Post on 16-May-2018
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FAJE - FACULDADE JESUTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
Raimundo Donato
REINO DE DEUS E CONVERSO
ESTUDO BBLICO-TEOLGICO-PASTORAL
Dissertao apresentada ao Departamento de
Teologia de Faculdade Jesuta de Filosofia e
Teologia FAJE, como requisio parcial
obteno do ttulo de Mestre em Teologia.
rea de Concentrao: Teologia Sistemtica
Orientador: Prof. Dr. Johan Konings
BELO HORIZONTE
2010
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A mensagem de Jesus muito simples, sempre mais teocntrica.
O que novo e totalmente especfico na sua mensagem dizer:
Deus est em ao agora,
esta a hora em que Deus se mostra na histria,
de um modo que supera tudo o que aconteceu at agora,
como seu Senhor, como o Deus vivo.
Joseph Ratzinger
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Agradecimento
A meus pais:
Mateus Teodoro Raimundo
Ana Luiza Raimundo.
Ao meu Bispo:
D. Jos Alberto Moura.
Ao meu orientador e professor, pela pacincia
e presteza na elaborao desta Dissertao:
Prof. Dr. Johan Konings.
Aos professores, funcionrios e alunos da FAJE,
de modo especial ao
Prof. Dr. Geraldo de Mori.
Aos colegas da Ps-Graduao.
Aos amigos e amigas que me apoiaram
na realizao deste trabalho.
4
RESUMO
A presente pesquisa de dissertao surge de um desejo de aprofundamento a respeito da
categoria reino de Deus, que uma das mais importantes categorias bblico-
teolgicas. Nosso objetivo no fazer exegese bblica do tema reino de Deus, mas
colocar os conhecimentos exegticos a servio da pastoral. Esta dissertao aprofunda
os conceitos bblicos de reino de Deus e de converso para chegar a uma prxis que seja
mais reinocntrica e humanizadora. A converso, neste contexto, surge como uma porta
que nos leva para dentro do reino de Deus. Ao final do trabalho, chegamos concluso
de que a converso pastoral de suma importncia para a concretizao do Reino, e a
esperana que nos move adiante a misso continental, na qual, como povo de Deus,
buscamos mais justia e vida para o povo latino-americano, pois o Deus do Reino o
Deus da vida.
Palavras-chaves
Reino - converso - discipulado - Amrica Latina
ABSTRACT
This dissertation research project emerges from a desire to gain a deeper understanding
regarding the category of the kingdom of God, one of the most important biblical-
theological categories. Our objective is not to do biblical exegesis on the topic of the
kingdom of God, but rather to place exegetical knowledge at the service of pastoral
work. This dissertation simply deepens the concepts of the kingdom of God and
conversion in the biblical-theological field in order to reach a more kingdom-centered
and humanizing praxis. Conversion, in this context, emerges as a door which leads us
into the kingdom of God. Ultimately, we conclude that pastoral conversion is of utmost
importance for the concretion of the Kingdom and that the hope that moves us forward
is a continental mission, whereby as the people of God we search for more justice and
life for the Latin American people, because the God of the Kingdom is the God of life.
Key-words:
Kingdom conversion discipleship Latin America
5
ABREVIATURAS E SIGLAS
Adv. Haer Adversus Haereses
AG Ad Gentes
CELAM Conselho Episcopal Latino-americano
DAp Documento de Aparecida
DCE Deus caritas est
DGAE Diretrizes Gerais da Ao Evangelizadora da Igreja no Brasil
DM Documento de Medelln
DP Documento de Puebla
Did Didaqu
DSD Documento de Santo Domingo
EN Evangelii Nuntiandi
GS Gaudium et Spes
LG Lumen Gentium
NMI Novo Millenio Ineunte
PNE Projeto Nacional de Evangelizao
PP Populorum Progressio
RP Reconciliao e Penitncia
RMi Redemptoris Missio
SCa Sacramentum caritatis
SS Spe Salvi
As citaes referentes aos escritos do Mar Morto so tiradas de Geza VERMES,
Manuscritos do Mar Morto.
As abreviaturas dos livros bblicos so as da Bblia Sagrada da CNBB.
6
SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................... 9
1 Problema, estado da questo e explorao inicial............................................ 13
1.1 A pergunta pelo significado da converso e do reino de Deus ................ 13
1.2 As respostas na reflexo da Igreja............................................................ 14
1.2.1 Os antigos ......................................................................................... 14
1.2.2 A Idade Mdia e Moderna ................................................................ 17
1.2.3 Alguns autores da atualidade............................................................ 20
1.2.4 A voz da Igreja hoje ......................................................................... 31
1.2.5 A prtica das nossas comunidades ................................................... 39
1.3 Conceitualizao bblico-teolgica .......................................................... 42
1.3.1 A converso ...................................................................................... 42
1.3.2 O reino de Deus na perspectiva bblica ............................................ 44
1.3.3 O reino de Deus no Novo Testamento ............................................. 47
1.4 Concluso ................................................................................................. 68
2 A pregao da converso por Joo Batista ...................................................... 70
2.1 A figura de Joo Batista na tradio evanglica ...................................... 70
2.2 O incio da pregao de Joo Batista ....................................................... 75
2.3 O batismo de Joo Batista como sinal da converso radical a Deus........ 82
2.4 A Esperana de Joo em relao renovao de Israel ........................... 88
2.5 O novo comeo ........................................................................................ 91
2.6 Joo Batista e o reino de Deus ................................................................. 92
2.6.1 Segundo Marcos (e Lucas): o batismo de arrependimento para
remisso dos pecados ................................................................................ 92
2.6.2 Segundo Mateus: Joo anunciando o Reino e reconhecendo as obras
do Messias ................................................................................................. 95
7
2.7 A misso de Joo Batista como ponto de partida e referncia para a
misso de Jesus .............................................................................................. 96
2.8 Concluso ................................................................................................. 98
3 O reino de Deus e a converso na pregao de Jesus .................................... 100
