, ser que se serve de encantos e astúcias, a mulher é associada às potências do mal e do caos, aos atos de magia e de feitiçaria, às forças que agridem a ordem social [...].(LYPOVETSKY, 2000, p. 233).
De Aristófanes a Sêneca, de Plauto aos pregadores cristãos, domina essa
tradição da mulher como um mal necessário a ser confinada nas atividades sem
brilho, ser inferior e sistematicamente desvalorizado e desprezado pelos homens.
Aí se instaura o modelo da primeira mulher.
Na segunda metade da Idade média, o humanismo da Renascença, trouxe
uma nova significação para o feminino, promovendo uma ruptura com as idéias
diabólicas tradicionais acerca da primeira mulher. Fazendo emergir uma nova
significação do feminino.
Nenhuma outra época no passado tanto representou, alçou ao pináculo a beleza feminina, nenhuma outra lhe conferiu tal importância. Os encantos femininos alimentam os debates filosóficos, inspiram os pintores e os poetas; os inflamados hinos à beleza proliferam, ao mesmo tempo que se faz um esforço, com novo vigor, para a definir, normalizar, classificar. (LYPOVETSKY, 2000, p. 117).
Nesse contexto, a sublimação da mulher, o culto da bela amada pelos
homens, a valorização da sua beleza e sensibilidade as fazem ser reconhecidas
como mães, amantes; Louvadas e adoradas, recebem a alcunha de “deusas do
lar”, porém, sem nenhum poder, de fato. O seu mundo continuava a ser o do
privado e o controle masculino as cerceava do poder financeiro e intelectual. Sem
vontade própria ou liberdade, tudo permanecia num patamar de inferioridade. O
sentido da vida dessa segunda mulher de Lypovetsky (2000) era o da “mulher que
sonha, desapossada de si, aos sonhos de posse dos homens.”
A terceira mulher, segundo Lypovetsky (2000) a mulher indeterminada,
rompe, radicalmente, com o modelo dado anteriormente e que determinou o
alcance do comportamento feminino, sempre atrelado e subjugado pelo poder dos
homens. “De agora em diante é um novo modelo que comanda o lugar e o destino
social do feminino. Novo modelo que se caracteriza por sua autonomização em
relação à influência tradicional exercida pelo homem sobre as definições e
significações imaginário-sociais da mulher.”(LYPOVETSKY, 2000, P. 236)
49
Terminada a era dos caminhos “pré-traçados” (casamento, tarefas
subalternas, etc.) eis que surge diante de nós, uma era de imprevisibilidade e de
abertura estrutural para o destino e o sentido da vida para a mulher. Agora, a
desconstrução do ideal da mulher no lar, legitimidade dos estudos e do trabalho
feminino, direito a voto, ao ‘descasamento’, liberdade sexual, controle da
procriação: manifestações do acesso das mulheres à inteira disposição de si em
todas as esferas da existência, ou seja, a autonomia. São esses, os dispositivos
que constroem o modelo da “terceira mulher” dando sentido à sua vida,
imprimindo-lhe uma nova identidade.
Embora instituindo uma ruptura de enorme importância na história das
mulheres, o modelo da terceira mulher de Lypovetsky (2000), ou a mulher
indeterminada ou ainda a mulher emblemática, esse modelo não coincide com o
desaparecimento das desigualdades entre os sexos. Porém, é importante
destacar que os dois gêneros nunca estiveram em uma situação tão similar no
que se refere à edificação do si, pois “o novo não reside no advento de um
universo unissex, mas em uma sociedade ‘aberta’, com normas plurais e
seletivas, acompanhadas de estratégias heterogêneas, com margens de
liberdade e de indeterminação. “Ali onde as determinações eram mecanicistas, há
lugar agora para escolhas e arbitragens individuais” (LYPOVETSKY, 2000,
p.239).
A liberdade de autoconduzir-se que agora se aplica aos dois gêneros,
ainda se constrói com base em normas e papéis sociais diferenciados. Portanto,
não há evidências concretas de que a sociedade esteja destinada a um futuro
desaparecimento dessa separação dos papéis masculinos e feminino. Ou seja, há
um misto de avanço igualitário numa continuidade não igualitária.
Porém, o empoderamento e a transgressão feminina possibilitam a
aquisição da emancipação individual e também da consciência coletiva
necessária para a superação da dependência social e dominação política. Essa
conquista devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto da cidadania, e
principalmente a liberdade para decidir e controlar o seu próprio destino com
responsabilidade e respeito ao outro. Em relação ao envelhecimento, isso implica,
portanto, no rompimento com a lógica assistencial dominante; a relação passa a
ser de parceria e não de hierarquia. “A fonte da juventude chama-se ‘mudança’; e
50
quem dá brilho ao olhar é a vida que a gente optou por levar. Olhe-se no espelho
[...]. (LUFT, 2010).
51
Capítulo 4 Mulheres no Brasil
Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não sofre mais ser tratada como um objeto ou um instrumento reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social”- João XXIII - Pacem in Terris. (apud SAFFIOTI, 1976, p. 94, 99, 102, 104);
Ser mulher, como discutido, é uma construção social, consolidada a partir
das relações interpessoais realizadas no tempo, espaço e contexto social no qual
está inserida. Quando se fala em história, história das mulheres, “não há um fio
condutor capaz de dar inteligibilidade... nenhuma ligação intrínseca entre os
acontecimentos, pois não há uma história única, mas inúmeras histórias
particulares... ao invés da grande narrativa, há uma pluralidade de narrativas não
passíveis de serem apreendidas sob uma única lógica, uma lei única.” (DANTAS,
2004, p. 184).
Neste trabalho, a história a ser desvendada é a das mulheres nascidas no
início do século passado, inseridas numa sociedade patriarcal e submetidas às
normas de conduta criadas em tempos imemoriais. Fortalecidas pela ação
impositiva da igreja católica e, de certa forma, aceita pela sociedade de classes,
essas normas não abriam espaços para se discutir a questão do poder do homem
sobre a mulher; Havia um entendimento tácito de que a solidariedade de classe
era suficiente para quebrar a subordinação. Diante da complexidade do tema e
em função do objetivo do trabalho, a construção do patriarcado em seus aspectos
mais teóricos, não será abordada. Porém, enquanto sistema de valores sobre os
quais se formou a sociedade brasileira, e que estão nas bases dos processos de
significação das mulheres longevas, fez-se indispensável um breve resgate.
Bassit (2004) enfatiza que as mulheres nascidas no Brasil entre os anos
1920 e 1930 revelam uma maturidade construída a partir de valores como a
família de origem, o ideal de casamento e a constituição de suas próprias
famílias, consagradas através do nascimento dos filhos. Barros (2007a, p. 150)
enfatiza: “Para as mulheres que hoje têm mais de 60 anos, a família foi quase
sempre o ponto de referência principal. Poucas têm alguma profissão ou atuam
52
como profissionais, e a velhice é uma continuação desse predomínio doméstico,
privado [...].”
A maneira pela qual se organizou a família patriarcal no Brasil, bem como
as diferenças de grau de liberdade e de posição social conferidas ao homem e à
mulher sedimentou o casamento como a única “carreira” a ser seguida,
conferindo-lhe o papel de esposa e mãe. Quando por qualquer impedimento ou
mesmo atos de rebeldia por parte da mulher, a reclusão em conventos
representava uma medida considerada salutar, quando então, novos papéis,
novas identidades lhes eram conferidas pelo poder masculino. Del Priore (2012)
destaca, em sua obra, a complexidade e a diversidade das experiências e das
realizações vivenciadas pelas mulheres do século passado e o faz “erguendo o
véu que cobre sua intimidade, os comportamentos da vida diária, as formas de
violência [...] os sutis mecanismos de resistência dos quais lançam mão [...]” (DEL
PRIORE, 2012, p. 9)
Para Saffioti (1976), a posição da Igreja Católica em relação à mulher, na
formação da sociedade brasileira, reflete, de um lado, uma doutrina religiosa na
qual ela sempre figurou como ser secundário e suspeito e, de outro, seus
interesses investidos na ordem vigente nas sociedades de classe, mantinham,
embora disfarçadamente, a mulher submissa ao homem. Não há dúvidas de que
as mulheres foram infinitamente mais passivas e entregues ao homem, servis e
humilhadas nos países católicos, portanto para se compreender a vida das
mulheres brasileiras submetidas a essa lógica machista e religiosa, são
necessárias algumas considerações. Um breve debruçar-se sobre as Encíclicas e
documentos papais das décadas de 1930 a 60 atesta que a percepção dos
problemas da mulher reflete bem esse pensamento sobre a condição feminina em
geral, e com reflexos importantes para a sociedade brasileira da época.
A sujeição da mulher é, pois, princípio inatacável e de validade eterna para a Igreja” – Pio XI – Casti Connubii [31-12-1930].
É como mãe e como esposa que ela pode realizar-se na terra, assim como somente como mãe ela salvará sua alma do terrível pecado que pesa sobre seu destino” – Pio XII – discurso à Juventude Feminina da Ação Católica [24-4-1943]
Condena a limitação da natalidade como uma técnica imprópria aos seres racionais. Muito mais racional seria... explorar rigorosamente as potencialidades da natureza no sentido de
53
extrair dela o necessário a sobrevivência de uma população cada vez mais numerosa- João XXIII – Mater et Magistra [15-5-1961]
Essa rápida apresentação de trechos extraídos de Saffioti (1976), não
deixa dúvidas quanto ao posicionamento da igreja católica na questão feminina na
formação da sociedade brasileira. Ressalta-se que apenas nos dizeres de João
XXIII (epígrafe deste capítulo), pode-se observar um posicionamento sem a
ênfase na moral, delineando um pensamento que exige uma ampliação das
atividades racionais do homem, “se não no terreno das relações conjugais, pelo
menos no terreno econômico, podendo este ser, no caso, considerado um meio
para a realização da família cristã” (SAFFIOTI, 1976, p. 103).
O desenvolvimento da sociedade brasileira deu-se, principalmente nas
primeiras formações sociais (Colônia e no Império) de modo a acatar ‘cegamente’
os ditames da Igreja Católica. A presença dos jesuítas, longe de oferecer
possibilidades de subversão ao poder discricionário, ensinou a mulher a
submeter-se à Igreja e ao marido. Saffioti (1976, p. 188) enfatiza que o clero não
só concordava com a amoralidade reinante nas senzalas como também tirava
proveito dessa situação, enquanto à mulher impunha “a filosofia da negação dos
prazeres terrenos em benefício do bem-estar na vida post-mortem.”
Já no século XIX, com o processo de urbanização, a vida da mulher
passou por algumas modificações. Os contatos sociais tornaram-se mais
plausíveis, com as festas nas igrejas, nos teatros e até mesmo, nos “saraus”
caseiros o que fez com que a dinâmica da família patriarcal perdesse parte da sua
rigidez, permitindo à mulher desenvolver certo traquejo social.
Essa interiorização da vida doméstica [...] deu-se ao mesmo tempo em que as casas mais ricas se abriam para uma espécie de apreciação pública por parte de um círculo restrito de familiares, parentes, amigos. As salas de visita e os salões – espaços intermediários entre o lar e a rua – eram abertos de tempos em tempos para a realização de saraus noturnos, jantares e festas. (D’Incão, 2012 p. 227)
Porém, ainda não se cuidava da sua instrução formal. Mesmo o movimento
abolicionista que fomentou os meios letrados, não permitiu à mulher brasileira
uma oportunidade para discutir a sua condição existencial “não ofereceu, assim,
nem mesmo o eco para as manifestações da ideologia liberal que, embora
54
representasse uma forma utópica de consciência, “dessacralizava” várias áreas
da vida social da nação” (SAFFIOTI, 1976, p. 170).
Pensando, então, nas mulheres brasileiras que nasceram na primeira
metade do século XX e viveram sua condição de ‘ser ativo e produtivo’, segundo
os ditames do sistema capitalista com valores assentados na sociedade
patriarcal, (muitas vivas e produtivas no século em andamento), onde a condição
feminina disponibilizava pouquíssimas alternativas às mulheres, o que pensar
sobre identidade-metamorfose-emancipação? Ser esposa e mãe representava a
única oportunidade de uma moça transformar-se em mulher, ter certa autonomia
podendo exercer a sua sexualidade. Caso isso não ocorresse em tempo
desejável (entre 16 e 20 anos) restava a carreira do magistério primário
(denominação da época para os primeiros anos de escolarização) ou viver “de
favor”, como agregada em casa de irmãos, tios ou até mesmo em casas
estranhas, como as únicas alternativas consideradas adequadas para elas. E,
assim, ao interiorizarem aquilo que lhes era atribuído, essa atividade “coisificava-
se” sob a forma de um personagem que passava a existir independentemente da
atividade que a originou (CIAMPA, 1990).
Essas forças operam tão vigorosamente que, para não permanecer solteira, a moça de idade superior àquela considerada ideal para o casamento da mulher chega a romper o padrão de recato que a tradição lhe impõe, assumindo a iniciativa nas conquistas amorosas [...] mesmo consciente de que a vida de casada é penosa, a mulher não desiste de encontrar um marido, que lhe permita adquirir aquela situação definida social e economicamente segura. Se o elemento masculino solteiro rareia, ela lança mão do homem casado, pois uma união livre com este é reputada como condição superior à de celibatária. (SAFFIOTI, 1976, p. 183).
Assim, obedientes aos seus maridos durante toda a vida, as mulheres, as
velhas de hoje, desempenharam exemplarmente, o papel que lhes era prescrito: o
de esposa e mãe. Aprisionadas aos domínios do lar, elas se dedicaram a cuidar
da casa, do marido e dos filhos; renunciando aos seus sonhos e sofrendo suas
dores: este sempre foi o seu emprego.
A partir da segunda metade do século XIX mudanças sensíveis foram
acontecendo no cenário da família brasileira e com a industrialização
impulsionada a partir dos anos 1930, a sociedade patriarcal passou por
55
transformações que alteraram, de modo significativo, a organização da família, e
consequentemente promoveram mudanças também, no mundo da mulher; não
porque ela tivesse passado a desempenhar funções econômicas, mas em virtude
de se terem alterado profundamente os seus papéis, no mundo econômico. “O
trabalho nas fábricas, lojas, escritórios rompeu o isolamento em que vivia grande
parte das mulheres, alterando, pois, sua postura diante do mundo exterior,
proporcionando-lhes o desenvolvimento de novas formas de identidade”
(SAFFIOTI, 1976, p. 179).
Mesmo diante de transformações importantes e de movimentos da mulher
no sentido de “apoderar-se” da situação que lhe fosse mais conveniente, a
sociedade ainda se mantinha retrógada em relação à educação feminina.
Importante ressaltar as escolas protestantes no sentido de proporcionar educação
formal à mulher brasileira. A afinidade mantida pelo protestantismo com o espírito
científico derivava da austeridade de seus procedimentos mentais e de sua
tendência à analise; e isso conferia ao movimento protestante o direito de
coexistência com as ideias republicanas e lhe permitia um florescimento no novo
regime. O princípio da laicidade do ensino que a constituição da República
consagrou, libertou a instrução oficial das amarras da igreja católica, e essa
característica será observada também no século XX, principalmente na primeira
metade, quando proliferam pelo país as escolas protestantes, os internatos e os
pensionatos para estudantes e professores.
Vale lembrar que essa desigualdade marcante entre os sexos e o poder do
homem sobre a mulher, exaustivamente discutida nas teorias e perspectivas
feministas, certamente promoveram importantes diferenças quanto ao acesso das
mulheres aos bens materiais e aos cuidados com a saúde, a educação e o
trabalho. E isso, pode significar a diferença entre viver a velhice em idade
avançada com sofrimento ou com bem-estar e qualidade de vida.
O enfoque das Ciências críticas ao incorporar um interesse emancipatório
tem como referência a busca pela reflexão e com a constante preocupação em
revelar e tentar reverter formas de dominação e exploração. E o trabalho tem sido
referenciado por inúmeros estudiosos como o elemento essencial para o
estabelecimento da igualdade entre o homem e a mulher. “Só o trabalho pode
assegurar-lhe uma liberdade concreta” afirma Beauvoir (1967, p.449). Como
56
personagem que produz, a mulher deixa de ser dependente do homem
promovendo um “desmoronamento” do modelo de vida centrado nos interesses
masculinos. Desse modo ela afirma-se concretamente enquanto sujeito e tem a
oportunidade de projetar a sua própria vida.
Almeida (2005) afirma que a luta pela emancipação implica na negação do
controle do mundo da vida pelo sistema econômico (mercado) e pelo poder
burocrático (Estado; Instituições) controle este realizado em nome de uma
racionalidade instrumental e preocupado tanto com a funcionalidade destas
esferas quanto com a preservação de suas normas e valores. A identidade seja
individual ou coletiva, é sempre a busca de emancipação que nos humanize; é,
pois, a história da nossa metamorfose, afirma Ciampa (1987). Porém, a
emancipação que dá um sentido ético à metamorfose pode ser impedida ou
prejudicada tanto pela violência quanto pela coerção numa inversão da
metamorfose em desumanização; metamorfose essa, em última análise
provocada de modo heterônomo, por um poder interiorizado subjetivamente e –
ou apenas – exteriorizado objetivamente.
Para Habermas (1990), o papel profissional é o mais importante veículo do
esboço de uma carreira biográfica criadora de unidade. Porém, acredita-se que
essa condição de trabalhadora e produtora de bens, não seja suficiente para a
autonomia e emancipação feminina. Mesmo inclusa no mundo do trabalho, numa
aparente igualdade com o homem, a mulher não se vê destituída do mundo
feminino do lar - seu espaço tradicional. A dupla jornada de trabalho acarreta uma
sobrecarga considerável, bem como exige novos arranjos familiares para a
manutenção da ordem e a educação dos filhos. Poucas recebem, da sociedade e
do marido, a ajuda necessária para elevá-las a um plano de igualdade com os
homens. Ou seja, é importante à mulher, sob qualquer perspectiva, o papel
definido em tempos imemoriais, o de “rainha do lar.”
A história evidencia que esse engajamento no trabalho, consolidou-se há
apenas um século. Com a instauração da Revolução industrial e mais tarde com a
Primeira Guerra Mundial, as mulheres foram admitidas para substituir a mão de
obra masculina, sendo posteriormente reconduzidas ao lugar que a tradição lhes
reservara: o lar. Porém agora, detentoras de novos saberes e tendo
57
experimentado certa autonomia financeira, a volta ao velho papel feminino
começou a incomodar.
Paulatinamente, e com o surgimento do movimento feminista, as mulheres
foram ganhando espaço e ingressaram realmente no mundo do trabalho, tanto
nas organizações quanto nos meios acadêmicos e essa condição lhes favoreceu
o encaminhamento capaz de assegurar a independência financeira, como o
primeiro e decisivo passo para uma verdadeira autonomia. As mulheres
corajosamente romperam com inúmeras formas de opressão e “invadiram as
universidades, criticaram a ciência, inventaram novas teorias e campos de estudo,
invadiram o mercado de trabalho, criaram leis para se protegerem contra a
violência e passaram a ocupar altos cargos políticos” (BONETTI, 2012, p. 41).
O movimento feminista longe de ser caracterizado como pouco efetivo, não
teve, infelizmente, alcance universal. E, em boa parte do mundo e mesmo nas
imediações dos “nossos quintais” são cometidos atos de violência contra a
mulher, com o propósito de se perpetuar o controle masculino sobre a
sexualidade feminina “(...) pede-se à mulher, para que realize sua feminilidade,
que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie as suas reivindicações de sujeito
soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação da mulher
libertada” (BEAUVOIR, 1867, p. 452)
Há, porém, segundo a autora uma categoria de mulheres que se
beneficiam da feminilidade que, longe de as prejudicar as favorece e fortalece.
São aquelas, que procuram superar, pela expressão artística, o próprio dado que
constituem: as atrizes, as dançarinas, as cantoras. À custa de muita luta e
discriminações, foram elas, as únicas que tiveram uma independência concreta
no seio da sociedade e que, ainda hoje, ocupam um lugar privilegiado. O
exercício da arte parece representar uma possibilidade concreta de expressão do
sujeito, e a história das brasileiras apresenta símbolos expressivos de mulheres
que conseguiram impor-se pela sua arte.
Também as mulheres instruídas, ambiciosas e dotadas de virtudes, tais
como: coragem determinação, dentre outras, romperam com o convencional e
provaram sua competência para ocupações tradicionalmente tidas como
masculinas. A virtude, já dizia Aristóteles é uma maneira de ser, mas adquirida e
duradoura. E segundo Sponville (1999, p. 9) “a virtude ocorre, assim, no
58
cruzamento da hominização (como fato biológico) e da humanização (como
exigência cultural); é, pois, nossa maneira de ser e de agir humanamente”
Diante dessas considerações, é mister reconhecer que ser um ser humano
é infinitamente mais importante do que todas as singularidades que distinguem os
seres humanos; não é nunca o dado que confere superioridades: a “virtude”,
como diziam os antigos, define-se ao nível do “que depende de nós” (BEAUVOIR,
1967, p. 495). A virtude é pois uma força que age, ou que pode agir, uma força
que vem de dentro, portanto, virtude é poder, mas poder específico. A virtude de
um ser é o que constitui seu valor. Definida como sendo a própria essência do ser
humano para o seu ‘fazer’, como já se comentou, a virtude coloca-se como
condição para o empoderamento feminino e o rompimento com o convencional.
A realidade atual dos idosos no Brasil já permite pensar a velhice em
“idade avançada” de um ponto de vista mais plural e menos segregacionista.
Estamos mais abertos para reconhecer outras vias para a realização humana,
numa crítica mais madura do ‘homem unidimensional’ que fez do trabalho para
sobreviver seu único objetivo de vida – identidade funcional. Essa perspectiva, em
andamento, propicia a criação de novos espaços de expressão a serem
desfrutados, com a estruturação de novas identidades e novo sentido para a vida.
60
Capítulo 1 Diversas visões sobre mulheres velhas
Uma questão se impõe imediatamente. A velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo. Em que consiste esse processo? Em outras palavras, o que é envelhecer? (BEAUVOIR, 1970, p. 17)
Conceituar a velhice constitui um trabalho árduo. Há quem afirme que “o
conceito de velhice envelheceu” e que as denominações contidas nos dicionários
já não são suficientes para se definir um velho, uma velha. Trata-se, portanto, de
um conceito genérico que inclui pessoas com 60 anos ou mais e que passou a
existir a partir do século XVIII, com o desenvolvimento da ciência. A Organização
Mundial de Saúde (OMS) reconhece atualmente, não só o idoso, como também
criou uma nova terminologia, “muito idoso” ou “very old”, para designar o indivíduo
que chega aos 80 anos ou mais.
[...] Venho do século passado Pertenço a uma geração Ponte, entre a libertação dos escravos e o trabalhador livre Entre a Monarquia caída e a República que se instalava [...] (CORA CORALINA, 1998, p.73-76)
Estudiosos da questão são unânimes em afirmar que a idade cronológica
por si só não explica satisfatoriamente o processo e a vivência do
envelhecimento, mesmo porque é difícil determinar quando uma pessoa começa
a envelhecer. Segundo Pereira (2005) categorias de idade são construções
sociais que atendem a necessidades específicas de contextos sociais distintos,
funcionando como verdadeiros mecanismos de distribuição de poder ou de
prestígio. De acordo com Neri (2001), os estágios de desenvolvimento são de
origem sociogenética e não ontogenética. A sociedade constrói cursos de vida na
medida em que prescreve expectativas e normas de comportamentos apropriados
para as diferentes faixas etárias, com base em eventos marcadores de natureza
biológica e social, e na medida em que essas normas são internalizadas pelas
pessoas e instituições sociais.
61
Numa busca pela compreensão mais profunda sobre a questão, diferentes
autores trazem os conceitos de idade psicológica e social que estão inter-
relacionadas e focadas, em diferentes e complementares aspectos da vida. Para
Pereira (2005), a ‘idade psicológica’ seria a forma como cada indivíduo avalia, em
si mesmo, a presença ou não de marcadores biológicos, sociais e psicológicos
considerados “adequados” para a idade na qual se situa, com base em
mecanismos de comparação social mediados por essas normas etárias. Já o
conceito de ‘idade social’ pode ser entendido como o grau de adequação de um
indivíduo aos papéis e comportamentos que a sociedade espera que sejam
desenvolvidos por pessoas de determinadas faixas etárias, nas respectivas fases
da vida.
A isso atrela-se o conceito de ‘envelhecimento social’ que estaria vinculado
ao processo de mudanças que ocorre nos papéis sociais e nos comportamentos
dos indivíduos com o avançar da idade. Ressalta-se que a idade e o
envelhecimento social são influenciados, preponderantemente, por fatores
culturais e do contexto histórico-social em que o indivíduo está inserido. No caso
feminino, a ‘idade social’ (menarca, tempo para casar, ter filhos, término do
período fértil) e outros indicadores quando somados à idade cronológica, podem
resultar em determinantes das profundas diferenças entre as mulheres velhas.
A contemporaneidade está por exigir novas perspectivas que, por sua vez,
exigem mudanças no sentido de se obter outra compreensão sobre o
envelhecimento humano. São, portanto, mudanças paradigmáticas que não
ocorrem no vácuo, mas, que representam respostas efetivas aos fenômenos
sociais e culturais, ao espírito da época e até mesmo às motivações pessoais dos
cientistas vinculados a determinadas áreas do saber.
É para processo de descronolização que se voltam as pesquisas interessadas na identificação das rupturas com a modernidade que caracterizam a experiência contemporânea. Trata-se de perguntar se a idéia de papéis seqüenciada, extremamente divididos por idades, captaria a realidade social de uma sociedade que atinge o nível de desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea (DEBERT, 1999, p. 74)
No século passado, considerar que a vida poderia estender-se para além
dos 100 anos e que esse espaçamento de vida poderia representar um
alargamento também da saúde física e psicológica, seria uma consideração
62
“visionária.” Porém, o extraordinário fenômeno da longevidade está visivelmente
presente nos dias atuais e essa visibilidade traz desafios para a sociedade como
um todo e convertem a temática do envelhecimento em uma das urgências
predominantes para o século em andamento. Diante disso, podemos afirmar que
aqueles que nasceram nas primeiras décadas do século passado, estão hoje
cruzando o limiar da velhice e, certamente exigirão mudanças profundas em
relação aos papéis que lhes foram outorgados pelos pais e pela sociedade.
Debert (1999a) enfatiza a existência de duas correntes de concepção sobre
a velhice para se buscar, teoricamente, explicações suficientemente claras sobre
esse processo. Uma delas encara a velhice como algo doloroso, feio e sofrido,
sem perspectivas, já que o processo é meramente biológico. A outra considera o
ser que envelhece como “um modelo” para a sua própria negação, ou seja,
adiando-o por meio de produtos de consumo e de um estilo de vida que não
considera o “curso de vida.” Simone de Beauvoir (1970, p. 15) afirma que em se
tratando da velhice essa denominação não representa uma realidade bem
definida
Na verdade quando se trata de nossa espécie, não é fácil circunscrevê-la. Ela é um fenômeno biológico [...] e acarreta ainda, conseqüências psicológicas [...] como todas as situações humanas, ela tem uma dimensão existencial: modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o mundo e com sua própria história.
Em sua obra: A pessoa idosa não existe, Messy (1993) faz uma
provocação com o título que, na verdade remete ao postulado psicanalítico de
que a idade em si não tem relevância para a abordagem, pois “os processos do
sistema inconsciente estão fora do tempo, a relação temporal é do âmbito do
sistema consciente [...] na circulação da libido não há jovem nem velho, o desejo
não tem idade” (MESSY, 1993, p. 10). Essas considerações permeiam o universo
do empírico das pessoas longevas, que não se consideram “velhas” e podem ser
entendidas como “solicitações” de estudos científicos que as corroborem e que
orientem novos saberes sobre a velhice em idade avançada.
