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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
POR QUE ESTAMOS FALANDO SOBRE NOSSOS CABELOS?
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO TÉCNICO
SOBRE A TRANSIÇÃO CAPILAR
Shirlene Bemfica de Oliveira1
Resumo: O racismo brasileiro impõe aos negros a inferioridade e a marca do racismo tem reflexos
na cultura, na linguagem e no comportamento das pessoas apesar de não ser assumido. Nesse
negacionismo, a escola, contexto para conscientização sobre a diversidade racial, pode ser um espaço
de fossilização e perpetuação das desigualdades sociais (TRINDADE, 1994). Os padrões estéticos
são fatores que podem causar sofrimento na escola, pois há uma ditadura determinada por grupos
hegemônicos, que leva as pessoas a tratamentos estéticos que camuflam a identidade negra. Estes
passam por tratamentos de alisamento e clareamento capilar para serem aceitos, como forma de
ascensão ou por entenderem que assim não sofrerão violência. No ativismo antirracista, o cabelo
crespo ganha espaço e é reconhecido como corpo social e como linguagem que expressa o conflito
racial vivenciado (GOMES, 2002). Os que dantes alisavam e domavam os cabelos, passam pela
transição capilar e abandonam a química pela liberdade e luta por igualdade de direitos. Nesta
pesquisa de sala de aula discutem-se as Representações Sociais (JODELET, 1989) sobre o processo
de transição capilar e os fatores que influenciam na reconstrução da identidade étnica, entendida como
um processo de luta contra o racismo velado e vivenciado no contexto brasileiro (GOMES, 2002). Os
resultados apontam para uma dicotomia entre o sofrimento e um movimento político de mudança de
estilo de cabelo por resistência na luta pela valorização da identidade negra.
Palavras-chave: Transição capilar. identidade étnica, representações sociais, ensino médio técnico.
Introdução
Pesquisadores nos âmbitos educacionais e linguísticos têm se dedicado em discutir e entender
o racismo no contexto mundial (GOMES, 2005, 2012; BOTEZINI, 2014; FERREIRA, 2015; SILVA,
BRAGA, 2015). Movimentos sociais têm contribuído há algumas décadas para a promoção de
mudanças significativas nas políticas públicas antirracistas e no comportamento das pessoas. Esses
movimentos, segundo Silva e Braga (2015), negavam o euro centrismo como único parâmetro de
conhecimento promovendo a volta às origens africanas para fortalecer a identidade cultural e política.
As autoras apontam os movimentos pelos direitos civis americanos na década de 1960 (Black Power,
Black Panthers Party for Self Defense), em que os ativistas mantinham a estrutura da fibra capilar e
o uso do pente ouriçador, como prática de luta política e promoviam a disseminação do slogan Black
is Beautiful!. Além do Movimento Negro, o Movimento Negro Unificado e o Movimento Feminista,
segundo Silva e Braga (2015), lutavam pelos direitos da mulher na sociedade e contra a tendência de
1 Doutora em Estudos Linguísticos FALE/UFMG, Professora de Língua Inglesa, IFMG Campus Ouro Preto, Ouro Preto,
Brasil. Apresentador do trabalho no 13º Mundo de Mulheres &Fazendo o Gênero 11.
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transformação do corpo feminino em objeto de consumo, o que se mantem até os dias atuais. A partir
dessas manifestações, a “identidade negra se reafirma através dos movimentos sociais negros, com o
objetivo de solidificar esse orgulho repleto de significados, é a autoafirmação das africanidades e
todas suas ressonâncias” (SILVA; BRAGA, 2015, p. 3).