3.1 A esperana do Novo Testamento: o reino de Deus est prximo ........ 100
3.2 O batismo de Jesus inaugura a chegada do reino de Deus ..................... 102
3.3 As razes para o batismo de Jesus segundo Mt 3,15 ............................. 105
3.4 A converso de Jesus .......................................................................... 107
3.5 A misso de Jesus como prolongamento e contraste com a obra de Joo
Batista .......................................................................................................... 109
3.5.1 Joo preso e Jesus o sucede ......................................................... 109
3.5.2 Jesus inicia sua misso de profeta itinerante .................................. 110
3.6 Jesus inicia seu novo projeto .................................................................. 115
3.7 Como entender o Reino anunciado por Jesus? ...................................... 119
3.8 A certeza do reino de Deus .................................................................... 121
3.9 A novidade de Jesus: O reino escatolgico de Deus como prximo e
iminente ........................................................................................................ 123
3.10 A orao para a vinda do Reino: Venha a ns o teu Reino .............. 127
3.11 Concluso ............................................................................................. 128
4 O sentido do Reino anunciado por Jesus ....................................................... 130
4.1 Os sinais da presena do reino de Deus ................................................. 130
4.2 As parbolas como chave hermenutica para o reino de Deus .............. 132
4.3 As bem-aventuranas e o reino de Deus ................................................ 135
4.4 Os milagres, sinais comprobatrios da proximidade iminente do Reino137
4.5 Os primeiros destinatrios da Boa-Nova do Reino ................................ 139
4.5.1 A predileo de Deus pelos pobres ................................................ 139
4.5.2 As crianas tm lugar privilegiado (Mt 19,13-15) ......................... 141
4.6 A demora da chegada do Reino ............................................................. 142
4.7 O paradoxo do j e do ainda no do reino de Deus ........................ 143
8
4.8 A Igreja como tardana do reino de Deus .............................................. 145
4.9 Concluso ............................................................................................... 146
5 O reino de Deus e a converso pastoral da Igreja na Amrica Latina ....... 148
5.1 A realidade latino-americana ................................................................. 148
5.2 A Igreja latino-americana ante a realidade dos pobres .......................... 149
5.3 A Igreja Povo de Deus e o Reino ........................................................... 151
5.4 Por uma prxis pastoral reinocntrica centrada na missionariedade...... 152
5.5 A renovao estrutural da Igreja e a converso pastoral ........................ 153
5.6 A Espiritualidade da obedincia ......................................................... 157
5.7 Concluso ............................................................................................... 159
CONCLUSO .................................................................................................. 163
REFERNCIA BIBLIOGRFICA .................................................................. 165
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INTRODUO
Como servio f eclesial e, portanto, Igreja, a teologia , antes de tudo, um
servio ao reino de Deus1, que se visibiliza na prtica da justia, da solidariedade e da
caridade a favor do povo de Deus. A teologia, enquanto reflexo sistemtica do
ensinamento da Revelao e do magistrio da Igreja, ilumina e fundamenta a prxis
eclesial.
O sintagma reino de Deus/dos Cus abarca o pensamento central da mensagem
de Jesus. Ele inicia sua pregao anunciando que o reino de Deus estava chegando (Mc
1,15). Toda a sua pregao e atuao tm como tema central esta verdade fundamental:
o reino de Deus chegou, est presente.
Uma dificuldade que se percebe de incio o fato de no se saber quais so os
contedos precisos deste reino de Deus que Jesus anuncia. O que que Jesus queria
indicar com semelhante sintagma? Jesus nunca definiu os contedos do Reino. Jesus
falava do reino de Deus como se os seus ouvintes entendessem os seus contedos e os
seus contornos.
A categoria reino de Deus central na teologia latino-americana. J foi abordada
por Jon Sobrino, Joo Batista Libanio, Juan Luiz Segundo, Incio Neutzling, Igncio
Ellacura, dentre outros, sob diferentes enfoques teolgicos. Para Jon Sobrino, a
categoria reino de Deus a via com maior capacidade de organizar sistematicamente o
todo da teologia2.
Na dcada de 1990, a Amrica latina passou por uma nova fase histrica, que
gerou profundas mudanas no modo de se conceber a realidade. Dois acontecimentos
afetam negativamente, e com intensidade, a utopia e o profetismo do cristianismo: o
pentecostalismo e o secularismo. Esses acontecimentos tendem a mostrar que o tema do
reino de Deus/ dos Cus seria radicalmente irrelevante no contexto atual.
1 Usaremos normalmente a expresso reino de Deus, a no ser onde o estudo do contexto de Mateus
impe a expresso equivalente reino dos Cus. 2 Cf. SOBRINO, J. Centralidad del Reino de Dios, p. 472-423.
10
Diante da ideia de fim do mundo, colocado na cabea das pessoas, sobretudo
pelo pentecostalismo, surgiu a ideia da destruio do mundo, quase como um
aniquilamento csmico. Porm, necessrio frisar que Jesus nunca falou a respeito da
destruio do mundo. Jesus fala de reino de Deus/ dos Cus, e ele v esse Reino dentro
da perspectiva da teologia proftica, como um grande processo evolutivo que j
comeou e que culminar na plenificao desse mundo, dessa histria. Esta ltima
plenificao o reino de Deus em plenitude. muito mais bblico entender o mundo em
termos de uma ltima plenificao, ideia que foi retomada pelo Conclio Vaticano II. A
partir dessa constatao de uma interpretao errnea do final dos tempos, torna-se
necessrio um estudo a respeito da categoria teolgica reino de Deus. Como tal, essa
categoria portadora de densa fora semntica e inseparvel da realidade pessoal de
Jesus. A categoria reino de Deus possibilita adequada compreenso da totalidade da
mensagem de Jesus. O reino de Deus/dos Cus quer significar para ns a soberania de
Deus sobre todas as coisas (Sl 22,28), quando todas as coisas esto em perfeita
harmonia com sua vontade (Mt 6,10). Deus est agindo na histria humana, redimindo-a
em Cristo a fim de fazer com que sua vontade soberana seja conhecida e experimentada
pelos homens (Ef 1,5-9; Rm 12,1-2).