Almeida (2005) entende a velhice como categoria social emblemática,
marcada por estigmas e pela ausência de reconhecimento; em assim sendo, “a
voz dos próprios velhos soa, muitas vezes, como eco às formulações que
63
postulam a inviabilidade de os idosos formularem e desenvolverem projetos de
vida.” (ALMEIDA, 2005, p. 104). Diante dessa heterogeneidade em relação ao
envelhecimento, torna-se imprescindível, traçar um caminho histórico objetivando
recuperar esses entendimentos a fim de não se cair no erro das generalizações,
eufemismos ou fatalismos em relação ao envelhecimento, de forma geral, e em
particular, ao envelhecimento feminino. É necessário então “desnaturalizar o
fenômeno da velhice e considerá-lo como uma categoria social e culturalmente
construída” (MINAYO; COIMBRA JUNIOR, 2002, p. 12)
Até o início do século XIX, nas sociedades pré-industriais, não havia uma
separação clara de idades, tampouco especializações funcionais para cada idade.
Para Hareven (1995) a diversidade de idades entre as crianças de uma mesma
família, a ausência da regulamentação de um tempo específico para o trabalho e
a coabitação de famílias extensas são apenas alguns dos fatores que, em
conjunto, não favoreciam a fragmentação do curso de vida em etapas
determinadas. Em seus estudos sobre a infância Ariés (1981) demonstra como
essa categoria surgiu a partir do século XIII e como tal possibilitou o alargamento
da distância que separa as crianças dos adultos. Também na França surgiu a
noção de ‘juventude’, como uma etapa da vida para demarcar o momento
oportuno para o casamento como uma estratégia familiar para preservar ou
mesmo ‘alargar’ o patrimônio; e isso tinha uma importância maior do que a
questão da idade biológica (DEBERT, 2003). A partir de então, noção de velhice
surgiu na transição dos séculos XIX e XX.
Em 1970, Simone de Beauvoir lançou um importante ensaio sobre as
condições de vida dos velhos, abordando profundamente os aspectos extrínsecos
e intrínsecos da velhice, fazendo uma análise de como as ciências nas suas
especialidades tratavam a velhice: medicina, geriatria, antropologia, psicologia e
sociologia, numa proposta de discussão de caráter interdisciplinar. Interessante
observar que em 1967, a autora se debruçara sobre a questão feminina - O
segundo sexo - trazendo a implicada questão: “ninguém nasce mulher, torna-se
mulher”, como um preâmbulo, talvez, para a elaboração do livro - A velhice - que
indiscutivelmente, traz nuances da sua personalidade e perspectiva sobre o seu
próprio envelhecimento “Admitir que eu estava no limiar da velhice era dizer que
64
esta espreitava todas a mulheres e que já se apoderara de muitas delas”
(BEAUVOIR, 1970, p. 8).
A importância maior da obra de Beauvoir está no seu objetivo mesmo de
alertar para a forma perversa com que a sociedade tratava os velhos, abrigada
por trás dos mitos de expansão e da abundância “[...] Aí está justamente porque
escrevo este livro; para quebrar a conspiração do silêncio” (BEAUVOIR, 1970, p.
8). Com isso, pela grande repercussão da sua obra, em todo mundo, a autora
levantou questões e possíveis soluções para os problemas dos velhos.
Felizmente, o antigo preconceito que costumava entender a velhice como
doença e um peso social e familiar, vem cedendo lugar, a partir de então, a uma
construção social que a compreende como uma etapa da vida, com
características próprias, um processo complexo e multifacetado. Conforme Doll
(2006) a velhice representa uma fase que pode ser muito longa – dos 60 até 100
anos ou mais. Então, todas as “verdades” sobre a velhice também podem ser
“não verdades” e vice-versa. Talvez a maior “não verdade” seja exatamente a
existência de uma velhice com características bem definidas. Na verdade, existem
muitas velhices. Observa-se, então que não há uma homogeneidade conceitual
para o envelhecimento e a vivência da velhice. Também a forma de se ver e tratar
os velhos não tem sido unânime. Para Groisman (1999) a homogeneidade nunca
foi uma característica da velhice “[...] os velhos sempre foram ricos e pobres,
venerados ou denegridos e tratados tanto de forma dura quanto generosa pelas
famílias e comunidades, não havendo necessariamente um padrão para isso.”
(GROISMAN, 1999, p. 47).
Os muitos questionamentos sobre a verdade científica levaram, através
das discussões pós-modernas, ao surgimento de outro conceito que vem
ganhando bastante força e que nos parece fundamental para o estudo de
mulheres longevas: o discurso. Mario Porta (2007) afirma existir três tipos de
problemas quando se trata de apreender o “ser” do ponto de vista filosófico. Num
primeiro momento ele é entendido como ontológico; num segundo momento, com
a criação do ser “absoluto” [Teologia] a esfera das resoluções humanas ganhou o
espaço da transcendência; e por fim, com a criação de “discursos” essas
questões transitam pelas zonas dos sentidos e significados.
65
Mesmo tendo avanços consideráveis na forma de se entender a velhice, a
idéia da sua redução à categoria de doença é ainda predominante no imaginário
da cultura contemporânea [discurso médico]. As formulações textuais em livros e
artigos científicos são construídas para relatar os acontecimentos e os
conhecimentos acerca do mundo e da humanidade, ou seja, um registro da
“realidade” e, não se pode negar a sua capacidade de exercer persuasão,
sedimentando crenças e valores, determinando assim as atitudes, sustentado
tudo ‘no’ e ‘pelo discurso’. Cabe questionar sobre a veracidade dos discursos, nos
efeitos que produzem e ainda, quais são os interesses que subjazem aos
mesmos [políticos, econômicos, etc.]. Se, conforme Doll (2006), “existem muitas
velhices” podemos dizer que o discurso que realmente deve contar é o do próprio
ser que envelhece. Como ele vê o seu processo de envelhecimento e até que
ponto essa vivência se aproxima ou se distancia dos diferentes discursos, pois:
Se a focalizá-los existem vários tipos de lentes, as fotografias das câmeras curiosas costumam não ir além de luzes, sombras e cores que as aparências revelam [...] e como os que observam são parte da perspectiva que adotam, o que fica das imagens são as contundências dos sinais de desgaste dos corpos, os vincos nas faces, a voz mais cadenciada, o andar mais vagaroso ou trôpego, a queda inexorável dos músculos e a fragilidade dos movimentos [...]. É o veredicto que assinala a velhice como problema e como doença (MINAYO; COIMBRA JUNIOR, 2002, p. 12).
A tendência teórico-metodológica predominante na abordagem que vê o
envelhecimento numa estreita relação com os processos de doença e morte,
dificulta o desenvolvimento de outras que procuram analisar, de maneira
diferenciada, o envelhecimento e sua associação com a saúde e a qualidade de
vida. A ênfase nas perdas e limitações advindas com o avanço da idade nos
permite questionar se não seria essa perspectiva um exemplo de “colonização” do
desenvolvimento humano, ou seja, um retrocesso quanto ao entendimento da
identidade que, se “cristalizaria” na condição de velho?
Debert (1994) e Neri (1995) afirmam que não há um processo único de
envelhecimento e, que na verdade, envelhecer é uma ‘invenção cultural’ e,
portanto, precisa ser devidamente identificada em suas peculiaridades. Sendo
uma construção social, corre-se o risco de, ao se “inventar” a velhice como um
problema, um peso que pode se agravar “(...) em prol das dificuldades da
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seguridade social, mercado de trabalho, dispositivos de lazer, atendimento
médico-hospitalar e outros que se mostram ineficientes para atender o
contingente de pessoas acima de 60 anos no Brasil” (STANO, 2001, p. 14). Desse
modo, focando essas questões na população de velhos como sendo a
responsável pelos entraves que se evidenciam nesses segmentos, distancia-se
dos verdadeiros problemas que atingem os cidadãos brasileiros
independentemente de sua faixa etária, ficando a indagação: Como a sociedade
atual, baseada em pressupostos como a liberdade e a autonomia, dará conta de
atender às expectativas de seus cidadãos longevos, saudáveis ou não?
Nesse sentido, Beauvoir (1970) alerta para o fato de que, em política, o
indivíduo conserva durante toda a sua vida os mesmos direitos e os mesmos
deveres. Não se faz diferença, juridicamente falando, entre um centenário e um
quadragenário. Ou seja:
a responsabilidade penal dos idosos é tão integral quanto a dos jovens [...] entretanto, quando se decide sobre seu estatuto econômico, parece que se considera pertencerem a uma espécie estranha: os velhos não têm, nem as mesmas necessidades nem os mesmos sentimentos que os outros homens [...]. (BEAUVOIR, 1970, p. 9).
Se, no século passado os estudos da ciência psicológica estavam voltados
mais para as crianças devido à baixa expectativa de vida, hoje a interação entre
os saberes gerando competência interdisciplinar, são requisitos mínimos para se
produzir conhecimentos que reflitam as características e as peculiaridades da
condição de pessoa longeva trazendo respostas satisfatórias ao processo de
envelhecimento de todos. São fundamentais as lembranças sobre o passado e as
considerações sobre o presente do ponto de vista de quem viveu muito. E mais
do que perceber, na falência do corpo e nos lapsos da mente, o preço cobrado
pelo tempo vivido, o ser que envelheceu tem, por isso mesmo, a credibilidade
necessária para refletir e “fazer refletir” sobre o sentido da velhice na atualidade.
No capitalismo contemporâneo, onde quase tudo que é produzido é para
ser vendido e consumido, o conhecimento científico precisa estar atento para não
transformar-se também em um valor de troca e eficiência atrelado ao sistema.
Indagações constantes e estudos profundos devem balizar os rumos da produção
de conhecimento que defendam a liberdade dos cidadãos, sua autonomia e a sua
possibilidade, cada vez mais concreta, de uma vida longeva, que, para ser boa e
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produtiva precisa ser compreendida e amparada pelo Estado, através de
mecanismos competentes.
Simões (1994) desenvolveu um estudo com o objetivo de reconstruir a
história do movimento dos aposentados brasileiros e constatou que nas décadas
de 1980/90 essa categoria inaugurou um espaço próprio de ação, de cidadania e
de inclusão. Com suas ações, eles modificaram o cenário da organização social e
se estabeleceram como um grupo de interlocução política, transformando-se com
suas próprias reivindicações em atores sociais e políticos. Segundo Almeida
(2005, p. 134) ações com essas características
(...) são respostas aos distúrbios de identidade causados pela colonização e, nos termos de Habermas a intrusões sistêmicas e lutam pela substituição de contextos normativos pressupostos estabelecidos (...) e dão origem a proposições e a processos de recuperação de identidades distintas (...).
De acordo com a constituição brasileira de 1988, é responsabilidade da
família, da sociedade e do Estado assegurar aos velhos a participação na
comunidade, defender a sua dignidade e proporcionar o seu bem estar,
garantindo o seu direito à vida (artigo 230). Importa, então, para que os velhos
sejam autônomos, independentes e mais felizes, reconhecer que agora a vida
humana não se restringe somente aos cuidados básicos, pois conforme Doll
(2006) nós temos que dar um sentido à nossa vida. E, para tanto, atentar para a
interioridade dessas pessoas na tentativa de ouvir os seus anseios de como viver
melhor essa fase da vida, torna-se imprescindível.
A implantação das “Universités Du T’roisième Âge” nos anos 1970,
estimulou estudos sobre o envelhecimento numa perspectiva chamada ‘terceira
Idade’ que impulsionou o aparecimento de novas vertentes para a questão,
promovendo um distanciamento da perspectiva geriátrica [modelo médico]. Essa
nova vertente fez com que vários estudiosos, acompanhando a tomada de
consciência sobre o fenômeno do envelhecimento populacional, passassem a
construir uma tipologia das teorias sobre o envelhecimento humano,
classificando-as segundo o nível de analise, a época em que surgiram e as
influências exercidas Siqueira (2001).
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Este trabalho explora, conceitual e estruturalmente, quatro teorias: 1.
Perspectiva do Curso de Vida; 2. Teoria do Construcionismo Social; 3. Teorias
Feministas e 4. Teoria Crítica, cujos postulados de análise em um plano micro,
micro/macro e macrossocial, examinam as estruturas sociais e sua influência
sobre as experiências do envelhecimento, ao mesmo tempo em que analisam, na
trajetória de vida, o indivíduo e as suas interações sociais.
1. Perspectiva do curso de vida
As origens conceituais e estruturais dessa perspectiva remontam o século XIX,
com o trabalho do economista social Rowtree cujo objetivo foi o de investigar a
pobreza e estágios de vida na estrutura familiar. Seus postulados repousam na
sociologia e na psicologia e tem como característica permitir a análise de
processos nos níveis micro e macrossociais de indivíduos e de populações ao
longo da vida.
Segundo Siqueira (2001, p. 96) as proposições fundamentais da
perspectiva do Curso de Vida, são:
. O envelhecimento é analisado do nascimento para a morte, o que o distingue das perspectivas que focalizam exclusivamente a velhice;
. o envelhecimento é considerado um processo social, psicológico e biológico;
. as experiências do envelhecimento são moldadas por fatores ‘coorte-históricos’.
Ainda segundo a autora, essas proposições são essenciais para a análise
de questões dinâmicas, contextuais e processuais do envelhecimento; as
mudanças relacionadas à idade e às trajetórias de vida; o envelhecimento
moldado pelo contexto, pela estrutura social e pelos significados culturais.
Os diferentes estudos realizados sob os aportes dessa perspectiva, dentre
eles os de Kohli (1986) e Neugarten e Neugarten (1996) chamam a atenção para
a complexidade, incertezas e ambiguidades do processo de envelhecimento,
contribuindo significativamente para traçar um panorama sobre as contribuições
do modelo do curso de vida para as pesquisas nesse campo de investigação
científica.
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Segundo Neri (2001) O paradigma do Curso de Vida, também referenciado
como life-cours e life-span promoveu uma ruptura com o paradigma organicista
em psicologia, quando em meados do século XX os cientistas do
desenvolvimento perceberam que as explicações clássicas sobre o
envelhecimento não eram suficientes para dar conta da realidade sobre a velhice
de seus contemporâneos, em sociedades caracterizadas por elevado grau de
desenvolvimento social e de possibilidades crescentes de envelhecer bem.
Os modelos de curso de vida e life-span foram fortemente influenciados
pelos estudos de Erikson (1950) e a caracterização do envelhecimento como
“ciclos de vida”, também conhecida como “As oito idades do Homem.” Os estudos
de Erikson trazem em seu bojo a ideia de fases sucessivas e universais
(diagrama epigenético): infância, adolescência, maturidade e velhice, agrupando
as idades numa sequência linear e progressiva. Os períodos fixados com suas
características próprias criam, portanto, a ideia de uma homogeneização de todas
as sociedades.
As sociedades de modo geral, apresentam agrupamentos etários que são
importantes para os estudos antropológicos, porque as grades etárias, não sendo
as mesmas para todos os contextos sociais, trazem significados específicos que
precisam ser compreendidos em função da realidade em que foram
desenvolvidos. Debert (1999, p. 37) crítica ao conceito de “ciclos da vida”
afirmando que os mesmos estariam “[...] impregnados de uma visão essencialista,
de caráter a-histórico.”
A partir de então, a autora passou a defender o conceito de “curso da vida”
como um processo gradual que considera aspectos históricos, sociais e
individuais para a compreensão dos períodos da vida. Trata-se, pois, de uma
visão mais complexa e elaborada. Em Bassit (2004, p. 218) vamos encontrar
corroboração para essa defesa:
[...] o estudo sobre o curso da vida vem se movimentando de uma tendência que divide o estudo do desenvolvimento humano em estágios descontínuos para um firme reconhecimento de que qualquer ponto do curso da vida precisa ser analisado dinamicamente, como conseqüência das experiências passadas e das expectativas de uma integração entre os limites do contexto social e cultural correspondente.
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A perspectiva do curso de vida segundo Neri (1995) se sustenta nas
tradições contextualistas e dialética e com isso, abandona as concepções
acumulativas e unidirecionais das teorias de estágios, em favor da aceitação dos
princípios da multidimensionalidade e multidirecionalidade do desenvolvimento e
nos diz:
Ao considerar o desenvolvimento como produto da interação entre eventos normativos (de natureza ontogenética) e não-normativos (de natureza sociogenética), a Teoria do Curso de vida, vê a velhice como uma experiência heterogênea de ganhos e perdas, determinada por fatores em interação durante todo o curso de vida ou life-Span. (NERI, 1995, p. 26)
As principais críticas feitas à teoria, de acordo com Siqueira (2001, p. 99)
são:
. caráter amplo e difuso, que dificulta sua caracterização como
teoria ou como paradigma;
. dificuldade de incorporar as diversas variáveis identificadas em
uma única análise;
. os dados levantados pelos estudos realizados nessa
perspectiva não são capazes de testar os efeitos das variáveis
idade, período e coorte sobre o comportamento de indivíduos e
grupos ao longo do tempo.
As críticas, porém não invalidam essa estrutura teórica que tem se
mostrado válida para estudos mais aprofundados, bem como pertinente na
integração de seus postulados com a perspectiva do construcionismo social, na
análise do envelhecimento e da vivência da velhice.
2. Teoria do Construcionismo Social
A teoria do construcionismo social, está fundamentada no
interacionalismo simbólico, na fenomenologia e na etnometodologia. Segundo
Siqueira (2001) essa teoria recebe influência de outras perspectivas, em especial
da teoria crítica e da feminista e postula que os indivíduos participam ativamente
da criação e da manutenção de significados para suas vidas, num movimento
71
dialético: o comportamento individual é produto e produtor dos contextos sociais
em que estão inseridos. É uma teoria que vem sendo muito utilizada nas
pesquisas no campo do envelhecimento e reflete uma longa tradição de analise
microssocial, focando o comportamento do indivíduo nos contextos sociais.
São propostas da teoria:
. a ênfase na explanação e na compreensão dos processos individuais de envelhecimento como sendo processos influenciados pela estrutura social;
. estudar as características situacionais, constitutivas e emergentes do envelhecimento, examinando como os significados sociais e autoconceitos emergem na negociação e no discurso;
. estudar o processo de envelhecimento considerando as mudanças sociais e históricas que interferem nas diferentes formas de vida, analisando as alterações nos papéis sociais advindas dessas mudanças. (SIQUEIRA, 2001).
Exemplos de aplicação das proposições da teoria do Construcionismo
Social podem ser encontrados nos trabalhos de Gubrium (1993) e Kaufman
(1994). E quanto às principais contribuições para o estudo do envelhecimento
Siqueira (2001) coloca:
. reconhecimento do processo dialético dos indivíduos na criação e manutenção de significados para suas vidas diárias;
. a adequação da teoria ao cenário multidisciplinar da gerontologia, possibilitando pesquisas de ampla gama de questões;
. a influência positiva da teoria na área do envelhecimento a outras perspectivas, em especial às teorias feministas e à teoria crítica.
No que concerne às críticas, o nível de análise individual não dá a devida
importância aos fatores macrossociais tais como: contexto histórico, coorte e
estratificação por idade. E ao minimizar a atenção à estrutura social, a teoria do
construcionismo social deixa de lado a questão do poder.
72
3. Teoria critica
Esse enfoque teórico conforme Bengston, Burgess e Parrot (1977) baseia-
se na tradição européia, representada pela Escola de Frankfurt e por pensadores
como Horkheimer, Adorno, Habermas, Husserl e Schultz, sendo ainda
influenciada pela abordagem político-econômica de Marx e pelo pós-
estruturalismo de Foucaut.
Nessa perspectiva, os conceitos poder, ação social e significados,
fornecem a base para a investigação gerontológica. Conceitos esses que
articulam os seguintes aspectos: a subjetividade e a dimensão interpretativa do
envelhecimento; a práxis, entendida como ações de envolvimento em mudanças
(como as políticas públicas); a união entre acadêmicos e profissionais para a
produção de conhecimentos emancipatórios, por intermédio da práxis; crítica ao
conhecimento, à cultura e à economia com vistas à criação de modelos positivos
de envelhecimento, que ressaltem a força e a diversidade do processo. Para
Siqueira (2001) a teoria crítica focaliza duas dimensões: a estrutural e a
humanística e esse foco se reflete nas diversas tendências na gerontologia
contemporânea, tais como a teoria político-econômica e as teorias feministas do
envelhecimento.
Com base na teoria crítica Dannefer (1988) afirma que a heterogeneidade
do processo de envelhecimento é negligenciada pela maioria das teorias que
tratam apenas do desenvolvimento, da socialização e do envelhecimento
normativo, talvez, pelas limitações inerentes à adoção do paradigma positivista
pela gerontologia social.
Coube à medicina moderna a tarefa de explicar, através do processo de
degeneração do corpo, um entendimento gradual de que a velhice deveria ser
entendida como um estado fisiológico específico: a senescência. Esse discurso
médico determinou o reconhecimento do corpo envelhecido, sua identificação
com um corpo em decomposição e o consenso de que, a definição dessas
características é tarefa própria do olhar e do saber médicos. E segundo Almeida
(2005) os fundadores da geriatria retratam o processo de envelhecimento de tal
maneira que a noção de envelhecimento saudável parece ter sido eliminada.
Vendo a senescência de uma perspectiva patológica, eles descreveram esse
estágio inteiro da vida como uma longa e progressiva doença. Esse conceito de
73
velhice atravessou o limiar do século XX, quando o fenômeno do envelhecimento
populacional empurrou a velhice para idades mais avançadas e a questão dos
idosos, vistos como marginalizados e estigmatizados, ganhou visibilidade
acabando por desencadear movimentos, estudos e debates que culminaram com
a criação da chamada “terceira Idade”; um novo estatuto que passou a adotar um
conjunto de práticas, instituições e agentes especializados para o atendimento
das necessidades desse contingente da população.
Segundo Siqueira (1991) Tornstam aprofunda essa questão ao considerar
que a gerontologia social fundamentada no positivismo é que produziu esse
modelo de envelhecimento visto como um problema social e “[...] propõe uma
abordagem gerontológica de cunho humanístico, que permitiria aos próprios
idosos definir as questões mais significativas a serem pesquisadas” (SIQUEIRA,
1991, p. 108).
Apesar do seu alto grau de abstração, uma vez que, está baseada nas
tradições filosóficas européias, o que pode trazer “dificuldades” para o uso de
suas proposições por pesquisadores de outras vertentes teóricas, a teoria crítica
representa um espaço importante para a discussão das principais correntes
teóricas e para a proposição de uma perspectiva humanística para as questões
associadas ao envelhecimento, com alto grau de profundidade e pertinência. Isso
fica evidente na constatação de que além das teorias político-econômicas,
feministas e construcionistas, outras perspectivas se originaram da abordagem da
teoria crítica, dentre elas a teoria da diversidade de Calasant e a gerontologia
humanística de Phillipson (BENGSTON; BURGES; PARROT 1977).
4. Teorias e perspectivas feministas
Estas teorias têm seu foco no nível microssocial e se dispõem a analisar a
rede social, os significados sociais e a identidade no processo de envelhecimento.
Para o estudo da estratificação por gênero da estrutura de poder das instituições
sociais, adotam o nível macrossocial. Essas teorias focalizam também as ligações
entre indivíduos e estrutura social, fazendo uma articulação entre os níveis micro
e macrossociais ao destacarem as relações de poder que influenciam o processo
de envelhecimento.
74
Bergeston, Burgess e Parrot (1997) pontuam a questão de que as
proposições feministas na área do envelhecimento são ainda muito difusas. “Para
eles, não é possível classificá-las como uma tradição teórica única, talvez por
diferirem das principais teorias sociais do envelhecimento, ao relacionarem
gênero e envelhecimento e ao incorporarem a questão da diversidade.”
(SIQUEIRA, 2001, p. 100)
Destacam-se, nessa abordagem, de acordo com Siqueira (2001) os
estudos de Arber e Ginn (1991); Staller (1993) e Calasant (1996); que vão desde
análises polítio-econômicas, argumentando sobre as diferenças no acesso a bens
materiais, recursos e cuidados com a saúde; até os significados do gênero para
compreender a estrutura do trabalho não remunerado no cuidado ao idoso e
chegando até a análise dos conceitos de heterogeneidade e diversidade que
podem exercer forte influência no processo de envelhecimento. Esses autores
enfatizam também, como a diversidade é significativa para compreender as
relações de poder e para aprofundar o nível de pesquisa e teorização na área do
envelhecimento.
As teorias feministas, mesmo com reconhecido apreço pelos analistas em
ciências sociais, recebem, segundo Siqueira (2001), críticas por algumas
fragilidades, tais como:
. São consideradas sectárias, por avaliarem que toda a ciência social é baseada em prévio sistema de valor;
. Ao focalizarem a “feminização do envelhecimento, essas teorias, em grande parte, ignoram as questões de masculinidade e envelhecimento.
.E, ainda, criticam com veemência o fato de que as principais teorias feministas ignoram as questões de idade e desafiam os preconceitos de gênero das principais teorias sociais do envelhecimento.
No entanto, as teorias feministas apresentam “pontos fortes” importantes já
que o seu foco está na maioria da população de idosos – as mulheres –
enfatizando, ao mesmo tempo, a necessidade de se explorar outras formas de
diferenças dentro do processo de envelhecimento. As questões abordadas são
relevantes para a vida cotidiana das mulheres e podem fornecer bases para
75
intervenções em relação à população de idosos. Tendo como referência tanto o
nível micro quanto o macrossocial, essa perspectiva permite interações entre as
questões individuais e estruturais.
Se o objetivo da psicologia social está, segundo Lima (2012) na crítica do
planejamento de tecnologias de manutenção do estado de exceção, no qual o
dissonante, a pobreza, a fome, o descontentamento são, ao mesmo tempo,
excluídos e capturados sob novas formas de dominação, mais sutis e alinhadas
aos ditames capitalistas, questiona-se: Dado que de todos os fenômenos
contemporâneos o envelhecimento da população é o mais fácil de se prever com
muita antecedência, o menos contestável e o de consequências até certo ponto
previsíveis, qual será o encaminhamento que a academia dará aos estudos que
possam subsidiar a sociedade em relação aos velhos(as) e a vivência da velhice
em idade avançada, com serenidade e satisfação?
Está-se, portanto, em busca, de acordo com Ciampa (2012, s/n) de uma
psicologia que seja efetivamente social e que estude a questão do
desenvolvimento humano (em toda sua complexidade: desenvolvimento cognitivo,
lingüístico, interativo, afetivo, estético, moral, motivacional, sexual, corpóreo,
motor, etc.) para, com isso, dar conta do sujeito com uma identidade em processo
de contínua transformação, desde do nascimento até a morte.
Um grande número de pessoas fica velha, porém, quase nenhuma encara
com antecedência este avatar. Nada deveria ser mais esperado e, no entanto,
nada é mais imprevisto que a velhice. Apesar da orientação da OMS de que ela
começa aos 60, esse momento, na verdade é mal definido e varia de acordo com
cada pessoa, a época e lugares. “Não se encontram em parte alguma ‘ritos de
passagem’ que estabeleçam um novo estatuto” (BEAUVOIR,1970, p. 8). Do ponto
de vista das Ciências Sociais, o envelhecimento de mulheres deve ser focado no
contexto da sociedade ocidental e do século XX, cuja reflexão recairá na
construção do ser humano moderno e sua vida pública, incluindo-se aí as
questões da cidadania, papéis sociais; e, no tocante ao espaço privado, sua
intimidade, família e sexualidade.
