Post on 11-Jan-2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
José Renato Ferraz da Silveira
William Shakespeare e a teoria dos Dois Corpos do Rei: a tragédia de Ricardo II
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2009
José Renato Ferraz da Silveira
William Shakespeare e a teoria dos Dois Corpos do Rei: a tragédia de Ricardo II
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, Política, sob a orientação do Prof. Doutor Miguel Wady Chaia.
SÃO PAULO 2009
Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
_____________________________
_____________________________
DEDICATÓRIA
Dedico principalmente a Deus.
Aos meus pais.
Aos meus irmãos, companheiros inseparáveis.
E, principalmente ao meu orientador e amigo Prof. Dr. Miguel Wady
Chaia.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte inesgotável de minha inspiração.
Aos meus pais, pelo incentivo e compreensão.
Aos meus irmãos, Fernando e Isabel.
A Miguel e Vera Chaia.
Aos colegas do NEAMP.
À Márcia, pelo carinho e afeto.
À Juliana, lembrança eterna e gravada no coração.
À CNPQ, pela bolsa concedida nesses frutíferos anos de pesquisa. Ao Danilo da Cás e à Teresa Cristina Bruno Andrade, pela ajuda no processo de
revisão do texto.
RESUMO
A tragédia da política é a certeza do inesperado, a constante reposição de energias humanas, o esforço para evitar o inevitável, a busca da ordem e da harmonia em face do desequilíbrio e do caos. Por meio de pesquisa teórica, este estudo volta-se para o entendimento acerca do impactante e devastador significado de política como tragédia, em que buscamos, com base na Hermenêutica, enfocar, relacionar, analisar o tempo histórico da obra de William Shakespeare, o governo do rei inglês Ricardo II, além da controversa teoria do direito divino dos reis – reforçada, discutida e ampliada – pelos juristas ingleses durante o governo da rainha Elisabeth (1558-1603). Foram selecionados – como recortes para análise – os conflitos, paradoxos, tensões, busca de legalidade e legitimidade, os iminentes envolvimentos dos seres humanos, numa dimensão trágica, em que vida e morte, ascensão e decadência, glória e fracasso são etapas inevitáveis e constitutivas da eterna disputa pelo poder político. Acreditamos que Shakespeare tenha alcançado revelar a tragédia dos Dois Corpos do rei nessa peça Ricardo II. Por essa razão, não se pode separar essa doutrina jurídica medieval da produção literária de Shakespeare e, se essa teoria esvaneceu no tempo, ainda possui, hoje, significado concreto e humano; isso, em grande parte, deve-se a ele. Consideramos, neste trabalho, que Shakespeare dominava o jargão de quase todo o ofício humano, além do contato deste com a fala constitucional e jurídica de seu tempo. Além disso, a concepção do poeta sobre a natureza gêmea do rei não depende de amparo somente constitucional, uma vez que a peça concebe, muito naturalmente, a natureza geminada do rei. Nesse sentido, esperamos que o estudo em pauta contribua para a busca do entendimento da teoria dos Dois Corpos do rei, que se constitui em uma ramificação do pensamento teológico cristão e, consequentemente, essa peça permaneça como marco da teologia política cristã. Palavras-chave: Tragédia. Política. William Shakespeare. Ricardo II. Doutrina jurídica dos dois corpos do rei.
ABSTRACT
The tragedy of the politics is the certainty of the unexpected, the constant replacement of human energies, the effort to avoid the inevitable, the search for order and harmony, in face of the imbalance and chaos. By means of theoretical research, this study comes to the understanding about the shattering and devastating meaning of politics as tragedy, in that it´s searched, by the Hermeneutic, focus, relate, analyze William Shakespeare´s work historical time, the English king Ricardo II government, beyond the controversial theory of the kings divine right – reinforced, discussed and extended – by the English jurists during Queen Elizabeth govern (1558-1603). It was selected, as analysis cuttings, the conflicts, paradoxes, tensions, search for legality and legitimacy, the imminent human beings involvement in a tragic dimension in which life and death, ascent and decadence, glory and failure are inevitable and constituents phases of the political power eternal dispute . It´s believed that Shakespeare has achieved reveal the Two Bodies of the king tragedy in that piece called Ricardo II. By that reason, that medieval legal doctrine of the Shakespeare literary output cannot be separated and, if that theory has been losing its meaning in time, it still has human and concrete meaning nowadays; this, in great extent, dues to him. It is considered, in this study, that Shakespeare dominated the jargon of almost all the human position, besides the contact of this with the constitutional and legal speech of his time. Besides that, the poet conception about the king twin nature does not depend on constitutional protection only, since the piece conceives, a lot naturally, the king twin nature. In that sense, it is expected that the present study contributes for the understanding search of the Two Bodies of the king theory, that it´s constituted in a ramification of the Christian theological thought and, consequently, that piece remains like a Christian political theology landmark. Key-words: Tragedy. Politics. William Shakespeare. Richard II. Legal doctrine of the two bodies of the king.
“Não importa onde... Ninguém me fale de esperança”.
Falemos de túmulos, vermes e epitáfios, Façamos do pó papel, e com olhos de chuva
Se escreva a dor no seio da terra. Escolham-se executores e falemos de testamentos. Mas, nem isso..., pois, que mais podemos à terra
Legar a não ser os nossos corpos despojados? As nossas terras, vidas e tudo o mais são de Bolingbroke,
Pois nada temos de nosso senão a morte E aquele pequeno molde de barro
Que nos serve de pasta e invólucro para os ossos. Por amor de Deus, sentemo-nos no chão
E contemos histórias tristes da morte dos reis: De como uns foram depostos, outros mortos na guerra,
Outros envenenados pelas esposas, ou mortos Durante o sono, todos assassinados – pois
Dentro da coroa oca que cinge as fontes de um rei Tem a Morte a sua corte, onde faz sentar o bobo, E zomba do poder real num esgar à sua pompa, Concedendo-lhe um suspiro, uma cena breve,
Para fazer de rei, ser temido e matar com o olhar; Infunde-lhe um vão conceito de si próprio, Como se a carne que nos empareda a vida
Fosse imperecível como o bronze; assim divertida. Ela chega ao fim com um pequeno alfinete
Para furar as muralhas do castelo e...adeus, rei! Cobri as cabeças e não mofeis da carne Fazendo solenes reverências; deitai fora
O respeito, a tradição, fórmulas e etiquetas; Todo este tempo me entendestes mal.
Vivo de pão como vós, sinto necessidades, Sinto tristeza, preciso de amigos – carente, Assim, como podeis dizer-me que sou rei?
William Shakespeare (1564-1616) - Ricardo II (1595).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 10 1 A INGLATERRA ELISABETANA E OS CONFLITOS PELO PODER ........................ 37 1.1 A chegada ao poder e a escolha dos ministros ................................................................ 37 1.2 Elisabeth e os apaixonados pretendentes......................................................................... 43 1.3 Mary Stuart e a conspiração católica............................................................................... 45 1.4 A invencível armada espanhola de Filipe II .................................................................... 53 1.5 Conde de Essex: a última ameaça ................................................................................... 59 2 William Shakespeare e seu tempo histórico....................................................................... 67 2.1 O Renascimento............................................................................................................... 67 2.2 O tempo de Shakespeare: a transição .............................................................................. 80 2.3 A origem em Stratford..................................................................................................... 82 2.4 Infância ............................................................................................................................ 87 2.5 Juventude......................................................................................................................... 91 2.6 Londres ............................................................................................................................ 93 2.7 Amizades e invejas .......................................................................................................... 95 2.8 Os Homens do Lorde Carmelengo .................................................................................. 98 2.9 A fase final ...................................................................................................................... 103 3 Vida e morte do Rei Inglês Ricardo II................................................................................ 105 3.1 Breve histórico................................................................................................................. 105 3.2 A revolta social e o surgimento do rei Ricardo II............................................................ 106 3.3 Os lordes apelantes e a humilhação do rei....................................................................... 109 3.4 A reviravolta do poder..................................................................................................... 111 3.5 A queda de Ricardo II...................................................................................................... 113 4 Análise interna da peça Ricardo II ..................................................................................... 116 4.1 O mais cerimonial drama histórico.................................................................................. 116 4.2 Problemas de crítica textual............................................................................................. 117 4.3 As fontes.......................................................................................................................... 119 4.4 Tragédia e alegoria política ............................................................................................. 121 4.5 A tragédia do rei Ricardo II: a tragédia dos dois corpos do rei ....................................... 122 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 150 BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 159
INTRODUÇÃO
Em sua chegada à aristocrática Londres elisabetana (1558-1603), o jovem William
Shakespeare oriundo de Stratford-upon-Avon1, mergulhou na densa e sombria atmosfera
política da capital inglesa no ano de 15872. Eram tempos mórbidos e competitivos, de
incertezas e ansiedades, de intrigas e conspirações, de doenças e morte, com um ingrediente
amargo a assombrar a todos: o medo da Armada Invencível do rei Filipe II3 da Espanha.
Apesar disso, era uma época de oportunidade e progresso.
A trajetória de Shakespeare só se torna inadmissível ou incompreensível para os que não acreditam no imponderável do gênio nem, por outro lado, na identificação de todos os gênios com a época que os produz. Se o indivíduo fosse única e exclusivamente produto do meio, naturalmente na época elisabetana, por exemplo, teria fornecido à humanidade não um, mas dúzias de William Shakespeare, o que infelizmente não é verdade. Mas que o teatro estava no ar, e que os temas de que Shakespeare tratou eram assuntos do momento, também não há dúvida; e a época produziu Marlowe, Kyd, Webster, Middleton, Fletcher, Tourneur, Jonson e mais algumas dezenas de nomes menores (HELIODORA, 1997, p. 03).
Nessa perspectiva, “Shakespeare pertenceu a um período de transição, no qual uma
ordem antiga e seu panorama de vida estavam esmorecendo ou desmoronando, e uma nova
ordem ainda estava tomando forma” (KIERNAN, 1999, p. 23).
O ano de 1587 foi decisivo também para o Renascimento inglês na elevação e
consagração do teatro como negócio e expressão artística. Essa prática artística captava
dramaticamente a relação entre filosofia e religião, arte e política, emoção e razão, lealdade e
deslealdade, ordem e desordem, amor e ódio, vida e morte. Todos esses ingredientes
misturados num caldeirão que fervilhava a essência mágica das motivações humanas e
abstraía delas inúmeras funções estéticas e sociais. O drama inglês nascera sob uma boa
1 William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon (1564-1616), numa casa sob cujas telhas estava escondida uma profissão de fé católica que começava por estas palavras: Eu, John Shakespeare. John era o pai de William. A casa, situada na ruela Henley Street, era humilde, o quarto em que Shakespeare veio ao mundo era miserável; paredes branqueadas com cal, barrotes negros entrecortando-se em cruz, ao fundo uma janela bastante ampla com vidrinhos em que se possa ler hoje, entre outros nomes, o nome de Walter Scott (HUGO, 2000, p.17). 2 Poder-se-ia chamar Londres de Babilônia negra. Lúgubre o dia, esplêndida a noite. Contemplar Londres é uma comoção. É um rumor debaixo da fumaça (...) a Londres do século XVI não se assemelhava a Londres de hoje, mas já era uma cidade desmesurada (Id., 2000, p. 19). 3 Filipe II (1556-1598), sucessor de Carlos V, liderou a Contra-Reforma, enfrentou a revolta dos Mouros de Granada, submeteu Aragão e anexou o reino de Portugal, cujo trono estava vago por morte D. Sebastião, embora preservando-lhe a autonomia. Aniquilou a armada turca na batalha de Lepanto, com o auxílio das esquadras veneziana e papal (1571). Mas fracassou nas tentativas de dominar a Inglaterra (1580) e a França (1590), que auxiliavam a rebelião herética da Holanda. Sob seu reinado a Espanha desfrutou de notável desenvolvimento econômico e cultural, conhecido como Século de Ouro.
estrela. Os talentos ingleses encontraram uma verdadeira e favorável atmosfera para alimentar
e fazer o drama inglês florescer.
William Shakespeare, consciente de sua vontade e talento, percorreu as alamedas
londrinas embriagado de ambições e frutíferos sonhos. Para ele, Londres simbolizava a
conquista da fama e a ansiada independência financeira. Logo, compreendeu, como num
“passo de mágica”, após assistir Edward Alleyn4 interpretar Tarmelão, de Christopher (Kit)
Marlowe (1564-1593)5, que a sua verdadeira vocação seria escrever para o teatro. Ambicioso,
destemido, intuitivo buscou conquistar e realizar seus sonhos grandiosos.
O Cisne de Avon6 constatou que: “o caminho óbvio seria o de juntar-se a uma
companhia de atores, pois desse modo poderia aprender seu ofício pelo lado de dentro e teria
um provável mercado para seu produto” (HALLIDAY, 1990, p. 43). Não precisou de longo
tempo e espera para que Shakespeare ambientasse-se na vida intelectual e cortês da capital.
“Deixando de ter qualquer dificuldade em representar essa mesma sociedade em suas peças”
(HALLIDAY, 1990, p. 46). Como um fugaz cometa singrando o céu londrino evoluiu como
ator, dramaturgo e empresário. O humilde guardador de cavalos irrompe de repente no meio
artístico como um raro alquimista ou um Midas do fluxo da criação. Torna-se astro cintilante
na esfera celeste universal para brilhar eternamente.
[...] da sua personalidade, pode afirmar-se que era senhor absoluto de uma intuição que lhe permitia captar a “ninharia mais insignificante” ou o tema mais sério que lhe pudesse ser útil para sua arte, juntando a isso a capacidade de concentração que é um dos atributos inseparáveis do gênio (EVANS, 1976, p. 183).
Em meio a esse período de ascensão meteórica, Shakespeare vivenciava um novo
momento histórico na Inglaterra:
A Armada fora destruída, e o domínio espanhol no Novo Mundo estava abalado. Leicester estava morto, e seu enteado, o jovem e belo Conde de Essex, tomara seu lugar ao lado da Rainha que envelhecia, ofuscando totalmente seu outro favorito, Sir Walter Raleigh. E, como se para celebrar todas essas mudanças, a literatura da Inglaterra repentinamente floresceu como nunca. A Arcádia e os sonetos de Sidney, e os três primeiros livros da Faerie Queene (A Rainha das Fadas) de Spenser estavam publicados, enquanto no teatro uma revolução dramática estava sendo levada a efeito por meio de Christopher Marlowe e os outros “University Wits”, aos quais se juntara agora Tom Nashe. E aparecera ainda a Tragédia Espanhola, de Thomas Kyd, uma peça de fantasmas, vingança e sangue que se tornaria tão
4 Um dos principais atores da Companhia do Lorde Almirante. 5 Homem de Cambridge, que introduziu o verso branco (sem rima) na linguagem dramática – inovação adotada por Shakespeare. Além disso, inaugurou a série de tragédias (que refletem uma sociedade em crise) baseadas na história inglesa e conquistou, em seu tempo, maior popularidade do que qualquer outro de seus colegas universitários. Criador do Doutor Fausto e de Tamerlão, o Grande, que fazia afirmações ateístas escandalosas, declarava que “quem não ama tabaco e rapazes é tolo” e não surpreendeu ninguém quando acabou morto numa briga de taverna. 6 Shakespeare chamado de Cisne de Avon pelo romancista, dramaturgo, poeta francês Victor Hugo (1802-1885).
perenemente popular quanto Tamerlão, o Fausto e o Judeu de Malta de Marlowe (HALLIDAY, 1990, p. 46).
Esse momento especial e específico na história inglesa acompanhará, na mesma
medida impactante e devastadora, o sucesso que Shakespeare alcançara em 1592.
A luta pela fé converteu-se para os ingleses numa luta pela nação. [...] A Inglaterra era agora geopoliticamente não mais um bastião avançado do continente europeu e sim tinha diante de si nova e grande perspectiva de tornar-se um ponto central do mundo. Para isso os corsários ingleses atiraram-se à rapinagem no mundo colonial luso-espanhol, competindo com os holandeses na pirataria; a rainha e o povo festejavam-nos como heróis (VALENTIM, 1965, p. 335).
Quando havia completado as três partes do Henrique VI, Shakespeare é, sem sombra
de dúvida, um dramaturgo consagrado. Produzirá arte teatral na busca de “desnudar as
relações de poder que afetam cruelmente a vida”.
Dessa forma, a tragédia política shakesperiana foi precisamente à ênfase na queda de homens poderosos: “o que ele via e ouvia nas altas esferas deve tê-lo auxiliado no colorido retrato de uma nobreza decadente, tanto moral como politicamente, nos Dramas Históricos” (KIERNAN, 1999, p. 43).
Essa preocupação com os governantes tornou-se tema de referência para o bardo
dramaturgo. “O artista alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade, de
maneira que a obra possa conter – de forma mais ou menos explícita – o conjunto de fatores
sociais circundantes a ela” (CHAIA, 2007, p. 13).
Numa perspectiva de abordagem histórico-política, Shakespeare escreve sobre o
declínio e ascensão ao poder real, quando o governante não sabe refrear suas ambições nem as
dos que o rodeiam. Vale ressaltar que das 37 peças de Shakespeare, 22 tratam de temas
políticos, a maioria de forma direta. “A visão global de Shakespeare é bastante coerente e
pautada por preocupações com uma ordem harmônica, responsabilidade mútua, generosidade
e preocupação com o outro” (HELIODORA, 1997, p. 55). Embora haja esse desejo
permanente do Estado ideal e estável, há nas peças políticas de Shakespeare, principalmente
nos Dramas Históricos, a via real da política é marcada pela indeterminação, insegurança e
instabilidade. Parece que Shakespeare, ao mesmo tempo, se aproxima da política clássica
pensada por Platão e Aristóteles7, bem como da política moderna desenvolvida por
7 A concepção clássica de política de Platão e Aristóteles procura definir a essência do bom governo, a partir da qual as Constituições reais são expressões defeituosas e muitas vezes corrompidas quando, por exemplo, ocorrem tiranias e oligarquias. Podemos dizer que tal concepção privilegia a atitude contemplativa, uma vez que cabe ao filósofo descobrir os princípios que fundamentam o agir correto a fim de orientar os homens na tarefa de construir a vida em comum.
Maquiavel8. Ou seja, Shakespeare compreende que a política moderna é marcada pelo
conflito, porém, ele entende que o soberano deve governar de acordo com os desejos e
interesses da coletividade. Portanto, em suas peças encontramos duas influências de
compreensão da política: a dita “prescritiva – trazida dos gregos clássicos – e a “trágica” e/ou
realista - pensada por Maquiavel.
E a partir disso, Shakespeare dá significado distinto à vida do indivíduo, à história de
uma cidade ou ao destino de um povo. “Toda a obra de Shakespeare constitui-se numa forma
de conhecimento expressa na mais alta poesia e dramaturgia produzidas pela civilização”
(CHAIA, 2007, p. 74). A abordagem shakespeariana engloba uma série de aspectos, desde a
dimensão subjetiva, afetiva, irracional e racional do exercício do poder.
Assim, constata-se que quanto mais as ações humanas se voltam para o poder ou são
atraídas por ele, mais perdem o controle de suas ações.
Shakespeare aponta para outro tipo de contradição que perpassa ao político, ao reforçar que o valor das paixões e emoções individuais e as comoções coletivas, mesmo ao ocorrerem inconstantemente e aos saltos, de forma extraordinária não são alheios e nem excepcionais à política. Exatamente, por causa da morte, torna relativo os fenômenos políticos e, por oposição a ela, imprime maior importância à vida e ao homem. Paradoxalmente, contra degradação humana simbolizada por esse mal absoluto, a política e o homem darão a outra medida da vida. O indivíduo – na sua natureza e humanidade – atravessa a vida defrontando-se consigo mesmo e com o poder, num encadeamento de fatos guiados também pelo destino (acontecimentos sem controle por parte do sujeito, em cujo limite encontra-se a morte) (CHAIA, 2007, p. 75).
As histórias de figuras eminentes e de sua queda poderiam dar expressão a uma
sensação difusa e de instabilidade. É como se tudo estivesse dentro do caldeirão de onde
qualquer coisa poderia emergir. Ou, ainda, um estado de espírito com elementos
revolucionários. Ao narrar a vida dos reis, Shakespeare compõem um painel interessante que
nos auxilia a formular inúmeras teorias políticas. Ao lado de Maquiavel, Shakespeare entende
que a importância de conhecer política é agir politicamente, pois o saber se acha voltado para
a transformação da realidade. E isso é uma das tendências do Renascimento, o utilitarismo,
pois se distancia da discussão centrada em modelos e há uma aproximação da análise da
política como jogo de forças resultantes dos inconciliáveis desejos humanos.
Daí que, em certos momentos ou como parte de um projeto pessoal, a produção artística consegue representar a condição humana, os mecanismos de poder e da economia, ou a estrutura social na qual o artista está envolvido.
8 A política pensada por Maquiavel observa como os governantes e súditos agem de fato. A política não mais se refere ao modelo do bom regime, mas à análise do jogo efetivo das forças que se chocam em circunstâncias muito específicas.
Nessa primeira situação, podem ser incluídos: a dramaturgia de Shakespeare que, mesmo defendendo a legitimidade da monarquia inglesa, desnuda as relações de poder que afetam cruelmente a vida; a obra de Goya por representar tanto a alegria das festas populares quanto o lado negro humano, denunciando os horrores da guerra e a farsa do poder; os escritos de Artaud que desmascaram o peso da cultura morta, os riscos da racionalidade política e a dominação imposta pelo discurso; e a literatura de Garcia Marques que trata de uma América Latina esfacelada, mas mágica na busca de sua inimaginável sobrevivência. No Brasil, enquanto exemplos, pode-se citar a Semana de Arte Moderna de 1922, produzindo obras que trazem novos elementos para a construção da identidade nacional; o cinema de Glauber Rocha com as alegorias que expõem a montagem e os impedimentos da sociedade e as impossibilidades da política brasileira; a pintura de Antonio Henrique Amaral, principalmente as séries “Bananas”, “Campo de Batalha”, e “Morte no sábado” – um tributo a Wladimir Herzog; as contundentes metáforas visuais sobre o poder criadas por Regina Silveira; a instalação “111”, de Nuno Ramos, uma revolta estética contra o massacre dos prisioneiros do Carandiru, em São Paulo; e o rap agressivo de denúncia das condições vigentes entre a população da periferia urbana (CHAIA, 2007, p. 22-23).
Ou seja, ao tratar de peças políticas baseadas em acontecimentos históricos,
Shakespeare constrói as crônicas – chronicle play – fundamentadas nos relatos dos
historiadores Edward Hall e Raphael Holinshed.
Mas olhar para um rei na história ou tentar vê-lo realisticamente era mergulhar no tumulto de detalhes de que eram feito os anais – por exemplo, nas New Chronicles (1516) de Robert Fabyan, em The Union of the Two Noble and Illustre Families of Lancaster and York (1548) de Edward Hall, que plagia o texto de Polydore Vergil na íntegra, nas Chronicles (1562-1572) de Richard Grafton, nas Chronicles e nos Annales de John Stow (que datam de 1565 em diante) ou nas imensas Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1577 e 1587), que dizemos serem de Raphael Holinshed, mas que verdade incorporam trabalhos feitos por outros historiadores do período Tudor ao longo de mais de setenta anos (HONAN, 2001, p. 180).
E ao ler as fontes históricas de Hall e Holinshed, bem como outras crônicas, os fatos
históricos nas peças são, sem dúvida, maquiados, manipulados, exagerados ou atenuados. Mas
não há uma afronta direta à história. Shakespeare preocupa-se antes de mais nada com a
coesão de cada peça como unidade dramática de representação não assumindo uma particular
responsabilidade narratológica similar à do cronista ou romancista, para quem as categorias de
tempo e de espaço podem ser mais difusas e dispersas, desde que sempre amparadas pelas
linhas de continuidade da história e da vida.
Na edição ampliada de 1587, as Chronicles de Holinshed – três volumes em formato in-fólio, com sete páginas de rosto e 3,5 milhões de palavras – seriam uma fonte de proporções oceânicas para pelo menos treze das peças de Shakespeare. Essa obra não se restringe a uma ideologia ou tese histórica única e, embora divida sua narrativa – começando com Guilherme, o Conquistador – em reinados, ela abre a história sob o princípio de uma gigantesca e aleatória perspectiva inclusiva, sem anular os pontos de vista de suas diversas fontes componentes. Para Shakespeare, esse texto extraordinário funcionou como uma vasta biblioteca e um manancial de
detalhes; sua imensidão desordenada, seus múltiplos pontos de vista e férteis incoerências deixavam espaço para que a imaginação do dramaturgo trabalhasse. Shakespeare via a obra de Holinshed – mais ou menos como via a versão de Golding da obra de Ovídio – como uma versão bastante literal e não fantasiosa daquilo que havia no verdadeiro “objeto” em si, neste caso, os documentos da experiência história britânica, ficando os julgamentos acerca do “objeto” em aberto. Atormentado por problemas de forma, ele parece ter achado que a obra de Hall, The Union of the Two Noble and Illustre Families, pelo menos dava um contorno ao século XV ao retratar uma curva de acontecimentos ao longo de oito reinados, de Ricardo II (1377-1399) – a partir da época da disputa Mowbray-Bolingbroke – até a morte de Ricardo III em 1485 e a união da rosa vermelha de Lancaster e da rosa branca de York sob a liderança do primeiro rei da dinastia Tudor (HONAN, 2001, p. 180-181).
Ao todo, Shakespeare escreveu nove dramas históricos ingleses e parte de outro,
Henrique VIII, e três dramas romanos. As peças que aparecem no First Folio de 1623 como
histories são pela ordem na qual foram escritas: 1°, 2° e 3° partes de Henrique VI, Ricardo III,
Rei João, Ricardo II, 1°, 2° partes de Henrique IV e Henrique V.
Mas o estudo dos acontecimentos do passado era parte importante de seus contínuos esforços para compreender seu próprio mundo; uma arena fascinante na qual ele podia contemplar homens e mulheres em ação, e as complexas relações entre eles e a família, classes e nações, às quais pertenciam (KIERNAN, 1999, p. 62).
Ele mostra, nessas peças históricas, que o espaço da política contém desafios e tensões
constantes para todos os homens em qualquer época, superando antigas concepções que
imprimiam estabilidade ou coerência à política. Como diz Chaia (2007): “em Shakespeare,
enquanto houver ser humano, vida e sociedade, a política se desenvolverá como tragédia”
(CHAIA, 2007, p. 05). Ainda de acordo com Chaia (2007, p.88), “a tragédia política perpassa
também os príncipes, os governantes: quase sempre homens e poder que estão próximos
dificilmente se ajustam”.
Uma das novidades da nova perspectiva de compreensão da política é, portanto, o
reconhecimento da permanência do conflito. Não se trata mais de sonhar com sociedades
estáticas nas quais se realizaria de uma vez por todas o ideal de estabilidade ao se alcançar a
realização do bem comum. Como afirma Chaia (2007, p. 01):
Não se trata de uma política institucional, pois mesmo que Shakespeare desenvolva seus temas em volta do trono, com personagens envolvidos num embate com o poder, ele nos fala de uma política atravessada pela gravidade e pela disjunção, imprimindo significados distintos à história de uma cidade ou de uma nação.
Cada peça histórica é levada adiante por suas próprias contradições e sua necessidade
de soluções. Ainda, o mesmo autor (2007, p. 89) ressalta que nelas estão revelados os
meandros do poder político, “a constante reposição de energias humanas, a certeza do
inesperado, o esforço para evitar o inevitável, a busca da ordem e da harmonia, em face do
desequilíbrio, e do caos”.
As primeiras peças shakespearianas demonstram o “patético trágico e o mortal jogo
político”: a trilogia Henrique VI que marca o início de uma análise épica - 1° Parte (1589-
1590); 2° Parte (1590-1591); 3° Parte (1590-1591). E conclui essa primeira fase com a peça
Ricardo III (1592-1593). Dessas quatros peças é composta a tetralogia da Guerra das Duas
Rosas. Essa Guerra entre os Lancaster e York, que, entre o endêmico e o epidêmico, durou
mais de trinta anos e deixou o país arrasado pelas mortes e abandono. Shakespeare viu nesse
conturbado conflito civil um modo de analisar a tragédia da política: como os reis
dramaticamente conquistam, mantém e perdem o poder. Ou seja, como os governados
também são atingidos pelo caráter da tragicidade da política.
Tragédia se tornou, em nossa cultura, um nome comum para esse tipo de tipo de experiência. Não apenas os exemplos oferecidos por mim, mas muitos outros acontecimentos – um desastre numa mina, uma família destruída pelo fogo, uma carreira arruinada, uma violenta colisão na estrada – são chamados de tragédias. E, no entanto, tragédia é também um nome extraído de um tipo específico de arte dramática que por vinte e cinco séculos teve, sem interrupções, uma história intrincada, mas que pode ser explicada. A sobrevivência de muitas das grandes obras a que chamamos tragédias confere um peso importante a essa presença. A coexistência de sentidos parece-me natural, e não há nenhuma dificuldade fundamental tanto em ver a relação entre eles quanto em distinguir um do outro. E no entanto é comum que os homens educados no que constitui agora a tradição acadêmica fiquem impacientes e mesmo desdenhosos em relação ao que vêem como usos imprecisos e vulgares da palavra “tragédia”, na fala comum e nos jornais. (WILLIAMS, 2002, p. 30).
Essas peças lembravam o conceito medieval da roda da Fortuna: quem ascende, cai,
ou seja, a vida é um ciclo inevitável. Em Shakespeare, podemos perceber uma visão histórica
cíclica, pois o poder não permite a estabilidade e nem é continuamente exercido por um
homem ou por um regime. Vale ressaltar que Shakespeare é influenciado pela concepção
cíclica da história, herdada principalmente dos historiadores Políbio (século II a.C.) e Tito
Lívio (século I a.C.), partindo do pressuposto de que o homem é eternamente o mesmo e a
história seria constituída por momentos que se repetem. Daí o caráter educativo da história, “a
grande mestra”, ajudando os homens a não incorrerem nos mesmos erros.
O homem é sempre dominado pela agressividade covarde e astuciosa, seus pensamentos, reações e feitos são predizíveis e, portanto, é possível fazer generalizações universalmente válidas sobre a sociedade e a política. Aqui se encontram pistas para um poder não só legitimado pelo Estado, mas também relacionado ao conhecimento e à agressividade, que podem ser identificações de
micropoderes como também, em última instância, de partículas integrantes do poder institucional (ARAUJO, 2007, p. 128).
De acordo com Gassner (1974), é na perspectiva e conteúdo geral da obra de
Shakespeare que se encontra aquela súmula de uma grande época e a ampla pertinência ao
gênero humano que, à falta de uma palavra mais exata, os homens chamam de
“universalidade”. Para Shakespeare, em sua era, a chave da vida é a afirmação do
individualismo. Criou personagens altamente individualizadas com mais abundância que
qualquer outro dramaturgo, e os conflitos em suas peças são invariavelmente produzidos pelo
exercício da vontade humana. Conforme Gassner (1974), o homem luta contra o homem e não
contra o destino, Deus, a hereditariedade ou os distúrbios glandulares. O drama
shakespeariano é o drama da vontade individual. Representa a humanidade em momentos de
máxima tensão, conflito, crise, e procura resolvê-los em termos amplamente humanos.
“Coloca novas questões e improbabilidades das quais, ainda hoje, não conseguimos escapar”
(CHAIA, 2007, p. 89).
Shakespeare se apresenta como “supremo” mestre do “teatro do indivíduo”, como
afirma Gassner (1974). Shakespeare dá sua atenção a representantes de quase todos os níveis
da sociedade. A mesma mão que desenha príncipes e nobres também delineia mercadores,
oficiais subalternos, soldados rasos, trapaceiros e vagabundos. A mesma individualização se
estende aos dois sexos e alguns dos maiores triunfos de sua arte serão encontrados em suas
personagens femininas.
Mulheres guerreiras, mulheres trágicas. Combinações imaginativas de antigos e novos modos de viver; ideias e valores se encontraram e deram vida a personagens, heroínas que questionaram a sociedade. Shakespeare foi quem concebeu e reconheceu essas mulheres, percebendo as energias e aspirações femininas em conflito com o isolamento que se esperava delas. Nas peças do dramaturgo inglês, recusando antigas convenções que confinavam as mulheres ao papel passivo, ele alertou com ares licenciosos que essas fêmeas, mães e amantes também são de carne e possuem sentimentos desencarnados, não podendo ser enquadradas em nenhum altar, em nenhum inferno. Nem a beleza eterna das deusas, nem o poder demoníaco das bruxas podem ser descartados numa mulher, mas também não podem ser considerados os senhores totais de uma personagem feminina (ALVES, 2007, p. 101).
Suas personagens são quase todas formadas por ativas personalidades, desde heróis
que conquistam coroas ou a glória até andarilhos ou vagabundos que roubam bolsas e
dormem em celeiros, desde rainhas apaixonadas até marafonas promíscuas e donzelas núbeis
que se vestem com roupas de rapazes para seguir os homens de seu desejo.
O que é mais, suas personagens triunfam até mesmo sobre suas deficiências. Arrancam novas intensidades de suas derrotas quer estas se devam a impedimentos físicos, no caso de Ricardo III, quer seu motivo esteja em falhas externas produzidas por seus próprios erros ou maldades. Quando Ricardo II, por exemplo, é destronado, revela novos recursos de força numa sensibilidade intensificada e dignificada que investe o irresponsável acovardado de nobreza e novo interesse (GASSNER, 1974, p. 251).
A chave da dramaturgia shakespeariana é seu humanitarismo, cria personagens
infinitamente humanos: “a imagem de toda a humanidade como uma criatura de divina
inteligência atada a uma barriga que deve ser alimentada” (GASSNER, 1974, p. 252). E ainda
mais, Shakespeare não vê a realidade com os mesmo “olhos de pessimismo” de Hobbes e
Maquiavel acerca da natureza humana9. Lembremos que as teorias políticas dos primeiros
séculos da Idade Média se baseiam na concepção pessimista da natureza humana, segundo a
qual o homem está sempre ameaçado pelo pecado, necessitando de constante controle do seu
comportamento para não se perder. Deriva daí a visão negativa do Estado, cuja função é
remediar a natureza humana tão sujeita à corrupção. Segundo Isidoro de Sevilha (século VII),
o temor à violência do Estado é o que impede as pessoas de agir mal e por isso são eleitos
príncipes e reis: para livrar seus súditos do mal, obrigando-os pelas leis a viver corretamente.
Ou seja, o poder temporal não seria necessário se não impusesse pelo terror e pela disciplina o
cumprimento daquilo que os padres não conseguiam fazer prevalecer pela palavra.
Mas os autores da Renascença tratam de secularizar a consciência humana: o processo
pelo qual a maior parte das explicações teóricas se desvincula das teses religiosas. Ou seja, o
homem renascentista confia na razão e na capacidade humana de agir com autonomia, por
isso busca explicações racionais baseadas nas experiências e observações, e não no
testemunho da fé. Então cabe ao político em ato criar um novo equilíbrio de forças a partir da
realidade concreta, agindo para dominar a situação, superando-a ou contribuindo para tal.
Nesse sentido, Shakespeare ao retratar a história dos reis, enfatiza a luta, manutenção e queda
do poder. Podemos notar que “em alguns momentos, os homens encontram-se nas mãos das
paixões e dos desejos dos governantes, em outros na dependência do incontrolável jogo das
forças de poder” (CHAIA, 2007, p. 89). Essa é a verdadeira tragédia da política.
A definição de tragédia como dependente da história de um homem de posição é justamente uma tal alienação: algumas mortes importavam mais do que outras, e a posição social era a verdadeira linha divisória – a morte de um escravo ou servidor não era mais do que incidental e certamente não era trágica. Ironicamente, a nossa
9 Tanto para Maquiavel como para Hobbes, o homem, embora vivendo em sociedade, não possui o instinto natural de sociabilidade. Cada homem sempre encara seu semelhante como um concorrente que precisa ser dominado. Onde não houve o domínio de um homem sobre outro existirá sempre uma competição intensa até que esse domínio seja alcançado.
própria cultura burguesa começou por, aparentemente, rejeitar essa visão: a tragédia de um cidadão poderia ser tão real quanto a tragédia de um príncipe. Freqüentemente, na verdade, essa era menos uma rejeição da verdadeira estrutura de sentimento, e mais uma extensão da categoria trágica a uma nova classe ascendente. E, no entanto, a sua conseqüência final foi profunda. Assim como em outras revoluções burguesas – quando se estenderam as categorias de leis ou eleição – os argumentos para essa expansão limitada tornaram-se inevitavelmente argumentos para uma ampliação geral. A extensão do príncipe ao cidadão tornou-se na prática uma extensão a todos os seres humanos. No entanto, a natureza dessa ampliação determinou em larga escala o seu conteúdo até que se atingiu o ponto em que a experiência trágica foi teoricamente concedida a todos os homens, mas a sua natureza foi drasticamente limitada (WILLIAMS, 2002, p. 74).
Para muitos autores, como para Shakespeare, a fonte principal da Tragédia
Renascentista foi, precisamente, à ênfase na queda de homens famosos. “Os homens são
simples atores ou sombras, que passam pelo palco político, enquanto o poder continua em
cena” (CHAIA, 2007, p. 89). Na tradição exemplar e na ênfase reiterada sobre os assuntos
relativos aos reis, há um novo interesse emergente em relação ao verdadeiro operar da
tragédia moderna: esse interesse se revela, superficialmente, nos efeitos que ela pode causar
diretamente sobre a figura real. “Shakespeare privilegia a abordagem da política enquanto
atividade humana e, assim, preocupa-se com a maneira como os indivíduos são afetados pelo
exercício do poder” (CHAIA, 2007, p. 88).
Shakespeare se situa, como mostra admiravelmente bem Goethe, numa encruzilhada da consciência trágica, no momento do enfraquecimento da tragédia, entre o antigo e o novo, o dever (Sollen) e o querer (Wollen): “Através do dever a tragédia fica grande e forte, através do querer fraca e pequena. Por este último caminho, nasceu o drama, a partir do momento que se substituiu o monstruoso dever por um querer e porque este querer lisonjeia nossa fraqueza, sentimo-nos comovidos, porque, após uma dolorosa espera, somos finalmente mediocremente consolados”. Shakespeare “liga o antigo e o novo de maneira transbordante. O querer e o dever tentam manter-se em equilíbrio em suas peças; ambos se combatem com força, mas sempre de tal modo que o poder seja aí perdedor. Ninguém nunca representou tão magnificamente o primeiro vínculo do querer e do dever no caráter individual. A personagem, considerada do lado de seu caráter, deve: ela é limitada, destinada ao particular; mas enquanto ser humano, ela quer: é ilimitada e reivindica o geral (GOETHE apud PAVIS, 1999, p. 418).
No presente estudo, analisamos a partir desses aspectos mencionados - sobre o
impacto do poder sobre a figura real - a peça Ricardo II (1595). “A pessoa – a personagem
política – é portadora de um elenco de possibilidades e limitações utilizado nos embates do
espaço político” (CHAIA, 2007, p. 76-77).
Intentamos dar um tratamento ao objeto deste estudo – que se pretende abrangente –
propor a discussão a partir do enfoque hermenêutico10.
O objeto desta pesquisa é, portanto, a análise da vida do rei e a obra shakespeariana
Ricardo II. A peça se constitui como parte da segunda tetralogia sobre a história da Inglaterra,
em torno da figura de Ricardo II, Henrique de Bolingbroke (Henrique IV, Partes I e II), a qual
também se inclui Henrique V.
Ricardo II é considerada como a mais formal e cerimonial das peças shakespearianas,
onde os conflitos de natureza política e bélica, que geram a ação - violência, traição e
vinganças - permanecem sempre nos bastidores das evocações; as cenas têm intensa carga
emotiva e a catarse11 é um elemento fundamental na funcionalidade da peça. “Com Ricardo II
se inicia uma outra seqüência de quatro peças, que continua nas duas partes de Henrique IV e
termina com Henrique V” (FRYE, 1999, p.71).
A segunda tetralogia, iniciada apenas quatro anos após a conclusão da primeira, mostra aspectos menos exteriores do poder, e investiga principalmente o modo pelo qual este afeta o monarca que o detém, desenhando – ao contrário do que acontece na primeira – uma curva em ascensão: quando o poder deixa de ser irresponsável e passa a ser dedicado primordialmente ao bem-estar da comunidade, os próprios frutos do bom governo levam ao melhor dos reis (HELIODORA, 1997, p. 62).
É a única peça dos Dramas Históricos em que o soberano não é usurpador (Henrique
IV e Ricardo III) ou herdeiro de um usurpador (Henrique V), consequentemente, teria maior
direito à legitimidade.
Nela, Shakespeare nos apresenta um monarca que se tornou o símbolo da Roda da
Fortuna. É inapto ao exercício político, porém busca legitimar seu poder através da
consagração sacramental, ou melhor, fundamenta seu poder com base na mística doutrina
jurídica dos Dois corpos do rei. Será o realista personagem Bolingbroke (futuro Henrique IV)
que irá demonstrar que o poder resulta na força de decisão, ou seja, qualifica o soberano
10 De acordo com Maximiliano (2005), entende-se que Hermenêutica abranja: interpretação (desvelar, explicar, esclarecer, dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma, tudo o que ela contém) e construção sistematizada de análise. Neste estudo, após a interpretação, (re)constrói-se, então, o pensamento, chegando-se à síntese articulada/ampliada dos resultados encontrados. 11 “Entenda-se uma catarse de espectro amplamente político, social e moral, dentro e fora do teatro, numa esfera de valores que transcende o indivíduo da platéia nos seus contornos psicológicos e o remete para a rua, para a cidade e para o mundo de todas as vivências, as mais simples e as mais complexas, desde o homem anônimo à proeminência dos altos dignitários da nobreza e do clero, à soberania do monarca. Através da criação do pathos, num misto de sentimentos de piedade, indignação e horror, a linguagem do drama age primordialmente como instrumento de provocação, enquanto se afirma como meio tradicional por excelência para obter do público uma resposta social e politicamente comprometida” (VASCONCELOS, 2002, p. 10).
(Ricardo II) como pessoa incapaz de manter-se no poder mesmo com toda a legalidade12
jurídica. Por quê? Falta-lhe a virtù13, ou seja, as qualidades necessárias para o sucesso nos
empreendimentos. “Os príncipes se tornam poderosos, sem dúvida, quando superam os
obstáculos e a oposição que a eles se faz” (MAQUIAVEL, 1999, P. 127).
E Shakespeare é de grande habilidade como autor: ele cria uma figura sensível, requintada, atraente, para Ricardo II, que conclama para este a solidariedade emocional do espectador; mas por outro lado o austero Henrique é, a todos os momentos, o que atua como deve um governante, preocupado com a comunidade como um todo: nós o vemos, de certo modo, ser o instrumento adequado das reivindicações de um número grande e representativo de injustiçados, nobres e povo, enquanto vemos Ricardo abusar, com arbítrios e pesados impostos, do poder que não fez nada para conquistar. Rei aos nove anos, conhecendo privilégios muito antes de sequer saber da existência de responsabilidades, Ricardo é totalmente auto-referente, preocupado com sua importância e com o que acreditava ser sua imunidade aos sofrimentos do comum dos mortais. É precipitado, irrefletido, seu clima emocional instável: tudo sempre lhe parecera fácil porque jamais deixara de ter o que queria; mas quando a nobreza se une contra ele, com o apoio do povo, e as tropas que lhe são leais começam a perder batalhas, cai na mais profunda depressão e se acha injustiçado (HELIODORA, 1997, p. 63).
O soberano para se manter no poder e ser sustentado pelo povo, necessita de ousadia e
cautela, precisa ter conhecimento da realidade que o cerca; tem o dever de conhecer a
natureza dos tempos, a natureza dos homens e se adequar a elas. “Desse modo, o príncipe não
deve ser crédulo nem precipitado, nem atemorizar-se, e sim proceder com equilíbrio,
prudência e humanidade” (MAQUIAVEL, 1999, p. 106).
O político é como o navegante que se lança ao mar sem mapas. Daí deriva o paradoxo da leitura proposta por Maquiavel: enquanto os antigos partiam de um saber extraído da ordem divina ou da própria natureza, descobrimos que o saber da política está enraizado em um não-saber. Isto é, a priori não podemos dizer o que deve ser feito, nem o que é certo ou errado, nem o que é justo ou injusto. No momento da decisão de escolher o menos incerto entre tantas incertezas, cabe ao político compreender a situação em suas inúmeras determinações, e agir (ARANHA, 1993, p. 84-85).
Entretanto, Ricardo II fracassa e perde. Fracassa ao se apoiar unicamente na teoria do
Direito Divino dos Reis (Doutrina jurídica dos Dois Corpos do Rei). E perde ao acreditar
somente na “força” do seu corpo político, sagrado, imortal e perfeito.
12 Derivado do latim, de legalis, exprime basicamente a observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita com o direito estabelecido. Ou em outras palavras traduz a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes. Em suma, a acomodação de poder que se exerce ao direito que regula. A legalidade supõe rigoroso respeito a hierarquia das normas, que vão dos regulamentos, decretos e leis ordinárias até a lei máxima e superior, que é a Constituição (SILVA, 1999, p. 479). 13 Virtù é poder, potência, vigor, ou seja, a qualidade viril do homem. O homem de virtù é aquele capaz de imprimir mudanças no curso da história e realizar grandes obras.
Shakespeare, sob esse aspecto, foi extremamente fiel ao fato histórico, já que Ricardo II foi um dos primeiros monarcas ingleses a elaborar, pelo menos grosso modo, uma teoria de direito divino dos reis; na peça tal atitude fica muito bem colocada porque em várias ocasiões, quando se fala da consequência de seus atos, da revolta que se arma contra ele, Ricardo responde, confiante, que os céus enviarão legiões de anjos para defender seu trono, em virtude de ser ele um rei ungido (HELIODORA, 1997, p. 64).
Chocado com a realidade ultrajante que distorce e corrompe a sua magnificência, vê-
se só e, ao mesmo tempo cercado por bandos de oportunistas, aduladores e nobres famintos
pelo poder. “Jamais poderá fiar-se nos súditos, uma vez que estes, por seu turno, não se
podem fiar nele (...)” (MAQUIAVEL, 1999, p. 122). A partir do momento que não encontra
aliados é obrigado ou forçado a despir de seu manto, cetro e coroa. Com o abandono do seu
corpo divino (identidade real), Ricardo assume a sua segunda identidade: o seu corpo
humano. Percebe então, com grande admiração, que o rei - o soberano, o governante – está
sujeito à imponderabilidade, volatilidade, às fragilidades terrenas e ao sombrio jogo da
política: intrigas, ciladas, tramas, conspirações, traições, ódios e morte. Shakespeare aceita de
Maquiavel o realismo político e a necessidade da compreensão da natureza humana para
melhor entender a política, “expressa em suas obras uma visão exacerbada das tensões e
paradoxos dos homens divididos entre a moral e a política e entre a paixão, a irracionalidade e
a política” (CHAIA, 2007, p. 89).
Mas, afinal, o que significa essa teoria dos Dois Corpos do Rei? Conforme
Kantorowicz (1998, p. 33): “o rei é “nascido gêmeo” não apenas com grandeza, mas também
com a natureza humana e, portanto, “sujeito ao sopro dos estultos”.
Nessa teoria, o Rei possui um corpo natural, como qualquer outro homem, e além
disso, um “corpo místico”, invisível e imortal, incapaz de qualquer imperfeição. Esse último é
o corpo da Nação, “nunca morre”. O outro é o corpo do homem, sujeito às imperfeições,
imbecilidades e enfermidades naturais.
O corpo político ou da nação sugere obediência cega ao soberano. Isso implica na
ideia de que o governante não pode ser julgado por ninguém, a não ser Deus. É a ideia do
sistema cosmológico que amalgáma ao cristianismo medieval as especulações neoplatônicas
redescobertas pelos humanistas, a unidade do plano divino é assegurada por um jogo de
correspondência entre os diversos níveis de conhecimentos, universo espiritual, macrocosmo
do mundo físico; corpo político e social, microcosmo do ser humano.
Para que tal harmonia existisse e se tornasse clara tudo o que existia no universo era cuidadosamente catalogado e mais cuidadosamente ainda inserido no elaboradíssimo encadeamento que eventualmente chegaria do mais ínfimo e primário do seres vivos
até Deus, do mais abjeto pó ao ouro e assim por diante (HELIODORA, 1978, p. 58-59).
Os diversos níveis são organizados segundo uma hierarquia a conduzir objetos
inanimados ao arcanjo mais próximo do trono de Deus: Ele à testa de todo o universo, como o
sol entre as estrelas, o rei no Estado, a alma no corpo, a justiça entre as virtudes, e até o leão
entre os animais, a rosa entre as flores, o ouro entre os metais e as pedras. De acordo com
Heliodora (1978), a engenhosidade do sistema de encadeamento é imensa, pois além de
estabelecer que cada criatura tem seu lugar, dá também a cada criatura a possibilidade de ter
suas próprias virtudes, de modo que dentro de cada categoria uma criatura terá sempre a
primazia.
Se considerarmos adequadamente a estrutura de sua obra, tal verso e o método da oniexcelente sabedoria de sua obra, tal como a criação das formas de coisas infinitamente diversas, estão de acordo com a dignidade da essência e a virtude no efeito, temos de reconhecer que a mesma retém soberania e transcendente predominância tanto quanto o governo e posto sobre ambos. Entre os corpos celestes vemos as órbitas mais nobres e de maior influência serem elevadas mais alto, as menos eficazes rebaixadas. Dos elementos o mais puro e operativo, tem o lugar mais alto. O leão dizemos ser o rei das feras, a águia chefe dos pássaros, a baleia e o golfinho entre os peixes, o carvalho de Júpiter o rei da floresta. Entre as flores admiramos e estimamos a rosa, entre as frutas a romã e a maçã-rainha; entre as pedras damos mais valor ao diamante, entre os metais o ouro e a prata. E já sabemos, sucessivamente, transferir sua excelência e virtudes inferiores para suas espécies, não reconheceremos no homem uma nobreza de maior perfeição, de forma mais nobre, o príncipe delas todas? (TILLLYARD, 1958, p. 27).
Shakespeare conhecia bem e intimamente o conceito de ordem, da gradação que
dominava o pensamento Tudor de um modo geral. O homem era parte da ordem divinamente
constituída e qualquer tipo de desobediência à ordem universal (da qual a ordem do Estado, se
bem que civil, é parte integrante), teria necessariamente de ser encarada como pecaminosa,
como desrespeito à lei de Deus. Nesse conceito de ordem universal, a ameaça de desordem e
suas conseqüências, sempre foi a ideia central das homílias Tudor, aí residia tudo que os
Tudors precisavam, tanto a ratificação divina da hierarquia quanto a ameaça da cólera divina
ante qualquer perturbação da ordem.
Conforme Heliodora (1978), a partir do governo Henrique VIII, há uma clara
preocupação com definições religiosas normativas e para atender às deficiências do clero é
que apareceram as homílias Tudor, o que fica bem claro pela resolução tomada na
Convocação do Clero de 154214, onde fica dito que elas teriam como objetivo obstar aqueles
erros que eram então, por pregadores ignorantes, espalhados entre o povo.
As homílias passariam a ser obrigatoriamente lidas nas igrejas, aos domingos, em lugar dos sermões normalmente preparados por sacerdotes locais. Na verdade, a partir da publicação da primeira coletânea de homílias, ficavam os sacerdotes proibidos de pregar sermões de sua própria autoria a não ser com dispensa especial concedida pela alta hierarquia da igreja, inteiramente identificada com os interesses da Coroa e do rei (HELIODORA, 1978, p. 63).
Ainda, segundo Heliodora (1978), o First Book of Homilies continha uma série de
doze homílias, e havia sido elaborado sob a orientação de Thomas Cramner15, arcebispo de
Cantebury, que foi pessoalmente responsável pela redação de quatro delas.
De modo geral, o primeiro volume cumpre exemplarmente seus objetivos de clareza, objetividade e fácil comunicação, já que evitava as complexidades das discussões do dogma para concentrar-se com estilo forte e incisivo nos aspectos mais práticos da doutrinação conformista. Da primeira série, sem dúvida a mais famosa é a décima homília, Uma exortação concernente à boa ordem e obediência a Governantes e Magistrados, em três partes a serem lidas em três domingos consecutivos. Essa homília expõe de modo conciso e perfeitamente acessível conceitos político-religiosos da maior significação para a ortodoxia Tudor tais como o direito divino dos reis, a doutrina de não resistência, o princípio da obediência passiva e a natureza pecaminosa da rebelião (HELIODORA, 1978, p. 63).
Não parece haver dúvidas quanto à eficácia das homílias, ou quanto à satisfação dos
governantes protestantes. Haja vista que o livro foi suprimido pela católica Maria Tudor assim
que ela subiu ao trono.
No final da década de 1560, Elisabeth e seu governo tiveram inúmeras razões para
sentir-se particularmente inseguros, sendo as principais dela a chegada de Mary Stuart à
Inglaterra, a rebelião do Norte e, finalmente a Bula de Excomunhão que desobrigava seus
súditos católicos de seus votos de lealdade e obediência, instigando-os, ao contrário, a
trabalhar pela deposição ou morte da rainha.
Segundo Heliodora (1978), o resultado foi a monumental homília de 1571, em seis
partes, On disobedience and sinful rebellion.
14 Os frutos da Convocação do Clero de 1542 só foram finalmente colhidos quando, após cuidadosa elaboração por um grupo de sacerdotes anglicanos da mais total confiança do rei, foi publicado em 1547 – e portanto já no reino de Eduardo VI. 15 Cramner já havia sido o responsável pelo chamado King´s Book, de 1543 (uma primeira definição do dogma da igreja henriquina) e seria, mais tarde, autor da incomparável prosa dos livros de orações de 1549 e 1552, ainda em uso na Igreja Anglicana.