Procuraremos entender Jesus, nesta dissertao, a partir da sua profunda
comunho com Deus, seu Pai, sem a qual nada se pode compreender e a partir da qual
Ele se torna presente no hoje da nossa histria. Acreditamos que, sem essa dimenso da
comunho entre Jesus e o Pai, tudo permanece na obscuridade, e a tarefa teolgica se
torna mera especulao vazia de significado e de pertinncia, sobretudo, para a f.
No Captulo 1, apresentamos o status quaestionis sobre a pregao de Joo
Batista e de Jesus nas percopes de Marcos 1 e Mt 3-4. Queremos analisar e desenvolver
os dois temas principais da pregao de Joo Batista e de Jesus: a converso e o reino
de Deus. Mostraremos como eles foram abordados nos diferentes perodos da histria
da Igreja, enfocando de modo especial trs autores da atualidade - Joseph Ratzinger,
Jos Antonio Pagola e Igncio Ellacura - que fizeram a redescoberta da categoria
reino de Deus, presente nas pginas do Evangelho e ofuscada ao logo dos sculos.
No Captulo 2, nos deteremos de forma mais pormenorizada na figura de Joo
Batista como nos transmitiram os Evangelhos. Joo Batista sabe que sua misso a de
estar ali como algum que prepara o caminho a outro totalmente misterioso; que toda a
11
sua misso est orientada para esse outro, que o mais forte que ele (Jo 1,30-33).
Com a pregao de Joo Batista, as profecias (Is 40,3; Ml 3,1; Ex 23,20) se tornam
realidade. Por isso, a pregao de Joo era profundamente carregada de novidade. E o
batismo que ministrava era batismo de converso para o perdo dos pecados. Esse
captulo pretende mostra o carter escatolgico da pregao de Joo Batista.
No Captulo 3, analisaremos a pregao de Jesus Cristo sobre o reino de Deus/
dos Cus. Esse Reino tem carter universal, no se restringe raa de Israel. O captulo
mostra a esperana de Israel sobre a vinda do Messias e, com isso, o Reino. Jesus com
sua pregao afirma que o Reino esperado j chegou. Essa a novidade. Ele prega o
Reino presente e atuante no mundo atravs da sua pessoa. Por meio de Jesus, o Deus do
Reino e Deus da Vida continua agindo na histria humana, transformando todas as
estruturas de morte em vida.
No captulo 4, aprofundaremos o sentido do Reino anunciado por Jesus. As
curas e os exorcismos sero vistos como sinais da presena libertadora e salvadora do
reino de Deus. Analisaremos tambm algumas parbolas para maior compreenso da
expresso reino de Deus. Os destinatrios do Reino so as crianas e os pobres.
Depois, ser feita pequena considerao a respeito do atraso do Reino, que ainda no
chegou de forma definitiva. E, por fim, falaremos da Igreja enquanto intermediria entre
a inaugurao do Reino e sua plenificao no fim dos tempos.
No captulo 5, trabalharemos o tema do reino de Deus e a converso pastoral da
Igreja na Amrica Latina. Procura-se apontar pistas para a reflexo da prxis eclesial. A
teologia ajuda a Igreja a entender seu futuro e a caminhar em direo a ele. Em sintonia
com o Conclio Vaticano II e tambm com o Documento de Aparecida, prope-se a
converso pastoral, entendida como converso estrutural da Igreja, caminho necessrio
para se chegar, enquanto comunidade de fieis, ao reino de Deus. Neste captulo, nos
restringimos anlise do reino de Deus a partir do contexto latino-americano. No se
tem a pretenso de aprofundar questes teolgicas, eclesiolgicas ou dogmticas, mas,
sim, lanar luzes que norteiem o agir eclesial em direo ao reino de Deus. O captulo
desemboca na Espiritualidade da obedincia, pois, a exemplo de Jesus Cristo, o reino de
Deus se instaura na obedincia ao Pai. Quanto mais dceis e obedientes a Deus, mais o
reino se aproxima de ns. Inversamente, quanto mais desobedientes, mais nos afastamos
do Reino, isto , de Deus.
12
impossvel falar de Deus sem senti-lo e sem ser agente da missio Dei no
mundo. impossvel falar de Deus sem sentir Deus, sem agir em Deus, sem
experiment-lo. Fazer teologia, hoje, significa falar de Deus e do homem, e agir no
mundo a partir dos valores do reino de Deus. A esperana do reino de Deus impulsiona
o cristo a inserir-se na misso de transformar o mundo: Venha o teu Reino, seja feita a
tua vontade, como no cu, assim na terra (Mt 6,10).
13
1 Problema, estado da questo e explorao inicial
Segundo o evangelho de Marcos, a pregao de Jesus pe em primeiro plano o
anncio da proximidade do reino de Deus e a exigncia de converso que esta Boa-
Nova implica (Mc 1,14-15). Tal mensagem provoca perguntas, tanto em relao com o
momento em que Jesus a proclamou quanto em relao a ns, hoje. o que
pretendemos aprofundar neste estudo.
1.1 A pergunta pelo significado da converso e do reino de Deus
Joo batizava e pregava a converso em vista do evento escatolgico,
interpretados por ele principalmente como juzo (Mt 3,10). Jesus anunciava a
proximidade do reino de Deus e exortava converso em vista deste (Mc 1,15). Se o
reino de Deus exige converso, a primeira concluso que da se tira de que sua
chegada no algo automtico, algo que se imponha sem a participao do ser humano.
A converso, primeira vista, parece apontar para uma mudana de atitude que faa
com que a mensagem da proximidade do Reino seja uma Boa Notcia. Isso provoca
imediatamente uma segunda reflexo: de quem se exige tal mudana?