Todos esses manifestos que exaltam a cor negra e os cabelos afros como representações
sociais e marca identitária apresentaram êxito e grandes foram os avanços no que tangem “as ações
afirmativas, cotas nas universidades, estudos raciais críticos no contexto escolar, na mídia, nos
materiais didáticos e na formação de professores” (FERREIRA, 2015, p. 24). A Lei Federal
nº10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana da
Educação básica nacional, pública e privada e a criação dos NEABS (Núcleos de Estudos Afro-
Brasileiros) tornaram as ações visíveis e também trouxeram a baila a discussão importante e
necessária do racismo no contexto escolar brasileiro. No entanto, mesmo com todo o processo de luta,
e conquistas mencionadas, o contexto brasileiro ainda impõe aos negros e pardos, condições de
inferioridade e a marca do racismo tem reflexos negativos explícitos e implícitos na cultura, na
linguagem e no comportamento das pessoas, apesar de não ser assumido.
Cabelo Afro e cor da pele, marcas da identidade negra, elementos de crucial importância na
construção da identidade negra, “na maneira como o negro se vê e é visto pelo outro, inclusive aquele
que consegue algum tipo de ascensão social” (GOMES, 2008). Para os jovens, no contexto escolar,
os padrões estéticos e a beleza são ‘dois’ fatores que podem causar sofrimento, pois há uma ditadura
de beleza determinada por grupos sociais hegemônicos, que implicitamente, leva as pessoas a
tratamentos estéticos que camuflam a identidade negra. Muitos homens e mulheres negras passam
por tratamentos de alisamento e clareamento dos cabelos para serem aceitos, como forma de ascensão
ou por entenderem que assim não sofrerão violência (GOMES, 2008; FERREIRA, 2015).
Ao mesmo tempo, na luta antirracista, com o reconhecimento da identidade negra e da cultura
afro-brasileira, a revalorização extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico/racial a que se pertence
(GOMES, 2002). E nesse contexto, o cabelo cacheado e crespo ganham espaço e são reconhecidos
“como corpo social e como linguagem que expressa o conflito racial vivenciado por negros e brancos”
(GOMES, 2002). Os mesmos homens e mulheres que dantes alisavam e domavam os cabelos, passam
atualmente por um processo de transição capilar e de abandono da química em prol da liberdade e
pela luta por igualdade de direitos.
O objetivo deste trabalho é discutir as Representações Sociais (JODELET, 1989) levantadas
por alunos de língua inglesa sobre o processo de transição capilar e discutir os fatores que influenciam
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na reconstrução da identidade étnica, entendida como um processo de luta contra o racismo velado e
vivenciado no contexto brasileiro (GOMES, 2002). São discutidas as dicotomias entre o sofrimento
causado pelo racismo velado, pelo sofrimento infantil, pelo bullying e um movimento político de
mudança de estilo de cabelo por resistência de homens e mulheres na luta pela valorização da
identidade negra, pela busca do conceito de beautiful proposto por Langston Hughes em seu poema
I too e pela liberdade proposta por Nina Simone, textos que inspiraram este trabalho.
I, Too (Langston Hughes)
I, too, sing America.
I am the darker brother.
They send me to eat in the kitchen
When company comes,
But I laugh,
And eat well,
And grow strong.
Tomorrow,
I’ll be at the table
When company comes.
Nobody’ll dare
Say to me,
“Eat in the kitchen,"
Then.
Besides,
They’ll see how beautiful I am
And be ashamed—
I, too, am America.
Ain't Got No - I Got Life
Canção de Nina Simone
I ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no
sweater
Ain't got no perfume, ain't got no bed
Ain't got no man
Ain't got no mother, ain't got no
culture
Ain't got no friends, ain't got no
schoolin'
Ain't got no love, ain't got no name
Ain't got no ticket, ain't got no token
Ain't got no god
Hey, what have I got?
Why am I alive , anyway?
Yeah, what have I got
Nobody can take away?
Got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth, I got my smile
I got my tongue, got my chin
Got my neck, got my boobies
Got my heart, got my soul
Got my back, I got my sex
I got my arms, got my hands
Got my fingers, got my legs
Got my feet, got my toes
Got my liver, got my blood
I've got life, I've got my freedom
I've got life
I've got the life
And I'm going to keep it
I've got the life!