No século XVIII, o século das luzes, já se observava que as mulheres eram
parte integrante e indissociável da esfera privada, o lar. E nesse espaço ficavam
confinadas, submissas aos maridos e responsáveis pela educação dos filhos e
76
administração da casa. Cristalizou-se, então, a ideia da sua fragilidade física e
intelectual que depois foi reforçada e perpetuada pela concepção médica que
pressupunha que a mulher saudável e feliz era aquela que ficava restrita a
privacidade familiar. Justamente por essa vinculação ideológica à família,
sedimentou-se a ideia de que a velhice, para a mulher, não trazia nenhuma
mudança radical que pudesse potencializar algum tipo de sofrimento. No entanto,
os estudos de Cumming e Henry (1960) apresentam a Teoria do
Desengajamento, onde a aposentadoria para o homem e a viuvez para a mulher
representam momentos cruciais, que marcam esse processo na medida em que
promovem uma diminuição significativa dos relacionamentos sociais e
transformam aqueles que permanecem, podendo gerar sofrimento pelo
isolamento ocasionado e mantido muitas vezes por longos períodos.
Com toda certeza ter vivido muito, ser velha significa estar marcada pelo
tempo físico, pelo relógio, pelos dias, meses e anos que registram com clareza e,
talvez, com crueldade, a aparência de quem já viveu muito – o velho, a velha.
Porém, há que se considerar que a verdadeira dimensão humana é demarcada
pelas experiências subjetivas dos eventos internos que determinam processos de
constante adaptação e evolução, onde se localizam os valores, as crenças, os
mitos. Para Beauvoir (1970, p. 19)
Moralmente, uma pessoa pode ter sofrido perdas consideráveis antes que se esboce sua degradação física; ao contrário, é possível que, ao longo dessa decadência, ela realize ganhos intelectuais importantes. A qual aspecto atribuiremos maior valor? Cada um dará uma resposta diferente, segundo suas tendências [...] É a partir de tais opções que os indivíduos e as sociedades estabelecem uma hierarquia das idades: não há nenhuma que seja universalmente aceita.
Muito embora, reconhecendo que o envelhecimento não é uma abstração,
viver como velha, se sentir velha pode ser uma determinação subjetiva fruto de
uma construção sócio - histórica e, portanto, passível de ser reformulada,
reconstruída. Envelhecer, portanto não é seguir um caminho já traçado, para
atingir um fim predeterminado e imutável, mas, pelo contrário, é construir,
permanentemente o caminho que se deseja seguir. Assim, a realidade de
algumas mulheres velhas pode configurar-se como algo que as faz “sentir-se”
jovem e potente num processo muito particular “Não quero saber de cadeira de
77
balanço, pois considero-a um símbolo da velhice desperdiçada [...] trabalho sete
dias por semana, vinte horas por dia e gosto disso” (MCCLENDON 1981, p. 183);
e com isso ela se afirma como sujeito, com uma identidade própria e que não
depende dos papéis que a sociedade determinou para as “velhas”
A velhice se concretiza através do tempo que é também o tempo de
memória, das lembranças traduzidas em afetos. É nosso ponto de referência
afetivo porque nele enraizamos nossas narrativas pessoais e identitárias. Santo
Agostinho (2007, p. 120) faz uma profunda reflexão sobre o tempo [Confissões]
[...] tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo? Mas, o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro terei que perguntar: como pode o tempo passar? Como sei que ele passou? Como sei que ele passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente, espero, então seria mais correto dizer que o tempo é apenas presente? Mas quanto dura o presente? Quando acabo de colocar o ‘r’ no verbo, esse ‘r’ no verbo colocar, esse ‘r’ é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou é futuro? O que é o tempo, afinal? É a eternidade?
O que pensar então da velhice? Seria o que já foi? Seria o que é? Ou o
que será? Posso olhar a velhice com estranhamento e admiração e, a partir disso
passar a vê-la de modo totalmente novo, distinto do que vem sendo dito e escrito
sobre essa fase da vida? Sobre a velhice temos a realidade de quem a vive, de
um lado, e a observação de quem a vê (do lado de fora) e que fala e escreve
sobre ela. Mas, as palavras, o momento, as escritas podem trazer significados
distintos, para quem escreve para quem lê e para quem vive esse fenômeno. O
que um autor expressa sobre o assunto, traz, nas entrelinhas, sentidos múltiplos
que exigem análise profunda. Ser velha pode então, ser muito diferente daquilo
que se entende por “ser velha.” “se as palavras tivessem sempre um sentido
óbvio e único, não haveria mal entendido e controvérsia” (CHAUÍ, 2000, p. 96).
Será que podemos datar uma vida? Temos como afirmar que mais anos
vividos signifiquem mais vida? No dizer de Clarice Lispector (s/d) “essa
capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é que eu chamo
viver”
78
Para Chauí (2000) o conservadorismo, a atitude dogmática, o preconceito
faz com que haja na sociedade um receio das novidades, do desconhecido, do
inesperado; de tudo, enfim que possa desequilibrar as crenças e opiniões já
constituídas socialmente. Porém, de acordo com a filósofa, a atitude dogmática
(transformada em preconceito) se rompe quando somos capazes de uma atitude
de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares. Assim, o
questionamento e a crítica científica acerca do envelhecimento tendem, a ceder
espaço para que o sujeito possa assumir a trajetória da sua vida, procurando as
vias de expressão da sua subjetividade numa tentativa constante de se
reconhecer permanentemente.
Jamais me considero velha, embora tenha setenta e cinco anos [...] suponho que descobri um jeito de fazer parte do presente e, assim, de certo modo, pensar que não envelheço (SARAH McCLENDON, 1981, p.183)
Esse dia nunca chegou! Se chegar, o estarei esperando com a mesa posta. Que me traga pelo menos flores e uma garrafa de champanhe. E, depois, que ele jante comigo, que saia pela mesma porta que entrou. Sou feliz sem ele. Não vejo orgulho nos cabelos brancos ou nas rugas. Minhas marcas trago na minha sabedoria e no conhecimento que fui adquirindo nas 24 horas diárias. Minha vida é de conquistas. Minhas glórias não são enrugadas ou grisalhas. São todas jovens e cada uma mais jovem que a outra. Todo dia é uma conquista (ELZA SOARES, In: REVISTA TPM, 2012, p.58)
Essa declaração de Elza Soares foi dada por ela quando solicitada a falar,
para a revista TPM (2012) sobre “O dia em que envelheci”. A instigante
capacidade que algumas mulheres apresentam em “se manter vivas” com vigor,
energia e alegria, apesar das perdas inevitáveis advindas com a idade, representa
uma realidade social que está por merecer maior atenção da academia e dos
órgãos públicos, com vistas a compreender esse processo. Assim, nosso
propósito foi o de refletir sobre o envelhecimento feminino, procurando respostas
para a seguinte questão:
O envelhecimento não representa somente uma passagem de um mundo
totalmente regrado para outro onde a mulher viúva fará as suas próprias regras, o
que lhe confere liberdade e independência, é o momento também, de se deparar
79
com perdas importantes e indesejadas. Como lidar com isso? De onde vem a
vontade de viver? - (...) afinal eu não estava enterrada! (Zoé)10
Barros (2007a) faz um questionamento sobre a velhice que ela denomina
comum, ou seja, da mulher não asilada, não-doente, aquela velhice com a qual
nos deparamos cotidianamente e que não tem sido acolhida ou vislumbrada como
questão a ser estudada cientificamente; acrescente-se a essa pertinente
observação da autora, a possibilidade concreta de mulheres que não se
enquadram nos critérios e nem se interessam pelos programas, tão em voga, de
atendimento aos idosos: viagens, bailes, universidades da terceira idade, etc.
Estudar o processo de envelhecimento feminino em perspectiva de diferentes
cursos de vida permite não só ampliar esse referencial de analise como também,
sugerir novos problemas de investigação. Muitas dessas mulheres sequer se
consideram velhas e vivem o seu cotidiano normalmente. É provável que elas
pensem como Beauvoir (1970, p. 8) que “[...] há pessoas menos jovens do que
outras, e nada mais.”
A sociedade contemporânea está repleta de exemplos de mulheres, seja
no plano individual ou grupal, que disseram “não” aos preconceitos e estereótipos
e buscaram viver a vida conforme o seu desejo e possibilidades, pois a velhice
pode ser vivenciada como o coroamento de uma existência; o presente é sempre
novo, as lembranças rejuvenescem o passado e o que era morto volta à vida e
projeta o devir. 11
No final da década de 1980 as “vovós em fúria”, no Canadá, iniciaram um
movimento e “infernizaram” o poder numa luta pelas causas humanitárias e
ecológicas com atos de desobediência civil pacífica, movimento esse que
segundo Habermas (2012), gera uma autodeterminação capaz de realizar o
projeto modernista de emancipação, embasado na razão e na ação comunicativa.
É esse engajamento da sociedade civil [participações políticas] que criaria a
condição, o ‘rapprochement’ crítico, no processo de busca de entendimento
10 Retirado das falas da depoente. O mesmo processo é aqui adotado, sempre que julgado importante ilustrar o contexto com exemplares dessas falas. O texto virá em itálico seguido do nome Zoé entre parênteses. 11 Nas palavras da depoente, “ -- (...) olhando aquele mar me senti nova de novo (...)”
80
mútuo em juízos de validade. Ciampa (2002, p. 141) lembra que estudar
identidade política “torna possível discutir a especificidade de lutas pela
emancipação de diferentes grupos sociais que, em sua ação coletiva revelam
velhas ou novas opressões”. Assumindo a sua condição de sujeito político, as
citadas “vovós” irradiam também alegria de viver e uma compreensão da própria
vida em idade avançada que passa longe dos estereótipos.
Sem deixar de considerar que alcançar a longevidade é também uma
condição permitida pelos avanços da medicina, e não esquecendo de distinguir os
impactos da seguridade social, tem-se que, no plano individual se observa, na
atualidade, exemplos marcantes de mulheres longevas que vivem o seu
centenário (um pouco mais, um pouco menos), com vigor e alegria. No caso
brasileiro apresentam-se, como exemplos, atrizes, escritoras, poetisas, donas de
casa, mulheres não letradas, brancas, negras, pobres, ricas, todas esbanjando
saúde e bem estar físico e psicológico. Giddens (1992, p. 226) analisa o “plano
emocional” em relação às transformações da intimidade e nos diz que “tanto as
mulheres comuns, na sua vida cotidiana, quanto grupos feministas
autoconscientes foram pioneiras de mudanças de grande e generalizável
importância.”
A pintora Judith Lauand, 90 anos, ganha mostra individual. É a única
mulher a participar do Grupo Ruptura, coletivo que fundou, em 1952, o
concretismo no país. Ela tem lugar permanente na história da arte brasileira por
suas obras com cores chapadas e formas geométricas. Com oito prêmios e quase
cem exposições coletivas e individuais, a artista segue produzindo e ainda mostra
ineditismo em seus trabalhos. De toda a sua obra, 70 produzidas há 50 anos,
estarão expostas na galeria Berenice Arvani na exposição Judith Lauand –
Gauches, desenhos e colagens, anos 50 “Hoje, me sinto feliz por tê-las realizado”
(REVISTA TPM, 2012, p. 40)
Eliza Carrara, que em setembro de 2013 completou 104 anos, tirou a
primeira carteira de motorista aos 53 e ainda dirige afirmando: “Andar na rodovia
Anhanguera é a mesma coisa que andar nas ruas perto de casa. Eu vou sozinha
e tranqüila, porque sei o que estou fazendo” (GAZETA ONLINE, 2013).
A estilista Rosa Cabral de Mello, contemporânea de Dener, Madame Rosita
e Clodovil, estreou na literatura aos 97 anos. Ela acaba de lançar Os segredos e a
81
arte de costurar. “A obra que teve lançamento recente na Livraria da vila, parece
apontar um novo caminho para dona Rosa, que já se anima em iniciar o segundo
livro para o ano que vem”. “Ele será uma autobiografia”, adianta a estilista e
escritora, do alto de seus inspiradores 97 anos” (29 Horas, 2013, p. 18)
Em 21 de novembro de 2013, a artista plástica Tomie Ohtake completou
100 anos – e continua trabalhando com energia e genialidade. Três exposições
comemoram o centenário de Tomie, que nasceu no Japão, mas se naturalizou
brasileira e é uma das artistas mais reverenciadas do país, o que faz dela um
motivo de orgulho nacional. Uma das mostras, Correspondências, apresenta
obras da artista desde os anos 50 em contraposição e diálogo com outros nomes
locais das artes plásticas, como Cildo Meireles, Leda Catunda e Nuno Ramos (...)
(Revista Cláudia, 2013, p. 28)
Um artigo veiculado pela Revista eletrônica do Grupo de Pesquisa
Identidade da Escola Superior de Teologia [Faculdades EST] disponibiliza um
compêndio acerca das mulheres brasileiras que fizeram história por estarem à
frente do seu tempo e que balizaram com suas ações a identidade da mulher do
século XXI. Não certamente por acaso, muitas foram longevas e produtivas até a
morte; e algumas, ainda vivas são exemplos de bem viver. Para citar algumas:
Chiquinha Gonzaga (1847-1935); Anita Malfatti (1889-1964); Tarsila do Amaral
(1886-1973); Anésia Pinheiro Machado (1904-1999); Nize da Silveira (1905-
1999); D. Canô Velloso (1907-2012); Clementina de Jesus (1901-1987); Bibi
Ferreira (1922-) Maria Ester Bueno (1939 -); Fernanda Montenegro (1929- ); Cora
Coralina (1889-1985)
Essas mulheres brasileiras e inúmeras outras, esquecidas talvez e inertes
em seu mundo ensimesmado, moradoras de um país continental, diversificado em
sua topografia, em sua geografia, em sua história, em seus costumes e crenças;
as velhas emblemáticas e “esquecidas” na sua história pessoal, rica em vivências
e experiências, um campo único de conhecimento social e humano prontos para
serem cientificamente explorados em benefício da vida humana.
82
Capítulo 2 Identidade feminina no presente: passado e futuro
Elas [...] já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que solicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de idade. (BOSI, 1994, p. 60).
Através da reflexão sobre a memória e o tempo vivido, encontram-se
subsídios para entender a reconstrução identitária das mulheres longevas, uma
vez que “o que se é”, só pode ser respondido com base naquilo que “se foi” e na
projeção do que se “deseja ser.” Portanto, as lembranças advindas da memória
são o caminho, a via de interligação entre esses substratos psicológicos do
passado e o existir do presente que, interrogando-se em sua própria
temporalidade, permite ao ser que envelhece apropriar-se de um referencial para
a sua existência.
Busca-se, com base na narrativa da história de vida de uma longeva
compreender, de acordo com as teorias apresentadas, o impacto do
envelhecimento sobre as mulheres. Assim, pode-se entender esse processo
como uma articulação entre perdas e ganhos, conforme a perspectiva do curso de
vida. Numa vertente que se aproxima do construcionismo social, as lembranças
evidenciam a criação e/ou manutenção de significados para a vida, num
movimento dialético, onde o comportamento individual aparece como produto e
produtor dos contextos sociais onde estão inseridos. Os aportes teóricos
permitem também, ao tecer generalizações sobre a velhice, observar o exercício
da crítica ao conhecimento até então produzido nessa área, com vistas à criação
83
de modelos positivos12 de envelhecimento que ressaltem a força e a diversidade
do processo, com base na teoria crítica. E ao abordar questões relevantes para a
vida cotidiana das mulheres, devidamente alicerçadas nas lembranças da longeva
estudada, ficam delineadas possíveis intervenções que possam proporcionar um
envelhecimento feminino com qualidade e dignidade, em conformidade com as
teorias feministas.
Fez-se uma revisão bibliográfica com a qual se obteve uma trajetória
teórica que permite “enxergar” o ser, o sujeito, a mulher oprimida, a mulher
empoderada e liberta e a mulher velha. Com ênfase no envelhecimento que
entende as mulheres como sendo plurais, procura-se alinhavar conceitos
interdisciplinares para compreender o universo das mulheres longevas, para com
isso dispor de argumentos para defender que, desde que isentas de doenças
graves que exigem a tutela de outrem, a mulher tem o direito de viver a velhice
em idade avançada, livre de preconceitos e estereótipos que as infantilizam,
tornando-as reféns dos ditames da família e da sociedade. “Nunca estamos sós, é
horrível, há sempre gente à nossa volta [...] e tratam você como se todas as
pessoas de idade, sem exceção, voltassem à infância. Falam conosco como se
fôssemos bebês de um ou dois anos” (BEAUVOIR, 1970. p. 319).
Atualmente, os estudos sobre a memória e lembrança de velhos/velhas
remetem necessariamente à obra de Bosi (1994) e, concordamos com Chauí
(1994, p. 17), quando na apresentação do livro, afirma:
(...) você nos mostrou... como lutar: reconduzindo a memória à dimensão de um trabalho sobre o tempo e no tempo, dando ao trabalho da velhice uma dimensão própria e desdobrando uma tríade (memória-trabalho-velhice), você aponta para uma nova possibilidade de relação com o velho fazendo despontar, num outro horizonte, a figura laboriosa da velhice, trabalhando para lembrar.
12 Modelos positivos referem-se a proposições atuais do tipo: envelhecimento ativo, melhor idade,
etc.
84
Por ser temporal, o indivíduo carrega consigo um tempo existencial que lhe
permite, paradoxalmente, renovar a própria existência “Dizem que os velhos
sabem de lá de trás, do ‘velho’ e esquece do ‘meio’ e do presente. Eu lembro e
tudo; tenho uma cabeça boa!” (Angelina, 91 anos). E o tempo da memória
representa o eterno reconstruir-se pela retomada do tempo vivido, experienciado
que permanecem nas lembranças e se expressam no corpo e nos atos. Tudo o
que fomos se reflete no que estamos sendo e nos permite projetar o futuro
(STANO, 2001)
A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família,
com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os
grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo, ou seja,
é a própria vida em “flash back.” Bosi (1994, p.54) nos diz: “Na maior parte das
vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e
ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho.”
Trabalho às vezes árduo dado o volume de informações que se processam na
mente. - A mamãe veio em 48, não, em 58, é a mamãe veio em 58, eu vim em
57, eu fiquei na igreja até 58, não, mamãe faleceu em 64, ó meu Deus do céu,
que confusão! (Zoé)
Para Ferreira (2007) Discutir o papel da memória no processo de
envelhecimento significa abordar o lócus privilegiado de construção de identidade
do ser velho e as estratégias de afirmação nos espaços sociais. Refletindo todo
um universo de representações e significados, a memória, atualizada pela
categoria lembrança, constitui, ela própria, uma representação que os sujeitos
fazem de sua própria vida - se eu tenho que fazer, eu tenho que fazer! Pedir
ajuda é difícil, prá mim é muito difícil. Eu sempre fui independente, nunca pedi
nada prá ninguém. Se eu consegui, consegui com a minha raça (Zoé); - Não é
para me gabar porque eu era assim ‘meio bobona’ mas é porque não tive
oportunidade de desenvolver, de estudar; se tivesse teria ido longe e hoje seria
uma grande mulher. (Angelina, 91 anos)
Pellauer (2010) afirma que uma das razões que tornam o estudo sobre
memória individual tão importante é o fato de ela estar intimamente ligada à
interioridade que se associa à individualidade e à experiência. Se a nossa
memória se perde, bloqueia ou é negada, nossa individualidade e também com
85
ela, nossa identidade pessoal, será aparentemente perdida ou negada. E afirma o
autor “A memória e as lembranças sempre pertencem a alguém ou a algumas
pessoas. Como tal, portanto, a memória é algo que atribuímos a seu possuidor,
assim imputando responsabilidade por ela a esse indivíduo ou grupo.”
(PELLAURER, 2010, p. 152)
O processo de reconstrução e ressignificação, por meio das memórias,
mostra a identidade como categoria dinâmica, construída, múltipla, passível de
ser atualizada. Mostra, ainda, a maneira como ela acompanha a construção de
um sentido para a trajetória narrada como uma história. A memória, pois,
estabelece nossa individualidade e nossa identidade (BRANDÃO, 2008). Não há,
pois, como falar de lembranças sem um envolvimento pessoal que leve a reviver,
juntamente com os apontamentos teóricos a própria história de vida, numa busca
intensa pela compreensão do fenômeno da memória e a sua relevada significação
para este estudo, pois diante da provisoriedade daquilo que somos, é preciso
sempre focar aquilo que se foi para projetar o que se quer ser.
Discutir o papel da memória no processo de vivência da velhice “em idade
avançada” significa expressar que, sendo dinâmico, esse processo para situar a
pessoa longeva no presente, precisa permitir a construção de uma nova
identidade bem como formas estratégicas de reafirmação da mesma nos espaços
sociais da atualidade. Essas questões interessam sobremaneira, porque fazem
um aporte teórico-epistemológico que permitem compreender as reminiscências
do mundo subjetivo das mulheres que vivenciam, na atualidade, a velhice em
“idade avançada”, as atrizes sociais de um determinado tempo e contexto
histórico “Os anos dão uma consciência que não tem preço, ou que tem o preço
da sua juventude. Mas não sei se trocaria a minha vivência de 80 anos pelo
tempo não vivido quando a gente tem 20 anos. Nessa idade, a gente nem se vê
vivendo” (MONTENEGRO, 2009).
Segundo Bosi (1994, p.43) A fenomenologia da lembrança constitui o
centro dos debates sobre tempo e memória, provocando reações que ajudaram a
Psicologia Social a repensar os liames sutis que unem a lembrança à consciência
atual e, por extensão, a lembrança ao corpo de ideias e representações.
Pellauer (2010, p. 149) fazendo uma reflexão sobre o pensamento de
Ricouer se pergunta: “porque é que o que lembramos é lembrado como passado.
86
Não deveríamos ir ainda mais além e dizer que sem a memória não teríamos
ideia ou experiência do passado como passado e, portanto, nenhuma ideia do
tempo como vivido”? Essa observação permite pensar que sem um nexo com o
presente, na interface entre o individual e o coletivo, ocorreria um deslocamento
do indivíduo do mundo de significados sociais e o consequente desmantelamento
da sua condição de sujeito, da sua trajetória social e das suas referências de
pertencimento. Esse passado lembrado foi outrora real e pode-se ainda dizer real
à sua maneira se for possível incluir e entender essa condição de realidade de
“ter sido.” Neste momento, faço das minhas lembranças um retrato do “ter sido” e
que hoje se incorpora no “que sou”: Nas visitas à casa paterna, os encontros
pautavam-se nas conversas baseadas nas lembranças. E havia um nexo perfeito
entre o passado e os afazeres de agora [...] os pais de ontem, hoje são os amigos
com os quais partilhamos as lembranças: as deles e as nossas.
A evocação da memória e das lembranças será sempre carregada de
significados que irão subsidiar o exercício cotidiano da reconstrução de si e da
identidade, com base no tempo vivido para um vir a ser num movimento constante
entre o passado, o presente e o futuro. A capacidade de lembrar juntamente com
a de falar, narrar e compreender é constitutiva do ser humano capaz. E com isso
“se trabalha a memória e se recompõe um mundo de subjetividades que vão se
fazendo na cotidianidade de um passado que permanece na lembrança e nos
gestos, de reminiscências que revelam um estar-sendo porque carregado de
sentidos” (STANO, 2001, p. 25). Também aqui, faço das minhas próprias
lembranças num referendum acerca do peso do passado nas vivências do
presente, para o ser que envelhece: Não havia nada que se pudesse comparar
com aquela casa azul nos dias da festa dedicada ao santo padroeiro. As
bandeirolas coloridas suspensas em enormes varais, o estandarte de São João
Batista preso no alto de um mastro de madeira roliça e lustrosa e a imensidão de
convidados: todos os moradores da pequena cidade do interior. Ninguém era
preterido nesse dia e os labores e sabores da casa se abriam para uma partilha
mais do que fraterna, amorosa.
A memória se constitui assim, nesse armazenamento de experiências,
sempre crescente e que dispõe da totalidade da nossa vida. E, segundo Morris
(2010, p. 165) “O processo de encontrar uma linguagem expressiva que possa
87
evocar uma emoção vivida desenrola-se mais facilmente quando o sujeito está
lidando com a recordação dessa emoção do que quando está no meio de
experiências”. Para Cícero (2006) a simples consciência de ter vivido sabiamente,
associada à lembrança de seus próprios benefícios, é uma sensação das mais
agradáveis - Para mim as lembranças é algo muito prazeroso (Zoé). Com efeito,
conduzir a vida, sempre a associando à lembrança de realizações virtuosas,
significa mais do que produzir a própria história, significa alimentar a existência
seja de alegria, tristeza, orgulho ou ‘vergonha’; Sentimentos esses, verdadeiros e
inerentes a essência do ser humano. - Então eu descia pra praia com meu
guarda sol e a cadeira e eu tinha vergonha! Tinha vergonha de não ter ninguém
(Zoé)
A reposição de uma identidade construída ao longo da existência permite,
ao sujeito, num exercício dialético, articular recursos internos e externos para sua
reinserção em um ‘locus’ novo: [velhice em idade avançada]. Ter o seu espaço de
exercício da memória num território que lhe seja familiar pode significar a
diferença entre ser sujeito de si ou excluído de um dos direitos mais autênticos do
ser humano: o existir. É, portanto na memória, que o sujeito busca a integração
de todas as suas vivências para assim alcançar a unidade desejada.
A identidade profissional, por exemplo, além de passar por inúmeras
transformações, mescla-se invariavelmente à identidade pessoal, e ao promover
essas transformações mantém, porém, a essencialidade de cada um e suas
referências. É o processo da identidade enquanto metamorfose, numa articulação
entre a subjetividade (tempo interno) e a objetividade (tempo externo) do ser
velho, favorecendo a minimização da discrepância entre o que se aparenta ser e
o que se sente ser e que subsiste por seu sentido. E, como ser no mundo, o
homem absorve imagens e recorrências atuais, tira do passado e da memória o
direito à existência, refaz o passado e segue convivendo com ele. – O passado é
presente como história de vida; o futuro é presente como projeto de vida; somos o
88
presente sempre, quando articulamos história de vida e projeto de vida em cada
“hoje”. 13
Segundo Stano (2001, p. 54) “A memória como condutora e mediadora da
evocação do tempo, na velhice assume um papel importante de redefinição de
identidades” e o ser que vai envelhecendo carrega consigo esse tempo existencial
e isso lhe permite, paradoxalmente, renovar a sua própria existência. - E agora
vendo as imagens é muito bom e eu fiquei muito feliz, fiquei ah! me senti de novo
nova e tirei muitas fotografias do mar (Zoé)
A participação ativa no mundo presente leva-nos algumas vezes a ter a
sensação de pertencer a uma comunidade, um conceito relacionado com o
atávico desejo de gregarismo humano na busca da segurança e da sobrevivência.
Lendas antigas, feitos heroicos, seja na ficção ou na realidade, guardam na sua
memória celular a lembrança dos dramas, tragédias e o consequente medo
atávico advindo dos mesmos e do que esses acontecimentos significaram em
suas vidas. – porque eu tenho assim por trás de mim todo o sofrimento meu, da
mamãe, da minha família eu tenho através da mamãe. Eu acho que é do sangue
também. (Zoé)
Numa vertente da Psicologia, a memória genética seria aquela presente
desde o nascimento, e que prescinde de experiência sensorial. É incorporada ao
genoma ao longo dos tempos e está fundamentada na ideia de que experiências
comuns de uma espécie acabam sendo incorporadas ao código genético. Esta
teoria foi utilizada por Jung (1986) para explicar a memória racial e sua
diferenciação da memória cultural, que consiste na retenção de hábitos,
costumes, mitos e artefatos por grupos sociais. - É uma coisa muito estranha
assim que mexe com a gente viu? São sombras exatamente que vêm não
definidas, interessante que quando eu vi o mar eu fiquei assim, né? Está
banhando o meu país, onde eu nasci, mas o que é que tenho de lá, nada, nada!