As seis partes deviam ser lidas em seis domingos consecutivos e cada uma delas era acompanhada de uma oração a ser dita por todos os fiéis, seguida de uma Ação de Graça pela Supressão da última rebelião. Em 1573 a homília estava publicada e provavelmente foi lida pela primeira vez em Stratford quando William Shakespeare contava dez anos de idade. Seu estilo despojado, sua linguagem simples, sua objetividade, suas referências ao recente levante tornariam muito difícil o seu esquecimento. Principalmente porque sua leitura passou a ser periódica, ao ser incorporada às edições subsequentes da segunda coletânea (HELIODORA, 1978, p. 65-66).
Esse enfoque político do ensinamento religioso ministrado na Igreja Anglicana parece
ter marcado permanente aquela mente excepcionalmente dotada e capaz, portanto, “de
transmutar os ensinamentos recebidos em formas imaginativas e poéticas e, acima de tudo
dramáticas” (HELIODORA, 1978, p. 67). Na peça Ricardo II, a natureza conflitiva das lições
sobre ordem e desordem, obediência e rebelião, bem e mal, subordinação e ambição
prestavam-se precipuamente à forma dramática e essa ideologia política-religiosa dos Tudors,
possibilita a Shakespeare dar sua própria visão do homem, Estado e, inevitavelmente, da
teoria do direito divino dos reis nessa época de transição para os tempos modernos.
Segundo Barbosa (2007), a doutrina do direito divino dos reis foi criticada em seu
próprio tempo e bastante ridicularizada por pensadores liberais dos séculos XVIII e XIX. Isto
fez com que muitos historiadores e cientistas políticos a desprezasse como objeto de estudo.
No entanto, é preciso levar em consideração que esta doutrina, no século XVII, foi defendida
com extremo vigor teórico e ardor apaixonado, em termos de crença política e religiosa, por
sua heterogeneidade.
Em meados do século XVII, alcançou elevada importância e o seu valor teórico-
doutrinal foi reconhecido nas principais cortes europeias. Foi aceita pela sociedade política,
dos reis aos súditos, como um elemento “natural” na esfera da vida pública e até privada. De
qualquer modo, a doutrina do direito divino dos reis, tal como se apresentou no século XVII,
foi “essencialmente uma teoria popular, proclamada desde o púlpito, apregoada em praça
pública e defendida no campo de batalha” (FIGGIS, 1942, p. 13-14).
Ainda segundo Barbosa (2007), tanto a sua idealização como a sua ferrenha defesa
foram resultados das circunstâncias históricas num período de afirmação do poder real. A
doutrina origina-se no século XIV, como resultado da negação dos escritores imperialistas às
pretensões do papado ao poder universal. Esta doutrina possibilitou a consolidação da
monarquia absolutista, pois tornou possível a sua independência e superioridade em relação
ao poder eclesiástico.
A doutrina dos Dois Corpos do Rei ou a teoria do direito divino dos reis posiciona
teologia e política, num período, no qual se almejava encontrar um fundamento religioso
sustentável. Assim corrobora o pastor anglicano e historiador inglês John Neville Figgis:
“todo o mundo exigia alguma forma de autoridade divina para qualquer teoria de governo”
(FIGGIS, 1942, p. 20-21).
Outra referência histórica na concepção da doutrina do direito divino dos reis é o
cardeal Jacques Bossuet (1627-1704). Ele trata no terceiro livro da Politique sobre as quatro
características da autoridade da realeza. Primeiro, ele afirma que a autoridade real é sagrada: o
poder dos reis vem de Deus, que os estabelece como seus ministros na Terra; segundo, o trono
real é o trono de Deus; sendo assim, o rei está sentado sobre o trono de Deus; terceiro, os reis
são a imagem de Deus na Terra; desta forma, a pessoa do rei é sagrada e atentar contra ele é
um sacrilégio. Bossuet recorre aos apóstolos São Paulo e São Pedro para evidenciar que os
súditos devem obedecer ao príncipe como obedecem a Deus. Neste sentido, segundo Bossuet,
o apóstolo São Paulo preconiza para que os servos obedeçam aos mestres temporais – reis -
como obedecem a Deus. E por fim, Bossuet ressalta que a autoridade real é absoluta: isto
significa que o poder do príncipe é indivisível e que ele não deve prestar contas a ninguém de
suas decisões.
Para a divinização de Luís XIV, Bossuet instruiu o Delfim nas suas prerrogativas e
deveres futuros, ajudou a fortalecer o absolutismo, tal como era praticado pelo rei francês. Ao
afirmar que os reis eram ministros de Deus na Terra, eram feitos segundo o modelo dos pais, e
que sua autoridade era absoluta, subentendia, portanto, que os súditos deviam obedecer-lhes
como a um pai, sem contestação, e que a falta de autoridade no reino levaria à anarquia.
Ao admitir a mortalidade corpórea do homem ungido a rei, entretanto, salientava que o
rei não perecia, pois ele sendo a imagem de Deus, seguramente ele também é imortal.
Esta ideia originária na Idade Média foi largamente defendida pelos juristas do século
XVI, na Inglaterra elisabetana (1558-1603). Adaptar e transferir conceitos, da esfera religiosa
para o campo da política e do direito, constituía-se em árdua tarefa para esses juristas. Dizia-
se que esses juristas em discussões simples aparentavam ser teólogos quando um assunto
envolvia a pessoa do rei:
O Rei tem em si dois Corpos, a saber, um Corpo natural e um Corpo político. Seu Corpo natural (se considerado em si mesmo) é um Corpo mortal, sujeito a todas as enfermidades que ocorrem por Natureza ou Acidente, à Imbecilidade da Infância ou da Velhice e a Defeitos similares que ocorrem aos Corpos Naturais das outras Pessoas. Mas seu Corpo político é um Corpo que não pode ser visto ou tocado, composto de Política e Governo, e constituído para a Condução do Povo e a Administração do bem-estar público, e esse corpo é extremamente vazio de Infância e Velhice e de outros Defeitos e Imbecilidades naturais, a que o Corpo Natural está sujeito, e, devido a esta causa, o que o Rei faz em seu Corpo político não pode ser invalidado ou frustrado por qualquer Incapacidade em seu Corpo natural (KANTOROWICZ, 1998, p. 21).
Para os juristas ingleses, apesar da unidade entre os dois corpos, havia a possibilidade
de separação no caso da morte do rei. Na concepção desses, o corpo natural do monarca é
composto por membros naturais como dos outros homens, sendo assim, ele está sujeito às
paixões e morte como os demais. Já o seu corpo político é uma corporação constituída por ele
e os seus súditos, em que ele é a cabeça e os súditos são os membros; mas ao contrário do
corpo natural, este corpo político não está sujeito nem às paixões nem à morte. O corpo
político do rei nunca morre. A morte do corpo natural do rei não significa a morte de seu
corpo político. Neste sentido, os dois corpos são separados. O corpo político é imediatamente
transmitido do corpo natural morto para outro corpo natural vivo.
De fato, conforme assinala Barbosa (2007), na concepção dos cristãos “o príncipe
nunca morre”. Quando da sagração de um rei, a população gritava em alta voz: “Vivat rex!
Ou Vivat rex inaeternum!”. No enterro de um rei, lançava-se o seu caixão no fosso fúnebre
gritando “O rei está morto, viva o rei!”. Houx (1997) nos revela que somente no século XVI é
que esta célebre frase foi dita pela primeira vez.
E essa temática será abordada por Shakespeare. Ele revela na peça Ricardo II o
aspecto humanamente trágico dessa “geminação” real. Embora a doutrina pertencesse ao
escopo jurídico, não há como separar a elaboração dramática que Shakespeare concebe em
Ricardo II dos famosos relatórios de Edmund Plowden16.
Na peça anônima Thomas Woodstock, na qual Shakespeare pode até mesmo ter
atuado, termina no trocadilho: “pois eu tenho pelejado em Plowden e não consigo achar
nenhuma lei” (for I have plodded in Plowden, and can find no law).
Além disso, teria sido muito estranho se Shakespeare que dominava o jargão de quase todo o ofício humano, ignorasse a fala constitucional e judicial que o circundava e que os juristas de seu tempo empregavam de modo tão prolífico no tribunal. A familiaridade de Shakespeare com casos legais de interesse geral não pode ser posta em dúvida, e dispomos de outra evidência de sua associação com os estudantes das escolas de direito e de seu conhecimento dos procedimentos judiciais. Segundo opinião geral, pouca diferença faria saber se as sutilezas do discurso jurídico eram ou não familiares a Shakespeare. A concepção do poeta sobre a natureza gêmea do rei não depende amparo constitucional, uma vez que tal concepção brotaria muito naturalmente de um estrato puramente humano. Pode parecer fútil, portanto, a mera colocação da questão sobre se Shakespeare empregava algum jargão profissional dos juristas de seu tempo, ou determinar a matriz da cunhagem de Shakespeare. Tudo isso parece muito trivial e irrelevante, uma vez que a imagem da natureza geminada do rei, ou mesmo do homem em geral, era uma das concepções mais genuinamente shakespearianas. Apesar disso, se o poeta tivesse casualmente deparado com as definições jurídicas da realeza, o que provavelmente teria acontecido ao conversar com amigos nas escolas de direito, é fácil imaginar o
16 Edmund Plowden, distinto advogado inglês, estudioso, um dos principais juristas durante o período do governo de Elizabeth (1558-1603).
quanto lhe teria parecido pertinente o símile dos Dois Corpos do Rei (KANTOROWICZ, 1998, p. 34).
Defendemos que a peça rei Ricardo II é uma peça símbolo, a própria substância e
essência do conceito jurídico dos Dois Corpos do Rei; desse modo, não podemos separar essa
doutrina jurídica da obra de Shakespeare. Ricardo II deve ser lida como uma obra política, na
qual a ideia de Shakespeare acerca da teoria do direito divino dos reis é explicitada. “Pois, se
essa imagem curiosa, que se esvaneceu completamente do pensamento constitucional, ainda
possui hoje um significado muito concreto e humano, isso, em grande parte, deve-se a
Shakespeare” (KANTOROWICZ, 1998, p. 34). Essa peça constitui-se como parte da História
das ideias políticas deliberadamente com um caráter singular por ser uma obra artística que
nos proporciona elementos para uma reflexão trágica da ascensão e queda da figura real.
Naturalmente, aos olhos da ciência política contemporânea, essa teoria parece risível, porém,
é preciso reconhecer que nem sempre foi assim; e se hoje essa doutrina está superada ou
esquecida, isso não nega sua força e importância na construção da história das ideias políticas.
Na transição do século XVI para o século XVII, um dos grandes problemas
enfrentados pelos pensadores políticos desse período foi a legitimação do poder político
instituído. A Europa moderna atravessava várias guerras provocadas pela disputa de poder,
tanto externas quanto internas. Essas disputas fomentaram o desenvolvimento de uma série de
teorias políticas voltadas para o problema da legitimação do poder e a consolidação da paz.
Enquanto teóricos como Thomas Hobbes optavam por defender um poder centralizado capaz
de pôr fim pela força aos sucessivos conflitos, John Locke propunha um modelo de poder
político descentralizado, com limites de atuação e baseado na participação popular17,
protegendo assim o cidadão contra os abusos do Estado.
Na Inglaterra, a conjuntura era tensa; o país se debatia em conflitos sociais, políticos e
religiosos e os juristas mantinham a teoria do direito divino dos reis representado na figura da
Rainha Virgem para justificar a obediência e submissão entre os homens. No século XVII, no
confronto entre o rei e Parlamento, as teorias de base teológica que conferiram amplos
poderes aos governantes já não conseguiam se sustentar. Conforme Franks (2007), as teorias
de cunho basicamente histórico e religioso em que se apoiava a monarquia começam a sofrer
pesadas críticas e surgem os primeiros sistemas que tentam dessacralizar ou laicizar o poder
com a ideia de um contrato social. O mais curioso é que essas novas teorias que incendiaram
as crises políticas e revolucionaram a sociedade inglesa nesse período, paradoxalmente,
17 Um governo que expresse os interesses dos camponeses, artesãos, comerciantes.
acabaram por fazer da Inglaterra o bastião da monarquia nos dias atuais, haja vista que foi
conservada justamente por abrir mão do poder político, como queriam os revolucionários.
Shakespeare, apesar de não ter frequentado a Universidade18, explicitou de modo
coerente, lógico e prático a ideia dos Dois corpos do Rei na peça Ricardo II. Ele aborda na
peça, entre outros temas, a questão da obediência política e também da origem do poder dos
reis. É notório salientar que essa dupla temática citada e abordada por Shakespeare, depois da
primeira revolução de 1640 e do Protetorado de Cromwell, será polemizada principalmente de
um lado, por sir Robert Filmer (1588-1652) que defendia o poder absoluto dos reis e, de outro
lado, Tyrrell, Sidney e Locke.
Para muitos autores, é natural também afirmar que Shakespeare estivesse preocupado
em demonstrar que podia ser tão erudito quanto seus colegas – Christopher Marlowe, Robert
Greene, Thomas Nashe, George Peele, Thomas Lodge, John Lily - que haviam frequentado
Oxford ou Cambridge, que se auto-intitulavam os “sabidos da Universidade” (University
Wits) e que tratavam com frieza o “rude” recém chegado de Stratford, que tinha ideias, desejo
e fantasias acima de sua situação social.
É inegável que os “sabidos da Universidade” produziam peças de boa bilheteria,
competiam para ver quem menosprezavam mais, zombando de outros colegas, orgulhavam-se
de sua poesia rebuscada e erudita e dos panfletos polêmicos, dedicando-se a escrever peças
com uma forma nova e fácil de ganhar dinheiro.
Contrariamente a eles, apesar da não formação universitária, a figura de Shakespeare
se destaca, inconfundivelmente. Ele era uma pessoa de sensibilidade intelectual e somado a
uma pesquisa séria de fontes históricas construiu um dos seus grandes Dramas Históricos: a
peça Ricardo II. Até mesmo a sua formação escolar predominantemente humanista19 em
Stratford o ajudava na narrativa da luta entre Bolingbroke e Ricardo II.
A tragédia do rei Ricardo II foi sempre considerada como uma peça política. A cena da deposição, embora encenada dezenas de vezes após a primeira apresentação em 1595, não foi impressa, ou não teve permissão para tal, senão depois da morte da rainha Elizabeth. Em geral, as peças históricas atraíam o povo inglês, especialmente nos anos seguintes à destruição da Armada espanhola; mas Ricardo II atraiu mais que o interesse habitual. Para não falar em outras causas, para os contemporâneos de Shakespeare, o conflito entre Elizabeth e Essex apresentava-se à luz do conflito
18 De acordo com Heliodora (1978), o estudo universitário teria diversificado seus interesses, ampliado seus horizontes, antes da realização de suas primeiras expressões dramáticas, levando-o sem dúvida (como aconteceu a Marlowe e a tantos outros) para mais longe da conceituação um tanto singela dos ensinamentos das homílias, que tão grande influência tiveram na definição, nesse primeiro estágio, da juventude do autor, de uma visão – estreita, sem dúvida – porém altamente representativa do mundo em que ele viveu. 19 O forte da educação humanista era o velho método herdado da Idade Média do trivium (gramática latina, lógica, retórica) e do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). A leitura intensa e frequente de autores latinos explica sem dúvida a considerável latinização do vocabulário shakespeariano.
entre Ricardo e Bolingbroke. É sabido que, em 1601, às vésperas de sua fracassada rebelião contra a rainha, o conde de Essex encomendou uma apresentação especial do Ricardo II no Globe Theatre para seus apoiadores e o povo de Londres. No curso do processo do Estado contra Essex, essa apresentação motivou considerável discussão por parte dos juízes da corte – entre eles, os dois maiores advogados da época, Coke e Bacon – que não podiam deixar de reconhecer as alusões ao presente, intencionadas na apresentação da peça. Sabe-se também que Elizabeth encarava essa tragédia com muita desconfiança. Na época de execução de Essex, ela lamentava que “esta tragédia foi apresentada quarenta vezes em casas e nas ruas”, e levava sua auto-identificação com o personagem-título até o ponto de exclamar: “Eu sou Ricardo II, vocês não sabem? (KANTOROWICZ, 1998, p. 47).
Vale enfatizar que a peça Ricardo II foi proibida durante o reinado de Carlos II, na
década de 1680. “Talvez a peça explicitasse demais os últimos acontecimentos da história
revolucionária da Inglaterra” (KANTOROWICZ, 1998, p. 47). Durante o período da
Restauração20, a tragédia foi proibida, pois estava centrada não só no conceito de um rei
mártir semelhante a Cristo, mas, também, “na ideia muito incômoda de uma separação radical
dos Dois Corpos do Rei” (KANTOROWICZ, 1998, p. 47).
Não teria sido surpresa nenhuma se o próprio Carlos I concebesse seu trágico destino nos termos do Ricardo II de Shakespeare e do ser geminado do rei. Em alguns exemplares da Eikon Basilike, está impresso um lamento, um poema longo, alhures intitulado Majesty in Misery (“Majestade em desgraça”), atribuída a Carlos I e onde o desafortunado rei, se foi ele realmente o poeta, aludia obviamente aos Dois Corpos do Rei: com meu próprio poder ferem minha majestade, em nome do Rei, o próprio rei destronado. Assim a poeira destrói o diamante (KANTOROWICZ, 1998, p. 47).
Ricardo II é o drama histórico da consabida versão shakespeariana da existência como
um breve bruxulear de vela. É o microcosmo do universo dramático, uma agitação
desenfreada com ruídos intensos e assustadores. Ricardo II caminha como o ator no palco
entre o abismo e a salvação e, a cada cena esse alterar dos ânimos, o som consternado de um
pobre e tolo personagem que se articula numa tentativa alucinada de manter-se no poder.
Todo o esforço é em vão.
Em Shakespeare, retoma-se a visão trágica da realidade e da política. O bardo inglês
expressou, de forma inigualável, sua visão da capacidade humana de enfrentar as forças do
destino em situações extremas, embora se afastasse dos parâmetros clássicos21. Nesse sentido,
o impasse é parte constitutiva da tragédia. Superar a adversidade é um ponto principal da ação
trágica.
20 A volta de Carlos II, deposição da dinastia Cromwell e a restauração dos Stuarts no poder político na Inglaterra. 21 Tragédia é o gênero teatral em que se expressa o conflito entre a vontade humana, por um lado, e os desígnios inelutáveis do destino, por outro. A rigor, o termo só se aplica à tragédia grega ou clássica, cuja origem se confunde com o próprio teatro, mas por analogia é tradicionalmente estendido à literatura dramática de várias épocas, em que conflitos semelhantes são tratados.
A crença de Shakespeare na capacidade da raça humana em progredir deve ter sido forte; na mesma medida em que reconhecia seus fracassos e as barreiras que estes constituíam contra a melhoria da condição humana, o custo terrível de qualquer movimento na direção de um futuro mais brilhante (KIERNAN,1999, p. 353).
Nessa peça extraordinária, Shakespeare se preocupa, fundamentalmente, com a criação
de um quadro sociopolítico de acordo com a trajetória do protagonista: inicialmente como rei
de jure, e, posteriormente, como rei deposto. Nessa perspectiva, o sofrimento é condição
indispensável da tragédia na política.
Tragédia, nós dizemos, não é meramente morte e sofrimento e com certeza não é acidente. Tampouco, de modo simples, qualquer reação à morte ou ao sofrimento. Ela é, antes, um tipo específico de acontecimento e de reação que são genuinamente trágicos e que a longa tradição incorpora. Confundir essa tradição com outras formas de acontecimento e de reação é simplesmente uma demonstração de ignorância (WILLIAMS, 2002, p. 30-31).
O sofrimento é uma parte fundadora desta ordem natural e, portanto, ele se mostra
como energia permanente e independente das contingências históricas e das novas
formulações que se possam atribuir ao trágico. O sofrimento é, portanto, parte indispensável
da condição humana.
O que parece estar em jogo mais exatamente é um tipo específico de morte e de sofrimento e uma específica interpretação dessas duas questões. Alguns acontecimentos e reações são trágicos, outros não. Por mera influência daquilo que foi sancionando e por causa da nossa avidez natural em aprender, é possível dizer e repetir essa frase, sem que uma contestação real seja feita (WILLIAMS, 2002, p.31).
Shakespeare concedeu às suas personagens a liberdade de viverem uma vida própria
levada até aos extremos limites do bem e do mal. A arte trágica de Shakespeare capta uma
variedade quase infinita de estados de alma, as suas peças foram escritas para o teatro
contemporâneo, aproveitando as possibilidades do palco elisabetano com enorme engenho e
invenção.
A leitura de Ricardo II por Shakespeare concebe idéias trágicas diferenciadas da
tragédia grega; Shakespeare realiza um novo tipo de tragédia, que envolve indivíduos, um
teatro de indivíduos. Ou seja, seres capazes de fazerem escolhas e reverter sem nenhum
impedimento divino suas ações. Shakespeare viveu num período histórico de transição, o qual
o mundo se dessacraliza. Ele, dessa maneira, influenciado pela época em que viveu produz
peças fortemente marcadas por questões complexas que envolvem tal período histórico.
O acontecimento da tragédia na política não é somente perturbador, é o ponto limite
onde se institui e onde se desfaz o sentido; é, antes, a indeterminação dos fatos que desafia a
astúcia do político. Ou seja, é o reconhecimento que em cada situação há a necessidade de
certo tipo de ação política diferente da que é solicitada em outras condições. A política
exigida é aquela voltada para a sociedade, que abriga os contrários, se enraíza no tempo, se
obriga a contornar o abismo sobre o qual repousa a sociedade, e a encarar o liame que
constitui para ela os inconciliáveis desejos humanos. Conforme Chaia (2007) é o que
Shakespeare percebe da política, como um verdadeiro jogo de forças, resultantes dos
inconciliáveis desejos humanos; e ela se faz a partir da conciliação de interesses divergentes.
Assim, o conflito é inerente à atividade social humana, o que supõe a moderna concepção de
ordem, não mais hierárquica, mas que resulta do confronto; ousa reconhecer as paixões não
como perturbações a serem evitadas, pois elas sempre estarão presentes, mas que convém não
desprezar.
Para fundamentar o estudo utilizamos o método bibliográfico, a estrutura da pesquisa
está dividida em quatro capítulos. Sendo assim, abordaremos os seguintes temas nos seguintes
capítulos:
Primeiro capítulo, revelar as crises políticas, conflitos religiosos, tensões, escolhas e
ações acertadas e, evidentemente, enfocar a manutenção e o exercício do poder político pela
rainha Elizabeth I (1558-1603), utilizando-se de livros que tratam da História inglesa. Para tal
consultamos T. Allan, História em revista (1996); W. Churchill, História dos povos de
Língua Inglesa (1960); A. Maurois, História da Inglaterra (1965); V. Valentin, História
Universal (1965); E. Woadward, Uma história da Inglaterra (1964) e de filosofia política
de N. Maquiavel, O Príncipe (1999);
Segundo capítulo, a contextualização histórica do tempo de Shakespeare, dando
destaque ao Renascimento europeu, em especial, ao inglês, em virtude que nosso interesse
neste capítulo é identificar às inúmeras e complexas questões políticas, econômicas, culturais
e religiosas que resultaram na criação das condições dominantes para o surgimento do poeta,
dramaturgo e escritor William Shakespeare. Neste capítulo trata também acerca da biografia
de Shakespeare, além de seus dramas históricos, realizamos uma pesquisa teórica de livros de
inúmeros especialistas a respeito da vida Shakespeare e do movimento renascentista. Não
podemos esquecer que o autor está mergulhado em seu tempo histórico e sem um
conhecimento mais amplo do próprio mundo e período histórico em que Shakespeare viveu,
não seria possível chegar-se a uma compreensão melhor do sentido político do que
Shakespeare escreveu em suas peças históricas inglesas, em especial Ricardo II;
Terceiro capítulo, apresentar o conturbado cenário político-histórico sob o reinado de
Ricardo II (1367-1400), principalmente a partir da obra do estadista e historiador inglês
Winston Churchill - indicando que Shakespeare ao escrever os Dramas Históricos, produz
peças com fortes implicações políticas devido, em grande parte, ao sentimento de patriotismo
reinante na Inglaterra graças à vitória sobre a Invencível Armada de Filipe II, rei da Espanha.
A dramaturgia histórica na década de 1590, estimulada pelo ataque espanhol e pelo alvoroço
nacional, deu nova vitalidade ao teatro e elevou sua envergadura e prestígio. Formava-se, no
palco, uma imagem de “caráter nacional”. No final dos anos 80, e durante toda a década de
1590, intensificaram-se a produção de crônicas sobre o passado na Inglaterra, sobretudo
voltando-se aos reinados anteriores à dinastia Tudor. Nessa análise externa buscou-se
compreender as circunstâncias históricas que envolveram o personagem histórico Ricardo II;
com o objetivo de entender as disputas, conflitos, tensões que o envolvem. Dessa forma,
traçamos um breve panorama histórico de como foi a vida e a atuação política do último rei
Plantageneta. A análise externa e a análise interna - tratada no quarto capítulo - possuem cada
qual sua especificidade, mas também, estando interrelacionadas, esclarecem uma à outra. Na
obra encontram-se os elementos sociais da época e, por sua vez, as condições históricas
melhor elucidam o sentido do texto de Shakespeare.;
Quarto capítulo, a análise interna da peça Ricardo II, escrita por William Shakespeare
se esforça por sistematizar de modo claro a doutrina jurídica dos Dois Corpos do rei. Ela
marca o desenvolvimento do pensamento político, da Idade Antiga a Idade Moderna.
Agrupada em cinco atos, a maioria das cenas cujas tramas, tensões, conflitos de natureza
política e bélica, traição, vingança e a célebre deposição do rei são significativos e nos
auxiliam a compreensão de como um autor renascentista, humanista e realista empregava e
entendia esse complexo jargão pertencente à área jurídico-teológica numa era de transição
para os tempos modernos.
A contribuição que pretendemos trazer com este trabalho será a de considerar a peça
Ricardo II como obra política, em que as situações dramáticas da peça envolvem inúmeros
temas, tais como a teoria do direito divino dos reis, a doutrina de não resistência, o princípio
da obediência passiva, a natureza pecaminosa da rebelião, além da visão moderna de
exigência do poder terreno dos reis, o domínio da virtù e da fortuna. Essa peça, portanto, é
marcada pela vitalidade trágica e teatral de William Shakespeare que encara esse problema da
justificativa ideológica do poder dos reis como um fundamento de base teológica que já não
conseguia se sustentar como pilar único de legitimidade nos tempos modernos.
O absolutismo monárquico que compõe o período de transição para os tempos
modernos teve o seu brilhantismo produzido pelo verniz teórico dos humanistas da
Renascença, os quais, afastando os fundamentos teológicos do Estado, passaram a encarar a
política, por um novo prisma, exageradamente realista. E essa é a visão de Shakespeare ao
expor ao longo da sucessão dos atos e cenas, a concepção dos Dois Corpos do rei – o divino e
o terreno – e como nessa tragédia, a face humana do rei prevalece sobre a divina, exatamente,
porque a mortalidade se sobressai em relação à sua imortalidade real. A caracterização do rei
e a forma como é construída e encadeada todo o contexto dramático é fruto da expressão de
uma posição pessoal do autor, de pesquisa em fontes históricas e, principalmente, da
observação de seu próprio tempo histórico. Essa peça revela o entendimento de Shakespeare
acerca dessa teoria medieval e conflita com o pensamento moderno de que é necessário para o
rei ter também o poder temporal e zelar pela sua própria defesa. É uma leitura similar a de
Maquiavel: isso está ligado ao cuidado maior do Príncipe na busca de manutenção de seu
Estado.
Antes de Maquiavel, tinha-se uma concepção de política diretamente ligada à religião, à filosofia e à ética. Com o Renascimento, e a partir desse autor, a política passa a ser compreendida de uma forma humana, concordando com o abandono do teocentrismo que marca a época. Maquiavel será o primeiro a teorizar a política estudando seus mecanismos próprios, racionais, lógicos, passíveis de explicações fundamentadas na História. O poder passa a ser objeto central da política. Em O Príncipe os ensinamentos oferecidos por Maquiavel visam, em última instância, a conquista e manutenção do poder do Estado (ARAUJO, 2007, p. 125-126).
Ricardo II é uma obra que permite “apanhar a dimensão política expressa na produção
shakespeariana, valorizando não apenas as suas características internas, mas também algumas
formulações de Maquiavel” (CHAIA, 2007, p. 77). Tanto Shakespeare como Maquiavel, a
figura mais relevante é a do homem-príncipe, o sentido de sua ação e a tensão provocada por
ele é o que mais importa. Segundo Chaia (2007, p. 77), ao lado de Maquiavel, Shakespeare
cria um espaço de encontro entre política e vida, cujo pano de fundo é a presença constante da
tragédia. Uma visão de Shakespeare, clarificada pela leitura de Maquiavel, une arte e política,
homem e poder, assim como caos e controle, vida e morte.
As categorias analíticas são centrais neste capítulo para abordar o desenrolar das ações
do rei Ricardo II. A análise interna da peça Ricardo II realiza-se sob os parâmetros dados
pelas estruturas dramáticas: situações/cenas, personagens, diálogos e solilóquios, com
objetivo de apanhar as relações de poder e os jogos de forças políticas que se manifestam
através da conspiração, a resistência por meio da manifestação da doutrina dos dois corpos do
rei e a usurpação que ocorrem na peça. A prática política fornece as três categorias
necessárias para articular a análise interna e, também, para pontuar os três momentos
recortados para efeitos de estudos: conspiração, resistência e queda do poder.
Sinopse da peça
A peça inicia-se com um duelo público entre Bolingbroke e Mowbray envolvendo o
assassinato de Tomás de Woodstock, duque de Gloucester.
O rei Ricardo II interrompe o duelo e bane os dois: Mowbray para sempre e
Bolingbroke por dez anos, posteriormente reduzido a seis.
Após o banimento de Bolingbroke, o rei necessita de posses para fazer guerra na
Irlanda. João de Gaunt, pai de Bolingbroke, morre.
Após a morte de Gaunt, Ricardo, com toda tranqüilidade, confisca-lhe “prataria, dinheiro e terras”. Se você se apoderar de propriedade de uma casa nobre que é poderosa o suficiente para revidar, você se meteu em sérios problemas. O duque de York tenta explicar a Ricardo que a sua própria posição como rei depende da sucessão hereditária e que o mesmo princípio se aplica ao direito de o nobre herdar a propriedade do pai. Quando Ricardo toma a propriedade de João de Gaunt, está fazendo algo que levará toda família nobre a pensar: “Quem será o próximo?” Então, o filho de João, Henrique Bolingbroke, consegue um grande apoio quando desafia o edito de banimento e volta para exigir o que é dele. Não sabemos muito do que se passa na cabeça de Bolingbroke em nenhum momento. Isso acontece em grande parte porque ele não se conscientiza das implicações do que está fazendo. Quando ele diz, inicialmente, que só quer seus direitos, é possível que seja isso mesmo. Mas esse é o momento em que a espetacular incompetência de Ricardo como administrador começa a produzir efeitos. No estado de desmoralizado da nação, um poder de facto começa a se formar em torno de Bolingbroke, e este simplesmente se deixa levar: nem um joguete das circunstâncias nem um usurpador deliberadamente inescrupuloso (FRYE, 1999, p. 79).
Sem demora, Bolingbroke desembarca com exército na Inglaterra, sendo recebido pela
maioria dos nobres. Ele insiste que apenas reivindica a sua herança, para se tornar Duque de
Lancaster, como foi o pai, João de Gaunt. “Mas todos sabem que o futuro Henrique IV veio
em busca da Coroa, e Shakespeare explora essa hipocrisia com extrema habilidade, até o
momento da abdicação forçada” (BLOOM, 1998, p. 325). Bolingbroke executa, afasta e atrai
todos os aliados de Ricardo e toma cuidado de enviar mensagens de afeto à Rainha, o que
significa que ela está, praticamente, aprisionada.
O resto da peça é o desenvolvimento desse dilema entre o que é de jure e de facto. Alguns, como o duque de York, passam para o lado de Henrique e transferem a ele a lealdade que deviam àquele que fora ungido por Deus. Assim, quando Aurmele, o filho de York, conspira a favor de Ricardo, o pai o acusa de traição e de sacrilégio, da mesma forma que – antes de mudar de lado – acusara Bolingbroke. Na cena em que York insiste em que o rei deve levar o seu filho a julgamento por traição e em que a duquesa implora perdão, Bolingbroke tem a melhor atuação, pois percebe a importância do que está acontecendo. Ele fez a transição: de um rei de facto tornou-se rei de jure. Depois disso tudo, tudo o que tem de fazer é se livrar de Ricardo (FRYE, 1999, p. 79).
Bolingbroke torna-se o rei Henrique IV. Ele sugere a morte de Ricardo, que estava
preso e seria bastante conveniente a ele. Então, seu seguidor Exton se encarrega do
assassinato e volta esperando uma recompensa por seu fiel serviço.
Só que ele esquece que os chefes têm que se dissociar imediatamente de atos como
esse, tendo-os ordenado ou não, e a peça termina com Exton banido e Henrique dizendo:
“Embora o desejasse morto, odeio o assassino e amo o assassinado. Terás como paga os
remorsos da consciência, não o meu apreço nem benesses reais” (SHAKESPEARE, 2002, p.
142).
1 A INGLATERRA ELISABETANA E OS CONFLITOS PELO PODER
1.1 A chegada ao poder e a escolha dos ministros
Em todas as paróquias da Inglaterra, os sinos repicavam. Nas colinas onduladas dos
condados meridionais, nos altos vales do norte e nas baixadas pantanosas do leste ouviam-se
os sons festivos da comemoração. Nas grandes cidades dos Midlands, assavam-se bois e
veados no espeto para banquetes públicos; companhias de atores e músicos divertiam as
multidões à luz de fogueiras que queimavam a noite inteira. Em Cambridge, os doutores da
Universidade vestiam becas escarlates parecendo-se com os imperadores romanos sagrados e
saíam de suas faculdades em procissão, para ouvir sermões e orações em honra de sua
soberana. E longe de casa, saudosos pela terra, nos pontos mais remotos do oceano atlântico,
os marinheiros dos navios ingleses davam salvas de canhão e rasgavam o céu com fogos de
artifício.
Segundo Allan (1996), a partir de 1576, quando a data do aniversário da ascensão da
rainha Elisabeth22 ao trono da Inglaterra foi declarada como feriado pela primeira vez, a
ocasião foi marcada por júbilo geral23. A pompa da cavalaria medieval era revivida pelos
nobres, que se desafiavam para combates rituais em honra da rainha, e ofereciam versos
solenes ou cômicos, cheios de alusões à vida na corte e animados por acessórios elaborados e
recursos teatrais. Os participantes dos torneios sabiam que estavam vivendo uma época não
menos colorida e gloriosa do que a dos cavaleiros e heróis que a imitavam.
Elisabeth estava com 25 anos de idade quando, destreinada de assuntos políticos,
sucedeu à sua meia-irmã, no dia 17 de novembro de 1558; a jovem filha de Henrique VIII
tomara em suas mãos o perturbado reino insular que governaria por quase meio século. Em
seu longo reinado passaria por inúmeros perigos desde crises econômicas, catástrofes naturais,
subversões, intrigas palacianas, além de inimigos estrangeiros. Mas seria uma época em que a
genialidade floresceria e a riqueza aumentaria, aventureiros marítimos descobririam mundos
novos e até o aldeão mais isolado do reino sentiria o pulsar do patriotismo. Apesar disso,
homens famintos ainda perambulavam pelas estradas e fortunas eram perdidas tanto quanto
22 De acordo com Maurois (1965), a rainha Elisabeth, além de ser muito espirituosa, erudita, ora felicitava um mayor pela forma como falava latim, ora louvava as velhas donas de casa pelo gosto dos seus cozinhados. Praguejava, cuspia, dava murros quando a irritavam, e ria perdidamente quando a distraíam, o que era muito fácil. Tinha réplicas prontas e inesgotáveis. Sob a volúpia do prazer ou enfrentando grandes acontecimentos, a sua alma reagia com uma vivacidade, um abandono e uma presença de espírito, que faziam dela um espetáculo fascinante. 23 De acordo com alguns autores, o povo inglês amava a Rainha como um “santa no meio dos mortais”.
ganhas na mesma proporção, mas, para os que compartilharam seus sucessos, o reinado de
Elisabeth foi a idade de ouro da Inglaterra.
Segundo os historiadores (CHURCHILL, 1960; WOADWARD, 1964), a sorte da
Inglaterra foi a nova Rainha possuir qualidades inatas e haver sido cuidadosamente educada.
Seu principal tutor foi o famoso erudito de Cambridge, Roger Ascham, que, ao contrário do
ensino mecânico e baseado em castigos, típicos daquela época, tratava sua pupila com
delicadeza, paciência e respeito. Elisabeth revelou-se uma aluna brilhante, com um dom
especial para as línguas; era de capaz de conversar em latim como se fosse língua natal, e lia,
escrevia e traduzia com facilidade latim e grego, além de ser fluente em italiano e,
possivelmente em francês.
De acordo com Valentin (1965), Elisabeth lembrava a aparência do pai: porte
autoritário, cabelos castanhos, palavra eloquente e uma dignidade natural; outras semelhanças
foram logo notadas: grande coragem em momentos de crise, feroz e impetuosa determinação,
quando desafiada, e um lastro quase inexaurível, de energia física. Gostava dos mesmos
passatempos e atividades prediletas do pai: paixão pela caça, perícia em manejar o arco e o
“Hawking”, gosto pela dança e pela música. Conforme Maurois (1965, p. 264), “desde a
conquista normanda, nenhum soberano havia sido de sangue tão puramente inglês como ela.
Por seu pai, Elisabeth descendia de reis tradicionais; por sua mãe, dum fidalgo do país”
Conforme Churchill (1960), Elisabeth tivera uma infância difícil e uma adolescência
acidentada. Empurrada de uma palácio para outro, sem receber visita do pai, contava com
fundos irrisórios após a execução de sua mãe. Durante o reinado de Maria, Elisabeth adquirira
uma agudeza política que lhe seria útil para o resto da vida. Sua vida andou por um triz,
provara a importância da precaução e da dissimulação. Sabia se conservar em silêncio, como
contemporizar e administrar seus recursos, foram as lições que aprendeu na mocidade. “Uma
infância sofrida e difícil havia tornado Elisabeth não só extremamente cautelosa e
controladora como também cônscia da significação do poder que finalmente alcançara”
(HELIODORA, 1978, p. 54).
O embaixador veneziano escreveu sobre Elisabeth quando essa já governava em 1557,
a respeito de um momento crítico de sua vida - em 1554, quando a rainha Maria, irmã de
Elisabeth, mandara encarcerá-la na Torre de Londres e ficar sob rígida vigilância – a coragem
dela impressionou seus contemporâneos. Diz o embaixador veneziano: “Seu intelecto e
compreensão são maravilhosos, como demonstrou muito claramente com sua conduta quando
em perigo e sob suspeita” (ALLAN, 1996, p. 62).
Como já foi dito, Elisabeth tinha apenas 25 anos quando se tornou rainha; precisaria
de todo o talento, sabedoria e perspicácia que pudesse reunir nos anos difíceis que se
seguiriam. A Inglaterra estava cercada de inimigos: a Escócia, unida pela França pelo
matrimônio, cultivava velhos ódios e mandava exércitos saqueadores; na parte continental, a
França olhava com ar ameaçador, enquanto a Espanha, supostamente uma aliada, mantinha
espiões e aguardava o momento oportuno. No próprio país, a população suportava uma longa
série de más colheitas, epidemias devastadoras e a escala incessante dos preços. Segundo um
membro da corte, a situação deixava mesmo a desejar: “A rainha pobre, o reino exaurido, a
nobreza pobre e decaída. Falta de bons capitães e soldados. O povo fora de ordem. A justiça
não executada. Todas as coisas caras. Divisões internas. Guerras com a França e Escócia.
Inimizades estáveis” (ALLAN, 1996, p. 63).
Nesse tempo turbulento, não era de todo errado deixar de tomar decisões irrevogáveis;
a situação exigia do chefe de Estado uma política calculada e uma posição mais ou menos
neutra, então, Elisabeth procurou cercar-se de homens confiáveis. Elisabeth exigia dos seus
ministros, além das qualidades administrativas, dois sentimentos novos: o patriotismo e a
consciência da razão do Estado.
A escolha dos ministros por parte de um príncipe não é coisa de pouca importância: os ministros serão bons ou maus, de acordo com a prudência que o príncipe demonstrar. A primeira impressão que se tem de um governante e da sua inteligência, é dada pelos homens que o cercam. Quando estes são eficientes e fiéis, pode-se sempre considerar o príncipe sábio, pois foi capaz de reconhecer a capacidade e manter fidelidade. Mas quando a situação é oposta, pode-se sempre dele fazer mau juízo, porque seu primeiro erro terá sido cometido ao escolher os assessores (MAQUIAVEL, 1999, p. 136).
Assim, Elisabeth escolheu conselheiros que se distinguiam mais pela inteligência e
talento do que por sangue azul ou berço nobre: Mateus Parker, arcebispo de Cantebury;
Nicolau Bacon, nomeado Lorde Guardião do Grande Selo; Roger Ascham, seu tutor, um dos
seus assessores; Thomas Gresham, foi convocado para pôr o erário do reino em ordem, e sir
William Cecil24, um administrador veterano bem versado em assuntos legais e diplomacia,
que logo se transformou no assessor mais próximo de Elizabeth, posição que manteria por
quarenta anos. “E por se tornar tão íntima a união da soberana com o ministro, talvez se
24 William Cecil (Lorde Burghley), filho de um yeoman enriquecido pela distribuição dos bens conventuais, fundou uma família que, como os Russell e os Cavendish, estaria ligada até à época atual ao governo do país. De acordo com Maurois (1965), embora todos estejam de acordo quanto a inteligência de Cecil e todas as testemunhas o confirmem, Macauley censura-o por ter sido mais da natureza do salgueiro que da do carvalho. “Prestava a mesma atenção aos interesses do Estado que aos da própria família. Nunca abandonava os amigos, a não ser que fosse perigoso conservá-los; era um íntegro protestante, quando não tinha vantagem em ser papista”.
pudesse dizer que Elisabeth era ao mesmo tempo um homem e uma mulher: ela e Cecil”
(MAUROIS, 1965).
William Cecil, segundo historiadores, (CHURCHILL, 1960; WOADWARD, 1964) o
maior estadista inglês do século XVI; precaução e sensatez caracterizavam seus gestos:
imensa habilidade nos negócios do gabinete e uma sede permanente de informações em torno
dos assuntos de Estado. Todas as mensagens e cartas que entravam e saíam da corte passavam
pelas mãos de Cecil, que controlava a vasta rede de servidores do governo na Inglaterra e no
exterior, e estava a par de todos o segredos de Estado. Tal como Elisabeth, era um intelectual
de gostos eruditos e inclinações conservadoras; a rainha sabia que podia confiar na obediência
dele, embora nem sempre ele aprovasse as opiniões dela. “Pouco a pouco, aprendeu a
reconhecer a bizarra e profunda sensatez da rainha” (MAUROIS, 1965, 268).
Trabalhando juntos, Elisabeth e Cecil deram início à restauração das fortunas do reino.
Como primeiro passo, o Conselho Privado, o círculo mais interno do governo, foi reduzido de
39 para 19 membros; entre os poucos escolhidos que permaneceram, estavam veteranos que
haviam servido a Eduardo e Maria, bem como homens novos que trouxeram novas
perspectivas aos problemas com que se defrontava a Coroa. O Conselho reunia-se em longas e
cada vez mais frequentes sessões; se, por qualquer razão, Elizabeth estivesse ausente de uma
reunião, exigia que lhe fizessem relatos detalhados das discussões. Deixara claro para seus
assessores que era ela, e não eles, que comandaria o barco do Estado, declarando: “Terei aqui
apenas uma senhora e não um senhor” (ALLAN, 1996, p. 63).
A paz religiosa no país e a segurança contra um possível ataque da Escócia eram os
mais graves problemas do momento na Inglaterra. A nação tornara-se protestante por Lei, a
legislação católica da Rainha Maria fora revogada e o soberano fora declarado supremo chefe
da Igreja inglesa, o Ato de Supremacia.
Na sociedade inglesa, havia um movimento subterrâneo de resistência a Igreja, com a
Reforma, a noção de que era um dever negar obediência à ordem estabelecida, alegando
convicção íntima, generalizou-se entre o povo, num fenômeno sem precedentes desde a
conversão do Império Romano ao Cristianismo, mas tão intimamente estavam ligados a Igreja
e o Estado, que desobedecer a um era desafiar o outro.
A ideia de que o cidadão podia escolher a doutrina que quisera era tão estranha à
mentalidade da época quanto seria permitir ao povo escolher as leis e os magistrados a que
desejasse obedecer, o máximo que se permitia era que o cidadão mantivesse um conformismo
exterior, conservando em sigilo as próprias idéias, porém, na Europa agitada desses dias, tal
sigilo era impraticável: os comentários passavam de ouvido a ouvido, eram impressos
abertamente, em milhares de panfletos, espalhando curiosidade e excitação. Embora estivesse
assentado que assuntos do Estado somente podiam ser legalmente debatidos por pessoas
devidamente credenciadas, ao homem do povo não se pedia que pesquisasse a Sagrada
Escritura e examinasse as doutrinas da Igreja, sua administração, ritos, cerimônias e as
palavras dos Evangelistas e Apóstolos.
Numa época em que, nos países católicos, protestantes eram queimados como hereges, enquanto que nos centros protestantes a mesma coisa acontecia aos católicos – e pelas mesmas razões – Elisabeth dá um monumental passo no sentido da liberdade de culto quando resolve evitar qualquer investigação maior sobre questões de foro íntimo, desde que a fórmula exterior da obediência ao culto anglicano fosse respeitada. Seu desejo era que a proibição do culto católico público, a proibição da formação e da importação de sacerdotes católicos e, por outro lado, a amena neutralidade de sua igreja estatal fossem aos poucos assimilando a grande massa da população inglesa cujo patriotismo fosse mais intenso do que suas convicções em favor da “velha” igreja (HELIODORA, 1978, p. 54).
É nesta conjuntura que surge o partido conhecido como dos Puritanos25, que, durante
um século desempenharia tão importante papel na História inglesa. Democráticos em teoria e
organização, intolerantes na prática para qualquer pessoa que discordasse de seus pontos de
vista, os Puritanos desafiaram a autoridade política e religiosa da Rainha. Embora ela prezasse
a liberdade de consciência e afirmasse com sinceridade que “não abria as janelas nas mentes
dos outros”, não permitiu que eles organizassem células no corpo religioso ou político. Uma
minoria discordante e vigorosa poderia romper a delicada harmonia que ela pacientemente
tecia. O protestantismo precisava ser alvo dos seus amigos. Enxergava a rainha, em termos
políticos, o que seu sucessor, Jaime I, expôs teoricamente: “Se não for bispo, não serei Rei”
(CHURCHILL, 1960, p. 88).
Elisabeth constatou que a menos que o governo controlasse a Igreja ele não teria como
sobreviver à Contra-Reforma que então se arregimentava na Europa Católica; teve, assim, a
soberana, de enfrentar logo mais, não só o perigo católico no exterior, como também o ataque
interno dos puritanos chefiados por fanáticos exilados do reinado de Maria, que agora
voltavam de Genebra26 e das cidades da Renânia.
25 Os Puritanos foram um fenômeno peculiarmente inglês, protestantes radicais eram incluídos exatamente no mesmo quadro punitivo que os católicos e eles, eventualmente, se tornaram muito mais violentos e perturbadores do que estes últimos (HELIODORA, 1978, p. 54). 26 De acordo com Maurois (1965), Genebra não era mais bem tratada que Roma; e o calvinismo, que então se espalhou pela Inglaterra, onde engendrou o puritanismo, não era menos suspeito que o catolicismo. Os puritanos quereriam apagar os últimos vestígios da liturgia romana e suprimir todas as hierarquias, que lembravam a “Babilônia”. Não reconheciam os bispos anglicanos, alardeavam o maior horror ao vício e um estranho zelo pela religião. Desejavam reorganizar o Estado inspirando-se apenas na Bíblia, e pretendiam fazer administrar a Inglaterra pelos Anciões da Igreja. Se lhes fosse possível, teriam restabelecido todas as leis de Moisés, incluindo
A Reforma na Europa, todavia, tomou um novo aspecto quando alcançou a Inglaterra.
As novas questões que agitavam o mundo, tais como a relação da Igreja Nacional com Roma,
de um lado, e com o soberano, de outro; sua futura organização, seus artigos de fé; as posses
de suas propriedades e das propriedades dos mosteiros, somente poderiam ser resolvidas no
Parlamento, onde os puritanos logo constituíram uma crescente e aguerrida oposição.
Os membros abastados do Parlamento estavam, por sua vez, divididos. Em dois
pontos, apenas, talvez concordassem plenamente: uma vez que tinham recebido seu quinhão
na partilha das terras dos mosteiros, não desejavam reparti-las e nada seria melhor do que uma
nova Guerra das Duas Rosas. Dividiram-se em dois grandes grupos: o dos que desejavam que
as coisas já houvessem avançado o suficiente, e o dos que desejavam ainda avançar. Foi a
semente da futura distinção entre Realistas e Puritanos, Sacerdotes e Dissidentes,
Conservadores (Tories) e Liberais (Whigs)27.
O debate teológico pouco interessou à maioria da população, mas outras medidas
tinham relação mais direta com a vida das pessoas, foi feita uma reforma da moeda, retirando-
se o dinheiro desvalorizado que estava em circulação desde o reinado de Henrique VIII. Para
aumentar a força de trabalho agrícola, decretou-se que todos os homens considerados capazes,
sem permissão específica para se dedicarem a outras atividades, deveriam trabalhar na terra.
E, o que era mais importante para aqueles que lutavam em guerras, ou viviam perto de
fronteiras e costas vulneráveis, a Coroa negociou tratados que encerravam as hostilidades com
a França e sua parceira, a Escócia. O fracasso de uma tentativa inglesa de ajudar os
protestantes franceses, com a tomada do porto de Le Havre em 1562, convenceu Elisabeth de
que a Inglaterra deveria ficar fora de confusões no continente. Além disso, o equilíbrio de
forças na Europa estava mudando: a Inglaterra continuava a ser cautelosa com a França, mas a
Espanha, embora aliada nominal, começava a se constituir em uma ameaça aparentemente
maior. “Durante anos parecia inevitável que Elisabeth ia ser esmagada por uma dessas
ameaças” (MAUROIS, 1965, p. 266).
Também é estimado um príncipe quando sabe ser verdadeiro amigo e verdadeiro inimigo, isto é, quando, sem nenhuma preocupação, procede abertamente em favor de alguém, contra um terceiro. Esse partido sempre será mais proveitoso do que manter-se neutro, pois, se dois de teus grandes vizinhos decidirem combater, ou são de qualidade que, vencendo, ou não. Em qualquer dos casos, ser-te-á sempre mais útil descobrir-te e fazer guerra de fato, pois, no primeiro caso, se não te descobrires,
a pena de Talião “olho por olho, dente por dente”, a pena de morte por blasfêmia, perjúrio, violação do sábado, adultério e fornicação. 27 O Partido Whigs defendia o limite da monarquia pelo Parlamento e não aceitava a obediência absoluta ao soberano. O partido Tory, que era adversário dos Whigs, defendia a monarquia como um poder natural e ilimitado, derivado de Deus.
será sempre presa do vencedor, para grande prazer daquele que foi derrotado, e não tens razão nem coisa alguma em tua defesa, nem que te acolha (MAQUIAVEL, 1999, p. 132).
1.2 Elisabeth e os apaixonados pretendentes
Nos primeiros anos do reinado de Elisabeth, umas das armas diplomáticas mais
poderosas de Elisabeth era oferecer sua mão em casamento, pois quem controlasse a rainha,
controlaria também a Inglaterra.
Durante o reinado de Maria, ela recusara uma série de príncipes estrangeiros,
anunciando que não podia imaginar estado civil mais feliz que o de solteira. Uma coisa
parecia certa do ponto de vista da segurança do Estado inglês, o país estava consciente da
responsabilidade que pesava sobre os ombros de Elisabeth.
A sua força consistia em se recusar a empregar a força. Era uma mulher prática num universo de maníacos agressivos, que se encontrou entre forças adversas de um terrível intensidade, nacionalismos rivais da França e da Espanha, religiões rivais de Roma e Calvino (MAUROIS, 1965, p. 266).
Garantir a sucessão ao trono era uma delicada questão; se ela se casasse com o
cortesão que ocupava o lugar mais alto em sua consideração, sua autoridade poderia ser
enfraquecida e provocaria luta entre os pretendentes.
Lorde Robert Dudley, ao qual ela concedeu o título de Conde de Leicester28, era visto,
pela maioria dos nobres como o “mais querido” pela rainha, tanto na corte como no exterior
circulavam rumores sobre a extensão da intimidade dos dois: ‘monarcas estrangeiros
divertiam-se com o boato de que a rainha da Inglaterra iria casar-se com seu estribeiro-mor”
(ALLAN, 1996, p. 66).
