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Psicopatologiae semiologia dos
transtornos mentais
Conhea Conhea Conhea Conhea Conhea tambmtambmtambmtambmtambm
Uma das dimenses mais marcantese significativas da experincia humana co-tidiana, a religiosidade , seguramente,um objeto de investigao dos mais com-plexos.
Em Religio, Psicopatologia e Sa-de Mental, livro sntese de mais de 15anos de pesquisa na rea, o doutor PauloDalgalarrondo aproxima-se do fenmenoreligio passando por disciplinas comopsicopatologia, psicanlise e psicologia,bem como antropologia e sociologia dareligio.
Psicopatologiae semiologia dos
transtornos mentais2a edio
2008
Paulo DalgalarrondoProfessor Titular de Psicopatologia
Departamento de Psicologia Mdica e Psiquiatria
Faculdade de Cincias Mdicas
Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
Verso impressa
desta obra: 2008
Artmed Editora S.A., 2008
Capa
Paola Manica
Preparao do originalCristiane Marques Machado
Leitura finalLisandra Pedruzzi Picon
Superviso editorialCludia Bittencourt
Projeto e editoraoArmazm Digital Editorao Eletrnica Roberto Vieira
Reservados todos os direitos de publicao, em lngua portuguesa,
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IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL
D142p Dalgalarrondo, Paulo.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais
[recurso eletrnico] / Paulo Dalgalarrondo. 2. ed.
Dados eletrnicos. Porto Alegre : Artmed, 2008.
Editado tambm como livro impresso em 2008.
ISBN 978-85-363-1493-8
1. Psicopatologia. 2. Transtornos mentais. I. Ttulo.
CDU 616.89-008
Catalogao na publicao: Mnica Ballejo Canto CRB 10/1023
Para minha me, Maria Teresa, que me ensinou
a curiosidade por tudo o que humano.
mais do que um forte interesse profissio-
nal, e a Neury Jos Botega, psiquiatra cl-
nico, estudioso dos mistrios da relao
mdico-doente. Alm de colegas, ambos
so meus companheiros no Departamento
de Psicologia Mdica e Psiquiatria da Facul-
dade de Cincias Mdicas da UNICAMP.
Agradeo-lhes pela leitura do texto final e
por suas correes e observaes decisivas.
Sou igualmente grato professora Marisa
Lajolo, do Instituto de Estudos da Lin-
guagem da UNICAMP, que revisou pacien-
temente o texto, discutiu a sua composi-
o e fez correes e sugestes, sempre com
aguda sensibilidade, humor e generosi-
dade, marcas de seu esprito. As impreci-
ses e os deslizes que permaneceram se
devem, certamente, teimosia do autor em
no acatar algumas das sugestes desses
amigos.
A psicopatologia uma tradio clni-
ca. apenas no interior dessa tradio, no
contato com o mestre, no ensino do aluno
e, sobretudo, na vivncia daquilo que, de-
corrente do contato com pacientes enig-
mticos (quase todos), desafia nosso co-
nhecimento e desencadeia a angstia da
clnica ou, mais precisamente, a angs-
tia da dvida clnica, que esta cincia pode
se realizar de forma plena. Assim, um li-
vro como este construdo a partir do
aprendizado com um grande nmero de
mestres, colegas, alunos e pacientes. Cit-
los seria difcil; certamente seriam cometi-
das injustas omisses. De qualquer forma,
gostaria de destacar trs pessoas que, na
fase de redao do livro, contriburam de
forma especial. Agradeo, ento, a Mrio
Eduardo Costa Pereira, psiquiatra e psica-
nalista, que guarda pela psicopatologia
Agradecimentos
Rigorosamente, todas estas
notcias so desnecessrias para a compreenso
da minha aventura; mas um modo de ir
dizendo alguma coisa, antes de entrar em matria,
para a qual no acho porta grande nem pequena;
o melhor afrouxar a rdea pena, e ela que v andando,
at achar entrada. H de haver alguma; tudo depende
das circunstncias, regra que tanto serve para o estilo
como para a vida; palavra puxa palavra, uma idia traz
outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma
revoluo; alguns dizem mesmo que assim
que a natureza comps as suas espcies.
Machado de Assis
(em Primas de Sapucaia,
Histrias sem data, 1884)
Prefcio 2a edio
Muitos cursos de graduao, sobre-
tudo de Medicina e Psicologia, e de ps-
graduao (residncias de Psiquiatria e es-
pecializaes em Psicologia Clnica) tm
adotado este livro em todo o Brasil. Isso
motivo de estmulo e satisfao, mas im-
plica uma grande responsabilidade, a de
aperfeioar e manter este trabalho atuali-
zado. Tal atualizao, entretanto, nopode, de modo algum, faz-lo perder seu
carter didtico. Eis o desafio desta segun-
da edio.
Soube, recentemente, que este livro
tem sido bem-acolhido tambm em Portu-
gal. Esse pas produziu brilhantes psicopa-
tlogos como, por exemplo, Julio de Mattos
(1884, 1923), muito lido no Brasil no in-
cio do sculo XX, at Barahona Fernandes
(1966) e Fonseca (1987), assim como, con-
temporaneamente, Pio Abreu (1994). No
contexto das tradies mdicas e psicolgi-
cas de alguns pases e culturas (Alemanha,
Frana, Espanha e pases da Amrica Lati-
na), a semiologia e a psicopatologia consti-
turam-se, assim como em Portugal, como
uma disciplina central para a psiquiatria, a
psicologia clnica e as neurocincias aplica-
das. Desejamos que, tambm nos demais
pases que falam o portugus, a psicopa-
tologia geral continue a se desenvolver
como cincia e instrumento privilegiado da
clnica. Que ela permanea e progrida
como a principal disciplina de fundamen-
tao da psiquiatria e da psicologia clnica.
Entre a primeira edio do livro e esta,
surgiram alguns textos de psicopatologia
em nosso meio, produzidos por autores
brasileiros, que representam contribuies
originais e enriquecedoras: o trabalho eru-
dito de Francisco Martins (2005), Psicopa-
thologia I e II; o texto didtico e terminolo-
gicamente preciso de Elie Cheniaux (2005),
Manual de psicopatologia; assim como
obras que tratam das bases epistmicas da
psicopatologia, a saber, Psicopatologia: ver-
tentes, dilogos (organizada por David
Calderoni, 2002) e Psicopatologia hoje (or-
ganizada por Joo Ferreira da Silva Filho,
2006). Alm disso, foi publicado recente-
mente, do norte-americano Daniel Carlat
(2007), Entrevista psiquitrica, livro prti-
co e muito til aos estudantes.
Foi necessrio, nesta segunda edio,
realizar uma reviso de todo o livro. Houve
um cuidado particular com a atualizao
dos captulos da psicopatologia mais inti-
mamente relacionados funo cerebral e
s neurocincias (conscincia, ateno,
orientao e, em particular, memria), pois
estas reas tm apresentado rpido avan-
o, gerando novos conceitos que, em par-
te, modificam as abordagens tradicionais.
Prefcio 2a edio12
Sou grato ao professor Othon Bas-
tos, que reviu e corrigiu pacientemente
alguns erros e imprecises que constavam
na primeira edio. Alm disso, gentilmen-
te ps minha disposio uma obra sua
manuscrita, Vocabulrio psiquitrico popu-
lar, trabalho cuidadoso de anos de entre-
vistas e observaes com pacientes com
transtornos mentais de estados do Nor-
deste brasileiro. Com sua autorizao,
pude acrescentar os vocbulos ao gloss-
rio disponvel no final deste livro. Tam-
bm foi incorporado ao glossrio um bom
nmero de termos e expresses popula-
res coletados por Marcelo G. Nucci, em
trabalho laboriosamente organizado em
sua dissertao de mestrado sobre formu-
lao cultural em sade mental, realiza-
do em um centro de sade de um bairro
perifrico de Campinas.
Sou grato tambm ao meu querido
amigo professor Cludio E. M. Banzato, que
revisou cuidadosamente o texto, atentan-
do sobretudo para algumas imprecises
conceituais.
Quero, finalmente, expressar meus
agradecimentos diretoria da Artmed. Seu
estmulo, idias e sugestes foram funda-
mentais para a realizao desta segunda
edio, em relao tanto ao contedo como
s solues de editorao para tornar o li-
vro mais prtico e visualmente atraente.
Prefcio da 1a edio
Por que escrever agora um texto de
psicopatologia e semiologia psiquitrica?
Ser que, a esta altura, no seria melhor
deixar essas disciplinas para trs e nos ocu-
parmos de temas emergentes e, aparente-
mente, mais modernos? Por que insistir ne-
las, to fora de moda no contexto atual?
Os alunos de graduao, os residentes de
psiquiatria, os iniciantes de ps-graduao
precisam mesmo gastar horas e horas es-
tudando psicopatologia? Ser mesmo ne-
cessrio que aprendam a fazer um exame
psquico detalhado e aprofundado?
A semiologia a base, o pilar funda-
mental da atividade mdica. Saber observar
com cuidado, olhar e enxergar, ouvir e in-
terpretar o que se diz, saber pensar, desen-
volver um raciocnio clnico crtico e acura-
do so as capacidades essenciais do profis-
sional de sade. Na poca da Internet, de
um volume fabuloso (e, de fato, muito til)
de novas e sempre renovadas informaes,
cabe aos professores no apenas fornecer
informaes recentes aos alunos, mas, so-
bretudo, ensin-los a observar cuidadosa-
mente o paciente, a pensar sobre o que ouve
e v, a analisar racionalmente, com crtica,
e at com uma pitada de malcia, os dados
brutos que a clnica nos fornece.
Posto que o conhecimento nas reas
mdicas renova-se em uma velocidade es-
pantosa, faz-se necessrio, atualmente,
concentrarmo-nos em ensinar mais o co-
mo do que o contedo em si, mais os m-
todos de aquisio de conhecimento do que
as novas informaes. Assim, a semiologia
mdica e psicopatolgica, bem como a
psicopatologia geral, devem ser vistas como
base de sustentao da formao do pro-
fissional de sade (e, especialmente, de
sade mental).
Bons e mais aprofundados livros do
que este sobre psicopatologia geral e semio-
logia psiquitrica esto disposio do lei-
tor. A Psicopatologia geral, de Karl Jaspers
(1979), primeiramente editada em 1913,
, certamente, a obra maior da psicopato-
logia. o grande tratado, cuja fora pri-
mordial ter lanado as bases metodo-
lgicas da disciplina: bases a um s tempo
clinicamente rigorosas e filosoficamente
muito bem embasadas. Embora no seja,
de modo algum, um texto hermtico, para
o estudante em fase inicial obra relativa-
mente difcil, no voltada diretamente para
questes prticas do exame do paciente.