Este artigo está organizado da seguinte forma: a seção 1 aborda a fundamentação teórica com
ênfase no processo de transição capilar e nas representações sociais que impactam na (re)construção
das identidades; na seção 2, discorre-se sobre o escopo metodológico da pesquisa em que são
descritos o contexto da pesquisa, os instrumentos de coleta e as categorias de análise; já a seção 3
apresenta a análise de dados que discute a influência dos agentes socializadores na mudança dos
padrões estéticos dos adolescentes, os fatores implícitos na adoção dos padrões capilares
determinados ou impostos e as emoções e sentimentos desses jovens no momento de libertação; e por
fim, na seção 5 são apresentadas as considerações finais do artigo.
Transição Capilar – nappy hair movement
Na década dos anos 2000 nos Estados Unidos, um movimento inicialmente feminino incentiva
os afro descendentes a deixarem o uso de cremes alisantes e as chapinhas que eram moda para
manterem os cabelos naturais. Inicialmente, este movimento foi denominado pejorativamente com o
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termo nappy que significa fraldas, em referência ao comércio de escravos que trabalhavam na lavoura
de algodão (pequena bola de algodão dentro da planta foi chamada de soneca). A palavra fralda
nasceu porque se assemelhava à textura de cabelo afro-texturizado despreocupado. Este termo foi
retomado no movimento com uma conotação positiva significando natural e feliz. Com a
popularização da internet, o movimento ganhou adeptos no mundo e ganhou força política. A
transição capilar, que se caracteriza por um momento em que o indivíduo abandona o uso de químicas
para relaxamento ou alisamento transformando a estrutura do cabelo e usando-o em sua forma
“natural” passa a ser um ato de valorização da cultura e da etnia (MATOS, 2016, p.01). E nesse
contexto, o cabelo crespo, ganha espaço e é reconhecido como corpo social e como linguagem que
expressa o conflito racial vivenciado (GOMES, 2002).
Esse processo, segundo Matos (2016), não ocorre sem conflitos, dilemas e reconfigurações
que desemboca em uma transformação na auto percepção, na luta pela aceitação da estética negra,
tendo como símbolo os cabelos crespos e cacheados (MATOS, 2016, p. 01). Mas, Blogs, Grupos em
redes sociais se organizam e dão força ao movimento estimulando o abandono da química e ensinam
técnicas para amenizar o sofrimento: big shops (grande corte), dreadlocks (rastafári), Nó Bantu
(cabelos torcidos em pequenos pãezinhos), penteado protetor (tranças, extensões, perucas e tecidos),
fitagem, etc.
Representações Sociais
As representações são sistemas de crenças, valores, ideias e práticas que estabelecem uma
ordem que possibilita as pessoas a orientarem-se em seu mundo material e social e terem controle
sobre eles (MOSCOVICI, 2003, p. 21). Elas representam a leitura que fazemos dos outros pela nossa
visão, estão inseridas e são investigadas no campo da Psicologia Social que tem por objetivo estudar
a forma como os sentidos são construídos na coletividade para o “estar-no-mundo” (JODELET,
1989). As representações sociais podem ser entendidas sob três perspectivas: da sociogênese, que é a
transformação do meio em que vivemos ao longo do tempo; da ontogênese: entendida pelo
desenvolvimento do ser individual ao longo da vida e, por fim, da microgênese, que são as interações
em grupo. Essa última teve uma atenção maior por abranger, também, estudos de outras áreas do
conhecimento e por tratar dos sentidos produzidos em grupo, em sociedade, e entendidos como
conhecimento. Os sentidos são construídos pelos indivíduos ao longo da vida, com influências dos
discursos, na transformação do meio em que vivemos e por meio das interações em grupo (SPINK;
GIMENES, 1994). Nesta ótica da produção de sentido, implica em posicionar-se perante os dados,
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as teorias, e os outros. Em relação a tal posicionamento, encontramos três premissas distintas em que
se insere o “dar sentido”:
“Dar sentido é sempre um processo que passa pelo nosso crivo pessoal, desenvolvido a partir
das nossas experiências (tempo vivido) e daquilo que nunca presenciamos, mas temos certo
conhecimento (tempo histórico). Dar sentido consiste, também, em assumir posicionamentos
dentro de relações por meio da intersubjetividade, no tempo presente, ou seja, é criar novos
sentidos, rompendo com alguns antigos. Por fim, dar sentido implica em assumir uma
identidade própria, posicionar-se em meio a tantas transformações, sem perder aquilo que o
caracteriza” (SPINK; GIMENES, 1994, p.xx).