(Zoé).
13 Contribuição de Ciampa (2014).
89
O estudo com pessoas pelo do método de narrativa de história de vida faz
com que o pesquisador se depare com situações em que o narrador chora, às
vezes, muito, ao relatar momentos de suas vidas, nem sempre os que parecem
mais intensos e, quase sempre, entre fragmentos de memórias intercalados com
espaços de silêncio profundo. Seriam reminiscências de lembranças atávicas? -
E tirei muitas fotografias do mar então porque é que você está tirando foto, é de
água? Eu digo: essas águas banham também o país onde eu nasci estou revendo
agora e isso me emocionou. Estancou lá dentro vem as coisas na cabeça
(silêncio) (Zoé).
Bosi (1994, p.89) questiona: Qual a função da memória? E afirma: “Não
reconstrói o tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o
presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além, ao
qual retorna tudo o que deixou à luz do sol” - Devo ter alguém na Lituânia, porque
mamãe se correspondia com meu tio e ele ficou durante 7 anos na Sibéria (choro
contido) ele foi preso ele não aceitava os bolcheviques (Zoé).
O tempo da memória é o tempo subjetivo, que em oposição ao tempo
objetivo, mensurável e que regula as sociedades contemporâneas, está
intimamente ligado ao nosso mundo interior, cujo dinamismo se orienta por todas
as nossas percepções pessoais, nossas sensações. É, portanto, um tempo
qualitativo e, conforme Deleuze (1966, p.45) “O tempo enquanto duração está
profundamente ligado à liberdade, visto que pode ser associado, identificado com o maior
recôndito de nosso ser (...)” E, se a modernidade enquanto produtora de amnésia
(BALANDIER, 1997) valoriza o efêmero e insiste em apagar as referências do nosso
passado, o tempo subjetivo, ligado às mais profundas camadas de nossa memória
individual, as lembranças, quando acionadas pelo relato da história de vida, se fazem
presentes, redefinindo as identidades e dando sentido à vida do velho, da velha.
Nunca percebi que amadureci (...) às vezes me assusto quando lembro que tenho 90 anos – aliás, quando me lembram, porque eu mesma não penso nisso. Confesso que não senti essa metamorfose. (BIBI FERREIRA, In: REVISTA TPM, 2012)
Afinal o que é ser longeva? A idade é um critério suficientemente válido
para identificar um velho, uma velha? O que faz uma velha? Quais são seus
anseios, medos, expectativas? Fazem ainda planos para o futuro? - Eu me
90
considero uma mulher forte, eu não me abato na luta pela vida, na luta pelas
coisas que eu quero (Zoé)
Zoé, uma deusa gnóstica que simboliza a vida, energizadora, é o
pseudônimo escolhido pela depoente para a narrativa da sua história de vida. Aos
90 anos de idade essa mulher emblemática por estar à frente do seu tempo e por
ter concretizado uma jornada pessoal e profissional que lhe confere satisfação e
otimismo diante da vida, se vê num momento especial de superação de
problemas de saúde e de indagações sobre a “ansiedade” que, segundo ela,
apareceu com o avanço da idade e o processo de aposentadoria. Assim ela se
expressa sobre o seu atual momento - É o momento de me transformar (...) o
momento é diferente (...) mas não poder fazer o que o que eu fazia (...) é incrível
isso, quer dizer, eu não me conformo com a minha teimosia, entende? (...) eu tô
melhorando (...) ansiosa ainda, mas tô bem melhor (...) eu vejo como a vida deu
um formato diferente (...) Sim, sim, saber envelhecer.
Num dos últimos encontros com a pesquisadora, Zoé fala sobre os seus
afazeres: o retorno gradativo às aulas de pintura e ginástica, o esforço para sair
de casa sozinha e caminhar pelas ruas, as atividades financeiras [contas
bancárias, pagamentos, etc.] e surpreendentemente o exame de revalidação da
carteira de habilitação para os próximos três anos.
Não é fácil ver-se num corpo debilitado pela doença [AVC] antes cheio de
frescor e vitalidade e agora lento e cansado. Mas Zoé se diz uma mulher
realizada - Eu sinto uma mulher feliz (...) eu sou assim lacrimejante, emotiva e
isso não significa infelicidade (...) eu olho para trás e digo: eu sou uma mulher
realizada, tive uma excelente mãe, uma boa educação (...) o trabalho eu fiz o
melhor que eu pude, acho que fui eficiente, consegui um companheiro
maravilhoso. Eu estou sozinha, estou sozinha, mas eu tenho amigos e tenho essa
força energética aqui [mostra o peito] que me dá vigor, que me faz viva, que me
dá mais força não é? (...)
O seguinte conjunto de questões se desdobra da pergunta original do
estudo que era: Que percepções podem ser trazidas pelo relato de uma longeva e
em que medida sua narrativa é capaz de revelar particularidades sobre como
evolui a identidade feminina? As questões que agora se colocam são: como se
construiu essa identidade e essa vida cheia de energia? Qual a visão dessa
91
mulher sobre a sua trajetória? Quais foram os tropeços e superações nessa
jornada? Afinal, que história a narrativa de Zoé quer contar? Que contribuição
essa revelação oferece da perspectiva da psicologia social, quando deseja
analisar o sintagma identidade-metamorfose-emancipação?
93
Capítulo 1 A fase estrela solitária
A biografia de uma pessoa só pode ser identificada à medida que se descobre a história que sua história conta. Mas à medida, também, que se pode abrir a História em meio à qual uma história pode acontecer e construir significados (CRITELLI, 2012, p. 99)
A história de Zoé se mescla com a História da colonização do Norte do
Paraná, mais especificamente a de Londrina, um povoado numa clareira na mata
virgem onde imigrantes de quatro continentes e de diferentes regiões do Brasil
vieram em busca de uma vida nova na fértil terra vermelha.
Ver a vida olhando para trás, para o tempo vivido, revivendo as
experiências por meio da narrativa da história de vida, extraindo desse passado o
seu significado propicia o reconstruir-se enquanto sujeito, pois não é por acaso
que as lembranças afloram e sim porque as experiências representam um quadro
de referências para a permanente renovação. Segundo Jung (1986, p. 7) A
história de vida começa num dado lugar, num ponto qualquer de que se guardou
a lembrança. A história de vida contada por Zoé começa assim: Nasci no dia 19
de julho de 1924. Faz tempo não é? Nasci na cidade de Alitus na Lituânia (...) nós
viemos prá cá quando eu tinha 9 meses (...) Eu era muito pequena, deveria ter
uns quatro, cinco anos e eu sei que me internaram num colégio de irmãs e eu, eu
fiquei lá não sei quanto tempo, não tenho idéia, não sei se foram seis meses se
foi um ano .
O fato de tratar-se de prática relativamente comum na sociedade, o
abandono de crianças [proposital ou necessário] deve ser visto como meio capaz
de gerar angústia, medo e sofrimento que podem redundar em desacertos
psicológicos para a vida futura, pois nos primeiros anos de vida, a criança é
dependente das concepções dos maiores à sua volta e, para viver em acordo com
as exigências desse outro, ela acaba por limitar e, até mesmo matar a sua vida
interior (BOSI, 2003)
Zoé em vários encontros falou, com tristeza, da sua solidão. Mesmo não
fazendo referência direta ao abandono na infância, ela se autodenomina “estrela
94
solitária” no espaço sideral onde as constelações abundam. E sente-se mal com
essa condição – Eu tinha vergonha, tinha vergonha de não ter ninguém, vergonha
no sentido de eu ser só (...) então eu me sentia como um bólide (...) eu era uma
estrela solitária, uma estrela cadente, sozinha. Num estado de total abandono ela
passou toda a infância. Com a separação entre os pais e com a mãe tendo que
trabalhar em condições quase sempre excepcionais porque não tinha a sua
documentação profissional oficializada aqui no Brasil, o que a obrigava a
submeter-se a horários noturnos e a viagens constantes, a filha era deixada aos
cuidados de outrem.
Zoé, nas ausências da mãe, ficava em pensões, casas de conhecidos e
internatos, numa solidão profunda - (...) nós não tínhamos mais casa, mas,
naquela época havia aquelas pensões assim bem ajeitadas e tudo e nós
morávamos numa pensão dessas (...) muitas vezes eu me sentava no restaurante
(...) e esperava mamãe e a mamãe não vinha [silêncio] e eu tomei, tomava
consciência de que estava sozinha, de que se a mamãe não viesse o que seria de
mim? Prá onde eu iria? Então eu ficava lá esperando mamãe e começava a
chorar (...) e se mamãe não vier? E chorava.
A figura materna idealizada pelo modelo de sociedade do final do século
XIX e início do século XX, como boas mães, virtuosas esposas e dedicação
integral ao lar responsabilizava-as pela educação e pela vida dos filhos,
imputando-lhe enormes responsabilidades. Vale questionar: será que o sofrimento
causado pela ausência materna por longos períodos, criou em Zoé uma
predisposição para a coragem, a disposição, o destemor?
Tendo que conviver com a solidão e o abandono, Zoé tentava encontrar na
literatura os recursos para não sucumbir na tristeza do isolamento. Ao debruçar-
se sobre a leitura, ela se envolvia com a arte da narrativa que por sua capacidade
criadora, pela mobilização dos sentimentos, exigia do seu psiquismo elevada
atividade. Para Brandão (2008), tanto o sujeito criador, o artista, o escritor, etc.
quanto o sujeito que aprecia as mais distintas formas de artes não pode ser
passivo diante da vida.
Na ausência da mãe, Zoé expressava todo o seu mal-estar nas lágrimas.
As lágrimas traduziam o seu drama familiar. E, na procura por encontrar-se, saber
quem era, para onde ir, sente uma aguda necessidade da presença e da proteção
95
da mãe. O medo e a solidão exercitam a imaginação e podem transformar-se
numa espécie de antídoto contra as opressões e dificuldades futuras. “E
precisamente a noite povoada por temores ancestrais, a noite dolorosa da solidão
e da espera transforma-se: o que evoca a morte torna-se presença do eterno”
(autor desconhecido).
No seu retorno para casa, depois da primeira experiência no internato, Zoé
viu-se numa situação de desconforto e relembra uma passagem que ela
considera “coisa interessante” que ela expressa assim: (...) – eu vi eles
discutindo que em frente de casa onde a gente morava havia uma casa grande
com um sacadão e eu via sempre uma mulher bonita de roupa assim, de um
penhoar bonito e andando naquela sacada e um cachorro que me parecia galgo,
um cachorro grande, assim, branco meio magro e eu achava aquilo lindo! E eu vi
mamãe discutindo com meu pai (...) e ela dizia que aquela mulher era amante
dele (...)
A vivência da infância sem a figura paterna, aparentemente insignificante
para Zoé – Eu nunca fui agarrada à ele, e a mãe assumindo o controle da
situação, pode ter sido a semente de um comportamento de adulta alicerçado na
firme disposição de vencer os obstáculos a qualquer custo, um comportamento
isolacionista, individualista muito próprio das sociedades contemporâneas e até
mesmo de arrogância diante das vicissitudes da vida. Evidencia-se isso na
declaração da depoente em relação ao avanço da idade – Mas eu não aceito as
limitações (...)
Relatos da infância que guardam certa similaridade com outras situações
vivenciadas ao longo da vida, como por exemplo, a repentina admiração pela
professora de francês: mulher, bonita e autônoma, um perfil feminino que Zoé
admirava e que no qual procurava se espelhar - Quando eu fui para o ginásio, na
primeira série lá em Taquara, quando a professora de francês entrou na sala de
aula e falou: - Bonjour mes enfants, comment allez-vous? - Ah! nossa que
bonito! É isso que eu quero ser, é isso que eu quero ser!
Delineia-se, então, um movimento em busca de uma identidade almejada
ainda na infância. Numa empatia instantânea com a professora de francês, Zoé
projeta o seu futuro e, ao mesmo tempo evoca o seu passado. A sua identificação
com a professora a faz relembrar a cena na casa paterna - Agora você veja,
96
entre parênteses, lá atrás não é? A mulher bonita de penhoar e cachorro galgo
não é? Aí, a francesa, a francesa é tua amante! Como entender essa empatia
instantânea com a professora de francês? Esse desejo tão evidente e tão firme de
tornar-se também professora de francês? E por que essa identificação a remeteu
às lembranças do sacadão e a francesa amante do pai?
Zoé busca no recurso da memória as respostas para as suas angústias
atuais, objetivando alcançar, por meio da recordação, a unidade desejada, ou
seja, um equilíbrio entre o que foi e o que é hoje: uma longeva, que rejeita as
limitações e que persevera na coragem e autodeterminação que marcaram toda a
sua existência - Apesar de todos os tropeços, apesar de todas as pedras no
caminho né? Eu acho que eu soube tirá-las do caminho com jeito ou às vezes me
machucando um pouco, mas, tirei!
Com o amadurecimento biológico e psicológico a criança passa a
compreender melhor o mundo e as pessoas à sua volta, desfazendo-se dos laços
quase simbióticos. Zoé, contudo, mantém a forma de relação com a mãe na
adolescência e na idade adulta o que fica evidente na sua fala - Sem ela eu não
era ninguém.
As dificuldades para prover a vida de ambas (...) nós temos que nos
defender pelo bom trabalho que nós fazemos (...) fizeram a mãe buscar refúgio
da fé, na normatividade da instituição religiosa a que pertenciam por tradição -
mamãe era católica, mas não, não encontrou apoio na igreja (...) No século XX a
igreja católica guardava um posicionamento bastante intransigente em relação ao
casamento. As célebres afirmações: “Até que a morte os separe” ou “Que o
homem não separe o que Deus uniu”, certamente representaram um impedimento
concreto para o acolhimento dessa mulher “abandonada” pelo marido.
Enquanto a mãe buscava um caminho religioso para se apoiar, Zoé
continuava a sua experiência de abandono - (...) e eu ficava com meus livros,
minhas estórias (...) E foi na igreja protestante que encontraram o refúgio e o
apoio necessários - E ela encontrou uma amigas, umas senhoras que eram letas
(...) e falaram prá mamãe que a igreja (...) protestante, protestante, eu fui criada
na igreja protestante (...) tinha uma palestras interessantes (...) então mamãe me
levava. Berger & Luckman (1976) debatem a questão da adequação dos papéis
sociais, destacando a importância social das instituições, construídas
97
historicamente pelas tradições e hábitos, por dotarem as pessoas de significado e
sentido para a vida, configurando valores que serão aplicados para regularem a
vida social e individual.
A vinculação de mãe e filha aos valores da igreja protestante norteou a vida
dessas mulheres de forma intensa e Zoé inicia a fase de adolescente num
internato confessional - Quando eu tinha 12 anos a mamãe me internou num
colégio protestante (...) ela se interessou pela mensagem dessa igreja evangélica
e me internou porque eu já estava ficando adolescente, já começava então a, a
dar trabalho (...) eu chorava e dizia: mãezinha tu não gostas mais de mim? E ela
dizia: Não, é para o teu bem. Eu sabia lá o que era para o meu bem!
Como se vê a narrativa da infância de Zoé revela uma trajetória de
formação do sujeito sedimentada em dois aspectos importantes, dois núcleos de
analise: a relação quase simbiótica com a mãe e a proeminência do universo
simbólico cristão. Esses aspectos foram os fundantes da socialização primária e
secundária de Zoé, bem como de sua identidade de papel.
Sendo filha única, sem o pai presente, sem outros familiares, as suas
ações no período da socialização primária podem ser imputadas à mãe. Sua
identidade foi formada pela internalização das ações, crenças e convicções
maternas. Zoé era apenas “filha” e foi como filha apenas que ela adentrou ao
mundo da adolescência e do desenvolvimento da identidade de papel e da
identidade do eu.
98
Capítulo 2 A fase da mesmice à mesmidade
Como podemos encontrar o caminho das coisas se já nos disseram tudo antes que as experimentássemos? Como nos salvar dos preconceitos penetrantes que governam nosso processo de percepção? Onde começam as nossas idéias sobre as coisas? Por que as aceitamos? Como chegaram a nós? (BOSI, 2003, p. 117)
A determinação materna em guiar os passos de Zoé “é para o seu bem” e
a vinculação aos preceitos da instituição religiosa, ataram mãe e filha num laço
de vida e morte que as levou a viver a relação quase simbiótica até o passamento
da mãe, quando Zoé contava com 40 anos de idade. Mal iniciando-se na
adolescência, Zóe submeteu-se de forma incondicional: comia, vestia-se, andava,
dormia e vivia sob a tutela rigorosa da mãe aliada aos valores protestantes.
Nesse contexto estava a razão das suas primeiras crenças e atitudes. A
obediência e o esforço contínuo para ser a “melhor” foram incorporados como
natural por ela - Eu herdei isso da mamãe
Segundo Beauvoir (1967) a mulher ao responsabilizar-se por uma menina,
busca, com zelo transformá-la em uma mulher semelhante a si própria. E mesmo
uma mãe generosa, bem intencionada, que deseja sinceramente o bem da
criança, acredita ser mais prudente fazer dela uma “mulher de verdade” para ser
aceita e reconhecida pela sociedade.
A vida, seguindo um fluxo de normalidade proporciona pequenas evasões
para que o ser em formação dê conta de suas próprias necessidades e anseios.
Acontece o abandono de restos da fase simbiótica, e a criança começa a criar
uma instância interna de autonomia, diferenciando outras realidades. Tanto é
assim que foi no internato protestante que Zoé começou a vislumbrar um mundo
novo, algo além das experiências infantis - (...) Para mim foi uma experiência
assim muito interessante [ênfase] porque eu nunca tinha saído, nunca tinha visto
uma vaca, tinha visto um cavalo, nunca tinha visto nada, não é?
O período da adolescência, vivido no internato está repleto de “pequenas
alegrias” e descobertas do mundo circundante, o que – utilizando a conceituação
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de Berger & Luckman (1976) – permite afirmar que se caracteriza o termino da
socialização primária e início da socialização secundária. Do momento em que se
reconheça na ação do outro, o indivíduo encontra a forma de tornar-se aceito
socialmente, interiorizando as suas ações e as reproduzindo externamente,
tornando-as parte da comunidade que partilha uma mesma dinâmica e forma de
ações normativas, que passam a ser referência para a vida. Segundo os autores,
para pertencer a um grupo social, o sujeito precisa reproduzir os valores e
símbolos compartilhados ao mesmo tempo em que se adapta aos mesmos,
afirmando-se como indivíduo autônomo numa articulação entre o “me” e o “eu”.
- Aqueles colégios deles naquele início eram colégios (...) como se fosse
uma fazenda (...) e a gente pagava bem, pagava bem mas a gente tinha que
trabalhar duas horas por dia (...) então a gente trabalhava na cozinha (...) tinha
que arar a terra, tinha que plantar (...) a gente tinha aulas de manhã e de tarde a
gente trabalhava (...) As escolas protestantes foram importantes para a educação
da mulher brasileira. O protestantismo assegurou com o princípio da laicidade
uma parcela significativa no campo da educação e, na primeira metade do século
XX proliferaram pelo país as escolas e os pensionatos protestantes (SAFFIOTI,
1976). Mãe e filha foram beneficiadas com isso, numa fase de suas vidas, como
estudante, professoras e moradoras. E se isso lhes era propício por um lado, por
outro as tornava irremediavelmente subordinadas à normatividade e aos preceitos
da igreja protestante.
O trabalho como norma rígida agregando valores morais foi exercido à
exaustão por Zoé, durante toda a vida, limitando os anseios próprios da idade, os
sonhos, os devaneios e as urgências do corpo. Apesar do relato bem humorado
e de um encantamento com a rotina de trabalho no colégio - (...) Cê veja que
festa, não é? Era uma delícia (...) tinha que quebrar milho, não é? E aqueles
bichos assim, ai que medo que eu tinha! Mas era muito divertido (...) há que se
considerar o alerta de Beauvoir (1967) para o fato de que a menina
sobrecarregada de tarefas pode ser prematuramente escrava, condenada a uma
existência sem alegria. Se no período escolar essa experiência foi prazerosa, ao
longo da vida, no entanto, deixou sequelas por inibir o desejo natural de participar
de festas, passeios, namoros, etc. - Eu não tive essas coisas, esses “perfumes”
a minha vida foi só trabalho.
100
Embora ainda muito dependente da mãe, Zoé começa, na adolescência, a
exercitar o seu próprio modo de ser - eu comecei a fazer arte (...) eu tive uma
amiga polonesa e a mãe dela era protestante também (...) e ela foi interna
naquele ano, então prá mim foi muito bom (...) e nós duas subíamos nas árvores
(...) e a gente subia nas mexeriqueiras ou em outras árvores, seja o que for e
fazia xixi lá de cima (risos) (...)” pequenas traquinagens, mas que podem ter um
significado mais profundo, relacionado ao poder do menino que por sua fisiologia
pode urinar em pé em qualquer lugar. Já a menina tem, segundo Beauvoir (1967)
uma sorte muito diferente. As suas partes genitais não chamam a atenção das
mães. É um órgão secreto do qual se vê o invólucro e não se deixa pegar; em
certo sentido, a menina não tem sexo. Mas, encima das árvores, tudo se torna
possível e fazer xixi como se fosse um menino pode ser experimentado como
uma forma de poder - (...) aquilo era novidade, aquilo era festa (...)
Sabe-se que à medida que a razão se desenvolve o nosso conhecimento
vai aumentando e vai nos habilitando a organizar a nossa relação com o mundo,
mas no caso específico desta narrativa, os pequenos movimentos rumo a uma
vida mais autônoma redundaram em reprimendas e até castigos físicos que
fizeram Zoé recuar e continuar submissa às determinações da mãe.
A rigidez da conduta a ela imposta só tinha um objetivo, transformá-la em
uma mulher independente e forte o suficiente para não sucumbir aos ditames do
amor e do sexo. Conforme as considerações da mãe - Prá você só se for o filho
do Czar montado em um cavalo branco! As determinações da mãe encontraram
eco nos valores e premissas liberais que organizavam a sociedade brasileira na
época, com discursos homogeneizadores dos papéis femininos: filha obediente e
esposa dedicada (DEL PRIORE, 2021).
É evidente que não foi possível para Zoé encontrar o filho do Czar, e a sua
narrativa dá conta de dois desastrosos envolvimentos com o sexo oposto. O
primeiro, ainda adolescente, se traduz num namoro à distância, platônico e
próprio do início do século XX. Em versos ela expressa o seu amor ao rapaz -
(...) logo sinto voltarás e verei os lindos olhos teus (...) e eu os porei juntinho aos
meus (...). Inocentemente Zoé encaminhou os versos por uma amiga e ela não
sabe como os mesmos acabaram nas mãos do diretor do internato e nas da mãe
- (...) então levei uma surra, aos 16 anos; porque apanhei não sei (...) para mim
101
doeu muito! Porque eu estava numa boa você sabe, adolescente, não é? (...) o
sofrimento quando eu estava me despertando para o amor.
Não há como negar as urgências do corpo nessa fase da vida; sublimar os
desejos, a natural curiosidade pelo sexo oposto, pois se está, naturalmente,
voltada para descobrir-se enquanto mulher “A jovem acha-se voltada à pureza, à
inocência, precisamente no momento em que descobre em si e em derredor os
perturbadores mistérios da vida e do sexo (...)” (BEAUVOIR, 1967, p. 74)
Sem alternativa e acreditando ser o melhor para ela, Zoé se consome nos
estudos, colocando as forças físicas e mentais a serviço dos desejos que lhe
foram incutidos pela mãe e devidamente “aprovados” pela igreja, anulando-se
completamente. Ela não busca as evasões possíveis para romper com esse
estado de coisas. Havia na submissão um compasso de espera. Enquanto a sua
juventude se consumia ela ainda esperava pelo homem que haveria de ser seu.
Ela deseja continuar uma verdadeira mulher para sua própria satisfação. Só consegue aprovar-se através do presente e do passado, acumulando a vida que fez para si com o destino que sua mãe, que seus jogos infantis e seus fantasmas de adolescente lhe prepararam (...) a forma primitiva de seus sonhos de independência foi um lar próprio; não pensa em renegá-los, mesmo tendo encontrado a liberdade por outros caminhos (BEAUVOIR, 1967, p. 454)
Emotiva - eu sou muito emotiva, Zoé carrega uma performance existencial
de rígidos controles sobre si mesma e sobre as pessoas que a cercam. Trata-se
das tensões e das contradições vivenciadas por ela em diferentes fases de sua
vida; tensões entre ela e o seu tempo e a sociedade na qual estava inserida. É
pois, relevante, “(...) desvendar as intrincadas relações entre a mulher, o grupo e
o fato, mostrando como o ser social, que ela é, articula-se com o fato social que
ela também fabrica e do qual faz parte integrante” (DEL PRIORE, 2012, p. 9) -
Então eu fiz o curso clássico (...) e conheci, no segundo ano, um rapaz cearense
que estava fazendo Teologia. E então foi também um namoro assim de longe.
Zoé não diz como o conheceu e sequer mencionou o nome do rapaz. Esse
silêncio, esse não dito que significado terá? Um namoro ainda que de “longe”,
próprio da época, pode prescindir de uma identificação? Não ter nome é não ter
identidade, é não existir? Ela, porém, mesmo sem a aprovação da mãe que dizia:
- (...) esse homem não serve prá você! fica noiva e relata com visível emoção as
102
formas inusitadas de manter um relacionamento, ainda que à distância (...) - fiquei
noiva do rapaz, o cearense, um nordestino cheio de graça, não é? E uma noite
por mês nós íamos no grupo social. Então eles punham música e reuniam os
rapazes e moças num salão enorme (...) então era a marcha! A moça dava a mão
pro rapaz e ia marchando e fazendo, marchando de mão dada. Nossa, que
maravilha!
O curso clássico foi realizado no colégio protestante, em Curitiba, e Zóe
morava no pensionato da própria instituição onde as instalações eram separadas
para homens e mulheres e como todos tinham que trabalhar, as garçonetes eram
também estudantes e o grupo criou uma forma de manter contato com a “troca de
sobremesas”, através da qual, os namorados comunicavam-se, com a conivência
da colega que as servia; e nessa troca vinham os recados, as declarações de
amor! Ao se lembrar disso Zoé sorri e diz: - Ah! como as coisas mudaram. Isso
era gostoso! Faz tempo não é? Parece que não é muito gostoso, não sei, eu
acho. É outro tempo. É uma outra época (...). Toda entrevista individual traz à luz
direta ou indiretamente uma quantidade de valores, definições e atitudes do grupo
ao qual o indivíduo pertence, de um tempo histórico, ou seja, são relatos de
práticas sociais e das formas como o indivíduo se insere e atua no mundo e no
grupo do qual ele faz parte. A identidade é construída num determinado contexto,
onde ocorrem as interações sociais e para Ciampa (1987, p. 169) “é a estrutura
social mais ampla que oferece os padrões de identidade”
Terminado o curso clássico, Zoé está determinada a ingressar na
universidade e ao comentar o seu desejo com o noivo ele não gosta da ideia - eu
digo: eu quero estudar, aí ele não queria que eu estudasse. – não você não
precisa estudar (...) para quem ia ser pastor, Porque eu precisava estudar? Esse
posicionamento do rapaz refletia muito bem o projeto14 que norteava a vida na
região sul do país onde os periódicos e jornais “(...) ora reconheciam a
importância do trabalho feminino, ora explicitavam o temor da concorrência.
14 Ideário positivista que no final do século XIX e início do século XX, onde cabia ao homem o trabalho e o sustento financeiro da casa e à mulher respeitar o pai e o marido, cuidar da educação dos filhos e do lar
103
Nesses jornais eram divulgadas as imagens idealizadas, nas quais era definido o
lugar das mulheres (...)” (PEDRO, 2012, p. 305).