Na esteira de Jaspers, temos a Psicopato-
logia clnica, de Kurt Schneider (1976), e a
Psiquiatria, de Weitbrecht (1973).
Na Frana, entre as muitas obras pu-
blicadas, deve-se citar a interessante Semio-
logie psychiatrique, de Paul Bernard e Si-
Prefcio da 1a edio14
mone Trouv (1977), pois se trata de um
dos poucos trabalhos que d nfase psico-
patologia da esfera instintivo-pulsional,
como o comportamento alimentar e o se-
xual, o sono e a experincia corporal. Os
trabalhos de Henri Ey (1950, 1973, 1976),
propondo uma viso unicista em seu orga-
nodinamismo e a abordagem fenomeno-
lgico-existencial de Eugne Minkowiski
(1966, 1973), que coloca no centro da
psicopatologia o tempo e o espao vivido,
so com certeza obrigatrios para um es-
tudo psicopatolgico aprofundado.
No contexto anglo-saxo, Andrew
Sims (1995) publicou recentemente o exce-
lente livro Symptoms in the mind, o qual
abrange os principais tpicos da psicopato-
logia geral. Nos EUA, desde o famoso tra-
balho de Sullivan (1954), uma produo es-
pecfica de trabalhos sobre o que se con-
vencionou chamar de a entrevista psiqui-
trica (MacKinnon e Michels, 1987; Mac-
Kinnon e Yudofsky, 1988; Othmer e Othmer,
1994) representam, em um certo sentido,
uma contribuio valiosa semiologia psi-
quitrica. O extenso tratado de Kaplan &
Sadock (1995), apesar de no reservar gran-
de espao para a semiologia psiquitrica e
para a psicopatologia geral, de muita uti-
lidade por suas variadas descries clnicas
e ricas informaes epidemiolgicas e neu-
robiolgicas dos diversos transtornos men-
tais. Como descrio pormenorizada de
sndromes psicopatolgicas raras, vale citar
a obra de Enoch e Trethowan (1979).
Os espanhis Mira y Lopez (1943),
Vallejo Njera (1944), Lpez Ibor (1970),
Carmelo Monedero (1973) e Alonso
Fernandes (1977) produziram obras psico-
patolgicas do mais alto nvel, consubs-
tanciando um importante desenvolvimen-
to (e, em alguns temas, um aprofunda-
mento) psicopatologia de lnguas alem
e francesa. Na Amrica hispnica temos,
pelo menos, duas obras memorveis: o
Curso de psiquiatria (volume 1), do pro-
fessor peruano Honorio Delgado (1969),
e Semiologa y psicopatologa de los proces-
sos de la esfera intelectual, do argentino
Carlos R. Pereyra (1973).
Em nosso meio, textos valiosos e
aprofundados foram produzidos. O livro de
Augusto Luiz Nobre de Melo (1979) deve
ser destacado pela sua erudio, escrita
elegante e, sobretudo, pela abrangncia e
profundidade de alguns captulos. , en-
tretanto, um pouco difcil para o aluno
iniciante, que pode atrapalhar-se com o
estilo de Nobre de Melo, s vezes rebusca-
do. O Curso de psicopatologia, de Isaas
Paim (1993), outra obra de valor. Mais
enxuta que a anterior, um texto concei-
tualmente bastante rigoroso, permanecen-
do como importante fonte de consulta.
Contudo, Paim utiliza uma terminologia
antiga e, eventualmente, pouco acessvel
ao aluno iniciante.
Embora no sejam tratados comple-
tos de psicopatologia, o livro de Leme Lopes
(1980), Diagnstico em psiquiatria, assim
como o Conceito de psicopatologia, de
Sonnenreich e Bassitt (1979), representam
importantes contribuies delimitao do
campo psicopatologgico. Um trabalho
bastante didtico, de orientao neuropsi-
quitrica, Para compreender a psicopa-
tologia geral, de R.J.Cabral (1982), de Belo
Horizonte. Mais recentemente, Luiz Salva-
dor de Miranda S Junior (1988), de Cam-
po Grande, e Cludio Lyra Bastos (1997),
de Niteri, publicaram dois excelentes tex-
tos didticos de psicopatologia e semiologia
psiquitrica.
A psicopatologia tem uma complexa
e elaborada tradio histrica, de difcil
acesso ao estudante. Os magnficos traba-
lhos de German Berrios (1996), The history
of mental symptoms e A history of clinical
psychiatry, assim como a bem feita reviso
de Paim (1993), Histria da psicopatologia,
podem servir de auxlio na recuperao
dessa rica tradio de conhecimentos.
O presente texto tem algumas especi-
ficidades em relao s obras supramen-
Prefcio da 1a edio 15
cionadas. Tem por objetivo ser didtico,
claro, acessvel ao aluno de graduao e
ao residente que se inicia na arte. Sem
transgredir demais o rigor conceitual ne-
cessrio, quer ser, a um s tempo, um tex-
to de utilidade prtica para o estudante que
precisa aprender a examinar acuradamente
o paciente e uma fonte introdutria de re-
flexo em relao ao conhecimento psico-
patolgico.
Ao invs de ser um trabalho doutri-
nrio, representante desta ou daquela es-
cola, este texto busca a integrao de im-
portantes reas e conhecimentos psicopato-
lgicos. Assim, procurei apresentar concei-
tos da psicopatologia mdica clssica, da
psicopatologia fenomenolgico-existencial
e da psicanaltica. Da mesma forma, esfor-
cei-me por trazer ao aluno alguns dados
fundamentais de neurocincias e da neuro-
psicologia moderna, principalmente daqui-
lo que, a meu ver, enriquece sobremaneira
a psicopatologia.
Sem desconhecer os riscos de um
ecletismo selvagem, optei por recusar al-
ternativas essencialmente (e, sobretudo,
exclusivamente) biolgicas, cognitivo-
comportamentais, psicanalticas ou so-
cioculturais. Busquei, antes, recolher e
aproveitar o que h de esclarecedor e til
nessas diversas abordagens. Reconhecen-
do as especificidades epistemolgicas de
cada concepo, bem como a complexida-
de e a assimetria das relaes interdiscipli-
nares, no considero as diferentes teorias
como fechadas e acabadas, nem aceito
qualquer pretenso ditatorial desta ou
daquela corrente. A psicopatologia, campo
dos mais complexos, exige uma atitude aber-
ta, despreconceituosa e multidisciplinar.
Cabe salientar que, na maior parte dos
captulos, acrescentei um item denomina-
do semiotcnica, o qual visa a fornecer
ao estudante, iniciante na prtica psicopa-
tolgica, questes formuladas, testes, es-
calas, tcnicas de exame, que facilitem e
enriqueam a avaliao dos diferentes qua-
dros clnicos. Obviamente, faz parte do es-
prito da psicopatologia e da semiologia
psicopatolgica que tais ferramentas sejam
utilizadas de forma flexvel, de modo a
enriquecer a avaliao e no aprision-la a
um instrumento asfixiante. A escolha das
questes e dos testes baseou-se, alm de
em minha experincia pessoal, nos livros de
Vallejo Ngera (1944), de Andreasen e Black
(1991) e de Othmer e Othmer (1994). Os
testes sugeridos (para ateno, memria, in-
teligncia, etc.), simplificados na maior par-
te, devem ser usados com certa cautela e
interpretados dentro do contexto clnico, j
que para muitos deles no dispomos nem
da validao nacional nem de resultados
normativos para a populao brasileira.
Finalmente, merece uma palavra o
uso que fiz, talvez um tanto abusivo, de
poemas, citaes e trechos literrios. O lu-
gar estrategicamente fundamental da arte
como fonte de conhecimento psicopato-
lgico j foi vislumbrado e bem descrito
por Freud:
Poetas e romancistas so nossos precio-sos aliados, e seu testemunho deve ser al-tamente estimado, pois eles conhecemmuitas coisas entre o cu e a terra comque nossa sabedoria escolar no poderiaainda sonhar. Nossos mestres conhecema psique porque se abeberaram em fon-tes que ns, homens comuns, ainda notornamos acessveis cincia.
Freud
(O delrio e os sonhos naGradiva de Jensen, 1906)
Assim, aproprio-me da formulao
freudiana, reconhecendo que o artista per-
cebe antes e mais profundamente do que
o cientista; este ltimo organiza melhor,
cria sistemas, hierarquias, enfim, arma
uma lgica para a natureza. Mas do gran-
de artista o privilgio da percepo mais
fina, mais profunda e contundente, daqui-
lo que se passa no interior do homem, suas
misrias e grandezas.
Sumrio
parte
ASPECTOS GERAIS DA PSICOPATOLOGIA
1. Introduo geral semiologia psiquitrica .................................................................... 23
2. Definio de psicopatologia e ordenao dos seus fenmenos ................................... 27
3. O conceito de normalidade em psicopatologia ............................................................... 31
4. Os principais campos e tipos de psicopatologia ............................................................ 35
5. Princpios gerais do diagnstico psicopatolgico .......................................................... 39
6. Contribuies de algumas reas do conhecimento psicopatologia ........................... 45
parte
AVALIAO DO PACIENTE E FUNES PSQUICAS ALTERADAS
7. A avaliao do paciente ................................................................................................... 61
8. A entrevista com o paciente ........................................................................................... 66
9. As funes psquicas elementares e suas alteraes ................................................... 85
10. A conscincia e suas alteraes .................................................................................... 88
11. A ateno e suas alteraes ......................................................................................... 102
12. A orientao e suas alteraes .................................................................................... 109
1
2
Sumrio18
13. As vivncias do tempo e do espao e suas alteraes ................................................ 114
14. A sensopercepo e suas alteraes(incluindo a representao e a imaginao) ................................................................. 119
15. A memria e suas alteraes ........................................................................................ 137
16. A afetividade e suas alteraes ..................................................................................... 155
17. A vontade, a psicomotricidade e suas alteraes ......................................................... 174
18. O pensamento e suas alteraes ................................................................................... 193
19. O juzo de realidade e suas alteraes (o delrio) ....................................................... 206
20. A linguagem e suas alteraes ..................................................................................... 232
21. Funes psquicas compostas e suas alteraes:conscincia e valorao do Eu, personalidade e inteligncia ..................................... 245
22. A personalidade e suas alteraes ............................................................................... 257
23. A inteligncia e suas alteraes ................................................................................... 277
parte
AS GRANDES SNDROMES PSIQUITRICAS
24. Do sintoma sndrome ................................................................................................. 293
25. As grandes sndromes psiquitricas ............................................................................ 301
26. Sndromes ansiosas ...................................................................................................... 304
27. Sndromes depressivas ................................................................................................. 307
28. Sndromes manacas ......................................................................................................314
29. Sndromes neurticas (fobias, quadrosobsessivo-compulsivos, histeria, somatizaes) .......................................................... 319
30. Sndromes psicticas (quadros do espectroda esquizofrenia e outras psicoses) ............................................................................. 327
31. Sndromes de agitao e de estupor e lentificao psicomotoras ............................. 334
32. Sndromes relacionadas ao consumo de alimentos .................................................... 339
33. Sndromes relacionadas a substncias psicoativas .................................................... 344
34. Sndromes relacionadas sexualidade ........................................................................ 352
3
Sumrio 19
35. Sndromes relacionadas ao sono ................................................................................. 362
36. Sndromes mentais orgnicas ...................................................................................... 368
37. Demncias ..................................................................................................................... 376
38. Sndromes relacionadas cultura ................................................................................ 389
Glossrio de denominaes populares ................................................................................ 395
Referncias ............................................................................................................................ 417
ndice ..................................................................................................................................... 432
parte
1ASPECTOS GERAIS
DA PSICOPATOLOGIA
tolgica , por sua vez, o estudo dos si-nais e sintomas dos transtornos mentais.