Do ponto de vista da discussão no contexto brasileiro, com base nessas premissas, o construto
‘racismo’ e as ‘práticas de preconceito racial’ ainda são sustentadas, pela história primeiramente do
período de escravidão e posteriormente de segregação e desigualdade, vivenciada pelos indivíduos,
que possuem suas memórias afetivas e sua formação intersubjetiva ou dos discursos inseridos em sua
cultura, ou seja, diferentes narrativas para essa mesma história, que vem se repetindo ao longo dos
anos. Botezini (2014) afirma que é uma história marcada pela vergonha e pela corporalidade e
inferioridade “desde muito antes das evocações das teorias do evolucionismo cultural”. A violência
estrutural e o sofrimento social são também apontados por Botezini (2014, p. 3) como fatores que
levam os indivíduos a adequação e modificação corporal, e essas experiências individuais passam a
ser uma expressão da dimensão social da problemática: as ações de mudança estética deixam de ser
do indivíduo e passam a ser do grupo (SILVA; BRAGA, 2015).
Contexto da pesquisa
Esta pesquisa de sala de aula foi desenvolvida em um Instituto Federal no Estado de Minas
Gerais, por um grupo de alunos de uma turma de primeiro ano de língua inglesa do Ensino Médio
Técnico de Edificações (nível básico de Língua Inglesa). Durante o bimestre escolar, os alunos leram
e discutiram os poemas I, too de Langston Hughes, e Exportation Mulata de Elisa Lucinda. Com base
nesses poemas, eles escreveram poemas em língua inglesa com temáticas que abrangeram a
valorização da cultura afro, racismo, a mulher, LGBT, corrupção, relações de trabalho, e condições
de vida no Brasil. Como projeto final, os alunos em grupos, deveriam escolher uma temática para ser
apresentada na X Semana de Cultura Afro Brasileira. O grupo de alunos, autores deste trabalho,
entrevistaram 5 colegas acerca da transição capilar, fizeram a apresentação oral dos relatos e fecharam
a apresentação com Nina Simone “Ain’t got no / I got life”.
Como professora da classe, sugeri que o corpus de relatos fosse ampliado e que análises
fossem feitas para que o processo de transição capilar fosse interpretado. A segunda fase de coleta
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contou com a participação de 32 alunos e ex-alunos do Instituto Federal, incluindo os 5 alunos já
entrevistados, sendo 30 mulheres e 2 homens. O survey foi feito pelos alunos do grupo e pela
professora por meio de entrevista escrita presencial e / ou pelo Facebook.
As análises foram feitas com base nos pressupostos teóricos da (des)(re)construção das
identidades culturais (HALL, 2006), de reconhecimento e de valorização da identidade negra.
Análise e discussão dos dados
As análises foram feitas com base nos 32 relatos dos participantes demonstram que a maioria dos
participantes passou pelo movimento de transição capilar. Eles vivenciaram conflitos e imposições
de diversos agentes sociais. Três participantes não passaram pelo processo de transição e sempre
usaram o cabelo cacheado. Estes participantes relatam que não sofreram nenhuma imposição externa
para mudarem e que sempre mantiveram os cabelos naturais. Os dados não são representativos
estatisticamente, mas apontam para uma maioria oprimida e levada a manter os cabelos sob controle.