Mesmo antes de cursar a universidade, Zoé já havia iniciado a carreira no
magistério, atuando no mesmo colégio onde a mãe lecionava e onde moravam -
(...) nesse tempo eu já lecionava lá em Taquara (RS) (...) como eles não tinham
professor de latim (...) eu estudei latim muito tempo e eu gostava (...) estava
fazendo o enxoval, estava noiva, ia casar (...). Por conveniência do colégio foram
transferidas para Curitiba e lá o noivado começou a arrefecer (...) - carta vai,
carta vem, carta demorando prá vir, carta demorando prá ir (...) mas como? Vou
casar!
Beauvoir (1967) já denunciava em sua obra a total dependência da mulher
ao homem, que sem dúvida era tido como um ser superior, intelectual e
socialmente. Elas procuram um homem que lhes pareça superior a todos os
outros pela posição, o mérito, a inteligência; Unir-se a esse ser de elite era o
sonho de toda moça. E, para Zoé não foi diferente; ela acreditava ter encontrado
o seu par - Ele poderia ser o meu homem!
A incompatibilidade do casamento com a vida profissional era uma das
construções sociais persistentes. Ser esposa e mãe era, efetivamente, a
verdadeira carreira feminina e “Tudo que levasse as mulheres a se afastarem
desse caminho seria percebido como um desvio da norma (LOURO, 2012, p. 454)
- Eu ia prestar vestibular para a universidade do Paraná prá Letras Neo Latinas,
mas eu ainda gostava dele, eu tinha esperança de que ele seria “meu homem”
(...) depois fiquei sabendo que houve muita coisa; mamãe perceptiva! Esse
homem não serve prá você (...) ele estava diferente (...)
Ao romper o noivado, o contato mais próximo com o sexo oposto, ela
acredita que, de fato, aquele homem não servia para ela. E juntamente com o
enxoval ela trancou a sua sexualidade no baú, até os 40 anos de idade. A partir
daí, Zoé afirma: - Para mim um homem e um poste na rua era a mesma coisa!
“Nós temos dentro de nós um porãozinho. Ele abre e fecha automaticamente. E
as coisas caíram dentro do meu porão. E o porão fechou. E ficou fechado durante
45 anos” (CORA CORALINA).
104
A partir de então, a vida de Zoé foi focada no estudo visando não a
satisfação dos anseios do momento, de realizações imediatas, de uma vida boa,
mas em função de um segurança futura, já que ela abriu mão de realizar-se como
mulher, para dedicar-se a uma realização profissional - (...) e assim passou o
tempo e eu desmanchei esse noivado e durante 10 anos (...) eu não quis mais
saber de homem. Digo: não, agora eu vou me preparar para a minha velhice
porque como a mamãe sempre diz: - nós não temos quem nos defenda, nós
temos que nos defender nós duas, pelo nosso comportamento, pela nossa
postura, nosso trabalho bem feito; é isso que nós temos que ser, e que ninguém
venha dizer alguma coisa de nós!
A proliferação dos discursos apontando a incompatibilidade entre trabalho
e casamento, favoreceu o estudo e a profissionalização de Zoé, porém essa
opção lhe cobrou [mesmo que ela não confesse] um alto preço: a renúncia ao
casamento, à maternidade, reafirmando a sua condição de “estrela solitária” para
poder dar conta da trajetória profissional
(...) as trabalhadoras de ‘colarinho branco’ aspiram um nível intelectual e social superior. Porém essas aspirações, combinadas com os limites que lhes impunha o trabalho e com sua entrega psicológica ao mesmo, impedem-nas de encontrar par; sós, experimentam o peso da deficiência e do descrédito (LOURO, 2012, p. 465)
Terminado o curso de Letras, Zoé quis fazer Direito porém, a instituição à
qual pertencia pela fé, onde morava e trabalhava não entendeu ser interessante
essa nova carreira e despoticamente, decide o caminho que ela deve seguir - (...)
a associação não deixou (...) então me matriculei na primeira turma de jornalismo
da PUC.
Inicia-se então uma jornada árdua rumo ao futuro que determinou: ser uma
profissional competente e responsável, capaz de “defender-se” conforme lhe
ensinara a mãe. Jung (1986, p. 26) nos faz um alerta em relação a essa busca
pela segurança “Pensamos talvez que haja o caminho seguro; ora, esse seria o
caminho dos mortos (...) quem segue o caminho seguro está como que morto.” E
Zoé, pode-se dizer vivia uma “morte simbólica”, mas um dia ela despertou,
conforme sua narrativa - mas eu não estava enterrada!
105
Antes de concluir o segundo curso superior, a instituição houve por bem
transferir Zoé para o colégio de São Paulo; e a reação primeira dela nos remete a
sua ligação quase simbiótica com a mãe. Não se observa na narrativa,
questionamentos quanto à transferência e sim, um desconforto pela separação da
mãe - (...) mas era só mamãe e eu, por que me transferiram? Por que não ficar
com minha mãe no colégio em Curitiba, por que?
A instituição tinha um propósito ao transferir Zoé para São Paulo, porém
conduziu os fatos de modo a promover o desligamento da professora de latim,
formada em Letras Neo Latinas, e que começava a exigir o seu espaço e a se
posicionar enquanto sujeito. As lembranças relatadas por Zoé trazem um pouco
de luz ao episódio - (...) eu sempre fui assim rigorosa! E eles recebiam alunos do
interior (...) bem fracos em termos de conhecimento (...) e teve um que eles
passaram (...) passaram aquele aluno sem perguntar prá mim; ele mal sabia
português e agora veja só o latim! Eu sei que eu reprovei (...)
Pensar a noção de emancipação “envolve a idéia de mudança dotada de
poder inovador, de construção de novos sentidos para a existência, de superação
de condições pessoais e sociais restritivas (...)” (ALMEIDA, 1999, p. 6). Ter se
rebelado diante do posicionamento da instituição certamente gerou o impasse que
desencadeou o processo que levaria ao desligamento de Zoé da instituição que
fez parte da sua vida por, pelo menos, duas décadas! A sociedade brasileira no
século passado posicionava-se de forma “intolerante” diante do desejo de
algumas mulheres em trabalhar e cercava a atividade laboral feminina de muitos
“olhares” que impunham uma regulação acentuada em sua conduta
(...) se por um lado, a solteirona era uma mulher que ‘falhara’; mas ao mesmo tempo, ela era uma mulher, quando professora, que tinha um nível de instrução mais elevado do que as outras, que ganhava seu próprio sustento e que, em consequência disso, usufruía de algumas prerrogativas masculinas” (LOURO, 2012, p. 466)
- (...) A senhora está sendo chamada para professora de francês lá no
colégio de São Paulo; (...) fiquei meio assim sem saber; mas por que eu vou me
separar se eles sabem muito bem que sou só eu e a mamãe? Como que vou me
separar da minha mãe? Em todo caso a gente... bom, se estão me chamando, eu
vou. Ser guiada pela razão, pelo bom senso é demonstração de maturidade para
106
buscar a utilidade da própria vida e, Zoé, vacilante de início foi em busca do seu
caminho - E cheguei lá e me apresentei ao diretor (...) digo assim: eu vim para
lecionar francês e ele falou: francês? Não, a senhora veio para ser preceptora
(...) digo: não, não, eu não estudei para ser preceptora, estudei para ser
professora! (...) mas queremos a senhora como preceptora. Não, não eu não fico!
Ser professora de francês, uma identidade projetada ainda na infância - É
isso que eu quero ser! Era-lhe essencial; não poderia abrir mão dessa recente
conquista. Ela havia depositado toda a sua confiança na instituição, porém agora,
as crenças e os valores dessa instância começaram a não se conciliar com a sua
experiência e consciência - (...) por que não me disseram a verdade? Não pregam
a verdade? “A mudança de atitude exige uma reorientação intelectual, um
rompimento com os vínculos sociais e uma reestruturação da experiência
passada. A mudança de atitude causa uma desordem nas relações sociais”
(BOSI, 2003, p. 119).
Desse impasse veio o desligamento do colégio protestante. Certamente
não isenta de sofrimento Zoé direcionou a sua vida pelo caminho profissional que
a partir desse momento tomou um rumo totalmente inusitado. Se as dificuldades
são mais evidentes na mulher independente é porque ela não escolheu a
resignação e sim a luta. Ela está empenhada em viver com autonomia e, segundo
Beauvoir (1967, p. 454) “A mulher independente – e principalmente a intelectual
que pensa sua situação – sofrerá (...)”
De volta ao colégio de Curitiba e ao colocar a sua decisão ao diretor que a
havia encaminhado para São Paulo com a falsa promessa de que ela seria
professora de francês, ele simplesmente diz: - (...) mas a senhora é bem
preparada. A senhora pode encontrar um bom trabalho. E com isso a inevitável
culpabilização de Zoé pelo “desacerto” entre o institucional e o pessoal, com as
consequências a serem sofridas por ela, a saída foi procurar outro trabalho.
Pensar as mulheres nas salas de aula (...) apenas como subjugadas talvez empobreça demasiadamente sua história, uma vez que, mesmo nos momentos e nas situações em que mais se pretendeu silenciá-las e submetê-las, elas também foram capazes de engendrar discursos discordantes, construir resistências, subverter comportamentos (LOURO, 2012, p. 478)
107
Zoé buscou, então, recursos nos conhecimentos adquiridos ao longo da
vida estudantil e conseguiu recomendação de um amigo, um irmão Marista, que
lhe serviu para recomeçar a sua vida em terras novas, o norte do Paraná, com
sua colonização dando os primeiros passos. Inicialmente a recomendação foi
para assumir algumas horas de aula em uma cidadezinha nascente, Assaí, que
ela aceitou de imediato, mesmo sem ter a menor ideia de como seria sair da
capital paulista para o sertão paranaense - Eu quero Assaí
Confiante ela chega ao norte do Paraná, na década de 1958, aos 34 anos,
sozinha, para enfrentar aquele “eldorado” onde as cidades eram “só meia dúzia
de ruas tortas cortando a estrada que acabava no rio, ruelas empedradas e
buraquentas, casebres e casas caindo aos pedaços, pobreza por todo lado; aquilo
não podia ser a entrada de uma vida nova” (PELLEGRINI, 1998, p. 98) - menina
o que era aquilo! (risos) não tinha hotel só tinha hotel de viajante. Um hotelzinho
assim de madeira (...) me deram um quartinho que só tinha uma cama e uma
mesinha e acabou (...) naquela noite choveu, choveu, choveu com raio, trovão,
enxurrada e não tinha ponte naquela ocasião ainda, era atravessar de balsa o Rio
Tibagi.
Naquele tempo uma só chuva não enchia o rio de hora para outra: antes bebia quase toda água caída do céu; os troncos cobertos de parasitas eram enormes esponjas sugando a chuva. Toda sombreada, a mata estava quase sempre úmida e, mesmo no tempo seco do inverno, bastava uma chuva para ressuscitar os atoleiros na estrada (PELLEGRINI, 1998, p. 189).
Depois de duas noites na cidade de Assaí, o tempo finalmente permitiu que
o ônibus transitasse pelas estradas ainda enlameadas agora porém, mais
compactas e luzidias. O destino é Londrina, com uma nova recomendação do
irmão marista: - (...) Zoé, tenho algo melhor prá você (...) o colégio Londrinense,
e ele me deu a cartinha de apresentação pro diretor do colégio (...). E foram para
Londrina, com o ônibus enfrentando ainda muitos atoleiros. E lá no colégio
Londrinense ela chega com toda sua “papelada” - Eu sou a professora Zoé e eu
gostaria de falar com o diretor geral (...) me mandou entrar e ele chegou: - bom
dia, não é? Então a senhora é a professora? Sou (...) Ele leu a carta de
recomendação (...) olhou os papéis e falou: A senhora está contratada (...) por 40
horas, ganhando, naquele tempo eu não lembro como era o dinheiro, eu sei que
era seis vezes mais do que eu ganhava; seis vezes mais!
108
É o início de uma jornada que permitiu, à Zoé, condições que a tornariam a
mulher independente e emblemática que é. Assumidamente professora de
francês, sua história nos conta como a identidade pode ser forjada ainda na
infância e que as metamorfoses se dão, talvez, nessa medida, procurando os
contornos para se chegar ao ponto desejado. Os primeiros ensinamentos da mãe
e da igreja passaram por um crivo pessoal, tomaram um rumo próprio e agora,
com poder econômico ela poderia, enfim, defender-se pelo bom trabalho que faria
- Ele me chamou para assistir a reunião de professores e já me apresentou como
professora de francês (...).
A história da colonização de Londrina remete a situações privilegiadas, de
um lado, pela vinda dos ingleses que deram origem ao povoado vendendo lotes a
preços atrativos através da Companhia de Terras Norte do Paraná, e trazendo
elementos de sua cultura que permearam os primeiros tempos, de outro, a cidade
viveu, como toda cidade nascente, momentos de dificuldades estruturais para
firmar-se. Zoé, enfrentou essas dificuldades e trabalhou muito, enquanto a cidade
se desenvolvia. Andou à pé, enfrentou a lama, o escuro, as longas distâncias,
pode-se dizer: cresceu com a cidade; foi pioneira no ensino superior. Foi corajosa
e autodeterminada a construir a sua vida.
A história das mulheres não é só delas, é também da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos (DEL PRIORE, 2012, p. 7)
Esta tese leva o leitor ao século passado e faz ouvir, ver e sentir, através
da narrativa de Zoé, como viveram as mulheres desse período histórico e como
se mantém vivas nos dias de hoje. Para Del Priore (2012, p. 9) “a história das
mulheres serve (...) para fazê-las existir, viver e ser (...)”
Trazer a mãe para Londrina foi o próximo passo e isto se deu na medida
em que Zoé empenhava-se no trabalho de forma séria e competente o que
chamou a atenção do diretor para o fato de ser a mãe também professora com
formação em várias áreas do conhecimento e com os diplomas agora
devidamente revalidados pelas autoridades educacionais brasileiras; e isso
interessava ao Colégio Londrinense. Observa-se uma nova configuração na
relação mãe-filha. Agora é Zoé quem dá o norte para a vida de ambas.
109
Interessante notar que mesmo assim, permanece a posição subalterna da filha
em relação a mãe. Respeito, admiração, medo, tolerância? não se tem essas
respostas pelo relato, mas evidencia-se um “compasso de espera” para o vir a ser
- (...) isso foi na vida como filha, digamos assim, tanto que eu me submeti à
minha mãe (...) nós nos dávamos muito bem mas eu era a sombra dela, não é?
Essa afirmação, cheia de significados e sentidos, dispensa maiores comentários e
reitera a condição de vida de Zoé como ser singular e emblemático, capaz de
sujeitar-se por “obediência” e esperar pelo momento certo para “eclodir” como
sujeito
Ser a sombra da mãe significava não ser ela mesma? E para compor esse
vazio existencial de “não ser”, resta para Zoé, “ser” alguém que só trabalha.
Trabalhando ela era filha e também professora de francês ambas “travestidas”
pela personagem “solteirona.” No silêncio imposto pela obediência, Zoé foi
construindo, aos poucos, o ser, a mulher que haveria um dia de se fazer enxergar
com a força que ela diz ter até hoje e que a faz viva e feliz. Então eu sinto uma
força dentro de mim; uma força que eu recorro à ela quando eu não me sinto bem
(...) eu faço um tipo de meditação (...) eu me concentro e faço força pra chamar
essa energia (...)
Uma vez instaladas na nova cidade, a família agora composta também de
uma moça que, para poder estudar, passou a viver com elas e em troca fazia o
trabalho doméstico. Estabeleceu-se uma relação de afeto de “irmãs” e que durou
até o momento em que surgiu a “verdadeira” Zoé - Foi ela, a Rosa15. que
arrumou toda a mudança (...) naquele tempo vieram de trem e nós ficamos no
pensionato (...) mamãe então lecionava matemática e geografia e nós ficamos no
colégio porque naquele tempo não havia aqui em Londrina um apartamento,
quase não havia nada (...) Mãe e filha, assessoradas em suas necessidades
caseiras pela Rosa, exerceram um importante papel na sociedade nascente:
colocaram seus conhecimentos acadêmicos à serviço da educação formal que
naquela época carecia de profissionais preparados. Com desconforto e sacrifícios
15 Nome alterado para preservar a identidade da pessoa referenciada pela depoente.
110
(não havia casas disponíveis nem transporte), elas efetivamente participaram da
criação e desenvolvimento da cidade de Londrina.
O próximo passo da jornada profissional de Zoé, foi a realização do
concurso público para o magistério no estado do Paraná - (...) eu quero fazer o
concurso (...) eu estava muito bem, mas eu queria assim uma firmeza, saber que
aquilo é meu (...) e fui conversar com o diretor (...) que ele me recebeu de portas
abertas , não vou fazer o concurso sem ele (...) ele olhou bem sério prá mim e
falou: se a senhora reprovar no concurso não tem mais lugar aqui. Esse
posicionamento arbitrário do diretor foi entendido por Zoé como zelo pelos
professores do Colégio, a “menina dos olhos” do seu dirigente - Ele tinha muito
ciúmes dos professores dele, que ele dizia que era o melhor daqui do norte do
Paraná (..) não sei prá ele seria vergonha, talvez, se um professor dele
reprovasse no concurso (...) Ela não se intimidou, inscreveu-se e prestou o
concurso público.
Aprovada, ela seleciona um colégio estadual para atuar em concomitância
com o particular, numa jornada de mais de 40 horas semanais; e ao fazer o relato
desse período a sua memória falha, ela confunde os nomes, os fatos e,
visivelmente sente o peso das lembranças de um tempo de muito trabalho, de
muita dedicação, porém um tempo que lhe possibilitou ser a mulher que hoje, aos
90 anos diz - (...) não tenho do que me arrepender, nem um pingo de tristeza,
tem umas coisas ruins que a gente passou, mas eu não olho, não lembro disso,
tenho respeito pelo passado, tenho; tenho certeza de que fiz o melhor que eu
podia fazer (...)
A narrativa permite compreender o processo de afirmação de Zoé
enquanto sujeito, alicerçado no trabalho, na disciplina e no desejo firme de
conseguir emancipar-se. Para Vieira (2005) os sujeitos livres, ao optarem por
aquilo que desejam, participam ativamente do processo de sua construção,
estabelecendo uma negociação entre o papel do sujeito assujeitado e do livre,
estabelecendo um meio termo nessa atuação e, ao fazerem de sua história um
modelo sui generis , tornam-se pessoas únicas - (...) eu determinei que queria
segurança (...) eu sabia que na velhice eu não haveria nada por mim, não tinha
ninguém que fizesse por mim (...) então não tive esses perfumes o meu foi
111
trabalho, muito prazeroso porque o meu prazer era o trabalho, porque daquilo que
eu ia conquistar alguma coisa me serviria pro futuro como está servindo (...)
Quando questionada sobre quem é? - Eu sou a Zoé; e eu gostaria de ser
quem eu sou porque eu gosto do que fui. Eu gosto do que fui porque eu me
considero uma mulher valente e me sinto feliz! Enfaticamente, ela afirma-se com
sua identidade pessoal, seu nome, a marca que lhe foi imposta pelos pais.
Grande parte da vida é um “dado”; não escolhemos nossos pais, os genes que
herdamos, a formação que recebemos. Com o processo de desenvolvimento, nos
transformamos e nossa identidade pessoal se expressa em inúmeras
personagens. Zoé não é mais unicamente a filha; agora, ela é também professora
de francês, e é importante ressaltar que na fase dos estudos, em Curitiba, a Zoé
filha foi a estudante, a solteirona, a assexuada que enveredou, também, pelo
caminho as artes. Mais uma vez, as experiências infantis buscando continuidade.
A criatividade exercitada através da leitura para “sobreviver” ao abandono, ganha
agora contornos mais concretos - Eu aprendi piano, mamãe me pôs. Então eu
acompanhava os hinos da igreja e regia um coralzinho de alunos, sei lá, eu
gostava, fazia por prazer (...) eu canto pessimamente, sou desafinada e não sei
daonde que eu tirei essa vontade, esse gosto (...)
A casa de Zoé está repleta de quadros pintados por ela. As atividades
artísticas sempre estiveram presentes em sua vida. Formas de evasão?
Realocação dos desejos? - (...) eu não sabia pintar, não tinha técnica nenhuma
(...) mas eu achava bonitas as cores (...). Foi um colega de universidade que
iniciou Zoé no mundo das artes plásticas, ensinamentos que fizeram dela uma
“copista” e que na idade avançada ainda faz parte das suas atividades (...) - eu
me aposentei em 89 e comecei em 92 (...) gosto, aquilo para mim é muito bom;
agora eu não estou mais distinguindo as cores escuras (...). Mesmo com a
limitação visual, o envolvimento com a pintura permanece, e ela adapta-se ao
novo para organizar a sua vida no presente imprimindo, nas suas ações, a sua
história e a sua identidade, pois a arte (...) é um acréscimo do sentimento da vida,
um estimulante para a vida (...) Nietzsche (1888, p. 129)
O trabalho como foco principal e as atividades artísticas como suporte
emocional compuseram a vida de Zoé. Um amalgamento necessário, talvez, para
112
dar conta de todas as formas de expressão negadas, dos afetos recolhidos, das
emoções fechadas por comportas intransponíveis.
A vida relatada por Zoé, desvenda um universo de intensas formas de
realização do potencial feminino: a mulher que espera, que fecha um ciclo da vida
para dar abertura a outro, trabalhando, criando, e indagando pelo sentido da vida
comandada pelos homens - Eu não achava o príncipe, o filho do Czar (...) E ao
romper com o noivo e abrir mão do casamento, ela se disponibiliza para a vida
que considera mais adequada para si - Eu a partir de agora vou cuidar da minha
vida (...) eu foquei na minha profissão, foquei no meu trabalho eu sabia que disso
dependia o resto da minha vida, as outras coisas seriam secundárias (...). E isso
significou viver para o trabalho, realizar-se através dele - como eu estava te
falando foi assim uma decepção muito grande (...) e aí eu me dediquei ao meu
trabalho. Mas a narrativa evidencia também movimentos de procuras, procura
pelo amor, pelo homem que haveria de ser seu. - (...) meu Deus, eu não pedi prá
nascer, tem misericórdia de mim, me manda uma pessoa que me ame muito e
que eu possa amar muito!
113
Capítulo 3 Fase intensas procuras
O individualismo é uma espécie modesta e ainda inconsciente da “vontade de potência”, parece bastar ao indivíduo o “libertar-se” de uma preponderância da sociedade (quer seja o Estado ou a Igreja...). O indivíduo não se coloca em oposição “como pessoa”, mas somente como unidade; representa todas as unidades contra a coletividade (NIETZSCHE, 1978, p. 120)
Esse período da vida de Zoé inicia-se com a morte da mãe e o rompimento
com a igreja até o encontro com o homem sonhado. Há lapsos de memória,
confusão de datas e apenas insinuações do que pudesse ser indicativo dessa
fase liberal de sua vida. Ela não quer falar? Ou o esquecimento de momentos
intensos pode ser uma forma de acomodar os sentimentos?
Em relação a morte da mãe o seu relato é lacônico: - Foi triste? Foi, foi
uma perda! Mas, eu não vivi; eu me enterrei! Eu consegui sair dessa. Essa fala
nos dá uma dimensão do quanto Zoé submeteu-se; e o fez até o limite de suas
forças - (...) tem umas coisas ruins que a gente passou, mas eu não olho, não
lembro disso, tenho respeito pelo passado (...) tenho certeza de que eu fiz o
melhor que eu podia fazer, isso foi na vida como filha, digamos assim, tanto que
eu me submeti à minha mãe (...)
Agora, porém, vê-se o seu discernimento quanto aos fatos: com a morte da
mãe, com o dever de filha cumprido é ela quem dá o tom para a sua vida. E
quando a Rosa [sua quase irmã] quis interferir no seu novo estilo de vida (...) - no
tempo da D. Ana não era assim (...) ela não aceitou (...) espera aí, agora é a
minha vida! A mãe estava morta, fosse como fosse, estava morta e Zoé não
sentiu pena da mãe, não chorou. - Quando eu chegava em casa, depois que a
mamãe faleceu e a Rosa foi embora porque ela não aceitava que eu saísse com
as amigas à noite, essa coisa toda e que eu tinha que ser da igreja mas eu já não
aguentava mais aqueles sermões, não podia aceitar aquilo, minha cabeça não!
Era muita bobagem para minha cabeça (...) Sim, sim, depois que a mamãe
morreu (...) Rompi com a igreja porque se pregam um coisa (...). A fala
114
interrompida dá a sensação de que as ações da igreja divergiam da pregação; e
isso Zoé não mais suportava. É o que Habermas conceitua como identidade pós-
convencional. “A identidade pensada por Habermas é reflexiva para além do
convencionalismo do ‘me’ desenvolvido por Mead, pois tem a capacidade de se
afastar criticamente das instituições e convenções.” (COSTA JUNIOR, 2006, p.
18)
Esse afastamento aparentemente brusco da igreja vinha, segundo a
narrativa, sendo arquitetado por Zoé há algum tempo. O ingresso no ensino
superior e a consequente realização do mestrado a fizeram transitar por um meio
completamente diferente do usual e a sua postura diante da vida foi se alterando
- Mas fiquei um ano na Bahia, né? (...) um ano em São Paulo e lá me abriu mais
um pouco a cabeça. Vi coisas que eu nunca tinha visto, né? (...) fui fazer o
mestrado. A partir de então, o Deus cristão, as regras da igreja e a pressão
materna começaram a não fazer sentido para ela. E Zoé redefine a sua
concepção de Deus - (...) meu Deus não é aquele sentado no trono (...) vigiando
o homem, castigando (...) prá mim é essa energia que rege o universo (...) ser
essa força que nos rege, nós sabemos que são duas correntes: a positiva e a
negativa, não é? Meu Deus é a minha religião hoje. Ela rompe com a igreja, mas,
não com a concepção de uma esfera transcendente e ideal, pois o “seu” Deus
rege o universo e as pessoas.e pode atender o seu pedido: (...) me mande
alguém que me ame muito (...)
Aconteceu então, um salto qualitativo na vida de Zoé. Sem a presença
física da mãe e sem as ameaçadoras “palavras” da bíblia, ela sai em busca de
autonomia: agir conforme os seus desejos responsabilizando-se pelos seus atos.
No entanto, ela não se refere ao estilo de vida que imprimiu ao seu cotidiano,
especialmente nas questões amorosas e sexuais; a sua narrativa versa sobre as
viagens e os passeios com os amigos. Porém, de acordo com duas informantes,
uma ex-aluna e uma amiga, os seus amores ocasionais, buscavam, na verdade,
encontrar o grande amor desejado. Ela assume uma personagem totalmente
diferente. A filha exemplar dá lugar a outra personagem: a mulher licenciosa.
(...) para que todos os instintos, que tinham motivos de permanecer secretos, se desencadeassem como cães selvagens; os mais brutais apetites tiveram de súbito a coragem de se manifestar, tudo parecia justificado (NIETZSCHE, 1978, p. 25)
115
Ela passou a vestir-se de forma exuberante e provocativa, exibindo um
corpo bonito, esguio e bronzeado, com shorts curtos, vestidos decotados, saias
esvoaçantes, enfim tudo o que lhe fora proibido pela mãe e pela igreja. Hoje,
ouvindo esses relatos eu mesma [a pesquisadora] me lembro de vê-la pelas ruas
da cidade exatamente desse modo e, confesso que admirava a beleza e a
exuberância de Zoé, no alto dos seus 45/ 50 anos de idade, na década de 1970.
Uma mulher, sem dúvida emblemática, muito à frente do seu tempo, que com seu
comportamento e suas atitudes, rompeu com as regras e convenções que a
sociedade impunha às mulheres maduras.