Segundo Churchill (1960), Elisabeth pressentiu o perigo de se casar com o elegante e
ambicioso Conde de Leicester, ao observar as reações da corte quando de sua profunda
afeição por ele. Até mesmo seu cunhado, Filipe II, viúvo de Maria, fez uma proposta pró-
forma e sem entusiasmo e aparentemente, recebeu com alívio sua recusa. “Ela sabia opor aos
extremos que a rodeavam, o que nela era igualmente extremo: a astúcia e a arte dos
subterfúgios” (MAUROIS, 1965, p. 266).
Herdeiros da nobreza européia ofereceram-se como noivos: os filhos do imperador
germânico, o duque de Sabóia, o conde escocês de Arran e os duques franceses de Anjou e de
28 De acordo com Halliday (1990, p. 15), Leicester era impopular e inaceitável – suspeitava-se que tinha assassinado sua primeira mulher.
Alençon. De acordo com Allan (1996), este último foi chamado pela rainha de “nosso sapo”29.
Elisabeth recebia os enviados deles com cortesia, considerava suas propostas e pedia tempo.
Com todos usava o mesmo jogo de galanteios e requebros; mensagens amáveis, namoro poético e por vezes audacioso para terminar sempre com uma esquiva à interminável conquista. Fez assim esmorecer Filipe II, o príncipe da Suécia, o arquiduque da Áustria, o duque de Alençon, sem contar os belos ingleses que tanto lhe agradavam: Leicester, Essex, Raleigh, cortesãos, soldados e poetas, aos quais concedia grandes liberdades e carícias incompletas, até ao dia em que, voltando a mulher a ser rainha, os enviava para a Torre (MAUROIS, 1965, p. 266-267).
Conforme Allan (1996, p. 65), aos protestantes ingleses assustava a perspectiva de sua
soberana cair vítima das lisonjas de um estrangeiro católico. Um panfletário chamado John
Stubbs vociferou em letra de imprensa contra o duque de Alençon, chamando-o de “a própria
serpente em forma de homem que vem uma segunda vez para seduzir a Eva inglesa e arruinar
o paraíso inglês” (ALLAN, 1996, p. 65). Stubbs foi preso e teve uma das mãos cortadas por
seu atrevimento, mas muitos compartilhavam dos receios dele.
Elizabeth recusava-se a casar. Em vão reis e príncipes a cortejaram. Em 1562, ao
receber uma delegação de nobres que lhe pedia para casar e ter um herdeiro que a sucedesse,
ela respondeu: “A meu próprio tempo voltarei minha mente para o casamento, se assim é
necessário para o bem público” (ALLAN, 1996, p. 66). Em outras ocasiões expressou-se com
mais vigor: “Preferiria ser um mendigo solteiro a ser uma rainha casada” (ALLAN, 1996, p.
66).
A rainha sabia que se escolhesse qualquer um desses “apaixonados pretendentes”,
significaria envolver-se na política continental e, consequentemente teria de enfrentar a
hostilidade dos adversários de seu esposo. Segundo alguns autores (CHURCHILL, 1960;
MAUROIS, 1965), para o bem da Inglaterra, a rainha acabou decidindo-se casar com a nação
inglesa. É possível que os desastres matrimoniais de seu pai e o casamento infeliz de sua
meia-irmã Maria tenham influenciado profundamente a atitude de Elizabeth em relação ao
matrimônio e, com o tempo, ficou claro que o único casamento da rainha seria com seu povo.
O Parlamento implorou em vão à Rainha Virgem30 que se casasse e tivesse um
herdeiro; temia que os fanáticos católicos assassinassem Elisabeth e colocassem no trono,
Mary Stuart, bisneta de Henrique VII, católica e esposa do delfim da França.
29 Frog é a maneira pejorativa com que ingleses se referem aos franceses. 30 A Rainha Elisabeth sentia-se envaidecida com os madrigais; gostava que lhe chamassem rainha das fadas ou Gloriana. Os mais bem informados inclinam-se a pensar que nunca foi amante de ninguém, que sentia horror físico pelo casamento e que a certeza de não poder ser mãe acabou por tornar definitiva a sua decisão. Um
Por fim, Elisabeth acabou zangando-se com a pressão e, não admitia mais discussão
sobre isso. Sua política era dedicar sua vida a salvar o país de tais alianças, utilizando seu
próprio valor potencial para dividir a Europa numa eventual combinação contra ela.
As preces por vida longa e saúde para a soberana eram mais do que meras fórmulas
rituais: o problema da sucessão afligiria Parlamento, corte e país até o final do reinado dela.
1.3 Mary Stuart e a conspiração católica
De acordo com Churchill (1960), Mary Stuart31, rainha da Escócia, perdera seu jovem
esposo, Rei Francisco II32, logo após sua ascensão ao trono, e, em dezembro de 1560, ela
voltou ao seu país. Os tios de sua mãe, os Guise, logo perderam a influência que tinham na
corte francesa, e sua sogra, Catarina de Médicis, substituiu-os como regente do Rei Carlos IX.
Assim, na segunda metade do século XVI, durante algum tempo, três países foram
controlados por mulheres: França, Inglaterra e Escócia. Desses, porém, somente o governo de
Elisabeth tinha estabilidade.
Mary Stuart era uma personalidade diferente de Elisabeth, embora de certo modo a
situação de ambas fosse semelhante, ela era descendente de Henrique VII, possuía um trono,
vivia numa época em que era novidade uma mulher ser chefe de Estado, e, no momento não
era casada. Sua presença na Escócia abalou o delicado equilíbrio que Elisabeth alcançara por
meio do Tratado de Leith, a nobreza católica inglesa, particularmente no norte, não era
indiferente aos clamores de Mary.
Rainha da Escócia aos nove dias de idade, afastada de seu país desde a primeira infância para ser criada em França por seus parentes Guise com o objetivo de ser tornada mulher do herdeiro do trono francês, Mary teve uma infância de privilégios e luxo que lhe permitiram deixar dormentes quaisquer talentos que tivesse para as questões de Estado, mas lhe permitiram também tornar-se voluntariosa e convicta de que sua vontade era lei (HELIODORA, 1978, p. 54).
Alguns pretendentes alimentavam o sonho de desposá-la, entretanto, Elisabeth
conhecia sua rival; sabia que Mary era incapaz de separar suas emoções da política. De
acordo com Allan (1996), a Rainha dos escoceses não tinha o vigilante autodomínio que
Elisabeth adquirira nos anos amargos de sua infância.
casamento sem herdeiro entregá-la-ia inutilmente ao poder do marido e arrebatava-lhe o extraordinário prestígio da “Virgem Pública”. 31 Filha de Jaime V com a francesa Maria de Guise, veio ao mundo pouco antes da morte de seu pai, que, ainda, no berço, “era a rainha de um povo feroz” (MAUROIS, 1965, P. 283). 32 Morria de uma infecção numa orelha.
Assim, Mary Stuart, poucos anos após chegar à Escócia, casou-se com um primo,
Henrique Stuart, Lorde Darnley33. Conforme Churchill (1960), o casamento de Mary mostra o
contraste entre as duas soberanas, Elisabeth antevira e evitara o perigo de escolher um marido
em sua corte.
Henrique Stuart, segundo a maioria dos autores, era um jovem fraco e pretensioso que
tinha, nas veias sangue dos Tudores e dos Stuarts. O resultado dessa escolha, para Mary, foi
desastroso. As velhas facções feudais34, agora irritadas por conflitos religiosos, puseram o
país sob seu controle, fazendo o poder da rainha diluir-se aos poucos.
O verdadeiro senhor da Escócia, na altura do regresso de Mary Stuart (1561), era um pastor, João Knox, temível pela força e estreiteza da sua fé; a sua eloquência bíblica, granítica, agradava aos compatriotas. Knox, antigo padre católico, abraçara depois o anglicanismo. Fora ele quem obrigara Cranmer a suprimir a genuflexão na segunda edição do Prayer Book (MAUROIS, 1965, p. 283).
Surge em cena um pregador poderoso: João Knox, que a exemplo de Calvino
acreditava na predestinação; pensava que a verdade religiosa devia apenas ser procurada nas
Escrituras, sem a admissão de qualquer dogma introduzido pelos homens; que o culto devia
ser austero, sem pompa e sem imagens; que a instituição calvinista dos “Anciães da igreja”
devia substituir bispos e arcebispos; finalmente, que ele João Knox era um dos eleitos,
diretamente inspirado por Deus. Conforme Maurois (1965), Knox convenceu seus
compatriotas acerca disso, e a assembleia eclesiástica liderada por ele, encarnava o Estado. De
acordo com alguns autores, Knox fazia uma firme pressão político-religiosa sobre Mary Stuart
que com uma firme paciência, suportava as humilhações que Knox a impunha.
De acordo com Maurois (1965), a relação entre Mary e Elisabeth era bastante
complexa. Entre as duas estabeleceu-se uma correspondência amigável. Quando o casamento
de Mary começou a ruir e Knox interferia nos assuntos de Estado, cortesãos trazidos da
refinada corte francesa, para consolá-la nessa dividida terra, eram impopulares e um deles,
David Riccio35, foi apanhado em seu leito e morto a punhaladas.
33 De acordo com Maurois (1965), Elisabeth sugeriu para Mary Stuart se casar com o belo Leicester. Mas Mary recusou pois não sentia desejo algum de aceitar os antigos amores da prima e, de resto, Leicester teria sido um mau rei. Darnley, escolhido por ela, era ainda pior. Descendia como ela dos Tudores e o seu aspecto varonil tinha certos encantos; “mas possuía uma alma vil, um coração covarde e tinha súbitos ataques de fúria”. Mary cansou dele rapidamente. 34 Brutal e indisciplinada, a nobreza escocesa mantinha-se feudal (MAUROIS, 1965, 282). 35 David Riccio, músico italiano, que viera para a Escócia no séquito do duque de Saboia, tornou-se conselheiro e, para alguns autores, amante de Mary Stuart. Para Maurois (1965), Riccio foi assassinado na presença de Mary, enquanto os dois ceavam. Três meses depois, deu à luz um filho, o futuro Jaime VI da Escócia e Jaime I da Inglaterra, que diziam ser filho de Riccio.
Para Maurois (1965), o marido de Mary Stuart tornou-se alvo de intrigas e boatos. Ele,
provavelmente, era o responsável pela morte de Riccio. Odiando o marido, desesperada e sem
alternativas, ela foi conivente com seu assassinato e, em 1576, casou-se com o assassino, um
guerrilheiro de fronteira, James Hepburn, Conde de Bothwell, cuja espada indomável ainda
poderia salvar-lhe o trono e a felicidade, no entanto, o que veio foi a derrota e a prisão; em
1568, ela escapou para a Inglaterra e pôs-se aos pés de Elisabeth, pedindo clemência.
Elisabeth conhecia muito bem, e por experiência própria, o significado da presença de Mary na Inglaterra, pois a prima escocesa passaria a ocupar exatamente a mesma posição que ela mesmo ocupara durante o reinado de Mary Tudor, sua irmã. O que não só ensinou um grande número de lições a Elisabeth àquele tempo, como também na verdade salvou-lhe a vida, foi sua inabalável recusa em participar de qualquer complô protestante para destronar a irmã católica (HELIODORA, 1978, p. 55).
Segundo Churchill (1960), na Inglaterra, Mary mostrou-se mais perigosa do que
quando estava na Escócia: tornou-se foco de conspiração e tramas contra a vida de Elisabeth.
“O número de conspirações de que Mary foi centro, leva-nos a admirar a paciência de
Elisabeth” (MAUROIS, 1965, p.288).
A sobrevivência do protestantismo na Inglaterra era ameaçada por sua presença.
Emissários secretos da Espanha penetraram no país para fomentar a rebelião e coordenar os
súditos católicos de Elisabeth; toda a força da Contra-Reforma voltou-se para o único país
protestante unido da Europa e, se a Inglaterra fosse destruída, o Protestantismo provavelmente
seria banido em toda parte.
A estratégia da conspiração católica era provocar o assassinato de Elizabeth, mas ela
estava bem servida no quesito de serviço secreto inglês; Francisco Walsingham, assistente de
Cecil e mais tarde seu rival no governo, localizou e prendeu agentes espanhóis e traidores
ingleses.
Para Churchill (1960), Walsingham, de inteligência sutil, cujo conhecimento da
política européia suplantava o de qualquer membro do Conselho da Rainha, criou o melhor
serviço secreto oficial da época, porém, havia sempre uma “chance” de algum conspirador
escapar. Enquanto Mary vivesse sempre haveria perigo de que alguma pessoa, por ambição
pessoal ou arruinada pelo descontentamento popular, se utilizasse dela e de suas pretensões
para destruir Elisabeth e, em 1569 essa ameaça concretizou-se.
“A rebelião de 1569, no norte da Inglaterra, da qual forçosamente John Shakespeare se
terá ocupado, foi um dos primeiros resultados do novo estímulo emprestado ao catolicismo
pela presença de Mary na Inglaterra” (HELIODORA, 1978, p. 55).
Ao norte da Inglaterra o meio social era muito mais primitivo do que nas férteis
regiões sulistas; nobres semi-feudais, orgulhosos e independentes, sentiam-se agora
ameaçados não só pela autoridade de Elisabeth, mas também pelas hostes de novos
potentados, como os Cecils e os Bacons, enriquecendo-se à custa da dissolução dos mosteiros,
e famintos de poder político. Além do mais, havia profunda separação religiosa entre o norte e
o sul: este era francamente protestante, enquanto o norte permanecia predominantemente
católico.
Segundo Churchill (1960), outrora, os mosteiros eram o centro da vida em comum e
da caridade. Sua destruição provocou a Peregrinação da Graça contra Henrique VIII, e ainda
provocava uma teimosa resistência passiva contra as reformas religiosas de Elisabeth.
Defendia-se, agora, a ideia do casamento de Mary com o Duque de Norfolk, decano da
nobreza Pré-Tudor, o qual passou a encarar a possibilidade de disputar, com a sorte, a posse
do trono, no entanto, arrependeu-se em tempo.
Mas, em 1569, os Condes de Northumberland e Wetsmorland encabeçaram uma
rebelião no norte; Mary ficou abrigada em Tutbury, aos cuidados de Lorde Hudson, soldado
de Elizabeth e seu primo por parte dos Bolena, além de seu servidor de confiança durante todo
o reinado, e uma das poucas pessoas de suas relações. Antes que os rebeldes pudessem
dominá-la, ela foi levada às pressas para o sul.
Conforme Churchill (1960), Elisabeth demorou a avaliar o perigo que se aproximava:
os rebeldes planejavam dominar o norte do país, onde aguardariam um ataque, mas, não se
confiavam mutuamente. Ao sul, os lordes católicos não se moveram; parece que não houve
um planejamento de ação e as forças rebeldes do norte se espalharam pelas montanhas, em
pequenos grupos. Covardemente infiltraram-se através da fronteira para salvar a pele, e,
assim, terminou o primeiro ato da vasta conspiração católica contra Elisabeth. Após reinar,
muito pacientemente, doze anos, ela ficou sendo, inquestionavelmente, a Rainha de toda a
Inglaterra.
Nesse ínterim, Roma estava pronta para reagir, e em fevereiro de 1570 o Papa Pio V,
ex-chefe da Inquisição, expediu uma bula de excomunhão contra Elizabeth; a partir desse
momento a Espanha, como maior potência católica da Europa, passou a contar com uma arma
espiritual para ser usada em caso de precisar atacar já que a posição de Elisabeth ficou
enfraquecida. Havia, então, um grande desafio: o Parlamento agitava-se, cada mais, por
motivo de continuar solteira a Rainha, e seus constantes apelos levaram-na a agir. Entrou em
negociação com Catarina de Médicis, e uma aliança política foi firmada em Blois, no mês de
abril de 1572.
Ambas as rainhas não confiavam no poder espanhol, uma vez que Catarina se
convencera de que a França católica tinha tanto a temer da Espanha quanto a Inglaterra
protestante; durante um curto período os fatos colaboraram com Elisabeth. O ponto fraco da
Espanha estava nos Países Baixos, onde uma densa população, com imensos recursos
taxáveis, há muito caíra sob a influência de Filipe.
Toda essa região estava às portas da revolta, e mal o tratado fora assinado, quando a
famosa resistência holandesa à tirania, integrada pelos chamados “Mendigos do mar”, tomou
a cidade de Brill, e a revolta eclodiu nos Países Baixos. Elisabeth passou a ter, então, um novo
aliado potencial no continente; chegou até pensar em se casar com um dos filhos mais moços
de Catarina, sob a condição de a França não tirar vantagem da confusão para se expandir
pelos Países Baixos. Um terrível evento em Paris, porém, fez malograr tal projeto. Pelo súbito
massacre dos Huguenotes na véspera do dia de São Bartolomeu, a 23 de agosto de 1572, os
Guises, favoráveis a Espanha e ultra-católicos, readquiriram poder político que haviam
perdido dez anos antes.
A repercussão em Londres foi grande. O embaixador inglês, Francisco Walsingham,
foi chamado por Elisabeth e, quando o embaixador francês foi explicar os acontecimentos,
Elizabeth e toda a corte receberam-no em silêncio, trajando luto. Sua aliança com a corte
francesa, evidentemente, falhara e Elizabeth foi levada a apoiar, secretamente, inclusive com
dinheiro, os huguenotes franceses e holandeses, assim, o sucesso dependia do fator tempo,
uma vez que os recursos financeiros eram muito limitados e ela somente poderia manter esse
auxílio enquanto os rebeldes estivessem na iminência do desastre.
De acordo com Churchill (1960), Walsingham, agora secretário de Estado, logo abaixo
de Cecil, no Conselho da Rainha, estava descontente; o exílio no reinado de Maria e sua
atuação como embaixador em Paris convenceram-no de que o protestantismo somente
sobreviveria na Europa com um ilimitado auxílio e encorajamento da Inglaterra. Afinal, não
podia haver um acordo com os católicos; mais cedo ou mais tarde a guerra rebentaria e era
imprescindível que tudo fosse feito para preservar e assegurar aliados potenciais antes do
conflito final.
Cecil, agora Lorde Burghley, era contrário a tudo isto. A amizade com a Espanha,
simbolizada no casamento de Catarina de Aragão e alimentada por interesses comerciais, era
uma tradição dos Tudores, desde os tempos de Henrique VIII, e boas relações com a potência,
que ainda controlava grande parte dos Países Baixos seria o único meio de preservar o grande
mercado por onde se escoavam a lã e os tecidos ingleses.
O casamento de Filipe com Maria fora muito mal visto na Inglaterra, mas, na opinião
de Burghley, não era o momento apropriado para cair no extremo oposto e intervir nos Países
Baixos ao lado dos rebeldes de Felipe; tal gesto inflamaria os extremistas puritanos e injetaria
um perigoso fanatismo na política exterior. Quando Burghley se tornou Lorde do Tesouro, em
1572, tomou atitude mais rija: cônscio dos débeis recursos do Estado, profundamente
atingidos pela perda do comércio com a Espanha e os Países Baixos, tinha convicção de que a
política de Walsingham levaria à bancarrota e à ruína.
Elisabeth agora estava inclinada a concordar com ele, pois não lhe agradava assistir a
rebeliões de outros povos, “esses seus irmãos em Cristo”, como certa vez disse a Walsingham,
sarcasticamente, já que ela não simpatizava com o puritanismo irreconciliável. A tese de
Walsingham fora violentamente fortalecida pelo massacre de São Bartolomeu, que obrigou a
Rainha a entrar numa guerra fria nos Países Baixos e numa guerra não declarada no mar, até
ser obrigada a enfrentar um ataque maciço de uma Armada.
Esses acontecimentos na França e nos Países Baixos repercutiram na política interna
inglesa. Muitos puritanos de início desejaram tolerar a Reforma elisabetana, na esperança de
transformá-la de dentro para fora; agora, eles procuravam levar o governo a uma agressiva
política exterior de inspiração protestante e, ao mesmo tempo, garantir sua própria liberdade
de organização religiosa. Estavam fortalecidos no país: tinham aliados na corte e no Conselho,
como Walsingham, com quem o favorito da Rainha, Leicester, estava, agora intimamente
associado; nas vilas e condados da região sudeste da Inglaterra eles estavam ativos e, como
desafio ao acordo da Igreja, formaram suas próprias comunidades religiosas, com ministros e
cultos próprios, pois almejavam nada mais do que o estabelecimento de um despotismo
teocrático, já que, como os católicos, achavam que a Igreja e o Estado deviam ser
independentes e separados.
Ao contrário deles, porém, acreditavam que a autoridade da Igreja era o conselho de
anciões, o presbitério, livremente escolhido pelos fiéis, mas, uma vez escolhido, dotado de
plena liberdade de ação, suplantariam o poder secular em inúmeros setores da sociedade; e
esses homens eram contrários ao “status quo” religioso estabelecido por Elisabeth, bem como
à Igreja Anglicana, com seu histórico cerimonial litúrgico e seus princípios bem
compreensíveis. Eram contrários, ainda, ao seu governo episcopal, porque julgavam tudo isso
contra a Sagrada Escritura, tal como Calvino a interpretava.
Para muitos autores, esta situação, de certo modo, já revelava a fraqueza ante o
movimento reformista, além do mais, fora de Londres, nas universidades e em algumas
cidades importantes, os párocos dos primeiros tempos da era elisabetana não eram,
geralmente, personagens da elite; muitas vezes, mantinham-se no cargo porque se haviam
submetido a Eduardo VI, depois mudado de crença sob os domínios de Maria e, finalmente
aceito, “a religião praticada por S.M.”, como se expressou certa vez um tribunal ritual de
justiça, apenas para garantir seu ganha-pão (CHURCHILL 1960, p. 95). Conhecendo o latim,
apenas o suficiente para ler os livros de orações, e quase incapazes de proferir um sermão
decente, os controversistas, eloquentes e entusiastas pregadores e inescrupulosos panfletistas,
estavam, porém, aliciando adeptos nas hostes de Elisabeth, incutindo neles novos e alarmantes
conceitos sobre o direito das congregações de se organizarem a si próprias, de trabalharem à
sua moda, criando, afinal, sua própria Igreja. E por que não, no futuro, sua própria política, se
não na Inglaterra, quiçá em outra parte?
Uma fenda foi aberta na sociedade inglesa, capaz de se transformar num abismo; a
Igreja Luterana adaptava-se bem à monarquia, até ao absolutismo. O calvinismo, porém, tal
como se difundia na Europa, era uma força dissolvente, uma solução de continuidade na
evolução social. Com a volta à atividade dos exilados dos tempos de Maria Tudor, uma
verdadeira bomba foi colocada junto aos alicerces da Igreja e do Estado inglês, pondo-os em
perigo. Elisabeth sabia que os puritanos eram talvez os seus súditos mais leais, porém, temia
que sua atuação violenta pudesse não só provocar o temível conflito europeu, como pôr em
perigo a unidade do próprio reino; nem a soberana, nem seu governo, atreviam-se a ceder um
milímetro de sua autoridade, posto que o momento não fosse oportuno para uma guerra ou um
levante religioso interno.
O Conselho da Rainha, porém, contra-atacou. A censura à imprensa foi confiada a um
corpo eclesiástico, conhecido como a Corte da Solene Comissão, que fora estabelecida em
1559 para julgar das ofensas contra a Igreja. Essa medida enfureceu os puritanos, os quais
criaram uma imprensa secreta e ambulante, que, durante anos, distribuiu virulentos panfletos
anônimos, culminando, em 1558, com a publicação de “Mártir Marprelate”, atacando as
pessoas e a atuação dos “bispos fantoches”. Durante meses os membros da Alta Comissão
procuraram descobrir os autores dessa propaganda anônima; os panfletos eram carregados de
adjetivos grosseiros, num estilo desordenado e redundante e por fim, um acidente fez com que
a máquina de imprimir, que funcionava numa carroça em constante movimento, caísse ao solo
numa rua de Londres. Os impressores foram presos, mas, os autores jamais foram
descobertos.
Conforme ressalta Churchill (1960), os ataques dos católicos também aumentaram.
Durante a década de 1570, inúmeros padres chegaram à Inglaterra, provenientes dos
seminários ingleses de Douai e St. Omer, dispostos a manter a crença católica e as ligações
entre os católicos ingleses e Roma. De início, a presença desses padres provocou pouca
apreensão nos círculos governamentais; Elisabeth, contra todos os conselhos de Walsingham,
custava-se a acreditar que pudesse haver traidores entre seus súditos católicos, e o fracasso do
levante de 1569 fortaleceu sua confiança na lealdade deles. No entanto, ao redor do ano de
1579, missionários de um novo e formidável tipo começaram a penetrar no país; eram os
jesuítas, arautos e missionários da Contra-Reforma, que haviam dedicado a vida à luta pelo
restabelecimento da religião católica em toda a Cristandade. Fanáticos, eram indiferentes ao
perigo pessoal e escolhidos a dedo para a missão. Seus inimigos os acusavam de usarem de
assassinato para alcançarem seus objetivos.
Os mais destacados desses jesuítas eram Edmundo Campion e Roberto Parsons. Suas
atividades eram cuidadosamente observadas pelos espiões de Walsingham, que descobriram
vários atentados planejados contra a Rainha, o que forçou o governo a tomar medidas mais
drásticas. A Rainha Maria mandara à fogueira perto de trezentos protestantes nos últimos três
anos do seu reinado e nos últimos trinta anos do reinado de Elisabeth o mesmo número de
católicos foi executado por traição.
As conspirações, naturalmente, giravam em torno de Mary da Escócia, que há longo
tempo estava no cativeiro; ela seria herdeira do trono inglês no caso do desaparecimento ou
morte de Elisabeth. Esta relutava em reconhecer que sua vida estava em perigo, todavia, os
complôs levantaram a questão de saber quem a sucederia no trono na hipótese da morte da
soberana. Se Mary morresse, o herdeiro seria seu filho Jaime, que se achava seguro na
Escócia, em mãos dos calvinistas. Para evitar conspirações em nome de Mary, Walsingham e
seus partidários no Conselho concentraram, então, seus esforços em persuadir a Rainha de que
Mary deveria morrer, e, argumentando com fortes razões da cumplicidade de Mary nas
inúmeras conspirações, alertaram e perturbaram a consciência de Elisabeth, que tremia à
simples idéia de derramar sangue azul. A doutrina jurídica dos Dois Corpos do Rei é
levantada pela rainha como forte argumento para não derramar sangue real.
Nesse período, havia indícios de que os jesuítas não estavam, propriamente,
fracassando em sua missão; contudo, Elisabeth, não se apressava em suas decisões: preferia
aguardar o desenrolar dos acontecimentos, que logo atingiram um ponto crucial.
Guilherme, o Silencioso, líder da revolta dos protestantes holandeses contra a
Espanha, foi mortalmente ferido por um agente espanhol; e esse assassinato deu força enorme
aos argumentos de Walsingham contra Mary, e a opinião pública inglesa reagiu com
veemência.
Ao mesmo tempo, os sentimentos da Espanha, com relação à Inglaterra, já azedados
pelas incursões dos corsários ingleses, sob a conivência de Elisabeth, transformaram-se em
franca hostilidade; os Países Baixos, uma vez restaurada a hegemonia espanhola, seriam a
base para um ataque final à ilha, e assim Elizabeth foi compelida a enviar Leicester, com um
exército inglês, para a Holanda, a fim de evitar a destruição completa desse país.
Churchill (1960) destaca que uma liga da elite protestante foi voluntariamente
formada, em 1585, para defender a vida de Elisabeth; no ano seguinte foram levadas por
Walsingham36, ao Conselho, provas de uma conspiração engendrada por um certo Antonio
Babington, católico inglês. Isso aconteceu graças a um espião que se infiltrou entre os
conspiradores e com eles viveu durante mais de um ano. A ligação de Mary com os
conspiradores era inegável; Maria estava fortemente implicada e o Parlamento clamou por
sangue.
A rainha, aparentemente relutante, assinou a condenação à morte da prima, e Mary foi
decapitada no castelo de Fotheringhay, no condado de Northamptoshire, em 1587. “Foram
precisos três golpes da espada do carrasco para cortar aquela cabeça. As tragédias da
juventude foram esquecidas e muitos consideraram-na uma mártir” (MAUROIS, 1965, p.
289). O seu próprio filho, Jaime, não esquecia que a morte de Mary lhe assegurava o trono da
Inglaterra e ele dizia: “A minha religião fez-me sempre odiar a sua conduta, embora a honra
me obrigasse a defender-lhe a vida” (MAUROIS, 1965, p. 289).
Quando a notícia chegou a Londres, foram acesas festivas fogueiras nas ruas;
Elisabeth, sentada na solidão dos seus aposentos, chorava mais pela sorte da rainha do que da
mulher. Elisabeth não queria dar aos súditos o espetáculo e o exemplo de uma rainha
decapitada. Acabou lançando a responsabilidade desse gesto aos seus conselheiros masculinos
já que Elisabeth tinha horror em ser a responsável pela morte de uma companheira de nobreza
e embora compreendesse que isso era essencial para a segurança do seu país, desejava que a
decisão suprema e final não caísse sobre seus ombros.
1.4 A Invencível Armada Espanhola de Filipe II
A Guerra contra a Espanha, agora, era coisa certa e indubitável, em que a sorte pendia
francamente a favor da Espanha, uma vez que minas de pratas e ouro vindas do México e
36 Para alguns autores, Walsingham pensou que era urgente suprimir as causas do perigo interno, antes de começar a guerra com a Espanha. Por isso, tramou uma armadilha contra Mary Stuart. A carta da rainha escocesa enviada aos conspiradores que aprovava o assassinato de Elisabeth e dava até alguns conselhos nesse sentido, foi apanhada por Walsingham.
Peru fortificavam o poder material do Império Espanhol, possibilitando ao Rei Filipe equipar
suas forças em escala jamais vista. Os círculos governamentais da Inglaterra compreendiam
bem a situação: enquanto a Espanha dominasse as riquezas do Novo Mundo, poderia lançar
uma infinidade de Armadas. Assim, era fundamental para os ingleses que a riqueza adquirida
no Novo Mundo não saísse de lá ou que os navios que a transportavam fossem aprisionados
em alto mar.
Na esperança de fortalecer suas próprias finanças e destruir os preparativos do inimigo
contra os Países Baixos e a Inglaterra, Elisabeth concordou em apoiar algumas expedições
não-oficiais contra a costa espanhola e suas colônias na América do Sul. Isso aconteceu
durante certo tempo, num estado de guerra não-declarada, mas logo a Rainha se convenceu de
que tais investidas esparsas, das quais não tomava conhecimento prévio, não abalariam o
Império Espanhol de ultramar, nem seu poderio na Europa. Gradualmente, portanto, essas
expedições assumiram caráter oficial.
A Marinha Real, que estava dos tempos de Henrique VIII, foi reconstruída e
reorganizada por João Hawkins, filho de um mercador de Plymouth, que outrora negociara
com o Brasil, possessão portuguesa. Hawkins aperfeiçoara seus conhecimentos náuticos no
tráfico de escravos na costa oriental da África e no transporte de negros para as colônias
espanholas. Em 1573, ele foi nomeado tesoureiro e superintendente da Marinha, além do
mais, formou um competente discípulo, o jovem aventureiro de Devon, Francisco Drake.
O “chefe dos ladrões do mundo desconhecido”, como os espanhóis desse tempo
chamavam a Drake, tornou-se o terror dos seus portos e dos seus navegantes, seu intuito
declarado era forçar a Inglaterra a uma luta aberta contra a Espanha. Seus ataques aos navios
espanhóis que transportavam ricas cargas de prata e ouro, as pilhagens às possessões ibéricas
na costa ocidental da América do Sul em sua viagem ao redor do mundo, em 1577, bem como
suas investidas em portos espanhóis na Europa, visavam levar a Espanha à guerra. Com a
experiência adquirida nos domínios da Espanha, os marujos ingleses sabiam ser capazes de
enfrentar a ameaça, desde que houvesse razoável igualdade de forças. Com os navios que
Hawkins construíra, poderiam combater e pôr ao fundo qualquer força que os espanhóis
mandassem contra eles.
Entrementes, os marujos de Elisabeth ganhavam experiência em águas inexploradas; a
Espanha estava deliberadamente bloqueando o comércio de outras nações no Novo Mundo.
Um cavalheiro de Devon, Humphrey Gilbert, começou a imaginar outra rota e foi o primeiro a
fazer com que a Rainha se interessasse pela abertura de um caminho para a China, ou Cataí,
como era chamada, através do noroeste. Ele era um homem culto, que estudara a obra dos
exploradores contemporâneos, sabia existirem na França e nos Países Baixos muitos
aventureiros treinados na luta individual, cujos serviços poderiam ser úteis.
De acordo com Churchill (1960, p. 102), em 1576, Gilbert escreveu uma “Dissertação
para provar uma passagem pelo noroeste até a China e as Índias orientais”. Terminava seu
livro com um notável desafio: “Não vale absolutamente a pena viver se, por medo da morte
ou do perigo, recusamos em servir à pátria e à nossa própria honra. A morte é inevitável, mas
a glória da virtude é imortal”.
Suas idéias inspiraram as viagens de Martinho Frobisher, a quem a Rainha concedeu
uma licença especial de explorador: a Corte financiou a expedição de dois pequenos navios,
que partiram, imediatamente, em busca de ouro. Levando mapas do gélido litoral ao redor do
estreito de Hudson, Frobisher retornou, trazendo consigo exemplares de um desconhecido
minério preto, e havia muita esperança de que ele contivesse ouro. Para desaponto geral, essas
amostras, examinadas, revelaram-se de nenhum valor; ficou provado que aventuras nos mares
do noroeste não enriqueceriam ninguém de repente.
Entretanto, Gilbert, não se deu por vencido; foi o primeiro inglês que avaliou que o
valor dessas viagens não se resumia em procurar metais preciosos. Refletindo sobre o fato de
haver gente demais na Inglaterra, supôs que talvez esse excesso de população pudesse ser
canalizado para novas terras. A ideia de fundar colônias na América começou então, a
empolgar a imaginação de todos. Alguns espíritos mais avançados já anteviam, em sonho,
Novas Inglaterras surgindo no além-mar; de início, os objetivos em mente eram estritamente
práticos: na esperança de transportar para o Novo Mundo os desempregados e necessitados, e
de encontrar novos mercados para o tecido inglês, entre os nativos. Segundo Churchill
(1960,103), Gilbert obteve de Elisabeth, em 1578, privilégio “para descobrir [...] tais
longínquas terras pagãs e bárbaras [...] desde que pareçam boas e dignas de serem ocupadas e
habitadas”. Com seis navios tripulados por inúmeros aventureiros, incluindo seu próprio
irmão-torto Walter Raleigh, realizou várias viagens com muita esperança, mas sem sucesso
algum.
Em 1583 Gilbert apossou-se da Terra Nova em nome da Rainha, mas não cuidou da
colonização; resolvido a tentar de novo no ano seguinte, levantou ferros de volta à pátria,
porém, o pequeno comboio encontrou mar agitado. Uma narrativa feita por certo Eduardo
Hoys ainda sobrevive:
Na tarde de segunda feira, 9 de setembro, a fragata quase foi destruída por ondas violentíssimas, mas conseguiu manter-se à tona. O Capitão, sentado à popa, com uma Bíblia nas mãos, deu vazão à sua alegria, gritando do “HIND” para nossa nau
que se aproximava: “Estamos tão perto do céu, no mar, quanto em terra!” (CHURCHILL, 1960, p. 103).
À meia-noite desse mesmo dia sombrio as luzes do navio de Gilbert, o “Squirrel”,
apagaram-se de súbito, morrendo o primeiro grande pioneiro inglês no Ocidente. Walter
Raleigh procurou continuar sua obra e, em 1585, uma pequena colônia foi estabelecida na ilha
de Roanoke, junto ao continente americano, e batizada de Virgínia, em homenagem à Rainha.
Era um território sem limites bem fixados, de que resultaram os Estados atuais da Virgínia e
Carolina do Norte. Essa aventura também fracassou, como fracassou outra tentativa
semelhante, dois anos mais tarde. Mas, por essa época, a ameaça espanhola aumentava,
levando a que se concentrasse na Inglaterra todo o esforço; a guerra com a Espanha acabou
adiando por vinte anos qualquer atividade colonial. A luta que se estabeleceu era
desesperadamente desigual, quanto aos recursos do país, mas, os marujos da Rainha haviam
recebido um treinamento sem igual, que seria, de fato, a razão da salvação da Inglaterra.
Havia tempo que os espanhóis anteviam uma campanha contra a Inglaterra, sabiam
que a intervenção inglesa ameaçava seus planos de reconquistar os Países Baixos, e que, a
menos que a Inglaterra fosse dominada, a agitação continuaria indefinidamente. Desde 1585,
os espanhóis coligiam informes de várias fontes: exilados ingleses mandavam para Madri
longos relatórios, numerosos agentes forneciam a Filipe mapas e estatísticas, os arquivos
espanhóis continham vários planos esboçados para a invasão da Inglaterra e tropas não
constituíam problema.
Se a ordem fosse mantida por algum tempo nos Países Baixos, uma força
expedicionária poderia ser retirada do exército espanhol; um corpo de tropa seria o suficiente
e tarefa mais árdua seria a construção e o treinamento de uma frota. A maior parte dos navios
do rei da Espanha provinha de suas possessões italianas e constituía-se de embarcações
construídas para navegar no Mediterrâneo; não se prestavam, pois, para uma viagem ao largo
das costas ocidentais da Europa e pelo Canal da Mancha, e os galeões construídos para as
rotas comerciais das colônias ibero-americanas eram também impraticáveis.
Churchill (1960) informa que, em 1580, porém, Filipe II anexara Portugal37, e os
construtores navais portugueses não haviam sido dominados pelo Mediterrâneo; tinham
experiência com navios próprios para a ação no Atlântico Sul, e assim, os galeões lusitanos
constituíam a base da frota, então concentrada ao largo de Lisboa. Toda embarcação
37 Com a morte de D. Sebastião em Alcácer-Kebir, em 1578, Filipe II estabeleceu a união das monarquias ibéricas.
aproveitável foi reunida em águas espanholas, a ocidente, incluindo até os galeões particulares
das escoltas de comboio, a chamada Guarda Indiana.
Ainda, Churchill (1960, p. 104) reforça que a célebre incursão de Drake em Cadiz, em
1587, fez com que os preparativos se prolongassem por mais um ano; nesse “chamuscamento
da barba do rei da Espanha” foi destruída grande quantidade de munição e navios38 e, não
obstante, em maio de 1588, a Armada estava pronta. Foram reunidos 130 navios, carregando
2.500 canhões e mais de 30.000 homens, dois terços dos quais, soldados. Das embarcações,
20 eram galeões, 44 navios mercantes armados e 8 galeras de mediterrâneo; o resto
compunha-se de pequenos barcos ou transportes desarmados e seu plano era subir a Mancha,
recolher a bordo uma força expedicionária de 16.000 veteranos dos Países Baixos,
comandados por Alexandre de Parma, e desembaraçá-la na costa sul da Inglaterra.
O renomado almirante espanhol Sta. Cruz não mais vivia, e o comando foi confiado ao
Duque de Medina-Sidônia, que alimentava muita reserva quanto ao êxito da empresa; sua
tática seguia o estilo mediterrâneo de interceptar os navios inimigos e obter a vitória por
abordagem, além disso, sua frota estava muito bem equipada para transportar grande número
de homens e era forte na artilharia pesada, de pequeno alcance, mas fraca num ataque a longa
distância.
De acordo com Churchill (1960), os marujos eram poucos, em comparação com os
soldados, e estes haviam sido recrutados entre os miseráveis da população espanhola e eram
comandados por oficiais do exército de famílias nobres, inexperientes em combates navais.
Muitas embarcações se achavam em mau estado. Água potável era guardada em pipas de
madeira verde. Além disso, o comandante da esquadra, o Duque de Medina-Sidônia não tinha
experiência em guerra naval e implorava ao Rei que o poupasse dessa inédita aventura; apesar
disso, o duque era líder habilidoso e diplomático que ganhara o respeito de todos os seus
capitães.
Churchill (1960) afirma que no início de 1588, a rainha Elizabeth começou a
mobilização para a guerra, a marinha seria a primeira linha de defesa, mas era preciso
organizar também forças terrestres. A Inglaterra não tinha exército permanente: os homens
mais capazes de cada comunidade foram reunidos em companhias locais, receberam armas e
equipamentos e foram instruídos sobre o uso delas. Os governantes de cada condado foram
instruídos a juntar essas companhias e colocá-las em forma; a nobreza foi chamada a fornecer
38 Sir Francis Drake destruiu 24 barcos, que tinham sido preparados para a invasão da Inglaterra e varreu uma parte considerável dos suprimentos das forças espanholas. Enquanto a fumaça se dissipava, Drake seguia para os Açores, onde esperava tomar alguns dos navios que sabia estarem se dirigindo a Espanha com especiarias da Índia e prata da América.
cavalos e criados para a cavalaria. Com fervor patriótico, os membros da pequena nobreza
apresentaram-se como voluntários e doaram fundos, cavalos, mosquetes e tantos homens
quantos podiam dispensar de suas propriedades. Reuniram-se cerca de 50 mil infantes e 10
mil cavalarianos; 29 mil homens de Londres e dos sul do país formavam a defesa pessoal da
rainha.
Na foz dos estuários do Tâmisa e do Medway, no mar do Norte, ergueram-se barreiras
flutuantes; se as embarcações espanholas conseguissem penetrar nas primeiras linhas de
defesa, cada curva estratégica do rio Tâmisa escondia uma plataforma de artilharia para deter
os invasores com uma barragem de fogo. Mil archotes foram colocados em altos postes de
ferro ao longo de toda a costa meridional e no alto de cada morro de Sussex e Kent. Ao
primeiro sinal de velas espanholas, essas cestas de piche e alcatrão seriam imediatamente
acesas uma após a outra, mandando o alarme a Londres em vinte minutos ou menos.
Enquanto a Inglaterra esperava, as forças da invasão espanholas concentravam-se
numa, aparentemente, invencível armada no porto de Lisboa; a Europa jamais vira tantos
barcos, soldados, armas e provisões reunidos, em único lugar, para içar velas, ao mesmo
tempo, e atravessar distância até a batalha.
A frota espanhola de 130 grandes navios deixou Lisboa no final de maio de 1588 e,
após lutar contra fortes ventos contrários, partiu novamente do setentrional porto de La
Coruña no final de julho. A estratégia decidida finalmente por Filipe II, com pouca consulta a
seus comandantes, estabelecia que a armada de Medina-Sidônia se encontraria no Canal da
Mancha, com uma frota de pequenas naves e barcaças de transporte, que traria um exército
dos Países Baixos espanhóis, comandado pelo duque de Parma.
No entanto, a mensagem que Medina-Sidônia mandou para Parma, anunciando sua
entrada no canal, não chegou a tempo; e em vez de encontrar-se com a frota de apoio,
chefiada pelo duque, ele se defrontou com a forças da marinha real de Elizabeth e seus navios
mercantes, prontos para bombardear as naves espanholas com fogo de artilharia. Em termos
numéricos de navios e canhões, os combatentes se equivaliam, mas os espanhóis não estavam
preparados, adequadamente, para o tipo de batalha que viria a se travar. Seus soldados,
armados com piques e mosquetes, esperavam nos conveses de seus barcos pela aproximação
dos oponentes, para lutar de acordo com as regras tradicionais da guerra. Em vez disso, a
artilharia inglesa começou a bombardear a distância. Em consequência do treinamento
constante e do desenho eficaz de seus canhões, os ingleses conseguiam atirar dez vezes mais
rápido que os espanhóis, além disso, os artilheiros hispânicos eram continuamente
atrapalhados pelo grande número de soldados que haviam sido embarcados.
Em Gravelines, ao largo da costa de Flandres, entre Calais e Dunquerque, os ingleses
aproximaram-se para o golpe final. Durante a noite de 7 de agosto de 1588, oito brulotes –
barcos sem tripulação, cheios de explosivos e canhões carregados, que atiravam quando o
calor os atingia – foram lançados contra a formação espanhola. Em pânico, os capitães
inimigos mandaram cortar as âncoras, fazendo com que seus navios encalhassem ou fossem
arrastados para longe do resto da frota. No dia seguinte, numa batalha de nove horas, os
artilheiros ingleses inutilizaram mais navios espanhóis e encheram de furos outros que
tentaram escapar.
O que os canhões ingleses começaram, o mau tempo completou: tempestades violentas
levaram os remanescentes da força de invasão para o norte, empurrando-os em torno da
Escócia e, direção ao sul, até a Irlanda. Navios de guerra afundaram na baía de Tobermory, ao
largo da ilha de Mull, uma das ilhas Hébridas, e, também, ao largo da costa irlandesa, em
Donegal; um deles, levado mais para o norte do que os outros, foi a pique nas águas gélidas
ao largo da ilha Fair, entre as Órcadas e as Shetland. Tripulações foram forçadas a abandonar
navios condenados a se arriscar em praias hostis. A nau capitânea de Medina-Sidônia, com o
casco todo amarrado, levou um mês para voltar à Espanha.
Para a opinião pública inglesa, porém, a derrota da Invencível Armada foi recebida
como um milagre, pois havia decênios que a sombra do poderio espanhol pairava sobre o
cenário político. Um impulso de religiosa emoção tomou conta de todos e foi cunhada uma
das medalhas para comemorar a vitória que trazia a inscrição: “Afflavit Deus et dissipantur”
(Deus soprou e eles foram para longe) (CHURCHILL, 1960, p. 109).
1.5 Conde de Essex: a última ameaça
Segundo Churchill (1960), a auto-estima da Inglaterra nunca estivera tão alta e
nenhum símbolo da majestade do reino era mais potente do que a própria Elisabeth; as antigas
deusas pagãs tinham sido enterradas, por mais de mil anos de cristianismo, e a Reforma
Anglicana fizera de tudo para suprimir o culto-católico-romano à Virgem Maria. Em lugar
dessas todo-poderosas divindades femininas do passado, a Inglaterra tinha agora sua Rainha
Virgem.
Rainha Virgem, por nunca ter se casado e não deixar herdeiros. Elizabeth tingia os
cabelos de uma cor que nada tinha de natural, cobria a face de um pó branco, vestia-se com
tecidos bordados a prata e ouro e ornamentados de pérolas e diamantes. Simbolizava a
majestade e a santidade em uma só pessoa. Carregava em sua imagem, a “pureza e a
castidade”, assemelhava-se a uma Deusa greco-romana ou a mãe de Jesus, a Virgem Maria.
Pintores eram estimulados a retratar a rainha como eternamente jovem. Assim, a imagem
pública da monarca ficou conhecida como “a máscara da juventude”. Durante todo o seu
reinado, adulou e sorriu para o povo. Liberta de laços com o estrangeiro, Elisabeth
representava o espírito inglês: a evolução da língua nacional, a construção de uma armada
poderosa e o rompimento definitivo com a Igreja de Roma.
Poetas comparavam-na à casta Diana, deusa da lua e caçadora, ou a Astréia, figura
multifacetada da mitologia clássica, ao mesmo tempo virgem e deusa da fertilidade, portadora
da justiça e pedra angular do império, arauta de uma nova idade de ouro. Pintores retratavam-
na em vestes de quase impossível magnificência: nas mãos dela colocavam arco-íris,
arminhos brancos e outros objetos que expressavam paz, virtude, majestade e verdade na
complexa e alusiva linguagem renascentista, fundada em signos e símbolos. Elisabeth
encarnava a Rainha de jure e de facto.
O povo passou a ter consciência de sua grandeza, e, nos últimos anos do reinado de
Elizabeth houve um influxo geral de energia e entusiasmo, tendo a Rainha como ponto
central. Em 1590, o poeta Edmund Spenser presenteou Elisabeth com a primeira parte de seu
poema alegórico The Faire Queene, a rainha do reino encantado. Com esse título, explicou o
autor, “refiro-me à glória em minha intenção geral, mas em particular penso na pessoa mais
excelente e gloriosa de nossa soberana” (ALLAN, 1996, p. 79). Os versos de Spenser
representavam o epítome do estilo erudito e alusivo que tinha o favor dos círculos da corte,
onde escrever poesia era considerado tão importante quanto a esgrima e a equitação. Baseava-
se no conhecimento das literaturas grega e romana antigas que foram trazidas para o norte da
Europa no início do século XVI por intelectuais como Erasmo e sir Thomas More. Mas os
benefícios dessa erudição não se limitavam à corte ou às universidades e foi da mistura
criativa desse novo conhecimento com a cultura popular e a língua inglesa em vigorosa
expansão que nasceram as maiores obras-primas da literatura elisabetana.
Nessa época os homens que haviam governado a Inglaterra desde a década de 1550,
trocavam o poder e o sucesso pelo túmulo. Leicester morrera em fins de 1588; Walsingham,
em 1590 e Burghley, em 1598, assim, nos quinze anos que se seguiram à derrota da Armada,
foram outras as figuras salientes da política: a guerra contra a Espanha valorizara os dotes
familiares. Jovens ambiciosos, como Walter Raleigh e Roberto Devereux, Conde de Essex,
disputavam o privilégio de chefiar empresas contra os espanhóis. A Rainha hesitava, pois
sabia que a segurança pela qual se batera a vida toda, era muito frágil; conhecia o perigo de
provocar o poderio da Espanha, apoiada, na retaguarda por toda a riqueza das Índias. A
soberana envelhecia e não tinha mais um contato íntimo com a nova geração, e sua rixa com
Essex demonstrou, de maneira acentuada, seu temperamento mutável.
Essex era enteado de Leicester – seu favorito e para muitos biógrafos de Elisabeth, seu
único amor - que o trouxera para os círculos da Corte; encontrou o governo nas mãos dos
Cecils, Guilherme, Lord Burghley e seu filho Roberto. Os favores da Rainha pendiam para o
violento, elegante e ambicioso Capitão da Guarda, Sir Walter Raleigh. Essex era mais jovem e
mais ativo, de modo que logo substituiu o Capitão na simpatia da Rainha; e ele também era
ambicioso e pôs-se a criar seu próprio partido na Corte e no Conselho, suplantando a
influência dos Cecils e, além disso, encontrou apoio nos irmãos Bacon, Antônio e Francisco,
filhos do Lorde Guardião, Nicolau Bacon, que, nos primeiros tempos do reinado fora
correligionário e cunhado de Burghley.
Havia perigosos inimigos internos e externos. Essex, atento e detalhista aos perigos a
sua volta, desejava uma política exterior mais arrojada, pois tivera um excelente mestre:
Walsingham. Tornou-se um expert tanto nos assuntos pertinentes à política externa quanto ao
criar uma admirável polícia secreta e, em 1593 foi feito Conselheiro privado. As relações com
a Espanha estavam tornando-se novamente tensas; Essex logo encabeçou, no Conselho, a
corrente favorável à Guerra, onde, certa vez, o velho Lorde Tesoureiro tirou do bolso um livro
de orações e, apontando com o dedo trêmulo seu oponente, leu em voz alta este versículo:
“Que os homens hipócritas e sedentos de sangue não vivam a metade dos seus dias”
(CHURCHILL, 1960, p. 116).
Em 1596 uma expedição foi enviada contra Cádiz sob o comando de Essex e Raleigh:
Essex foi o líder ostensivo na luta naval pela posse desse porto; a esquadra espanhola foi
incendiada e o litoral atacado. Foi uma brilhante operação em conjunto, que permitiu aos
ingleses dominarem, quinze dias, a cidade. A frota voltou triunfante para a Inglaterra, mas,
para desgosto de Elizabeth, pouco enriquecida e, durante a ausência de ambos, Roberto Cecil
tornara-se Secretário de Estado.
A vitória em Cádiz aumentou a popularidade de Essex entre os membros mais jovens
da Corte e em todo o país. A rainha recepcionou-o alegremente, mas com um secreto receio:
seria ele a encarnação da mentalidade daquela nova geração, cujos ímpetos atrevidos ela
temia? Será que os cidadãos mais jovens não o tomariam como novo líder, ao invés dela? Por
algum tempo tudo correu bem: Essex foi feito Diretor Geral da Artilharia e incumbido do
comando de uma expedição destinada a interceptar uma nova Armada, que, então, se
arregimentava nos portos, a oeste da Espanha.
Conforme Churchill (1960, p. 116), no verão de 1597, tudo indicava a iminência de
uma nova “Campanha da Inglaterra”; os navios ingleses dirigiram-se para sudoeste e rumaram
para Açores, porém, não havia sinal da grande esquadra cuja passagem deveriam barrar, de
modo que se utilizaram das ilhas como base, ficando à espera dos navios, carregados de
tesouros, provindos do Novo Mundo. Raleigh também fazia parte da expedição, mas os
ingleses não conseguiram tomar nenhum dos portos da ilha: a esquadra espanhola carregada
de riqueza, os iludiu, a Armada foi para a baía de Biscaia, rumo ao norte, e, com o mar livre
da patrulha naval, mais uma vez o vento salvou a Inglaterra, fazendo com que os galões,
desgovernados, batidos pela ventania, se dispersassem e afundassem. O restante da
desorganizada esquadra voltou, com muita dificuldade, para seus portos. Nesse ínterim, o Rei
Filipe estava ajoelhado em sua capela, no Escorial, orando pela sorte dos seus navios; antes
que a notícia do seu regresso o alcançasse, foi vítima de um ataque que o tornou paralítico, de
modo que a narrativa de sua derrota lhe foi feita no leito de morte.
Essex, de volta à pátria, encontrou uma soberana ainda vigorosa e dominadora: as
intrigas e rixas que prejudicaram a expedição aos Açores enraiveceram a Rainha; declarou
que jamais tornaria a mandar a esquadra para fora da Mancha, e, desta vez ela cumpriu a
palavra. De acordo com Churchill (1960), Essex retirou-se da corte, seguindo-se dias
tempestuosos, e, ele tinha certeza de que fora mal compreendido e ficou magoado. Logo um
grupo de corregilionários se reuniu em torno dele, para projetá-lo de novo junto à Rainha.