Embora esteja intimamente relacio-
nada lingstica, a semiologia geral no
se limita a ela, posto que o signo transcen-
de a esfera da lngua; so tambm signos
os gestos, as atitudes e os comportamen-
tos no-verbais, os sinais matemticos, os
signos musicais, etc. De fato, a semiologia
geral como cincia dos signos foi postula-
da pelo lingista suo Ferdinand de
Saussure [1916] (1970), que afirmou:
Pode-se, ento, conceber uma cincia queestude a vida dos signos no seio da vidasocial; [...] cham-la-emos de Semiologia(do grego semeion, signo). Ela nos ensi-nar em que consistem os signos, que leisos regem.
Charles Morris (1946) discrimina trs
campos distintos no interior da semiologia:
a semntica, responsvel pelo estudo dasrelaes entre os signos e os objetos a que
tais signos se referem; a sintaxe, que com-
O QUE SEMIOLOGIA (EM GERAL,MDICA E PSICOPATOLGICA)
A semiologia, tomada em um sentido ge-ral, a cincia dos signos, no se restrin-
gindo obviamente medicina, psiquia-
tria ou psicologia. campo de grande
importncia para o estudo da linguagem
(semitica lingstica), da msica (semio-
logia musical), das artes em geral e de to-
dos os campos de conhecimento e de ativi-
dades humanas que incluam a interao e
a comunicao entre dois interlocutores
por meio de um sistema de signos.
Entende-se por semiologia mdicao estudo dos sintomas e dos sinais das doen-
as, estudo este que permite ao profissio-
nal de sade identificar alteraes fsicas e
mentais, ordenar os
fenmenos observa-
dos, formular diag-
nsticos e empreen-
der teraputicas. Se-miologia psicopa-
Semiologia psico-
patolgica o estu-
do dos sinais e sinto-
mas dos transtornos
mentais.
1Introduo geral
semiologia psiquitrica
Um dia escrevi que tudo autobiografia, que a vida de cada um de ns a estamos contando em
tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e
olhamos, como viramos a cabea ou apanhamos um objeto no cho. Queria eu dizer ento que,
vivendo rodeados de sinais, ns prprios somos um sistema de sinais.
Jos Saramago (Cadernos de Lanzarote, 1997)
Paulo Dalgalarrondo24
preende as regras e as leis que regem as
relaes entre os vrios signos de um siste-
ma de signos; e, finalmente, a pragmti-ca, que se ocupa das relaes entre os sig-nos e os usurios, os sujeitos que os utili-
zam concretamente.
O signo o elemento nuclear dasemiologia; ele est para a semiologia as-
sim como a clula est para a biologia e o
tomo para a fsica. O signo um tipo de
sinal. Define-se sinal como qualquer est-mulo emitido pelos objetos do mundo. As-
sim, por exemplo, a fumaa um sinal do
fogo, a cor vermelha, do sangue, etc. O sig-
no um sinal especial, um sinal sempreprovido de significao. Dessa forma, nasemiologia mdica, sabe-se que a febre
pode ser um sinal/signo de uma infeco,
ou a fala extremamente rpida e fluente
pode ser um sinal/signo de uma sndrome
manaca. A semiologia mdica e a psicopa-
tolgica tratam particularmente dos signos
que indicam a existncia de sofrimento
mental, transtornos e patologias.
Os signos de maior interesse para apsicopatologia so os sinais comporta-mentais objetivos, verificveis pela obser-vao direta do paciente, e os sintomas,isto , as vivncias subjetivas relatadas pe-los pacientes, suas queixas e narrativas,
aquilo que o sujeito experimenta e, de al-
guma forma, comunica a algum. S Junior
(1988) apresentam uma definio de sinto-
ma e sinal um pouco diferente. Ele discrimi-
na os sintomas objetivos (observados pelo
examinador) dos sintomas subjetivos (per-
cebidos apenas pelo paciente). Os sinais,
por sua vez, so definidos como dados ele-
mentares das doenas que so provocados
(ativamente evocados) pelo examinador (si-
nal de Romberg, sinal de Babinski, etc.).
Segundo o lingista russo Roman
Jakobson [1962] (1975), j os antigos es-
ticos desmembraram o signo em dois ele-
mentos bsicos: signans (o significante) e
signatum (o significado). Assim, todo sig-
no constitudo por estes dois elementos:
o significante, que o suporte material, oveculo do signo; e o significado, isto ,aquilo que designado e que est ausente,
o contedo do veculo.
De acordo com o filsofo norte-ame-
ricano Charles S. Peirce [1904] (1974), se-
gundo as relaes entre o significado (con-
tedo) e o significante (suporte material)
de um signo, h trs tipos de signos: o cone,
o indicador e o smbolo. O cone um tipode signo no qual o elemento significante
evoca imediatamente o significado, isso gra-
as a uma grande semelhana entre eles,
como se o significante fosse uma fotogra-
fia do significado. O desenho esquemtico
no papel de uma casa pode ser considerado
um cone do objeto casa. No caso do indica-dor, ou ndice, a relao entre o significantee o significado de contigidade; o signi-
ficante um ndice, algo que aponta para o
objeto significado. Assim, uma nuvem um
indicador de chuva, e a fumaa, de fogo.
O smbolo, por sua vez, um tipo designo totalmente diferente do cone e do
indicador; aqui o elemento significante e o
objeto ausente (significado) so distintos
em aparncia e sem relao de contigida-
de. No h qualquer relao direta entre
eles; trata-se de uma relao puramente
convencional e arbitrria. Entre o conjun-
to de letras agrupadas C-A-S-A e o obje-
to casa no existe qualquer semelhana
(visual ou de qualquer outro tipo), o que
constitui uma relao totalmente conven-
cional. Por isso, o sentido e o valor de um
smbolo dependem necessariamente das re-
laes que este mantm com os outros sm-
bolos do sistema simblico total; depende,
por exemplo, da ausncia ou presena de
outros smbolos que expressam significa-
dos prximos ou antagnicos a ele.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 25
DIMENSO DUPLA DO SINTOMAPSICOPATOLGICO: INDICADORE SMBOLO AO MESMO TEMPO
Os sintomas mdicos e psicopatolgicos
tm, como signos, uma dimenso dupla.
Eles so tanto um ndice (indicador) como
um smbolo. O sintoma como ndice in-
dica uma disfuno que est em outro
ponto do organismo ou do aparelho ps-
quico; porm, aqui a relao do sintoma
com a disfuno de base , em certo sen-
tido, de contigidade. A febre pode
corresponder a uma infeco que induz
os leuccitos a liberarem certas citocinas
que, por sua ao no hipotlamo, pro-
duzem o aumento da temperatura. Assim,
o sintoma febre tem determinada relao
de contigidade com o processo infeccio-
so de base.
Alm de tal dimenso de indicador,
os sintomas psicopatolgicos, ao serem
nomeados pelo paciente, por seu meio cul-
tural ou pelo mdico, passam a ser sm-
bolos lingsticos no interior de uma lin-
guagem. No momento em que recebe um
nome, o sintoma adquire o status de sm-
bolo, de signo lingstico arbitrrio, que
s pode ser compreendido dentro de um
sistema simblico dado, em determinado
universo cultural. Dessa forma, a angs-
tia manifesta-se (e realiza-se) ao mesmo
tempo como mos geladas, tremores e aper-
to na garganta (que indicam, p. ex., uma
disfuno no sistema nervoso autnomo),
e, ao ser tal estado designado como ner-
vosismo, neurose, ansiedade ou gastura,
passa a receber certo significado simbli-
co e cultural (por isso, convencional e ar-
bitrrio), que s pode ser adequadamen-
te compreendido e interpretado tendo-se
como referncia um universo cultural es-
pecfico, um sistema de smbolos deter-
minado.
A semiologia
psicopatolgica, por-
tanto, cuida espe-
cificamente do estu-
do dos sinais e sin-
tomas produzidos
pelos transtornos
mentais, signos que
sempre contm essa
dupla dimenso.
DIVISES DA SEMIOLOGIA
A semiologia (tanto a mdica como a
psicopatolgica) pode ser dividida em duas
grandes subreas: semiotcnica e semio-gnese (Marques, 1970).
A semiotcnica refere-se a tcnicase procedimentos especficos de observao
e coleta de sinais e sintomas, assim como
descrio de tais sintomas. No caso dos
transtornos mentais, a semiotcnica con-
centra-se na entrevista direta com o pa-
ciente, seus familiares e demais pessoas
com as quais convive. A coleta de sinais e
sintomas requer a habilidade sutil em for-
mular as perguntas mais adequadas para
o estabelecimento de uma relao produ-
tiva e a conseqente identificao dos sig-
nos dos transtornos mentais. Aqui so fun-
damentais o como e o quando fazer as
perguntas, assim como o modo de inter-
pretar as respostas e a decorrente formu-
lao de novas perguntas. Fundamental,
sobretudo para a semiotcnica em psico-
patologia, a observao minuciosa, aten-
ta e perspicaz do comportamento do pa-
ciente, do contedo de seu discurso e do
seu modo de falar, da sua mmica, da pos-
tura, da vestimenta, da forma como reage
e do seu estilo de relacionamento com o
entrevistador, com outros pacientes e com
seus familiares.