“Nn, boa relação com os cachinhos” (KS)
“Eu não passei por essa fase de transição, pois eu sempre mantive meu cabelo cacheado”
(EB).
“Eu sempre mantive meu cabelo cacheado (LL).
Apesar de existirem movimentos sociais e de luta contra o racismo e o preconceito, ainda há
uma dicotomia entre os agentes sociais que interferem na tomada de decisões para o uso dos cabelos
cacheados ou alisados e com química. Os negros e pardos vivem sob pressão e sentem o dilema dos
mesmos grupos sociais tentando ditar as maneiras e formas de usarem seus cabelos impedindo de
exercerem os seus direitos de decisão. Os dados deste estudo apontam que, atualmente, os agentes
sociais que influenciam e incentivam o uso dos cabelos naturais estão na família, na escola, nos grupos
de amigos, nas redes e mídias sociais e no mercado de cosméticos. Esses mesmos agentes ora
fortalecem o movimento de lutas, mas também corroboram práticas preconceituosas.
(...) mas minha mãe não deixava eu alisar o cabelo de jeito nenhum, falando que eles iam
perder os cachos e que só ia deixar eu falar chapinha quando ficasse mais velha (MO)
Mudei por incentivo de amigos e por querer mudar algo na vida rsrs (TC)
Eu incentivo principalmente crianças que eu acho que são as que mais sofrem, e não tem
direito de escolha sobre como querem usar o cabelo (IC)
(...) o que ajudou foram vídeos no YouTube que ensinavam como cuidar. o mercado cheio
de boas opções...
Com o passar do tempo e depois que eu comecei a estudar no IFMG minha visão expandiu
bastante. Enxergar beleza no diferente, tentar me sentir bem comigo mesma (ALM).
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(...) mas resisti aos comentários e continuei buscando informações de como cuidar do meu
cabelo na internet (RC).
Conheci um grupo do facebook chamado "cacheadas em transição", nele aprendi muitas
formas de cuidar dos cachos.
Eu decidir mudar através da influência de uma amiga, a SP (que também foi sua aluna), ela
conheceu a transição na internet e me incentivou. Hoje ela tbm se libertou.(GB)
Nesse tempo que eu escolhi passar pela transição eu acabei assistindo um vídeo da Raiza
Nicacio sobre cabelos cacheados.
Para os participantes, usar o cabelo natural não foi a primeira escolha. A transição capilar
evoca o sentimento de libertação, aumenta a autonomia e eleva a autoestima, uma vez que eles se
enxergam e se conscientizam da beleza negra que têm. A escola é colocada como um dos espaços de
conscientização, de amadurecimento e de mudança. Pelos relatos, observa-se que a questão de deixar
o cabelo natural deixa de ser uma inquietude do indivíduo e passa ser uma demanda do grupo, no
caso dos adolescentes.
No entanto, em alguns casos, esses mesmos agentes sociais que incentivam, forçam, na
maioria das vezes, as mulheres ainda crianças a passarem por tratamentos capilares para alisar, domar,
controlar os cabelos como se fossem “bichos soltos”. A pressão social faz com que o adolescente não
se aceite e não se reconheça enquanto negro ou pardo. Como o cabelo crespo é tido como ruim, os
adolescentes se submetem aos tratamentos para serem valorizados. No contexto familiar, a mãe é a
que exerce maior influência na tomada de decisões e geralmente os motivos são atribuídos à
higienização, a comodidade e a falta de habilidade em cuidar dos cabelos crespos.
“Eu era doida para sumir com os cachos, minha mãe que não deixava. Não gostava do meu
cabelo, tinha que passar muito creme, ele não dava muito volume e tinha sempre a mesma
forma” (LO).
“Mas eu vivia fazendo escova e chapinha, pois morria de vergonha dos meus cachos. Todo
mundo me preferia assim (...) eu negava para mim mesma a textura do meu cabelo”(RC).