Churchill (1960) ressalta que o agravamento da situação política na Irlanda parecia
oferecer-lhe a oportunidade de recuperar, não só a simpatia de Elisabeth, como seu antigo
prestígio. Durante todo esse reinado a Irlanda representara um problema insolúvel. Henrique
VIII assumira o título de Rei da Irlanda, mas apenas nominalmente. Apesar da concessão de
títulos nobiliárquicos ingleses a chefes irlandeses, na esperança de convertê-los em magnatas
no estilo inglês, eles ainda se apegavam aos clãs e ao velho sistema feudal, não tomando
conhecimento da autoridade do representante da realeza em Dublin.
A contra-Reforma revivia, dando novo impulso à oposição à Inglaterra protestante.
Para a Coroa, em Londres, isso representava uma permanente preocupação de ordem
estratégica, pois qualquer potência hostil à Inglaterra poderia rapidamente tirar vantagem da
rebeldia da Irlanda. Vice-reis, comandando pequenos contingentes, tentavam impor, à força,
ordem e respeito às leis inglesas, enquanto se procurava enviar, para a região, colonos de
confiança. Tais medidas, porém, não obtinham grande sucesso: nos primeiros trinta anos do
reinado de Elizabeth, a Irlanda foi abalada por três grandes rebeliões, e, por volta de 1590, um
quarto levante irrompeu, transformando-se numa guerra dispendiosa e devastadora.
Com apoio da Espanha, Hugo O´Neill, Conde de Tyrone, punha em xeque o domínio
inglês sobre a Irlanda. Se Essex fosse nomeado vice-rei e destruísse a rebelião, ele recuperaria
seu poder na Inglaterra, no entanto, a cartada era perigosa. Em abril de 1599, Essex obteve
permissão para ir à Irlanda, comandando o maior exército que a Inglaterra já havia mandado
para lá, nada conseguiu, porém, ficando à beira da ruína. Planejou, então, um lance dramático:
desobedecendo às ordens expressas da Rainha, desertou do comando e correu a Londres, sem
se fazer anunciar.
De acordo com Churchill (1960), Roberto Cecil, calmamente, esperava que seu rival
explodisse. Houve cenas de cólera entre Essex e a Rainha, que levaram o conde a ser detido
em seu domicílio. Semanas após, juntamente com seus companheiros mais jovens, entre os
quais o patrono de Shakespeare, Conde de Southampton, Essex tentou um golpe desesperado:
provocaria um levante na cidade, seguindo-se uma concentração junto a Whitehall e o rapto
da própria Rainha e para criar ambiente, seria encenada em Southwark uma peça de
Shakespeare, cujo clímax seria o destronamento de um rei: o drama “Ricardo II”.
O plano fracassou, e no fim de fevereiro de 1601, Essex é morto na Torre de Londres;
entre as testemunhas da execução estava Walter Raleigh, que, silenciosamente, caminhou
através da porta da Torre Branca e subiu a escadaria, atravessando o arsenal, para lá do alto,
melhor divisar o cadafalso onde, mais tarde, ele também, último dos elisabetanos, encontraria
o mesmo fim. Entretanto, o jovem Conde de Southampton foi poupado: Elisabeth
compreendia bem a situação. Essex não era simples cortesão que vivia solicitando afeição da
Rainha, até lutando para obtê-la, ele era o líder de uma facção da Corte que ambicionava o
poder.
Para que um príncipe possa conhecer bem o ministro, entretanto, há um modo que nunca falha: quando perceberes que o ministro pensa mais em si mesmo do que em ti, e que procura tirar proveito pessoal de todas as suas ações, pode estar certo de que não é bom, e nunca poderás confiar nele; e aquele que cuida dos negócios de Estado jamais deve pensar em si, mas sempre no príncipe, e nunca lembrar-lhe negócios que se encontrem fora do Estado (MAQUIAVEL, 1999, p.136).
Ocorre que, convicto da senectude da Rainha, Essex ansiava por controlar a sucessão e
dominar o próximo soberano: não havia distinção fundamental, de princípios, entre Essex e
Raleigh, ou entre os Bacons e Cecil, a meta era usufruto dos postos, do poder, do prestígio
político, e se Essex saísse vitorioso teria feito modificações administrativas e políticas em
todo o país e, provavelmente imposto certas condições à Rainha. No entanto, a longa
experiência de negócios de Estado era mais útil a Elisabeth do que a impulsiva ambição de
um cortesão que tinha a metade da sua idade, então, ela contra-atacou e, destruindo Essex,
salvou a Inglaterra de uma devastadora guerra civil, conforme vários autores.
Aos poucos, mas implacavelmente, desapareceu a imensa vitalidade demonstrada pela
Rainha durante os anos tormentosos do seu reinado, por muitos dias permaneceu em seu leito,
deitada sobre uma pilha de coxins; a agonia e a dor prolongaram-se por muitas horas. O
espectro da Morte aproximava-se, e os espectadores ansiavam pela sucessão política. Impelida
por seus principais ministros a anunciar seu escolhido para herdar o trono, ela respondeu que
deveria ser o primo da Escócia, o filho de Mary Stuart, Jaime VI da Escócia e, dois dias
depois após nomear o seu sucessor, nas primeiras horas da manhã de 24 de março de 1603, a
rainha morreu.
Elisabeth transformara um país atrasado e voltado para dentro numa potência
internacional, desafiando suas rivais pelo domínio dos mares, negociando com os imperadores
do Oriente e reivindicando para a Inglaterra vastas extensões do Novo Mundo.
Elisabeth quando subiu ao trono inglês foi acolhida, com alegria, pelo povo quase de
forma unânime. Enfrentou batalhas para chegar e manter-se no poder: na ascensão ao trono
inglês, escolha dos ministros, ao se casar com a Inglaterra, no confronto com a rainha
escocesa Mary Stuart, a guerra contra a Invencível Armada e o duelo mortal com o ambicioso
e carismático conde de Essex.
Em síntese: a) na ascensão ao trono inglês: Elisabeth tivera uma infância difícil e
uma adolescência acidentada. A educação recebida na infância é determinante para a
formação da personalidade da futura rainha. Diante das dificuldades, aprendeu quando se
conservar em silêncio, como contemporizar e administrar seus recursos. Afastou-se
completamente de qualquer ato conspiratório contra sua irmã, a rainha católica Maria Tudor.
E quando sob rígida vigilância, manteve-se serena e humilde. Elisabeth mostrou-se uma
princesa inteligente e reservada. Utilizava bem a astúcia e arte dos subterfúgios; b) escolha
dos ministros: escolheu conselheiros que se distinguiam mais pela inteligência e talento do
que por riqueza econômica e poder político. O Conselho Privado, o círculo mais interno do
governo, foi reduzido de 39 para 19 membros. A rainha exigia de seus assessores dois
sentimentos novos – patriotismo e a consciência da razão de Estado – e deixava claro que
quem comandaria o barco do Estado seria ela e mais ninguém. O Conselho se reunia em
longas sessões, e na ausência da rainha, ela exigia relatório detalhado das discussões; c) ao se
casar com a Inglaterra: uma das armas diplomáticas mais poderosas de Elisabeth era
oferecer sua mão em casamento. Em vão reis e príncipes a cortejaram. Com todos usava o
jogo de galanteios e requebros para no fim não aceitar o pedido de casamento. Foi muito
cuidadosa no relacionamento com o Conde de Leicester, segundo alguns autores, o amor de
sua vida, para não provocar “conflitos” internos. E ao mesmo tempo, não casou com nenhum
rei ou príncipe estrangeiro para não envolver-se na política continental e ter que enfrentar no
futuro a hostilidade dos adversários de seu esposo. Para a bem sucedida política de equilíbrio
de poder da Inglaterra, utilizou-se do seu próprio valor potencial para dividir a Europa numa
eventual combinação contra ela. Além de que pode criar uma imagem pública de “Rainha
Virgem”, eternamente jovem, santa, pura, casta e que dedicaria sua vida para o povo inglês. d)
confronto com a rainha escocesa Mary Stuart: a rainha Elisabeth evitou a todo momento
criar uma inimizade ou conflito com a prima e rainha católica Mary Stuart. Temia que o norte
da Inglaterra, de maioria católica, visse Mary como uma alternativa ao poder e pegasse em
armas contra sua própria rainha. Outro temor foi a bula de excomunhão expedida pelo papa
Pio V e as ameaças espanholas que se tornavam cada vez mais frequentes. Depois de duas
rebeliões mal sucedidas e a tentativa malograda de assassinar a rainha Elisabeth, Walsingham
tramava armadilhas para testar a lealdade de Mary Stuart e provar a cumplicidade dela com as
conspirações contra a rainha Elisabeth. Ingenuamente, a rainha escocesa Mary Stuart caiu
numa dessas armadilhas. Com apoio do Parlamento e pressão dos ministros, a rainha viu-se
obrigada a mandar executar Mary Stuart. Elisabeth responsabilizava seus conselheiros
masculinos pela morte da prima e companheira de nobreza; e) guerra contra a Invencível
Armada: depois da morte de Mary Stuart e a Bula de excomunhão do Papa Pio V, a guerra
contra a Espanha era inevitável. Todos os preparativos para defender-se da invasão da
Armada espanhola foram executados. Viagens ao redor do mundo, saques e pilhagens ao ouro
e prata espanhol trazidos da América, modernização da frota inglesa, novas estratégias de
combate navais, inexperiência do comandante espanhol e as tempestades foram alguns dos
fatores que condicionaram a vitória inglesa contra a Invencível Armada espanhola. f) duelo
mortal com o ambicioso e carismático conde de Essex: a rainha Elisabeth tinha um novo
favorito, o conde de Essex. Este desejava uma política exterior mais arrojada. Essex
comandou uma expedição para Cádiz que permitiu aos ingleses dominarem, quinze dias, a
cidade. Essa vitória em território espanhol aumentou a popularidade de Essex entre os
membros mais jovens da Corte e em todo o país. Logo, o conflito entre Essex e a rainha
Elisabeth tornou-se evidente. Após uma malsucedida invasão no Açores, Elisabeth não
tornaria a mandar a esquadra para fora do Canal da Mancha. Essex tentou recuperar o
prestígio com a rainha, buscando dominar a Irlanda. Fracassou e desesperado, pediu ao seu
grupo que encomendasse a exibição da peça Ricardo II junto à companhia do Carmelengo. A
peça que trata sobre o rei destronado. A companhia relutava, argumentando que se tratava de
uma peça velha e que não atrairia público. Quando lhes foram oferecidos 40 shillings, no
entanto, concordaram e, no dia 7 de fevereiro de 1601, interpretaram a tragédia da deposição e
morte do rei Ricardo II ante uma platéia de aprendizes, estudantes de direito, soldados e
fidalgos. No dia 8 de fevereiro, pela manhã, trezentos homens armados avançaram por
Londres para libertar a rainha de seus maus conselheiros. Ninguém juntou-se a eles. Essex e
outros líderes entregaram-se. Na Torre de Londres, Essex foi executado. A rainha, em seu
último ato de poder, revelou, de fato, quem mandava no barco do Estado, era ela e nenhum
senhor. Demonstrou que era uma governante realista diferente do rei Ricardo II, com uma
sabedoria e perspicácia política capaz de se adequar a cada situação tendo em vista o êxito da
conquista ou manutenção do poder. A rainha Elisabeth possuiu a virtù, a virtude, o mérito, a
capacidade de imprimir mudanças no curso da história e realizou grandes obras. Ela foi capaz
de promover a estabilidade no reino da Inglaterra, dominou as situações e inseriu sua ação no
tempo.
Com a morte de Elisabeth terminou a dinastia dos Tudors. De acordo com Maurois
(1965), a política do bom relacionamento com o Parlamento chegou ao fim.
Os novos soberanos depararam-se com as forças em ebulição de um país em
crescimento, e, desse entrechoque, nasceram a guerra civil, o interlúdio republicano, a
Restauração e a Revolução Colonizadora. Os fatos do governo de Elisabeth servem de
alicerce para o entendimento da próxima parte deste estudo.
2 WILLIAM SHAKESPEARE E O SEU TEMPO HISTÓRICO
2.1 O Renascimento
Na época denominada de Renascimento - o período entre a Idade Média e a Moderna-
presencia-se o início de um novo ciclo histórico sem precedentes na história mundial que se
caracteriza, principalmente, em termos de política, pelo fortalecimento do Estado Moderno.
Em toda a Europa, a preocupação dos governos era com a ordem, com o desenvolvimento e a
disseminação da consciência e do sentimento nacional, por isso precisavam de um governo
forte.
O nacionalismo servia de apoio ao autoritarismo e crescia, juntamente com o individualismo e as deliberadas divisões de classe, numa conjução de opostos. Como em toda parte, era um produto de forças em mudança, tanto econômicas como culturais, e tinha fortes laços com a religião, em uma Europa amargamente dividida quanto ao controle dos caminhos que conduziam ao Paraíso e também às Índias. Na Inglaterra esse nacionalismo poderia ser identificado como uma mística Tudor e um “culto à personalidade” dos quais muito dependia Elizabeth. Era fácil idealizá-la como a defensora da Inglaterra durante muitos anos, mas o inglês comum parecia ter dúvidas quanto ao regime sob o qual vivia. A corte elisabetana era sinônimo de arrogância e depravação; deve ter havido uma forte mistura de sentimentos da classe média contra uma aristocracia suntuosa e suas pretensões (KIERNAN, 1999, p. 21).
Para unificar as nações, era preciso combater a independência e o poder dos barões
feudais, as invasões estrangeiras e implantar uma monarquia forte.
“A invenção do canhão, no século XIV, desempenhou um grande papel, pois permitiu
aos reis forçar as defesas dos castelos feudais. Mas o desenvolvimento comercial favoreceu
também poderosamente a unificação das nações” (DENIS, 1993, p. 91).
Na maioria das nações medievais o poder do rei era até certo ponto nominal e
simbólico, restrito às terras de sua propriedade. Os senhores feudais possuíam exército
próprio, o que lhes dava autonomia e poder: cunhavam as próprias moedas, estabeleciam
tributos, cobravam pedágio, decidiam a guerra e a paz, administravam a justiça. Ora, tal
fragmentação do poder colocava entraves ao comércio florescente que necessitava da
uniformização de pesos e medidas, moeda, impostos, além de exigir uma legislação válida
para todo o território nacional, livre das arbitrariedades dos condes e duques mais poderosos.
Por isso o surgimento do Estado Moderno não se dissocia das transformações
econômicas resultantes das atividades mercantis, ou seja, os interesses da burguesia em
ascensão estão em consonância com o fortalecimento do poder central dos reis. A
reciprocidade de interesses se expressa por meio de favores mútuos: os burgueses pagam
impostos e concedem empréstimos com os quais os reis garantem o funcionamento da
administração, sustentam a milícia nacional e impõem à autoridade. Em contrapartida, o
Estado forte é empreendedor, cria companhias de comércio e monopólios, além de montar o
sistema de colonização das terras do Novo Mundo. Sob esse aspecto político, a aliança entre
reis e burgueses levará à consolidação das monarquias nacionais, fundadas na unidade do
território, povo e governo. Do século XVI ao XVIII, a legitimação da soberania monárquica
justifica o absolutismo real; do ponto de vista econômico, a intervenção direta do Estado nos
negócios particulares fortalece o mercantilismo39. Procurando aumentar os lucros da
burguesia nacional, para fortalecer o poder do Estado, os governos centralizados realizaram a
política mercantilista, cuja característica básica foi a intervenção governamental na economia.
Podemos caracterizar o mercantilismo como uma política econômica correspondente à
primeira grande fase do sistema capitalista internacional. Essa fase foi a da Revolução
Comercial. Sabendo que a palavra revolução designa uma mudança profunda, podemos
definir a Revolução Comercial como uma alteração relativamente rápida e em profundidade
na atividade econômica como um todo e, em especial, no comércio principalmente, dentro da
Europa e nas diversas partes do mundo. A política mercantilista foi aplicada nos países da
Europa ocidental, apresentando algumas variações de país para país, ao lado de algumas
características comuns. a) metalismo: durante o século XVI a política mercantilista baseou-se
fundamentalmente no metalismo. Podemos definir o metalismo como a crença de que um país
seria tanto mais rico quanto maior fosse a quantidade de metais preciosos (ouro e prata) por
ele possuída. Já no século XVII, com base no que acontecera na Espanha, pensadores
partidários do mercantilismo faziam crítica do metalismo, afirmando: não adianta um país
possuir ouro e prata em abundância se não possuir uma balança comercial favorável, isto é, se
não mantiver uma exportação maior que a importação; b) balança comercial favorável: para
muitos dos pensadores, a importação de artigos estrangeiros deveria ser reduzida tanto quanto
possível, ao mesmo tempo que se deveriam incentivar ao máximo as exportações, com a
criação de uma política de bons preços. Mas o problema central da manutenção da balança de
comércio favorável, em qualquer país, residia no grau de desenvolvimento que apresentasse
internamente. Por exemplo, não adiantava tentar diminuir as compras no exterior através das
proibições às importações pura e simplesmente, porque dessa forma incentivaria o
contrabando das mercadorias proibidas; c) uma política de monopólios: visando a
estabelecer controles sobre a economia e acumular capitais o mais rapidamente possível, os
39 Doutrina Econômica que caracteriza o período histórico da Revolução Comercial (séculos XVI- XVIII), marcada pela desintegração do feudalismo e pela formação dos Estados Nacionais. Defende o acúmulo de divisas em metais preciosos pelo Estado por meio de um comércio exterior de caráter protecionista (SANDRONI, 1999, 383).
governos mercantilistas procuravam estabelecer nos seus respectivos países uma economia
baseada em grandes unidades comerciais e industriais e para isso estabeleceram uma série de
monopólios. Podemos afirmar que o mercantilismo foi uma política essencialmente
monopolista. d) pacto colonial: as relações entre as colônias, especialmente americanas, e as
metrópoles europeias, foram sendo regulamentadas a partir do século XVI, através de uma
série de normas que acabaram por constituir a política do Pacto Colonial. Pela política do
Pacto Colonial, a economia das colônias deveria existir para promover a prosperidade das
metrópoles. Dessa forma a agricultura colonial não podia produzir o que era produzido em
território metropolitano; da mesma forma era proibida a instalação de qualquer manufatura
nos territórios coloniais. Mas era na atividade comercial que essa política mostrava o seu
caráter mais opressivo: as colônias só podiam fazer comércio com as metrópoles respectivas.
Assim, as novas nações são modernas no sentido de fortalecerem o poder central,
superando a estrutura política feudal caracterizada pela descentralização do poder; são
também modernas por voltarem para a formação do Estado laico, desvinculando-se da tutela
da Igreja. No entanto, a centralização do poder se fez de maneira irregular, dependendo das
circunstâncias em cada região.
De acordo com Rezende (2001) Portugal já se constitui Estado Moderno no final do
século XIV, sob Dom João I, da dinastia de Avis; a precoce centralização do poder real
facilita a expansão marítima decorrente da aliança feita com a burguesia mercantil e o Estado
estimula pesquisas, incentiva o aperfeiçoamento náutico e promove viagens.
Na Espanha a unificação se dá no final do século XV, após a expulsão dos mouros do
território espanhol. Os reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, estimulam a
expansão marítima, e é durante esse governo que o navegador genovês Cristóvão Colombo, a
serviço da Espanha, “descobre” a América.
Os reis de Espanha, para encher o tesouro real, expulsam os mouros, depois os judeus, confiscando os seus bens, e até, seguidamente, um grande número de cristãos de origem moura ou judia, supostamente mal convertidos. O tráfico com o Novo Mundo é rigorosamente monopolizado pelo Estado. A partir daí, a indústria e o comércio privados são arruinados. Os elementos evoluídos da população dirigem-se em massa para a administração ou ingressam nas ordens. A terra passa cada vez mais para as mãos da nobreza e do clero, que não se preocupam com a melhoria dos métodos de cultivo. Em 1588, a frota espanhola destinada a invadir a Inglaterra (A Armada Invencível) é destruída, e a Espanha perde a supremacia no mar. Em 1656, depois da derrota das Dunas, perde a supremacia militar em terra em proveito da França (DENIS, 1993, p. 133).
“Quando Carlos V abdica em 1555, deixa a seu filho Filipe II um império colonial tão
vasto que, segundo se diz na época, nele “o Sol nunca se põe” (SILVEIRA, 2004, p.31). Tal
ditado será copiado mais tarde no século XIX, na Inglaterra, quando esta tiver um império tão
vasto quanto ao da Espanha no século XVI.
Na França, Joana D´Arc é o símbolo da valorização do sentimento nacional, fazendo
coroar Carlos VII em 1429, em plena Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra. O rei
organiza o exército nacional, estabelece impostos e prepara o caminho para seus sucessores,
cada vez mais fortalecidos; já no século XVI, o Estado aprimora a marinha, as companhias de
comércio e as manufaturas. O absolutismo e o mercantilismo atingem o auge no século XVII
com Luís XIV, o rei “Sol”.
Os recursos do país são utilizados numa larga medida por Luís XIV numa política tendente a assegurar a hegemonia da França sobre toda a Europa, política que leva a numerosas guerras. E o absolutismo do rei, o fausto da corte, não favorecem o desenvolvimento da burguesia mercantil industrial (DENIS, 1993, p. 135).
Os Países Baixos protestantes conquistaram a sua independência dos Espanhóis em
1609. De acordo com Denis (1993), no século XVII, o capitalismo particular desenvolve-se
principalmente na República das Províncias Unidas (atuais Países Baixos), formada no
seguimento de uma revolta vitoriosa da burguesia das cidades contra a autoridade do rei de
Espanha. “A cidade de Antuérpia pôs em prática no século XVI o sistema da igualdade
absoluta entre os mercadores estrangeiros e os da cidade” (DENIS, 1993, p. 134).
Na Inglaterra, essa necessidade era ainda maior, pois como se não bastassem às lutas
com a França, Irlanda e Escócia, o caos tomou conta da nação quando a guerra doméstica,
(Guerra das Duas Rosas)40 pela Coroa entre as famílias Lancaster e York, foi desencadeada
em 1455. A unidade da Inglaterra só se realizou verdadeiramente sob o reinado de Henrique
VII (1485-1509). A monarquia inglesa apóia-se no Parlamento, que contém numerosos
representantes da classe média.
Para desarmar o que ainda restava dos partidos nobres e dos seus bandos, os reis Tudores apóiam-se em três classes novas: a gentry, os yeoman e os comerciantes. A gentry é o conjunto de gentis-homens que vivem nas aldeias. A palavra gentleman, empregada no reinado de Isabel, está longe do significado da palavra francesa gentilhomme. Pode-se ser gentleman sem ser nobre e até possuir terra feudal. A gentry tanto inclui o descendente do cavaleiro como o rico negociante, antigo chefe de município de sua localidade, que adquire uma terra para se retirar da cidade, ou o advogado célebre, tornando-se proprietário rural; tem por limite inferior um censo territorial – as vinte libras de rendimento que, outrora, faziam um cavaleiro e que, no século XVI permitem a um proprietário ser juiz de paz. À pequena aristocracia de nascimento sucede a pequena aristocracia do dinheiro cujas funções no Estado se podem comparar às desempenhadas em França pelas classes médias no tempo de
40 Na Inglaterra, a dinastia Tudor tomou o poder e deu fim à Guerra das Rosas em 1485, estendendo-se até a morte de Elisabeth em 1603.
Luís Filipe; mas continua a ser uma aristocracia rural. Entre os squires que a formam e os pares do reino não há compartimentos estanques. Os herdeiros dos pares entram na Câmara dos Comuns onde se encontram em perfeita igualdade com os gentis-homens da aldeia. Também os yeomen formam uma classe rural, logo abaixo de gentry e acima do antigo vilão. Compreende (mais ou menos) os indivíduos com menos de quarenta xelins de renda – exigidos para fazer parte de um júri ou para participar nas eleições do condado -, mas que não possuem as vinte libras necessárias para serem gentlemen. Não é preciso ser-se proprietário para ser yeoman. Copy holders e até rendeiros podem ser yeomen. Bacon define a classe dos yeomanry como intermediária entre os gentlemen e os camponeses, e Blackstone chama-lhes a classe dos eleitores da aldeia (a gentry era a classe dos elegíveis). Esta yeomanry que, no século XVII contará cento e sessenta mil ingleses, mais ou menos, forma a armadura do país e dos seus exércitos. Vê-se quanto a estrutura da Inglaterra é então diferente da dos Estados do Continente, em que além dos nobres poucas pessoas possuem terras. Os yeomen foram os arqueiros da guerra dos Cem Anos. Não têm medo nem do trabalho manual nem da guerra. Formam adentro da nação um elemento econômico, político e social de enorme valia e estão sempre do lado do rei porque só tem a perder quando há desordens (MAUROIS, 1965, p.226-227).
A Renascença, portanto, é o primeiro passo na criação da cultura leiga e burguesa da
Idade Moderna.
Cultura leiga é aquela preocupada, basicamente, com as coisas deste mundo, com as
“coisas” do homem, em contraposição à cultura sacra, voltada basicamente para o domínio do
sagrado. Quanto ao caráter burguês da cultura renascentista, podemos afirmar que foi parte do
processo de ascensão econômica, social e política da classe burguesa, que procurou criar uma
cultura capaz de refletir seus interesses e sua visão do mundo.
Visão esta relacionada, por exemplo, com o antropocentrismo; o homem como centro
das preocupações e estudos humanos. Evidente que a visão antropocêntrica não significa a
negação da existência de Deus, mas sim a confirmação de que o homem é a criação mais
perfeita desse ser divino.
À medida que o “burguês” se enriquece, procurará viver o estilo de vida da nobreza,
investindo em terras e casando-se com algum(a) nobre falido - para obter título e status;
Quando não os conseguia através do casamento, tentava um título, alegando serviços
prestados à comunidade ou ao rei, como foi o caso do pai de Shakespeare.41
A decorrência do desenvolvimento comercial foi à ampliação das atividades
propriamente financeiras, cada vez tornando-se mais complexas.
41 John Shakespeare, pai de William, ficara razoavelmente rico antes de se tornar importante. Tendo cuidado das contas do burgo durante mais de três anos, ele havia até mesmo emprestado à cidade modestas quantias de dinheiro; o conselho ainda lhe devia sete xelins e três pence quando John fez seu último relatório (15 de fevereiro de 1566). John serviu ao conselho por mais tempo do que era necessário. Delegou tarefas e supervisionou construções, fez consertos e contratou empregados, lidou igualmente com bons e maus trabalhadores. Como administrador de contas, John estava fadado a ascender a liderança cívica (HONAN, 1998, p.49).
De início, as dificuldades provocadas pela diversidade de moedas utilizadas nas feiras
exigiam a competência do cambista, capaz de efetuar as trocas a partir da equivalência de
valores; estes passaram, também, a fazer empréstimos e aperfeiçoaram os instrumentos de
crédito, como as letras de feira, letras de câmbio e títulos. Com isso, começava a nascer o
sistema bancário.
Conforme Kiernan (1999), à época em que Shakespeare viveu, não podemos afirmar
que fosse uma Inglaterra feliz: no século XVI, os níveis populacionais estavam crescendo na
Europa e, entre 1500 e 1650, a população da Inglaterra deve ter aumentado de dois para cinco
milhões.
Esse fator populacional criava grandes pressões sobre sociedades e economia rígidas.
O alto índice de desemprego, a existência de muitos desabrigados e a vadiagem eram
evidências de quão gravemente o quadro social da Inglaterra estava desagregando-se. Havia
muita migração do campo para as cidades, especialmente para Londres, cuja população,
aumentava pela vinda de estrangeiros. Aproximava-se de duzentos mil em 1600, sendo
imensamente maior do que a de qualquer outra cidade inglesa. Kiernan (1999, p. 18) destaca
que “a penúria e a miséria lançavam uma sombra opressiva sobre o cenário no qual
Shakespeare nasceu. “Mendigos robustos” ou vagabundos alarmavam a população e, em
represália, eram tratados com brutalidade. “A vagabundagem e a mendicidade são
ferozmente reprimidas” (DENIS, 1993, p. 91).
No aspecto religioso, a Igreja Católica passava por uma grande ruptura causada pela
degradação do clero, que vivia no luxo e bem longe do povo. Esse desregramento deu origem
a diversas guerras e ocasionou a Reforma Luterana, a Reforma Calvinista e a Reforma
Anglicana. A Igreja Católica reagiu com a Contra-Reforma.
A Igreja Romana não pode absolutamente com o seu estilo de cristianismo, criar uma vida tolerável, absolutamente superior para a vida da humanidade em comum. E por isso nesta transição de época reinam o desespero, a perturbação, a renúncia ao antigo. Contra a Igreja pontifícia surge a reforma confessional, contra o império a instituição dos principados, contra a universidade da cristandade latina a evolução nacional das culturas particulares dos povos, contra o feudalismo agrário o espírito mercantil burguês das cidades, contra o escolasticismo dos teólogos a livre investigação científica (VALENTIN, 1965, p.86).
De 1517 a 1563, o mundo europeu mergulhou em infindáveis guerras de religião. Foi
no Concílio de Trento (1545-1563) que se pôs fim a essa questão, reconhece-se a coexistência
de duas confissões: luterana e católica ou protestante e católica. O protestantismo atingiu a
todas as camadas sociais.
Na França, as guerras de religião prolongaram-se até 1598. O grão-mestre da Ordem
Teutônica transformou a Prússia num ducado secular; a Suécia sob a casa Wasa, separada da
Dinamarca e da Noruega, adotou a Reforma, os outros países acompanharam-na.
Na Inglaterra, durante o reinado de Henrique VIII – de 1509 a 1547 – o clero, a partir
de 1534, passou a prestar contas exclusivamente ao rei e não mais ao papa, criou a Igreja
Anglicana independente realizando por motivos mundanos, velhas aspirações inglesas de
natureza, sobretudo política.
A separação da Inglaterra da Igreja, como já ficou dito, realizada pelo capricho e arbitrariedade de Henrique VIII. Antipapista já a Inglaterra era havia muito e antipapista queria ela ficar sendo. Essa tendência manteve-se como a norma no futuro. Como nenhuma outra dinastia inglesa os Tudors determinaram de um modo inteiramente pessoal o destino no país. A gentry ou pequena nobreza, a burguesia, e o Parlamento mantiveram-se certamente no seu rumo, mas agiam de acordo com a vontade régia (VALENTIN,1965, p. 329).
Conforme alguns autores, os prelados ingleses eram mais estadistas do que homens da
Igreja. A Câmara dos Lordes, onde tinham assento, votou todas as reformas, sem revolta. “O
alto clero estava impregnado de uma espécie de pré-anglicanismo” (MAUROIS, 1965, p.
249).
Maria Tudor, primogênita de Henrique VIII, que governou de 1553 a 1558,
restabeleceu a submissão ao papa; a fogo, ferro e sangue, o protestantismo deveria ser
sufocado e esmagado para os católicos ingleses.
Aqui há um contragolpe com a católica Maria, seu esposo, Filipe II incluiu a Inglaterra por um par de anos como um Estado vassalo na sua grande política de Contra-Reforma. O carrasco começou a perseguir o protestantismo na Inglaterra; os trezentos mártires desse período sangrento jamais serão esquecidos, o ódio contra o catolicismo recrudescia por muito tempo ao recordá-los. A repulsa que esse fanatismo inspirava favoreceu com o decorrer do tempo os protestantes, que também moviam perseguição sangrenta contra seus adversários, mas que nunca se entregaram a semelhantes orgias de sangue (VALENTIN, 1965, p. 330).
Para a manutenção da ordem e a busca da soberania a filha do antipapista, a rainha
Elisabeth - 1558 - 1603 – restaurou o anglicanismo.
A rainha Isabel nos mostra como uma mulher pode ser complicada como criatura humana e ter simultaneamente uma grande significação como soberana, é justamente nas mulheres mais inteligentes que a feminilidade é um gravame e tem fatalmente de ceder às solicitações do sexo. A rainha herdara do avô a maneirosa, insinuante e um pouco falsa afabilidade, do pai a arrogância brutal e a predileção por tudo o que era genuinamente inglês. Ela própria julgava-se moderada e justa, mercê desse dom de auto-sugestão característico das mulheres e príncipes. Isabel era principalmente muito inteligente expressava-se admiravelmente, escolhia seus instrumentos com
acerto, deixava magistralmente livre o jogo ao instinto nato e sabia representar papel heróico e viril perfeitamente em atitude, sentimentos e equanimidade, que mesmo de muito perto pareciam reais (VALENTIN, 1965, p.331).
De acordo com alguns autores, a subida ao trono de Elisabeth foi acolhida pelo povo
inglês com alegria quase unânime. Depois de tanto ter receado a tirania espanhola, que aliás
nunca se fez sentir, era um alívio aclamar uma rainha liberta de laços com o estrangeiro.
Desde a conquista normanda, nenhum soberano havia sido de sangue tão puramente inglês
como ela.
Do ponto de vista cultural, a Europa do século XVI viveu tempo de criações artísticas
marcantes.
Renascença, la rinascita, e só mais tarde renascimento, chamamos, de acordo com os contemporâneos, a grande metamorfose do espírito ocidental que primeiro se verificou na Itália como algo inteiramente italiano, mas que depois, pelo espírito de imitação e rivalidade, porém, sobretudo obedecendo a um impulso íntimo, se propagou pelos demais países; que se iniciou com elevadas aspirações e arrebatador encanto para, por fim, entibiar-se contra uma vigorosa oposição, mas ainda pela sua própria ação. Foi a princípio o renascimento do indivíduo como criatura divina afastando todo vínculo, tutela, todo amparo religioso e intercessão, para ser inteiramente ele próprio, para ditar-se sua própria norma de vida, ser seu juiz e bastar-se a si mesmo, deixando de ser membro, parcela anônima da sociedade. Desse indivíduo que se curva crente e serve, forma ele o eu livre que utiliza sua própria força, forma sua própria concepção do mundo, determina seus atos, forja sua própria felicidade, aumenta sua glória (VALENTIN, 1965, p.87).
O Renascimento é, então, o nome que os estudiosos deram ao período, por renascerem
os valores estéticos e filosóficos dos antigos gregos e latinos; seu traço marcante foi o
profundo racionalismo. Tal perspectiva somente poderia ter surgido no quadro da sociedade
burguesa, cujo objetivo era o domínio mais completo possível da natureza, numa atitude que
seria mais tarde chamada de científica, a fim de ampliar seus lucros de mercado. O elemento
chave para dominar a natureza era a matemática, decorrência imediata do desenvolvimento da
mentalidade calculadora que se expressava nos livros de contabilidade e no uso dos
algarismos arábicos.
Disto, resultou a convicção de que tudo podia ser explicado pela razão e ciência, e, a
recusa a acreditar em qualquer coisa que não tivesse sido provada; os métodos experimentais,
a observação científica e a organização racional do Estado são exemplos desse racionalismo
em que a racionalização envolve a capacidade de perceber as diferenças, e de individualizar as
coisas. Daí emergiu a segunda característica do Renascimento, o individualismo, que se
transformou em otimismo, na medida em que ampliou a crença nas próprias potencialidades
do homem.
A capacidade de individualizar, de decompor as partes levou à aguda análise e
percepção da natureza, à própria descoberta da natureza: o naturalismo. É óbvio, porém, que
entre as maravilhas da natureza criadas por Deus, o homem é a obra-prima da criação, por
isso é preciso colocá-lo no centro das preocupações, com suas necessidades sociais, políticas,
religiosas e angústias existenciais. Nasce, assim, o antropocentrismo, que nada tem a ver com
ateísmo, pois considera o homem como a manifestação mais perfeita da obra de Deus.
O espírito de aventura intelectual e artística que surgiu na Itália no decorrer do século
XIV e ficou conhecido como Renascença estava fundado, portanto, numa confiança resoluta
nas capacidades do homem e em sua bondade essencial. Esta época estende-se do século XIV
ao século XVI, quando atinge seu clímax e declina para dar lugar à idade barroca. Na leitura
de Maquiavel e Hobbes, o homem, embora vivendo em sociedade, não possui o instinto
natural de sociabilidade. Os homens são egoístas, hipócritas, dissimulados, invejosos, cruéis,
o que torna bastante difícil estabelecer regras de convivência para evitar que os homens se
destruam uns aos outros. Por isso, a instauração da ordem da sociabilidade humana – e para
Maquiavel essa sociabilidade artificial exige a ação de homens especiais, capazes de
promover a estabilidade.
Assim, a cultura renascentista desenvolveu-se em diversos países da Europa centro-
ocidental, assumindo, em cada país, características próprias e específicas; apesar das
características locais, existiram também traços comuns aos diversos países. A Renascença foi
uma época de intensa produtividade nos diversos ramos da vida cultural: na literatura, nas
artes plásticas, na filosofia e nas ciências, a produção foi cada vez maior. Essa produtividade
de artistas, filósofos e homens de ciência resultou, em parte, de uma revolução nas
comunicações, com o aparecimento da imprensa em meados do século XV; uma cultura é
muito mais rica quando mais fácil se propaga, pois, dessa forma, são favorecidas as trocas de
diferentes experiências culturais dos indivíduos e dos grupos humanos.
Silveira (2004) salienta que a Renascença foi assinalada por transformações de toda
ordem na Europa ocidental, dando origem a uma civilização brilhante, com traços que
definem nitidamente a sua originalidade com relação à civilização medieval que a precedeu.
Na ordem das ideias, a civilização da Renascença veio a ser conhecida como idade do
humanismo. Esse termo tem, aqui, uma conotação peculiar: indica, ao mesmo tempo, uma
nova sensibilidade em face do homem e a redescoberta e exaltação da literatura clássica,
sobretudo, latina, considerada a mais alta expressão dos valores preconizados pelo
humanismo e o mais apto instrumento para elevar o homem à altura de sua verdadeira
humanidade: homo humanus. Nesse sentido, perseguindo com ardor o ideal humanístico, os
estudiosos puseram-se a redescobrir e interpretar, às vezes após séculos de olvido, as grandes
realizações da Grécia e de Roma na Antiguidade.
A civilização da Renascença foi à primeira civilização do livro impresso, e essa
característica influiu, decisivamente, na difusão do ideal humanista; ela viu o nascimento da
filologia clássica, que irá tornar possível uma nova forma de apropriação da herança literária
da Antiguidade. É num contexto de complexas influências que se forma, pois, a concepção
renascentista do homem, de um lado, a tradição cristã-medieval, ainda poderosamente
presente, e dando ao humanismo renascentista a fisionomia de um humanismo cristão, de
outro, o ideal de humanidade, inspirado nos autores antigos, e que tentava conciliar-se, com
maior ou menor êxito, com a tradição cristã. Finalmente, a nova sensibilidade surgiu no bojo
de profundas transformações, nas estruturas materiais e simbólicas do mundo europeu
ocidental e que, nele, desenham uma nova paisagem social, política e religiosa.
Com o Renascimento, foram sendo repudiados vários ideais de vida da Idade Média; a
cavalaria medieval já estava em decadência como arma de guerra, principalmente, por causa
da utilização da pólvora. A partir da Renascença, completou-se o declínio da cavalaria, como
instituição social formadora do cavaleiro, tipo humano que possuía, em termos ideais, os
seguintes valores: devoção a Deus e à Igreja, fidelidade ao seu senhor, respeito às damas e
obrigação de defender fracos e oprimidos. A honra, o dever e as habilidades guerreiras eram
as principais preocupações de um cavaleiro. No Dom Quixote de Miguel de Cervantes, obra-
prima da literatura renascentista espanhola, os ideais da cavalaria apareciam como algo
superado e decadente para os homens do século XVI.
O Renascimento marca uma nova postura do homem ocidental diante da natureza e do
conhecimento. Este deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação
e fé, para voltar a ser o que era antes entre gregos e romanos – o resultado de uma bem
conduzida atividade mental. Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade
concreta, para o mundo terreno, numa ânsia por conhecê-lo, descrevendo-o, analisando-o,
medindo-o, quer com medidas precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana.
É nesse ambiente de renovação que o pensamento científico tomará novo fôlego e,
com ele, o pensamento acerca da vida social.
Num mundo que se torna cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o
homem se sente livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivencia; sente-se livre para
analisar a realidade como algo em si mesmo e não como um castigo que Deus lhe reservou.
Os filósofos passam a questionar e dissecar a realidade social, assim, a vida dos homens passa
a ser fruto de suas ações e escolhas, e não dos desígnios da justiça divina.
Nessa visão humana e especulativa da vida social está o germe do pensamento
moderno que vai se expressar na literatura, na pintura, na filosofia.
Conforme ressalta Silveira (2004), o principal intelectual responsável pela introdução
desse novo conhecimento no norte da Europa foi Desiderius Erasmus, nascido em Rotterdam,
na Holanda, por volta de 1466. Erasmo de Rotterdam escreveu tratados teológicos, crítica
social e sátiras, além de fazer uma tradução pioneira para o latim do original grego do Novo
Testamento. Sua obra forneceu munição para os críticos de princípios da Igreja que não
tinham base nas Escrituras. Além de Roterdã, as maiores figuras do Renascimento foram
Montaigne e Maquiavel. O pensador francês Michel Eyquem de Montaigne42 (1553 – 1592)
influenciou toda a Europa com seu pensamento.
Ainda, Silveira (2004) ressalta que Montaigne expôs um ideal de felicidade que
consiste na tranqüilidade da alma, na prudência, na eliminação da inquietude, no viver de
acordo com a natureza mais íntima do eu. Por meio de refinadas análises psicológicas, foi um
dos primeiros a mostrar o peso da condição humana e, por isso, tem sido lembrado como um
precursor do existencialismo moderno. Para ele, o homem se define pelo que faz e pelo que
projeta no futuro, sendo um ser “ondulante” - seus livros foram editados pela primeira vez em
1580.
Já o pensador florentino Maquiavel43 (1469-1527) escreve tanto na área da política
como da dramaturgia. Para alguns autores, Maquiavel tornou-se o fundador da política como
ciência moderna. Afastou a moral religiosa da atividade política, pois esta, segundo ele,
possui uma moral que lhe é própria. “A base da teoria maquiavélica está na consideração da
liberdade como um produto de conflitos” (ARAUJO, 2007, p. 131). Deliberadamente
distancia-se dos tratados sistemáticos da escolástica medieval e, à semelhança dos
renascentistas preocupados com fundar uma nova ciência física, rompe com o pensamento
anterior, através da defesa do método de investigação empírica. Maquiavel propõe estudar a
sociedade pela análise da verdade efetiva dos fatos humanos, sem perder-se em vãs
especulações. “Sua teoria teve uma matéria-prima empírica e uma fundamentação ética que a
tornou distinta das demais” (ARAUJO, 2007, p. 131). O objeto de suas reflexões é a realidade
política, pensada como prática humana concreta, e o centro maior de seu interesse é o 42 Pensador francês que quando menino aprendeu latim antes do francês, idéia do pai, e aos 13 anos, completou seus primeiros estudos, após passar pelos colégios locais, iniciando-se em leis. Entrou depois para o Parlamento de Bordeaux, onde permaneceu sem grande interesse até 1570. Montaigne muito ganhou no contato com os homens de magistratura, adquirindo larga experiência que lhe serviria como moralista. Após a morte do pai (1568) refugiou-se em seu castelo, entregando-se, a partir de 1572, à composição dos Essais (Ensaios), cujos dois primeiros livros publicou em 1580. Montaigne possuía temperamento moderado, era inclinado à conciliação e, em religião, mostrou-se mais cético do que crente. 43 Político, historiador e escritor italiano. Uma das figuras mais brilhantes de todo o renascimento Europeu.
fenômeno do poder, formalizado na instituição do Estado. Não se trata de estudar o tipo ideal
de Estado, mas compreender como as organizações políticas se fundam, se desenvolvem,
persistem e decaem. Embora não tenha sido compreendido pela maioria a princípio – e nem
hoje é tão bem compreendido - mudou toda a concepção da arte de governar. A política faz
brilhar as prerrogativas de uma ação calculada que visa conduzir o povo, graças às
contradições deste último. Ela não repousa de forma nenhuma sobre um consentimento. Visto
que a unidade do corpo político não está dada, é a ação política que a realiza. Ela desenvolve-
se por ocasião do desentendimento dos homens caracterizados como átomos egoístas sobre
cujas relações de interesse o príncipe pode/deve agir. A verdade do poder e do Estado
exprime-se numa lógica estratégica em situação de contingência radical. “Maquiavel reuniu
um imenso conhecimento sobre a História e sobre os pensadores clássicos à sua experiência
na vida pública, para teorizar a política como técnica e inaugurar a política moderna”
(ARAUJO, 2007, p. 131).
Já o Renascimento na Inglaterra chegou com vagar.
No renascimento inglês, em seu poder e em suas limitações, vemos o que parece ser a versão mais estranha do movimento. Não houve pintura nem escultura; os esforços para criar escolas inglesas de ambas as partes nos séculos XV e XVI tiveram pequeno êxito, e as de mérito que restam pertencem à escola de Holbein, ou à de Torrigiani, escultor italiano, ou alguma outra influência estrangeira, ao passo que o renascimento da arquitetura, inspirado por Luigo Jones, só começou no reinado de James I. Por outro lado, os ingleses podiam vangloriar-se de uma poesia, de um drama, de uma prosa não rivalizados por nação alguma, então ou mais tarde – de um esplendor e de uma fertilidade súbita que só pode ser comparada à eclosão da arte na Itália. Na Inglaterra do século XVI os nomes dos escritores que perduraram fazem um volume tão grosso quanto o dos nomes dos pintores e escritores do Cinquecento. No setor da música, também, grandes coisas foram feitas. Nunca, antes ou depois, a Inglaterra deu ao mundo tantos compositores. Os destinos da música estavam naquele tempo intimamente ligados aos da poesia. Dowland, Morley, Orlando Gibbons, Weelks, Wilbye criaram o madrigal, assim como os poetas elisabetanos evocavam o soneto. Byrd, Tallis e John Bull emprestaram seu brilho à música sacra. Vinte compositores colaboraram na realização de The Triumphs of Oriana – uma coleção de canções. E de parte sua própria arte, eles deveram ter uma influência surpreendente no verso: sugeriram metros, talvez mesmo temas; inspiraram e em troca foram inspirados pelos mestres da lírica que os rodeavam (SICHEL, 1972, p. 122-123).
A glória dos músicos ingleses é inferior ao sucesso inglês conquistado com a
literatura. Dos escritores daquele período considerado os anos dourados – poetas,
dramaturgos, prosadistas, teólogos – muitos, transcendendo qualquer época, pertencem a
todos os tempos.
Esses grandes homens trouxeram nova riqueza para a literatura da Inglaterra; criaram
o soneto inglês, a canção inglesa e o drama inglês. Sir Thomas Wyat (1503-1542) e o Conde
de Surrey (1517-1547) trouxeram o soneto petrarquiano da Itália e deram forma à poesia lírica
inglesa, construindo um patrimônio duradouro.
De acordo com Sichel (1972), no drama, não há país que se rivalize com o inglês,
embora a Inglaterra tenha moldado de acordo com suas necessidades os modelos
renascentistas que vieram da Itália e da França.
O drama inglês ganhou forma e vida, extraídas pelos autores elisabetanos da confusão do esquema nos autos da devoção e de moralidade, bem como interlúdios e adaptações de Sêneca e Plauto, executados e desempenhados nos salões dos grandes senhores ou – para maiores públicos – em estrados improvisados e pátios de estalagens (WOADWARD, 1964, p. 111).
O verdadeiro crescimento literário inglês está muito ligado ao desenvolvimento da
capacidade emocional do artista que capta novas formas de beleza. Os elisabetanos entendem
que a vida é maior que a arte, e que a arte só pode viver enquanto interprete a vida. Para eles,
a arte era o acompanhamento, não a interpretação da vida.
Na Inglaterra, concilia arte e a fé, a beleza e a religião. A poesia da Inglaterra
elisabetana é profundamente religiosa, como afirma Sichel (1972). Para Sichel (1972), a
poesia amorosa inglesa é a mais rica da Europa moderna, “mas ela é cheia de uma força
espiritual que lhe dá peso; de sentimento, que é a religião do coração” (SICHEL, 1972, p.
129).
E há uma proliferação espontânea de gêneros literários no Renascimento inglês:
soneto, lírica, hino, narrativa dramática, comédia, tragédia, canção dramática. Todas
carregadas de sentimento, energia dramática e força lírica.
Na Inglaterra o movimento não conheceu a decadência; como na Alemanha, imergiu na questão religiosa e foi conduzido diretamente para a luta pela liberdade cívica. Não houve estagnação, nem processo de degenerescência. Muito diferente foi na França e na Itália. Os últimos Médici foram déspotas corruptos, os últimos Valois, loucos corruptos envoltos em decadência; todos foram igualmente enredados em intrigas mesquinhas e incapazes de uma política mais séria. No entanto em cada nação o Renascimento subsistiu assim como a juventude subsiste em cada um de nós – para renovar o espírito, para recordar, estimular, inspirar. O Renascimento foi a nascente da revivificação; nessa fonte podemos beber ainda hoje (SICHEL, 1974, p. 133).
E, sem dúvida, Shakespeare ergue-se como o maior talento e estrela da era elisabetana
e do Renascimento inglês.
2.2 O Tempo de Shakespeare: a transição
Shakespeare pertenceu a um período de transição: uma ordem antiga e seu panorama
de vida estavam esmorecendo ou desmoronando, e uma nova ordem ainda estava tomando
forma. Ora, tempos paradoxais: um mundo novo que se abre a partir do fim da Idade Média,
um mundo que ganha novos contornos, traços marcantes, personagens que ganham destaque,
instituições nascem, morrem e renascem e nesse cenário sombrio, convivem-se elementos
contraditórios; essa situação paradoxal e contraditória assemelhava-se a um “céu coberto por
nuvens negras”. Ideal para suscitar impulsos poéticos.
Shakespeare viveu em uma época fortemente dominada pela polêmica personalidade
de Elisabeth (1558-1603), chamada pelo povo de Good Queen Bess. Ela reinou na Inglaterra
por longos 45 anos, como já descrito no primeiro capítulo. Sabemos que nesse quase meio
século, o trono de Elizabeth não só foi ameaçado por vários complôs e atentados, como
também enfrentou, vindos de fora, sérios desafios à sua sobrevivência; o reino foi palco de
vários conflitos religiosos que separavam os católicos (papistas), os calvinistas (puritanos) e
os que seguiam a religião oficial (anglicanos).
O clima extremamente tenso, dramático, apaixonado, resultante do embate, acirrou o
patriotismo de todos, inclusive o do maior dramaturgo da época: Shakespeare, tomado pelo
clima emocional que envolveu os ingleses - principalmente nos momentos da decapitação de
Mary Stuart e a invasão da invencível Armada – dedicou-se a compor uma série de grandes
peças históricas celebrando o passado belicoso dos reis britânicos, conclamando os ingleses a
manterem unidade em torno da monarquia. Atingiu ele sua expressão maior com Henrique V
(1599). A narrativa trata da grande aventura do jovem rei inglês que, num dos episódios da
guerra dos Cem anos, travada contra a França, na celebrada batalha de Azincourt, em 1415,
destruiu toda a cavalaria inimiga, muito mais numerosa, com um punhado de valentes
arqueiros e de bravos cavaleiros ingleses.
Ainda, conforme Silveira (2004), outro acontecimento importante foi a ruptura da
monarquia inglesa com a Igreja Católica, quando o rei Henrique VIII, invocando razões de
Estado, quis divorciar da rainha Catarina Aragão. Como o papa não deu seu consentimento, o
rei proclamou-se – por meio da Ato da Supremacia, em 1534 – soberano também sobre a
religião, lançando as bases do anglicanismo. Nos anos seguintes, todos os mosteiros foram
suprimidos e suas propriedades vendidas à nobreza e à burguesia.
Havia muita miséria pelos campos e pelas cidades inglesas. Uma das razões disso era a
espoliativa política das enclousures, com as terras coletivas cercadas e desapropriadas por
criadores de ovelhas (o próprio Shakespeare envolveu-se num problema dessa ordem quando
retornou para Stratford-Upon-Avon). Conforme a indústria lanífera crescia nos Países Baixos,
os campos ingleses passaram a dar mais espaço para ampliar as pastagens a fim de facilitar a
criação de carneiros para exportar lã.
Nobres poderosos e senhores rurais agiram brutalmente para expulsar os camponeses e
aldeões das terras comuns, fazendo com que milhares de mendigos partissem para as cidades,
em busca de sobrevivência. Nessa época, Londres chegou a ter 150 mil habitantes fazendo
com que se tornasse um dos maiores conglomerados humanos daqueles tempos. O fenômeno
da crescente miserabilidade teve seus efeitos no endurecimento das leis penais, intolerantes e,
marcadamente punitivas, que começaram a ser adotadas nos tempos de Henrique VIII, o pai
de Elisabeth.
Isso, porém, não impediu o país de conhecer um dos momentos mais ricos de sua
expressão cultural. Chamam o período elisabetano de A Era Dourada, porque naquele século
viveram Christopher Marlowe, Ben Jonson, John Lyly, Robert Greene, Thomas Nashe,
George Chapman, John Marston, John Fletcher, Francis Beaumont, e o filósofo Francis
Bacon, a quem alguns atribuíram equivocadamente ser o verdadeiro autor das obras de
Shakespeare. Provavelmente aquela junção de ameaça externa movida pelo poderoso império
espanhol, somada às cisões religiosas entre as várias facções do cristianismo, criaram um
clima efervescente favorável à imaginação, estimulando-os a todos os tipos de criação.