Os evangelhos de Marcos e Mateus, que priorizamos neste estudo, mas tambm
o de Lucas, a seu modo, relatam, de modo impactante, como veremos, o anncio da
proximidade do reino de Deus como incio da pregao de Jesus. Que significavam para
os contemporneos de Jesus e seus discpulos o reino de Deus e a converso? Quais as
conotaes que esses termos evocavam nos seus coraes? Estavam preparados para
entender ou tinham o corao endurecido, necessitado de mudana, de converso?
Como ressoavam essas palavras aos ouvidos deles como indivduos e como povo de
Deus?
Por outro lado, se trazemos essa mensagem para nosso horizonte podemos fazer
perguntas semelhantes. Ser que entendemos por reino de Deus e por converso a
mesma coisa que Jesus anunciava, ou ser que, no decorrer dos sculos, os termos
perderam o sentido original e, quem sabe, at nos afastaram daquilo que Jesus quis
dizer? Como se apresenta a ns hoje aquilo que Jesus quer dizer com a exigncia da
14
converso em vista do reino de Deus? Como imaginamos, hoje, o reino de Deus e o que
significa converso para ns como indivduos e como comunidade, como Igreja?
1.2 As respostas na reflexo da Igreja
Antes de entrar no estudo dos textos neotestamentrios, e para ampliar o
horizonte deste estudo, tentaremos ouvir algumas vozes representativas da reflexo
teolgica de nossa comunidade de f em torno da mensagem bblica.
1.2.1 Os antigos
O cristianismo primitivo, com a demora do advento do reino de Deus, viu-se
obrigado a adequar-se ao mundo. At ento, os cristos haviam se limitado a aceitar as
circunstncias polticas e a evitar conflitos com o poder estatal (cf. Rm 13,1-7; 1Pd
2,13-17), j que se pensava que o fim fosse iminente. Com a mudana, comeam os
problemas e as diversas interpretaes sobre a relao entre o reino de Deus e a histria
do mundo. As duas posies fundamentais nesta poca primitiva pr-crist, so: o
quiliasmo e a espiritualizao, e tanto uma como a outra, apiam-se numa exegese
particular de textos do Novo Testamento1.
O quiliasmo a crena na chegada de um reinado de mil anos de paz e de
felicidade, seguido do juzo universal e do fim do mundo. Apia-se em Ap 20,1-6, e foi
defendido por Tertuliano, Irineu e Lactncio, entre outros. Reflete a esperana
escatolgica do reino de Deus. Tratava-se de se consolar e de suportar o Estado pago e
suas perseguies, as quais so entendidas como sinais do fim que comea. Evitou-se
um conceito privado e meramente individual da salvao2.
A espiritualizao a posio oposta anterior, e defendida por Clemente de
Alexandria e por Orgenes, apoiando-se numa interpretao interiorizada de Lc 17,21:
O reino de Deus est dentro de vs. E, assim, o reino de Deus se transforma em ideal
tico e em meta do esforo de perfeio que o ser humano deve fazer3.
Orgenes caracterizou Jesus como a autobasilia, ou seja, Jesus a
personificao do reino de Deus. Nele se pode contemplar o Reino acontecendo na
1 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
2 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
3 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
15
terra. O Reino, para Orgenes, no uma coisa, no um espao de domnio como um
reino do mundo. pessoa: o Reino Jesus4.
A escatologia, que se pode entrever no conceito do reino de Deus do
cristianismo pr-constantiniano, acentua o carter de no cumprimento e de gratuidade
absoluta dele. A Igreja vista como realidade provisria, temporal e contingente que o
prprio Deus levar sua consumao5. Igreja e reino de Deus, embora relacionados
entre si, de forma alguma so idnticos e no se harmonizam com nenhum Estado
poltico. Essa situao mudar drasticamente com Constantino.
A reviravolta poltica de Constantino traz consigo mudana radical na
concepo do reino de Deus, que, no contexto da poltica imperial, vai se transformar
numa categoria teolgico-poltica6. O representante mximo desta teologia poltica do
reino de Deus Eusbio de Cesareia, que v em Constantino a representao do Logos
celeste, em nome do qual o imperador deve assumir o domnio sobre a terra. A
monarquia divina e a poltica so manifestaes do nico regime universal de Deus, que
se manifesta no imprio terrestre de Constantino, no qual se torna presente o reino de
Deus e no qual se enquadra a Igreja terrena. A misso do imperador a de realizar a
soberania de Deus ou de Cristo na terra, transformando-se, assim, no rgo destacado da
vontade divina. No governo de Constantino, devia se tornar realidade o plano de Deus
concernente ao mundo: conduzir a histria humana ao verdadeiro conhecimento de
Deus7.
Eusbio legitima a dignidade imperial baseando-se no Antigo Testamento8.
Neste contexto, o conceito de reino de Deus perde o seu contedo escatolgico e passa a
ser um prolongamento e uma exaltao do presente9.
Na poca patrstica, os Pais da Igreja foram muito influenciados pela filosofia
grega. Tentavam fazer uma ponte entre a f crist e o pensamento grego. Eles
conceituaram o Reino, somente, em categorias espirituais. O governo de Deus era
espiritual.
4 RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59.
5 Cf. Did. 10,5-6; Irineu, Adv. Haer. 5,26 in: BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
6 BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
7 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
8 Cf. Vita Const. 1,12
9 Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681.
16
Agostinho de Hipona rejeita a interpretao do reino de Deus que davam tanto o
quiliasmo quanto os imperialistas. Em sua crtica, prope a teoria das duas cidades,
uma civitas Dei, em que reina o amor de Deus, e uma cidade terrena, onde o amor de
si mesmo que governa10
. Agostinho explica, em A Cidade de Deus, a origem das duas
cidades,
dois amores fundaram, pois duas cidades, a saber: o amor prprio, levado ao
desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si prprio,
a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque
aquela busca a glria dos homens e tem esta por mxima glria a Deus
testemunha de sua conscincia11
.
Para explicar sua teoria sobre as duas cidades, Agostinho ocupa a segunda parte
de sua obra. Nela tratar tanto da origem (cap. XI-XIV) e desenvolvimento (cap. XV-
XVIII) das duas cidades, quanto de seus respectivos fins (cap. XIX-XXII)12
.