“Eu alisava os cabelos desde os meus 5 anos, porque minha mãe não sabia cuidar” (GB).
(...) “porque muitas mães preferem alisar o cabelo por comodidade, dizendo que fica "mais
fácil" para pentear!” (IC)
“Durante esse tempo de transição eu sentia revolta com meu cabelo e com meu pai que me
fez fazer o primeiro relaxamento” (TC).
“Mas usá-lo assim (com duas texturas) gerou muito preconceito, até mesmo dos professores
da escola. O preconceito foi tão grande que pessoas pararam de conversar comigo, mas
eu não desisti” (AC).
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Os significados e sentimentos atribuídos aos cabelos alisados são diversos e na maioria das
vezes relacionados ao sofrimento. Os participantes vivem o conflito de deixar os cachos ou usar os
cabelos lisos. Os dados apontam fatores implícitos para a escolha do “big chop”, ou o corte dos
cabelos alterados pela química é o rito de passagem, de exercício do direito e da autonomia, de
libertação e de empoderamento. São apontados o sofrimento, a necessidade de controle, a comodidade
ou a saúde do cabelo, marcador de identidade negra, ferramenta para a luta e mobilidade social,
conforme mostram os exemplos abaixo:
SOFRIMENTO
arrependimento, pois via meu cabelo caindo gradativamente e queria meu cabelo de volta.
Não queria ser mais refém de produto nenhum e nem de chapinha E nem* (LF)
não é nada fácil. Eu decidi mudar porque a química danificava meu cabelo muito e eu tinha
preconceito com meu próprio cabelo. (TC)
Quando eu cortei tudo, foi um impacto enorme, na fisionomia e também psicológico, eu
chegava na escola, passava na rua, e as pessoas comentavam, olhavam meio torto, teve
bastante preconceito, piadas, sendo que a maioria deles vinha de pessoas próximas, da
família, (e por incrível que pareça, tem preconceito até hoje)! (IC)
é um processo bastante doloroso e demorado, principalmente de aceitação, não apenas
aceitação das pessoas, mas a nossa própria aceitação, medo e não gostar do que ia ver no
espelho, de não se sentir bem ou de não combinar comigo (NDS)
NECESSIDADE DE CONTROLE
à princípio a desculpa para alisarem meu cabelo era a falta de tempo pra cuidar dele e a
necessidade de tentar o controlar uma vez que ele era muito volumoso, e não era sempre
que tinha alguém comigo que pudesse me ajudar a pentear ou coisa do tipo (KF)
não tem mais aquela paranoia de tentar manter ele certinho. (KF)
COMODIDADE / SAÚDE DO CABELO
Eu escolhi alisar o cabelo porque parecia mais fácil, sabe? Foi exatamente pra tentar me
encaixar no padrão e aí eu simplesmente não conseguia sair de casa sem o cabelo escovado
(ALM).
Eu gostava dele cacheado, mas achava o liso mais prático (LG)
Mais meus cabelos caíam muito, ficaram fracos e finos, sem volume (DP).
HIGIENIZAÇÃO
Ouvi um dia de uma amiga que disse para eu escovar o cabelo pra ir em tal festa, porque
assim ele estaria arrumado. E isso me marcou (GB).
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Por outro lado, o abandono dos cabelos alisados “pode também representar um processo de
reconhecimento das raízes africanas assim como de reação, resistência e denúncia contra o racismo.
E ainda pode expressar um estilo de vida”. (GOMES, 2002, p. 8). Usar os cabelos naturais para os
adolescentes é voltar às origens, é se olhar no espelho e se reconhecer verdadeiro, e com um
sentimento de orgulho da raça.
MARCA DA IDENTIDADE
Decidi mudar, para mim ser cacheada expressa a minha verdadeira identidade, foi assim
que Deus me fez, eu gosto de ser assim, e não devo esconder isso porque as pessoas não
gostam. Antes de assumir os cachos me sentia estranha com eles, por isso fazia escova.