Sob essa ótica, as peças de William Shakespeare refletem a riqueza do momento em
que viveu; em suas obras há uma grande diversidade de tipos humanos (reis, rainhas,
príncipes, cortesãos, ministros, bufões, soldados, mulheres do povo, mercenários,
comerciantes, atores, padres, escroques, mágicos e jardineiros), como as mais variadas
situações existentes e as mais diferentes classes sociais.
Como homem do Renascimento, Shakespeare desprezou as fronteiras nacionais: seus
dramas ocorrem na Dinamarca, nas cidades italianas, na Grécia e na Roma antigas, e até numa
Ilha do Novo Mundo. Pode-se compará-lo, de certo modo, a Giordano Bruno ou Galileu,
descobridores de uma nova maneira de ver o cosmo. Só que o cosmo de Shakespeare foi
criado com as letras, com as palavras, um cosmo inteiramente e despudoramente humano.
2.3 A origem em Stratford
Os pais de Shakespeare eram analfabetos. O pai, John Shakespeare, que chegou a
prefeito de Stratford-upon-Avon, assinava o nome com uma marca. A mãe, Mary
Shakespeare, como a maioria das mulheres da época, nunca aprendeu a ler ou a escrever.
A data de nascimento de Shakespeare é desconhecida. Acredita-se que ele nasceu em
23 de abril de 1564, baseando-se em registros de seu batizado, que ocorreu em 26 de abril do
mesmo ano. Como era costume batizar a criança três dias depois após o nascimento, a data de
23 de abril é, tradicionalmente, aceita como sendo a de seu nascimento. Mas é lastimável que
não haja qualquer outra prova para confirmar a crença popular de que William Shakespeare
nasceu em 23 de abril, mesma data em que morreu, cinquenta e dois anos depois, e em que se
comemora na Inglaterra, desde 1222, o dia de São Jorge, o matador de dragão.
De acordo com Gomes (2007), William Shakespeare, de Stratford-upon-Avon,
abrilhantaria, para sempre, um sobrenome que há muito era considerado constrangedor. Em
1487, Hugh Shakespeare, ao se tornar reitor celibatário do Merton College, em Oxford,
mudou seu nome para Hugh Sawnders, por causa da má reputação que tal nome tinha. Em
1284, um tal de William Sakspere, de Clopton, em Gloucestershire, foi enforcado por roubo;
um século depois, em 1385, outro William Shakespeare participou do júri de um processo
sobre morte suspeita, em Balsal. Nota-se que, até então, carregar tal sobrenome era motivo de
vergonha e humilhação.
De 1530 a 1550, arrendatários de fazendas chamados Richard Shakspere, Shakespere,
Shakkspere, Shaxpere e Shakstaff foram punidos, em diversas ocasiões, por não
comparecimento ao tribunal local de Warwick. Naturalmente, esses nomes eram do mesmo
homem: o avô de Shakespeare, arrendatário na aldeia de Snitterfield, a sete quilômetros a
noroeste de Stratford, pela estrada principal de Warwick. O proprietário da fazenda era Robert
Arden, da aldeia próxima de Wilcomte, na Paróquia de Aston Cantlow, e cuja filha, Mary, se
casaria com John, o filho de Richard, em 1557.
John era o segundo, talvez terceiro filho de Richard. Nascido em 1529 era chamado de
agrícola (agricultor, em latim) nos documentos das propriedades do pai.
Mas, na época, início da década de 1560, ele há muito havia trocado a tradicional vida
dos Shakespeare no campo pelas terras urbanas, considerando-as mais prósperas. Embora
criado para administrar os terrenos arrendados pela família, desde jovem John tinha maiores
ambições e, em meados do século, migrou para a cidade de Stratford, onde havia um próspero
mercado.
Gomes (2007) declara que, situada num vale cheio de árvores, Stratford-upon-Avon
era, na época, uma respeitável cidade de uns 1.500 habitantes. Seu nome vem do lugar onde
uma estrada romana (ou “straet”) cruzava (“forded”, que em inglês arcaico significa “passar
por”) o bonito rio que banhava seu centro; um dos lugares mais antigos da Inglaterra cristã, o
povoado está no cadastro das terras inglesas como feudo pessoal dos bispos de Worcester. Na
época de Shakespeare, seus arrendatários tinham obtido a emancipação e formaram uma
próspera comunidade comercial: artesãos e lojistas expunham seus artigos nos dias de
mercado, ao lado dos habituais animais vivos e de produtos do campo. No centro de Stratford,
na última década do século XV, Sir Hugh Clopton, um rico negociante de tecidos que chegou
a prefeito de Londres, construiu a maior casa da cidade, que ele chamou de New Place. A casa
serviu para se avaliar o posterior sucesso em Londres de outro nativo de Stratford, William
Shakespeare, filho do luveiro que acabou sendo o orgulhoso proprietário de New Place.
Por volta de 1552, John Shakespeare morava a noroeste da cidade, na Henley Street e,
graças à sua vergonhosa estréia nos registros da cidade, em 29 de abril, foi multado, por
deixar, sem autorização, um monte de esterco na frente da casa de um vizinho. No tempo da
Peste, uma multa correspondente a dois dias de trabalho de um artesão era um castigo
rigoroso e adequado para os preguiçosos que não usavam o monte de esterco comunitário, na
extremidade rural da rua. Num raro desafio à tradição familiar (e como faria sempre, mais
tarde), John Shakespeare pagou logo a multa. Parece que ele já tinha planos de ser não apenas
um valoroso cidadão de Stratford, mas uma eminente figura pública; esse contratempo inicial
parece não ter sido empecilho para sua ascensão social.
Para ganhar a vida, o pai de Shakespeare entrou no comércio, como artesão de luvas e
arreios: preparador de couro, que era curtido e pintado na cor clara. Seu ofício de “luveiro”
consistia em preparar o “curtimento” da pele ou do couro de animais – cervos e cavalos,
bodes e ovelhas, mas não de animais protegidos, como bois ou porcos – mergulhando-os
numa solução de sal e alume. Depois, transformava o couro em luvas e também em cintos,
bolsas, aventais – qualquer coisa que pudesse vender em sua loja, ou na barraca de luveiros,
que ficava em local de destaque, no mercado sob o relógio da cruz do mercado. Segundo
alguns historiadores, (GOMES, 2007 e HALLIDAY, 1990), John aproveitava a carne dos
animais abatidos, desenvolvendo, também, o ofício de açougueiro.
Outros documentos legais mostram John Shakespeare, envolvido na compra e venda
de madeira e cevada, o que só se fazia para fabricar cervejas. Fica claro que ele era uma
espécie de empresário, um faz-tudo. John Shakespeare foi, também, como depois seu filho,
um grande comerciante de imóveis.
Se no ano de 1552, mais ou menos, o pai de Shakespeare comprou ou alugou toda ou
parte da casa da Henley Street – hoje considerada como o “local de nascimento” - ele logo
aumentou suas posses com a compra, em 1556, de uma propriedade com jardim e terreno, na
Greenhill Street. Deve ter sido um bom negócio, pois, no mesmo ano, ele comprou uma casa
próxima, na Henley Street, também, com jardim e terreno, a qual se tornaria a loja de lã,
quando as duas propriedades foram unidas, formando uma bonita mansão de teto em três
pontas.
Em 1553, pouco depois de John Shakespeare instalar-se em Stratford-upon-Avon, a
aldeia recebeu da Coroa a carta formal de incorporação, que deu mais autonomia ao conselho
municipal de cidadãos, pois indicava os funcionários menos graduados. Por sorte, o
ambicioso luveiro chegou à cidade certa, na hora certa, perfeita para iniciar um comércio na
comunidade, ao mesmo tempo em que preenchia a nova necessidade de líderes públicos. É de
se supor que uma placa de ofício afixada à porta – portanto, indicadora de respeitabilidade –
não fosse nada mal para os negócios.
John teve o primeiro reconhecimento em setembro de 1556, três anos após o burgo ter
sido incorporado à Coroa – quando foi escolhido como um dos dois degustadores de cerveja,
ofício para “pessoas capazes e discretas”, cujas funções consistiam em conferir se os padeiros
faziam os pães no peso estabelecido por lei e se os cervejeiros vendiam os diversos tipos de
“benfazejas” cervejas pelo preço da lei.
O degustador de cerveja tinha certo poder: se encontrasse alguém desrespeitando a lei,
mandava comparecer ao tribunal senhorial, que se reunia duas vezes ao ano, e impunha
multas, açoitamento, um dia no tronco ou no pelourinho, ou até uma humilhação pública pior
ainda, o “banco do biltre” – uma cadeira na forma de um enorme penico, no qual o infrator
entrava e era jogado no rio, para escárnio e deleite de seus fregueses. Nove meses após sua
indicação, em junho de 1557, o novo degustador de cerveja estava do outro lado da lei,
manchando seu livro de anotações, por faltar a três sessões do tribunal de Registro em sua
função oficial.
Depois de criar uma base segura no centro de Stratford, ele voltou às raízes rurais para
encontrar uma noiva e atingir a meta de subir na escala social; Mary Arden não era apenas
filha de um próspero fazendeiro, proprietário do terreno do futuro sogro, Mary pertencia a
uma das mais destacadas famílias de Warwickshire, com uma árvore genealógica que
antecedia à chegada dos normandos e já constava do Livro de Cadastro das terras inglesas,
onde quatro colunas inteiras listavam as propriedades de Turchill de Arden: a moça tinha mais
posses do que qualquer cidadão. Mary era a caçula de oito filhas do viúvo Robert Arden que,
em abril de 1548, casou-se outra vez, com Agnes Hill, nascida em Webbe, viúva de outro
próspero fazendeiro. A união trouxe mais quatro filhos à grande prole que já se apertava numa
casa de dois andares de Wilmcote.
Não há registro do casamento de John Shakespeare com Mary Arden, mas deve ter-se
realizado no final de 1557, provavelmente, na igreja de São João Batista, em Aston Cantlow,
e seu primeiro filho nasceu no nono mês de 1558. Em 24 de novembro desse ano, Robert
Arden fez seu testamento, cujos termos dão a entender que, como o personagem-título de Rei
Lear, a filha caçula era sua preferida. Depois de “assinar”, com habilidade, dez cruzes, o pai
de Mary deixou para ela o que tinha de mais valor: a propriedade em Wilcomte, chamada
Asbies. Esse foi o belo dote de Mary Arden, ao casar-se com o luveiro de Stratford, com
quem teria oito filhos: quatro meninos e quatro meninas, em mais de vinte anos. John era
cerca de dez anos mais velho que sua esposa e viveria mais de setenta anos, bem mais que a
média em sua época e Mary morreria uns sete anos depois dele.
Gomes (2007) informa, ainda, que William foi o terceiro filho e o primeiro a
sobreviver à infância. A primeira filha, Joan, foi batizada em 15 de setembro de 1558, e não
há registros da sua morte ou sepultamento. Mas o fato de, onze anos depois, o casal batizar
outra filha com o mesmo nome, em 15 de abril de 1569, é uma triste prova de que a primeira
Joan faleceu, provavelmente, com um ou dois anos. Uma segunda filha, Margaret, foi
batizada em 2 de dezembro de 1562, pelo recém-chegado padre anglicano John Bretchgirdle,
que também oficiou seu enterro apenas quatro meses depois, em abril de 1563.
O terceiro filho do casal teve, então, a sorte de sobreviver. William tinha menos de três
meses quando Stratford foi assolada pela Peste, trazida dos cortiços de Londres por
vagabundos e viajantes; cerca de 240 pessoas morreram nos últimos cinco meses do ano e em
torno de duzentos habitantes – ou um em cada sete em Stratford – sucumbiu à horrível
doença, sendo os jovens e os idosos os que correram mais risco. É bastante provável que
Mary tenha levado o primeiro filho, para ficar seguro na casa de sua família em Wilmcote,
onde ainda morava sua madrasta, viúva de seu pai.
Nesse meio tempo, já burguês, membro eleito do conselho, John Shakespeare
compareceu a uma reunião de urgência, no mês de agosto de 1564, realizada ao ar livre para
evitar o perigo do contágio. A epidemia só abrandou a partir de dezembro, com o frio do
solstício de inverno; na ocasião, passagem do ano de 1564 para o de 1565, John Shakespeare
era uma estrela ascendente no Conselho de vereadores de Stratford.
No dia 30 de setembro de 1568, o luveiro, bem casado, era indicado para ser um dos
quatro condestáveis do burgo: cidadãos capazes e encarregados de manter a paz; essas quatro
pessoas, guardiãs da Lei e da ordem, tinham responsabilidade pouco invejáveis. John
Shakespeare seria obrigado a separar rixas de bêbados, a confiscar armas de homens, que se
tornaram ameaçadores da ordem pública, por causa da bebida. Devia, também, proteger a
cidade da constante ameaça de incêndios e comunicar as autoridades eclesiásticas sobre
qualquer indivíduo que estivesse apostando dinheiro, ou bebendo na hora em que deveria se
dedicar ao culto divino.
Durante um ano, John Shakespeare cumpriu, eficientemente, essas tarefas, pois em 6
de outubro de 1569 foi indicado subcondestável, apesar de ter recebido uma multa por “não
manter seu esgoto limpo”. Foi promovido para o também impopular cargo de assessor, o
funcionário responsável por criar multas que não estavam no estatuto; logo, atingiu o topo do
sucesso, ao ser eleito um dos quatorze burgueses de Stratford, integrantes do Conselho
Municipal, responsáveis pela administração que se reunia na prefeitura, diariamente, às nove
horas da manhã.
Seja qual for o efeito dos deveres públicos na direção de seus negócios, a flutuante
situação financeira de John Shakespeare parece ter tido pouco impacto em sua vida pública; já
ocupava, então, o cargo de tesoureiro do burgo e participou de todas as reuniões do Conselho
em que apresentou as contas anuais de Stratford.
A família Shakespeare prosperava e aumentava. Em 1569, ano do nascimento de sua
segunda filha, batizada de Joan, John Shakespeare tomou coragem e descreveu-se como
“prefeito, juiz de paz, oficial da Rainha e chefe da cidade de Stratford” no pedido formal que
fez ao Colégio das Armas, para a honra máxima, em matéria de respeito por esforço próprio:
um brasão. Esse sinal exterior de seu grande sucesso selaria, literalmente, duas décadas de
sólidas conquistas, porém, John só conseguiu o brasão cerca de vinte e cinco anos depois, em
1596, quando seu filho, dramaturgo, e cada vez mais bem sucedido, reiterou o pedido ao
Colégio de Armas, em nome do pai.
O filho mais velho de John Shakespeare nasceu numa época perigosa: menos de
cinquenta anos antes, o pai da Rainha Elisabeth, o rei Henrique VIII, rompeu com Roma,
tomou as propriedades da Igreja e mandou matar pessoas importantes: Sir Thomas More –
autor da Utopia – e suas duas esposas – inclusive a mãe de Elisabeth, Ana Bolena. A “era
elisabetana” estava próxima do apogeu: uma fase marcada por conquistas militares, políticas,
científicas e culturais sem igual na História britânica; foi, também, uma época de forte
perseguição religiosa.
Shakespeare recebeu muita influência católica na infância, por mais que depois tivesse
se afastado dessa religião. Pode ser que John Shakespeare tenha disfarçado bem sua religião
quando passou a ser uma figura pública importante, como fizeram muitos católicos naquela
época de perseguição. Mas, esse era também um tempo de delatores, bem remunerados em
seus serviços, ajudando as autoridades a vigiarem inúmeros nichos de rebeldia papista no país.
As simpatias religiosas, meio dissimuladas de John, podem ter causado a misteriosa recusa do
Colégio de Armas em lhe conceder um brasão, em 1569; pode, também, ter sido um dos
motivos para a súbita e inesperada redução da prosperidade do ex-prefeito de Stratford, nos
anos seguintes, após duas décadas de grande sucesso. Pelo mesmo motivo, a educação de seu
filho William, de 5 anos, pode ter sido interrompida.
2.4 Infância
De acordo com Gomes (2007, p. 20), um grande amigo de William Shakespeare, Ben
Jonson dizia que ele “tinha mau latim e pior grego” e, por essa razão, persiste o mito de que
esse singular dramaturgo, por não ter tido a educação universitária dos literatos de seu tempo,
“era desprovido de arte”, além de “inculto, sem prática”.
Não há prova documental de que Shakespeare tenha frequentado a escola elementar de
Stratford, como se costuma acreditar; era de se esperar que não restassem registros da época.
No entanto, seu primeiro biógrafo, Nicholas Rowe, afirmou que John Shakespeare colocou o
filho “durante algum tempo numa escola pública” e havia apenas uma à altura do filho de uma
autoridade pública, a King’s New School, na Church Street, a poucos passos da casa dos
Shakespeare, na Henley Street. Com a concessão da carta de burgo, em 1553, e o zelo pós-
reformista pela educação, Stratford e outros novos burgos apressaram-se a instalar escolas nos
melhores padrões, administradas por um excelente mestre, que recebia, em troca, moradia de
graça, e a bela remuneração de 20 libras por ano.
Gomes (2007) declara, ainda, que a idade mínima para frequentar a escola, só de
meninos, era 7 anos, mas alunos de 4 ou 5 começaram a estudar na escolinha que ficava ao
lado, aos cuidados de um abecedarius (ou professor-assistente), indicado e pago pelo mestre.
Com o nascimento da segunda filha de nome Joan, no verão de 1569, em meio a aparentes
flutuações na vida de John Shakespeare, podemos imaginar um relutante menino de 5 anos,
preparando-se para uma dura rotina escolar sob ordens de seu impaciente e ambicioso pai. O
período escolar era das seis da manhã às seis da tarde, começando e terminando com preces
protestantes, e com apenas um intervalo de duas horas para o almoço, às 11 horas. Eram dez
horas de aulas por dia, seis dias na semana, todas as semanas no ano, exceto os dias santos de
guarda – que não eram a mesma coisa que férias, conceito inexistente para o aluno
elisabetano.
Os alunos eram apresentados à prosódia (pronúncia, com a boca, das letras, sílabas e
palavras) e à orthographia (“escrita delas com as mãos”). Claro que escrever direito ainda não
era considerada uma prática necessária. Assim, o menino de sete anos devia ter essas noções
básicas, além, talvez, dos primeiros números, ao terminar a escola elementar em 1571, ano em
que seu pai foi nomeado chefe dos conselheiros de Stratford. A educação de William, então,
seria confiada a bem preparados e pedantes pedagogos – uns eruditos, outros beatos, todos
educados em Oxford e de aparente e inabalável retidão.
O cargo de Mestre tinha sido criado em 1565, um ano após o nascimento de
Shakespeare, por um dedicado amigo do vigário Bretchgirdle, chamado John Brownsword,
que, em 1568, foi substituído por John Acton, erudito do Brasenose College, em Oxford. O
Corpus Christi College, também de Oxford, forneceu seu sucessor, Walter Roche, de
Lancaster, que ficou no cargo apenas dois anos – provavelmente, os que William passou na
escolinha, debruçado sobre seu livro de abecedário e catecismo. Roche deixou a função para
ganhar mais dinheiro como advogado.
Em 1571, ano em que William ingressou na escola mais adiantada, Roche foi
substituído pelo Mestre Simon Hunt que, quatro anos depois, matriculou-se na Universidade
Católica de Douai, ordenou-se padre jesuíta, em 1578, e foi membro do tribunal eclesiástico
de São Pedro, em Roma, onde faleceu em 1585. O sucessor de Hunt também foi um
importante preceptor, o clérigo e erudito Thomas Jenkins, que veio da escola elementar de
Warwick.
Segundo Jonson, (apud GOMES, 2007), a disciplina mais importante no currículo da
escola elementar era o latim, além da gramática, com suas declinações, conjugações e textos
para decorar. Os meninos de 7 anos eram obrigados a ler antologias em latim como Cato, de
Erasmo, e Sententiae Pueriles, de Leonard Cullman. Eram apresentados às Fábulas, do grego
Esopo, numa tradução latina, e às obras de Terêncio e Plauto, costumando encenar trechos de
suas comédias. Com ajuda de dicionários, os alunos da escola elementar de Stratford já
dominavam o latim escrito (traduzindo trechos da Bíblia de Genebra) e falado, nos colóquios
de Cordério, Gano ou Vives e nos diálogos de Erasmo.
Quando o professor Jenkins assumiu o cargo de Mestre, em 1575, o jovem
Shakespeare tinha 11 anos; certamente, já havia estudado Cícero, Susebroto, Quintiliano e a
De Copia de Erasmo, visto que retórica e lógica faziam parte do currículo das séries mais
avançadas. Essas matérias aproximaram Shakespeare de Virgílio, Horácio e Ovídio, que
ficaram, para sempre, em seu coração e mente, sobretudo, as obras de Ovídio.
Ben Jonson talvez julgasse ser “pouco latim”, mas na opinião de uma autoridade, bem
mais atual em matéria de Shakespeare, o menino saiu da escola elementar de Stratford “tão
bom conhecedor do latim quanto qualquer aluno moderno graduado em letras clássicas”.
Podemos admitir que Shakespeare tinha “pior grego”, pois seus estudos foram pouco mais
que superficiais na confusa grafia de um Novo Testamento em grego (GOMES, 2007, p. 22).
Como aluno da escola elementar e filho de um ascendente membro do Conselho,
William teve aulas de catecismo com o padre da paróquia e participou, regularmente, das
orações matinais e vespertinas e da comunhão. A frequência à Igreja era obrigatória por lei,
com multas rigorosas pelo não-comparecimento, ou por outras desobediências ao “dia de
descanso”. Mas, Shakespeare, “morreu papista”, testemunhou Richard Davies, (apud
GOMES, 2007, p. 23), que foi capelão do Corpus Christi College, em Oxford, cerca de
setenta anos após a morte do poeta.
A prova mais persuasiva também dá a entender que o pai de Shakespeare educou-o
secretamente como católico, embora obrigado a, por fora, obedecer à ortodoxia protestante,
como ele mesmo fazia, na função de membro do Conselho de Stratford. Por alguns anos, o
jovem William continuou um papista dissimulado, mas conheceu a ortodoxia protestante na
escola, em textos e princípios que ecoam em sua obra. Suas peças e poemas citam ou fazem
referências a simplesmente 42 livros da Bíblia – dezoito do Antigo e Novo Testamento e seis
dos evangelhos apócrifos.
Da mesma forma que não há registro da entrada de Shakespeare na escola elementar
de Stratford, não há da saída. Após dez anos ou mais de aulas intensivas, os poucos meninos
que tinham talento suficiente para chegar à universidade saíam aos 15 anos, mais ou menos,
enquanto os demais teriam de lutar para ganhar a vida. Em relação a Shakespeare, há bons
motivos para crer que ele saiu da escola com menos idade ainda.
Gomes (2007), ainda reforça que William tinha apenas 13 anos quando o sucesso
profissional do pai sofreu uma súbita queda. Os registros de Stratford mostram que, em 5 de
setembro de 1576, foi a última vez que o ex-prefeito compareceu a uma reunião do Conselho,
tendo sido chefe dos conselheiros por alguns anos; as dificuldades financeiras não eram fáceis
de disfarçar, além da falta de explicação para a ausência de John, nas deliberações do
Conselho, que ele havia presidido recentemente. Numa crise assim, seria muito natural que o
orgulhoso John Shakespeare tirasse o filho mais velho da escola, para começar logo a
trabalhar na luvaria, além de ajudar a mãe nos afazeres domésticos.
Assim, William deixou os estudos e foi trabalhar com o pai, aprendendo seu ofício. Os
historiadores afirmam que “após a saída da escola, parece que ele aceitou viver como seu pai
propôs” (GOMES, 2007, p. 24). Gomes (2007) assevera que nos fundos da loja ou no balcão,
como mais um ajudante, William passava o tempo livre, infringindo um pouco a lei no ofício
de açougueiro, e logo sentiu necessidade de abrir as asas. Os problemas financeiros da
família, embora estabilizados com a venda de terras e outros bens, não davam sinal de
melhora. Com vontade de ampliar sua experiência e, ao mesmo tempo, de ajudar o pai,
Shakespeare pode ter exercido inúmeros ofícios. Existem inúmeras teorias na tentativa de
preencher o complicado espaço entre o final dos tempos da escola e a chegada de Shakespeare
a Londres. Nos dez anos, entre a saída da escola e a chegada à capital, sabe-se, apenas, que ele
se casou e teve três filhos. O resto foi e será sempre território fértil para a investigação
literária.
Alguns biógrafos afirmam que William trabalhou, quando ainda estava em Stratford,
com algum advogado da região que era, ao mesmo tempo, um pequeno notário. Parece pouco
provável que alguém fosse escriturário com tão pouca idade, e não há nenhuma prova disso,
afora os inúmeros termos legais – por exemplo, a questão dos Dois Corpos do Rei – que
Shakespeare usou, com segurança, em sua obra. Com tantas condenações, perseguindo o pai
e, mais tarde, a ele mesmo, Shakespeare deve ter adquirido um razoável conhecimento, com
diversos advogados, e assimilado os termos técnicos do ramo com o gosto de um escritor
nato. Ao chegar a Londres, pode ter passado algum tempo num escritório de direito,
aprendendo, pelo menos, a arte de escrivão ou de escriturário de advogado.
Segundo Gomes (2007), bem mais convincente é a tese, há muito defendida, de que o
jovem Shakespeare desentendeu-se com o fidalgo local, Sir Thomas Lucy, por roubar um
cervo e, por isso, foi obrigado a fugir de Stratford. A história existe desde 1709, e afirma que
o recém-casado teve problemas com o fidalgo Lucy, por invadir sua propriedade de caça, em
Charlecote. Shakespeare logo alimentou as imaginações literárias, ao dedicar uma centena de
linhas ao tema, no início de As Alegres Comadres de Windsor (1597), na qual o juiz Shallow
foi considerado uma caricatura de Sir Thomas Lucy.
O clérigo do século XVII, Richard Davies, do Corpu Christi College, em Oxford,
aumentou a lenda local, com a informação de que Shakespeare tinha “pouca sorte em roubar
veados e coelhos, principalmente de Sir Lucy, que muitas vezes mandou açoitá-lo, às vezes
prendê-lo, até finalmente fazer com que voltasse para sua terra natal” (GOMES, 2007, p. 25).
Em 1763, a história do cervo chegou a ser mencionada no verbete de Shakespeare na
Biografia Britannica, que comentava as constantes rixas entre o filho do ex-prefeito e o
indignado fidalgo, a ponto de a raiva de Lucy levar Shakespeare “à extrema ruína, sendo
obrigado a aceitar trabalho servil para se sustentar” (GOMES, 2007, p. 25).
Como resolver o problema do quase total sumiço de Shakespeare dos registros
públicos entre a escola e a chegada de Londres? O ano de 1585 foi uma exceção, quando sua
esposa Anne deu à luz gêmeos, batizados no dia 02 de fevereiro, conforme os registros de
Stratford. Se Shakespeare ficou na escola até os 15 ou os 16 anos, quando os meninos
“normalmente entram para a Universidade”, os anos “perdidos” estariam mais bem situados
entre 1579 e 1592. Mas, ele pode ter largado a escola mais jovem ainda; é bem provável,
como já foi dito anteriormente. Então, como e onde Shakespeare passou a adolescência?
2.5 Juventude
No ano de 1579, o ex-prefeito de Stratford continuava ausente de todas as reuniões de
Conselho, registradas em ata. Seu terceiro filho estava a caminho – nasceria no mês de abril e
receberia o nome de Edmund. William tornou-se, então, apenas mais uma boca para
alimentar: estava na hora de cuidar do seu sustento. No mesmo ano, segundo os registros, seu
colega de escola Richard Field, filho do curtidor de couro de Stratford, Henry Field, foi ser
aprendiz numa tipografia londrina. O manual de educação das classes governantes, escrito por
Sir Thomas Elyot, em 1531, diz que, “retirados da escola pelos pais, os mais aptos e melhores
estudantes eram levados para a corte, onde se tornavam lacaios ou pajens, ou aprendizes em
oficinas” (GOMES, 2007, p. 29).
A ligação católica, secreta, da família Shakespeare, com o recém-chegado professor
John Cottom, tornava muito natural a ajuda dele para conseguir um emprego invejável para
William, a uns 200 quilômetros, em Lancashire – talvez até para, secretamente, estudar para
seminarista. Alexander Hoghton era patrão do pai de Cottom, em Tarnacre, e tinha ligações
secretas com o outro filho de Cottom, que foi bem aquinhoado em seu estamento. Hoghton
aceitaria logo um dos alunos mais brilhantes da escola elementar de Stratford; William ficou
no castelo de Hoghton, por um ou dois anos, até o final de 1581, quando foi trabalhar com o
sir Hesketh, na mansão chamada Rufford Old Hall.
De acordo com Gomes (2007), com 17 anos, querendo ser simpático, Shakespeare,
sem dúvida, impressionou seu primeiro patrão, mais como ator do que como padre em
potencial; ele teria, então, uma verdadeira oportunidade para brilhar no palco, pois a
majestosa propriedade recebia trupes de atores visitantes – inclusive, companhias famosas,
como a dos Atores do Conde de Derby e, mais tarde, a do filho e herdeiro dele, Ferdinando
(Lorde Strange). Essas trupes serviam para recrutar atores para os Homens do Lorde
Carmelengo.
No mesmo ano de 1581, sir Thomas Hesketh foi preso como “papista desafeto”.
Gomes (2007) aponta que documentos da época mostram que foi logo libertado, com a
promessa de “reabilitar” sua propriedade, acabando com a prática do catolicismo. Três anos
depois, Hesketh foi preso de novo, mas por pouco tempo, deve ter convencido as autoridades
de que sua mansão não era mais um centro de incitação papista. Entretanto, curiosamente,
consertos feitos na mansão mostraram um cômodo secreto, ou “toca do padre”, no lado oeste.
Com 15 metros de comprimento, sete de largura e quase seis metros de altura, o
Grande Salão da residência seria, também, local de apresentações do grupo de atores
residentes, de Sir Thomas Hesketh e de companhias visitantes – como as do amigo Henry
Stanley, conde de Derby. A ligação das duas nobres mansões está bem documentada no Livro
Mansão Derby, que registra visitas regulares e recíprocas, nesse período.
Em 1582, Shakespeare estava de volta a Stratford. A situação financeira do pai não
tinha melhorado e pior, ele parecia estar sendo castigado pela escolha, um tanto
indiscriminada, de amigos nos tempos de prosperidade, quando deve ter sido fiador de tudo e
de todos. Perdeu o direito ao bônus de 10 libras na dívida de 22 libras com o teimoso irmão
Henry e foi fiador de Michael Price, um desonesto latoeiro de Stratford. Precisou, então,
implorar para que o amigo Hill, conselheiro municipal, fosse seu fiador, evitando, assim, a
indignidade de ser preso.
Os registros de 1581 mostram que John Shakespeare continuou a não comparecer às
reuniões do Conselho, embora, nesse ano, não tenha feito transações financeiras. Só podemos
inferir que John e Mary se alegraram ao ver o filho mais velho voltar da longa estada no norte,
embora se surpreendessem, um pouco, com a animada conversa sobre teatro.
Em algum dia daquele mês de agosto de 1582, Shakespeare depois de percorrer dois
quilômetros a oeste, na trilha para a pequena aldeia de Shottery, o esperto e curioso jovem de
18 anos cometeu uma imprudência que iria repercutir no resto de sua vida. Anne Hathaway,
26 anos, comunicou aos amigos de seu falecido pai que estava grávida do jovem William
Shakespeare, filho do ex-prefeito de Stratford. Dois amigos de Hathaway foram bater na casa
da Henley Street, exigindo que o filho do dono se comportasse corretamente com a grávida,
filha do falecido amigo deles. Assim, Shakespeare e Hathaway se casaram; no dia 26 de maio
de 1583, domingo da Santíssima Trindade, o reverendo Henry Heicroft batizou a filha de
William e Anne Shakespeare (casados há seis meses), que recebeu o nome de Susanna, pouco
comum e ostensivamente puritano.
Aos 19 anos, ainda sem emprego fixo, William teria levado a esposa para morar com
os pais dele, na espaçosa casa de duas frentes, na Henley Street, já que o casal não tinha
condições de residência própria, pois o dote de Anne, em dinheiro, era pequeno. Dois anos
depois, Anne teve filhos gêmeos, que receberam o nome de Hamnet e Judith e, com mais de
21 anos de idade, Shakespeare ainda morava com seus pais. Entretanto, já tinha sentido o
gosto do mundo, fora dos limites de Stratford, e ouvido as histórias que os viajantes contavam
nas tabernas sobre as atrações cosmopolitas de Londres, então, provavelmente aos 23 anos de
idade, Shakespeare partiu, com frutíferos sonhos e forte ambição para Londres, no ano de
1587.
2.6 Londres
Gomes (2007) afirma que em Londres, a vida era muito cosmopolita: viviam,
aproximadamente, 200 mil pessoas – apertadas numa confusão de passagens e alamedas –
colorida por inúmeros refugiados de perseguições religiosas em toda a Europa. A maioria
morava em cortiços miseráveis, cheios de lixo, em ruas inundadas de excremento e urina,
propícios para a proliferação de ratos e de seu parasita letal, a pulga, transmissora da peste
bubônica. De acordo com Gomes (2007), sem sistema de esgotos, dizia-se que o fedor de
Londres podia ser sentido a 30 quilômetros.
Os surtos regulares de peste, na capital, teriam papel importante na obra de
Shakespeare, assim como os fatos que ocorriam em sua vida e o catolicismo da época.
Lembremos que o acontecimento mais importante de 1587 foi a execução de Mary Stuart,
rainha da Escócia, pouco antes de Shakespeare chegar à capital. O país estava prestes a entrar
em guerra com a Espanha e, um ano depois, os ingleses derrotaram a invencível Armada
espanhola do rei Filipe II, como já conferimos no capítulo anterior.
Antes de Shakespeare chegar a Londres, o jovem de mais destaque era Christopher
(Kit) Marlowe, nascido no mesmo ano que William, filho de um sapateiro de Canterbury, e
que conseguiu entrar para o Corpus Christi College, em Cambridge. Quando Shakespeare
chegou a Londres, a peça Tarmelão, de Marlowe, estava em cartaz e, nos cinco anos
seguintes, surgiriam Dr. Fausto, o Judeu de Malta e Eduardo II – até 1593, quando Marlowe
faleceu violenta e prematuramente.
Havia rapazes menos talentosos, lutando para aparecer – como Robert Greene,
Thomas Nashe, George Peele, Thomas Lodge, John Lily; eram diplomados por Oxford e
Cambridge e abriam caminho juntos, com peças de boa bilheteria, que produziam com a
mesma rapidez com que as trupes conseguiam encená-las, e competiam para ver quem
menosprezava mais, zombando de outros colegas.
Para Gomes (2007), Marlowe era um caso à parte: rapaz de talento, elegante e educado
– foi admirado, imitado e, quando morreu, foi pranteado por Shakespeare; mantinha distância
das rixas teatrais, pois era espião do ministro da rainha, Sir Francis Walsingham, enquanto os
demais “sábios da Universidade” orgulhavam-se de sua poesia rebuscada e erudita e dos
panfletos polêmicos, dedicando-se a escrever peças apenas como uma forma nova e fácil de
ganhar dinheiro.
Shakespeare estava sem emprego e buscava alguma forma de se sustentar em Londres
sozinho, com algumas libras no bolso e muitos planos na cabeça; em breve, o dinheiro
terminou, dissipado nas tavernas, nas estalagens e nos teatros. Nessa perspectiva, era preciso,
urgentemente, encontrar um emprego, de preferência, em contato com gente do palco, que ele
já admirava com fervor.
Não deve ter sido fácil para a família, pois a maioria dos habitantes da comunidade era
protestante, e a ala puritana considerava o Teatro como origem de todos os vícios, portanto, a
reputação de quem abraçava o Teatro era péssima e os ganhos eram piores ainda. Para quem
iniciava numa companhia, recebia pouco mais que um pedreiro e desempenhava os mais
variados trabalhos, como cobradores de bilhetes, camareiros, artesãos, ponto, guardadores de
cavalos e carruagens, corneteiros etc.
Conforme esclarece Gomes (2007), segundo um biógrafo do início do século XVIII,
ele “foi recebido na companhia, primeiro num ofício bem humilde, mas logo se destacou por
seu admirável humor, que o levou naturalmente para o palco, se não como grande ator, como
excelente autor”. Outro biógrafo lembrou, em suas memórias, publicadas no século XVI, após
a morte de Shakespeare, que ele “começou no teatro em 1573, como serviçal”. Mas fazendo o
quê exatamente? Referências posteriores mostram o futuro dramaturgo como “rude
cavalariço”, parecendo confirmar a curiosa tradição de que, em seu primeiro emprego,
Shakespeare dividia-se em cuidar dos cavalos dos espectadores, representar e ser um faz-tudo
nos bastidores. Segundo Rowe, o primeiro biógrafo, Shakespeare “entrou no teatro como
ponto, encarregado de avisar aos atores a hora de entrar em cena, sempre que a peça assim o
exigia”.
A função de ponto seria um começo oportuno, inclusive nos ensaios, quando
Shakespeare pôde ter sido solicitado a tomar o lugar de atores, conseguindo mostrar seu
talento dramático; em pouco tempo, já interpretava papéis secundários e até substituía atores
em papéis mais importantes. Um dramaturgo que podia subir ao palco, num eventual papel
secundário, era uma aquisição útil para qualquer trupe; para Shakespeare, fazer parte da
companhia teatral da rainha era o perfeito começo de carreira uma vez que, com o elenco mais
importante da época, sempre era solicitada a se apresentar na corte.
Devido a suas aparentes limitações como ator, era natural, então, que experimentasse
escrever para o teatro; sem demora, Shakespeare começou a escrever as peças históricas –
fenômeno de bilheteria no momento – e foi, com um ciclo histórico sem precedentes, que
Shakespeare mostrou aos companheiros que era melhor escritor do que ator.
2.7 Amizades e invejas
Quando os teatros reabriram em 1592, Shakespeare tornou-se mais conhecido como
dramaturgo e exatamente no momento em que desfrutava o sucesso de seu primeiro poema
narrativo importante. Isso tudo graças ao insulto, feito no leito de morte, de um escritor rival,
cansado e desgastado, pobre e bêbado chegando ao final das forças e da vida. De acordo com
Halliday (1990), o satírico Robert Greene, no texto Um Tostão de Sabedoria Comprado Com
um Milhão de arrependimento, criticou duramente um ator que atuava no teatro londrino “há
sete anos” , entre outras coisas, de se apaixonar pela própria voz, que “troveja horrivelmente”
no palco. O alvo do ódio de Greene era, sem dúvida, o ator que virou dramaturgo que, no
mesmo documento, ele apelidou de Shake-scene (Sacode-cena, brincadeira usando o verbo to
shake). Assim, Greene legou à posteridade a primeira menção da presença de Shakespeare em
Londres como dramaturgo.
Conforme Halliday (1990), de todos os contemporâneos da Londres literária, nenhum
tinha mais inveja da precocidade do jovem Shakespeare do que Robert Greene, o mais boêmio
dos escritores educados em Universidades. Greene, autor de cinco peças, além de inúmeros
poemas e panfletos, ele era apenas quatro anos mais velho que o novo e pouco instruído
integrante da cena teatral. Em setembro de 1592, abandonado pelos amigos-atores que mais
uma vez saíram da cidade por causa da peste, Greene estava morrendo de sífilis, na mais
completa pobreza. Tinta trinta e poucos anos, estava separado da sofredora esposa Dorotéia e
morava num casebre sujo e cheio de ratos com a amante louca e resmungona.
De acordo com Heliodora (1978), em seus últimos dias de vida, Greene ficou
obcecado com os atores ausentes da cidade – considerados ambiciosos parasitas, ávidos por
roteiros, gente que grudava nos dramaturgos e sugava o sangue desses eruditos ingênuos,
recebendo recompensas desprezíveis. Greene alertou seus amigos dramaturgos
(principalmente Nashe, Peele e Marlowe) para não “confiarem nos atores”. Um desses atores
tinha a pretensão de se apresentar como escritor e recebeu uma acusação sarcástica de Greene:
“Há um corvo arrogante e embelezado por nossas penas que, com seu coração “de tigre sob a
pele de ator”, julga ser capaz de fazer um verso branco como o melhor de vocês e, sendo um
grande João faz-tudo, se considera o único Sacode-cena do país” (HONAN, 2001, p. 205).
Obviamente, “o corvo arrogante” era Shakespeare. E “o coração de tigre sob a pele de
ator” era um eco irônico de um famoso verso de a verdadeira tragédia, ou melhor, a última
parte da trilogia Henrique VI. “Greene ouvira com muita atenção as obras de seu rival, já que
nenhuma das partes de Henrique VI estava publicada na época. Antes de terminar, faz ainda
uma insinuação final de que Shakespeare recusara-se impiedosamente a emprestar dinheiro”
(HONAN, 2001, p. 206).
De acordo com Honan (2001), o panfleto de Greene revela que Shakespeare mantinha-
se distante de outros poetas, misturava-se com um grupo de atores, como o dos atores de
Burbage, e escrevia scripts capazes de rivalizar com os de homens socialmente superiores a
ele. Com afirma Honan (2001), em suma, as afirmações ali contidas não são absurdas.
Shakespeare talvez evitasse os Gênios e outros grupos em Shoreditch.
Fica claro que os “sabidos da Universidade”, Greene, Nashe e outros estavam bem
atentos ao “corvo arrogante”. Exatamente quando todos precisavam, Shakespeare tinha
conseguido um espaço no lucrativo afeto do homem mais indicado para oferecer dinheiro,
aqueles que todos queriam como mecenas: Henry Wriothesley, terceiro conde de
Southampton. Shakespeare iniciou uma relação pessoal e profissional muito intensa com o
jovem conde.
Aos 28 anos, após pelo menos cinco anos em Londres, Shakespeare gozava de bom
conceito como ator e dramaturgo. No outono de 1592, quando a peste pareceu amainar, seus
colegas atores voltaram para a capital, mas o frio do inverno trouxe apenas um alívio
temporário e os teatros tornaram a fechar em 2 de fevereiro. Continuaram fechados durante
quase todo o ano de 1593, enquanto mais de 11 mil pessoas morriam – no auge da epidemia,
ocorriam mil mortes por semana. Após uma breve retomada no inverno, os teatros fecham em
fevereiro de 1594, reabriram em abril e fecharam outra vez no verão. Esse foi o mais longo
fechamento até então, ameaçando a frágil estabilidade da maioria das trupes, que se
desfizeram com a dificuldades das excursões pelo interior. Quando a peste finalmente diminui
de intensidade, a maioria dos atores teve de começar tudo outra vez.
De acordo com Honan (2001), Shakespeare escolheu ficar em Londres. Com os teatros
sem data para reabrir, ele despediu-se dos colegas atores sem saber quando se reencontrariam
e ficou na capital com a intenção expressa de fazer nome como poeta. Apesar do risco de ter a
sua promissora carreira encerrada com a peste, mas, como tinha resistido a ela na infância,
suportaria esse “mal” e dedicaria a compor belos poemas, alguns dedicados ao belo e jovem
conde de Southampton.
Shakespeare, então escreveu o poema Vênus e Adonis, fazendo no prefácio uma
extravagante dedicatória para Southampton. O livro foi impresso por Richard Field, um amigo
e contemporâneo de Stratford, que teve o bom senso de casar-se com a viúva de seu patrão,
um francês chamado Thomas Vautrollier, e assim herdar a tipografia dele. À medida que a
parceria profissional crescia, surgiram boatos de que Shakespeare exercia as funções do
amigo “entre os lençóis”, certamente quando Field visitava a família em Stratford e transmitia
as saudações de William para a esposa e os filhos. Mas, parece que os dois amigos tiveram
uma relação unicamente profissional e muito bem-sucedida; o poema Vênus e Adonis teve
nove reimpressões durante a vida do autor, o que, em tempos elisabetanos, correspondia a um
campeão de vendas. Vinte anos após a morte de Shakespeare, ainda teve mais seis impressões.
Shakespeare temia perder o mecenato de Southampton para Marlowe, o rival que
estudou em Universidade, único contemporâneo cujo trabalho respeitava? Se temia, o
problema parece ter sido resolvido durante 1594, com a publicação de seu segundo longo
poema narrativo, A violação de Lucrécia (The rape of Lucrece). De acordo com Honan
(2001), essa obra entrou para o Registro dos Editores e Livreiros em 9 de maio de 1594, treze
meses depois de Vênus e Adonis, e é o trabalho que Shakespeare prometera a Southampton.
Enquanto escrevia A Violação de Lucrécia, a peste assolava as ruas de Londres e ele
provavelmente mudou-se para o confortável “cordão de isolamento sanitário” da mansão de
Southampton em Holborn, endereço do conde em Londres. Ou talvez estivesse na residência
campestre do conde, em Tilchfield, Hampshire. Nesses dois anos em que a cidade foi atacada
pela peste, ele trabalhou em mais duas ou talvez três comédias e continuou a compor sonetos
para seu deleite, para o de seu mecenas e de amigos mais próximos.
Conforme Honan (2001), Shakespeare dedica vinte e oito sonetos a uma mulher de
pele morena, cuja identidade intrigou quatro séculos de eruditos. Inúmeras suposições de que
tratava-se de Lucy Negro, conhecida prostituta de Clerkenwell, de tez escura, que não deve
ser confundida com Lucy Morgan, dama de companhia da rainha, que, mais tarde, foi dona de
bordel. Há outra suspeita de que fosse Penelope Rich, nascida Lady Penelope Devereux, irmã
do conde de Essex ou Mary Fitton, dama de honra da rainha, que engravidou do conde de
Pembroke. Pois bem, Shakespeare deixou mais um enigma, tão elusivo quanto alusivo, a
ponto de todas as tentativas de resolvê-lo só conseguirem aviltar a rara poesia que o originou.
Seja como for, a Dama Morena pode ter sido a responsável pelos males da gonorréia
que Shakespeare adquiriu em Londres. E pior que isso, em 3 de setembro de 1594, numa
sátira anônima, Willobie bis Avisa ou O Verdadeiro Retrato de uma Donzela Modesta e uma
Casta e fiel esposa, Shakespeare foi retratado como um poeta com gonorréia. O mesmo foi
dito de seu mecenas, Southampton, que já havia ligado perigosamente seu nome ao do agitado
Essex. E como afirma Honan (2001), Shakespeare perdeu o patrocinador em virtude dessas
aventuras e extravagâncias sexuais na mansão de Southampton.
A peste que atingia Londres diminui de intensidade e os teatros reabriram. William,
teria que buscar outra forma de conseguir dinheiro.
2.8 Os Homens do Lorde Camerlengo
Conforme alguns autores, a sorte batia à porta de Shakespeare. Com os teatros
reabertos, Shakespeare e um grupo de atores, ficaram sob a proteção de Henry Carey,
primeiro barão de Hunsdon, Lorde Carmelengo para a rainha, e seu amigo mais íntimo. Com
Richard Burbage na direção, mais os amigos William Shakespeare e Will Kemp, a nova trupe
assumiu orgulhosamente o nome de Homens do Lorde Camerlengo.
Shakespeare ficou satisfeito: voltou a ter um trabalho rendoso, sendo forçado a
abandonar seus anseios de imortalidade através de poesia narrativa para voltar a produzir
novas peças. Exatamente quando deixou de receber uma renda de Southampton, ele teve a
sorte de ser convidado por Burbage a integrar, junto com Kemp, a direção daquela que logo se
tornaria a mais importante companhia da época, e que acabaria sob patrocínio real. De acordo
com Gomes (2007), Shakespeare tornou-se acionista dos Homens do Lorde Camerlengo.
Como ator, diretor, acionista, e, sobretudo, “simples poeta” da companhia, aos 30 anos,
William Shakespeare já era, nas palavras de uma autoridade do século XX, “o mais completo
homem de teatro de seu tempo”.
Shakespeare voltaria ao passado da história da Inglaterra para dar aos colegas uma
bilheteria melhor.
Ao todo, Shakespeare escreveu nove dramas históricos ingleses e parte de outro,
Henrique VIII, três dramas romanos, além de Tróilo e Créssida e MacBeth. “O estudo dos
acontecimentos do passado era parte importante de seus contínuos esforços para compreender
seu próprio mundo” (KIERNAN, 1999, p. 62).
Uma Inglaterra que se via, frequentemente, em guerras no final do século XVI podia assegurar seus direitos e suas reivindicações de proteção divina pela memória de uma vitória como a de Agincourt. Nos quase dois séculos que se seguiram, poucos foram os triunfos da Inglaterra no estrangeiro. Não havia meio mais eficiente para insuflar o ardor patriótico que o teatro. Um governo desejoso de ser identificado com a defesa de interesses nacionais só receberia com bons olhos a ajuda que os atores lhe pudessem dar, embora fosse necessário assegurar que suas trombetas sempre tocassem as notas certas. De sua parte, os teatros tinham muitos inimigos próprios, magistrados graves e irascíveis pregadores intolerantes; eles não poderiam ter a melhor defesa que a de estar auxiliando a forjar a unidade patriótica. (KIERNAN, 1999, p. 63).
O bardo dramaturgo cobriu os anos do século XV, que viram as últimas fases da
Guerra dos Cem Anos, alternando-se à Guerra das Duas Rosas, que terminou com a ascensão
do avô de Elisabeth. O material usado vinha de uma variedade de fontes, sendo a principal
delas, as Chronicles de Holinshed, publicadas pela primeira vez, em 1577, e ampliadas em
1587. No que diz respeito à peça em análise, Ricardo II, é inevitável a remissão para as
“Crônicas” da História da Inglaterra de Raphael Holinshed. Evidentemente, que Shakespeare
poderá ter assimilado outras leituras como as crônicas de Edward Hall – A União das Duas
Nobres e Ilustres Famílias de Lancaster e York, e as duas crônicas francesas: uma escrita em
verso por Jean Créton e outra, de autor anônimo.
A primeira sequência de peças alcança o clímax em Ricardo III, quando Shakespeare
produz um drama histórico que se assemelha a uma tragédia. A “chronicle play” transforma-
se em tragédia histórica, a “farsa grosseira” transforma-se em comédias de equívocos, a
“revenge play” transforma-se em grande tragédia, portanto, a primeira tetralogia é formada
pela trilogia Henrique VI, finalizando em Ricardo III. A segunda tetralogia é formada por
Ricardo II, as duas partes de Henrique IV consagrando o drama histórico em Henrique V.
Cada uma das peças remete às suas antecessoras; portanto, há uma unidade na sequência, tendo sido planejada de antemão ou não. Como nos diz o epílogo de Henrique V, a estória termina no ponto em que a sequência anterior tinha começado. (HELIODORA, 1999, p. 71).
Vejamos, então, uma breve análise dos Dramas Históricos por ordem cronológica:
Henrique VI – Parte 1 (1590)
Nessa peça, encontramos Shakespeare ainda um jovial aprendiz de seu ofício: a
construção é mais livre e um ingrediente indispensável na trama é o tema da vingança, tão
apreciado pelo público elisabetano.
Essa parte 1 refere-se a Guerra dos Cem anos: entre ingleses e franceses. Narra a
crescente resistência dos franceses à ocupação inglesa e os acontecimentos políticos na corte
inglesa.
A protagonista da peça é Joana D´Arc; de fato, parece um grande tributo a ela e
também à resistência francesa. Joana é uma líder, ativa e dotada de inúmeras e elevadas
qualidades que a tornam uma das grandes heroínas das peças históricas de Shakespeare.
A perda da França leva a Inglaterra à guerra civil e esse é o tema da segunda parte de
Henrique VI.
Henrique VI – Parte 2 (c. 1590)
Na segunda parte de Henrique VI, Shakespeare parece transmitir a seguinte ideia:
somente os mais cruéis sobrevivem.
Nisso, o rei Henrique VI é um bom homem mas que fracassa na tarefa precípua que é
governar; fica nítido que Shakespeare insinua que apenas um governante cruel, possa ser
eficiente numa época em que grupos estão esfomeados pelo poder.
É interessante que o rei Henrique VI deseja livrar-se do trono para o qual nasceu e, por
sua vez, o duque de York, está desejoso de tomá-lo. “Shakespeare tinha algum tipo de
fascínio por tais personagens e seu desejo nietzschiano de poder” (KIERNAN, 1999, p. 70).
De acordo com Kiernan (1999) e Bloom (2000), as cenas mais empolgantes da Parte 2
são aquelas que tratam de Jack Cade e de sua rebelião: há uma mistura do sério, cômico e
grotesco. As falas de Cade são paradoxais, jocosas, envolvendo sensatez e insensatez ao
mesmo tempo, e o seu fim trágico revela a brutalidade e a insensibilidade social da nobreza do
período.
Henrique VI – Parte 3 (c. 1591)
Na Parte 3, Kiernan (1999) afirma que Shakespeare, nessa peça, apresenta um sem-
número de versos sem inspiração e há uma busca de construir personagens mais sólidos, em
que o assassinato é parte constante e normal dessa trama. “Sangue clama por mais sangue, e
Shakespeare tem de exagerar na agonia, para manter o interesse” (KIERNAN, 1999, p. 74).
Em determinados momentos, o bardo protesta contra a desumanidade do homem
contra o próprio homem.
Shakespeare mostra o rei Henrique VI dominado por sua esposa e seus comparsas. Ele
é morto, no final da peça, por Ricardo Crookback. O irmão deste, Eduardo IV, torna-se rei;
libertino e egoísta, demonstra como a monarquia, dessa época, está em decadência.
Ricardo, ao final da peça, trama maldades, e Shakespeare constrói, enfim, seu grande
personagem e vilão.