Agostinho no identifica a civitas terrena com o Estado e muito menos equipara
a civitas Dei Igreja. Agostinho entende que pertencem civitas Dei todos os homens
que se deixam guiar pelo amor de Deus13
, estando ou no dentro das barreiras visveis
da Igreja.
Os dois tipos so ideais e se definem pelas respectivas concepes de paz: a paz
terrena (ausncia de guerras...) e a paz celeste (a tranquilidade, a ordem...). As fronteiras
de ambos os reinos se confundem no tempo e sua separao ser real s no juzo final.
Agostinho recusa tanto uma realizao intramundana do conceito de reino de Deus
como a integrao da Igreja no Imprio cristo. E, com isto, sua pretenso de levar a
cabo este reino de Deus como realidade intra-histrica14
. Destaca a condio
escatolgica deste Reino que foge soberania e manipulao humana. Rebate as
pretenses de poder cesaropapista e ressalta o valor especfico e relativo da cidade
terrena em sua funo de servio Cidade de Deus.
Agostinho, em A Cidade de Deus, inicia uma teologia da histria. Descobre um
fio condutor que move a histria, comeando com a prpria criao, movendo-a atravs
dos tumultos e das agitaes do mundo (cidade terrena), e se conclui com a realizao
10
BERNAB, Reino de Deus, p. 681. 11
AGOSTINHO, A Cidade de Deus, p. 169 (cap. XXVIII). 12
Cf. AGOSTINHO, A Cidade de Deus, p. 19. 13
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681. 14
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 681
17
do reino de Deus (Cidade de Deus). Para Agostinho, a histria tende a se completar na
lei divina.
Com o tempo, sua doutrina foi se mitigando. Esquecendo o carter idealista de
ambos os reinos, acabou por identificar a cidade terrena com o Estado, e a Cidade de
Deus, com a Igreja. Foi o comeo da problemtica medieval, que teve duas
caractersticas principais: a) controvrsia entre reino e o sacerdcio, em que o primeiro
tinha de se submeter ao segundo, se no quisesse transformar-se em inimigo de Deus; b)
desescatologizao da teologia, j que a Igreja, identificada com a Cidade de Deus, une-
se com o sacro Imprio, ao se apresentarem juntos como portadores terrenos das
esperanas escatolgicas15
.
Nesse perodo, com raras excees, a expresso reino de Deus aparece nos
escritos dos santos Padres e, por conseguinte, desaparece dos manuais. Agostinho, como
vimos, trabalhou o tema do reino de Deus identificando-o com a cidade celeste, na obra
Civitas Dei. Depois, a expresso silencia-se no pensamento teolgico antigo.
1.2.2 A Idade Mdia e Moderna
A Idade Mdia foi uma poca marcada pelas pretenses, tanto da Igreja quanto
do Imprio, em relao ao reino de Deus16
. A ideia do rei sacerdote (rex et sacerdos)
tinha sua base no Antigo Testamento e na concepo constantiniana. Os imperadores
carolngios pretenderam assumir a direo da Igreja universal, baseando-se na ideia da
unio eclesial e estatal de toda a cristandade, identificada com o reino de Deus que j se
via cumprido nela. Os imperadores creram que sua misso, pela vontade divina, era a de
impor o reino de Deus na terra. Isto , deviam preparar os povos, mediante poltica
adequada, para a chegada do Imperador celestial. Isto foi chamado Sacro Imprio.
A reao por parte da Igreja no tardou: aconteceu a denominada luta das
investiduras. Seu objetivo foi a liberdade da Igreja perante as pretenses religioso-
polticas do Imprio. A Igreja, entendida como Igreja hierrquica e clerical, reivindica
sua identidade com o reino de Deus. Eram os anos de Gregrio VII, Inocncio III,
Bonifcio VIII17
.
15
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 16
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 17
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682.
18
A Igreja eximia o Imprio da antiga pretenso de tornar efetivo o reino de Deus.
Competia ao sacerdcio fazer isso, aproveitando a religiosidade poltica do poder
estatal. Esta a ideia que subsiste em instituies como a trgua de Deus ou nas
cruzadas. As fronteiras espaciais do reino de Deus se identificam com as da
cristandade18
.
A disputa para ver quem era o administrador do reino de Deus se desenvolveu,
cada vez mais, como luta entre a Igreja e o Estado. Por consequncia desta pretenso da
Igreja, produziu-se uma secularizao crescente que resultou na emancipao do
Imprio. Esta situao fez surgir movimentos contra as pretenses absolutistas, tanto da
Igreja quanto do Estado, atravs da interpretao crtica do conceito reino de Deus.
Joaquim de Fiore, monge cisterciense do sculo XII, ficou famoso por sua teoria
da histria dividida em trs perodos: o do Pai (Antigo Testamento), o do Filho (Novo
Testamento) e o reino do Esprito Santo, ou do amor. As pessoas da Trindade passam a
ser, portanto, para Joaquim de Fiore, realidades teolgicas e histricas. Teolgicas, pela
sua prpria natureza; histricas por estarem associadas a perodos cronolgicos e
estruturais da histria humana. Joaquim de Fiore anunciava um reinado vindouro do
Esprito, caracterizado pela humanidade, pelo servio e pela imitao de Cristo, que
preceder o reino de Deus definitivo19
.
O mtodo pelo qual Joaquim imaginava que o fim dos tempos e a nova idade
estariam prximos (1260) baseava-se num clculo do nmero de geraes aproximado
em cada idade: cada uma teria a durao aproximada de quarenta geraes, e cada
gerao duraria mais ou menos trinta anos. Com base nessas premissas, Joaquim chegou
concluso de que o eschaton se daria por volta de 126020. Assim, podemos dizer que
procurava preparar a Cristandade para uma transformao radical que se daria muito em
breve, como ecloso do Esprito Santo na Terra.
A Igreja era, para ele, simples realidade transitria. Joaquim de Fiore no
pretendia atac-la diretamente. Sua doutrina foi acolhida pelos franciscanos espirituais,
18
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 19
BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 20
Cf. COHN, Na senda do milnio, p. 90.