A semiologia psico-
patolgica cuida es-
pecificamente do es-
tudo dos sinais e sin-
tomas produzidos
pelos transtornos
mentais, signos que
sempre contm essa
dupla dimenso.
Paulo Dalgalarrondo26
A semiognese, por sua vez, ocampo de investigao da origem, dos me-
canismos, do significado e do valor diag-
nstico e clnico dos sinais e sintomas. Fi-
nalmente, alguns autores utilizam o termo
propedutica mdica ou psiquitrica paradesignar a semiologia. Propedutica, de
modo geral, termo empregado em vrias
reas do saber para designar o ensino pr-
vio, os conhecimentos preliminares neces-
srios ao incio de uma cincia ou filoso-
fia. Prefiro o termo semiologia pro-
pedutica, mas reconheo que a semiologia
psicopatolgica (como propedutica) pode
ser concebida como uma cincia prelimi-
nar, necessria a todo estudo psicopato-
lgico e prtica clnica psiquitrica.
SNDROMES E ENTIDADESNOSOLGICAS
Na prtica clnica, os sinais e os sintomas
no ocorrem de forma aleatria; surgem
em certas associaes, certos clusters mais
ou menos freqentes. Definem-se, portan-
to, as sndromes como agrupamentos re-lativamente constantes e estveis de deter-
minados sinais e sintomas. Entretanto, ao
se delimitar uma sndrome (como sndrome
depressiva, demencial, paranide, etc.),
no se trata ainda da definio e da identi-
ficao de causas especficas e de uma na-
tureza essencial do processo patolgico. A
sndrome puramente uma definio des-
critiva de um conjunto momentneo e re-
corrente de sinais e sintomas.
Denominam-se entidades nosolgi-cas, doenas ou transtornos especficosos fenmenos mrbidos nos quais podem-
se identificar (ou pelo menos presumir com
certa consistncia) certos fatores causais(etiologia), um curso relativamente homo-gneo, estados terminais tpicos, meca-nismos psicolgicos e psicopatolgicoscaractersticos, antecedentes gentico-familiares algo especficos e respostas atratamentos mais ou menos previsveis.Em psicopatologia e psiquiatria, trabalha-
se muito mais com sndromes do que com
doenas ou transtornos especficos, embo-
ra muito esforo tenha sido (h mais de 200
anos!) empreendido no sentido de identifi-
car entidades nosolgicas precisas. Cabe
lembrar que o reconhecimento dessas enti-
dades no tem apenas um interesse cient-
fico ou acadmico (valor terico); ele ge-
ralmente viabiliza ou facilita o desenvolvi-
mento de procedimentos teraputicos e pre-
ventivos mais eficazes (valor pragmtico).
Questes de reviso Estabelea um paralelo entre os conceitos de semiologia, semiologia mdica
e semiologia psicopatolgica.
Quais os signos de maior interesse para a psicopatologia?
Explique a dupla dimenso do sintoma psicopatolgico.
Como se subdivide a semiologia mdica/psicopatolgica?
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 27
lgico; o conhecimento que busca est per-
manentemente sujeito a revises, crticas
e reformulaes.
O campo da psicopatologia incluium grande nmero de fenmenos huma-
nos especiais, associados ao que se deno-
minou historicamente de doena mental.So vivncias, estados mentais e padres
comportamentais que apresentam, por um
lado, uma especificidade psicolgica (as
vivncias dos doentes mentais possuem
dimenso prpria, genuna, no sendo ape-
nas exageros do normal) e, por outro,
conexes complexas com a psicologia do
normal (o mundo da doena mental no
um mundo totalmente estranho ao mundo
das experincias psicolgicas normais).
A psicopatologia tem boa parte de
suas razes na tradio mdica (na obra dos
grandes clnicos e alienistas do passado),
que propiciou, nos ltimos dois sculos, a
observao prolongada e cuidadosa de um
considervel contingente de doentes men-
tais. Em outra vertente, a psicopatologia
nutre-se de uma tradio humanstica (filo-
sofia, literatura, artes, psicanlise) que sem-
Campbell (1986) define a psicopatologia
como o ramo da cincia que trata da natu-
reza essencial da doena mental suas cau-
sas, as mudanas estruturais e funcionais
associadas a ela e suas formas de manifes-
tao. Entretanto, nem todo estudo psi-
copatolgico segue a rigor os ditames de
uma cincia sensu strictu. A psicopatologia,
em acepo mais ampla, pode ser definida
como o conjunto de conhecimentos refe-
rentes ao adoecimento mental do ser hu-
mano. um conhecimento que se esfora
por ser sistemtico, elucidativo e des-mistificante. Como conhecimento que visaser cientfico, no inclui critrios de valor,
nem aceita dogmas ou verdades a priori.
O psicopatlogo no julga moralmente o
seu objeto, busca apenas observar, identifi-
car e compreender os
diversos elementos
da doena mental.
Alm disso, rejeita
qualquer tipo de
dogma, seja ele re-
ligioso, filosfico,
psicolgico ou bio-
O psicopatlogo no
julga moralmente o
seu objeto, busca ape-
nas observar, iden-
tificar e compreender
os diversos elementos
da doena mental.
2Definio de psicopatologia
e ordenao dos seus fenmenos
Um fenmeno sempre biolgico em suas razes
e social em sua extenso final. Mas ns no nos
devemos esquecer, tambm, de que,
entre esses dois, ele mental.
Jean Piaget
Paulo Dalgalarrondo28
pre viu na alienao mental, no pathos do
sofrimento mental extremo, uma possibi-
lidade excepcionalmente rica de reconhe-
cimento de dimenses humanas que, sem
o fenmeno doena mental, permane-
ceriam desconhecidas. Apesar de se bene-
ficiar das tradies neurolgicas, psicol-
gicas e filosficas, a psicopatologia no se
confunde com a neurologia das chamadas
funes corticais superiores (no se resu-
me, portanto, a uma cincia natural dos
fenmenos relacionados s zonas associa-
tivas do crebro lesado), nem hipottica
psicologia das funes mentais desviadas.
A psicopatologia , pois, uma cincia aut-
noma, e no um prolongamento da neuro-
logia ou da psicologia.
Karl Jaspers (1883-1969), um dos
principais autores da psicopatologia, afir-
ma que esta uma cincia bsica, que ser-
ve de auxlio psiquiatria, a qual , por
sua vez, um conhecimento aplicado a uma
prtica profissional e social concreta.
Jaspers muito claro em relao aos
limites da psicopatologia: embora o ob-jeto de estudo seja o homem na sua totali-
dade (Nosso tema o homem todo em
sua enfermidade. [Jaspers, 1913/1979),
os limites da cincia psicopatolgica con-
sistem precisamente em que nunca se pode
reduzir por completo o ser humano a con-
ceitos psicopatolgicos. O domnio da
psicopatologia, segundo ele, estende-se a
todo fenmeno psquico que possa apre-
ender-se em conceitos de significao cons-
tantes e com possibilidade de comunica-
o. Assim, a psicopatologia, como cin-
cia, exige um pensamento rigorosamente
conceptual, que seja sistemtico e que pos-
sa ser comunicado de modo inequvoco. Na
prtica profissional, entretanto, participam
ainda opinies instintivas, uma intuio
pessoal que nunca se pode comunicar. Des-
sa forma, a cincia psicopatolgica tida
como uma das abordagens possveis do
homem mentalmente doente, mas no a
nica.
Em todo indivduo, oculta-se algo que
no se pode conhecer, pois a cincia requer
um pensamento conceitual sistemtico,
pensamento que cristaliza, torna evidente,
mas tambm aprisiona o conhecimento.
Quanto mais conceitualiza, afirma Jaspers,
quanto mais reconhece e caracteriza o t-
pico, o que se acha de acordo com os prin-
cpios, tanto mais reconhece que, em todo
indivduo, se oculta algo que no pode co-
nhecer. Assim a psicopatologia sempre
perde, obrigatoriamente, aspectos essen-
ciais do homem, sobretudo nas dimenses
existenciais, estticas, ticas e metafsicas.
O filsofo Gadamer (1990) postula que:
diante de uma obra de arte, experimenta-mos uma verdade inacessvel por qualqueroutra via; isso o que constitui o significa-do filosfico da arte. Da mesma forma quea experincia da filosofia, tambm a expe-rincia da arte incita a conscincia cient-fica a reconhecer seus limites.
Dito de outra forma, no se pode com-
preender ou explicar tudo o que existe em
um homem por meio de conceitos psico-
patolgicos. Assim, ao se diagnosticar Van
Gogh como esquizofrnico (epilptico, ma-
naco-depressivo ou qualquer que seja o di-
agnstico formulado), ao se fazer uma an-
lise psicopatolgica de sua biografia, isso
nunca explicar totalmente sua vida e sua
obra. Sempre resta algo que transcende
psicopatologia e mesmo cincia, perma-
necendo no domnio do mistrio.
FORMA E CONTEDO DOS SINTOMAS
Em geral, quando se estudam os sintomas
psicopatolgicos, dois aspectos bsicos
costumam ser enfocados: a forma dos
sintomas, isto , sua estrutura bsica, rela-
tivamente semelhante nos diversos pa-
cientes (alucinao, delrio, idia obsessiva,
labilidade afetiva, etc.), e seu contedo, ou
seja, aquilo que preenche a alterao estru-
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 29
tural (contedo de culpa, religioso, de per-
seguio, etc.). Este ltimo geralmente
mais pessoal, dependendo da histria de
vida do paciente, de seu universo cultural e
da personalidade prvia ao adoecimento.
De modo geral, os contedos dos sin-
tomas esto relacionados aos temas cen-
trais da existncia humana, tais como so-
brevivncia e segurana, sexualidade, temo-
res bsicos (morte, doena, misria, etc.),
religiosidade, entre outros. Esses temas re-
presentam uma espcie de substrato, que
entra como ingrediente fundamental na
constituio da experincia psicopatolgica.
Nesse sentido, apresentado a seguir um
esquema simplificado de temas e temores
bsicos do ser humano (Quadros 2.1 e 2.2).
A ORDENAO DOS FENMENOSEM PSICOPATOLOGIA
O estudo da doena mental, como o
de qualquer outro objeto, inicia pela obser-
vao cuidadosa de suas manifestaes. A
observao articula-
se dialeticamente
com a ordenao
dos fenmenos. Isso
significa que, para
observar, tambm
preciso produzir, de-
finir, classificar, in-
terpretar e ordenar o observado em de-
terminada perspectiva, seguindo certa l-
gica.