Foi nessa fase que eu a conheci (...) fui aluna dela (...) e havia preocupação dos amigos com ela pelo seu comportamento muito liberado para a época: saia sozinha, bebia e muitas vezes meio “altinha” com o álcool (...) falava palavrões [até na sala de aula...] viajava muito (...) só andava com roupa de marca com a etiqueta aparecendo (...) [informante - ex-aluna]
Os relatos das informantes evidenciam que mesmo comportando-se de
forma pouco convencional para a época, Zoé conseguiu manter intacta a sua vida
profissional. Parece que a sua competência e envolvimento com a carreira
universitária a preservaram de qualquer constrangimento que o seu
comportamento fora do ambiente de trabalho lhe pudesse imputar. A sua postura
profissional e sua performance professoral lhe garantiram e preservaram a
admiração e o respeito de alunos e parceiros de trabalho.
Jung (1986, p. 26) nos diz “(...) quando seguimos o caminho da
individuação quando vivemos nossa vida, é preciso também aceitar o erro, sem o
qual a vida não será completa (...)” Essa vivência exacerbada do amor, o
comportamento licencioso trouxeram muito sofrimento, em especial pela
efemeridade dos relacionamentos. E Zoé queria estabilidade amorosa e nessa
busca “insana”, ela abria-se aos relacionamentos sem avaliar a possibilidade de
concretização da relação e as consequências desse tipo de investimento no amor.
Talvez isso explique a sua resistência em falar sobre esses anos de vida que vão
desde a morte da mãe até o encontro do homem com o qual se casaria e viveria
por 25 anos; ela encara esse período como “necessário” pois, conforme sua fala:
Afinal eu não estava enterrada!
116
Segundo Lypovetsky (2000, p. 37) “Na incandescência dos anos 60, as
mulheres passam a acreditar em uma vida sexual sem tabu nem compromisso
profundo, mas, afinal, o resultado é tudo menos desanuviante, a tal ponto o amor
não se beneficia disso. Elas se enganaram de revolução: o sexo desapegado,
sem investimento emocional, talvez convenha aos homens, mas não corresponde
aos desejos profundos das mulheres. - (...) eu já começava a pensar em um
companheiro (...) lembra-se da exigência da mãe: - só se for o filho do Czar da
Rússia (...) mas eu pensava: eu quero uma pessoa que me ame muito e que eu
possa amar muito. E casualmente eu encontrei essa pessoa (...) não tinha assim
um nível de instrução que eu tinha, mas tinha alma. Deus, depois de 10 anos, me
mandou certinho aquela pessoa que eu pedi.
A narrativa conduz a uma realidade dura, do ponto de vista emocional,
quando a espera pelo homem que “seria seu” a faz viver momentos de profunda
solidão quando não estava envolvida com os “amores” ocasionais ou com as
viagens constantes. Tem-se a impressão de que havia um ‘movimento’ de euforia
que gerava depois depressão. Foram anos nessa, diga-se assim, rotina. Veja o
relato de Zoé:
- Eu digo: o caso é que as minhas coisas ninguém, nada me pergunta: você
está bem? Você foi bem nas aulas hoje? Aconteceu alguma coisa de bom ou de
ruim? Conta prá mim! Ninguém me pergunta isso (...) então eu tenho tudo em
casa, tenho tudo de bonito mas nada dessas coisas me pergunta, nada disso me
fala e eu tenho que usufruir do sofrer sozinha! (...) então quando eu voltava das
viagens, porque eu viajava não é? Com excursão ou coisa assim (...) eu me
queixava de que eu era sozinha, e as minhas amigas diziam, não, mas é sozinha,
melhor sozinha, você faz o que você quer ninguém manda em você. Tudo bem,
mas eu digo: eu me sinto só! (Chora). É a manifestação da “estrela solitária”,
personagem que a acompanhou desde sempre e, por certo, a acompanhará por
toda a vida, ora de forma velada, ora expressa nas falas revestidas de solidão e
que o conforto, o poder econômico e a liberdade conquistada, não foram
suficientes para aplacar a angústia e o sofrimento por estar só! Porém, segundo
Critelli (2012, p. 98)
A vida é acompanhada. Ela está cheia de sócios, amigos, parceiros, adversários...Estivemos e estaremos em sua
117
companhia, sustentado posições, desejos, críticas... em comum (...) nenhum desejo, nenhuma doença, nenhum projeto nenhuma impossibilidade ou limite são descobertos, desenhados, experimentados ou descartados por alguém em total solidão (...) a vida é um acontecimento compartilhado.
Zoé tinha a vida que desenhou para si mesma: conforto, saúde, muitos
amigos, liberdade e condições financeiras para viajar e se divertir, porém, nos
momentos de solidão, quando chegava do trabalho ou das constantes viagens o
vazio existencial abatia-se sobre ela. Parece que as mulheres, especificamente,
precisam trabalhar muito para manter as fantasias [sexuais, afetivas] separadas
da realidade da maneira mais clara e limpa possível, e às vezes são necessários
anos de esforço para chegar a esse ponto de discernimento sóbrio. E se Zoé
sentia-se bem preparada para o trabalho intelectual, para as atividades
acadêmicas, ela carecia, porém de habilidade para manejar as dificuldades
psicológicas que o seu estado de solidão trazia.
Assim, é a mulher independente dividida hoje entre seus interesses profissionais e as preocupações de sua vocação sexual, tem dificuldade em encontrar seu equilíbrio; se o assegura é a custa de concessões, de sacrifícios, de acrobacias que exigem dela uma perpétua tensão (BEAUVOIR, 1967, p. 466)
Nos dizeres da psicóloga Carol Gilligan (2010, p. 149) “(...) podemos ter um
entendimento melhor sobre essa necessidade de “ter alguém” (...) parece que a
noção de integridade das mulheres está entrelaçada com a ética do cuidar, de
modo que se ver como mulher é se ver numa relação de conexão” - Então eu
deitava na minha cama e chorava e dizia: meu Deus, eu não pedi prá nascer, tem
misericórdia de mim, me manda uma pessoa que me ame muito! E que eu possa
amar muito! Eu lembro disso e fico emocionada (chora). Durante 10 anos eu pedi
isso (...) mamãe faleceu em 64, não é? Então foi em 74 eu encontrei essa pessoa.
A relação de Zoé com o divino traduz bem a sua formação religiosa e ela,
mesmo que de forma aparentemente não impositiva, coloca “Deus” como seu
sublime assessor para os assuntos amorosos. Ele tem que atender aos seus
anseios, mesmo que demore 10 anos. E Ele atendeu! Afinal Deus não estava
morto, estava apenas distante.
Nesse momento da narrativa, Zoé foca nas viagens, que aconteciam em
grupo e até mesmo sozinha, quando não encontrava companhia. E Camboriú no
118
litoral de Santa Catarina era o seu principal destino. A região de natureza
exuberante e quase “virgem” nos anos 70 representava o ideal de descanso com
glamour dos paranaenses e, em especial dos londrinenses. Porém a distância e
as estradas precárias, eram um empecilho que poucas mulheres se arriscariam a
enfrentar sozinhas.- Em Camboriú eu ia sozinha (...) eu não era casada (...) pois
já havia comprado o apartamento (...) pegava o meu carro em Londrina, saía de
manhã, chagava a tarde em Curitiba, pernoitava lá e no dia seguinte eu levantava
aí pelas 8 horas, sem pressa, tomava meu café, pegava o meu carro e descia prá
Camboriú. E ia tranqüila. Convenhamos, um comportamento nada convencional
para uma mulher sozinha, nos anos 1970. Zoé agia de maneira individualizada -
como um ser singular, sujeito de sua própria existência - afastando-se e
criticando [não aceitava] a socialização convencional que caracterizava a época e
estabelecia regras para a vida das mulheres. Pode-se dizer um comportamento
feminino precursor de futuras convenções.
A narrativa se desloca da juventude para a velhice, faz paradas na infância
e adolescência. É o mundo de uma longeva sendo, por ela mesma explorado,
com reminiscências e um colorido talvez novo, com acontecimentos esquecidos,
outros apontados como sem importância, enfim, a vida se mostrando aos olhos da
ciência, com a verdade de quem a viveu e, por isso mesmo, carregada de
emoção. Camboriú era o seu destino preferido e continua sendo. No penúltimo
encontro falando sobre os seus compromissos para os próximos meses - Em
fevereiro vou para as Thermas Jurema primeiro e depois vou para Camboriú;
quero descansar! O mesmo cenário que acompanhou uma fase da vida em que
Zoé explorava ao máximo a sua liberdade e gosto pela vida
- (...) isso foi na década de 1970. Ah! Eu tinha uns 40 anos, mais né bem?
Mais, mas estava na “flor da idade” exatamente. Eu me sentia como se tivesse 30
anos (...) então quando eu percebo isso, é porque com a atividade que eu tinha,
não é?, a coragem que eu tinha, a vontade que eu tinha e me vejo hoje, então eu
fico triste, não é? (...) apesar de muito concentrada no trabalho (...) eu tive uma
vida, eu acho que uma vida “viva” mesmo, boa, bem vivida (...) eu olho para trás e
não tenho do que me arrepender (diz pausadamente) nem um pingo de tristeza
(...) Essa fala representa muito bem a Zoé, segundo ela mesma: uma mulher
119
forte, valente e com muita vontade de viver. E isso é parte significativa de sua
vida, sua história
Vivemos uma história no meio da história. E a história é o que é em razão das histórias particulares. Daí que entender uma pessoa é abrir a teia de relações da qual ela vem participando desde seu nascimento. E entender os fios e os pontos com que colaborou para a continuidade dessa trama. (CRITELLI, 2012, p. 99)
- (...) eu fui muitas vezes só. Então eu descia prá praia com o meu guarda
sol e a cadeira, sentava ali e eu via as pessoas: avó, netinhos, sobrinhos, e
sempre com gente né? E eu ali sozinha “eu tinha vergonha” tinha vergonha de
não ter ninguém, vergonha no sentido de eu ser só! De ser só. As pessoas são
pessoas, estão com pessoas e eu estou só. Então eu me sentia assim como um
“bólide”. As famílias são constelações (...) eu olho pro céu, eu observo muito isso
(...) o cruzeiro do sul depois o Órion, depois Gêmeos não é? Eu gostava de olhar
isso e na praia me via assim: as constelações com suas estrelas e eu um “bólide”,
eu era uma estrela sozinha, uma estrela cadente, sozinha; Eu estou só. E isso de
vez em quando me doía! Por isso eu tinha vergonha, tinha vergonha de ser só.
Nesses dizeres Zoé expressa de forma pungente a personagem “estrela solitária”,
por assim dizer, o reverso da medalha da mulher forte e autodeterminada: a Zoé
que sofre, que procura e que implora pela ajuda divina. E ela justifica a sua
solidão dizendo:
- Mas eu tinha que ser só, tinha sim, porque a minha decepção com meu
noivo foi muito grande, então eu me concentrei no meu trabalho, eu estava com a
minha mãe eu me sentia protegida por ela. Eu tinha com quem conversar (...) eu
sou muito fechada. Eu sou alegre, eu gosto das pessoas, eu, mas das minhas
coisas pouca gente sabe, só aquelas muito próximas.
Zoé insiste em trazer para a narrativa o seu noivado frustrado, dando a
impressão de que ali reside a confirmação da sua personagem “estrela solitária”.
Não ter se casado com a idade considerada propicia pela sociedade da época,
fixou, por assim dizer, um momento de sua vida “desperdiçado”, um sonho
precocemente abortado. O preço que teve que pagar por estudar, trabalhar e ser
independente. E relembra: - (...) depois que mamãe morreu eu passei a viajar
muito. Então eu vivi quer dizer, depois eu fiz a minha vida. Entende-se aqui fazer
120
a sua vida como mulher, com desejos, motivações, interesses que extrapolam o
mundo do trabalho e o das finanças.
Não tenho do que me arrepender (diz pausadamente) tenho certeza de
que fiz o melhor que eu podia fazer. As palavras de Zoé no decorrer das
entrevistas não deixam dúvidas quanto a prevalência da personagem “filha” em
detrimento de todos os papeis que ela desempenhava: professora, servidora
pública, amiga, cidadã, e principalmente, mulher.
Diante dos acontecimentos interiores, as outras lembranças empalidecem:
viagens, relações humanas, ambiente tudo fica num segundo plano para fazer
sobressair a vivência interior “(...) só posso compreender-me através das
ocorrências interiores. São aquelas que constituem as particularidades da minha
vida e é delas que trata a minha ‘autobiografia’” (JUNG, 1986, p. 9)
E, no mês de fevereiro de 1974…
- Era carnaval (...) não tinha quase ninguém tinha meia dúzia de ‘gatos
pingados’, ninguém pulava, ninguém fazia nada só dançavam um pouco ali, e lá
no fundo do balcão tinha dois senhores eu olhei e achei aquele senhor
interessante (...) ele me cumprimentou (...) e sorriu (...) e nós começamos a
conversar. E, ele prontamente se permitiu “intimidades”: pode me dar um beijo?
Fica a questão: será que o “senhor interessante” já tinha conhecimento da sua
postura de mulher liberada e por isso não se intimidou?
Segundo Zoé o ambiente no clube não lembrava em nada o carnaval, onde
as emoções são exacerbadas pelo calor da música e das pessoas dançando
freneticamente. Assim, esse excesso de intimidade deixa no “ar” a possibilidade
de ele ter conhecimento prévio de que ela era uma mulher diferente das demais;
seu comportamento permitia essa aproximação repentina e sem “pudores” - (...) -
pode me dar um beijo? E ela: “Imagina! Eu tenho posição na sociedade, sou
pessoa conhecida, eu não sou mulher de aventura. Eu quero um companheiro,
realmente que quero um companheiro porque eu sou só, mas eu quero uma coisa
minha, minha. Também a reação de Zoé foi direta, na defensiva e expressando,
num encontro fortuito, o seu mais recôndito desejo: - (...) me dê alguém que me
ame muito (...)
121
O sonho de casar-se, além de estar relacionado fortemente com a história
da mulher na formação da sociedade brasileira tem um componente psicológico
importante; casar, ainda significa em nossa sociedade, “ser escolhida” por alguém
e isso “provará sem dúvida alguma a todo mundo, principalmente a mim, que sou
preciosa a ponto de ter sido escolhida para sempre por alguém” (Gilbert, 2010)
- E aí ele começou a falar eu sou só, eu também sou só. Digo: não você
não é só, eu vi na mão dele um sinal mais branco na mão da aliança, digo: mas
você é casado! Diz ele: mas estou separado do coração há 30 anos. A gente não
pode acreditar nas coisas né bem? (...) e acabou de contar a história das duas até
as seis da manhã. (...) - dei meu telefone prá ele (...) digo o homem é casado
que tinha três filhos grandes já adultos né? O que é que vou fazer, vou casar?
Mesmo sabendo-o casado e pai de três filhos, e tendo afirmado que “não
se pode acreditar nessas coisas” ela não hesitou em propiciar novas
possibilidades de encontro. Daí pode-se inferir que racionalmente ela sabia que a
sua condição de “homem casado” traria dificuldade para a concretização desse
caso; mas na sua subjetividade, emocionalmente, ela acreditou e deu abertura
para isso. Assim, dá-se inicio a fase da personagem amante, com todos os
“mimos” e promessas típicas dessa condição.
- (...) naquele sábado ele me telefonou (...) eu recebi um buquê de rosas
dedicado prá mim. E depois ele telefonou de novo e disse: - eu posso ir na sua
casa? Bom, na minha casa podia. Então ele foi e aí nós conversamos. Bom,
depois ele ficou e a cada fim de semana, cada domingo ele me mandava um
buquê enorme de rosas; três anos e nove meses recebi todos os domingos flores,
flores do Fofo16, não é? (...) e assim foi passando, foi passando (...)
E a história de Zoé parece trilhar o mesmo caminho da mãe. Também ela
encontra uma moça carente que queria estudar e que estava submetendo-se a
um grande sacrifício para isso - (...) eu tinha uma aluna (...) muito participativa,
muito alegre (...) e eu sabia que essa menina negra que ela precisava, que ela
queria entrar num convento prá poder estudar (...) pensei comigo: não pode, essa
16 Apelido carinhoso pelo qual Zoé designava seu companheiro.
122
menina não serve prá freira, não serve. Ela está fazendo isso prá poder estudar.
Então eu a chamei assim no fim do ano, digo: você ficaria comigo? Ela me olhou
meio assustada, eu sempre fui agradável, mas enérgica. A coisa é como é. Digo:
pensa, pensa (...) daí você poderia fazer a universidade. Desse episódio surge a
personagem mãe adotiva. Mãe, Confidente, cúmplice na história de amor que
começava a se tornar realidade.
- Aí eu chamei a Ida17 e falei: Ida, eu tenho uma pessoa e eu gostaria que
você entendesse isso que eu sou uma pessoa conhecida que tenho esse direito,
mas não devo me expor, e que você fique quieta (...) então ele veio, conheceu a
Ida. Falei: essa é minha filha e se cumprimentaram e a energia deles se cruzou,
deu certo (...) e nós comíamos juntos, é como se fosse uma família, já pensou?
Cada um diferente do outro (risos). Uma nórdica, um italiano e uma afro-
descendente brasileira; assim se configurou a família de Zoé por vários anos. E
segundo relato, eles estabeleceram uma relação de companheirismo e
cumplicidade, com a discrição da Ida, o envolvimento do casal seguiu um rumo
tranqüilo. De forma idêntica à conduta da mãe, em relação à Rosa, sua “quase
irmã”, Zoé encaminhou a sua filha adotiva para uma vida profissional; ela mudou-
se para o nordeste onde fez concurso para docência e foi aprovada. Elas matem
contato até hoje.
Já em relação às questões econômico-financeiras, Zoé adotou uma
postura completamente diferente da mãe e aos poucos foi comprando imóveis
que depois vendidos ou trocados, permitiram a composição de uma condição
econômica segura. - Mamãe nunca quis comprar nada (...) ela dizia assim: a
gente morre e fica pro Estado? Então a gente aluga, mora numa coisa melhor (...)
e vamos usufruir do nosso trabalho, do nosso dinheiro, vamos viajar, vamos andar
bem ajeitadas, então era essa a filosofia dela. Mas eu sempre pensei num teto,
morar embaixo de um teto que era meu.
Esse é um comportamento que distingue, com certeza, Zoé do modelo
feminino dos anos 1960/70, fazendo dela uma mulher à frente do seu tempo,
17 Nome alterado para preservar a identidade da pessoa referenciada pela depoente.
123
emblemática, portanto, pois, segundo Lipovestsky (2000, p. 225) “[...] o trabalho
em nossos dias, constrói mais a identidade social das mulheres do que
antigamente, quando apenas os papeis de mãe e esposa eram socialmente
legítimos.”
E com essa filosofia, Zoé investe numa cidade promissora, em locais
diferenciados, numa demonstração de “quem sabe o que está fazendo”. Afinal a
cidade cresceria de forma a abranger todas as regiões: Jardim do Sol (zona
oeste), Rua Samuel Moura e Avenida Maringá, hoje um local privilegiado e
valorizado na região central da cidade de Londrina.
- Eu tinha comprado um terreninho lá no Jardim do Sol (...) isso tudo depois
que a mamãe faleceu. Mais dois terrenos: um aqui onde é mais ou menos a Rua
Samuel Moura e outro aqui na Avenida Maringá (...) então eu pensei em vou
vender o meu terreninho do Jardim do Sol e vou dar de entrada (...) E Zoé
comprou o seu primeiro apartamento em Londrina – (...) tinha dois quartos (...)
uma cozinha pequena, uma área de serviço uma sala conjugada e, mas prá mim
era ótimo. Prédio novo, não é? Investe também em um imóvel no litoral mais
badalado na época: Camboriú, em Santa Catarina, hoje um dos endereços mais
caros do país. Esse apartamento é ainda propriedade dela e destino de suas
férias de final de ano.
O atual endereço na Rua Santos, considerado, juntamente com a Rua Belo
Horizonte, Av. Higienópolis e adjacências, os “Jardins” de Londrina, numa
imitação do privilegiado e conhecido local da capital paulista. - (...) e com esta
vista maravilhosa que eu tinha e agora subindo esse prédio (...) eu perdi a minha
vista! Mas veja trinta e dois anos depois (...)
Da janela de sua sala de estar Zoé avistava as cidades vizinhas: Rolândia
e Arapongas, além de encostas verdes e lavouras de café. Hoje essa vista limita-
se a uma pequena “nesga” entre os prédios vizinhos; Mas ela reconhece que foi
um privilégio por um bom tempo e se satisfaz com o que ainda resta - (...) eu
tenho aqui que bate sol (...) a sala vai ficar mais escura, mas vou ter um
pedacinho ali da sala, mas a cozinha e a área de serviço vai ter sol de manhã,
então está ótimo!”
124
Esse espaço econômico-financeiro, com certeza, deu à ela a possibilidade
ou até mesmo um ‘referendum’ para assumir o seu caso de amor com um homem
simples, de posses inferiores à sua, com escolaridade mínima, enfim um homem
que ela poderia manter, moldar a seu gosto e que, em troca lhe daria o estatuto
de “casada.” Condição essa que veio de um desfecho que ela considera
“engraçado’ quando na verdade é sério, pois envolve a vida de pessoas, inclusive
a sua. “Bom, e num dia de natal, 1984? (pausa) acho que sim (...) então eu já
estava assim 3, 4 anos com ele (...) depois que eu encontrei com ele, tudo bem,
mas doía muito porque, quando a gente se despedia ele chorava e eu chorava.
Então eu tinha aquele amor que eu tinha pedido, mas ele não era meu. Isso doía
muito! (...) a gente lembra disso e vem uma saudade!
Para ficarem juntos, o Fofo dizia em casa que tinha compromissos em
cidades vizinhas e com a conivência da Ida eles se encontravam na casa de Zoé
e passavam muito tempo juntos. Até que um dia, alguém conheceu o carro
estacionado numa rua por um tempo muito longo e, preocupado (a) ligou para a
família avisando - Então, na véspera do natal, no dia 24, ele almoçou em casa e
deixou o carro estacionado aqui na Rua Paranaguá na frente de uma casa que
dava lateral para a Rua Mossoró (...) e quando ele saiu nós fomos prá janela prá
ver ele sair, se despedir, né? (...) tinha duas mulheres lá na frente do carro dele e
aí nós começamos a achar graça, achar graça porque será que são elas? A
mulher dele uma filha, então estavam lá (...). O relato faz vir à tona a cena do
sacadão, na casa paterna, com a mulher bonita que Zoé admirava e que era a
amante do pai. Agora, ela se posiciona na janela, com a filha adotiva e acha graça
da situação. Revanche?
Esse comportamento “frio” de Zoé diante de uma situação complicada e
geradora de sérios conflitos familiares estaria enraizado na situação idêntica que
ela vivenciou, ainda que indiretamente, com a separação dos pais? Quando
criança, ela estabeleceu uma certa “identificação” com a bela mulher da sacada, a
amante do seu pai. Agora, ela assume esse papel da “janela” do seu
apartamento? O relato não dá conta de desvendar essa intrincada situação, mas
referenda a condição até certo ponto ‘confortável’ de Zoé, diante dos
acontecimentos - (...) porque ele passou o dia inteiro de véspera do natal fora (...)
telefonaram avisando que havia um carro parado na frente da casa (...) já desde
125
manhã (...) então elas foram ver (...) a mulher e a filha estavam desconfiadas, eu
acho (...) E aí aquela véspera de natal prá eles foi um inferno! (...) no dia de natal
foi um inferno! Prá eles. Isso não me dói (...)
Sem dor, mas sabendo do sofrimento da família, Zoé espera pelos
acontecimentos e avalia assim o comportamento seu e da filha confidente -
Então nós achamos engraçado, será quem? Será o que? (...) parece criança né
bem? Parece criança fazendo arte e dando risada da arte que fez (...) então foi
um inferno prá eles. Na segunda feira o telefone tocou, era ele (...) estou num
hotel. Então vem prá cá! Não vou ficar uns 3 ou 4 dias no hotel. Vem prá casa!
Não vou ficar no hotel (...) eu digo: então tá bom, você que sabe.
Foi talvez o tempo necessário para o Fofo se recompor do desastre familiar
em que se meteu. Pessoas próximas da família afirmam ter presenciado algumas
vezes a tristeza desse homem, já doente, por ter deixado a casa, os filhos, enfim
por ter se deixado levar pelos arroubos da paixão. A estabilidade afetiva quando
rompida abruptamente, pode deixar sequelas que se fazem presentes em
momentos de doença e debilidade emocional. As informantes dão conta de que a
vida em família era “aparentemente” feliz e que a separação trouxe muito
sofrimento - Ele depois me contou não é? Me contou que fizeram uma reunião
dos filhos com a mulher e que ela brigando com ele, brigando com ele (...) ele
tinha me dito que os parentes dele de Ribeirão Claro, ele já tinha dito prá eles que
iria se separar, mas ele queria primeiro deixar os filhos se formarem (...) É muito
pesada viu!, então deixa eu acalmar que a coisa vem pesada!
A narrativa traz informações desse episódio ora como ‘pesado’ ora como
‘hilário’. Há um misto de dor e êxtase diante do desejo realizado – alguém que me
ame muito e que eu ame muito também – e a derrocada de uma família, ainda
que em desarmonia - Mas isso aí não é difícil prá mim, foi engraçado! E o
desenrolar disso é que foi sofrimento? Não posso dizer sofrimento (...) eu tinha
prazer de estar com ele (...) havia uma troca, e quando a gente se despedia,
então eu chorava e ele chorava. Nós não queríamos nos separar. Não queria que
ele fosse embora, porque eu achava que ele era meu, mas não era meu! E isso
que era pesado prá mim (...) e assim ficamos 3 anos e 9 meses (...) e quando foi
aquela despedida de véspera de natal (...) achei aquilo engraçado, achei
simpático (...)
126
Segundo Zoé, houve uma separação radical com a família, com os filhos -
Agora, durante esses 10 anos, no aniversário dele ou no natal, ele sempre
esperava pelo menos um telefonema, diz ele: nem me telefonam aí a gente se
abraçava e os dois choravam juntos e eu sentia realmente um pai que o filho
desprezou. Por que? (...) eles não sabiam o convívio lá, as coisas como eram?
Esse foi, talvez, o período mais rico e intenso da vida de Zoé. O relato
evidencia a construção de uma nova etapa alicerçada num emaranhado de
emoções conflitantes: amor, desprezo pela dor do outro, sofrimento e alegria,
numa manifestação humana das mais complexas. Ela parece refazer [mesmo que
não fale disso] os afetos e desafetos da infância e adolescência, misturando
papéis: (...) parece criança, né bem? Ao mesmo tempo em que analisa
objetivamente a situação, reconhecendo um casamento falido e tomando a
iniciativa para acomodar as coisas: (...) estou num hotel. Então vem prá cá!
Reconhecendo também a situação difícil da família (...) aquela véspera de natal
prá eles foi um inferno! Inferno para a família e o inicio de uma nova vida para
Zoé: a concretização do seu sonho de amor. A procura pelo homem que haveria
de ser seu, havia acabado.
127
Capítulo 4 Fase felizes encontros
Quando a gente só tem dois minutos para dizer adeus a quem mais ama no mundo e não sabe quando vai ver de novo, é como se o esforço de dizer e fazer e combinar tudo ao mesmo tempo provocasse um engarrafamento (GILBERT, 2010. P.29)
Em 1870, Benjamim Disrael, numa carta a Louise, filha da Rainha Vitória,
cumprimenta-a pelo noivado assim: Não há risco maior que o matrimônio. Mas
nada é mais feliz do que um casamento feliz (GILBERT, 2010). E para Zoé, o
casamento representou a conquista, talvez, mais importante da sua vida - E nós
dois tivemos uma vida assim muito feliz! Depois compramos um sitio (...) uma
propriedade rural pequena, depois (...) uma parte de um outro sitio e depois ele
comprou os fundos de uma parte de uma fazenda. Então ficaram assim 22
alqueires mais ou menos, um sitio assim gostoso.