Durante a transição foi um período de me ver de uma forma diferente. E agora me sinto muito
bem e livre ( posso até tomar chuva Kk) E agora não largo meus cachos por nada!! Obrigada
pela oportunidade! (DD)
Me sentia escondendo minha personalidade. Me sentia presa pelos "padrões" de beleza
ditos pela sociedade. Decidi mudar a partir do momento em que decidir ser livre de padrões
pré-ditados e resolvi assumir minha natureza. Minha* (AF)
Eu decidi mudar porque aquela pessoa que fazia chapinha não era eu sabe, eu ficava
tentando me colocar em padrões sociais que não me faziam bem! (IC)
Foi um momento único, chorei ao me ver no espelho e abandonar a imagem que na verdade
não era minha (uma negra com o cabelo alisado porque a sociedade queria que eu fosse
assim) (GB).
Eu tinha um cabelo lindo que homenageava minha raça e minha cor, só que quando eu
tinha uns 8 anos e aquele cabelo era considerado de outro mundo, todo mundo tinha cabelo
liso então eu resolvi mudar também e andar de acordo com a moda kkkk, hoje eu passei pela
transição capilar e me aceito muito mais que antigamente, sou uma pessoa renovada e linda
(MCL)
LUTA SOCIAL
Consigo sorrir sem medo e ser quem eu sou. E penso que nem todas as alisadas devem passar
pela transição, porque não podemos impor outra ditadura nas mulheres, a de se aceitar
pq sua imagem é de mentira! Devemos ser quem quisermos ser. Ah, nas aulas eu
admirava tanto seu cachos rsrs (GB)
Mas a maior razão de resistência foi para mostrar que o homem negro não precisa alisar o
seu cabelo para deixá-lo longo, ele pode aceitar suas origens criando seu próprio estilo
(MV)
Decidi mudar porque o uso de cabelo liso não é só uma questão de gosto ou preferência, a
própria preferência é resultado de todo um histórico *é resultado de todo um histórico de
discriminação racial e social, muito evidente ainda no Brasil, que possui uma grande
diversidade cultural/étnica/racial (... ) A transição capilar é algo muito distante de um
movimento estético: é justamente um movimento de luta e aceitação da diversidade (LF).
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Os participantes que passaram pela transição capilar afirmam que os cabelos como corpos lutaram
pela libertação e são estes os sentimentos de renovação, de liberdade, de vitória pessoal e social que
perpassam os discursos.
LIBERTAÇÃO
Me sinto mais leve, acho que é essa a melhor definição. (TC)
Me sinto livre ultimamente. Eu não consigo descrever como me sentia, não era bom... Hoje
é diferente, a minha auto estima, é algo tipo auto aceitação! Muitas pessoas elogiam, eu me
sinto maravilhosa, o meu cabelo é lindo, a cor da minha pele é linda, e não procuro agradar
a ninguém!
Hoje tenho orgulho em falar que não tenho química alguma no meu cabelo, me sinto muito
melhor sabendo que não tem nenhum agente externo agindo pra mudar ele, danificando ou
coisa do tipo (KF)
hoje me sinto muito melhor com meus cachinhos (TC)
Hoje em dia posso dizer que amo ser cacheada (E ainda bem que minha mãe não me
deixou mexer no cabelo quando era mais nova kkkkkkk)
Hoje em dia me sinto bem melhor com meus cachos, aprendi a dar vida ao meu cabelo e
me sinto muito, muito bem assim do jeito que sou (LO).
A transição capilar é só um reflexo dessa busca infinita do autoconhecimento e amor
próprio. Além de aceitar o cabelo cacheado o mais difícil é aceitar o seu cacho do jeito que
ele é. (ALM)
Agora me sinto mais feliz, amo meus cachos, a definição que ganho do meu rosto, a
liberdade de não ter que ir ao salão de beleza mensalmente. (DP)
O medo da tesoura foi embora e o fascínio por cabelo liso também (GO)
E pra mim é bem libertador, porque a escova acabava me limitando em certas atividades, o
que agora não sofro mais (JS).