Quadro 2.1
Temas existenciais que freqentemente se expressam no contedo dos sintomas psicopatolgicos
Temas e interesses centrais para o ser humano O que busca e deseja
Sexo Sobrevivncia e prazer
Alimentao
Conforto fsico
Dinheiro Segurana
Poder e controle sobre o outro
Prestgio
Quadro 2.2
Temores que freqentemente se expressam no contedo dos sintomas psicopatolgicos
Temores centrais do ser humano Formas comuns de lidar com tais temores
Morte Religio/mundo mstico
Continuidade atravs das novas geraes
Ter uma doena grave Vias mgicas/medicina/psicologia, etc.
Sofrer dor fsica ou moral
Misria
Falta de sentido existencial Relaes pessoais significativas
Cultura
O estudo da doena
mental, como o de
qualquer outro obje-
to, inicia pela obser-
vao cuidadosa de
suas manifestaes.
Paulo Dalgalarrondo30
essas experincias so basicamen-
te semelhantes para todos.
2. Fenmenos em parte semelhan-
tes e em parte diferentes. So fe-
nmenos que o homem comum
experimenta, mas apenas em par-
te so semelhantes aos que o doen-
te mental vivencia. Assim, todo ho-
mem comum pode sentir tristeza;
mas a alterao profunda, avassa-
ladora, que um paciente com de-
presso psictica experimenta
apenas parcialmente semelhante
tristeza normal. A depresso
grave, por exemplo, com idias de
runa, lentificao psicomotora,
apatia, etc., introduz algo qualita-
tivamente novo na experincia hu-
mana.
3. Fenmenos qualitativamente
novos, diferentes. So pratica-
mente prprios apenas a certas
doenas e estados mentais. Aqui
incluem-se fenmenos psicticos,
como alucinaes, delrios, turva-
o da conscincia, alterao da
cognio nas demncias, entre
outros.
Assim, desde Aristteles, o problema
da classificao est intimamente ligado
ao da definio e do conhecimento de
modo geral. Segundo ele, definir indicar
o gnero prximo e a diferena especfica.
Isso quer dizer que definir , por um lado,
afirmar a que o fenmeno definido se as-
semelha, do que aparentado, com o que
deve ser agrupado e, por outro, identificar
do que ele se diferencia, a que estranho
ou oposto. Portanto, na linha aristotlica,
o problema da classificao a questo
da unidade e da variedade dos fatos edos conhecimentos que sobre eles so pro-
duzidos.
Classicamente, distinguem-se trs ti-
pos de fenmenos humanos para a psicopa-
tologia:
1. Fenmenos semelhantes em to-
das as pessoas. De modo geral,
todo homem sente fome, sede ou
sono. Aqui se inclui o medo de um
animal perigoso, a ansiedade pe-
rante uma prova difcil, o desejo
por uma pessoa amada, etc. Em-
bora haja uma qualidade pessoal
prpria para cada ser humano,
Questes de reviso Defina psicopatologia e comente suas origens e seu campo de atuao.
Discuta os dois aspectos bsicos dos sintomas psicopatolgicos: forma e contedo.
Relacione os temas centrais da existncia humana com o contedo dos sintomas
psicopatolgicos.
Descreva a ordenao dos fenmenos psicopatolgicos em semelhantes, parcialmente
semelhantes e qualitativamente novos.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 31
exemplo a questo da delimitao dos n-
veis de tenso arterial para a determina-
o de hipertenso ou de glicemia, na de-
finio do diabete. Esse problema foi cui-
dadosamente estudado pelo filsofo e m-
dico francs Georges Canguilhem (1978)
cujo livro O normal e o patolgico tornou-
se indispensvel em tal discusso.
O conceito de normalidade em psico-
patologia tambm implica a prpria defi-
nio do que sade e doena mental.
Esses temas apresentam desdobramentos
em vrias reas da sade mental. Por
exemplo:
1. Psiquiatria legal ou forense. A
determinao de anormalidade
psicopatolgica pode ter impor-
tantes implicaes legais, crimi-
nais e ticas, podendo definir o
O conceito de sade
e de normalidade
em psicopatologia
questo de grande
controvrsia (Al-
meida Filho, 2000).
Obviamente, quando se trata de casos ex-
tremos, cujas alteraes comportamentais
e mentais so de intensidade acentuada e
de longa durao, o delineamento das fron-
teiras entre o normal e o patolgico no
to problemtico. Entretanto, h muitos
casos limtrofes, nos quais a delimitao
entre comportamentos e formas de sentir
normais e patolgicas bastante difcil.
Nessas situaes, o conceito de normali-
dade em sade mental ganha especial re-
levncia. Alis, o problema no exclusi-
vo da psicopatologia, mas de toda a medi-
cina (Almeida Filho, 2001); tome-se como
O conceito de sade
e de normalidade
em psicopatologia
questo de grande
controvrsia.
3O conceito de normalidade
em psicopatologia
Que loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De ns dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
v o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Carlos Drummond de Andrade
(Quixote e Sancho de Portinari, 1974)
Paulo Dalgalarrondo32
destino social, institucional e le-
gal de uma pessoa.
2. Epidemiologia psiquitrica. Nes-
te caso, a definio de normalida-
de tanto um problema como um
objeto de trabalho e pesquisa. A
epidemiologia, inclusive, pode
contribuir para a discusso e o
aprofundamento do conceito de
normalidade em sade.
3. Psiquiatria cultural e etnopsi-
quiatria. Aqui o conceito de nor-
malidade tema importante de pes-
quisas e debates. De modo geral, o
conceito de normalidade em psico-
patologia impe a anlise do con-
texto sociocultural; exige necessa-
riamente o estudo da relao entre
o fenmeno supostamente patol-
gico e o contexto social no qual tal
fenmeno emerge e recebe este ou
aquele significado cultural.
4. Planejamento em sade mental
e polticas de sade. Nesta rea,
preciso estabelecer critrios de
normalidade, principalmente no
sentido de verificar as demandas
assistenciais de determinado gru-
po populacional, as necessidades
de servios, quais e quantos servi-
os devem ser colocados dispo-
sio desse grupo, etc.
5. Orientao e capacitao pro-
fissional. So importantes na de-
finio de capacidade e adequa-
o de um indivduo para exercer
certa profisso, manipular mqui-
nas, usar armas, dirigir veculos,
etc. Como, por exemplo, o caso de
indivduos com dficits cognitivos
e que desejam dirigir veculos,
pessoas psicticas que querem
portar armas, ou sujeitos com cri-
ses epilpticas que manipulam m-
quinas perigosas, etc.
6. Prtica clnica. muito importan-
te a capacidade de discriminar, no
processo de avaliao e interven-
o clnica, se tal ou qual fenme-
no patolgico ou normal, se faz
parte de um momento existencial
do indivduo ou algo francamen-
te patolgico.
CRITRIOS DE NORMALIDADE
H vrios critrios de normalidade e anor-
malidade em medicina e psicopatologia. A
adoo de um ou outro depende, entre
outras coisas, de opes filosficas, ideo-
lgicas e pragmticas do profissional
(Canguilhem, 1978). Os principais critrios
de normalidade utilizados em psicopato-
logia so:
1. Normalidade como ausncia de
doena. O primeiro critrio que
geralmente se utiliza o de sade
como ausncia de sintomas, de
sinais ou de doenas. Segundo ex-
pressiva formulao de Ren Le-
riche (1936): a sade a vida no
silncio dos rgos. Normal, do
ponto de vista psicopatolgico,
seria, ento, aquele indivduo que
simplesmente no portador de
um transtorno mental definido.
Tal critrio bastante falho e pre-
crio, pois, alm de redundante,
baseia-se em uma definio ne-
gativa, ou seja, defini-se a nor-
malidade no por aquilo que ela
supostamente , mas, sim, por
aquilo que ela no , pelo que lhe
falta (Almeida Filho; Juc, 2002).
2. Normalidade ideal. A normalida-
de aqui tomada como uma certa
utopia. Estabelece-se arbitraria-
mente uma norma ideal, o que
supostamente sadio, mais evo-
ludo. Tal norma , de fato, social-
mente constituda e referendada.
Depende, portanto, de critrios
socioculturais e ideolgicos arbitr-
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 33
rios, e, s vezes, dogmticos e dou-
trinrios. Exemplos de tais concei-
tos de normalidade so aqueles
com base na adaptao do indiv-
duo s normas morais e polticas
de determinada sociedade (como
nos casos do macarthismo nos EUA
e do pseudodiagnstico de dissi-
dentes polticos como doentes
mentais na antiga Unio Sovitica).
3. Normalidade estatstica. A nor-
malidade estatstica identifica nor-
ma e freqncia. Trata-se de um
conceito de normalidade que se
aplica especialmente a fenmenos
quantitativos, com determinada
distribuio estatstica na popula-
o geral (como peso, altura, ten-
so arterial, horas de sono, quan-
tidade de sintomas ansiosos, etc.).
O normal passa a ser aquilo que
se observa com mais freqncia.
Os indivduos que se situam esta-
tisticamente fora (ou no extremo)
de uma curva de distribuio nor-
mal passam, por exemplo, a ser
considerados anormais ou doen-
tes. um critrio muitas vezes fa-
lho em sade geral e mental, pois
nem tudo o que freqente ne-
cessariamente saudvel, e nem
tudo que raro ou infreqente
patolgico. Tomem-se como exem-
plo fenmenos como as cries
dentrias, a presbiopia, os sinto-
mas ansiosos e depressivos leves,
o uso pesado de lcool, fenme-
nos estes que podem ser muito fre-
qentes, mas que evidentemente
no podem, a priori, ser conside-
rados normais ou saudveis.
4. Normalidade como bem-estar. A
Organizao Mundial de Sade
(WHO, 1946) definiu, em 1946, a
sade como o completo bem-es-
tar fsico, mental e social, e no
simplesmente como ausncia de
doena. um conceito criticvel
por ser muito vasto e impreciso,
pois bem-estar algo difcil de se
definir objetivamente. Alm disso,
esse completo bem-estar fsico,
mental e social to utpico que
poucas pessoas se encaixariam na
categoria saudveis.
5. Normalidade funcional. Tal con-
ceito baseia-se em aspectos fun-
cionais e no necessariamente
quantitativos. O fenmeno con-
siderado patolgico a partir do
momento em que disfuncional,
produz sofrimento para o prprio
indivduo ou para o seu grupo
social.