Zoé assume a personagem esposa e estava feliz porque sabia ser
indispensável na vida do marido; ela agora tinha um parceiro e estavam
construindo, juntos, um mundo particular e isso significou para ela a realização de
um sonho, algo que, por mais que fosse desejado, ela sabia, ser quase
impossível. Afinal ela já contava com mais de 50 anos de vida!
A narrativa dessa fase focaliza de forma especial a relação marido-mulher
onde fica evidente o direcionamento de Zoé aos projetos que foram idealizados e
concretizados. E já nos primeiros anos de casamento, a prevalência de Zoé fez-
se sentir. As decisões, muito embora, aparentassem “acordos”, nas falas ela
deixa evidente o seu poder: - Ele disse: vamos fazer um rancho prá gente vir fim
de semana, digo rancho não, quero uma casa, eu trabalho a semana inteira e
quero uma casa boa! Bem, porque quem fez a planta da casa fui eu (...) e
fizemos uma casa boa, fizemos uma piscina (...) o material nós compramos
durante uns dois anos e íamos deixando nas lojas (...) e no segundo anos fomos
construir (...)
O seu projeto de casa boa incluía as questões estéticas que ela
desenvolvera desde cedo, através da pintura, da música da literatura; condição
128
essa que não era compartilhada pelo companheiro já que o mesmo tivera uma
vida simples, de poucos estudos e de trabalho braçal “Ele tinha o quarto ano
primário da década de 30 (...) trabalhava no comércio, ele foi ajudante no
comércio, foi menino de entrega (...) e fez uma coisa prá ele, comércio também,
um armazém (...) casou com uma professora de curso primário, teve filhos mas eu
digo: sempre que eu vi nele uma pessoa com alma; não tinha instrução (...) mas
ele aprendeu com a vida (...)”
E Zoé encontrou um modo, diga-se, simpático, de iniciar o marido no
mundo do bom gosto e do bem viver: as viagens. Entre as idas e vindas para o
sítio nos finais de semana e o trabalho, ela organizou viagens de modo a
introduzir gradativamente o companheiro no mundo que ela bem conhecia e
gostava. Pronta a casa, restava o jardim que ela tinha em mente - (...) fizemos
uma casa boa eu amava. Então aí eu falei pro Fofo nós vamos fazer o seguinte
(...) vamos plantar, plantar ciprestes, pinhos, plantar e fazer uma coisa bonita,
fazer uma mata aqui e ele disse: - não Fofa, não vamos fazer isso não porque tira
o pasto do gado, digo: não mas o gado fica lá deixa a gente se proteger, fica mais
bonito (...) ele meio que não queria mas numa ocasião nós fomos prá Gramado.
Eu já conhecia Gramado, então eu fui especialmente prá mostrar prá ele como é
bonito uma coisa bem cuidada, bem protegida (...) bem e então eu o convenci (...)
E, nessa jornada de deixar a casa à sua vontade, Zoé não economizou
esforços; ela mesma, com a disposição que lhe era peculiar, empreendeu-se no
trabalho braçal e conforme a narrativa isso acrescentava “sabor” ao
relacionamento - (...) vamos fazer em volta da nossa casa gramar, grama, mas
eu quero da grama curitibana (...) e como crescia muito mato, tinha semente que
vinha do pasto (...) e começou a invadir. Eu então punha um short, uma bermuda,
uma camiseta sentava no chão e comprei nessas casas que vendem objetos prá
jardim e comprei uma porção de pazinhas e sentava naquela grama ali tirando;
aquilo prá mim era um relaxamento, uma coisa maravilhosa e ele vinha - mas
você está sentada aí ainda? Digo: tô e ele - encomenda foi melhor do que o
pedido. Ele não imaginava que eu ia sujar na terra, sujar a mão de terra, não é?
Mas aquilo prá mim era muito prazeroso.
Realmente, atividades que não condiziam com o seu “status” de mulher
elegante, culta e de hábitos refinados. Pode-se dizer uma demonstração pura de
129
amor e afeto pela nova vida conquistada, em que o mundo do conhecimento, da
cultura, do poder econômico, dava lugar ao simples, ao lúdico o que a aproximava
ainda mais do “seu homem”. É essa possibilidade de ser e deixar de ser que
Cora Coralina expõe em versos inquietantes:
Talvez por tudo isso e muito mais Sinta dentro de mim, no fundo dos meus reservatórios secretos, Um vago desejo de analfabetismo (CORA CORALINA, 1998, p. 73-76)
Ou seja, a mulher quando encontra o desejado, é capaz de fazer-se outra,
de metamorfosear-se em alguém que seja mais condizente com as características
do momento que está sendo vivido. Zoé, meio que regrediu em seus
conhecimentos acadêmicos, assemelhou-se ao “seu homem” enquanto sentada
no chão, usando as mãos, dava vida ao projeto de uma casa que além de boa
fosse esteticamente agradável. Com simplicidade, poeticamente “Um vago desejo
de analfabetismo” ela veio, segundo o Fofo: melhor do que a encomenda!
Com Zoé no comando, foi construído um projeto comum; a estrela solitária
enfim encontrou eco para as suas prosaicas necessidades cotidianas: ter com
quem conversar e dividir a vida. Alguém para lhe perguntar: “Você está bem?”
“aconteceu algo de bom hoje?” Para uma mulher que viveu tanto quanto Zoé, a
vida possibilita contradições e mistérios; questões em que o não dito cala mais
profundamente. Ela estava feliz, sentia-se, enfim uma mulher aceita socialmente
sem que para isso fosse necessário o uso de atributos intelectuais. Ela era
apenas uma mulher casada - Por isso é que quando me aposentei; eu ainda
fiquei trabalhando por 10 anos casada não é? Então quando me aposentei aí eu
disse: - agora eu vou fazer nada! Fazer o que não fiz nunca: comer e não fazer
nada, daí então engordei, passei prá 93 kg; hoje eu tenho 64. Mas ele achava
ótimo, italiano gosta de mulher gorda né? (risos) eu acho que sim.
O encantamento de Zoé pelo sitio fica evidente no seu semblante,
enquanto a memória alimenta as lembranças - (...) fizemos aquele gramado
bonito, plantei no meio essa chuva de ouro, deste lado ciprestes, eucaliptos (...)
folhagens coloridas eram vermelha, era vede com vermelho (...) então nós
cercamos com alambrado e eu (..) plantei azaleias, elas cresceram por cima do
alambrado e aquilo floria e aquilo prá mim era o paraíso e prá ele eram dois
130
paraísos, o gado; Começamos com o ‘pé duro’ e depois fomos com a vaca de
leite (...) tivemos que fazer um galpão, comprar trator (...) compramos também
aquele tirador de leite, não sei bem, é ‘vaca mecânica’
Será que quanto mais instruída for a mulher casada, mais dinheiro ganhar,
mais tarde se casar, menos filhos tiver e mais o marido ajudar nos afazeres,
melhor será a qualidade de vida que terá no casamento? Assim foi com Zoé: ela,
uma mulher instruída, madura, com estabilidade financeira, juntamente com o seu
Fofo firmaram contratos de relacionamento em que constava divisão do trabalho,
de acordo com as habilidades de cada um e assim construíram um lar e uma vida
a dois - (...) nós pagávamos para ter o sitio mas aquilo era tão prazeroso que a
gente nem ligava. Nós tínhamos três empregados registrados e o leite (...) não
pagava nossos gastos, não pagava os empregados nem tudo o que precisava (...)
mas aquilo era tão prazeroso que, deixa prá lá! Mais valia o gosto (risos)
Com o falecimento da primeira esposa, o casamento de Zoé foi oficializado,
e isso possibilitou certa aproximação com um dos filhos do companheiro; o sitio,
com as suas “delícias” o conforto, a descontração, atraiu a atenção desse filho
que passou a frequentar a casa com a sua família. Contato esse apreciado por
Zoé que disse sempre ter-se mostrado aberta a aproximação - (...) e esse filho
dele (...) que morava em Curitiba então ele ia com a família, a esposa e os dois
filhos pro sitio (...) então ele gostava desse filho o único que se aproximou.
Quando nós íamos para Camboriú, a gente passava na casa dele, em Curitiba
também, pernoitava lá e assim foi bom, muito bom (...) e ele estava feliz e
passamos né, passamos 22 anos praticamente, agora nos últimos anos, no ano
em que ele já estava...bom eu tenho mais coisa prá falar disso, mas era muito
bom (...)”
Há paixão no relato de Zoé, mas sem nostalgia; são lembranças que
afloram e mexem com ela de tal modo que ao olhá-la eu vejo uma mulher
rejuvenescida: olhos azuis e brilhantes, corpo ereto, gestos elegantes. Não há
tristeza em seu relato, apenas saudade. Foi segundo a depoente a época mais
feliz de sua vida. Feliz, certamente porque tinha agora uma casa de família, tinha
um marido e, por mais desejado que tivesse sido, ela sabia o quão ousado era o
seu sonho de ter essas coisas na vida. A narrativa retorna aos tempos de moradia
em pensões, pensionatos, casas alheias, e agora esse pequeno paraíso - O sitio
131
ficava em São Jerônimo da Serra, 90 km de Londrina, mas era muito bonito,
passava por Ventania, na estrada antiga prá Curitiba e a vista é linda, linda!
Aquela vista deslumbrante (...) e assim a gente passou, foram os dias mais felizes
da minha vida.
O Fofo não era um homem que a mãe de Zoé aprovaria, afinal ele não era
o filho do Czar montado num cavalo branco; era rude, sem instrução e muito
menos rico, mas era bonito e trabalhador; e era de outra mulher, tinha já uma
família. Será que, de fato, a vida se repete? Antes abandonada pelo pai ela agora
se apossa do pai de alguém? Ou terá ela se disponibilizado de tal forma ao amor
que ele veio pura e simplesmente, sem exigências? Ela acredita que foi a sua
abertura ao amor é que lhe trouxe o homem que afinal, bem ou mal, seria dela,
mas, na condição de amante ela sofria - (...) aquilo doía, porque ele não era meu”
Zoé era culta, instruída, viajada e conseguira com o seu trabalho adquirir
um patrimônio respeitável para uma mulher sozinha nos anos 1970. Segundo
Gilbert (2010) dá para contar nos dedos mulheres que conseguiram ter um
dinheiro só seu: poder econômico. E, com esse poder ela toma para si a tarefa de
apresentar ao marido as belezas do mundo, numa tentativa, talvez de suprir a
defasagem escolar e colocá-lo mais próximo da sua realidade, através das
viagens. Um novo mundo, novas experiências com um sabor especial, a
cumplicidade amorosa - (...) depois que eu me aposentei nós começamos a
viajar. Ele não conhecia nada (...) e eu sempre gostei de viajar, eu antes de casar
eu fui duas vezes prá Europa, passei por Marrocos (...) eu ia em grupo porque
acho mais cômodo (...) eu já sou mais comodista, eu prefiro ter um esquema feito
(...) não vou me preocupar com nada e vou usufruir daquilo que eu vou ver, é isso
que eu quero!
Com roteiros bem pensados ela vai aos poucos inserindo o companheiro
numa vida que provavelmente ele nunca havia imaginado ter. Numa reunião
social, alguém próximo do Fofo, ao saber sobre o trabalho que eu vinha
desenvolvendo me disse que depois do envolvimento com Zoé, ele tinha mudado
muito e para melhor, afirmando que nunca o vira tão feliz e bem cuidado como
quando passou a viver com ela - Então eu comecei por Foz do Iguaçu e ele
gostou (...) depois nós viajamos prá Cancun e prá ele foi uma outra visão de
mundo, coisa totalmente diferente e ele se encantou.
132
Foram inúmeras viagens que ambos intercalavam com as atividades do
sítio com Zoé sempre à frente decidindo tudo; era como se fosse uma mãe
orientando o seu rebento, colocando-o em contato com o mundo. Sem ela saber,
o tempo urgia, pois a vida preparava uma ‘armadilha’ sem volta para o casal -
(...) eu acho que fomos pro Canadá, Estados Unidos, fomos pro México e depois
fizemos uma viagem enorme: de novo voltamos para os Estados Unidos na
Califórnia e depois nós pegamos um avião e fomos prá China, pro Japão, fomos
prá Singapura, fomos prá Hong Kong, fomos prá Bali, então foi assim uma viagem
de 30 dias “maravilhosa” e ele era uma pessoa que não era assim de arte (...).
Terá sido demais para ele? Zoé pecou pelo excesso? Como essa imensidão de
novas terras, novos costumes, novos sabores, novos aromas; como tudo isso
acometeu o homem simples, pouco letrado que aprendeu com a vida de trabalho,
de “alma boa”? como?
Guardadas as devidas precauções em casos de doenças graves, a
narrativa dá conta de um desacerto de sensações e emoções - Então acontece
que ele começou a se sentir meio estranho. Ele dizia prá mim: Fofa eu tô bicho
tonto, depois que nós voltamos da viagem ao Japão (...) foi a última viagem que
nós fizemos (...) Fofa eu tô bicho tonto. Eu digo: mas eu não entendo bicho tonto!
Não sei, achava que era brincadeira dele não é?(...) Fofa essa viagem pro Japão
me confundiu a cabeça, eu acho que era muita coisa de uma vez prá uma pessoa
já de certa idade, ele era três anos mais velho que eu (...)
A partir dessa aventura “maravilhosa” por extensas partes do mundo, a
vida do casal passa por transformações profundas advindas de um mal que Zoé
sequer desconfiava existir. Ela ouvira falar de “caduquice” de “coisa de velho”,
mas o que era isso? Como pode uma pessoa, sem mais nem menos, ficar assim?
- (...) e a coisa foi avançando, avançando (...) quando ele dirigia eu percebia que
ele não tinha segurança (...) Alguém - indicou um médico e começou a trabalhar
com o Fofo mas eu achava que não adiantava nada, não gostei! (...) Até que
chegou num ponto que já não tinha mais condições de andar, dificuldade de falar
(...)
Zoé relata como foi a descoberta de que o marido estava seriamente
comprometido - (...) uma vez nós íamos para Camboriú (...) foi nessa ocasião
que eu acordei e que tive um desmaio de tanto susto! Nós subimos e na parede
133
lateral da entrada do prédio tem um espelho (...) subimos pro apartamento (...) ele
me disse: fofa eu vi o G, G era irmão dele (...) eu digo: não bem o G não está
aqui. Não Fofa eu vi (...) aí eu desci com ele e quando nós saímos do elevador e
parou em frente do espelho e começou a chamar pensando que fosse o irmão. Eu
subi e chorei tanto, tanto foi momento assim que “o bicho pegou”.
Procurando ressaltar a vida cheia de altos e baixos que se misturavam com
a felicidade conjugal, Zoé se lembra de um episódio que traz reflexões sobre a
vida e o casamento como um caminho apinhado de enigmas em todas as
direções e que não podem servir de amparo para conclusões levianas. O seu
casamento foi resultado de muito sofrimento e tensões vivenciadas por muitos.
Isso era fato incontestável - nós fomos a um casamento (...) as famílias eram
muito amigas (...) então fomos prá festa eu arrumada e o Fofo também era um
homem bonito, ele dizia: nós somos o casal 20 de Londrina. Ele gostava de estar
bem e eu também gostava de me arrumar (...) então ele viu o filho que nunca nos
falou (...) vamos cumprimentar o P e nós fomos e ele virou as costas para o pai
(...) aquilo prá mim foi uma punhalada, digo: como é que um filho pode fazer isso
com o pai? (se emociona) o pai tá feliz! o pai tá bonito! o pai está bem! não
querendo ser grosseira “descascou” (silêncio prolongado) você imagina o
sofrimento desse pai (...)
Nesse ponto da narrativa repleto de emoções, veio a necessidade de
concretizar, de certa forma o dito, o revelado. Assim, ao término do encontro, Zoé
mostrou-me inúmeras fotos: dos seus parentes e amigos lá da Lituânia, cenas
lindíssimas e pessoas muito bem arrumadas. E do sítio representando
exatamente o que ela havia relatado: a casa confortável ladeada por um imenso
gramado repleto de flores, ciprestes e eucaliptos; a piscina, os amigos reunidos e
um enorme cão fila que ela até então não havia mencionado. Seria talvez uma
reminiscência da infância? - (...) um cachorro assim grande branco (...) Ela
pintou um quadro com a fachada da casa numa perspectiva realista e que hoje
fica no hall de entrada do seu apartamento. Inúmeras outras telas estão
decorando as paredes da sala, do escritório e dos quartos. Zoé é uma artista
plástica, uma copista, segundo ela.
Segue, porém o relato da doença dolorosa o Mal de Alzheimer. Aquele
homem bonito, forte, vigoroso, de ‘alma boa’ definhou de tal maneira que para
134
Zoé vê-lo naquele estado redundou em enorme sofrimento. O seu projeto de vida,
o mais genuíno, ruía a olhos vistos e ela tão corajosa, energizadora, confiante
nada pode fazer. - (...) então, eu tive que interná-lo (...) ele ficou mais ou menos 1
ano e seis meses nessa clínica geriátrica, e era na ocasião a melhor de Londrina.
E eu sei lá, não era realmente grande coisa, mas era o único lugar que eu podia
deixá-lo e saber que ele estava sendo atendido. Eu ia umas duas vezes por dia
(...) às vezes ele me reconhecia, às vezes não e isso prá mim foi muito doloroso
(...)
(...) - eu não entendia o que era Alzheimer (...) depois eu comecei a
entender e assistia as reuniões (...) umas palestras para as pessoas que têm,
para as famílias que tem pessoas com Alzheimer, eu assistia aquilo por
desencargo de consciência (...) e foi realmente muito doloroso. E o dele (...) na
minha concepção ele estava em outro patamar (...)
Com a doença e com a morte do marido, Zoé inicia a jornada de volta ao
mundo da estrela solitária; o sitio agora não fazia mais sentido: as azaleias, os
ciprestes, os eucaliptos canadenses, a casa dos sonhos, nada mais interessava a
Zoé. Sem herdeiros, sem ter para quem deixar aquele patrimônio ela resolve
vendê-lo e por 7 anos ela se vê enredada numa negociata cheia de artimanhas -
(...) nós íamos vender o sítio porque eu não tenho entendimento prá administrar
um sítio, não conheço a lida não sei nada, então conseguimos comprador lá em
São Jerônimo (...) e acertamos isso prá ser pago em várias parcelas e o caso é
que as primeiras parcelas foram pagas certinho e depois começou a falhar (...)
digo: eu vou contratar um advogado (...) no começo foi tudo bem, as parcelas
vinham certinho, depois então começaram a falhar (...) eu ligava prá ele, o
negócio esta assim dessa forma, não é? Não tá legal, não tá como a gente havia
combinado (...)
Num gesto de generosidade Zoé entregou a casa mobiliada, incluindo
pequenas preciosidades que ela mesma havia feito: tapetes, quadros, roupas de
cama, enfim, coisas que para ela não seriam necessárias já que ela tinha o
apartamento montado em Londrina - (...) e como eu entreguei a casa (...) então
eu deixei o quarto com os móveis todos: armário embutido e cama e na sala
deixei um quadro grande que eu havia bordado (...) a senhora me dá isso? Dô,
dô, deixei inclusiva o balcão com a televisão (...) deixei praticamente mobiliada a
135
sala, a sala de jantar e a cozinha (...) eu sou assim uma pessoa de muito boa fé.
Eu acredito. Eu faço de coração, prá mim eu não preciso então fica prá quem está
precisando (...)
Nesse momento da narrativa Zoé fica bastante confusa e conta o
envolvimento do advogado também com a questão do seu testamento, onde ela
deixa seus bens para as instituições que a ampararam aqui no Brasil. - Então um
dia ele veio aqui e disse: olha Zoé, seria interessante você dar o seu apartamento
antes de você “encantar” como ele dizia (...) você faz a doação em vida e você
tem o usufruto e eu fiquei assim... a minha cabeça meio perdida porque o Fofo
estava já nas últimas, o dinheiro entrava pouco
A narrativa expõe a situação de modo a ter-se a compreensão de que o
advogado estava trabalhando mais para si mesmo do que para Zoé; encaminhar
a questão testamentária pela via do usufruto não estava nas condições que ela
havia elaborado para dar destino aos bens adquiridos com muito trabalho e muito
envolvimento pessoal e emocional. Confusa mas não o suficiente para ser
irremediavelmente enganada, ela recorre à amiga e procuradora, (...) e aí
conversei com a minha procuradora (...) diz ela: não Zoé você não vai ter o direito
no que é seu? (...) aí eu liguei prá ele eu digo: olha o que nós combinamos, eu
não te dei certeza, mas eu não quero mais. Mas como? Se eu já conversei com o
diretor do colégio (...) e ele me disse que estava tudo bem e que a gente podia
vender e depois fazer um negócio não sei o que! Ah (suspiro) (...) em que
situação eu estou!
Mas o socorro veio em tempo de minimizar o desastroso negócio, que lhe
rendeu dentre os aborrecimentos todos, a perda significativa de dinheiro que ela
preferiu deixar de receber para ter um pouco de paz - (...) e eu me lembrei de um
casal que era do Lions que tinha um filho formado em Direito (...) eu liguei - estou
numa encrenca danada aí na venda do sítio e o teu filho é advogado de família?
Sim (...) o rapaz em três meses resolveu o que o outro tinha levado sete anos (...)
então eu fiquei muito abatida, muito, muito.
E, o mais doloroso ainda estava por vir: -- Depois quando meu marido
faleceu então aí foi outro baque (...) vai fazer seis anos, fez agora em dezembro
dia 29, seis anos. Assim termina o sonho de amor de Zoé. Com o marido ela
viveu os melhores anos de sua vida. Aos 83 anos, viúva, porém serena, sem
136
ressentimentos, ela volta para a vida que tinha antes de encontrar o “seu homem”,
se reconstrói e segue em frente.
O sintagma Identidade-metamorfose-emancipação como processo de
formação e transformação da identidade humana, aparece neste momento do
estudo como a grande metamorfose – a velhice em idade avançada - que leva a
mulher longeva ao último período de existência. Que metamorfoses serão ainda
possíveis? Ser reconhecido pelo outro, não como velha, mas apenas como
alguém que por ter vivido muito tem muito a dizer e a contribuir consiste num
processo de emancipação?
137
Capítulo 5 A Fase Velhice
Começamos nossa trajetória existencial recebendo por herança nome e sobrenome, pais, parentes, um país, uma cidade, um hemisfério, um bairro, uma raça, uma situação sociocultural e econômica, uma religião, expectativas a nosso respeito, sagas familiares, portas já abertas, anseios, limites, problemas não resolvidos. Todo esse legado se conjuga e constitui nossa primeira identidade (CRITELLI, 2012, p. 57)
Tenho que admitir, como pesquisadora em psicologia social: a idade não é
critério suficientemente válido para determinar uma “velha”, portanto questiona-se
a identidade etária de velha, idosa, ou seja, qualquer nomenclatura que faça da
mulher longeva um ser separado dos demais. Nos últimos encontros, mesmo
convalescente de um AVC, o que vejo é apenas uma mulher corajosa, cheia de
vontade de vencer mais esse obstáculo. Com a voz ‘embaralhada’ ocasionada
pelo acidente cerebral e não pela idade, ela fala de seu retorno à vida: sair
sozinha, pintar, fazer ginástica, etc. como sendo a condição primeira de sua
existência. Ela está viva!
Ao mesmo tempo em que diz não aceitar os limites da idade - (...) e eu
penso assim: eu não mereço isso! Eu trabalhei mesmo prá minha velhice
tranqüila, prá eu usufruir de tudo isso e eu usufrui bem, mas agora com esta
idade, eu realmente estou sentindo que não sou a mesma (...) eu sinto que não
tenho mais aquela capacidade e isso me derrubou em termos psicológicos; ela
não se rende aos obstáculos e faz a vida continuar - (...) eu tenho que ir ao
banco, tenho que ver o imposto de renda, tenho que ver médico, tenho, sou eu
que tenho que fazer tudo. Isso eu não posso mandar outras pessoas fazerem,
veja como está (mostra o calendário) manhã, tarde, manhã, tarde (...) mas eu
quero fazer logo para depois descansar (...)
Para esse retorno ao normal, uma das primeiras medidas foi revalidar a
sua carteira de habilitação para os próximos três anos. Submeteu-se aos exames
necessários e foi aprovada - sim, sim, eu ainda dirijo (...) tenho que ir as aulas de
pintura, à fisioterapia (...). Esse relato a leva a outro, de caráter político: as
notícias recorrentes acerca das manifestações no país e que pela manhã havia
138
tido ciência através dos jornais: a paralização dos professores no Rio de Janeiro e
a ação dos ‘Black Blocs’ infiltrando-se entre os professores em suas justas
reivindicações; segundo ela haveria uma conivência dos mesmos com as ações
de depredação do patrimônio público - eu não aceito isso, professor tem que
ensinar! Agora você veja essa situação!
O seu estado se altera e a indignação toma conta dela que revela: -
infelizmente eu não posso mais ler os jornais, não posso exercer o meu papel
político, de cidadã porque fico doente (...) a pressão sobe (...). Com esse
posicionamento fica evidente o seu desejo de preservar a saúde e a vida, ela,
pesarosamente, abre mão do seu direito à informação para manter a vida! (...) daí
acordei! Que coisa não é? Pois exatamente, tentar mudar a vida, facilitar porque
não sou o que eu era. Nem mentalmente nem fisicamente (...) e a não aceitação
disso é que me levou à depressão e à doença; agora estou tentando rever tudo
isso.
Porém antes mesmo de ter sido acometida pelo AVC, a narrativa dá
mostras de que a depoente está ciente de que adentrou na fase da velhice.
Depois da morte do marido, da venda desastrosa do sítio - o seu pequeno paraíso
- Zoé busca os recursos vitais, a energia que sempre a acompanhou para mais
uma jornada importante - E logo depois que ele faleceu (...) surgiu a
oportunidade de eu ir prá Russia prá aqueles países nórdicos : Russia, Finlândia,
Noruega, digo: - nesse eu vou. Depois de todo aquele temporal aquele tsunami e
eu ainda tinha muita energia, apesar dos pesares (...) digo: vou prá Moscou e o
Mar Báltico beija a Lituânia (...)
Nesse ponto da narrativa a pergunta que se faz é: que história a história de
Zoé quer contar? O retorno às origens fez emergir forças atávicas que ela
desconhecia. Ao visitar Moscou, ela se deslumbra com as planícies e com a
beleza dos hotéis e dos palácios destruídos pela revolução e que foram
restaurados em toda a sua magnitude - Estivemos em Moscou não é? e
estivemos na capital da Noruega, Oslo (...) depois voltamos prá Suécia aí
estivemos em Estocolmo (...) de Oslo até Estocolmo fomos de navio prá ver os
Fiords (...) e fomos prá Suécia de trem até Moscou; achei uma viagem assim
muito bonita. A gente via aquelas planícies sem fim, não é? (...) aquela planura
aquelas árvores secas, aquela coisa não é?
139
Não foi, porém só beleza que ela viu; viu também a decadência de algumas
regiões em contraste com a exuberância dos antigos palácios local de
hospedagem, segundo ela (...) - apartamento dos grandes, dos chefes do
comunismo, não é? (...) mais prá fora eu vi construções (...) aqueles caixotes que
eram apartamentos das pessoas que moravam às vezes duas famílias (...) Essa
realidade histórica faz parte da vida, da identidade de Zoé e, se essa identidade
atávica não delimita exatamente quem ela é, dá indícios preciosos de como ela
começou a ser. “(...) eu cheguei liso e jovem a esse meu país e direi a esse pais
cujo barro entra na composição de minha carne: “vaguei durante muito tempo e
volto para o horror desertado de tuas chagas” (CÉSAIRE, 2011, p. 35).