Ricardo III (1591-1592)
A última peça da tetralogia da Guerra das Duas Rosas é a parte mais criativa e o
personagem Ricardo III é um dos maiores vilões das peças shakespearianas, de acordo com
Bloom (2000).
O drama histórico tem muitas metáforas teatrais, trata de questões da moralidade na
política.
Ricardo é um protagonista completo, um mestre das palavras, e o solilóquio inicial da
peça é o mais longo de todas. A frase “Meu reino por um cavalo” é muito conhecida e
popular, e é umas das peças de Shakespeare mais encenadas até hoje.
Rei João (1590-1591)
De acordo com Bloom (2000), a peça é pobremente construída e parece que não
passou por uma revisão cuidadosa, pois a segunda metade não se relaciona à primeira; com
personagens confusos e incoerentes, a peça está repleta de elementos discordantes.
Os temas permanentes de Shakespeare – guerra, monarquia, classes sociais, mulheres,
influenciando os homens – estão presentes e são tratados com uma liberdade e com seus lados
positivos e negativos em perspectiva: “com um olhar agudo e suas contradições, um presente
de valor inestimável de um escritor imaginativo e historiador (KIERNAN, 1999, p. 80).
Ricardo II (1595)
O rei que se tornou o símbolo da Roda da Fortuna e cuja deposição é a origem da crise
desencadeada em Bosworth.
Conforme muitos autores, a peça Ricardo II é uma dos grandes dramas históricos; o
personagem Ricardo II é complexo, representa o rei do Teatro experimental, limita-se a não
ser mais do que “rei das suas dores”, assiste com um “fatalismo mórbido ao grande cerimonial
de sua dessacralização ritual, reduzindo a embriagar-se com as metáforas refinadas de seu
delírio verbal” (BOQUET, 1969, p. 27).
Henrique IV – Parte 1 (1596-1597)
De acordo com alguns autores, essa peça é um dos formidáveis dramas históricos
escritos por Shakespeare. Henrique IV é, em grande parte, em prosa, em linguagem coloquial;
apresenta um rei, sofrendo de má consciência e as consequências de sua usurpação. O rei
Henrique IV ainda sofre com a conduta inquietante do Príncipe Hal a pressagiar um futuro
conturbado.
Dois personagens ganham destaque na trama: Hotspur e Falstaff. “Eles estão séculos
distantes em termos de perspectiva, mas, de várias maneiras, são ambos homens do passado,
descendentes de origens feudais comuns” (KIERNAN, 1999, p. 88).
Hotspur é um retrato complexo, oriundo de um tempo de mudanças, como conseguem
ser as criações mais originais de Shakespeare; é homem da Renascença e também pertence à
fronteira turbulenta do desejo do sucesso e da impossibilidade de consegui-lo.
Falstaff, soldado fanfarrão, bêbado, libertino, transborda de uma vitalidade
complacente a todas as fraquezas da carne, mas bastante lúcido para querer sobreviver a uma
guerra de causas demasiado suspeitas para que honra e glória não sejam outra coisa, senão
ilusões infantis de valentes desmiolados, ou engano destituído de sentido.
Henrique IV – Parte 2 (c. 1597-1598)
A Parte 2 é um epílogo, cujo objetivo principal é gratificar o público com outro
capítulo sobre Falstaff; essa peça tem menos unidade do que a Parte 1.
Shakespeare utiliza-se de vários recursos para as quais não encontrou lugar antes e,
apesar disso, as cenas de humor são brilhantes, e as sérias, cheias de perspicácia política.
Henrique V (1599)
A tetralogia acaba pela glorificação de um reino nacional em expansão. Um drama
épico e heróico no qual Henrique é um verdadeiro herói capaz de derrotar a França apenas
com as palavras; a guerra acaba por lhe revelar as servidões que pesam sobre o homem de
Estado: precisa mandar executar ladrões e conspiradores, enforcar prisioneiros, que poderiam
retomar o combate, ameaçar de pilhagem, de violação e de assassinato para obter a rendição
de uma cidade.
A partir da morte da rainha Elisabeth, Shakespeare abordará outros temas políticos no
quadro das peças romanas, das tragédias e dos romances.
2.9 A fase final
Shakespeare soube aproveitar tudo o que Londres oferecia para um autor de sua época.
Soube dar utilidade a tudo o que aprendera na escola e, provavelmente, o contato com os
autores universitários proporcionou-lhe a leitura de tudo o que era editado, principalmente, as
crônicas, tão em moda na época. Conforme Kiernan (1999), em 1600, ele já era o autor mais
popular de todos; em 1601, sofreu o primeiro golpe de sua estada em Londres: seu amigo e
protetor, o conde Essex, foi executado por haver conspirado contra a rainha. Shakespeare
imergiu, então, em profunda angústia.
E, nessa fase sombria, de meditações sobre a fragilidade da existência humana,
escreveu suas mais belas tragédias: Hamlet, Othello, Rei Lear, Macbeth, Troilo e Cressida.
Dois anos, após a execução do Conde de Essex, morreu a rainha Elisabeth; sucedeu-a no trono
Jaime I, um apaixonado do teatro. Por seu decreto, a companhia de Burbage e a de
Shakespeare se fundiram, sob o nome King`s Men: os Homens do Rei. Deixou o palco por
volta de 1608 e se retirou para Stratford, com algumas peças ainda por escrever. Em 1610, se
desligou do Globe Theater – do qual era sócio desde sua fundação, em 1599. Até 1613,
Shakespeare escreveu, ainda, alguns dramas históricos e comédias: As alegres Comadres de
Windsor, Timão de Atenas, Cimbelino, Contos de Inverno, Tempestade. O alarido da corte, o
peso da idade, o fervor das aventuras já fatigavam William Shakespeare.
Em princípios de 1616, o dramaturgo, no leito, com um pequeno mal–estar, recebeu a
visita de dois velhos amigos: Ben Jonson (1572-1637) e Michael Drayton (1563-1631); a
conversa foi animada por muitos risos, muitas novidades e muitos tragos de vinho.
Em 23 de abril de 1616, morre Shakespeare, com a idade de 52 anos, deixando
expresso o seu desejo de ser enterrado na capela Holy Trinity, em Stratford. Almejando
mudar os costumes da época, no qual os ossos dos ali enterrados eram removidos das tumbas,
Shakespeare pediu que colocasse este seu último poema na tumba: “Bom amigo, pelo amor de
Jesus, abstenha-se de cavar a poeira aqui encerrada. Abençoado seja o homem que poupar
estas pedras, e maldito seja aquele que remover os meus ossos” (RAMOS, 1976, p. 12).
Ao seu pedido de ser enterrado na Igreja de Holy Trinity, dois dias depois de sua
morte, seu corpo foi levado para o coro da Igreja; é provável que a lápide de Shakespeare
tenha sido alterada posteriormente.
3 Vida e Morte do Rei Ricardo II
3.1 Breve Histórico
Ricardo II Plantageneta, nascido no dia 6 de janeiro de 1367, era filho de Eduardo (o
Príncipe Negro), Príncipe de Gales e de Joana de Kent e tornou-se herdeiro do trono, em
1376, depois da morte prematura do pai e do irmão mais velho; sucedeu ao avô, Eduardo III
(1327-1377), mas acabou deposto pelo primo Henrique Bolingbroke, que funda a dinastia
Lancaster.
Segundo Woadward (1964), na sua ascensão ao trono, Ricardo II tinha apenas dez
anos e, como tal, não poderia governar; então, a regência foi assegurada por um conjunto de
homens fortes – os Lordes Apelantes – que incluíam o tio João de Gaunt, duque de Lancaster
e pai de Henrique.
Em 1381, Ricardo II começou a participar das decisões políticas e, demonstrando
habilidade, negociou, pessoalmente, com os líderes da revolta popular. As suas ações, a forma
como conduziu as negociações e derrotou os insurretos, prometiam um rei competente, hábil e
ágil nas negociações e sensível às demandas sociais. Infelizmente, isso acabou por não se
provar; ele se mostrou um rei “ingênuo”, fraco, passivo, influenciável, manipulável e, em
algumas circunstâncias, até tirânico.
Em 1382, Ricardo casou-se com Ana da Boêmia, filha de Carlos IV, Imperador do
Sacro-Império, mas essa união não produziu nenhuma descendência. Depois da morte de Ana,
Ricardo II casou-se, pela segunda vez, em 1394, com Isabel de Valois, filha do rei Carlos VI
de França; novamente, a união não gerou filhos, pois Isabel era criança quando Ricardo foi
deposto.
No fim do seu reinado, Ricardo II entrou em disputa aberta contra seu primo Henrique
Bolingbroke. Quando o tio, João de Gaunt, um dos mais fortes Lordes Apelantes morreu em
1399, confiscou, para a coroa, todos os seus bens e, o primo Bolingbroke, que estava no
exílio, foi considerado deserdado. Esta decisão, forçosamente, valeu-lhe o ódio e a insurreição
de Henrique que invadiu a Inglaterra; assim, Ricardo II foi deposto, no mesmo ano, e foi
assassinado no Castelo de Pontemfract, onde se encontrava, sob prisão, numa data incerta de
fevereiro de 1400.
A vida de Ricardo II foi representada, nos palcos, por meio da peça de Willliam
Shakespeare, drama histórico este que será discutido na próxima parte do presente estudo.
Nessa perspectiva, com o objetivo de entender as disputas, conflitos, tensões e a busca
de legalidade e legitimidade que envolvem Ricardo II – personagem histórico – traçamos um
breve panorama de como foi a vida e a atuação política do último rei Plantageneta.
3.2 A revolta social e o surgimento do rei Ricardo II
Conforme afirma Churchill (1960), João de Gaunt, duque de Lancaster, irmão mais
jovem do Príncipe Negro, tio do rei, era chefe do Conselho de Regência e governava o país; a
sociedade no campo era dividida, basicamente, entre o senhor feudal – o grande proprietário
de terras – e os servos, que trabalhavam nelas em troca de um pequeno pedaço para a sua
própria subsistência. Além de trabalhar no campo, o servo era obrigado a pagar taxas e
impostos altíssimos, até mesmo para estocar sua plantação e ter proteção contra a invasão de
outros povos, e, neste período, o impacto com a sombra da Peste Negra dominava o cenário,
engendrando nova fluidez social na sociedade inglesa.
Os homens aguardavam e tinham a sensação de inesperada promoção e alargamento
ao seu redor; enquanto isso, a comunidade, desestruturada, desorganizada, e muito reduzida
na sua força e ação coletiva, aglomerava-se entre cadáveres e o triunfo da Morte Negra que
pairava sobre mentes e almas atormentadas. Tendo morrido, repentinamente, quase um terço
da população européia, consequentemente, grande parte da terra deixou de ser cultivada, e os
sobreviventes voltaram seus arados para os solos mais ricos, colocando seus rebanhos nas
pastagens melhores.
Muitos proprietários de terras abandonaram os arados e cercaram, muitas vezes por
usurpação, as melhores pastagens; nessa época, quando adquirir riqueza parecia mais fácil e
tanto os preços como os lucros eram altos, a mão-de-obra disponível reduziu-se quase à
metade. As pequenas propriedades arrendadas estavam desertas e muitas senhorias
encontravam-se vazias de camponeses que serviam desde tempos imemoriais. Assim,
lavradores e outros trabalhadores tinham grande procura e eram requisitados de todos os lados
e, por sua vez, procuravam melhorar as condições ou, pelos menos, conservar seu padrão de
vida à altura dos preços em ascensão. Entretanto, seus senhores viam as coisas de maneira
diferente: repeliam, ferozmente, os pedidos de aumento de salários, revivendo antigas
pretensões de trabalho forçado ou vinculado. O maior de todos os proprietários da terra era a
Igreja que tentava reviver pretensões feudais obsoletas.
Esses fatores suscitaram o tumulto em toda a Inglaterra, afetando a vida da massa do
povo, de uma maneira que não se verificou outra vez na história inglesa e, essa desagradável
perspectiva coube a Ricardo II administrar e resolver, posto que o quadro se apresentasse
constituído por agitadores e arruaceiros, soldados arruinados, licenciados depois da guerra,
todos os quais conheciam o arco e sua capacidade de matar nobres, por mais importantes e
armados que fossem. Nesse ínterim, a pregação de idéias revolucionárias era ampla e uma
balada popular expressava a reação das massas: “Quando Adão labutava e Eva fiava. Quem
era então um cavalheiro?” (CHURCHILL, 1960, p. 323).
Conforme alguns autores, essa era uma questão delicada e embaraçosa para qualquer
época; a estrutura rígida e firmada pelo tempo da Inglaterra medieval tremia em seus
alicerces. Na Inglaterra, tudo avançava em direção à aterrorizadora rebelião de 1381,
ocasionada por um levante social, espontâneo e amplo, surgido em várias partes do país, pelas
mesmas causas, e unido pelos mesmos sentimentos. Que esse movimento foi consequência
direta da Morte Negra ficou provado pelo fato de a revolta ter sido mais feroz, exatamente
naqueles distritos de Kent e Midlands Orientais onde a média de mortalidade foi maior, e a
perturbação dos costumes mais violenta. Nesse sentido, era um grito de dor e de cólera por
parte de uma geração, arrancada da submissão pelas modificações em sua sorte, as quais
faziam nascer, ao mesmo tempo, nova esperança e nova injustiça.
Churchill (1960) acrescenta que, durante todo o verão de 1381, houve uma
fermentação geral: por baixo de tudo havia organização; agentes percorriam as aldeias da
Inglaterra central, em contato com uma “Grande Sociedade” que se dizia reunir em Londres.
Em maio, irrompeu a violência em Essex que foi iniciada por uma tentativa de fazer uma nova
e mais severa arrecadação da capitação, do que a arrecadada no ano anterior. Os elementos
turbulentos de Londres inflamaram-se e um bando, dirigido por um tal Thomas Faringdon,
marchou para juntar-se aos rebeldes. Walworth, o prefeito, enfrentava forte oposição
municipal, que tinha simpatia pelo levante e com ele se mantinha em contato. Em Kent,
depois de um ataque à Abadia de Lesnes, os camponeses marcharam através de Rochester e
Maidstone, queimando os registros senhoriais e tributários que encontravam em seu caminho.
Em Maidstone libertaram da prisão episcopal o agitador John Ball e receberam a adesão de
um aventureiro militar de valor e experiência de comando, Wat Tyler.
O Conselho real estava confuso e inativo e, em princípios de junho, o corpo principal
dos rebeldes oriundos de Essex e Kent avançou sobre Londres, ali encontrando apoio.
Churchill (1960) afirma que John Horn, um peixeiro, convidou-o entrar; o vereador,
encarregado da Ponte de Londres, nada fez para defendê-la, e Aldgate foi, traiçoeiramente,
aberta a um bando de desordeiros de Essex que, durante três dias, colocou a cidade em
confusão: estrangeiros foram assassinados, dois membros do Conselho, Simon Sudbury,
arcebispo de Canterbury e “Chancellor”, e Sir Robert Hales, tesoureiro, foram arrancados da
Torre e degolados em Tower Hill, além disso, o palácio de Savoy, de João de Gaunt, foi
incendiado e Lambbeth e Southwark foram saqueados.
Contudo, o corpo de cidadãos leais reuniu-se em torno do prefeito e, em Smithfield, o
jovem rei enfrentou os líderes rebeldes; entre os insurretos, parecia haver geral lealdade ao
soberano, já que as exigências dos rebeldes eram razoáveis: pediam a revogação dos estatutos
opressivos, a abolição da “villeinage” e a divisão das propriedades da Igreja. Enquanto
prosseguiam as negociações, Wat Tyler foi primeiro ferido pelo prefeito Walworth e, depois,
morto por um dos escudeiros do rei. Quando o líder rebelde caiu de seu cavalo, morto diante
dos olhos dos espectadores, o rei avançou, sozinho, em seu cavalo gritando: “Eu serei vosso
líder. Tereis de mim tudo quanto procurais. Segui-me apenas até os campos lá fora”
(CHURCHILL, 1960, p. 324). Todavia, apesar da comoção popular em torno das palavras do
jovem rei, os bandos sem chefe voltaram em desordem para suas casas e espalharam uma
vulgar ilegalidade por todos os seus condados; consequentemente, foram perseguidos e a
autoridade foi restabelecida.
Depois da morte de Tyler, a resistência das classes dominantes foi organizada: da
“Chancery foram enviadas cartas aos funcionários reais, ordenando o restabelecimento da
ordem, e juízes, sob as ordens do “Chief Justice” Tresilian, promoveram o rápido julgamento
dos insurretos. Conforme declara Churchill (1960), nos arquivos, não estão registrados mais
de cento e cinquenta execuções e a lei foi restaurada sob o império da lei. Mesmo nessa
furiosa reação da Autoridade do rei, nenhum homem foi enforcado a não ser depois de
julgamento do júri e, em janeiro de 1382, foi concedida uma anistia geral, sugerida pelo
Parlamento.
Durante gerações, as classes superiores viveram no temor de um levante popular e os
trabalhadores continuaram a organizar-se; o obstinado desejo de liberdade prática não foi
destruído na Inglaterra, e a situação e a disposição do povo apresentavam favorável contraste
em relação à exaustada passividade do camponês francês. “É a covardia e a falta de ânimo e
coragem”, escreveu Sir John Fortescue, eminente jurista do reinado de Henrique VI, “que
impedem os franceses de levantarem-se, e não a pobreza; coragem que nenhum homem
francês tem como o homem inglês” (CHURCHILL, 1960, p. 327).
Quanto ao rei Ricardo II, sua figura pública estava crescendo em popularidade; seus
vivos instintos e suas precoces aptidões haviam sido aguçados por tudo quanto vira e fizera.
Na crise da Revolta dos Camponeses, a responsabilidade por muitas coisas recaíra sobre ele e,
por sua ação pessoal, havia salvado a situação numa memorável ocasião, pois foram a Corte
do rei e os juízes reais que restabeleceram a ordem quando a classe feudal perdera a calma.
Todavia, o rei consentiu em uma prolongada tutela: João de Gaunt, vice-rei da Aquitânia,
deixou o reino para cuidar de seus negócios no estrangeiro, entre os quais, incluíam-se
pretensões pessoais sobre o reino de Castela, então, deixou seu filho, Henrique Bolingbroke,
um jovem vigoroso e capaz, cuidando de suas propriedades e seus interesses na Inglaterra.
3.3 Os lordes apelantes e a humilhação do rei
Não foi senão aos vinte anos que Ricardo decidiu tornar-se senhor absoluto de seu
Conselho e, particularmente, escapar ao controle de seus tios e nenhum rei fora tratado de tal
maneira antes dele, uma vez que seu avô, Eduardo III (1327-1377) teve a obediência de seus
súditos quando tinha dezoito anos e ele, Ricardo, aos quatorze anos, já desempenhara papéis
decisivos. Sua casa real e a Corte que o cercava estavam, profundamente, interessadas em que
ele assumisse o poder; esse círculo incluía os cérebros do governo e o alto Serviço Civil. Seus
chefes eram o “Chanceler”, Michael de la Pole, o “Ministro da Justiça” Tresilian e Alexander
Neville, arcebispo de York. Por trás deles Simon Burley, tutor e íntimo de Ricardo, era
provavelmente o orientador.
Churchill (1960) ressalta que um grupo de nobres, mais jovens, arriscou sua sorte com
a Corte; seu chefe era Robert de Vere, conde de Oxford, que desempenhou, então, papel
semelhante ao de Galveston, sob Eduardo II. O rei, fonte de honrarias, distribuía favores entre
seus adeptos e de Vere foi logo feito duque da Irlanda; isso representava, claramente, um
desafio aos magnatas do Conselho, já que a Irlanda era um reservatório de homens e
suprimentos, fora do controle do Parlamento e da nobreza, e que poderia ser usado para o
domínio da Inglaterra.
A acumulação de cargos, na casa real e no governo, pela camarilha que cercava o rei,
afrontava o partido feudal e, até certo ponto, o espírito nacional; como, frequentemente,
ocorre, a oposição encontrou, nos negócios estrangeiros, um veículo para ataque: a falta de
dinheiro, o temor de pedi-lo e, acima de tudo, a ausência absoluta de liderança militar haviam
levado a Corte a rumos pacíficos, então, a nobreza uniu-se ao Parlamento para criticar o
pacífico “Chanceler” Pole e o opulento hedonismo da Corte.
Na opinião do Conselho, devia ser travada guerra contra a França e, com base nesse
tema, foi organizada, em 1386, uma frente contra a Coroa; o Parlamento foi levado a nomear
uma comissão de cinco ministros e nove lordes, da qual os antigos Conselheiros da Regência
eram os chefes. A Corte curvou-se diante do Conselho por meio do impedimento de Pole,
além disso, houve um expurgo no Serviço Civil, considerado como fonte tanto dos erros do
rei como de sua força e, até mesmo o poeta Geoffrey Chaucer44, perdeu seus dois cargos na
Alfândega; o rei fora forçado a demitir seus homens de confiança e, pesaroso, retirou-se de
Londres.
Conforme Churchill (1960), o rei sentia-se obrigado a deter essa “ingerência” do
Conselho e procurou reunir seus aliados: na Gales do Norte, reuniu-se com Robert de Vere,
duque da Irlanda, em York, com o arcebispo Neville e, em Nottingham, com o Ministro da
Justiça Tresilian. Recrutas irlandeses, lanceiros galenses e, sobretudo, arqueiros de seu
próprio condado Cheshire estavam-se concentrando para formar um exército. Com essa base
de força, Tresilian e quatro outros juízes reais proclamaram que a pressão exercida sobre o rei
pelos Lordes Apelantes, como passaram então a ser chamados, e pelo Parlamento era
contrária às leis e à Constituição da Inglaterra. Esse pronunciamento, cuja solidez legal é
indiscutível, foi seguido por uma forte e sangrenta represália.
O tio do rei, Gloucester, juntamente com outros chefes da oligarquia baronial,
denunciaram o Ministro da Justiça Tresilian, e aqueles que com ele agiram, inclusive de Vere
e outros conselheiros reais, como traidores do reino. O rei – que não tinha senão vinte anos –
baseara-se, muito bruscamente, em sua autoridade real. Os lordes do Conselho ainda eram
capazes de obter o apoio do Parlamento, além disso, recorreram às armas. Gloucester, com
uma força armada, aproximou-se de Londres.
Segundo Churchill (1960), Ricardo, chegando lá primeiro, foi aplaudido pelo povo,
ostentando suas cores vermelha e branca, e mostrava-se apegado e orgulhoso da sua pessoa;
confiava na vitória, pois Deus estaria ao lado dele, já que acreditava representar a vontade
divina na Terra. Mal sabia da força do exército baronial que avançava rapidamente.
Churchill (1960) assevera que em Westminster Hall, os três principais Lordes
Apelantes: Gloucester, Arundel e Warwick, deixando do lado de fora uma escolta de trezentos
cavaleiros, forçaram o rei à submissão. Nessa situação, Ricardo não pôde fazer mais do que
assegurar a fuga de seus adeptos. De Vere retirou-se para Chester e organizou uma força
armada para defender os direitos reais; com ela, em dezembro de 1387, marchou em direção a
Londres. Agora, porém, surgiam em armas os Lordes Apelantes e também Henrique, filho de
Gaunt. Em Bradcot Bridge, em Oxfordshire, Henrique e os Apelantes derrotaram e liquidaram
a última resistência do rei.
44 Chaucer, diplomata, soldado, estudioso, a moderna poesia inglesa começa com ele.
Ricardo II estava, agora, à mercê da orgulhosa facção que havia usurpado os direitos
da monarquia; a força dos Apelantes e o apoio do Parlamento demonstravam como o
princípio do controle parlamentar sobre o rei e a descentralização política eram evidentes no
século XIV na Inglaterra. Os Lordes Apelantes discutiam o que iriam fazer com o rei: os
homens mais velhos eram pela medida extrema, já os mais jovens os contiveram, no entanto,
Ricardo foi brutalmente ameaçado de ter o destino de seu bisavô, Eduardo II.
Os Lordes Apelantes, divididos como estavam, não se atreveram a depor e matar o rei;
em tudo o mais, porém, impuseram sua vontade, obrigando-o a ceder em todos os pontos.
Cruel foi a vingança que caiu sobre a nobreza adventícia de seu círculo e sobre seus adeptos
legais: o Ministro da Justiça e quatro das outras pessoas responsáveis pela Doutrina da
Supremacia Real foram enforcados, estripados e esquartejados e o tutor real, Burley, também
não foi poupado; somente a pessoa do rei foi respeitada e isso, mesmo pela mais estreita
margem.
Os Estados do Reino foram, então, convocados para dar a sua aprovação ao novo
regime; no dia marcado, os cinco Lordes Apelantes, em trajes dourados, entraram de braços
dados no Westminster Hall e a vitória da velha nobreza encontrava-se, pois, completa.
3.4 A reviravolta do poder
Ricardo, além da submissão, consentiu no massacre de seus amigos e afundou-se o
mais que pôde em seu retiro. Ele deve ter meditado sobre as injustiças e sobre seus erros
passados e via, nos lordes triunfantes, homens que seriam tiranos não apenas sobre o rei, mas
também sobre o povo.
Assim, elaborou, por um ano, planos para a vingança e para a restauração de seus
direitos reais, com muito mais engenho do que antes, uma trégua sinistra e sombria que
Ricardo, em 3 de maio de 1389, encerrou. Tomando assento no Conselho, pediu,
delicadamente, que lhe dissessem que idade tinha. Quando lhe responderam que tinha vinte e
três anos, declarou que, certamente, já se tornara maior e que não se submeteria mais a
restrições sobre seus direitos, que nenhum de seus súditos suportaria. Dirigiria o Reino por si
próprio, escolheria seus próprios conselheiros e seria, portanto, efetivamente rei.
Churchill (1960) ainda ressalta que esse golpe sagaz e bem desenhado deu resultados
imediatos: o bispo Thomas, irmão do conde de Arundel, e mais tarde nomeado Arcebispo de
Canterbury, entregou-lhe o Grande Selo a seu pedido; os simpatizantes do rei, William de
Wykeham e Thomas Brantingham, foram conduzidos a postos de Chanceler e Tesoureiro,
respectivamente; candidatos indicados pelo rei juntaram-se aos dos Apelantes nos bancos
judiciais; cartas do rei, aos xerifes, anunciaram que ele havia assumido o governo e a notícia
espalhou-se, rapidamente, com inesperado grau de satisfação.
Churchill (1960) diz que Ricardo usou essa primeira vitória contra os Apelantes com
prudência e clemência, reconciliando-se com João de Gaunt e seu filho, Henrique de
Bolingbroke, agora importante personalidade e “dissolveu”, aos poucos, a terrível combinação
dos Lordes de 1388. Nos oito anos seguintes, ele governou a Inglaterra como um rei
constitucional e popular: por meio de cartas-patentes, libertou muitos dos camponeses de suas
obrigações feudais. Prometera, ainda solenemente, a abolição da servidão e a propusera ao
Parlamento, no entanto, fora derrotado.
Apesar disso, de acordo com alguns autores, a sua paciência estava se esgotando, pois
tolerou, por oito anos, a presença de Arundel e Gloucester; astutamente, então, procurava
fortalecer-se, reunindo recursos irlandeses. Em 1394 foi, com toda a formalidade de uma
Viagem Real, à Irlanda e, para esse fim, criou um exército dependente de si próprio, que seria
útil, mais tarde, para atemorizar a oposição na Inglaterra. Quando regressou, os últimos passos
já estavam próximos para submeter à sua autoridade tanto os Lordes bem como o Parlamento.
Fez um acordo com a França, libertando-se dos encargos da guerra, fator que o tornava
diretamente dependente dos favores do Parlamento. Depois da morte de sua primeira esposa,
Ana, casou-se, em 1396, com a pequena Isabel, filha de Carlos VI, da França, conforme
enunciado anteriormente e, com isso, foi concluída uma trégua ou pacto de amizade e não-
agressão por trinta anos, visto que uma cláusula secreta estabelecia que, se Ricardo fosse, no
futuro, ameaçado por qualquer de seus súditos, o rei da França acorreria em seu auxílio.
Apesar das queixas do Parlamento, o rei ganhou, imenso poder político ao libertar-se da
obrigação de fazer uma guerra; ele desejava, sem dúvida alguma, conquistar absoluto poder
sobre a nobreza e o Parlamento.
Desconstruir a aliança entre os Apelantes fora o primeiro passo, a expedição irlandesa
fora o segundo passo para o estabelecimento do despotismo e a aliança com a França fora o
terceiro. O rei dedicou-se, em seguida, à construção de um compacto e eficiente partido da
Corte: Gaunt e seu filho Henrique, como Mowbray, conde Norfolk, um dos antigos
Apelantes, estavam, agora, ao seu lado, parte por lealdade a ele e parte por hostilidade a
Arundel e Gloucester, além disso, homens novos foram introduzidos na Casa real: Sir John
Bushy e Sir Henry Greene representavam os interesses locais dos condados e eram servidores
incondicionais da Coroa.
Em janeiro de 1397, Ricardo decidiu, finalmente, atacar. Com o Parlamento em suas
mãos, o “Parlamento do rei”, Arundel e alguns de seus companheiros foram declarados
traidores e beneficiados, apenas, com a gentileza da decapitação. Warwick foi exilado para a
Ilha de Man, Gloucester, preso e levado a Calais e, lá, foi assassinado pelos agentes do rei.
Ricardo reinava absoluto, e o Parlamento suspendeu quase todos os direitos e privilégios
constitucionais conquistados no século anterior; ainda, elevou a monarquia sobre um alicerce
mais absoluto do que fora concedido e estabelecido outrora.
3.5 A queda de Ricardo II
O último e possível problema para Ricardo, era Henrique, filho de Gaunt. Bolingbroke
acreditava ter salvo o rei de ser deposto e assassinado por Gloucester, Arundel e Warwick, na
crise de 1388 e, desde então, acreditava que o rei tinha uma dívida com ele; a amizade e a
familiaridade com Ricardo crescia a cada dia e os dois jovens viviam em bela camaradagem:
um era rei, o outro, como filho de João de Gaunt, estava próximo do trono e mais próximo,
ainda, da sucessão.
Churchill (1960) aponta que o trágico destino fez com que essa amizade se rompesse:
surgiu uma disputa entre Henrique e Thomas Mowbray, duque de Norfolk. Acusações de
traição, ciladas e conspirações eram atribuídas ora a um, ora ao outro; nesse sentido, relatos
colhidos no Parlamento e a dúvida sobre quem estava dizendo a verdade impuseram o
julgamento por batalha e, a famosa cena verificou-se em setembro de 1398: a arena foi
preparada e o mundo inglês reuniu-se para presenciar que Henrique e Mowbray iriam
digladiar-se até a morte. Shakespeare inicia a peça Ricardo II a partir dessa discussão entre os
dois nobres perante o rei. E como na peça, o rei, exasperando os espectadores de todas as
classes que haviam comparecido, com grande expectativa, para assistir ao duelo mortal,
proibiu os combates e exilou Mowbray, por toda a vida, e Henrique, por uma década. Os dois
lordes obedeceram às ordens reais. Mowbray logo morreu, mas, Henrique, estarrecido pelo
que considerara uma ingratidão e injustiça, viveu e conspirou na França.
O ano que se seguiu foi de declarado despotismo; durante o ano de 1398, houve, na
nação, muitos que perceberam que um Parlamento servil suspendera, em poucas semanas,
numerosos dos direitos e liberdades fundamentais do reino, enquanto Ricardo e sua Corte
corriam o reino, enchendo as semanas, com festas e torneios. A extravagância real e
inconsequência no exercício da função provocaram descontentamento por parte da alta
sociedade rural e dos comerciantes. Diante de dificuldades financeiras, Ricardo foi obrigado a
contrair empréstimos e aumentar os impostos e, com isso, mais uma vez, o agito sócio-
político iniciara-se na Inglaterra.
Em fevereiro de 1399, morreu o velho João de Gaunt, o “venerado Lancaster”.
Henrique, no exílio, herdou vastos domínios, não apenas no Lancashire e no Norte, mas
também espalhados por toda a Inglaterra. Ricardo, premido pela necessidade de dinheiro, não
pôde privar-se de um confisco, tecnicamente legal, das propriedades de Lancaster, apesar de
todas as suas promessas. Conforme Churchill (1960), assim, declarou seu primo deserdado e,
ali, comete o seu penúltimo erro. Desprezando a agitação no país e a força de Henrique, o rei
partiu, em maio, para uma expedição punitiva, muito tardia, a fim de afirmar a autoridade real
na Irlanda deixando uma administração desordenada, desprovida de tropas, e uma terra,
violentamente, exasperada contra ele. Sob essa ótica, aqui cometeu seu último e decisivo erro
estratégico.
A notícia da partida do rei foi levada a Henrique; chegara o momento: o caminho
estava livre e o homem não perdeu tempo. Em julho, Henrique de Lancaster, que era agora o
seu título, desembarcou no Yorkshire, declarando que viera, apenas, reclamar seus direitos
legais como herdeiro de seu venerado pai. Foi imediatamente cercado por adeptos,
particularmente das propriedades de Lancaster, e pelos poderosos lordes do norte, sob o
comando do conde de Northumberland. De York, Henrique marchou através da Inglaterra, em
meio à aclamação geral, até Bristol, e mandou enforcar William Scrope, conde de Wiltshire,
Bushy e Greene, ministros e representante do rei Ricardo. Como na peça de Shakespeare,
esses foram os primeiros atos de Henrique quando toma o poder.
Demorou algum tempo para que chegassem, a Ricardo, as notícias do aparecimento de
Henrique e de tudo quanto se seguira tão rapidamente; ele apressou-se em voltar e marchou,
por três semanas, através da Gales do Norte, numa tentativa, frustrada, de reunir tropas. Toda
a estrutura de poder, tão bem montada, paciente e sutilmente construída, não podia enfrentar o
poder ofensivo e a popularidade de Henrique de Lancaster. No Castelo de Flint, Ricardo
submeteu-se a Henrique, para cujas mãos passara, então, toda a administração. Outro fato
histórico descrito por Shakespeare na peça.
A seguir, Ricardo foi alojado na Torre e sua abdicação foi arrancada à força; sua morte
torna-se inevitável.
O último de todos os reis ingleses, cujo direito hereditário era indiscutível,
desapareceu, para sempre, por baixo da ponte levadiça do Castelo de Pontefract. Henrique,
apoiado pelo Parlamento e pelos Lordes Espirituais e Temporais, subiu ao trono como
Henrique IV, iniciando, assim, um capítulo de história, destinado a ser fatal para o baronato
medieval. Nesse sentido, a doutrina dos dois corpos do Rei, nessa oportunidade, cairia por
terra: ficara provado que a ideologia do direito divino dos reis sem a força político-militar –
exército, o apoio do Parlamento e da nobreza – era uma fonte de legitimidade instável na
Idade Média.
Apesar das qualidades políticas de Ricardo, tanto para o planejamento quanto para a
ação, o princípio da legalidade, que recaiu sobre a Doutrina dos Dois Corpos do Rei, foi
suplantado pelo postulado da legitimidade, em primeiro lugar e, em seguida, o direito de
conquista foi a justificativa legal de Henrique para tomar o poder e tornar-se rei.
Fica evidente, nesse cenário histórico, marcado pelo policentrismo do poder, que a
legalidade é um princípio mutável, conforme quem ocupa o poder e explora as manobras
parlamentares e legais para assegurá-lo. Elisabeth e o próprio Henrique IV foram capazes de
se sustentar, mantendo os dois postulados jurídicos em perfeita simetria, enquanto Ricardo II
travou quatro duelos mortais com a sociedade aristocrática feudal: em 1386 foi derrotado, em
1389 foi vitorioso, em 1398 foi supremo e, em 1399, foi destruído.
Na próxima parte, evidenciamos, então, as conjunções e disjuntivas de legitimidade e
de legalidade, da Doutrina dos Dois Corpos do Rei, na peça Ricardo II, de William
Shakespeare, para melhor fundamentar nossa tese.
4 ANÁLISE INTERNA DA PEÇA RICARDO II
4.1 O mais cerimonial Drama Histórico
Ricardo II faz parte das chamadas peças históricas da Dramaturgia shakesperiana: a
segunda tetralogia sobre a História da Inglaterra, em torno da figura de Henrique de
Bolingbroke (Henrique IV, Partes 1 e 2), a qual também inclui Henrique V.45
Para muitos críticos, a peça Ricardo II é a mais formal e cerimonial das peças
shakesperianas, onde os conflitos de natureza política e bélica que geram a ação permanecem
sempre nos bastidores das evocações, são cenas de violência, traição e vingança, de profunda
carga emotiva, como a da célebre deposição do rei. Para os leitores e espectadores hoje em
dia, a excentricidade em Ricardo II é a formalidade que tem um efeito maravilhoso e que
provoca um certo estranhamento.
Dotado de uma natureza lírica, esse drama histórico forma uma tríade, ao lado de Romeu e Julieta, uma tragédia lírica, e Sonho de uma Noite de Verão, a mais lírica das comédias shakesperianas. Embora seja a menos famosa das três e contenha altos e baixos, Ricardo II é uma peça esplêndida; trata-se do melhor drama histórico escrito por Shakespeare, excetuando-se as peças de Falstaff, isto é, as duas parte de Henrique IV (BLOOM, 1998, p. 317).
Shakespeare cria nesse Drama histórico uma verdadeira tragédia lírica, não apenas nos
aspectos formais e temáticos que a estruturam, mas também na função profundamente
catártica que ela exerce. Entenda-se uma catarse de espectro amplamente político, social e
moral, dentro e fora do teatro, numa esfera de valores que transcende o indivíduo da platéia
nos seus contornos psicológicos e o remete para a rua, para a cidade e para o mundo de todas
as vivências, as mais simples e as mais complexas, desde o homem comum à proeminência
dos altos dignitários da nobreza e do clero, à soberania do monarca. Através da criação do
pathos, numa mistura de sentimentos de piedade, indignação e horror, a linguagem poética do
drama. Age primordialmente como instrumento de provocação, enquanto se afirma como
meio tradicional de excelência para obter do público uma resposta social e politicamente
compreendida.
Ricardo II não é uma peça caracterizada pelo relato e pela representação dos fatos em
si, mas pelo seu desdobramento em sequências de momentos quase sempre de espera em que
a situação sobranceira auto-confiante do rei e de todos os que o acompanham, estejam do seu
45 A primeira tetralogia inglesa compõe-se de uma trilogia dedicada a Henrique VI e uma quarta peça sobre Ricardo III.
lado ou em oposição, se vai dissipando em presságios funestos até alçar a mais profunda
trágica desesperança. As falas mais pungentes são proferidas pelo próprio protagonista
Ricardo II. É interessante observar que na opinião do crítico Harold Bloom, Ricardo II não
passa de um ensaio para a criação do personagem Hamlet.
Ricardo II não é uma das peças shakesperianas mais conhecidas do público. Uma
breve retrospectiva pela sua recepção na Inglaterra dá conta de oscilações significativas na
apreciação e avaliação que as diferentes épocas lhe atribuem. Junte-se a isso a reação política
que despertou junto ao público elizabetano, por razões que oportunamente falaremos daqui
em diante. De certa forma, mesmo após algum interesse crítico suscitado nos meios culturais
augustanos, particularmente em Dryden e Samuel Johnson, a peça é relegada comumente para
alguma penumbra da memória das platéias e dos críticos. Será no século XIX romântico, pela
voz crítica de Coleridge e, algumas décadas mais tarde por Pater, Montague, Yeats e
Swinburne, que a obra recupera enquanto retrato do homem na sua dimensão de
masculinidade e não na simbologia política que, ao tempo de Shakespeare, lhe valera a
reputação de peça subversiva e revolucionária. O período entre as duas guerras mundiais
fizeram de Ricardo II uma das peças mais conhecidas do público teatral.
4.2 Problemas de crítica textual
A obra de Shakespeare causou grande impacto no público em seu tempo. Existem
cinco edições de Quarto46 da peça antes do aparecimento do Primeiro In-Fólio47 em 1623. O I
Quarto (q1) dá entrada no Registro dos Stationers em 29 de agosto de 1597, pela mão de
Andrew Wise que eventualmente terá comprado a cópia dos manuscritos e os direitos da sua
edição à companhia de Lord Chamberlain´s Men, da qual Shakespeare fazia parte.48 Em 1598
surgem mais duas edições de Quarto (Q2 e Q3) e os anos de 1608 e 1615 apresentam
respectivamente Q4 e Q5.49 O Q1 é a versão que procede, de forma mais direta ou
intermediária, do próprio manuscrito shakesperiano, uma espécie de rascunho com anotações
variadas, enquanto as versões posteriores dos Quartos são já reimpressões daquela.
46 In Quarto, folhas dobradas em quatro que eram geralmente vendidas por meio xelim. 47 In-Fólio, folhas dobradas em duas 48 Conhecem-se apenas três cópias de Q1, cada qual apresentando diferenças pontuais entre si: a existente na coleção da Capela do Trinity College, em Cambridge; a do Museu Britânico e a da Biblioteca de Huntington, na Califórnia. 49 Os in-quarto ruins eram geralmente pirateados da cópia de um ator ou da memória de alguém associado à companhia como resposta a uma vasta demanda, quando não havia mais muito perigo de a peça ser surrupiada por uma outra companhia.
Os três primeiros omitiram a cena da deposição no final do quarto ato; o primeiro deles a incluí-la foi o In-Quarto, que apareceu cinco anos depois da morte da rainha Elizabeth. A cena da deposição teria sido eliminada de qualquer maneira, por causa da exaltação da censura com o fato de se mostrarem ou de se imprimirem coisas desse tipo (FRYE, 1999, p. 75).
Curiosamente, por motivos alegadamente políticos, relacionados com a corte
elizabetana na viragem do século XVI para o século XVII, os três primeiros Quartos omitem a
cena da deposição de Ricardo, existente ao que se sabe no manuscrito original de Shakespeare
que servia igualmente de livro do ponto nas representações da peça levadas a palco na época.
Só anos mais tarde, na edição de Q4 em 1608, é que referida cena viria a ser retomada, desta
vez por Matthew Law, para quem Wise tinha transferido os direitos editoriais não só de
Ricardo II, mas também de Ricardo III e Henrique IV. Estas adendas, que Law tem o cuidado
de publicitar em jeito de subtítulo na página de rosto do Q4, parecem ter sido obtidas por
reconstruções de memória do manuscrito de Shakespeare ou das cópias do ponto nas casas de
teatro, efetuadas por atores ou por gente diversa ligada ao palco e à encenação. Hipóteses
desta natureza parecem explicar a ocorrência de omissões várias bem como certas alterações
errôneas mas da ordem de alguns versos.
Quanto ao texto editado no In-fólio de 1623 são inúmeras as dificuldades50 em
determinar que edição, ou edições, dos Quartos lhe serviu de base. Com efeito, no âmbito da
complexa história editorial da obra shakesperiana, não pode propriamente falar-se em
consensos por parte da crítica textual, mas antes em hipóteses de investigação que passo a
passo se aventam, no processo quase infindável de se encontrarem provas capazes de
certificá-la. É na relatividade precária da hipótese que se tem proposto como texto-base para o
In-fólio de 1623 uma cópia impressa de um dos Quartos que tivesse sido algo levianamente
colada com uma cópia do Q1 utilizada como livro do ponto, no fundo, um texto que o próprio
ponto tivesse regularmente atualizado de acordo com circunstâncias e a necessidades
específicas da reapresentação teatral num dado momento.
Muito embora estas questões estejam longe de encontrar uma solução definitiva, dado
à incerteza ou à falta de fidedignidade das fontes existentes, elas não podem em caso algum
ser ignoradas, pois do seu confronto emergem os suportes de rigor e credibilidade do texto
fixado pela edição crítica. Felizmente para o investigador, para o professor, para o estudante,
50 Qualquer estudo erudito sobre essa operação mostrará que tarefa longa, complicada e frustrante foi essa, e que foi quase um milagre os organizadores terem finalmente conseguido reunir todas as peças que agora são consideradas de Shakespeare, com exceção de Péricles, que deve ser dele apenas em parte. O Fólio foi um trabalho de edição marcante para sua época, competindo com seus contemporâneos mais refinados, a Bíblia de 1611 e algumas edições eruditas dos clássicos. Não há palavras para expressarmos nossa dívida para com Heming e Condell. (FRYE, 1999, p. 25).
para o tradutor, enfim, para o leitor de Shakespeare, existem edições críticas avalizadas da
totalidade da sua obra dramática que constituem referências inestimáveis para o conjunto dos
estudos literários e de tradução, dos estudos de história e de cultura, bem como para a prática
teatral, envolvendo a encenação das peças e a respectiva adaptação do texto dramático.
4.3 As fontes
Falar de um Drama Histórico, como é o caso das peças shakesperianas sobre fatos e
personalidades da história da Inglaterra, implica necessariamente uma referência às suas
fontes, com especial relevo para as documentais. No que diz respeito a Ricardo II, é inevitável
a remissão para as “Crônicas” da História da Inglaterra de Raphael Holinshed como principal
fonte de material histórico utilizado. Ao que se sabe, Shakespeare teria consultado uma
segunda edição da obra, de 1586-87, e poderá ter assimilado essa leitura à de uma crônica
anterior, editada em 1548, da autoria de Edward Hall: A União das Duas Nobres e Ilustres
Famílias de Lancaster e York. A narrativa parte do conflito entre Bolingbroke e Mowbray que
corresponde, precisamente, ao momento de abertura da peça shakesperiana.
Fontes também citadas, embora a controvérsia subsista quanto à sua fidedignidade, são
duas crônicas francesas, uma escrita em verso por Jean Créton – Histoire Du Roi d`Angleterre
Richard II – e uma outra de autor anônimo intitulada, Chronique de la Traison et Mort de
Richard Deux roi d`Angleterre. Ambas existiam apenas em formas de manuscritos no tempo
de Shakespeare mas eram conhecidas na Inglaterra. No entanto, mais provável parece ter sido
a leitura de Shakespeare da famosa tradução de Lord Berners das Crônicas de Sir John
Froissart, bem como a influência que estas exerceram sobre a posição que o dramaturgo
assume perante certas figuras e fatos históricos.
Refere-se ainda como fonte documental da peça shakesperiana um manuscrito algo
fragmentário de uma anterior peça anônima, geralmente identificada como Woodstock, numa
alusão direta ao tio de Ricardo II, Tomás de Woodstock, duque de Gloucester, a quem o
soberano terá mandado assassinar. Não há provas cabais de que a peça Woodstock tenha
subido ao palco ou sequer tinha sido impressa para a publicação. Por sua vez, na peça
shakesperiana, a culpa de Ricardo no assassinato de Gloucester emerge de forma um tanto
velada na cena de abertura, através da acusação que Bolingbroke faz a Mowbray. Muito
habilmente, no I Ato, a atenção do espectador é dirigida sobretudo para a inimizade entre os
dois nobres da corte de Ricardo II, para o combate mortal em que os mesmos iriam envolver-
se e não para a culpabilidade do soberano. Só no II Ato é que este fato se torna praticamente
inegável quando a grandeza e a incorruptibilidade do rei ungido é posta em causa pelas
palavras de sabedoria, pela força de caráter e pela dignidade de uma das grandes referências
éticas da peça, João de Gaunt. É a simbologia moral e patriótica representada na personagem
do velho Gaunt moribundo. Ela é determinante que para as simpatias da platéia e do leitor se
dirijam para a figura de seu filho Henrique Bolingbroke, e se afastem de Ricardo que passa a
ser visto e apontado como um criminoso, um rei despótico e dissipador, permeável apenas a
lisonja dos oportunistas. A partir deste momento a ação da peça orienta-se necessariamente
para o desenvolvimento e desenlace destas premissas, tendo como auge o inverter de posições
de suserano e vassalo entre Ricardo e Bolingbroke na célebre cena da deposição do rei perante
os nobres, em Westminster. Ricardo é encarcerado e assassinado, num ato de traição à revelia
do novo soberano, Bolingbroke, agora Henrique IV.
Podem citar-se ainda duas outras fontes reconhecidas. Uma delas é uma coletânea de
histórias exemplares metrificadas sobre a queda em desgraça de figuras proeminentes de
príncipes e nobres da Inglaterra, publicadas em edições sucessivas por William Baldwin entre
1555 e 1587, data em que passaram a ser integradas séries semelhantes organizadas por John
Higgins (1574) e Thomas Blennerhasset (1578). Sob o título de The Mirror for Magistrates
(Espelho para Magistrados) se narram os destinos trágicos de, entre tanto outros, Tomás de
Woodstock, duque de Gloucester; de Tomás Mowbray, duque de Norfolk; de Henrique Percy,
Conde de Northumberland e por fim de Ricardo II. Essencialmente destaca-se em The Mirror
que a personalidade de Ricardo II não se esgota na figura do vilão despótico, mas alberga
também em si a identidade trágica da vítima, em traços de complexidade que a peça
shakesperiana aprofunda de uma forma superiormente artística. A mesma insensatez de
Ricardo ao negligenciar os conselhos de seus tios Gaunt e York é patente tanto em The Mirror
como na peça de Shakespeare, detectando-se a presença de ecos lexicais entre os respectivos
passos dos textos em causa.
Por último acresce referir como fonte documental para a peça histórica shakesperiana
o poema épico de Samuel Daniel sobre a Guerra das Rosas, com entrada no registro dos
Stationers a 11 de Outubro de 1594 e publicado no ano seguinte sob o título de The First Four
Bookes of the civile warres between the two houses of Lancaster and York. As maiores
ressonâncias entre os dois textos encontram-se no V Ato, particularmente nos episódios como
o do cortejo a cavalo de Bolingbroke e Ricardo pelas ruas de Londres, o da rainha Isabel que
olha pela janela e vê o rei deposto, seu marido, dirigindo-se em ruína para o cárcere, bem
como o do encontro de despedida entre Ricardo e Isabel.
4.4 Tragédia e Alegoria Política
Há que sublinhar aspectos históricos e contextuais importantes na produção da peça
que tiveram um grande reflexo na recepção da época em que foi escrito. Tem-se especulado a
hipótese de Ricardo II ter sido intencionalmente escrito e representado com um propósito
político, manifestando-se como contraponto alegórico do reinado de Elizabeth, no intuito de
avisar a soberana dos riscos de uma abertura à influência de cortesãos bajuladores e falsos.
Traçam-se paralelismos entre Ricardo II e Elizabeth também no que refere às questões
irlandesas, enquanto Bolingbroke, volvido séculos depois,e contra um reconhecível homólogo
na figura do conde de Essex que conspirou e levou a cabo, sem êxito, uma rebelião contra a
rainha a 8 de fevereiro de 1601. “A própria rainha ligou os fatos. Contam que ela disse: Eu
sou Ricardo II, não sabia? Essa tragédia foi representada quarenta vezes nos teatros e ruas”
(FRYE, 1999, p. 75).
De fato, os correligionários do conde de Essex haviam persuadido a companhia de
Lorde Chamberlain´s Men, mediante a quantia de 40 xelins, a levar à cena no teatro Globe
uma peça sobre a deposição e o assassinato de Ricardo II, possivelmente o texto de
Shakespeare na versão integral, ou seja, inclui a cena censurada da deposição. É de assinalar
que foi por motivos de forte sensibilidade política, por parte de Elizabeth, e pela facilidade
com que a sociedade estabelecia analogias entre os dois reinados, que o Q1 é publicado em
1597 omitindo a referida cena. “Em geral, as peças históricas atraíam o povo inglês,
especialmente nos anos seguintes à destruição da Armada espanhola; mas Ricardo II atraiu
mais que o interesse habitual” (KANTOROWICZ, 1998, p. 47). Dois anos mais tarde, a
publicação de temas sensíveis como este da deposição de um monarca viria a revelar-se um
risco político seriamente comprometedor para a própria vida dos autores. Até mesmo no curso
do processo do Estado contra Essex: “essa apresentação motivou considerável discussão por
parte dos juízes da corte – entre eles, os dois maiores advogados da época Coke e Bacon que
não podiam deixar de reconhecer as alusões ao presente, intencionadas na apresentação da
peça” (KANTOROWICZ, 1998, p. 47).
Outro evento que comprova e é apresentado como documento da conspiração de Essex
contra a rainha Elizabeth é o opúsculo de Sir John Hayward intitulado A primeira parte da
vida e do reinado do rei Henrique IV, que versa especificamente os anos finais do reinado de
Ricardo II e apresenta um ou dois momentos de expressa colagem ao texto de Shakespeare.
Curiosamente, este pequeno trabalho é dedicado ao conde de Essex, vindo a ser proibida a
publicação de uma segunda edição revista, à qual o próprio conde parece ter colocado
reservas. O livro de Hayward consta como prova da alegada traição do réu. O próprio
Hayward é encarcerado na Torre de Londres e julgado a 11 de junho de 1600 e 22 de janeiro
de 1601 pelas analogias perniciosas que estabelce no seu livro entre Ricardo, Elizabeth,
Bolingbroke e Essex. Clamando sempre inocência face às acusações, Hayward viria a ser
libertado somente após a morte da rainha.
Ricardo II continuou a ser uma peça política subversiva. Foi proibida durante o
reinado de Carlos II, na década de 1680. De fato, a peça previa demais os últimos
acontecimentos da história revolucionária na Inglaterra.
A Restauração evitou essas e outras memórias e não tinha nenhuma simpatia para com a tragédia que estava centrada não só no conceito de um rei mártir semelhante a Cristo mas, também, na ideia muito incômoda de uma separação radical dos Dois Corpos do Rei. Não teria sido surpresa nenhuma se o próprio Carlos I concebesse seu trágico destino nos termos do Ricardo II de Shakespeare e do ser geminado do rei. Em alguns exemplares da Eikon Basilike, está impresso um lamento, um poema longo, alhures intitulado Majesty in Misery (“Majestade em desgraça”), atribuído a Carlos I e onde o desafortunado rei, se foi ele realmente o poeta, aludia obviamente aos Dois Corpos do Rei: Com meu próprio poder ferem minha majestade, em nome do Rei, o próprio rei destronado. Assim a poeira destrói o diamante (KANTOROWICZ, 1998, p. 47).