6. Normalidade como processo.
Neste caso, mais que uma viso
esttica, consideram-se os aspec-
tos dinmicos do desenvolvimen-
to psicossocial, das desestrutu-
raes e das reestruturaes ao
longo do tempo, de crises, de mu-
danas prprias a certos perodos
etrios. Esse conceito particu-
larmente til em psiquiatria in-
fantil, de adolescentes e geri-
trica.
7. Normalidade subjetiva. Aqui
dada maior nfase percepo
subjetiva do prprio indivduo em
relao a seu estado de sade, s
suas vivncias subjetivas. O ponto
falho desse critrio que muitas
pessoas que se sentem bem, mui-
to saudveis e felizes, como no
caso de sujeitos em fase manaca,
apresentam, de fato, um transtor-
no mental grave.
8. Normalidade como liberdade.
Alguns autores de orientao fe-
nomenolgica e existencial pro-
pem conceituar a doena mental
como perda da liberdade existen-
cial (p. ex., Henri Ey). Dessa for-
ma, a sade mental se vincularia
Paulo Dalgalarrondo34
s possibilidades de transitar com
graus distintos de liberdade sobre
o mundo e sobre o prprio desti-
no. A doena mental constran-
gimento do ser, fechamento,
fossilizao das possibilidades
existenciais. Dentro desse esprito,
o psiquiatra gacho Cyro Martins
(1981) afirmava que a sade men-
tal poderia ser vista, at certo pon-
to, como a possibilidade de dispor
de senso de realidade, senso de
humor e de um sentido potico pe-
rante a vida, atributos estes que
permitiriam ao indivduo relati-
vizar os sofrimentos e as limita-
es inerentes condio huma-
na e, assim, desfrutar do resqu-
cio de liberdade e prazer que a
existncia oferece.
9. Normalidade operacional. Trata-
se de um critrio assumidamente
arbitrrio, com finalidades prag-
mticas explcitas. Define-se, a
priori, o que normal e o que
patolgico e busca-se trabalhar
operacionalmente com esses con-
ceitos, aceitando as conseqncias
de tal definio prvia.
Portanto, de modo geral, pode-se
concluir que os critrios de normalidade
e de doena em psicopatologia variam
consideravelmente em funo dos fen-
menos especficos com os quais se traba-
lha e, tambm, de acordo com as opes
filosficas do profissional. Alm disso, em
alguns casos, pode-se utilizar a associa-
o de vrios critrios de normalidade ou
doena, de acordo com o objetivo que se
tem em mente. De toda forma, essa uma
rea da psicopatologia que exige postura
permanentemente crtica e reflexiva dos
profissionais.
Questes de reviso Que reas da sade mental esto relacionadas com e implicadas no conceito de
normalidade em psicopatologia?
Quais so os principais critrios de normalidade interligados em psicopatologia e quais
suas foras e debilidades?
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 35
histrico, um campo de conhecimento que
requer debate constante e aprofundado.
Aqui o conflito de idias no uma debili-
dade, mas uma necessidade. No se avan-
a em psicopatologia negando e anulando
diferenas conceituais e tericas; evolui-se,
sim, pelo esforo de esclarecimento e
aprofundamento de tais diferenas, em dis-
cusso aberta, desmistificante e honesta.
A seguir, so apresentadas algumas
das principais correntes da psicopatologia,
dispostas de forma arbitrria, por motivos
estritamente didticos, em pares antag-
nicos.
PSICOPATOLOGIA DESCRITIVAVERSUS PSICOPATOLOGIA DINMICA
Para a psiquiatria descritiva, interessafundamentalmente a forma das alteraespsquicas, a estrutura dos sintomas, aquiloque caracteriza a vivncia patolgica comosintoma mais ou menos tpico. J para apsiquiatria dinmica, interessa o conte-do da vivncia, os movimentos internos deafetos, desejos e temores do indivduo, suaexperincia particular, pessoal, no neces-sariamente classificvel em sintomas pre-
Umas das principaiscaractersticas da psi-copatologia, comocampo de conheci-mento, a multipli-cidade de aborda-gens e referenciaistericos que tem in-corporado nos lti-mos 200 anos. Talmultiplicidade vis-
ta por alguns como debilidade cientfica,como prova de sua imaturidade. Os psicopa-tlogos so criticados por essa diversidadede explicaes e teorias, por seu aspectohbrido em termos epistemolgicos.
Dizem alguns que, quando se conhe-ce realmente algo, se tem apenas uma teo-ria que explica cabalmente os fatos; quan-do no se conhece a realidade que se estu-da, so construdas centenas de teorias con-flitantes. Discordo de tal viso; querer umanica explicao, uma nica concepoterica, que resolva todos os problemas edvidas de uma rea to complexa emultifacetada como a psicopatologia im-por uma soluo simplista e artificial, quedeformaria o fenmeno psicopatolgico. Apsicopatologia , por natureza e destino
Umas das principais
caractersticas da
psicopatologia, como
campo de conheci-
mento, a multipli-
cidade de abordagens
e referenciais teri-
cos que tem incorpo-
rado nos ltimos 200
anos.
4Os principais campos
e tipos de psicopatologia
Paulo Dalgalarrondo36
viamente descritos. A boa prtica em sa-de mental implica a combinao hbil eequilibrada de uma abordagem descritiva,diagnstica e objetiva e uma abordagemdinmica, pessoal e subjetiva do doente ede sua doena.
Assim, logo na introduo de seu tra-tado de psiquiatria, Bleuler (1985, p. 1)afirma que:
Quando um mdico se defronta com agrande tarefa de ajudar uma pessoa psi-quicamente enferma, v sua frente doiscaminhos: ele pode registrar o que mr-bido. Ir, ento, a partir dos sintomas dadoena, concluir pela existncia de um dosquadros mrbidos impessoais que foramdescritos. [...] Ou pode trilhar outro ca-minho: pode escutar o doente como sefosse um amigo de confiana. Nesse caso,dirigir a sua ateno menos para cons-tatar o que mrbido, para anotar sinto-mas psicopatolgicos e, a partir disso,chegar a um diagnstico impessoal, e maispara tentar compreender uma pessoahumana na sua singularidade e co-vivenciar suas aflies, seus temores, seusdesejos e suas expectativas pessoais.
PSICOPATOLOGIA MDICA VERSUSPSICOPATOLOGIA EXISTENCIAL
A perspectiva mdico-naturalista trabalhacom uma noo de homem centrada no cor-po, no ser biolgico como espcie natural euniversal. Assim, o adoecimento mental visto como um mau funcionamento do c-rebro, uma desregulao, uma disfuno dealguma parte do aparelho biolgico. Jna perspectiva existencial, o doente vis-to principalmente como existncia singu-lar, como ser lanado a um mundo que apenas natural e biolgico na sua dimen-so elementar, mas que fundamentalmentehistrico e humano. O ser construdo pormeio da experincia particular de cada su-
jeito, na sua relao com outros sujeitos, naabertura para a construo de cada destinopessoal. A doena mental, nessa perspecti-va, no vista tanto como disfuno biol-gica ou psicolgica, mas, sobretudo, comoum modo particular de existncia, uma for-ma trgica de ser no mundo, de construirum destino, um modo particularmente do-loroso de ser com os outros.
PSICOPATOLOGIACOMPORTAMENTAL-COGNITIVISTAVERSUS PSICOPATOLOGIAPSICANALTICA
Na viso comportamental, o homem vis-to como um conjunto de comportamentosobservveis, verificveis, que so regula-dos por estmulos especficos e gerais, e porcertas leis e determinantes do aprendiza-do. Associada a essa viso, a perspectivacognitivista centra ateno sobre as repre-sentaes cognitivas conscientes de cadaindivduo. As representaes conscientesseriam vistas como essenciais ao funciona-mento mental, normal e patolgico. Os sin-tomas resultam de comportamentos e re-presentaes cognitivas disfuncionais,aprendidas e reforadas pela experinciasociofamiliar.
Em contraposio, na viso psicana-ltica, o homem visto como ser determi-nado, dominado, por foras, desejos e con-flitos inconscientes. A psicanlise d gran-de importncia aos afetos, que, segundoela, dominam o psiquismo; o homem racio-nal, autocontrolado, senhor de si e de seusdesejos, , para ela, uma enorme iluso.Na viso psicanaltica, os sintomas e sn-dromes mentais so considerados formasde expresso de conflitos, predominante-mente inconscientes, de desejos que nopodem ser realizados, de temores aos quaiso indivduo no tem acesso. O sintoma encarado, nesse caso, como uma forma-
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 37
o de compromisso, um certo arranjoentre o desejo inconsciente, as normas eas permisses culturais e as possibilidadesreais de satisfao desse desejo. A resul-tante desse emaranhado de foras, dessatrama conflitiva inconsciente, o que seidentifica como sintoma psicopatolgico.
PSICOPATOLOGIA CATEGORIALVERSUS PSICOPATOLOGIADIMENSIONAL
As entidades nosolgicas ou transtornosmentais especficos podem ser compreen-didos como entidades completamente in-dividualizadas, com contornos e fronteirasbem-demarcados. As categorias diagns-ticas seriam espcies nicas, tal qual es-pcies biolgicas, cuja identificao preci-sa constituiria uma das tarefas da psico-patologia. Assim, entre a esquizofrenia eos transtornos afetivos bipolares e os deli-rantes, haveria, por exemplo, uma frontei-ra ntida, configurando-os como entidadesou categorias diagnsticas diferentes ediscernveis na sua natureza bsica. Emcontraposio a essa viso categorial, al-guns autores propem uma perspectivadimensional em psicopatologia, que se-ria hipoteticamente mais adequada rea-lidade clnica. Haveria, ento, dimensescomo, por exemplo, o espectro esquizo-frnico, que incluiria desde formas muitograves, tipo demncia precoce (com gra-ve deteriorao da personalidade, embota-mento afetivo, muitos sintomas residuais),formas menos deteriorantes de esquizo-frenia, formas com sintomas afetivos, che-gando at um outro plo, de transtornosafetivos, incluindo formas com sintomaspsicticos at formas puras de depresso emania (hiptese esta que se relaciona antiga noo de psicose unitria).
Algumas polaridades dimensionaisem psicopatologia seriam, por exemplo:
Esquizofrenia deficitria / Esquizofrenia
benigna / Psicoses esquizoafetivas / Trans-
tornos afetivos com sintomas psicticos /
Transtornos afetivos menores
ou
Depresses graves (estupor, psictica) / Depres-
so bipolar / Depresses moderadas / Distimia
/ Personalidade depressiva / Depresso
subclnica.