19
que a transformaram em crtica acirrada contra a Igreja. Para eles, o reino de Deus j
comeava nas comunidades fraternais21
.
A condenao da doutrina de Joaquim de Fiore teve por consequncia a nfase
na hierarquia clerical, a desescatologizao da teologia, a identificao do reino de Deus
com a Igreja concreta22
. Alm disso, sups a eliminao de todo o potencial de crtica
positiva Igreja e uma fixao desta em suas formas e contedos histricos concretos.
A teoria da histria dividida em trs perodos deu origem a erros gravssimos
milenaristas. Todos os erros milenaristas surgidos posteriormente no Ocidente tiveram
raiz em Joaquim de Fiore, inclusive o terceiro Reich de Hitler se inspirou no terceiro
reino de Joaquim de Fiore23
. As heresias mais virulentas da Idade Mdia tiveram
relao com as doutrinas joaquimitas. Os primeiros a serem contaminados pelos erros
joaquimitas foram os chamados Espirituais Franciscanos, depois os Pseudo-apstolos,
os dolcinianos, os gibelinos, entre os quais, Dante24
.
A mstica dominicana, dentre outras, espiritualizou o conceito de reino de Deus
e acentuou o seu carter individual. O reino de Deus surge no fundo da alma, unindo
Deus e o homem de forma espiritual (Eckhart, Tauler)25
.
Lutero elaborou a doutrina sobre os dois reinados, baseada na de santo
Agostinho. Com ela, se desprende da concepo catlica teocrtica da Igreja e tambm
dos iluminados. A justificao pela f, na pregao do evangelho, constitutiva do
regime espiritual de Deus, que visvel, e a caracterstica constitutiva do regime
temporal a lei. Este ltimo regime , em si, ambivalente e, embora o cristo deva
exerc-lo com f, deve salvar a sua autonomia.
Na Idade Moderna, a partir do sculo XVI, produz-se a queda dos diversos
planos - religioso, social, poltico, geogrfico - que haviam configurado a imagem
medieval do mundo. Esta mudana atinge, tambm, a concepo de reino de Deus, que
no pode mais se articular em uma representao concreta, com possibilidade de se
tornar realidade atravs do poder, tanto eclesistico quanto estatal. As diversas
21
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 22
BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 23
BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 24
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682. 25
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 682.
20
concepes do reino de Deus passam a ser tarefa de uma filosofia ou de uma teologia
especulativas.
O iluminismo acolheu o conceito do reino de Deus, despojou-o de sua forma
histrica e o transformou em ideia racional.
No sculo XIX, volta-se a produzir mudana no conceito do reino de Deus. A
escola de Tubinga retoma o reino de Deus como conceito teolgico-moral. O reino de
Deus est a servio da interpretao da Igreja e da existncia crist como realidade
histrico-salvfica, cuja presena temporal j est marcada pela chegada do Reino, que
ocorreu em Cristo e pela esperana de sua consumao pela ao de Deus26
.
Por ltimo, teria que se mencionar a doutrina marxista ou a utopia de Bloch, nas
quais o reino de Deus entendido de forma totalmente secularizada.
1.2.3 Alguns autores da atualidade
Queremos, neste tpico, tratar o enfoque que dado ao reino de Deus na
atualidade e, para entender isto, apresentaremos uma viso muito geral de trs autores:
Joseph Ratzinger, Jos Antonio Pagola e Igncio Ellacura, procurando perceber como
abordam a questo do reino de Deus.
Ao se recuperar o Jesus histrico e o significado revelador de sua existncia
terrena, descobre-se um fato central para a cristologia: Jesus no fez de si mesmo o
centro de sua pregao. Ento, quais so as realidades centrais da vida e da pregao de
Jesus? Na vida e na pregao de Jesus, qual a relao com o reino de Deus e com o
Deus do Reino?
O Vaticano II procurou tirar as consequncias do conceito reino de Deus
fundamentado na Bblia, e se conscientizou de suas implicaes para a
autocompreenso do cristianismo. Desta forma, volta-se a entender a Igreja como povo
de Deus contingente, temporal e a caminho. Sua consumao reservada a Deus, mas a
Igreja deve se tornar crvel, em sua histria e mediante sua mensagem e prxis, pois
nela se torna presente a esperana de salvao definitiva (LG 3; 9; GS 39,72).
A Igreja se v como comunidade de irmos e de irms, portadora, guardi e sinal
antecipado dessa esperana, que deve dar expresso digna de crdito, tanto com sua
26
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683.
21
palavra, quanto com sua ao27
. O reino de Deus se transforma em paradigma da
salvao universal para todos os seres humanos, vares e mulheres, e, embora sua
consumao seja obra exclusiva de Deus, requer a necessidade do esforo humano28
.
Na dcada de 50, aparece fortemente na teologia do Novo Testamento a ciso
entre o Jesus histrico e o Cristo da f. Existe a tendncia de se fixar o pensamento
teolgico no Cristo da f em detrimento do Jesus histrico, esboado de forma to atual
e sempre nova nos Evangelhos. Com o surgimento da pesquisa histrico-crtica, buscou-
se entender, atravs da crtica das fontes, se nas narrativas evanglicas tudo era
verdadeiramente histrico, autntico. Isso resultou em relativismo histrico e uma
estranheza hermenutica29
. O relativismo histrico consiste em constatar que no se
possui uma imagem historicamente confivel de Jesus, mas, mesmo que se tivesse,
restaria o problema de que esse personagem, enquanto inserido em um contexto
histrico, acabou por se diluir nesse mesmo contexto, logo, Jesus foi menos singular e
absoluto do que se acreditava30
. E, como se no bastasse essa constatao, ainda surge a
estranheza hermenutica que afirma que, mesmo que fosse possvel encontrar o Jesus
histrico por meio documental e fontes confiveis, isso no bastaria, pois, sempre se
esbarraria na distncia abissal da histria de um Jesus que isolou-se em seu mundo
passado, cheio de exorcismos e estranhos temores pelo fim do mundo31
.