4.5 A tragédia do rei Ricardo II: a tragédia dos Dois Corpos do rei
Através da peça histórica A vida e morte do rei Ricardo II, podemos afirmar que
Shakespeare retrata a tragédia dos Dois Corpos do rei, confrontando esse fundamento
jurídico-teológico com a realidade política moderna marcada pela luta, conquista e
manutenção do poder. “É uma obra que permite apanhar a dimensão política expressa na
produção shakespeariana, valorizando não apenas as suas características internas, mas
também algumas formulações de Maquiavel” (CHAIA, 2007, p. 77). Esse drama revela o
entendimento de Shakespeare acerca dessa teoria medieval e confronta com o pensamento
moderno de que é necessário para o rei ter também o poder temporal, ou melhor, a virtù e
zelar pela sua própria defesa. É uma leitura similar a de Maquiavel: isso está ligado ao
cuidado maior do Príncipe na busca da manutenção de seu Estado.
Shakespeare possibilita que a política tenha acesso ao avesso da racionalidade e, ao ser clarificado por Maquiavel, repõe esta possibilidade sob uma ótica realista, que supõe tanto a existência de mecanismos próprios a política, quanto a defesa de uma posição pessoal; no caso, a defesa da monarquia legítima (CHAIA, 2007, p. 75).
Ao lado de Maquiavel, Shakespeare cria um “espaço de encontro entre política e vida,
cujo pano de fundo é a presença constante da tragédia. Uma visão de Shakespeare, clarificada
pela leitura de Maquiavel, une arte e política, homem e poder, assim como caos e controle,
vida e morte (CHAIA, 2007, p. 77).
Shakespeare expõe, exaustivamente, ao longo da sucessão dos atos e cenas, a
concepção dos Dois Corpos do Rei – o divino e o terreno – e a forma como se dá a separação
do corpo imortal, perfeito e imutável, para o corpo mortal, imperfeito e mutável. Nessa
tragédia, a face humana do rei prevalece sobre a divina. Isso porque a condição humana
sobressai em relação ao caráter divino.
E reitera Heliodora (1978) e Kantorowicz (1998), a peça Ricardo II é a grande
representação da teoria do divino dos reis em Shakespeare. A caracterização do rei e a forma
como é construída e encadeada todo o contexto dramático é fruto da expressão de uma
posição pessoal do autor, de pesquisa em fontes históricas e, principalmente, da observação de
seu tempo histórico. “O que vemos aqui é uma espantosa demonstração do domínio técnico de
um poeta dramático sobre o material usado e as funções que tal maneira devem preencher na
obra de arte” (HELIODORA, 1978, p. 126).
As categorias analíticas são centrais neste capítulo para abordar o desenrolar das ações
do rei Ricardo II. A análise interna da peça Ricardo II realiza-se sob os parâmetros dados
pelas estruturas dramáticas: situações/cenas, personagens, diálogos e solilóquios, com
objetivo de apanhar as relações de poder e os jogos de forças políticas que se manifestam
através da conspiração, a resistência do rei por meio da manifestação da doutrina dos dois
corpos do rei e a usurpação que ocorrem na peça. A prática política fornece as três categorias
necessárias para articular a análise interna e, também, para pontuar os três momentos
recortados para efeitos de estudos: conspiração, resistência e queda do poder.
A cena que envolve o jardineiro acompanhado dos dois criados serve para elucidar
como Shakespeare nos Dramas Históricos investiga as qualidades dos governantes e coloca
em conflito homens digladiando-se pelo poder, ou seja, é uma avaliação das virtudes e
defeitos públicos e privados dos reis. A cena do jardineiro e os dois criados chama atenção
pela riqueza de informações e conselhos políticos de como o governante pode manter-se no
poder. “É como se poeta tivesse aí apurado o seu conhecimento, aprofundado a compreensão
da política e assimilado o fundamental de Maquiavel para apresentar um painel realista da ilha
política” (CHAIA, 2007, p. 77).
Vale ressaltar que, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2000), o jardim é um
símbolo do Paraíso terrestre, do Cosmo que ele é o centro, do Paraíso celeste, de que é a
representação, dos estados espirituais, que correspondem às vivências paradisíacas. Sabe-se
que o Paraíso terrestre do Gênesis era um jardim, sabe-se que Adão cultivava o jardim.
A imagem do Estado como um jardim bem cuidado era amplamente divulgado na
época elisabetana em que os paralelos eram comuns: se o rei cuidasse bem do reino como um
bom jardineiro cuida de seu jardim, a harmonia e a ordem social prevaleceria. Caso não o
fizesse, o caos e a guerra civil tomariam conta da nação.
Analisemos o então diálogo entre o jardineiro e os dois criados, partindo do
pressuposto que o jardim o qual eles cuidam refere-se ao reino da Inglaterra.
O jardineiro dialoga com os criados:
“Vai, ata aí esses damascos ao dependuro, que são como os filhos rebeldes que
fazem o pai vergar-se, cedendo ao seu peso bruto, e arranja um suporte para os galhos
que pendem” (SHAKESPEARE, 2002, p. 10). 51
Shakespeare toca essa temática com simplicidade e forte simbolismo. Mas sua alusão
não é ligada somente ao filho rebelde em relação ao pai (poder paterno), também do cidadão
que é uma ameaça ao Estado (poder político). Os filhos e os cidadãos podem se tornar um
“grande peso” aos pais ou ao Estado, se não forem obedientes e disciplinados. A autoridade
do pai ou do Estado deve fazer valer desde a infância ou desde o princípio da conquista dos
direitos políticos por esse cidadão. Fazer valer a ordem na sociedade é ação prioritária do
governante. “O espaço da política contém desafios e tensões constantes para todos os homens
em qualquer época, superando antigas concepções que imprimiam estabilidade ou coerência à
política” (CHAIA, 2007, p. 73).
Mais adiante, nesse mesmo diálogo, relaciona-se à formação pedagógica das crianças
e adolescentes na construção de uma cidadania, ou mesmo no que tange aos cidadãos
ambiciosos, sedentos de poder, individualistas e pouco preocupados com o bem comum. O
jardineiro continua expondo sua tese:
“E tu, como o carrasco, vai e corta a cabeça aos rebentos que crescem demasiado
depressa, pois tornam-se arrogantes demais nestes domínios: ao nosso mando, tudo tem
de ficar nivelado” (SHAKESPEARE, 2002, p. 101-102).
Isso significa, pois, se os pais ou o Estado tem a obrigação, num primeiro momento,
de proteger e educar; num segundo momento, deve punir seus filhos e cidadãos, caso estes,
não obedecerem às regras e normas impostas para eles.
E o jardineiro alerta, severamente, sobre isso:
51 Todas as citações da peça Ricardo II são apresentadas com grifo nosso. Ricardo II. Tradução de Filomena Vasconcelos. 1. Ed. Porto: Campo das Letras, 2002. Todas as citações referem-se a essa edição.
“Entretanto, irei eu arrancar as ervas daninhas que roubam, sem qualquer
proveito, a fertilidade do solo às flores mais perfeitas” (SHAKESPEARE, 2002, p. 102).
Esse tom ameaçador dito pelo jardineiro retrata bem que “ervas daninhas” prejudicam
o solo e, ainda mais, não permitem que “flores mais perfeitas” cresçam. Ou seja, os maus
cidadãos ou políticos (corruptos) causam prejuízo à nação, e, ao mesmo tempo, não permitem
que outros cidadãos ou políticos, bem intencionados, cresçam e possam ajudar o país. O
jardineiro explicita que a corrupção contamina e se prolifera como uma epidemia, deixando
parte da população enferma. “A tragédia política perpassa também os príncipes, os
governantes: quase sempre homens e poder que estão próximos dificilmente se ajustam”
(CHAIA,2007, p. 88).
Dessa forma, o criado responde:
Porque havemos nós, no espaço desta cerca, De manter o equilíbrio da ordem e da forma, Para dar o exemplo de um reino estável, Se o nosso jardim cercado de mar, todo o reino, Está cheio de ervas, as flores mais belas sufocadas, As árvores de fruto por podar, sebes desfeitas, Canteiros desordenados, e as hortas Pululam de lagartas? (SHAKESPEARE, 2002, p. 102).
O criado questiona metaforicamente o jardineiro: se o reino está uma desordem por
causa do rei: “cheio de ervas, as flores mais belas sufocadas, as árvores de frutos por podar,
sebes desfeitas, canteiros desordenados, e as hortas pululam de lagartas”; porque nós –
homens do povo – devemos manter em ordem e forma um jardim? Ou seja, nada pode ser
feito e mudado. O exemplo deveria vir de cima para baixo, numa verticalidade de poder, ou
seja, do príncipe exige-se um modelo a ser seguido. “Deve ele fazer com que seus atos se
reconheça a grandeza, a coragem, a gravidade e a fortaleza” (MAQUIAVEL, 1999, p. 113).
O jardineiro replica, pedindo para o criado se calar e ouvi-lo:
Cala-te.... Quem permitiu esta primavera desenfreada Deparou agora com a queda da folha. As ervas, que as suas folhas abrigavam, E que, ao devorá-lo, pareciam sustentá-lo, São agora arrancadas pela raiz por Bolingbroke... Estou a falar do conde de Wiltshire, Bushy e Greene. (SHAKESPEARE, 2002, p. 102).
Essa passagem revela que as “ervas daninhas’’ são os três nobres oportunistas e
bajuladores – Wiltshire, Bushy e Greene - e que foram mortos e “arrancados pela raiz” por
Bolingbroke. As folhas simbolizam a força da majestade de Ricardo. Elas - as folhas -
abrigavam as ervas daninhas que o devoravam – sem ele perceber – mas, que para ele, o rei –
erroneamente - pareciam sustentá-lo no poder.
O criado é pego de surpresa com a morte dos três nobres contada pelo jardineiro que
prossegue:
Estão; e para Bolingbroke Já apanhou o rei esbanjador. Oh, que pena Ele não ter aparado e arranjado este país Como nós este jardim! Chegada a estação, Golpeamos a casca, a pele das árvores de fruto, Receando que, na fartura de tanta seiva, Elas se possam estragar por excesso de viço; Se ele assim tivesse feito aos homens poderosos, Inda estes viveriam para lhe dar a provar Os frutos da obediência. Cortamos os supérfluos Para que possam viver os ramos que dão fruto; Assim ele tivesse agido, inda sua era a coroa Que horas de perdição deitaram por terra. (SHAKESPEARE, 2002, p. 103).
O jardineiro confirma a morte dos nobres e afirma que o rei Ricardo II – esbanjador –
já está nas mãos de Bolingbroke; lamenta a falta de capacidade de governar do rei e
principalmente, de enfraquecer os nobres poderosos a sua volta; e deve exigir obediência e
lealdade a sua autoridade. “Digo que todos os homens, em particular os príncipes, por se
encontrar mais no alto, ganham notabilidade pelas qualidades que lhes proporcionam
reprovação ou louvor” (MAQUIAVEL, 1999, p. 100).
O jardineiro admite que a culpa do golpe político de Bolingbroke é mesmo de Ricardo.
Na opinião política do jardineiro, Ricardo é deposto por cometer sucessivos erros, porque um
competente governante tem que tirar o poder dos nobres ambiciosos antes que eles se tornem
perigosos. Como não percebe o perigo a sua volta, é vítima das armadilhas do poder. “Em
Shakespeare, como em Maquiavel, o poder está sempre atraindo os homens – na maior parte
das vezes para uma armadilha” (CHAIA, 2007, p. 85).
Recordemos que no primeiro capítulo, discutimos as dificuldades do governo de
Elisabeth. Ela esteve frequentemente diante de vários e dificultosos desafios: na escolha dos
pretendentes; na delicada morte de Mary Stuart; contra a temível e invencível Armada; e por
fim, a rebelião do temível conde de Essex. A Inglaterra elisabetana, nesse sentido, esteve
sempre às portas da guerra civil.
O cenário de conflito interminável, durante o governo de Elisabeth, suscitou em
Shakespeare impulsos poéticos para compor a peça Ricardo II.
Em Ricardo II, Shakespeare teve que fazer um casamento de conveniência entre os fatos da sociedade medieval, que chegaram a ele através das fontes, e a devoção Tudor à realeza. Essa devoção considerava que o governo, centralizado por um soberano, era a forma que estava mais de acordo com a natureza humana e com a vontade de Deus. É bem verdade que nenhum soberano inglês, exceto Henrique VIII, teve o poder ilimitado que era bastante comum no continente nessa época e por muitos séculos depois. Mas, mesmo assim, o rei ou a rainha que estavam no poder eram sagrados e “ungidos por Deus” e, qualquer rebelião contra o soberano era considerada blasfêmia, sacrilégio e alta traição. A expressão “ungido por Deus” vem da Bíblia. A palavra hebraica “Messias”, que significa “aquele que foi ungido”, se refere, no Antigo Testamento, ao rei, legitimamente consagrado, inclusive ao rejeitado rei Saul. O equivalente grego de “Messias” é “Cristo”. Jesus Cristo era considerado o rei do mundo espiritual, e os reis legítimos no mundo material eram seus dirigentes. Se acontecia de um rei legítimo se tornar um tirano corrupto, isso era, em última análise, culpa dos súditos e não dele. Então, eles teriam que ser punidos por seus pecados (FRYE, 1999, p. 76).
Na peça, a imagem curiosa do rei nascido gêmeo, não apenas com grandeza, mas
também com natureza humana, amplia o jargão legal que não se restringe apenas aos arcanos
da guilda jurídica, pois seria muito estranho para um autor que, praticamente, dominava todo
o jargão do ofício humano, “ignorar a fala constitucional e judicial que o circundava e que os
juristas do seu tempo empregavam de modo tão prolífico no tribunal” (KANTOROWICZ,
1998, p.34).
E, realmente, esse conceito jurídico não pode ser separado de Shakespeare; ele
compreendeu bem a teoria do direito divino dos reis, que era discutida pelos juristas na era
Tudor, principalmente no governo de Elisabeth; além disso, representou, por meio da arte
teatral, essa ideia da dualidade, do lado humano e do lado divino do rei, de modo sublime e
delicado. “Para Shakespeare, a arte encontra sentido na política à medida em que esta dilui na
vida” (CHAIA, 2007, p. 87). Shakespeare, dessa maneira, contribui com a história das ideias,
especialmente aquilo que se refere aos domínios pertencentes à ciência política. “A política
deve ser recuperada para melhor desvendar os segredos do homem e da sociedade” (CHAIA,
2007, p. 87).
Vale reforçar que Shakespeare – como autor renascentista, resgatando a tradição
greco-romana - durante a sua infância, adolescência, juventude e fase adulta teve uma
formação humanista que possibilitava esse entendimento.
Vimos no segundo capítulo, desse presente estudo, que Shakespeare deve ter estudado
na King´s New School: seus professores eram formados em Oxford, e o horário das aulas
eram das seis horas da manhã até as seis horas da tarde; seis dias por semana, todas as
semanas do ano, exceto os dias santos de guarda – férias era um conceito inexistente para o
aluno elisabetano. O currículo escolar da escola elementar privilegiava o latim. Dessa forma,
aos sete anos de idade, Shakespeare era obrigado a ler diversas antologias e com ajuda de
dicionários, a traduzir trechos da Bíblia de Genebra.
Nas séries mais avançadas, retórica e lógica eram disciplinas obrigatórias, e nesse
sentido, provavelmente, o bardo dramaturgo leu Cícero, Susebroto, Quintiliano, Vírgilio,
Horácio e Ovídio. Vale ressaltar que, além de conhecedor do latim, ele exerceu durante a sua
vida, inúmeros ofícios que auxiliavam na construção de seus personagens e os diálogos entre
homens do povo.
Alguns biógrafos (HALLIDAY, 1990; GOMES, 2007) afirmam que William
Shakespeare, quando ainda estava em Stratford, trabalhou com algum advogado da região,
onde adquiriu conhecimentos jurídicos. Além de que durante a sua vida, pela perseguição que
seu pai sofreu, e ele mesmo, passou a ter um razoável conhecimento dessa área, pelos
contatos com diversos advogados, e assimilando os termos técnicos do ramo com o gosto de
um escrito nato.
Em se tratando de um escritor, curioso e sedento de saberes, além de se sentir
responsável por representar fielmente a realidade histórica, mesmo utilizando de recursos e
para fins dramáticos, como no caso do rei Ricardo II, foi a fundo pesquisar fontes históricas
confiáveis e dialogar com seus pares, dramaturgos, formados em sua maioria na Faculdade de
Direito, sobre essa controversa e instigante “geminação” do rei.
Também vale ressaltar, conforme Heliodora (1978) que Shakespeare ao escrever
Ricardo II, já morava em Londres há vários anos, era um autor consagrado e tivera contato
com uma extensa gama de pensamentos e práticas da política inglesa do século XVI. Além
das amizades com os jovens formados em uma ou outra das Universidades inglesas.
Segundo opinião geral, pouca diferença faria saber se as sutilezas do discurso jurídico eram ou não familiares a Shakespeare. A concepção do poeta sobre a natureza gêmea do rei não depende de amparo constitucional, uma vez que tal concepção brotaria muito naturalmente de um estrato puramente humano. Pode parecer fútil, portanto, a mera colocação da questão sobre se Shakespeare empregava algum jargão profissional dos juristas de seu tempo, ou tentar determinar a matriz da cunhagem de Shakespeare. Tudo isso parece muito trivial e irrelevante, uma vez que a imagem da natureza geminada do rei, ou mesmo do homem geral, era uma das concepções mais genuinamente shakespearianas. Apesar disso, se o poeta tivesse casualmente se deparado com as definições jurídicas da realeza, o que,
provavelmente, teria acontecido ao conversar com amigos na escola de direito, é fácil imaginar o quanto lhe teria parecido pertinente o símile dos Dois Corpos do Rei. Seja como for, a essência viva de sua arte era revelar os diversos planos em atuação no ser humano, colocá-los uns contra os outros, confundi-los ou mantê-los em equilíbrio, tudo em função do padrão de vida que ele tinha em mente e desejava recriar (KANTOROWICZ, 1998, p. 34).
Observa-se ainda que na peça Henrique V, escrita em 1599, quatro anos após a
tragédia de Ricardo II, Shakespeare amadurece e fortalece essa discussão dos Dois Corpos do
rei. Nela, o rei Henrique V, antes da decisiva batalha que pode implicar em sua morte, medita
sobre a deidade e a humanidade de um rei; ao lamentar a dupla condição de um rei,
imediatamente, associa essa imagem ao rei Ricardo II.
O rei Henrique V, diferentemente de Ricardo II, tem consciência plena dessa
dualidade. Antes da brutal Batalha de Azincourt, em solo francês, sabe que o rei, em seu
corpo natural, é como qualquer homem – sentimentos de alegria, comoção, medo,
arrependimento e frustração. Por outro lado, carrega um fardo tão pesado, em seu corpo
político, - responsabilidades e deveres com o Estado e a sociedade - que qualquer homem não
é capaz de possuí-lo ou de desejá-lo. “A política pode ser uma atividade construtora ou
devastadora, atingindo príncipes e súditos” (CHAIA, 2007, p. 86).
Refletindo sobre seu destino de rei, sobre a dupla natureza do ser rei, o Henrique V de Shakespeare tende a evocar seu Ricardo II, o qual – pelo menos no conceito do poeta – manifesta-se como o protótipo daquela “espécie de deus que sofre, muito mais do que os seus adoradores, a condição humana” (KANTOROWICZ, 1998, p. 35).
Mas em que circunstância, em qual ou quais situações, esse poder vindo de Deus, pode
ser questionado, confrontado, e, dessa maneira, o rei pode ser destronado? Essa questão está
intimamente ligada ao diálogo do jardineiro com os dois criados no jardim do duque de York,
como tratamos na página 123, 124, 125, 126. Mas, também em outras cenas que iremos
destacar ao longo dessa análise. Porém, essa cena do jardim é peculiar na peça e serviu para
iniciarmos nossa análise para revelar as razões do rei Ricardo II ter perdido o poder. O
jardineiro licita de maneira eficiente os motivos pelos quais Ricardo não deve continuar
governando.
Pois bem, Shakespeare apresenta uma peça de uma usurpação plenamente justificada,
no qual o usurpador não age por ambição pessoal e, sim, por uma incontestável dedicação ao
bem comum, baseada na necessidade política de preservar o Estado, ante as consequências de
um mau governo: marcado por graves erros, desmandos e vacilações.
A forma como Shakespeare apresenta essa situação - um rei legítimo pode ser cruel e
ainda permanecer rei, mas, se for fraco ou incompetente como Ricardo II, criará um espaço de
forte oposição ao seu poder na sociedade - sugere que a ordem cosmológica e a vontade de
Deus exigem um governante forte e centralizador. Deus colocou à frente do Estado o rei para
representá-lo na Terra e se fazer obedecer por todos para o bem comum.
Então, cria-se um terrível dilema entre um impotente rei de jure e um poder de facto que, certamente, surgirá em algum outro lugar. Esse é o tema central de Ricardo II. Ricardo era conhecido, por seus contemporâneos, como “Ricardo”, o Inaconselhável”, isto é, um rei que não aceitava bons conselhos, e Shakespeare mostra-o, ignorando os conselhos de João de Gaunt e de York. Seu reinado de vinte anos foi marcado por muitos erros e opressões que Shakespeare não precisa exibir em detalhe (FRYE, 1999, p. 77).
.
Como afirma Heliodora (1978), o Ato I, cena i, de Ricardo II é obra de um autor
absolutamente senhor de seu métier, pois consegue, a um só tempo, entrar diretamente no
conflito do qual nascerá toda a ação da peça e demonstrar, em termos de ação, a importância
que tem, para Ricardo, o cerimonial e a formalidade. Essa formalidade é tão significativa,
nesta cena inicial, pela gravidade de acusações que se fazem dois dos nobres mais poderosos
do reino: Henrique Bolingbroke (Duque de Herford) e Thomas Mowbray (Duque de
Norforlk). Para Henrique, Mowbray era responsável por todos os atos de traição realizados ou
concebidos no reino, desviar fundos destinados ao pagamento de tropas e pelo assassinato de
Thomas Woodstock, duque de Gloucester, tio do rei.
BOLINGBROKE Com a vida irei provar a verdade do que digo: Que Mowbray recebeu oito mil nobres Como empréstimo para os soldados de vossa Alteza, Quantia que reteve para fins desonestos, Como um traidor hipócrita, vilão infame; Além disso afirmo e prová-lo-ei em combate, Aqui mesmo, ou onde quer que seja, no lugar, Mais distante jamais avistado por um inglês, Que todas as traições concebidas e conspiradas Neste país, ao longo de dezoito anos, Encontram em Mowbray o seu primeiro mentor; Digo mais, e tenciono mantê-lo Com provas da sua má conduta, que foi ele Quem planeou a morte do Duque de Gloucester, Instigou os seus adversários mais crédulos E em seguida, como covarde traidor, Escoou-lhe a alma inocente em rios de sangue, Sangue que brada, como o do sacrifício de Abel, Até pelas cavernas mudas da terra E clama de mim justiça e dura vingança;
Pelo mérito ilustre da minha linhagem, Este meu braço irá dar-lha, ou pagarei com a vida. (SHAKESPEARE, 2002, p. 36).
A pompa, a formalidade, a linguagem florida criam um clima de espetáculo como
também permite explicações consideravelmente detalhadas das circunstâncias. Era sabido na
época que o rei Ricardo II era o responsável pela morte de Gloucester, e Shakespeare podia
fazer isso com tranqüilidade, já que se trata de fato histórico, mas o autor, sabiamente, nessa
primeira cena desejou não causar nenhuma antipatia do público e leitor nessa primeira
aparição do rei.
Após a violência e o ódio nas palavras entre Mowbray e Bolingbroke, a decisão solene
do rei é que o embate entre os dois nobres que não se reconciliam diante das acusações e
vociferações é responder com vida em Coventry no dia de São Lamberto.
RICARDO Não nascemos para rogar, mas para mandar; Já que não conseguimos reconciliar-vos, Preparai-vos, que respondereis com a vida, Em Coventry no dia de S. Lamberto. As vossas espadas e lanças aí decidirão As empoladas dissidências do vosso ódio. Não vos podendo reconciliar, veremos A justiça designar o vencedor do combate. Marcehal, ordenai aos nossos oficiais de campo Se aprestem a dirigir estas lutas internas. (SHAKESPEARE, 2002, p. 39-40).
Na segunda cena, a duquesa de Gloucester cujo marido assassinado é a razão pelo
conflito atual, apela para o cunhado, Gaunt (Duque de Lancaster e pai de Bolingbroke) para
que este vingue a morte do irmão. Ela invoca a “lei natural” para justificar a vingança.
DUQUESA O sangue fraterno não te espicaça mais? O amor não mais tem chama no teu sangue velho? Os sete filhos de Eduardo, entre eles tu próprio, Eram sete vasos desse sangue bendito, Sete belos ramos brotando da mesma raiz. Alguns secaram no curso natural das coisas, Outros foram ceifados pelo destino; Mas Tomás, o meu senhor, minha vida, meu Gloucester, Qual vaso do sangue abençoado de Eduardo, Um ramo em flor da sua mais régia raiz, Abriu fenda, derramando-se o néctar precioso. Foi derrubado e as folhas de Verão murcharam, Às mãos da inveja, ao machado do assassino. Ah, Gande, o sangue dele era o teu! A mesma cama, O mesmo ventre, o ardor e o molde que te deram ser
Fizeram dele homem; e embora vivas e respires, Nele foste assassinado; em larga medida, Consentes na morte de teu pai Ao veres morrer o teu malogrado irmão, Que era a imagem viva de teu pai. Não lhe chames paciência, Gande, mas desespero; Assim tolerando o assassínio de teu irmão, Mostras o caminho a descoberto para a tua vida, Ensinando ao assassino como te estripar. O que em homens mesquinhos chamamos de paciência Que mais devo dizer? Para preservares a vida, Fazias melhor em vingar a morte de Gloucester. (SHAKESPEARE, 2002, p. 40-41).
Apesar das comoventes palavras da duquesa, Gaunt invoca a intocabilidade do rei
ungido, que é descrito como ministro de Deus. Ele obedece rigorosamente aos ensinamentos
das homílias, ao dizer que só Deus pode punir o monarca que erra, pois este está acima do
julgamento dos homens. Para Gaunt, a lei natural está abaixo do princípio de obediência
passiva ao rei.
GAUNT Pertence a Deus esta contenda...o Seu substituto, O representante ungido na Sua presença, Foi quem lhe causou a morte, a qual, se injusta, Que a vinguem os Céus, pois nunca levantarei O meu braço irado contra o ministro de Deus. (SHAKESPEARE, 2002, p. 41).
Na terceira cena, teremos o combate em Coventry, aqui fica claro para o leitor e o
público que Mowbray matou Gloucester por ordem do rei. Segundo Heliodora (1978, p. 252),
assim vemos que na primeira cena Shakespeare havia usado de forma inversa o desnível de
informação que utilizara na primeira cena de Ricardo III: a necessidade dramática aqui era a
de vermos Ricardo em pleno esplendor real, ouvindo as queixas de seus súditos com
superioridade e imparcialidade, vivendo com perfeição seu papel, ao menos na aparência.
Mas, agora sabemos que ele é o responsável pelo assassinato de Gloucester, ele usufrui da sua
posição de mando, deixa que se façam todos os preparativos, que se cumpra o ritual dos
desafios, para, no último momento, dar ainda uma mostra de seu poder, evitando o
derramamento de sangue e banindo os dois contendores.
RICARDO Que ambos deponham elmos e lanças, E regressem aos seus lugares. Retirai-vos connosco e soem as trombetas, Até informamos os duques do que decidimos.
(Toque Prologando) Aproximai-vos, E atendei ao que, por conselho nosso, decidimos. Para que o solo deste reino não fique manchado Com o sangue bem amado daqueles que criou; E porque os nossos olhos odeiam em extremo As feridas de civis abertas na espada do vizinho, E porque cremos que esse orgulho de asas de águia – Pensamentos arrogantes aspirando ao alto – Aliado da inveja dos rivais, se apossou de vós Para acordar em nós a paz, que no berço do país Dorme o sono doce e inocente das crianças; porque, De tão alvoroçado com o ruído dos tambores, Com o som estridente da fanfarra das trombetas E o choque metálico em fúria das armas de ferro, Podia afugentar a paz destes confins tranqüilos, E fazer-nos passar a vau sobre o sangue dos nossos... Por tudo o mais vos banimos dos nossos territórios. Vós, primo Herford, sob pena de morte, Até o dobro de cinco estios ter repleto os campos Não haveis de saudar a beleza destes domínios, Mas ireis pisar o solo estrangeiro do exílio. (SHAKESPEARE, 2002, p. 47-48).
De acordo com Heliodora (1978), houve intenção de Shakespeare em caracterizar essa
cena, pois o banimento foi resolvido em reunião de conselho, não tendo chegado
historicamente a ter lugar o encontro dos dois duques na liça de Coventry. Mas vale ressaltar
que Shakespeare quer reforçar a autoridade do rei Ricardo II, e ao mesmo tempo, demonstrar
como os nobres contendores obedecem à ordem do rei.
A quarta cena constrata com a despedida emocionada de Bolingbroke, no qual
Shakespeare valoriza a posição do nobre e revela a dignidade e o amor de Bolingbroke à
Inglaterra, bem como da certeza que tem seu pai, Gaunt, de que morrerá antes que o filho
possa voltar. Fora desse ambiente de solenidade pública vemos Ricardo, cercado por seus
favoritos, usando de tom fútil e malicioso ao interrogar Aumerle sobre os detalhes da partida
de Bolingbroke.
RICARDO Dizei, choraram muitas lágrimas à despedida? (SHAKESPEARE, 2002, p. 54).
O rei Ricardo II debocha se Henrique e Gaunt choraram muito e a apresentação de
Aumerle, além do mais, é exemplar, pois fica bem definida desde aqui sua aversão pelo primo
Bolingrboke.
AUMERLE Juro, nenhuma da minha parte, salvo
Pelo vento norte que nos batia forte nas faces Acordando por acaso uma adormecida lágrima Que assim preencheu o vazio do adeus. (SHAKESPEARE, 2002, p. 54).
No mesmo diálogo, Ricardo percebe uma certa popularidade que Bolingbroke
conquista diante de seus súditos. O rei critica esse comportamento de Bolingbroke, mas não
vê como algo condenável.
RICARDO Temos notado a sua insinuação junto do povo, Como parecia entrar nos seus corações Em jeito humilde e familiar; Que reverências fazia aos escravos, A corte aos pobres artífices pela arte do sorriso E pela paciência como suportava o seu destino, Como se quisesse exilar consigo esses afectos. Tirou o chapéu a uma vendedora de ostras; Dois carroceiros desejaram-lhe felicidades, E ele prestou-lhes homenagem com grandes vênias, Dizendo, “Obrigado, patrícios, meus caros amigos”... Como se, ao invés, a nossa Inglaterra fosse dele E ele, o passo seguinte na esperança dos súbditos. (SHAKESPEARE, 2002, p. 55).
Porém, na opinião do rei, o carisma de Bolingbroke é uma ameaça. E, portanto, para o
rei, o exílio de Henrique é benéfico para a sua sustentação no poder, pois, o tempo diminuirá a
popularidade dele diante do povo.
Shakespeare fará mais uma jogada no sentido de caracterização de Ricardo para
demonstrar como o rei Ricardo é egocêntrico e não está preocupado com o bem comum na
última cena do primeiro ato. “É mister que seja o príncipe prudente a ponto de evitar os
defeitos que lhe poderiam tirar o governo e praticar as qualidades que lhe garantam a posse”
(MAQUIAVEL, 1999, p. 100). Quando Bushy entra para anunciar que Gaunt está morrendo e
deseja ver o rei, Ricardo revela a sua verdadeira face ao público/leitor:
RICARDO Ó Deus, colocai na mente do médico Ajudá-lo a despachar para a cova imediatamente! O forro das suas arcas dará capotes Para vestir os nossos soldados nas guerras da Irlanda. Vamos, senhores, vamos todos visitá-lo – Queira Deus – mesmo nos apressando cheguemos tarde! (SHAKESPEARE, 2002, p. 56).
Comparada com a atitude do próprio Gaunt, que se recusara a agir contra o sobrinho,
mesmo sabendo que este lhe mandara matar o irmão, Shakespeare diminui Ricardo aos olhos
do público/leitor quando o vemos fazendo planos para sequestrar os bens do moribundo.
O Ato II abre com uma cena altamente significativa, já que nela Shakespeare enfoca
sucessivamente vários aspectos do mau governo de Ricardo. A cena abre com Gaunt
moribundo, preocupado em que o sobrinho rei chegue a tempo de ouvir alguns conselhos que
lhe quer dar, sem deixar de fazer notar que o duque de York, o outro sobrevivente dos “sete
filhos de Eduardo”, não crê que Gaunt deva fazer tal esforço, já que os bons conselhos para
Ricardo são sempre em vão. Conforme Heliodora (1978), na conversa entre os dois,
representantes de uma velha geração, apresentada como heróica e íntegra, ficamos sabendo
que Ricardo só se cerca de bajuladores como Bushy, Baggot e Greene. “Falo dos aduladores,
dos quais estão repletas as cortes; pois os homens se deleitam tanto nas coisas próprias e de
tal maneira nelas se enganam que com dificuldade se defendem dessa peste” (MAQUIAVEL,
1999, p. 137).
GAUNT Virá el-rei tempo do meu último suspiro Do meu conselho isento à sua vã juventude? YORK Não vos atormenteis, nem percais o fôlego, Pois em vão lhe chega o conselho aos ouvidos. GAUNT Oh,mas dizem que as palavras dos moribundos Chama atenção, como que de profunda harmonia. Quando parcas as palavras, raramente se esbanjam, Pois falam verdade aqueles que a custo falam. Quem jamais poderá falar é mais ouvido Que esses a quem a juventude deixa palrar; O fim dos homens é mais notado que as suas vidas. Como o pôr do Sol, uma melodia que termina, O gosto que fica de um doce é ainda mais doce, Impregna a memória mais do que coisas já passadas: Embora Ricardo não me ouvisse em vida, Que o meu falar triste ao morrer o desensurdeça. YORK Não, quedou-se a ouvir outros sons aduladores, Elogios, de que até os sábios gostam, Versos lascivos de som venenoso, que sempre Os ouvidos alerta da juventude escutam, Enquanto copiam as modas da soberba Itália, Em maneirismos que o macaco de imitação Desta terra ainda persegue a coxear. Se o mundo avança com uma futilidade – Seja pois novidade, não importa se é vil – Não lha zumbem logo aos ouvidos? Então,
O conselho é sempre tarde demais escutado, Quando a vontade se amotina com a razão. Não tentes guiar quem quer escolher o seu caminho: Falta-te fôlego e esse fôlego irás perder. GAUNT Sinto-me um profeta como uma inspiração nova Que ao expirar sobre o rei vaticina: A chama feroz da sua folia não perdura, Pois fogos violentos logo por si se consomem; Chuvas mansas persistem, súbitas tempestades passam; Logo se cansa quem sempre e muito esporeia; O que come avidamente engasga-se, A fútil vaidade, insaciável corvo-marinho, Findo outros meios, passa a devorar-se a si própria. Este trono real, esta ilha regida pelo ceptro, Esta terra de majestade, este assento de Marte, Este outro Éden, semiparaíso, Esta fortaleza que para si a própria a Natureza construiu Contra as infecções e os braços da guerra, Este feliz berço de homens, este pequeno mundo, Esta pedra preciosa engastada no mar argênteo, Que lhe serve de muralha, E a defende como um fosso defende a casa, Contra a inveja de terras menos afortunadas; Este torrão abençoado, este país, este reino de Inglaterra, Ama e seio fértil de reais soberanos, Temidos pelas suas origens, ditosos por nascimento, Ilustres por feitos em paragens distantes, Em prol do Cristianismo e da verdadeira cavalaria, Na obstinada Judeia, onde está o sepulcro De quem resgatou o mundo, Filho de Santa Maria; Esta terra de almas tão amadas, terra bem amada E amada pela sua fama mundo afora, É agora arrendada – morro ao pronunciá-lo – Como qualquer prazo foreiro ou herdade falida. A Inglaterra, orlada pelo mar triunfante, De penhascos que repelem o cerco invejoso Das águas de Neptuno, atem-se agora em desonra, Presa a manchas de tinta e pergaminhos podres; Aquela Inglaterra que se habitou a conquistar Venceu-se vergonhosamente a si própria. Ah, se o escândalo se dissipasse como a vida, Que feliz estaria eu com a morte tão próxima. (SHAKESPEARE, 2002, p. 57-58-59).
Essa fala de Gaunt, patriótica, contém acusações graves contra Ricardo, que estava
arrendando terras da coroa como meio fácil de obter dinheiro vivo, sacrificando os interesses
maiores da nação em favor de objetivos imediatistas de consequências desastrosas. “Assim,
deve um príncipe ter poucas despesas, de modo a não se ver forçado a roubar seus súditos”
(MAQUIAVEL, 1999, p. 102). Apesar da advertência de York, o velho Gaunt considera seu
dever alertar o sobrinho contra os desmandos a que se entrega. Para Gaunt, na verdade, quem
está doente é o próprio rei que não percebe que está cercado de “mil aduladores” e comete
sucessivos erros ao arrendar as terras e gastar como um libertino; diz ainda mais, se o avô de
Ricardo previsse esses erros de seu neto, deporia-o depois de tomar posse; e por fim, Gaunt
adverte Ricardo que ele deve ser “escravo da lei”, obedecê-la rigorosamente se não estará
desonrado e perdendo a autoridade em relação ao povo. “O príncipe deve evitar, como foi
dito, aquilo que possa torná-lo odioso ou desprezível; sempre que assim proceder, terá
cumprido seu dever e nenhum perigo achará nos outros defeitos” (MAQUIAVEL, 1999, p.
113).
GAUNT Aquele que me criou sabe que te vejo doente; Sofro por me ver a mim e a ti doentes. O teu leito de morte é nada menos do que a pátria, Onde jazes podre em reputação, E tu, qual doente por demais descuidado, Entregas o teu corpo ungido ao cuidado Daqueles médicos que primeiro te feriram: Mil bajuladores acolhem-se sob a tua coroa, De diâmetro igual ao da tua cabeça, E mesmo engaiolados num recinto tão pequeno, Resta-lhes nada menos do que todo o teu país. Oh, se com olhos de profeta teu avô enxergasse Como o filho de seu filho destruía seus filhos, Longe do teu alcance colocaria ele a desonra, Depondo-te antes de teres tomado posse Daquilo que, possuindo-o, te irá depor. Porque, primo, fosses tu regente do mundo, Seria sempre desonra dar a pátria em arrendo; Mas como de teu mundo só tens esta terra, Não será mais que desonra assim desonrá-la Senhorio de Inglaterra és agora, não rei, E o teu estatuto legal é o de escravo da lei, Sendo tu... (SHAKESPEARE, 2002, p. 60-61).
A resposta do rei Ricardo é ameaçar o tio de morte, porém este não desiste de sua
posição e lembra que o rei, se já matou um tio, poderá matar outro e retirar-se repudiando a
vergonha em que está mergulhado o país.
Outro tio do rei, York, o conciliador, reafirma o amor e a dedicação de Gaunt e
quando Ricardo recebe a notícia da morte de Gaunt, imediatamente, determina o sequestro de
todos os bens do morto. A insensibilidade e a irresponsabilidade do rei diante desse “crime e
desmandos” leva York a loucura e a repreender o sobrinho-rei. “O que o faz em especial
odioso, como dito antes, é ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos”
(MAQUIAVEL, 1999, p. 113).
E o rei demonstrando não ouvir os conselhos questiona ironicamente York (Ora, tio, o
que há?). “Os bons conselhos, venham de onde vierem, decorrem da prudência do príncipe,
não a prudência do príncipe dos bons conselhos” (MAQUIAVEL, 1999, p. 139). A resposta
de York, segundo Heliodora (1978), levanta toda a questão da estrutura política sobre a qual
repousa o próprio direito ao trono de Ricardo: não tendo Gaunt cometido qualquer crime
contra a pátria, tendo sido ele um súdito dedicado e leal, a lei vigente exige que seu filho
herde os títulos e as propriedades paternas.
Aqui está um ponto crucial na peça, Ricardo ao “roubar” o patrimônio de Bolingbroke
comete seu maior erro. “Deve, em especial, impedir-se aproveitar os bens alheios, uma vez
que os homens se esquecem mais rapidamente da morte do pai do que da perda de
patrimônio” (MAQUIAVEL, 1999, p. 107). Esse acontecimento leva a sua deposição. Ao
negar o direito de sucessão a Bolingbroke, segundo a lei da primogenitura, Ricardo abala a
própria base da estrutura jurídico-política graças à qual ele mesmo herdou a coroa da
Inglaterra.
Dessa forma, o nobre Henrique, na segunda cena, do ato II, retorna a Inglaterra,
apoiado pela maioria dos nobres que se sentem ameaçados de terem o mesmo destino de
Bolingbroke. “Isso irá torná-lo odioso aos olhos dos súditos, e, assim que vier a estar
empobrecido, cairá na desestima dos outros (MAQUIAVEL, 1999, p. 101).
A situação política da peça revela que Ricardo não erra por omissão, mas por uma
decisão errada. Ricardo está na Irlanda e deixa para York a incumbência de reger na sua
ausência temporária.
Na terceira cena, do segundo ato, Bolingbroke é apresentado por Shakespeare com um
comportamento modesto, cortês e correto, evitando criar uma imagem de um invasor
agressivo e vingativo. Em Henrique, Shakespeare vai retratar o tipo de virtù, isto é, resolução,
capacidade de decisão, autoridade, consciência do dever, disponibilidade para a crueldade e
dissimulação. E vemos nessa cena, York se esforçar para discutir com os nobres e
Bolingbroke, que é um erro grave dar um golpe de Estado. No entanto, ele tem consciência de
sua incapacidade física pra lutar pela posição legalista e, também, da culpa do rei na criação
da situação crítica em que se encontra, cercado de bajuladores cuja amizade agora será
testada. E conforme Heliodora (1978, p. 257), a cena tem ainda outra função a cumprir:
quando ficam sozinhos, os amigos bajuladores, que agora devem ser postos à prova
reconhecem que, ao participarem dos erros e do favor do rei, conquistaram o ódio do povo e
cada um só pensa e esconder-se onde melhor puder. “Quanto ao príncipe, nos momentos de
incertezas, praticamente não terá em que confiar, pois não poderá basear-se naquilo que vê
nas épocas normais, quando os cidadãos precisam do Estado” (MAQUIAVEL, 1999, p. 76).
O Ato II, quarta cena, temos uma breve cena entre Salisbury e um Capitão Galês,
como diz Heliodora (1978), Shakespeare usa a crença popular de que fenômenos celestes
estranhos prenunciam a queda dos reis, afirmando que estrela de Ricardo está na descendente,
fazendo assim caminhar mais a ação para esse fim sem envolver Bolingbroke no processo.
A partir do ato III, seguem-se inúmeras cenas da perda do poder por Ricardo. Aqui
inicia-se, de fato, a tragédia dos dois corpos do rei. Pois, conforme Kantorowicz (1998), as
“duplicações” reais se desdobram nas três cenas intrigantes e centrais da peça Ricardo II: o
desembarque de Ricardo no litoral do País de Gales, o Castelo de Flint e o Salão de
Westminster.
As duplicações, todas iguais e todas simultaneamente ativas em Ricardo – Desta arte, eu represento, ao mesmo tempo, muitas pessoas - são aquelas potencialmente presentes no Rei, no Bobo e em Deus; dissolvem-se necessariamente, no Espelho. Esses três protótipos da “geminação” continuamente se interceptam, sobrepõem e contrapõem. No entanto, pode-se sentir que o “Rei domina na cena da costa de Gales (III, ii), o “Bobo”, no castelo de Flint (III, iii) e “Deus”, na cena de Westminster (IV, i), tendo o tormento do Homem como perpétuo companheiro e antítese em todos os cenários. Além disso, em cada uma dessas três cenas, encontra-se a mesma queda em cascata: da realeza divina para o “Nome” da realeza, e do nome para a miséria posta a nu (KANTOROWICZ, 1998, p. 35).
No Ato III, na segunda cena, a tragédia própria aos Dois Corpos do Rei desenrola-se,
inicialmente, na cena da costa de Gales; após a campanha na Irlanda e a chegada à costa de
Gales, Ricardo afirma a imponência de sua régia condição. “O que expõe, de fato, é o caráter
indelével do corpo político do rei, divino ou angelical. O óleo santo da consagração resiste às
forças dos elementos, ao “mar áspero e selvagem [...]” (KANTOROWICZ, 1998, p. 35).
Conforme Heliodora (1978), Ricardo expressa-se numa sonora fala emocional, na qual se
encontra inteiramente na auto-indulgência de exibir seus sentimentos para, a seguir, expressar
o desejo infantil de que sua terra na alimente seus inimigos, oferecendo-lhe apenas o veneno
de suas aranhas e serpentes.
Ao deparar-se com um quadro de franca rebeldia, Ricardo crê na santidade do seu
ofício e se recusa a acreditar que qualquer coisa ou qualquer mortal possa prejudicar um rei
ungido. “A política traduz-se em arte quando o príncipe, agindo pelo livre arbítrio, faz com
que a virtude dome a fortuna” (CHAIA, 2007, p. 86).
Ricardo se vê como o representante de Deus na Terra, o Todo-Poderoso o colocou a
frente do Estado. E nada e nem ninguém pode confrontar com a força e o desejo divino, pois
como Deus está acima de todas as coisas no universo, o rei está acima de todas as coisas na
terra. Ricardo confia cegamente em seu direito divino e em sua defesa por hostes celestes, é
deposto, com surpreendente facilidade e integral apoio da nação, do trono que ocupou com
presunção pessoal e irresponsabilidade pública. “Desprezível torna-se o príncipe considerado
volúvel, leviano, efeminado, covarde, indeciso. E essas coisas devem ser evitadas pelo
príncipe como o navegador evita um rochedo” (MAQUIAVEL, 1999, p. 113).
Ricardo, nesta fala, usa de vários modos o conceito do direito divino dos reis e assim
vemos que, se ele errou antes da crise – ao tomar as propriedades de Gaunt, pai de
Bolingbroke – na crise é incapaz de agir: para ele, ser rei não é ter as responsabilidades de um
rei, é apenas ter a aparência, privilégios e título de rei. “As manobras para a manutenção e
segurança do poder exigem o uso da capacidade individual em grau elevado” (CHAIA, 2007,
p. 86).
Dessa forma, o sopro ou “bafo” humano parece a Ricardo algo abaixo e sem força
contra a realeza: “Nem bafo algum de homem poderia depor o eleito enviado do Senhor”
(SHAKESPEARE, 2002, p. 86).
Kantorowicz (1998) atesta que esse, também, é o entendimento do bispo Carlisle, na
cena de Westminster, o qual enfatiza que o Ungido do senhor não pode ser julgado por um
sopro inferior.
Porém, é o próprio Ricardo que, “com seu próprio sopro”, libertará realeza e súditos
ao mesmo tempo, para que, por fim, o rei Henrique V possa, justamente, queixar-se de que o
rei está sujeito ao “ao sopro de qualquer tolo”.
Nessa mesma cena, Ricardo está seguro que não perderá o poder, independentemente
da realidade que se está construindo. Mesmo com toda a oposição que Bolingbroke reúne na
Inglaterra, Ricardo está convicto de “que para todo aquele que Bolingbroke coagiu a
erguer da espada, acerada contra a coroa de ouro, tem Deus, para Ricardo, como
recompensa divina, um anjo glorioso” (SHAKESPEARE, 2002, p. 86).
Ricardo acredita piamente que seu poder obedece a esse sistema cosmológico
misturado com o cristianismo medieval organizado por uma hierarquia inquestionável. Se ele
que é o maior de todos na terra cair, todo esse sistema entraria em crise e em desordem. Por
essa razão a vontade e o desejo de Deus está ao lado dele. Para Ricardo II, o invasor comete
um grande pecado, uma vez, que busca destruir a ordem social, reflexo da ordem cósmica. A
desordem em um certo nível repercute em todos os outros: se um súdito mata o rei, o chacal
destronará o leão, um anjo poderá derrubar Deus.
Sabiamente, Shakespeare coloca “em xeque” essa ideia de ordem cosmológica. Esse
princípio explicativo, vindo da Idade Média e ainda reinante no século XVI, sobre a ordem
geral do universo, o encadeamento total dos seres e das coisas, desde o átomo. Pelo contrário,
Shakespeare demonstra que a ordem terrena está aberta a interferência do agir humano,
reconhece a dimensão trágica da política ao constatar que sendo ela uma área que busca a
ordem e a harmonia, simultaneamente se constitui pela presença do inesperado e pelo esforço
para evitar o inevitável. É assim que na política, conforme a abordagem de Shakespeare,
coexistem legitimidade e desequilíbrio, ordem e caos, conforme Chaia (2007).
Esta “segurança” teológica apoiada pela sua condição divina não perdura, lentamente
se dissolve, à medida que se enumeram todas as desgraças; primeiramente, Salisbury informa
que as tropas galenses “passaram-se para Bolingbroke, ou fugiram dispersas”, a partir do
boato de que o rei estava morto. O fato de ele se atrasar um dia, ao voltar da Irlanda, resultou
nessa deserção. “Isso nos faz lembrar, como muitas vezes em Shakespeare, que o êxito de
uma ação e o ajustamento adequado do tempo são, na verdade, a mesma coisa” (FRYE, 1999,
p. 87).
Essa passagem também nos faz recordar de Maquiavel: o príncipe virtuoso deve
aproveitar a situação para alcançar o êxito, isso porque, mesmo quando o príncipe possui
virtú, o seu sucesso depende, também, das circunstâncias, dos acontecimentos de ocasião, da
força do acaso e da eventualidade da fortuna52. Para Maquiavel, a fortuna decide metade de
nossas ações, mas a outra metade depende do valor do príncipe. Dessa maneira, percebe-se
que Ricardo não teve a Fortuna ao seu lado e falta-lhe também a virtù, a potência do agir.
“Constata-se a perda dos Estados aos príncipes que se ocuparam mais com os luxos da vida
do que com as armas” (MAQUIAVEL, 1999, p. 95).
Ao receber a notícia da perda de doze mil homens, o rei empalidece: o “tempo lançou
mancha no meu orgulho” (SHAKESPEARE, 2002, p. 87). Ricardo, decepcionado, muda
imediatamente de perspectiva e começa a perceber que, dentro do rei, vive o sagrado, mas a
majestade do cargo coabita com um corpo perecível, sujeito ao comezinho, ao mortal,
envolvido por vileza, traição e covardia. Quando percebe que todos o desertaram, Ricardo se
entrega ao desespero, expresso com uma força que transcende qualquer demonstração de
eloquência anterior na obra de Shakespeare. A esta altura começamos a ver com plena
vigência a tendência para autodramatização na qual Ricardo desperdiça as energias que
deveria poupar para agir objetivamente.
Ocorre, então, uma curiosa mudança na atitude de Ricardo – como se fosse uma metamorfose do “Realismo” para o “Nominalismo”. O universal chamado “Realeza” começa a desintegrar: sua “Realidade” transcendental, sua verdade objetiva e existência divina, tão brilhante pouco tempo antes, empalidece em um nada, um
52 Fortuna é o contrapeso de virtù, símbolo da mutabilidade das coisas.
nomem. E a meia-realidade remanescente assemelha-se a um estado de amnésia ou de sono (KANTOROWICZ, 1998, p. 36).
Esse estado de meia-realidade, de régio esquecimento e dormência, antecede o “Bobo”
da corte do castelo de Flint. “De modo similar, o protótipo divino da geminação, o Deus-
homem, começa a anunciar sua presença, à medida que Ricardo se refere à traição de Judas”
(KANTOROWICZ, 1998, p. 37). Ele não se compara diretamente a Cristo, mas diz que a
mesma situação – a rejeição do escolhido de Deus – está se repetindo. Ele se sente
abandonado como Cristo. A impressão que Ricardo tem dessa realidade é que Deus entregou
seu corpo ao sacrifício. Esse é um mal necessário que ele tem que passar. Shakespeare
constrói cuidadosamente o retrato de um rei egocêntrico, de temperamento instável, incapaz
de se concentrar objetivamente nos problemas que lhe são apresentados.
Essa instabilidade no temperamento, descontrole dos sentimentos é reforçado ao
receber a mensagem e supostamente ter sido “enganado” pelos Condes de Wiltshire, Greene,
Bushy, mesmo sem saber o destino mortal dos três:
Vilões, víboras, danados sem redenção! Cães, que facilmente adulam quem quer que seja! Cobras que, acalentadas no meu coração, o morderam! Três Judas, qual deles três vezes pior que Judas! Como não fariam as pazes? Ó Inferno terrível, Por tudo isto atormenta-lhes as almas sujas! (SHAKESPEARE, 2002, p. 89).