PSICOPATOLOGIA BIOLGICAVERSUS PSICOPATOLOGIASOCIOCULTURAL
A psicopatologia biolgica enfatiza os as-pectos cerebrais, neuroqumicos ou neuro-fisiolgicos das doenas e dos sintomasmentais. A base de todo transtorno mentalso alteraes de mecanismos neurais e dedeterminadas reas e circuitos cerebrais.Nesse sentido, o aforismo do psiquiatra ale-mo Griesinger (1845) resume bem essaperspectiva: doenas mentais so (de fato)doenas cerebrais. Em contraposio, aperspectiva sociocultural visa estudar ostranstornos mentais como comportamen-tos desviantes que surgem a partir de cer-tos fatores socioculturais, como discrimi-nao, pobreza, migrao, estresse ocu-pacional, desmoralizao sociofamiliar, etc.Os sintomas e os transtornos devem ser es-tudados, segundo essa viso, no seu con-texto eminentemente sociocultural, simb-lico e histrico. nesse contexto de nor-mas, valores e smbolos culturalmenteconstrudos que os sintomas recebem seusignificado, e, portanto, poderiam ser pre-cisamente estudados e tratados. Mais queisso, a cultura, em tal perspectiva, ele-mento fundamental na prpria determi-nao do que normal ou patolgico, naconstituio dos transtornos e nos reper-trios teraputicos disponveis em cadasociedade.
Paulo Dalgalarrondo38
PSICOPATOLOGIA OPERACIONAL-PRAGMTICA VERSUSPSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
Na viso operacional-pragmtica, as de-finies bsicas de transtornos mentais esintomas so formuladas e tomadas demodo arbitrrio, em funo de sua utilida-de pragmtica, clnica ou orientada pes-quisa. No so questionados a natureza dadoena ou do sintoma e tampouco os fun-damentos filosficos ou antropolgicos dedeterminada definio. Trata-se do mode-lo adotado pelas modernas classificaes
de transtornos mentais; o DSM-IV, norte-americano, e a CID-10, da OMS. Por suavez, o projeto de psicopatologia fundamen-tal, proposto pelo psicanalista francsPierre Fedida, visa centrar a ateno da pes-quisa psicopatolgica sobre os fundamen-tos de cada conceito psicopatolgico. Almdisso, tal psicopatologia d nfase noode doena mental como pathos, que signi-fica sofrimento, paixo e passividade. Opathos, diz Berlinck (1977), um sofrimen-to-paixo que, ao ser narrado a um interlo-cutor, em certas condies, pode ser trans-formado em experincia e enriquecimento.
Questes de reviso Cite e defina oito correntes da psicopatologia.
Discuta as principais diferenas entre a psicopatologia mdica e a existencial, assim
como entre a psicopatologia categorial e a dimensional.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 39
ciente e seu sofrimento, nem escolher o tipode estratgia teraputica mais apropriado.
A favor dessa viso pr-diagnstico,est a afirmao de Aristteles (1973), logonas primeiras pginas do livro alpha de suaMetafsica:
A arte aparece quando, de um complexode noes experimentadas, se exprimeum nico juzo universal dos casos se-melhantes. Com efeito, ter a noo deque a Clias, atingido de tal doena, talremdio deu alvio, e a Scrates tambm,e, da mesma maneira, a outros tomadossingularmente, da experincia; masjulgar que tenha aliviado a todos os se-melhantes, determinados segundo umanica espcie, atingidos de tal doena,como os fleumticos, os biliosos ou osincomodados por febre ardente, isso da arte. [...] E isso porque a experincia conhecimento dos singulares, e a arte,dos universais.
Entretanto, bom lembrar que o pr-prio Aristteles defende que somente o in-dividual real; o que se tem acesso dire-to apenas aos objetos concretos e particu-lares. O universal, afirmava o filsofo, noexiste na natureza, apenas no esprito hu-mano, que capta e constitui as idias a
Discute-se muito sobre o valor e os limitesdo diagnstico psiquitrico. Pode-se iden-tificar, inclusive, duas posies extremas.A primeira afirma que o diagnstico em psi-quiatria no tem valor algum, pois cadapessoa uma realidade nica e inclassi-ficvel. O diagnstico psiquitrico apenasserviria para rotular as pessoas diferentes,excntricas, permitindo e legitimando opoder mdico, o controle social sobre o in-divduo desadaptado ou questionador. Essacrtica particularmente vlida nos regi-mes polticos totalitrios, quando se utili-zou o diagnstico psiquitrico para punire excluir pessoas dissidentes ou opositorasao regime. A segunda, em defesa do diag-nstico psiquitrico, sustenta que o valor eo lugar do diagnstico em psiquiatria soabsolutamente semelhantes ao valor e aolugar do diagnstico nas outras especiali-dades mdicas. O diagnstico, nessa viso, o elemento principal e mais importanteda prtica psiquitrica.
A posio deste autor a de que, ape-sar de ser absolutamente imprescindvelconsiderar os aspectos pessoais, singularesde cada indivduo, sem um diagnsticopsicopatolgico aprofundado no se podenem compreender adequadamente o pa-
5Princpios gerais do
diagnstico psicopatolgico
Paulo Dalgalarrondo40
partir do processo de abstrao e generali-zao. Assim Aristteles prossegue:
Portanto, quem possua a noo sem aexperincia, e conhea o universal igno-rando o particular nele contido, enganar-se- muitas vezes no tratamento, porqueo objeto da cura , de preferncia, o sin-gular. No entanto, ns julgamos que hmais saber e conhecimento na arte doque na experincia, e consideramos oshomens de arte mais sbios que osempricos, visto a sabedoria acompanharem todos, de preferncia, o saber. Issoporque uns conhecem a causa, e os ou-tros no.
Assim, h, noprocesso diagnsti-co, uma relao dia-ltica permanenteentre o particular,individual (aquelepaciente especfico,aquela pessoa em
especial), e o geral, universal (categoriadiagnstica qual essa pessoa pertence).Portanto, no se deve esquecer: os diag-nsticos so idias (constructos), funda-mentais para o trabalho cientfico, para oconhecimento do mundo, mas no objetosreais e concretos.
Tanto na natureza como na esferahumana, podem-se distinguir trs gruposde fenmenos em relao possibilidadede classificao:
1. Aspectos e fenmenos encontra-dos em todos os seres humanos.Tais fenmenos fazem parte deuma categoria ampla demais paraa classificao, sendo pouco til oseu estudo taxonmico. De modogeral, em todos os indivduos a pri-vao das horas de sono causa so-nolncia, e a restrio alimentar,fome; ou seja, so fenmenos tri-viais que no despertam grandeinteresse psicopatologia.
2. Aspectos e fenmenos encontra-dos em algumas pessoas, masno em todas.Estes so os fenmenos de maiorinteresse para a classificao diag-nstica em psicopatologia. Aqui,situam-se a maioria dos sinais, sin-tomas e transtornos mentais.
3. Aspectos e fenmenos encontra-dos em apenas um ser humanoem particular.Tais fenmenos, embora de inte-resse para a compreenso do serhumano, so restritos demais, e dedifcil classificao e agrupamen-to, tendo maior interesse os seusaspectos antropolgicos, existen-ciais e estticos que propriamentetaxonmicos.De modo geral, pode-se afirmarque o diagnstico s til e vli-do se for visto como algo mais quesimplesmente rotular o paciente.Esse tipo de utilizao do diagns-tico psiquitrico seria uma formaprecria, questionvel e no pro-priamente cientfica. Funcionariaapenas como estmulo a precon-ceitos que devem ser combatidos.A legitimidade do diagnstico psi-quitrico sustenta-se na perspecti-va de aprofundar o conhecimento,tanto do indivduo em particularcomo das entidades nosolgicasutilizadas. Isso permite o avanoda cincia, a anteviso de umprognstico e o estabelecimentode aes teraputicas e preventi-vas mais eficazes. Alm disso, odiagnstico possibilita a comuni-cao mais precisa entre profissio-nais e pesquisadores. Sem o diag-nstico, haveria apenas a descri-o de aspectos unicamente indi-viduais, que, embora de interessehumano, so ainda insuficientespara o desenvolvimento cientfico
H, no processo diag-
nstico, uma relao
dialtica permanente
entre o particular, in-
dividual, e o geral,
universal.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 41
da psicopatologia (revises sobrea questo do diagnstico em psico-patologia em Leme Lopes, 1980;Pichot, 1994; Abdo, 1996).
Do ponto de vista clnico e especficoda psicopatologia, embora o processo diag-nstico em psiquiatria siga os princpiosgerais das cincias mdicas, h certamen-te alguns aspectos particulares que devemser aqui apresentados:
1. O diagnstico de um transtornopsiquitrico quase sempre ba-seado preponderantemente nosdados clnicos. Dosagens labo-ratoriais, exames de neuroimagemestrutural (tomografia, ressonn-cia magntica, etc.) e funcional(SPECT, PET, mapeamento porEEG, etc.), testes psicolgicos ouneuropsicolgicos auxiliam de for-ma muito importante, principal-mente para o diagnstico diferen-cial entre um transtorno psiqui-trico primrio (esquizofrenia,depresso primria, etc.) e umadoena neurolgica (encefalites,tumores, doenas vasculares, etc.)ou sistmica. importante ressal-tar, entretanto, que os examescomplementares (semiotcnica ar-mada) no substituem o essencialdo diagnstico psicopatolgico:uma histria bem-colhida e umexame psquico minucioso, ambosinterpretados com habilidade.
2. O diagnstico psicopatolgico,com exceo dos quadros psico-orgnicos (delirium, demncias,sndromes focais, etc.), no , demodo geral, baseado em poss-veis mecanismos etiolgicos su-postos pelo entrevistador. Baseia-se principalmente no perfil de si-nais e sintomas apresentados pelopaciente na histria da doena e no
momento da entrevista. Por exem-plo, ao ouvir do paciente ou fami-liar uma histria de vida repleta desofrimentos, fatos emocionalmentedolorosos ocorridos pouco antes doeclodir dos sintomas, a tendncianatural estabelecer o diagnsti-co de um transtorno psicognico,como psicose psicognica, his-teria, depresso reativa, etc. Masisso pode ser um equvoco. A maio-ria dos quadros psiquitricos, sejameles de etiologia psicognica,endogentica ou mesmo org-nica, surge aps eventos estres-santes da vida. Alm disso, fre-qente que o prprio eclodir dossintomas psicopatolgicos contri-bua para o desencadeamento deeventos da vida (como perda docnjuge, separaes, perda de em-prego, brigas familiares, etc.). Mui-tas vezes o raciocnio diagnsticobaseado em pressupostos etiolgi-cos mais confunde que esclarece.Deve-se, portanto, manter duas li-nhas paralelas de raciocnio cl-nico; uma linha diagnstica, ba-seada fundamentalmente na cuida-dosa descrio evolutiva e atualdos sintomas que de fato o pacien-te apresenta, e uma linha etiol-gica, que busca, na totalidade dedados biolgicos, psicolgicos e so-ciais, uma formulao hipotticaplausvel sobre os possveis fatoresetiolgicos envolvidos no caso.