A histria da pesquisa sobre o Jesus histrico uma histria de sempre novos
distanciamentos e aproximaes em relao a Jesus. Por isso bom frisar que a histria
das imagens cientficas a respeito de Jesus de maneira nenhuma esgota a histria das
imagens de Jesus, pois essa ser sempre mais rica do que aquela32
.
A partir dessa breve introduo, percebemos que o foco, na atualidade, se volta
mais para a pessoa de Jesus, em busca de encontrar os seus reais contornos, o que, por
sinal, importante para a credibilidade e razoabilidade da f. Nesta busca, porm,
acaba-se por supervalorizar o mensageiro e ofuscar a sua mensagem (o reino de Deus).
Diante disso, priorizaremos estudar a mensagem de Jesus o reino de Deus e ver
27
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683. 28
Cf. BERNAB, Reino de Deus, p. 683. 29
Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 30
Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 31
THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20. 32
Cf. THEISSEN; MERZ, O Jesus Histrico, p.20.
22
como alguns telogos contemporneos procuram redescobrir essa categoria teolgica,
que foi o centro norteador do Jesus histrico.
Cabe apontar aqui a valorizao do estudo histrico-crtico pelo Magistrio da
Igreja. Em 1943, o papa Pio XII escreveu a Encclica Divino afflante spiritu, que se
tornou um importante ponto de referncia e um passo muito significativo do magistrio,
indicando caminhos para a aplicao correta e coerente do mtodo histrico-crtico
teologia catlica. Outro passo significativo do magistrio foi a Constituio Conciliar
Dei Verbum, sobre a divina revelao. Alm disso, so tambm importantes dois
documentos da Pontifcia Comisso Bblica: A interpretao da Bblia na Igreja,
lanada em 1993, e O povo judeu e a sua Escritura Sagrada na Bblia crist, lanado
em 2001, os quais oferecem um juzo amadurecido no campo da exegese catlica33
.
Nessa busca por resgatar, no pensamento teolgico contemporneo, a categoria
reino de Deus, iniciamos com o telogo Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI. Nossa
pesquisa se limita ao seu livro intitulado Jesus de Nazar, especificamente ao captulo 3
intitulado: O Evangelho do Reino de Deus, onde faz uma releitura atual da categoria
reino de Deus. Como ele mesmo explica no prefcio, essa a primeira parte de seu
projeto de contribuir, enquanto telogo, e acima de tudo, enquanto cristo, com a
verdade sobre a pessoa de Jesus, que vem ao mundo com a desafiante misso de
inaugurar o reino de Deus. E esse passa a ser o contedo central da sua misso34
.
Ratzinger, no prefcio de Jesus de Nazar, afirma que, dentre os exegetas
catlicos do sculo passado, o mais significativo foi Rudolf Schnackenburg35
.
Schnackenburg, em sua obra: A pessoa de Cristo no espelho dos quatro Evangelhos
(1993), procurou ajudar os cristos que professam a f em Cristo e que se sentem
inseguros por causa da pesquisa histrica, a fundamentarem a f na pessoa de Jesus
Cristo como o portador da salvao e redentor do mundo36
.
33
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 12. 34
Para Ratzinger, o anncio do reino de Deus forma realmente o centro da palavra e do ministrio de
Jesus. Uma indicao estatstica pode sublinhar isto: a expresso reino de Deus ocorre no conjunto do
Novo Testamento 122 vezes; destas, encontra-se 99 vezes nos Sinticos e, destas, de novo, 90 pertencem
s palavras de Jesus. No Evangelho de S. Joo e nos restantes escritos do Novo Testamento, a expresso
representa um papel muito limitado. Pode-se dizer: enquanto o eixo da pregao pr-pascal de Jesus a
mensagem do reino de Deus, a cristologia constitui o centro da pregao apostlica ps-pascal
(RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58.) 35
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 10. 36
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 10.
23
Ratzinger inicia o captulo terceiro mencionando Mc 1,14-15, onde o
Evangelista relata a priso de Joo Batista e o incio da atividade missionria de Jesus
com a clebre expresso: Completou-se o tempo, o reino de Deus est prximo.
Convertei-vos e acreditai no Evangelho37
. Ratzinger, recordando o sentido primignio
do termo Evangelho, ressalta que, na sua origem, nem sempre foi uma Boa-Nova, pois
esta palavra designava as mensagens que vinham do imperador romano38
que, na
maioria das vezes, poderia ser tudo, menos uma Boa Notcia. A mentalidade da poca
era que o que vinha do imperador seria uma mensagem redentora, no uma simples
notcia, mas uma mudana do mundo para o bem39
.
Quando o termo evangelho foi assumido pelos escritores dos Evangelhos
passou por uma reinterpretao, ou seja, foi elevado ao grau mais alto de significado e
eficcia. Para Ratzinger, o que o imperador, que se fazia passar por Deus, sem razo
pretendia, isso acontece aqui: mensagem cheia de poder, que no simples discurso,
mas realidade40
. Com a mudana semntica do termo evangelho, esse adquire uma
fora eficaz que entra no mundo como fora transformadora41
. O evangelista Marcos
entende a Boa-Nova que Jesus anuncia como Evangelho de Deus, e, com isso, ressalta
que no so os imperadores romanos que iro salvar o mundo, mas Deus42
. Quer
dizer, aquilo que os imperadores, que se julgavam senhores do mundo civilizado,
pretendiam realizar ao fazer uso do termo Evangelho, no conseguiam na realidade, pois
lhes faltava o poder eficaz para isso. Porm, quando o Evangelho se torna palavra de
Jesus, esse o potencializa e garante a sua realizao, porque entra em ao o verdadeiro
Senhor do mundo, o Deus vivo43
.
Segundo Ratzinger, quando Jesus anuncia que o reino de Deus est prximo,
colocada uma marca de tempo, algo de novo acontece. E exigida uma resposta do
homem a esta oferta: converso e f44
. Aqui ele indica um ponto importante do nosso
37
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 38
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 39
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 57. 40
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 41
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 42
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 43
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 44
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58.