Esses primeiros traços identitários recebidos através do nascimento
oferecem, aos indivíduos, condições que são comuns ao grupo de pessoas em
meio às quais eles nascem. Esses atributos familiares, raciais, étnicos e culturais
acompanham cada ser em sua jornada particular de vida e, de certa forma,
sustentam os processos de metamorfose ao longo da existência - Mas sei lá, as
coisas é...é, eu agora vendo as imagens (...) me lembrei não é?, me senti de novo
nova e tirei muitas fotografias do mar (...) essas águas banham também o país
onde eu nasci (...) estou revendo agora e isso me emocionou, estancou lá dentro
não é? (...) vem as coisas na cabeça (silêncio). Pode-se dizer que existem
“qualificações que uma pessoa tem em comum com seu grupo de origem, quer
dizer, dizem respeito ao lado plural do eu. Pertencem ao nós, a que cada eu
pertence e realiza”. (CRITELLI, 2012, p. 58)
A sua solidão existencial: sem família desde sempre, fez Zoé refletir sobre
a sua origem - (...) a mamãe se correspondia com meu tio e ele ficou sete anos
na Sibéria (choro contido) irmão da mamãe (...) Ele não aceitava essa
bolchevique, não gostava dessa teoria digamos assim política, não é? E ele foi
preso e foi mandado prá Sibéria, ficou sete anos na Sibéria tirando pedra
(silêncio) (...) quando ele foi solto aí ele escreveu prá mamãe que ele tinha
voltado prá Lituânia, que ele tinha perdido o que ele tinha e que agora ele tinha
que trabalhar como carteiro (longo silêncio)... e que tinha ficado prá ele um
pedacinho de terra só, pouca coisa que não dava praticamente prá nada (...).
Com a revolução, as divisões de classes desapareceram – os extremos do
140
proprietário e do trabalhador, do capitalista e do proletariado, do rico e do pobre,
acabaram. Os “expropriadores são expropriados” (REIS FILHO, 2003).
São lembranças advindas da mãe e que ela sente como parte integrante de
si mesma - (...) são coisas que a gente sente na carne, a gente chama e vem tudo
aquilo não é bem? (muito emocionada) então a gente sofre, a gente sofre, não é?
(...) eu sou daqui também, mas, falando lá do começo tem alguma coisa que
puxa! (...) Eu perdi o idioma, perdi minha identidade nacional, sou lituana, tenho
cidadania brasileira, tenho, senão não poderia trabalhar no Estado. Eu aceitei isso
e cumpro a minha obrigação da melhor maneira que eu pude, perdi minha
identidade nacional na Lituânia, não é?
Nas duas primeiras décadas do século XX, a Rússia tzarista foi alcançada
por quatro revoluções que a devastaram e a transformaram, e também o mundo,
numa profundidade que poucos poderiam prever (REIS FILHO, 2003, p. 15). Foi,
certamente, para fugir desse estado de miséria que os pais de Zoé saíram de seu
país natal. A narrativa, nas entrelinhas, permite compreender que a história que
Zoé quer realmente contar, em meio a toda a sua existência repleta de
sensações, prazeres contidos, desejos roubados, conquistas, desacertos, amor,
sexo, paixão, é, na realidade, a história de uma imigrante da Lituânia, vinda para
o Brasil ainda bebê, e que guarda, em sua seiva vital as reminiscências de uma
história de vida e morte, de um povo nobre e plebeu, rico e pobre, brilhante e
miserável nas suas conquistas e derrotas. Zoé é lituana, ela sente na carne essa
realidade e tornou-se brasileira para viver a sua história pessoal.
- Aqui sou brasileira fiz tudo e fico assim muito triste, muito revoltada,
desculpe a expressão, com o que a gente vê fazendo com o país. Indignada! E
ver que as pessoas fazem com este país lindo, maravilhoso, rico, bonito, povo
bom, fazerem o que fazem com as pessoas, fazerem conosco, não? Ia dizer:
comigo não, mas comigo sim. Me abalou muito essa política, esses 10 anos (...)
me pegou demais as questões políticas do país (...) estou aposentada, deixa eu
acompanhar, tudo debaixo do pano, tudo tem má fé e o povo pagando e o povo
sofrendo.
Ela tece considerações severas sobre os acontecimentos políticos do país
e compara com as condições vividas pelos ancestrais em terras do leste europeu
e, sente-se indignada diante do que ela considera “cegueira” dos brasileiros ao
141
elegerem pessoas despreparadas para governar o país - (...) e as pessoas
iludidas, e os universitários iludidos digo: mas como é que essas pessoas não
enxergam? Porque eu tenho assim “por trás de mim” todo o sofrimento meu, da
mamãe, da minha família por causa de um regime! (choro) um regime autoritário
da Rússia sobre os países que ela conquistou, que ela sufocou digamos assim,
ela sufocou. Eu tenho através da mãe. Eu acho que é do sangue também.
Evidencia-se uma dupla identidade, uma natal, deixada para trás e que
ainda exerce forte influência sobre a sua subjetividade, a outra a da brasileira que
ela, de fato é, que teve o seu espaço sociocultural que a fez sujeito e a quem ela
transformou com a sua ação profissional, social e política. Uma longeva,
emblemática num processo de eterno vir a ser - Então aqui eu vivi, me eduquei,
trabalhei; é uma coisa muito estranha assim, que mexe com a gente viu? São
sombras exatamente que vêm, não definidas, interessante que quando eu vi o
mar eu fiquei assim não é? Está banhando o meu país, onde eu nasci, mas o que
é que eu tenho de lá? Nada, nada. Muitas marcas, só. Sim, sim é uma parte
minha que ficou mas eu não sou infeliz por isso, nunca fui (...) nunca pensei em
retornar, nunca pensei (...)
Movida pela força das lembranças, ela diz: Mas eu sei que a vida é isso, a
vida é luta renhida viver é lutar, é luta que aos fracos abate e aos fortes só faz
exaltar! Eu me considero uma mulher forte, eu não me abato na luta pela vida, na
luta pelas coisas que eu quero, eu sou forte, graças à Deus! E a educação que eu
tive; eu sei o que quero da minha vida (...). Sabiamente, Zoé sente que o tempo
de conquistas já foi; e o tempo de usufruto intenso advindas da mesma também já
foi, mas ainda resta uma vida boa para ser vivida, com limitações, tendo que fazer
concessões aos seus eternos anseios de “viver” intensamente ela resignada diz: -
(...) eu já quis, hoje o que eu quero é sombra, água fresca e sapato largo no pé
Como as mulheres velhas exercem na sociedade contemporânea a sua
vida? Como preenchem o seu dia? Como lidam com as emoções? Será que ainda
elaboram projetos de vida? Suas identidades são reconstruídas a cada novo
momento a que estão submetidas? A história de Zoé nos mostra que a vida não
muda em seu dinamismo e que a identidade, o que se é, é metamorfose em
busca de emancipação. E que o envelhecimento não altera essa condição
essencial. O que muda são os ajustes a serem feitos para que a vida transcorra
142
normalmente. Os cuidados humanos não são prerrogativas dos velhos, fazem
parte da existência; cada fase da vida carece de cuidados que lhe são próprios e,
insistindo, com as pessoas em idade avançada, não é diferente.
Zoé tem a sua agenda repleta de compromissos. Além daqueles
costumeiros: pagar as contas, cuidar dos assuntos bancários, da
correspondência, dos assuntos domésticos; ela ainda pinta, faz ginástica,
fisioterapia, lê, sai com as amigas e viaja. (...) só que com essa idade a gente vai
perdendo muito, há limitações que não preenchem esse vazio. Que eu gosto com
gosto! Porque a gente já vê defeitos, já vê que não é aquilo que era, acabou! Eu
gosto de ler, eu fico com um livro que eu goste, que me agrade, eu fico assim três
horas e não vejo, mas já passou? E a minha visão hoje permite uma leitura (...)
uma meia hora e já fico com os olhos lacrimejando (...). Os necessários ajustes
não tiram o gosto pelas atividades do seu dia a dia.
- (...) pintura é outra coisa que eu gosto muito; eu vejo as cores, a diferença
das tonalidades, eu vejo a água; meus quadros quase todos tem água, eu sou
caranguejo, não é bem? (risos) então eu gosto de ver as nuvens, agora estão
construindo esse prédio aí; daqui a pouco não vou ver mais o por do sol, que é
uma coisa que vai chegando de tarde e fico olhando e fico pensando que tintas eu
colocaria ali: amarelo? Que cores? Que mistura eu faria para dar essa tonalidade
assim, vai diluindo um pouquinho, vai pondo; então é muito gostoso! Sem dúvida,
são falas que evidenciam uma mulher sensível diante das belezas da vida, que
consegue reorganizar-se com aceitação do inevitável e com disposição para viver.
O artista pouco a pouco ama os próprios meios pelos quais manifesta o estado de embriaguez: a extrema finura e o esplendor das cores, a nitidez , das linhas, os cambiantes de tons: ama pois o que é distinto, enquanto no normal há falta de toda distinção” (NIETZSCHE, 1978, p. 362)
A história de vida narrada por Zoé, deixa muito claro que as pessoas hoje
com mais de 80 anos, as centenárias até, apresentam-se aos olhos da sociedade
como seres que mantêm, com sucesso e destreza, as mesmas atividades de 20
ou 30 anos atrás. Sem negar as transformações, a grande metamorfose que é a
passagem da vida madura para a velhice, e inevitavelmente a morte, Zoé mantém
uma atitude positiva diante da vida e, sem temer a morte, ela se preserva até o
limite do humanamente suportável. Vale a pena um retorno aos tempos de
143
ginásio, quando Zoé faz menção a uma professora de quem ela gostava e que
levava os alunos, de vez em quando, até a sala de ciências - (...) e tinha um
armário de vidro com o esqueleto e, em cima daquele armário estava escrito:
“Não te rias nem blasfeme do estado em que estou, pois já fui o que tu és e tu
serás o que eu sou”. Nunca me saiu da cabeça (...). Quando lhe pergunto: como
você vê a morte? Ela responde: - a morte? não tenho medo da morte, mas
adoooro da vida!
144
Capítulo 6 Reflexões sobre as análises
A narrativa possibilitou a Zoé um espaço para a escuta de sua própria fala,
tornando-a protagonista de sua história. E o diálogo estabelecido entre a
pesquisadora e a depoente transformou a entrevista em momentos de profundas
reflexões. Mais do que a coleta de dados, a preocupação não foi buscar a
verdade, e sim, o ponto de vista da protagonista.
No contexto de vida estudado, observou-se uma exigência familiar, na
qual a mantenedora – a mãe – precisou trabalhar muito e em condições difíceis
para o sustento de ambas. Mostrou como o envolvimento de Zoé com os contos
de Andersen alimentaram de fantasia e emoção a solidão da criança, exercitando
os mecanismos psicológicos capazes de engendrar formas de superação, e
modelar uma identidade que, no futuro, repaginou-se de posicionamentos mais
críticos e reflexivos. É a história de vida de uma mulher só – estrela solitária –
cuja solidão não foi suficientemente nefasta para impossibilitar o êxito pessoal e
profissional; ao contrário, as experiências infantis de solidão, abandono e medo
parecem ter sido a mola propulsora para uma vida de luta e conquistas,
alicerçadas em uma individualização que lhe deu autonomia e estimulou sua
singularidade.
O exercício profissional ocupou todo o tempo disponível dessa mulher; era-
lhe imprescindível adquirir poder aquisitivo para as suas conquistas, e o trabalho
lhe rendeu bons frutos e com eles foi possível adquirir bens imóveis que, mais
uma vez fizeram dela uma mulher muito à frente do seu tempo. O emprego na
rede oficial de ensino do estado do Paraná abriu portas para o ingresso no ensino
superior, onde fez carreira universitária e aposentou-se. Porém, o que dizer dos
afetos recolhidos, dos desejos contidos, dos amores sublimados, da sexualidade
enclausurada?
Liberta da relação quase simbiótica com a mãe, com a morte da mesma,
eis que a racionalidade é subvertida pela emoção, e as necessidades sufocadas
por 40 anos, buscam sua expressão mais intensa: a sexualidade. Certa de que
era o momento de viver a “sua vida”, ela rompe com a igreja, se desfaz dos
valores cultivados ao longo dos tempos e que já vinham sendo submetidos ao seu
145
crivo crítico, e se permite ser a mulher madura que é, em todo o seu potencial –
a fase intensas procuras, que a libertou e deu vazão aos seus anseios mais
profundos.
A revelação de que a mulher longeva pode alcançar, com o avanço da
idade, um estado de aceitação do tempo vivido, com suas conquistas e
desacertos, autorreferindo-se como realizada, feliz e sem mágoas, aflora no
contexto estudado. Essas constatações reforçam a importância da memória
individual como recurso metodológico para estudos psicossociais, porque ela está
intimamente ligada à interioridade que se associa à individualidade e à
experiência pessoal.
Tem-se, portanto, um conjunto de evidências que suscitarão novas
investigações para o avanço do conhecimento científico sobre a identidade
humana como metamorfose. E o contexto da longevidade apresenta-se como
profícuo para esse fim, uma vez que a sociedade contemporânea, muito embora
reconheça a mulher atual como indeterminada que deixou para trás a sua
condição de objeto para se assumir como sujeito, não se encontra “preparada”
para incorporar, sem restrições, essa nova mulher.
Há também uma contribuição para a sociedade, uma vez que o estudo
expõe, pela narrativa, uma visão social e política do país na formação de uma
região específica e que ganhou visibilidade na voz de uma longeva que viveu
essa realidade como produto e produtora de uma sociedade nascente com suas
características, valores, potencialidades e dificuldades. Acrescente-se a
contribuição acadêmica buscada neste trabalho, de também inspirar a formatação
de nossas pesquisas, criação de grupos de estudo e mesmo a expansão do
núcleo de estudos em identidade humana fortalecendo o clássico tripé: ensino,
pesquisa e extensão, numa relação mais estreita entre segmentos universitários,
fomentadores de conhecimento científico.
147
Esta tese teve como objetivo geral investigar, na narrativa de história de
vida de uma longeva, os elementos fundantes da identidade feminina e de que
maneira as experiências pessoais podem trazer luz para a compreensão do
sintagma: Identidade-metamorfose-emancipação, identificando os pontos críticos
da história de vida que fomentaram projetos para o vir a ser; descrevendo os
processos de ruptura com o convencional geradores de metamorfose e
analisando as relações sociais estabelecidas, bem como a vinculação da história
pessoal com a História da sociedade contextualizada em que viveu a
protagonista.
O estudo trouxe pelo seu conteúdo, indagações sobre a relevância do
mesmo para a compreensão da história das mulheres no Brasil, nascidas na
primeira metade do século XX. A partir da narrativa explorada cientificamente,
pode-se, através de generalizações, compreender a história de outras mulheres?
Se, por condições que lhe são muito particulares, a protagonista deste estudo
apresentou uma performance individual que a aproxima da mulher indeterminada
do século XXI, acredita-se que a sociedade brasileira tem um número significativo
de representantes dessa categoria de mulheres emblemáticas que fizeram a
história da humanidade tomar rumos inusitados. Nos meios acadêmicos, artístico,
político até nos mais dominados e nos excluídos da sociedade, surgem exemplos
fantásticos dessas mulheres: auto-determinadas no alcance dos seus objetivos,
corajosas e persistentes e que foram o alicerce para a mulher atual.
A identidade é uma experiência que se reconstrói por toda a vida, pelo
reconhecimento intersubjetivo na interação entre os sujeitos. Trata-se de um
evento que possui uma gênese social, ela surge, se manifesta e se reconstrói a
partir dessa interação e não do indivíduo isolado. Ser Mulher, portanto, é uma
condição de reconhecimento intersubjetivo. E ser mulher inserida em uma
sociedade segregacionista e machista preconizava certos tipos de
comportamento alicerçados nesses valores. Tudo o que colocasse em risco a
hegemonia dessa sociedade assim constituída, tendia a ser expurgado ou
menosprezado.
O estudo realizado demonstrou que foi possível para a mulher inserida
nesse contexto, e no caso especial estudado, um contexto social em formação,
uma história sendo construída por imigrantes de vários países, com culturas,
148
valores e crenças distintas e por migrantes em condições semelhantes - homens
e mulheres desejosos de uma vida melhor e mais autônoma - insubordinar-se,
dizer não para as dificuldades impostas, romper com as convenções e ditar os
rumos da sua própria vida. Não sem dificuldades e percalços, a depoente relata
determinação e coragem para trilhar um caminho solitário, porque diferente do
ensejado pela sociedade, e que a elevou à condição de independência econômica
e financeira.
A identidade projetada na infância; o desejo de ser professora de francês,
foi conquistada com auto-determinação e empenho nos estudos e nas atribuições
ditadas pela escola protestante em cujo seio a protagonista foi educada. Ser
independente, sua principal meta a levou a justificar o seu presente apenas pelo
trabalho. O futuro seguro ancorado numa moral ascética, exigiu um adiamento,
uma suspensão dos desejos imediatos e urgentes: namorar, passear, casar, para
conseguir atingir o projeto de longo prazo.
As formas de convivência criadas pela normatividade das sociedades
moldam os seus membros aos padrões de existência, aos modos de ser, pensar e
agir considerados corretos e necessários para a vida social. Assim, os projetos
de ordem pessoal são direcionados pelos parâmetros socialmente estabelecidos
e as metamorfoses humanas se processam em meio a políticas de identidade que
favoreçam a reprodução e manutenção desses padrões. Fugir à eles, romper com
o convencional significa colocar-se na contra mão dos acontecimentos quando
uma “avalanche” do pressões e impedimentos tendem a arrefecer o ânimo de
quem se atreveu a seguir outro caminho.
Poucas foram as mulheres que nos anos 1940/50 se atreveram a assumir a
condição de solteira para poder estudar e ter independência financeira. O difícil
porém não é impossível e o estudo apresenta uma mulher que abriu mão de um
casamento que a colocaria à sombra do marido, fixada numa identidade de
esposa e mãe, para seguir o seu desejo: ser professora de francês. Meta atingida,
outra urgência se apresentou: encontrar um espaço para o exercício do
magistério. E entre acertos e desacertos, o caminho que se apresentou foi o de
uma nova terra, promissora mas ainda bruta, próprio para homens desbravadores
e suas esposas submissas: o norte do Paraná, a nascente cidade de Londrina.
149
Subverteu a ordem social, caminhou com as próprias pernas e desejou
com intensidade o seu grande projeto de vida: casar-se. Se os caminhos foram
tortuosos, ela os enfrentou e chegou aonde queria. Aos 50 anos de idade,
encontrou o “seu homem” e com ele viveu a vida de casada, assumindo a
identidade de esposa por mais de 30 anos, quando então o sonho acabou com a
morte do marido, consumido pelo mal de Alzheimer.
Chega então a velhice que ela encara de frente apenas depois de viúva.
Mas ser velha não significa ter que assumir uma identidade “cristalizada”, etária,
sexual. A identidade humana como metamorfose é processo permanente que se
dá ao longo da vida; Identidade é vida. Ser velha é apenas uma contingência. E,
para a protagonista a vida atual ainda está cheia de interesses, projetos mais a
curto prazo, cuidados com a saúde, revisão de conceitos, ou seja, é a existência
se manifestando em toda a sua magnitude.
As lembranças, com o recurso da memória, revelam uma longeva, no alto
dos seus 90 anos, lúcida, perfeitamente capaz de orientar o seu cotidiano,
selecionar as suas prioridades, sem perder o gosto pela vida. Sem
ressentimentos pelos desacertos do passado, da opressão a que foi submetida,
pelo abandono e isolamento que marcaram a sua infância, pelos sacrifícios que
teve que fazer para estudar e trabalhar, ela se diz uma mulher realizada e feliz. As
lágrimas profusamente derramadas lavaram os acúmulos dolorosos e deixaram
no lugar uma paz profunda que a faz encarar o resto que lhe cabe de vida, com
otimismo e serenidade.
Messy (1993) já disse que a pessoa idosa não existe e esse pressuposto
psicanalítico cabe muito bem para encerrar a história de vida que orientou este
trabalho de doutoramento. Tudo que foi relatado e analisado corrobora essa
concepção de que o envelhecimento, cujo término é a morte não é prioridade dos
velhos. “O indivíduo, seja qual for a sua idade, permanece um sujeito com
desejos, e cujo apelo é preciso sustentar, até o momento em que a mensagem
vire sofrimento” (p. 140).
Estudar a identidade humana enquanto metamorfose é refletir a vida à luz
da ciência e da própria existência. Metaforicamente, comparar os processos de
metamorfose à germinação de uma semente amplia o entendimento porque,
parafraseando Rubem Alves, a semente é precisamente isso: a vida se
150
recusando a ser a mesma; a vida sabendo que, para continuar viva, precisa
“deixar de ser” o que era para “vir a ser” uma outra coisa, que no fundo é ela
mesma.
A tese aqui desenvolvida desvendou o universo de uma mulher longeva
que no decorrer de sua vida, repensou a sua condição de subalternidade: colocou
a sua voz e as suas ações para romper com a opressão que marca a condição
feminina e cerceia a manifestação de seu potencial desde tempos imemoriais. Da
narrativa de uma história de vida, visualizaram-se não só as formas de opressão
mas também os mecanismos utilizados para desencadear um processo em busca
de emancipação, passando por metamorfoses, assumindo novas personagens e
superando as consequências advindas desse processo. Mulheres do século
passado, emblemáticas por suas ações, inseriram as mulheres da sociedade
contemporânea numa condição de indeterminadas e empoderadas , libertas da
opressão sexual que as manteve reféns do poderio masculino, para assim
reafirmar a sua condição de sujeito político. “Em nossos dias, as mulheres
desdramatizam amplamente a libido, suas aventuras sexuais já não implicam o
grande amor e podem ter livre curso fora de qualquer projeto de futuro”
(LIPOVETSKY, 2000, p. 36).
O ser longeva conferiu, à depoente, credibilidade para retratar, com o
recurso da memória, as experiências de rompimento com o convencional de
modo a configurar uma metamorfose em busca de emancipação. Ao rejeitar,
racionalmente, o “remédio amargo” É para o seu bem, houve uma busca de
evasão possível, no sentido de procurar por si só, o que lhe convinha. A opção,
ainda que de certa forma coagida, de abrir mão do casamento, para estudar e se
profissionalizar, representou um novo ponto crítico. E, de forma mais contundente,
ao rejeitar o papel de preceptora oferecido pela instituição na qual exercia a
função de professora, identidade projetada ainda na infância, e sofrer as
consequências desse ato de “rebeldia”, colocou-se em um movimento, talvez o
mais importante para o seu projeto de vida. Essa conduta não apoiada pela
sociedade da época lhe conferiu a alcunha de emblemática - mulher à frente do
seu tempo - o que, direta ou indiretamente explicitou possibilidades para que as
mulheres redimensionem o papel de seu gênero diante do universo de homens.
151
Ao levantar o véu que encobriu, por tempos imemoriais, a realidade das
mulheres brasileiras, submetidas às regras da sociedade patriarcal, o estudo traz
informações que possibilitam enxergar mecanismos de evasão, aquisição de
comportamentos e movimentos emancipatórios, capazes de romper com as
convenções, com a normatividade das sociedades humanas construídas ao longo
da história. As formas de opressão sofridas, as políticas de identidade que,
reforçando a heteronomia, dificultam ou impedem qualquer ação autônoma, não
foram suficientemente eficazes para impedir o surgimento, nesse cenário, de
mulheres que, pelo seu caráter emblemático, ousaram caminhos não
convencionais, quebraram regras e empreenderam ações de resistência à ordem
sistêmica, promovendo o empoderamento feminino em busca de emancipação. É
o que Habermas denomina de identidade pós-convencional.
Questões como a identidade natural e suas configurações de ordem
atávica puderam ser percebidas, com clareza, no relato da mulher longeva que,
ao se deparar com o cenário da sua origem, sentiu “na carne” as dificuldades
sofridas pelos ancestrais e definiu-se como uma lituana que perdeu a sua
identidade nacional; E sofre por isso, sofre o sofrimento dos pais como se fora
seu.
A visibilidade das experiências infantis como sendo a grande referência
para a vida, para o vir a ser, também puderam fazer crer que os projetos do que
se deseja ser podem ser arquitetados desde muito cedo e que por isso mesmo
servem de norte para os processos de desenvolvimento pessoal e social.
Acrescente-se a isso, de acordo com o desvendado, a relevância da arte na
formação da identidade, por propiciar o alivio das tensões ocasionadas pela
ausência de apoio dos outros significativos, bem como o alcance de condições
psicológicas favoráveis, quando o universo das emoções se solidificam, buscam
vertentes positivas e engendram formas de superação do medo e do sofrimento.
Esse aparato psicológico construído desde a infância representa condição
essencial para que o sujeito possa lutar, escolher, fazer, optar, superando as
limitações advindas das normas e dos papéis sociais atribuídos às mulheres,
buscando um equilíbrio entre o que foi e o que se deseja ser, num processo de
formação e transformação da identidade numa articulação dialética
regulação/emancipação.
152
Na composição do objeto de estudo desta tese, buscou-se cuidar para que
em nenhum momento perdesse complexidade; uniu-se a abordagem da figura
feminina no contexto da longevidade a um olhar sobre mulheres que foram as
precursoras da identidade feminina para além do seu componente biológico. Esse
aspecto relacional indispensável a toda organização de pesquisa, pode trazer
uma contribuição metodológica para análises qualitativas ao transportar, para o
cenário científico, fatos relatados por alguém que possui uma preciosa
singularidade: simplesmente viveu muito. Essa perspectiva enriquece também o
conjunto de assuntos e temas de interesse para a psicologia social, uma vez que
aumenta a capacidade de dimensionar e ir mais longe na retrospectiva dos fatos
históricos e psicológicos pelo relato de quem “ainda está aqui para contar...”.
Sendo entendido como experiência de um reconhecimento intersubjetivo, o
depoimento de uma longeva lança, em primeiro plano, a sua forma contrastativa
diante de uma sociedade que vê, na velhice, uma identidade “cristalizada” numa
fase da vida, lamentável forma de retrocesso na visão científica que apenas
esboça o reconhecimento de que a identidade humana como metamorfose é um
processo permanente que se dá ao longo da existência. Por ter vivido muito, por
ser vista como velha, a mulher longeva se apresenta, ainda, aos olhos da
sociedade contemporânea de forma, no mínimo, desconcertante pois, conforme
Beauvoir (1990) a velhice é um estado normalmente anormal.
As pessoas de hoje obtêm ganhos sociais e políticos com a história
narrada, na medida em que vê retratado o processo de desenvolvimento de uma
região – o norte do estado do Paraná, cuja pujança é sabida em todo território
nacional, e que foi apresentada, pela narrativa, em suas características e
peculiaridades, seus valores, suas potencialidades do ponto de vista de quem
participou, efetivamente, desse processo. Uma região que segue buscando sua
(re)inserção no espaço nacional e global para o qual busca se preparar.
Do ponto de vista acadêmico, esse objeto de estudo instiga a formatação
de novas pesquisas e pesquisadores, novos empreendimentos de caráter
pedagógico, a organização de grupos de estudo e fomentação de projetos de
extensão que, associados às pesquisas, fortalecerão o tripé característico do
meio universitário: ensino, pesquisa e extensão. A expansão dos núcleos de
153
estudos sobre a identidade humana, poderá representar um passo importante
para a cooperação acadêmica entre as universidades que este estudo aproximou.
155
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