3. De modo geral, no existem sinaisou sintomas psicopatolgicos to-talmente especficos de determi-nado transtorno mental. Alm dis-so, no h sintomas patognom-nicos em psiquiatria, como afirmaEmil Kraepelin [1913] (1996):
Infelizmente no existe, no domniodos distrbios psquicos, um nico
Paulo Dalgalarrondo42
sintoma mrbido que seja total-mente caracterstico de uma enfer-midade [...] devemos evitar atribuirimportncia caracterstica a um ni-co fenmeno mrbido. [...] O quequase nunca produzido totalmentede forma idntica pelos diferentestranstornos mentais o quadro to-tal, incluindo o desenvolvimento dossintomas, o curso e o desenlace finalda doena.
Portanto, o diagnstico psicopato-
lgico repousa sobre a totalidade
dos dados clnicos, momentneos
(exame psquico) e evolutivos
(anamnese, histria dos sintomas
e evoluo do transtorno). essa
totalidade clnica que, detectada,
avaliada e interpretada com conhe-
cimento (terico e cientfico) e ha-
bilidade (clnica e intuitiva), con-
duz ao diagnstico psicopatolgico.
4. O diagnstico psicopatolgico ,em inmeros casos, apenas poss-vel com a observao do cursoda doena. Dessa forma, o padroevolutivo de determinado quadro
clnico obriga o psicopatlogo a
repensar e refazer continuamente
o seu diagnstico. Uma das funes
do diagnstico em medicina pre-
ver e prognosticar a evoluo e o
desfecho da doena (o diagnstico
deve indicar o prognstico). Porm,
s vezes, isso se inverte no contex-
to da psiquiatria. No incomum
que o prognstico, a evoluo do
caso, obrigue o clnico a reformular
o seu diagnstico inicial.
5. Como salientou o psiquiatra bra-
sileiro Jos Leme Lopes, em 1954,
o diagnstico psiquitrico deveser sempre pluridimensional.Vrias dimenses clnicas e psicos-
sociais devem ser includas para
uma formulao diagnstica com-
pleta: identifica-se um transtorno
psiquitrico como a esquizofrenia,
a depresso, a histeria, a depen-
dncia ao lcool, etc., diagnosti-
cam-se condies ou doenas fsi-
cas associadas (hipertenso, cirro-
se heptica, cardiopatias, etc.) e
avaliam-se a personalidade e o n-
vel intelectual desse doente, a sua
rede de apoio social, alm de fa-
tores ambientais protetores ou
desencadeantes. O sistema norte-
americano DSM, desde o incio
dos anos 1980, tem enfatizado a
importncia da formulao diag-
nstica em vrios eixos. Tambm
sumamente importante o esfor-
o para a formulao dinmicado caso (conflitos conscientes einconscientes implicados no caso
especfico, mecanismos de defe-
sa, ganho secundrio, aspectos
transferenciais, etc.) e a formu-lao diagnstica cultural (sm-bolos e linguagem cultural espe-
cfica para aquele paciente, repre-
sentaes sociais, valores, rituais,
religiosidade, etc.).
6. Confiabilidade e validade dodiagnstico em psiquiatria. Aconfiabilidade (reliability) de umprocedimento diagnstico (tcnica
de entrevista padronizada, escala,
teste, diferentes entrevistadores,
etc.) diz respeito capacidade des-
se procedimento produzir, em re-
lao a um mesmo indivduo ou
para pacientes de um mesmo gru-
po diagnstico, em circunstncias
diversas, o mesmo diagnstico. Ao
mudar diferentes aspectos do pro-
cesso de avaliao (avaliador ou
momento de avaliao), o resulta-
do final permanece o mesmo. As-
sim, quando a avaliao feita por
examinadores distintos (interrater
reliability) ou em diferentes mo-
mentos (test-retest reliability), ob-
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 43
tm-se o mesmo diagnstico. Tem-
se um indicador de reprodutibi-
lidade do diagnstico. A validade(validity) diz respeito capacida-
de de um procedimento diagnsti-
co conseguir captar, identificar ou
medir aquilo que realmente se pro-
pe a reconhecer. Para saber se um
novo procedimento diagnstico
vlido, preciso compar-lo com
outro procedimento diagnstico
prvio (padro ouro), que seja
bem-aceito e reconhecido como
mais acurado, capaz de identificar
Quadro 5.1
O diagnstico pluridimensional em sade mental (com base no sistema multiaxial do DSM-IV,
acrescentando-se a dimenso psicodinmica e cultural)
Exemplos de formulao diagnstica
Eixo 1. Diagnstico do Transtorno Mental
Esquizofrenia paranide, episdio depressivo grave, dependncia ao lcool, anorexia nervosa, etc.
Eixo 2. Diagnstico de Personalidade e do Nvel Intelectual
Personalidade histrinica, personalidade borderline, etc., retardo mental leve, retardo mental grave, etc.
Eixo 3. Diagnstico de Distrbios Somticos Associados
Diabete, hipertenso arterial, cirrose heptica, infeco urinria, etc.
Eixo 4. Problemas Psicossociais e Eventos da Vida Desencadeantes ou Associados
Morte de uma pessoa prxima, separao, falta de apoio social, viver sozinho, desemprego, pobreza extrema,
deteno, exposio a desastres, etc.
Eixo 5. Avaliao Global do Nvel de Funcionamento Psicossocial
Bom funcionamento familiar e ocupacional, incapacidade de realizar a prpria higiene, no sabe lidar com
dinheiro, dependncia de familiares ou servios sociais nas atividades sociais ou na vida diria, etc.
Formulao Psicodinmica do Caso
Que conflitos afetivos so mais importantes neste paciente? Conflitos relativos sexualidade? Dinmica
afetiva da famlia? Conflitos relativos identidade psicossocial? Que tipo de transferncia o paciente
estabelece com os profissionais de sade? Que sentimentos contratransferenciais desperta nos profissionais
que o tratam? Que mecanismos de defesa utiliza preponderantemente? Qual o padro relacional do paciente?
Qual a estrutura psicopatolgica, do ponto de vista psicanaltico (estrutura neurtica, obsessiva, histrica,
fbica, etc.; estrutura psictica; estrutura perversa, autista, etc.)?
Formulao Cultural do Caso
Como o meio sociocultural atual do paciente (bairro de periferia, favela, morador de rua, de uma instituio,
etc.)? Como o paciente e seu meio cultural concebem e representam o problema? Quais as suas teorias
etiolgicas e de cura? Como a identidade tnica e cultural do paciente? Qual e como sua religiosidade?
Como o paciente e seu meio cultural encaram o diagnstico e o tratamento psiquitrico oficial? O paciente
migrante de rea rural? Como isso interfere no diagnstico e na teraputica? Qual a linguagem das
emoes que utiliza? Qual o impacto das mudanas socioculturais pelas quais o paciente passou em seu
transtorno mental?
Paulo Dalgalarrondo44
O ideal de um proce-
dimento diagnstico
que ele seja con-
fivel, vlido, com
alta sensibilidade e
especificidade.
Questes de reviso Discuta o valor, os limites e as crticas em relao ao diagnstico em psicopatologia.
Esclarea por que o diagnstico em psicopatologia baseado preponderantemente nos
dados clnicos e no em possveis mecanismos causais supostos pelo entrevistador.
Por que o diagnstico psicopatolgico , em muitos casos, apenas possvel com a
observao do curso da doena?
satisfatoriamente o objeto pesqui-
sado (de certo modo, mais prxi-
mo da verdade).
A sensibilidade de um novo pro-cedimento diagnstico est rela-
cionada capacidade desse pro-
cedimento de detectar casos ver-
dadeiros includos na categoria
diagnstica. J a especificidadedo procedimento refere-se capa-
cidade de identificar verdadeiros
no-casos em relao catego-
ria diagnstica que se pesquisa.
Um procedimento com alta sensi-
bilidade identifica quase todos os
casos, mas pode falhar reconhe-
cendo erroneamente um no-caso
(falso-positivo) como caso. Outro
procedimento com alta especi-
ficidade pode ter a qualidade de
apenas reconhecer casos verdadei-
ros, mas pode falhar, deixando de
reconhec-los, considerando-os
como no-casos.
Obviamente, o
ideal de um procedi-
mento diagnstico
que ele seja confi-
vel (reprodutvel),
vlido (o mais pr-
ximo possvel da
verdade diagnstica), com alta sensibili-
dade e especificidade.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 45
A riqueza do crebro
humano est basica-
mente relacionada
sua capacidade de
receber, armazenar
e elaborar informa-
es, intimamente
dependente das co-
nexes neuronais via
sinapses.
nada sua capacidade de receber, arma-
zenar e elaborar informaes, intimamen-
te dependente das conexes neuronais via
sinapses. Ele contm cerca de 10 bilhes
de neurnios (109); cada neurnio indivi-
dual, com seus axnios e dendritos, faz
aproximadamente 60.000 a 100.000 cone-
xes com outros neurnios. O total de cone-
xes sinpticas est na faixa de 1027! Hoje
se pensa que a unidade funcional do cre-
bro no o neurnio isolado, mas os circui-
tos neuronais. A percepo, a memria, as
emoes e mesmo o pensamento surgem
em conexo com a atividade desses circui-
tos neuronais. O desenvolvimento de tais
circuitos baseia-se, em parte, em uma pro-
gramao gentica, mas intensamente de-
pendente das experincias individuais do
sujeito com o seu ambiente (Pally, 1997).
A arquitetura e a organizao do c-
rebro so produto de uma longa histria
evolucionria. Podem-se distinguir trs eta-
pas ancestrais bsicas nessa histria: de
rpteis, mamferos inferiores e primatas
(MacLean, 1990). As partes mais antigas e
primitivas do crebro so o tronco cerebral
e o diencfalo, responsveis pelas funes
vitais, como respirao, batimentos car-
dacos, temperatura c