Fica claro para Ricardo que seu vicariato de Deus Cristo pudesse implicar, também,
um vicariato do homem Jesus, “e que ele, o rei “que foi por Deus eleito”, pudesse ter de
seguir seu Mestre divino, também em sua humilhação humana, e assumir a cruz”
(KANTOROWICZ, 1998, p. 37). Ricardo está consciente de que passa pela mesma
humilhação de Cristo, por ser o “eleito” de Deus. Ricardo demonstra todo o engano o que é
ser rei. Para ele, ser rei é ser privilegiado, ser de fato diferente dos outros homens, inseto dos
embates da realidade; sem qualquer pensamento no sentido da responsabilidade do poder, é
dos lábios de Ricardo que aprendemos as razões pelas quais ele não pode continuar no trono.
Adiante, na cena que segue, do mesmo ato, o corpo natural e mortal ganha dimensão e
a humanidade do rei prevalece sobre a deidade da Coroa, além da mortalidade, sobre a
imortalidade; assim, o anjo negro da Morte convive sempre com os reis, fascinado pelo
paradoxo de um indivíduo tão vulnerável e sujeito a acidentes, quanto qualquer outro poder
ser o corpo de todo o reino.
Por amor de Deus, sentemo-nos no chão E contemos histórias tristes da morte de reis: De como uns foram depostos, outros mortos na guerra, Uns perseguidos pelos fantasmas que tinham deposto, Outros envenenados pelas esposas, ou mortos Durante o sono, todos assassinados – pois, Dentro da Coroa oca que cinge as fontes de um rei, Tem a Morte a sua corte, onde faz sentar o bobo, E zomba do poder real num esgar à sua pompa, Concedendo-lhe um suspiro, uma cena breve, Para fazer de rei, ser temido e matar com o olhar, Infunde-lhe um vão conceito de si próprio, Como se a carne que nos empareda a vida Fosse imperecível como o bronze; assim divertida, Para furar as muralhas do castelo e...adeus, rei! Cobri as cabeças e não mofeis da carne, Fazendo solenes referências; deitai fora O respeito, a tradição, fórmulas e etiquetas; Todo este tempo me entendestes mal. Vivo de pão como vós, sinto necessidades, Sinto tristeza, preciso de amigos – carente; Assim, como podeis dizer-me que sou rei? (SHAKESPEARE, 2002, p. 90).
O desespero de Ricardo ganha volume e será desenfreado, cada vez mais, à medida
que está e se sente só, traído e desamparado pelos homens; então, ele se volta para si mesmo,
“e isso é uma coisa perigosa para um governante que pretende continuar a sê-lo” (FRYE,
1999, p. 86).
Ricardo II constata, portanto, que o rei, soberano, o governante não está livre e acima
de qualquer fatalidade, traição, ciladas e morte e, por isso, lamenta e compara a sua história
com a de outros reis que tiveram o mesmo fim; compreende que a realidade política não
corresponde a uma estabilidade, ou mesmo a uma ordem estática. “Shakespeare mostra que o
poder político prossegue em pleno funcionamento, atraindo os homens para novas
conspirações” (CHAIA, 2007, p. 85). É o lugar da contingência: o tecido real inscreve-se na
trama das possibilidades sempre abertas às interferências do agir humano. O conflito e o
choque de interesses são inerentes à política. “O tempo da política é o tempo da instabilidade
e dos desequilíbrios (CHAIA, 2007, p. 84). E cabe ao indivíduo político, ao rei, valorizar a
audácia, símbolo da iniciativa do indivíduo, capaz de dominar as situações e inserir sua ação
no tempo.
A efetiva transformação da realidade política é, por meio da ação humana, consciente
das dificuldades a serem enfrentadas; Ricardo toma consciência da permanência do conflito e
da instabilidade do poder, bem como de sua fraqueza e incompetência, quando a Coroa, o
cetro e o manto sagrado estão perdidos. Nesse sentido, a política é uma forma de guerra, o
campo de forças onde se defrontam os interesses divergentes dos grupos sociais. A ideia de
que o rei “nunca morre” é substituída pela trágica fórmula de que o rei morre e, ainda, sofre a
morte mais dolorosa e brutal do que qualquer os outros mortais. Essa é a tragédia dos Dois
Corpos do Rei. “Os homens são simples atores ou sombras, que passam pelo palco político,
enquanto o poder continua em cena” (CHAIA, 2007, p. 89).
A figura do rei é tão humana que está sobreposta à condição divina. A partir de que a
trama se desenrola, e as desgraças e a desconstrução divina do rei Ricardo II são evidenciadas,
Shakespeare revela como a dimensão do poder é cruel, terrível e impactante e de que
ninguém, nem mesmo o rei ou o homem mais poderoso, está a salvo das ciladas, artimanhas,
traições e vinganças, ou seja, a ficção dos Corpos do Rei se despedaça. “Desapareceu,
também, a ficção de qualquer tipo de prerrogativas reais, e tudo o que resta é a frágil natureza
humana de um rei” (KANTOROWICZ, 1998, p. 38). É formidável observar que Ricardo, sem
jamais ter enfrentado Bolingbroke, já se considera vitimado, derrotado, destruído.
Dando sequência, analisemos, agora, a cena no Castelo de Flint: a realeza de Ricardo,
seu corpo político, perfeito e imortal, foi abalada, mas, ainda, resta a aparência da realeza;
pelo menos esta poderia ser salva, o que, de fato, não ocorre.
No castelo de Flint, ainda vigora, em Ricardo, o estado de espírito e a consciência da
dignidade real; carrega a aparência da realeza até mesmo no olhar. Ricardo é insuflado pela
pompa da entrada e pela posição fisicamente superior. Diz, assim, o duque de York sobre essa
aparência real: “Contudo, o aspecto é de rei. Reparai nos olhos vivos: como os da águia,
irradiam lampejos de uma majestade latente; mas ai, que desgraça se algum mal vier
enegrecer a beleza que vemos” (SHAKESPEARE, 2002, p. 95).
Essa aparência de realizada é vista, também, quando Ricardo exige, de
Northumberland, a genuflexão do vassalo e súdito, diante de seu senhor feudal e representante
de Deus.
Estamos surpresos, ficamos em suspenso, Para ver esse teu dobrar reverente do joelho, Pois nos julgávamos o teu legítimo rei; E se o somos, como ousa, ao curvar-te, esquecer O devido tributo de respeito à nossa pessoa? (SHAKESPEARE, 2002, p. 95).
Ricardo compreende que sua natureza divina e sua autoridade estão em declínio; assim
ele, Ricardo, conclama “exército de pestilências” que “Deus onipotente está a reunir lá nas
nuvens” para socorrê-lo. E, apesar de não acreditar na imaginação supersensível de Ricardo, o
nobre Northumberland, hipocritamente, assegura, ao rei Ricardo II, que Bolingbroke retornou
à Inglaterra, apenas para reaver seus direitos herdados de seu pai (lei da primogenitura), João
de Gaunt. E fica claro que Ricardo está cercado de nobres completamente enredados na
hipocrisia: todos os nobres e Bolingbroke estão empenhados em fingir que um mau
governante está substituído por um bom.
Esse é o momento em que a espetacular incompetência de Ricardo como administrador começa a produzir efeitos. No estado desmoralizado da nação, um poder de fato começa a se formar em torno de Bolingbroke, e este simplesmente se deixa levar: nem um joguete das circunstâncias nem um usurpador deliberadamente inescrupuloso (FRYE, 1999, p. 79).
Dessa forma, o rei, ingenuamente iludido, considera que todos os ‘justos pedidos” de
Bolingbroke serão “satisfeitos sem contradição”. Em seguida, quando Northumberland volta
da parte de Bolingbroke, o nome irreal da realeza leva, mais uma vez, ao caminho de nova
desintegração. “Ricardo não personifica mais o corpo místico de seus súditos e da nação. É
uma natureza miserável e mortal de um homem solitário que substitui o rei como Rei”
(KANTOROWICZ, 1998, p. 39). Ricardo, entrega-se, sozinho, a um processo de
autodestruição no qual está sem dúvida presente uma alta dose de prazer sadomasoquista.
Shakespeare apresenta:
Que deve o rei fazer agora? Submeter-se? O rei assim fará. Deve ser deposto? O rei assentirá. Deve perder O título de rei? Um nome de Deus...deixá-lo. Trocarei as minhas jóias por um rosário, O meu palácio suntuoso por um eremitério, O meu traje vistoso pelos trapos do mendigo, As taças cinzeladas por gamelas de pau, O meu cetro por um bastão de peregrino, Os súditos por um para de sapatos entalhados, A largueza do meu reino por um pequeno túmulo, Um túmulo bem pequeno, obscuro túmulo [...] (SHAKESPEARE, 2002, p. 97-98).
Cada vez mais se acentua um estado de abjeção ainda maior e isso é observado,
quando Northumberland pede que o rei desça para o pátio baixo do palácio para encontrar-se
com Bolingbroke.
Desço, desço, como o reluzente Faetonte Quando não podia domar os cavalos bravos. Pátio de baixo? Pátio de baixo, onde reis se baixam, Para acederam os traidores e lhes perdoarem No pátio de baixo? Descer? Abaixo, corte! Abaixo, rei! Piam corujas onde cantariam cotovias! (SHAKESPEARE, 1998, p. 98).
Ricardo II desempenha, agora, ambos os papéis: o bobo de seu próprio eu e o bobo
da realeza; bobo de seu próprio eu, pela quebra da ilusão da condição divina que o imantava e,
o bobo da corte, ao divertir os nobres, quando despe todos os seus aparamentos e retira o seu
manto real e sagrado, demonstrando sua incapacidade como homem prático, mas um poeta
notável. “Por fim, Ricardo acaba entendendo, [...] que ele está se programando como um
perdedor e que se colocou, no papel elegíaco, de alguém que deu o trono por perdido antes
mesmo de perdê-lo” (FRYE, 1999, p. 87).
Outra cena formidável é quando Ricardo cumprimenta seu vitorioso primo e ironiza a
genuflexão que Bolingbroke faz diante dele; para Ricardo, esse gesto hipócrita revela a
“comédia de seu reino quebradiço e dúbio” (KANTOROWICZ, 1998, p. 41). Bolingbroke é
um verdadeiro líder, faz o que a nova situação pede e não o que é coerente com o que ele fez
antes. Nessa passagem, Shakespeare, curiosamente, se aproxima de O Príncipe de Maquiavel.
Bolingbroke é liberal, generoso e sabe criar a impressão de que grande parte do poder de
decisão não está sendo exposta.
Shakespeare, aceitando de Maquiavel tanto o realismo político quanto a necessidade da compreensão da natureza humana para melhor entender a política, expressa em suas obras uma visão exacerbada das tensões e paradoxos dos homens divididos entre a moral e a política e entre a paixão, irracionalidade e a política (CHAIA, 2007, p. 89).
Quando se abre a terceira cena a ser analisada, em Westminster, Ricardo é incapaz de
explicar sua realeza; totalmente frustrado, ele se volta para a mágica e para a fantasia.
Na praia de Gales, o próprio Ricardo havia sido o emblema da exaltação do reinado por direito divino; no castelo de Flint, havia tornado seu “programa” salvar, pelo menos, a aparência de rei e justificar o “Nome”, embora o título não mais se adequasse à sua condição (KANTOROWICZ, 1998, p. 41).
Essa incapacidade de explicar a realeza leva outra pessoa a falar por ele e interpretar a
imagem da realeza estabelecida por Deus; essa pessoa é o bispo de Carlisle. “O bispo de
Carlisle, agora, interpreta o logothetes; mais uma vez, ele obriga o rex imago Dei a aparecer”:
Mas é a mim que melhor compete falar a verdade. Quisera Deus que algum dos nobres presentes Fosse nobre o bastante para julgar com justiça O nobre Ricardo! A esse, a verdadeira nobreza Ensinaria a abster-se um ato tão vil. Que súdito poderá sentenciar o seu rei? E aqui, sentado, não é súdito de Ricardo?
Não são os ladrões julgados apenas quando ouvidos, Por mais que pareçam culpados, E o representante da majestade de Deus, O seu capitão, magistrado, senador eleito, O ungido, o coroado, de há muito no trono, Terá ele de ser julgado por subalternos, E mesmo sem estar presente? Oh, Deus, não permitais Que, num país cristão, almas esclarecidas Cometam tal hediondo crime, negro e obsceno! (SHAKESPEARE, 2002, p. 109-110).
O bispo, devido a seu discurso corajoso, imediatamente, foi detido por alta traição,
porém, na atmosfera apocalíptica, profetizada pelo bispo de Carlisle - “este país será chamado
de campo de Gólgota e das caveiras dos mortos” – entra Ricardo novamente em cena.
Quando conduzido para o Salão de Westminster, Ricardo executa similares acordes do
biblicismo do bispo: ironiza a assembléia hostil e estigmatiza, chamando-os nobres que
circundam Bolingbroke de Judas. Enfim, o rei é obrigado a se “desreizar”. Esta cena é de
solenidade sacramental: Ricardo desfaz-se de sua realeza. “Um a um, ele priva seu corpo
político dos símbolos de sua dignidade e expõe seu pobre corpo natural aos olhos dos
espectadores” (KANTOROWICZ, 1998, p. 43). Entrega a coroa, cetro, perde o orgulho régio,
lava com lágrimas o óleo da unção, abandona feudos, rendas e rendimentos, revoga leis,
decretos e estatutos; perde o “Nome”, renuncia a seu cargo diante de Deus e dos homens. Para
Ricardo, só lhe sobra a realeza interior, “faz a sua realeza verdadeira para retirar-se para o
homem interior, para a alma, a mente e os “régios pensamentos” (KANTOROWICZ, 1998, p.
44).
Eu, não, não, eu; pois um nada terei de ser. Assim, nenhum “não”, pois abdico em ti. Agora vê como me desfaço de mim. Retiro este peso morto da minha cabeça, Este cetro desmesurado da minha mão, O orgulho do poder régio do meu coração; Com as minhas lágrimas lavo os óleos, Com as minhas mãos entrego a Coroa, Com a língua renego o meu reino sagrado, Com o próprio respirar quebro todos os votos; Renuncio a toda pompa e majestade; Abandono feudos, rendas e rendimentos; Revogo leis, decretos e estatutos. Deus perdoe os juramentos que me foram violados, Deus guarde invioláveis os que te fizerem. Fazei com que nada, que nada tenho, me angustie, E que tudo a ti, que tudo tiveste, te alegre. Muito vivas tu para ocupares o trono de RICARDO E Ricardo, em breve, possa jazer numa cova. Salve, Rei Henrique, diz o destronado Ricardo,
Deus vos dê muitos anos de dias de sol! Que falta ainda? (SHAKESPEARE, 2002, p.112-113).
A dessacralização real encerra-se; por fim, Northumberland exige que o rei destronado
assuma “os crimes graves contra o Estado e os interesses da nação” para justificar e legalizar,
cada vez mais, a razão de o rei Ricardo ser deposto.
Aqui pode parecer que ele esteja dizendo o que Northumberland está tentando forçá-lo a dizer ou sugerir: que foi, merecidamente, deposto como um criminoso. Mas, na verdade, algo mais está acontecendo: em meio a essa multidão de rebeldes que, ritualmente, encarregam-se de tomar o poder, Ricardo emerge como uma personalidade completamente nua, e os outros não podem fazer nada a não ser contemplá-lo (FRYE, 1999, p. 88).
A cena do espelho é o clímax dessa tragédia da personalidade dual.
Então, temos a inspirada cena do espelho, no qual ele dramatiza a sua fala “voltar meus olhos para mim mesmo” (“turn mine eyes upon myself”). Com certeza, ele ainda está fingindo, mas finge algo totalmente diferente daquilo que se esperaria que fingisse. Num dos seus aspectos, o rei é um ser humano. Ao forçar todos a encarem-no como um ser humano, enquanto se contempla no espelho, ele torna visível um tipo de realeza originária dessa humanidade, cujo segredo Bolingbroke jamais decifrará. Aqui notamos um princípio que veremos, depois, em Rei Lear: que, em algumas circunstâncias, a verdadeira realeza está no indivíduo e não na pessoa simbólica. Bolingbroke vive num mundo de realidade e sombras: o poder é real para ele, e Ricardo, com seu espelho, retirou-se para um mundo de sombras (FRYE, 1999, p. 89).
O rei já deposto busca constatar se ele é ainda o mesmo ser, então, pede um espelho. É
Bolingbroke quem dá a ordem de trazer o espelho: a palavra de Ricardo já não tem nenhum
valor. “Quanto à história, Ricardo já era: nada resta fazer a não ser encontrar um meio de
assassiná-lo. Mas quanto ao drama, Ricardo é e será o protagonista inesquecível, enquanto
Bolingbroke é apenas um ator coadjuvante” (FRYE, 1999, p. 88).
Ricardo percebe, desiludido, que a sua imagem de rei está totalmente desconstruída; o
que lhe resta é a condição de um homem comum, fadado a doenças, tristezas, angústias,
decepções, solidão e à inevitável morte. Quando na prisão, Ricardo fica fascinado com o
número de personae que pode invocar: seus pensamentos querem escapar e alguns são
ambiciosos, mas todos eles mostram insatisfação, não por estar preso, mas porque estaria
descontente em qualquer lugar, uma vez que sua condição divina deixou de existir; a deidade
do rei afasta-se da natureza mortal e miserável do homem. Nessa perspectiva, o conflito dos
Dois Corpos do Rei deixa de existir para Ricardo, a partir da quebra do espelho e, seus
sonhos, sua fantasia e imaginação acabam no “nada”.
Por fim, quando Ricardo, diante da “frágil glória” de seu rosto, lança o espelho no chão, despedaça-se não só o passado e o presente de Ricardo, mas todo o aspecto de um sobremundo. Estava encerrada sua catoptromancia. As feições, tais como refletidas pelo espelho, traem seu despojamento de toda possibilidade de um segundo ou de um supercorpo – do corpo político pomposo do rei, da santidade do representante eleito do Senhor, das loucuras do bobo e até dos pesares mais humanos que residem no homem interno. O estilhaçamento do espelho significa, ou é a ruptura de uma dualidade possível. Todas as facetas se reduzem a uma só: a face banal e, a physis insignificante de um homem miserável é, agora, uma physis esvaziada de qualquer metafísica. É menos, e ao mesmo tempo, mais que a Morte. É a transmissão53 de Ricardo e a ascensão de um novo corpo natural (KANTOROWICZ, 1998, p. 46).
Neste percurso, evidencia-se – por meio da expressão artística de Shakespeare, em sua
linguagem poética dramática – na peça Ricardo II, quão frágeis se apresentam a legitimidade
e a legalidade das ações praticadas pelos homens no mundo real.
Bolingbroke torna-se o rei Henrique IV. Ele sugere a morte de Ricardo, que estava
preso e seria bastante conveniente a ele. Então, seu seguidor Exton se encarrega do
assassinato e volta esperando uma recompensa por seu fiel serviço.
Só que Exton esquece que os chefes têm que se dissociar imediatamente de atos como
esse, tendo-os ordenado ou não, e a peça termina com Exton banido e Henrique dizendo:
“Embora o desejasse morto, odeio o assassino e amo o assassinado. Terás como paga os
remorsos da consciência, não o meu apreço nem benesses reais” (SHAKESPEARE, 2002, p.
142).
Conforme Chaia (2007, p. 89), Shakespeare faz uma retomada de Maquiavel,
envolvendo a política com a vida e com as condições de humanidade e, desta forma, coloca
novas questões e improbabilidades das quais, ainda hoje, não conseguimos escapar.
53 Para Edmund Plowden, transmissão é uma palavra que significa a existência de uma separação dos Dois
Corpos e, que o corpo Político é removido do Corpo natural, agora morto, ou afastado da Dignidade real, para outro Corpo natural.
CONCLUSÃO
Neste estudo, foi constatado que William Shakespeare projetou o saber histórico e o
artístico sobre o campo do pensamento político, marcando um momento da instauração da
modernidade. Nesta época, presencia-se o início de um novo ciclo histórico sem precedentes
na história mundial que se caracteriza, principalmente, em termos de política, pelo
fortalecimento do Estado Moderno.
Renascimento é, então, o nome que os estudiosos deram a esse período, por
renascerem os valores estéticos e filosóficos dos antigos gregos e latinos; seu traço marcante
foi o profundo racionalismo e o surgimento do individualismo moderno.
O espírito de aventura intelectual e artística que surgiu na Itália, no decorrer do século
XIV e ficou conhecido como Renascença estava fundado, portanto, numa confiança resoluta
nas capacidades do homem e em sua bondade essencial. Apesar da leitura de Maquiavel, e
mais tarde de Thomas Hobbes, de que o homem não possui o instinto de sociabilidade como
afirmava Aristóteles. Cada homem encara seu semelhante como um concorrente que precisa
ser dominado. Onde não houve domínio de um homem sobre outro existirá sempre uma
competição intensa até que esse domínio seja alcançado. E isso gera um permanente estado de
guerra de todos contra todos. É uma visão realista da natureza humana, em que por ocasião do
desentendimento dos homens caracterizados como átomos egoístas sobre cujas relações de
interesse o príncipe pode/deve agir. A verdade do poder e do Estado moderno exprime-se
numa lógica estratégica em situação de contingência radical.
Com o Renascimento foram sendo repudiados vários ideais de vida da Idade Média; a
cavalaria medieval já estava em decadência como arma de guerra, principalmente, por causa
da utilização da pólvora. A partir da Renascença completou-se o declínio da cavalaria, como
instituição social formada do cavaleiro, tipo humano que possuía, em termos ideais, os
seguintes valores: devoção a Deus e à Igreja, fidelidade ao seu senhor, respeito às damas e
obrigação de defender fracos e oprimidos. A honra, o dever e as habilidades guerreiras eram
as principais preocupações de um cavaleiro. No Dom Quixote de Miguel de Cervantes, obra-
prima da literatura renascentista espanhola, os ideais da cavalaria apareciam como algo
superado e decadente para os homens dos tempos modernos do século XVI.
O Renascimento marca, também, uma nova postura do homem ocidental diante da
natureza e do conhecimento. Este deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de
contemplação e fé, para voltar a “ser o que era antes entre gregos e romanos” – o resultado de
uma bem conduzida atividade mental.
Num mundo que se torna cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o
homem sente-se livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivencia; sente-se livre para
analisar a realidade como algo em si mesmo e não como um castigo de Deus lhe reservou. Os
filósofos e os artistas passam a questionar e dissecar a realidade social, assim, a vida dos
homens passa a ser fruto das suas ações e escolhas, e não dos desígnios da justiça divina.
Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade concreta, para o mundo
terreno, numa ânsia por conhecê-lo, descrevendo-o, analisando-o, medindo-o, quer com
medidas precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana. Nessa visão humana
e especulativa da vida social está o germe do pensamento moderno que vai se expressar na
literatura, na pintura, na filosofia.
De fato, a cultura renascentista desenvolveu-se em diversos países da Europa centro-
ocidental, assumindo, em cada país, características próprias e específicas. No entanto, o
Renascimento, na Inglaterra, chegou com vagar; de acordo com Sichel (1972), não houve
pintura ou escultura que se pudesse dizer extraordinária, mas, na literatura, não há outro
período tão rico para a Inglaterra como este.
Poetas, dramaturgos, prosadores e teólogos trouxeram nova riqueza para a literatura.
Conforme já enunciamos na p. 81, denominam o período elisabetano de A Era dourada,
porque, naquele século, viveram Christopher Marlowe, Ben Jonson, John Lyly, Robert
Greene, Thomas Nashe, George Chapman, John Marston, John Fletcher, Francis Beaumont, e
o filósofo Francis Bacon, cujas obras literárias, filosóficas e científicas tornaram-se
universais. As cisões religiosas entre as várias facções do cristianismo – catolicismo,
anglicanismo, calvinismo - somadas à ameaça da invencível Armada suscitou um clima
efervescente, favorável à imaginação, estimulando-os a todos os tipos de criação. Esses anos
de conflitos político-religiosos e de ansiedade testemunharam e estimularam a grande
renascença literária elisabetana.
E como afirma Bloom (2000), realmente, o nome de William Shakespeare ergue-se
como o maior de todos os tempos, sendo que o que impressiona, na figura de Shakespeare,
encontra-se, precisamente, em certa radicalidade (entendendo-se como ir à raiz dos
problemas), em saber dizer as coisas novas, em expressar a aurora dos tempos modernos.
Ainda, de acordo com Bloom (2000), Shakespeare “tudo sabe” – ele sabe o homem,
compreende a natureza, a representação da personalidade humana, grande parte dos ofícios
humanos e sabia bem o seu tempo. Shakespeare reinventa o teatro, um teatro que ostenta,
mesmo em seus altos e baixos, uma vitalidade sem igual. Destaca-se como um escritor que
trata da guerra, do amor, da política, da corrupção, de vários temas, com bastante autoridade e
entusiasmo.
Nessa mesma linha de raciocínio, Bloom (2000) destaca que devemos a Shakespeare
as nossas ideias sobre o que constitui o humano autêntico. Quando o primeiro Fólio das peças
de Shakespeare foi publicado em 1623, continha um prefácio que incluía um poema de Ben
Jonson; nesse poema há um famoso verso: “Ele não era de uma época, mas de todos os
tempos”. Ou seja, ele não pertence apenas à era elisabetana; ele dialoga hoje conosco, com
uma voz vigorosamente contemporânea.
Conforme Heliodora (1978), Shakespeare concedeu às suas personagens a liberdade
de viver uma vida própria levada até aos extremos limites do bem e do mal. A arte trágica de
Shakespeare capta uma variedade quase infinita de estados de alma, as suas peças foram
escritas para o teatro contemporâneo, aproveitando as possibilidades do palco elisabetano com
enorme engenho e invenção.
Na busca de abranger a arena política da Inglaterra de seu tempo, Shakespeare
escreveu nove dramas históricos ingleses. Ele cobriu os anos do século XV, que viram as
últimas fases da Guerra dos Cem Anos, alternando-se à Guerra das Duas Rosas, que terminou
com a ascensão do avô de Elisabeth: Henrique VII. O material utilizado vinha de uma
variedade de fontes históricas, principalmente, das Crônicas de Holinshed e Edward Hall.
Estes cronistas forneciam exemplos próprios para exaltar o poder nascente da nação inglesa e
para oferecer como lição a seus contemporâneos a imagem dos problemas do presente no
espelho dos acontecimentos do passado. Shakespeare captura essa essência, insufla o ardor
patriótico e retrata a insana e incansável luta pelo poder em seus Dramas Históricos. Uma das
peças que trata de uma temática especial – o mito da Coroa, exaustivamente, discutida no
governo de Elisabeth – é Ricardo II.
A peça, em análise, nesta pesquisa foi escrita em 1595. É obra de sangue, traição,
conflitos, tensões, disputas de poder, coalizões e intrigas, contendo momentos de verdadeira
poesia íntima e de profunda intuição psicológica. Assim sendo, a dimensão trágica da/na
política está presente nas peças de Shakespeare, nas quais o autor expressa as tensões e os
paradoxos que atravessam a esfera do poder ou do mando.
Dessa forma, Chaia (2007) ressalta que Shakespeare aponta para outro tipo de
contradição perpassando o político, ao reforçar que o valor das paixões/emoções individuais e
as comoções coletivas, mesmo ao ocorrerem inconstantemente e aos saltos, ocorrem de forma
extraordinária.
Como pontua Chaia (2007), Shakespeare reconhece a dimensão trágica da política ao
constatar que, sendo ela uma área que busca a ordem e a harmonia, simultaneamente,
constitui-se pela presença do inesperado e pelo esforço para evitar o inevitável. É assim que
na política, conforme a abordagem de Shakespeare, coexistem legitimidade e desequilíbrio,
ordem e caos.
Entendemos que Shakespeare não usou o teatro para o “nada”: compreendeu suas
condições como eram e as aceitou normalmente; suas peças apresentam os aspectos da vida
social que podiam ser compreendidos pela audiência e que podiam dialogar com as
convicções das pessoas. Mesmo assim, ele lidava apenas com aqueles elementos que se
ajustavam à peça que estava escrevendo. O fato de as peças serem geralmente em verso
demonstra, entre outras coisas, como bem assinala Frye (1999), que havia dois níveis de
significação: uma significação apresentada ou evidente e uma significação subjacente, dada
pelas metáforas e imagens utilizadas, ou por certos acontecimentos ou discursos subordinados
e subliminares, como é o caso da curiosa cena do jardim da peça Ricardo II (III.iv), para a
qual os estudiosos nunca acharam uma fonte e que constituem duas coisas que os escritos de
Shakespeare praticamente nunca são, alegórica e sentimental. Às vezes, os dois níveis nos
oferecem diferentes versões do que está acontecendo.
Por exemplo, nessa dramática cena do jardim, talvez Shakespeare pudesse estar
fazendo uma alusão aos riscos de um governador competente confiar “demais” em nobres
ambiciosos antes que se tornassem perigosos? Entretanto, o entendimento do grupo de Essex
era que a peça auxiliaria na propaganda política para conclamar aos cidadãos a “libertar” a
Rainha de seus maus conselheiros.
A moral política de todas essas peças parece clara: quando nobres ambiciosos e hostis
escapam ao controle do governante, há apenas miséria e caos, até aparecer um governante que
centralize a autoridade e transforme os nobres em cortesãos dependentes do soberano.
Dessa maneira, a fonte principal da Tragédia Renascentista foi, precisamente, a ênfase
na queda de homens famosos. A preocupação com os governantes tornou-se tema de
referência para Shakespeare. Principalmente quando o governante não sabe refrear suas
ambições nem as dos que o rodeiam. Na tradição exemplar e na ênfase reiterada sobre os
assuntos relativos a Reis, há um novo interesse emergente em relação ao verdadeiro operar da
tragédia moderna que se revela, superficialmente, nos efeitos que ela pode causar sobre os
reis, como Ricardo II. É o que assevera Chaia (2007), em alguns momentos, os homens
encontram-se nas mãos das paixões e dos desejos dos governantes, em outros na dependência
do incontrolável jogo das forças de poder. A tragédia da política realiza-se quando
Shakespeare retrata a história dos reis e enfatiza a luta, conquista, manutenção e queda do
poder, constatando que quanto mais as ações humanas se voltam para o poder ou são atraídas
por ele, mais perdem o controle de suas ações. Chaia (2007) considera que Shakespeare
aceitando de Maquiavel tanto o realismo político quanto a necessidade de compreensão da
natureza humana para melhor entender a política, expressa em suas obras uma visão
exacerbada das tensões e paradoxos dos homens divididos entre a moral e a política e entre a
paixão, a irracionalidade e a política.
Shakespeare preocupou-se em criar um quadro sociopolítico no qual sejam inseridos
seus personagens e, em relação ao qual, adquiram credibilidade maior suas tramas. Seus
primeiros passos, como dramaturgo, ao abordar temas políticos direta ou indiretamente,
direcionam-se à discussão sobre o bom e o mau governo, como também à luta pelas mais
variadas formas de poder. Toda produção shakespeariana, voltada para essa disputa política
inglesa e, mais particularmente, da formação que o poeta recebeu em casa, na escola e na
igreja. Shakespeare expressou, de forma inigualável, sua visão sobre a capacidade humana de
enfrentar as forças do destino em situações extremas.
Na peça Ricardo II, Shakespeare se preocupa, fundamentalmente, com a criação de
um quadro sociopolítico de acordo com a trajetória do protagonista: inicialmente como Rei,
aos poucos, despe-se do figurino divino que ele imagina imantá-lo, convertendo-se num
personagem humano, frágil e trágico: percebe que, se nele vive o sagrado, a majestade cargo
coabita com um corpo perecível, sujeito ao mortal e ao trágico, envolvido por vileza, traição e
covardia.
Ricardo II constitui como parte da segunda tetralogia sobre a história da Inglaterra em
torno da figura dos reis Ricardo II, Henrique IV e Henrique V. A peça Ricardo II é
considerada como a mais formal e cerimonial das peças shakesperianas, onde os conflitos de
natureza política e bélica, que geram a ação, permanecem sempre nos bastidores das
evocações; são cenas de violência, traição, vinganças, de intensa carga emotiva e a catarse é
um elemento fundamental na funcionalidade da peça. É o único drama histórico
shakespeariano em que o soberano não é usurpador (Henrique IV e Ricardo III) ou herdeiro
de um usurpador (Henrique V), consequentemente, teria maior direito à legitimidade.
No entanto, Shakespeare nos apresenta um monarca que se tornou o símbolo da roda
da Fortuna. Sem virtù, a capacidade de ação e decisão, Ricardo II acredita que seu trono,
coroa e cetro serão defendidos por hostes de anjos celestes. Ou seja, acredita piamente num
fundamento teológico que de nada valerá contra o realista personagem Bolingbroke.
Shakespeare revela, portanto, que o soberano para manter-se no poder e ser sustentado pelo
povo, necessita de ousadia e cautela, precisa ter conhecimento da realidade que o cerca; tem o
dever de conhecer a natureza dos tempos e a dos homens e se adequar a elas. Como afirma
Chaia (2007), ao lado de Maquiavel, Shakespeare cria um espaço de encontro entre política e
vida, cujo pano de fundo é a presença constante da tragédia. Uma visão de Shakespeare,
clarificada pela leitura de Maquiavel, une arte e política, homem e poder, assim como caos e
controle, vida e morte.
Nesse estudo, portanto, dividido em quatro capítulos, abordamos no primeiro: as
intrigas, os conflitos, as coalizões, as tramas e as ações políticas da rainha Elisabeth,
primeiramente, diante do risco de morte que passou durante o governo de sua meia-irmã Mary
Tudor; em segundo, quando ascende ao trono inglês com 25 anos de idade, busca formar ao
seu lado, um grupo de ministros confiáveis e leais, que tivessem dois sentimentos –
patriotismo e razão de Estado – e com William Cecil, seu principal conselheiro, a rainha
Elisabeth faz uma parceria política que dura muitas décadas; terceiro, para atrair a atenção de
outros Estados europeus, oferece sua mão em casamento. E diante do impasse, entre envolver-
se na política continental (enfrentando os inimigos do seu possível marido) e casar com um
inglês (que criaria rixas internas e enfraqueceria sua posição no exterior), decide manter-se
solteira. E a partir daí, há uma forte propaganda política de “Rainha Virgem”, comparada a
deusas pagãs e a imagem e semelhança da Virgem Maria; quarto, ao decidir não se casar e
deixar herdeiros, cresce a oposição católica dentro do seu próprio reino, apoiado pela Bula de
Excomunhão do Papa Pio V, a pressão da Espanha e o desejo de colocar a rainha escocesa
Mary Stuart no trono inglês. Após alguns levantes terem fracassado, a rainha Elisabeth é
pressionada por seus ministros, e por fim, é obrigada a mandar para o cadafalso e ser
executada sua prima, Mary Stuart, por alta traição, ao participar da conspiração católica e
tramar o assassinato da rainha Elisabeth; quinto, o rei espanhol Filipe II decide em 1588,
invadir a Inglaterra com uma “Invencível Armada”, todavia a força da esquadra naval ibérica
é contida pelos ingleses, e um misto de patriotismo e alívio atinge todas as camadas sociais
inglesas; sexto, o último conflito pela manutenção do poder é contra Essex e seus
correligionários, a rainha pune, com rigor, as atitudes e as ameaças de Essex e seu grupo
político. Nesse capítulo, evidencia-se como a rainha Elisabeth é uma governante moderna,
com virtù, capaz de dominar as situações e inserir sua ação no tempo. Teve a sabedoria de se
adequar a cada situação tendo em vista o êxito da conquista ou manutenção do poder.
No segundo capítulo, discutimos sobre o aspecto geral do renascimento e a forma
como se deu na Inglaterra. Vimos também a trajetória biográfica, desde a origem até a fase
final, além de um breve resumo acerca dos Dramas Históricos do dramaturgo, poeta e escritor
William Shakespeare (1564-1616). O bardo dramaturgo não só aperfeiçoou o soneto inglês
como a própria língua e a dramaturgia que dele nasceu, reinventando o próprio teatro. De
acordo com Heliodora (1978), a língua inglesa, no início da modernidade, foi, então, moldada
por Shakespeare. Vale ressaltar que vimos todo um contexto social, político e cultural da sua
época. É evidente que analisar a produção artística que procura representar a condição
humana requer elementos da estrutura política, econômica, religiosa e social na qual o artista
está inserido. Shakespeare, portanto, viveu numa Inglaterra num clima extremamente tenso,
dramático, apaixonado, resultante do embate religioso, dos complôs e atentados contra
Elisabeth e sérias ameaça vindas de fora. Sob essa ótica, tomado pelo clima emocional que
envolveu os ingleses – principalmente nos momentos de decapitação de Mary Stuart e derrota
da invencível Armada – dedicou-se a compor uma série de grandes peças históricas
celebrando o passado belicoso dos reis britânicos, conclamando os ingleses a manterem
unidade em torno da monarquia. Esse segundo capítulo complementa tanto o primeiro que
discutiu o governo de Elizabeth, como o quarto capítulo que trata da análise interna da peça
Ricardo II, ao narrar a vida e obras históricas de William Shakespeare.
No terceiro capítulo, fizemos um recorte histórico e tratamos da vida do rei Ricardo II.
Ele foi rei de Inglaterra entre 1377 e 1399. Ricardo II mostrou-se um rei vacilante,
influenciável e em algumas circunstâncias tirânico. Apontamos, também, que ele enfrentou
quatro duelos mortais com a sociedade aristocrática feudal: em 1386 foi derrotado, em 1389
foi vitorioso, em 1398 foi supremo e, em 1399, foi destruído. A vida de Ricardo II foi
representada nos palcos por meio do drama histórico de Willliam Shakespeare.
Finalmente no quarto capítulo tratamos da peça Ricardo II. Shakespeare criou nesse
Drama Histórico, uma interessante tragédia lírica: a tragédia dos Dois Corpos do Rei. Em
verdade, analisamos os atos, cenas, diálogos, monólogos.
Shakespeare expõe uma das melhores idéias sobre a trágica natureza dual do rei. A peça
Ricardo II clarifica, desenvolve e facilita o entendimento da superação da doutrina jurídica
dos Dois Corpos do Rei. Shakespeare amplia o jargão legal – constitucional e judicial – para
o campo da literatura e da dramaturgia.
Defendemos que essa obra singular é imprescindível ao campo da ciência política e
proporciona ao leitor um ângulo privilegiado para observar a transição de um fundamento
teológico da Idade Média para uma justificação moderna de legitimidade dos reis. Ressalte,
ainda mais, que essa obra possui potencial para enriquecer ou complementar obras da
filosofia e teologia política que norteiam a presente temática.
Na obra, como já discutimos, Shakespeare demonstra, mais claramente, a presença da
face divina do poder do rei, canalizando as duas esfera para uma só. Ricardo II, personagem
que, ao tempo de Elisabeth, foi rejeitado pela própria rainha, com medo de uma identificação
pelo povo com sua figura, teve, em sua tragédia, a recuperação da imagem de Cristo que
padecia sob Pôncio Pilatos antes de ser crucificado, assim como ele diante de Bolingbroke.
Sua condenação tornava clara a traição que seu corpo natural havia submetido seu corpo
político na condição de rei – e, por ela, é que haveria de ter a condenação em que se baseiam
as cenas citadas. Sua face humana prevalece sobre a política, exatamente, porque a
mortalidade (matéria corporal) sobressai em relação à sua imortalidade real (esfera, caráter
divino); essa mortalidade se torna vísivel, finalmente, pela quebra do espelho, quando Ricardo
expõe-se aos elementos do mundo e abre mão do seu ser divinizado.
Esse drama, que estreou em 1595, continua até hoje como a melhor exposição das
ideias de Shakespeare e do seu tempo sobre a monarquia: a concepção dos “Dois Corpos do
Rei” – o divino e o profano – que ele expõe ao longo dos atos e cenas.
Enfim este é a tese que se apresenta nesta pesquisa, procuramos destacar o contexto
histórico, político e religioso tanto do autor da peça, William Shakespeare, bem como tornar
claros os conflitos políticos e as ações nos governos de Elisabeth e Ricardo II e as raízes
históricas do autor da peça.
Ao contrário de Elisabeth que dialogou bem com o Parlamento, arbitrou a rivalidade
dos conselheiros prudentes com os favoritos belicosos e manteve-se até o fim de seus dias, no
poder, Ricardo II cercou-se de aduladores, enfrentou e não soube enfraquecer os nobres
poderosos, ocupou-se de viver com os luxos da vida do que com as armas, adquiriu má fama
ao onerar tributos com o povo, buscou ser mais amado do que temido, não tomou partido por
nenhum dos nobres numa situação delicada, infringiu a lei da primogenitura ao tomar os bens
de Gaunt, e por fim, não conseguiu ter apoio da nobreza e do povo quando em risco de perda
de poder. De fato, todos esses elementos ajudaram a compreender e assimilar a construção e
desenvolvimento da peça Ricardo II. Acreditamos ter apresentado claramente a tragédia dos
Dois Corpos do Rei a partir da ótica shakespeariana.
Vale reforçar, novamente, que consideramos não ter sido necessário, devido ao
objetivo inicial apresentado em nosso trabalho, contar com extensa e rica bibliografia do
campo da filosofia, história e teologia sobre a natureza dual do rei. Sabemos, perfeitamente,
que a curiosa ficção da “majestade nascida gêmea” tem uma larga tradição e complexidade
teórica. Ao contrário, nossa investigação, neste presente estudo, foi demonstrar que
Shakespeare – que dominava o jargão de quase todo o ofício humano – ignorasse a fala
constitucional e judicial que o circundava e que os juristas de seu tempo empregavam de
modo prolífico no tribunal. A familiaridade de Shakespeare com casos legais de interesse
geral não pode ser posta em dúvida.
Encontramos em diversos autores inúmeras evidências de sua formação escolar na
King´s New School – tendo o ensino do latim e de obras clássicas da filosofia e literatura
grega e latina: Cato, de Erasmo, Sentetiae Pueriles, de Leornad Cullman, Fábulas, de Esopo,
obras de Terêncio, Plauto, Virgilio, Horácio, Ovídio, Cícero, Susebroto, Quintiliano – com
pedagogos oxfordianos.
Shakespeare antes dos 11 anos, já dominava o latim escrito: traduzindo trechos da
Bíblia de Genebra. Suas peças e poemas citam ou fazem referências a, simplesmente, 42
livros da Bíblia. Teve, segundo algumas fontes, durante a sua adolescência, conhecimento
com procedimentos judiciais, ao trabalhar com algum advogado da região. Durante a
juventude e a fase madura, com tantas condenações que perseguiram seu pai e ele mesmo,
Shakespeare adquririu um razoável conhecimento na área do direito.
É, também possivel, que durante algum tempo, ao chegar a Londres, aprendesse, pelo
menos, a arte de escrivão ou de escriturário de advogado, além de contar com auxílio, na
composição de suas conversas com outros dramaturgos, ou mesmo com seu amigo Ben
Jonson. Dessa maneira, podemos afirmar que os conhecimentos de Shakespeare acerca de
assuntos pertencentes à área de teologia, política e filosofia não lhe pareciam ser
desconhecidos, nem lhe apresentar grandes dificuldades; isso fica claro na peça Ricardo II, ao
tratar a questão da natureza dual do rei.
É importante frisar que este estudo pertence à área de Política e acreditamos que busca
revelar como essa peça contribui para a busca do entendimento da teoria dos Dois Corpos do
rei, constituindo-se em uma ramificação do pensamento teológico cristão em transição para o
pensamento político moderno.
BIBLIOGRAFIA
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 1. ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ALLAN, T. História em revista. 5. ed. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Abril livros, 1996. ALVES, S. Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. ANDERSON, P. Linhagens do Estado absolutista. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. ANDRADE, T. C. B. Apropriação/vivência de valores em questão: repercussões na prática pedagógica. 2007. 228 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista/Marília, 2007.
ARANHA, M. L. de A. A. Maquiavel: a lógica da força. São Paulo: Moderna, 1993. ARAUJO, R. Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.
ARENDT, H. A condição humana. São Paulo: Editora da USP, 1981. ARIÈS, P; CHARTIER, R. História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ARISTÓTELES. A poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999.(Coleção Os Pensadores.). ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BALANDIER, G. Antropologia política. Trad. M. Rodrigues Martins. Lisboa: Editorial Presença, 1987. ____________. O poder em cena. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1980. BARBOSA, M.I. A contribuição de Bossuet à glória do rei sol. Akropólis Umuarama, v. 15, n° 1 e 2, p. 61-72, jan./jun. 2007. BARROS, A. Direito natural e propriedade em Jean Bodin. São Paulo: Unesp, 2006. BAUMER, F.L. O pensamento europeu moderno: séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. BERTHOLD, M. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000. BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982.
BLOOM, H. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. BOIADZHIED, G.N. ; DZHIVELEGOV, S. Historia del teatro europeo. Trad. para o espanhol de Sergio Belaleff. Buenos Aires: Mar Oceano, 1963. BOQUET, G. Teatro e sociedade: Shakespeare. Trad. Berta Zemel. São Paulo: Perspectiva, 1969. BOSSUET, J. Politique tirée des propres paroles de L`Ecriture Sainte. Genève: Droz, 1967. BRANDÃO, J. de S. Teatro grego – Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1985. BRECHT, B. A função social do teatro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. BURGESS, A. Nada como o sol. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. CAMPOS, G. Tradução e ruído na comunicação teatral . São Paulo: Álamo, 1982. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000. CARLSON, M. Teorias do teatro. São Paulo: Ed. da Unesp, 1995. CÁS, D. Manual Teórico-Prático para elaboração metodológica de Trabalhos Acadêmicos. São Paulo: Jubela livros, 2008. CHAIA, M. Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. ______.A natureza da política em Shakespeare e Maquiavel. Revista de Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23, jan-abr. 1995. ______. Entrevista: a arte de fazer política, ontem e hoje, na visão de Shakespeare e Maquiavel. São Paulo: Jornal da USP, 1994. CHALITA, G. O poder: reflexões sobre Maquiavel e Ettiene de La Boétie. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. CHÂTELET, F; DUHAMEL, O; PISIER-KOUCHNER, E. História das ideias políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. CHAUÍ, M. Introdução ao estudo da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 15. ed. Trad. Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
CHEVALLIER, J. História do pensamento político: da cidade-estado ao apogeu do estado-nação monárquico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982. CHURCHILL, W. História dos povos de língua inglesa: o novo mundo. Trad. Enéas Camargo. São Paulo: IBRASA, 1960. CORVISIER, A. História Moderna. São Paulo: Difel, 1976. DELABASTITA, D. There's a Double Tongue: An investigation into the translation of Shakespeare's word play with special reference to Hamlet. Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1993.
DELABASTITA, D; D'HULST, L. (orgs.) European Shakespeares: Translating Shakespeare in the Romantic Age. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1993.
DENIS, H. História do pensamento económico. 7. ed. Trad. António Borges Coelho. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
DOMENACH, J. M. Le retour du tragique. 6. ed. Paris: Éditions Du Seuil, 1967. DUBY, G. Economia rural e vida no campo no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1987. ______. Guerreiros e camponeses. 2. ed. Trad. Elisa Pinto Ferreira. São Paulo: Editorial Estampa, 1993. EAGLETON, T. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. 2 v. __________. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. 2 v. ELSTER, J. Ulisses y las sirenas. México: Fondo de Cultura Econômica, 1989. EVANS, I. História da literatura inglesa. Tradução e notas A. Nogueira Santos. Lisboa: Edições 70, 1976. FIGGIS, J.N. El derecho divino de los reyes. México: Fondo de Cultura Económica, 1942. FILMER, R. Patriarcha and other political works of Sir Robert Filmer. Oxford: Blackwell, 1949. __________. Patriarcha, or the Natural Power of Kings. Ed. Rafael Gambra. Edicion Bilingue. Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1966. FRAGNIÈRE, J.P. Así se escribe uma monografia. Trad. Daniel Zadunaisky. Bueno Aires, 2001.
FRANKS, R. Os fundamentos da teoria política lockeana: Locke leitor de Filmer. 2007. 116 f. Dissertação (Mestrado). Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2007. FRYE, N. Sobre Shakespeare. Tradução e notas Simone Lopes de Mello. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, (Criação & Crítica, 9). GASSNER, J. Mestres do teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1974. GOMES, C. William Shakespeare no Brasil - Bibliografia . Separata do volume 79 (1959) dos Anais da Biblioteca Nacional . Rio de Janeiro, 1961. GOMES, M. A Vida e Obra de William Shakespeare. São Paulo: Minuano, 2007. GOMES, C; AGUIAR, T. S. William Shakespeare no Brasil. Bibliografia das Comemorações do Quarto Centenário (1964). Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação da Biblioteca Nacional, Ministério da Educação e Cultura, 1965. GOMES, E. Shakespeare no Brasil . São Paulo: MEC, 1960. HALLIDAY, F. E. Shakespeare. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. HART, A. Shakespeare and the Homilies, and Other Pieces of Research into the Elizabethan Drama. Melbourne: Melbourne University Press, 1934. HAUSER, A. História social da literatura e da arte. 4. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1972-1982.v.1. HELIODORA, B. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. ___________. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 1998. ___________. Reflexões shakespearianas. Rio de Janeiro : Lacerda, 2004. HEYLEN, R. Translation, Poetics and the Stage: Six French Hamlets. London / New York : Routledge, 1993. HILL, C. As origens intelectuais da Revolução Inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 1992. HOLDEN, A. Shakespeare. São Paulo: Ediouro, 2001. HONAN, P. Shakespeare, uma vida. Trad. Sônia Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 2001. HOUX, J. P. Le roi: Mythes et symboles. Paris: Fayard, 1997. HUGO, V. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro & Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000. JULIUS, A. Transgresiones: el arte como provocación. Madrid: Ediciones Destino, 2002.
KANTOROWICZ, E. H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. KAPLAN, A; LASSWELL, H. Poder e sociedade. Trad. Maria Lucy Gurgel Valente de Seixas Corrêa. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1979. KIERNAN, V. Shakespeare: poeta e cidadão. Trad. Álvaro Hattnher. São Paulo: Unesp, 1999. KOTT, J. Shakespeare: nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. LEFORT, C. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. LIDER, J. Da natureza da guerra. Trad. Delcy G. Doubrawa. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1987. LOCKE, J. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LOPES, M.A. O absolutismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. ___________. O político na modernidade. São Paulo: Loyola, 1997. LUKÁCS, G. Realismo crítico hoje, coordenada. Brasília: Ed. de Brasília Ltda, 1969. MACRONE, M. Naughty Shakespeare. Nova York: Gramercy Books, 2000. MALUF, S. Teoria Geral do Estado. 26. ed. atual. pelo Prof. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2003. MARCONI, M.A; LAKATOS, E.M. Metodologia científica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. MARCUSE, H. A dimensão estética. Lisboa: Martins Fontes/ edições 70, 1981. MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores). MARX, K; ENGELS, F. Sobre a literatura e a arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1971 (Trechos selecionados). MAUROIS. A. História da Inglaterra . 4. ed. Trad. Carlos Domingues. Rio de Janeiro Irmãos Pongetti Editores, 1965. MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. MINOGUE, K. Política: uma brevíssima introdução. Trad. De Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MORINEAU, M. O século XVI: 1492-1610. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1980. MOSTAÇO, E. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. NEGT, O; KLUGE, A. O que há de político na política? Trad. João Azenha Júnior. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. NELMS, H. Como fazer teatro. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Ed. Letras e Artes, 1964. NERUDA, P. Prólogos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 19992. ____________. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhias das Letras, 1998. ____________. O livro do filósofo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2002. ____________. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. OSTRENSKY, E. As revoluções do poder. São Paulo: Alameda, 2006. PANCOAST, H. S. An introduction to english literature . 2. ed. New York: Henry Holt and Company, 1926. PAZ, O. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1972. PAVIS, P. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. PEDROSA, M. Política das artes. São Paulo: Editora da USP, 1995. PLUTARCO. Como tirar proveito de seus inimigos. Trad. Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 1998. RAUEN, M. G. Richard II . Playtexts, Promptbooks and History: 1597-1857. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1998. REZENDE, Maria Inez Martinez de. Shakespeare e a revolução do teatro moderno. 40 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização). Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade do Sagrado Coração, Bauru, 2001. RINESI, E. F. Política e tragédia: Hamlet, entre Maquiavel e Hobbes. 2002. 240 f. Tese (Doutoramento). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
RUBY, C. Introdução à filosofia política. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1998. SAHD, L. F. A natureza do poder e as ilusões do contrato social em Robert Filmer. Revista Philosophos, jan/jul, 2005. SANDRONI, P. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo: Best Seller, 1999. SENA, J. A literatura inglesa. São Paulo: Cultrix, 1975. SENNET, R. Autoridade. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2001. SICHEL, E. The renaissance. London: Oxford University Press, 1974. ________. O Renascimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1972. SILVA, D. P. Vocabulário jurídico . Rio de Janeiro: Forense, 1999. SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ___________. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Fundação Ed. da UNESP, 1999. SZONDI, P. Ensaios sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. SHAKESPEARE, W. Ricardo II . Introdução, tradução e notas por Filomena Vasconcelos. Porto: Campo das Letras, 2002. SILVEIRA, J. R. F. A tragédia da política: um estudo de Ricardo III, de William Shakespeare. 2004. 122 f. Dissertação (Mestrado). São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 2004. STRAUSS, L. Natural Right and History. Chicago: Chicago University Political, 1999. TILLYARD, E.M.W. The Elizabethan World Picture. London: Chatto & Windus, 1958. TOUCHARD, J. História das ideias políticas. Lisboa: Europa-América, 1970. VALENTIN, V. História universal. São Paulo: Martins Fontes, 1965. VASCONCELOS, F. Ricardo II. Porto: Campo das Letras, 2002. WILLIAMS, R. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. WILSON, F.P. Marlowe and the Early Shakespeare. Oxford: at the Claredon Press, 1953. WILSON, J. B. English literature. London: Longmans, 1969.
WOADWARD, E. L. Uma história da Inglaterra. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964.