A sensação de poder pegar chuva é maravilhosa, de poder lavar o cabelo quando quiser, de
molhar o cabelo sem medo. Eu me sinto muito mais confiante, me sinto mais orgulhosa das
minhas origens e do jeito como nasci, quando olho no espelho fico muito mais feliz (AC)
Os participantes que passaram pela transição capilar afirmam que os cabelos como corpos
lutaram pela libertação e são estes os sentimentos de renovação, de liberdade, de vitória pessoal e
social que perpassam os discursos. O cabelo crespo também passa a ser um marcador de opressão
racial sentimentos e emoções novas.
Considerações finais
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Os resultados apontam para uma dicotomia entre o sofrimento e um movimento político de
mudança de estilo de cabelo marcado por resistência na luta pela valorização da identidade negra. Os
agentes socializadores que perpetuam as práticas de preconceito e de controle do cabelo (corpo social)
nos dados deste estudo estão nas instituições familiares, escolares e sociais. Os agentes socializadores
que influenciam no uso de um cabelo afro livre de química nos dados deste estudo são os amigos, a
internet, redes sociais, e o IFMG mostrado como espaço para a reflexão e valorização das diferenças.
Os fatores implícitos ao alisamento dos cabelos estão relacionados ao padrão imposto por grupos
hegemônicos, ao controle, ao sofrimento, ao preconceito, a higienização e a comodidade. Os fatores
implícitos a transição capilar estão relacionados a saúde do cabelo e do indivíduo, a valorização de
identidade negra, a uma luta social que se dá por meio de resistência, da autoaceitação, da aceitação
das origens e da diversidade.
Referências Bibliográficas
BOTEZINI, N. A. Cabelos em Transição: um estudo acerca da influência dos cabelos afro como sinal
diacrítico e reconhecimento étnico. In: 38º Encontro Anual da ANPOCS, 27 e 30 de outubro de 2014,
Caxambú, MG. Anais... Disponível: http://www.anpocs.org/index.php/papers-38-encontro/gt-1/gt32-
1/9135-cabelos-em-transicao-um-estudo-acerca-da-influencia-dos-cabelos-afro-como-sinal-
diacritico-e-reconhecimento-etnico/file Acesso em 21/02/2017.
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My Nappy ROOTS connecting the world through Black
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TITLE: WHY ARE WE TALKING ABOUT OUR HAIR? SOCIAL REPRESENTATIONS
OF TECHNICAL HIGH SCHOOL STUDENTS ABOUT HAIR TRANSITIONING
Astract: Brazilian racism imposes on black people the inferiority and the mark of racism has reflexes
in culture, language and in the behavior of the people although it is not assumed. In this negationism,
the school, context for raising awareness about racial diversity can be a space for fossilization and
perpetuation of social inequalities (TRINDADE, 1994). Aesthetic standards are factors that can cause
suffering in school, because there is a dictatorship determined by hegemonic groups, which leads
people to aesthetic treatments that camouflage the black identity. They undergo hair straightening
and whitening treatments to be accepted, as a way of ascension or because they understand that they
will not suffer violence. In anti-racist activism, curly hair gains space and is recognized as a social
body and as a language that expresses the lived racial conflict (Gomes, 2002). Those who once
smoothed and tame the hair, go through the hair transition and abandon chemistry for freedom and
struggle for equal rights. In this classroom research, the social representations (JODELET, 1989)
about the process of hair transitioning are discussed and the factors that influence the reconstruction
of ethnic identity, understood as a process of struggle against veiled and experienced racism in the
Brazilian context (GOMES, 2002). The results point to a dichotomy between suffering and a political
movement to change hair style by resistance in the struggle for the valorization of black identity.
Keywords: hair transitioning. ethnic identity. social representations. technical high school teaching.
English language.