24
estudo: converso. A converso a reposta do ser humano proposta do anncio de
Jesus. a porta de entrada para o reino de Deus, por isto a Boa-Nova.
Ratzinger se detm no pensamento de Alfred Loisy, que afirmou: Jesus
anunciou o Reino e o que veio foi a Igreja45
. Percebe que o discurso de Loisy
carregado de certa ironia, mas tambm de tristeza. Em vez da grande esperana do
reino de Deus, do mundo novo renovado por Deus, algo totalmente diferente e to
pobre! chegou, a Igreja46
. Ratzinger procura, ento, mostrar a questo mais profunda
e fundamental que est por detrs, no uma questo meramente eclesiolgica, mas, sim,
cristolgica, visto dizer respeito relao do reino de Deus com Cristo. Sem essa
correta relao, fica comprometida nossa compreenso de Igreja47
.
Para aprofundar a relao que existe entre Jesus e o Reino, Ratzinger analisa a
concepo de Reino nos santos Padres. Por exemplo, Orgenes entendia Jesus como a
autobasilia, isto , como o reino de Deus em pessoa48
. Comentando Orgenes, afirma
que,
a expresso Reino de Deus seria ela mesma uma cristologia oculta: no
prodgio que Deus mesmo estar nEle presente entre os homens, que Ele a
presena de Deus, conduz os homens para Ele atravs do modo como Ele fala
do Reino de Deus49
.
Outra concepo de Reino que Ratzinger ressalta a concepo idealista,
iniciada tambm por Orgenes. O Reino se encontra no interior do prprio ser humano.
Quer dizer, no est fora do homem, em um local qualquer do mundo, mas na
interioridade do homem. A ele cresce, e a partir da que ele atua.50
Uma terceira dimenso que Ratzinger salienta pode ser designada de explicao
eclesiolgica. O reino de Deus e a Igreja so colocados de um modo distinto um em
relao ao outro e mais ou menos aproximados um do outro51
. Para o telogo, a
explicao eclesiolgica influenciou a teologia do sculo XIX e do incio do sculo XX,
onde se via a Igreja como realizao do Reino no interior da histria.
45
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 58. 46
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 47
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 48
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 49
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 59. 50
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 60. 51
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 60.
25
Citando a teologia liberal do incio do sculo XX, recorda Adolf von Harnack,
que via o reino de Deus como dupla revoluo em relao ao judasmo do primeiro
sculo. Enquanto no judasmo tudo tendia ao coletivo, para o povo da eleio, Jesus
priorizava o indivduo e tinha reconhecido precisamente o valor infinito do indivduo e
o tinha constitudo fundamento de sua doutrina. A segunda oposio, segundo Harnack,
era de natureza cultual. No judasmo, o cultual (e com ele o sacerdcio) tinha
dominado; Jesus teria colocado de lado o cultual, estruturando sua mensagem de um
modo estritamente moral52
. Jesus no olhava para os aspectos exteriores de pureza ou
santificao, mas os interiores. Sondava a alma do ser humano. A ao moral de cada
um, as suas obras de amor so decisivas, independentemente do fato de cada um entrar
no Reino ou dele ser excludo53
.
Ratzinger, aps comentar algumas tendncias teolgicas que foram surgindo ao
longo da histria, chega categoria de Reino, que foi o centro da mensagem de Jesus.
Reino, para a corrente reinocntrica, significou simplesmente um mundo no qual
domina a paz, a justia e o respeito pela criao54
. Este Reino representaria o objetivo
final da histria. O seu fim ltimo. E as religies teriam a tarefa de conjuntamente
propagar esse Reino55
.
Porm, por causa do secularismo, Deus desapareceu e, com isto o
reinocentrismo tornou-se uma utopia quase irrealizvel. Ratzinger prope, como
alternativa de um mundo ateu, o regresso fonte de onde emana o Evangelho: o
prprio Jesus real56
. Observa que, quando se fala de Reino, no deve se tratar de algo
iminente ou a constituir-se, mas, sim, da realeza de Deus sobre o mundo, a qual, de um
modo novo, se torna acontecimento na histria57
.
De modo muito acessvel ao intelecto humano e, ao mesmo tempo, com
profundidade e amadurecimento reflexivo, Ratzinger conclui que, quando Jesus fala do
reino de Deus/dos Cus, no est criando uma megaestrutura, ou algo que esteja para
alm deste mundo. Mas est to somente falando e anunciando Deus, simplesmente
52
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 61. 53
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 61. 54
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 63. 55
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 63. 56
Cf. RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 57
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64.
26
Deus e precisamente o Deus vivo, que capaz de agir de modo concreto no mundo e na
histria e que j est exatamente agora em ao58
. Em outras palavras, Jesus est
dizendo: Deus existe59
.
Ratzinger nos leva a pensar que a mensagem de Jesus muito simples e
profundamente teocntrica, e que a novidade da sua pregao consiste em afirmar
categoricamente que Deus est em ao agora, esta a hora em que Deus se mostra na
histria, de um modo to original, que supera tudo o que aconteceu at agora, como seu
Senhor, como o Deus vivo60
. Ainda observa que a traduo reino de Deus
insuficiente, pois seria melhor se se falasse da condio senhorial de Deus ou da
soberania de Deus61
.
O segundo telogo Jos Antnio Pagola, que, j h certo tempo, vem se
dedicando ao estudo da figura de Jesus e, de modo especial, reinterpretando sua
mensagem sobre o Reino. Faremos uma breve explanao de sua obra Jesus:
Aproximao Histrica, recentemente traduzida para o portugus.
No contato com a obra de Pagola, percebemos a elaborao de um estudioso
que, alm de dedicar boa parte de sua vida ao estudo do Jesus histrico, tambm um
cristo profundamente fascinado pela figura de Jesus Cristo, como deixa transparecer
em seus escritos. Pagola afirma na apresentao de seu livro que, Jesus o melhor que
a humanidade produziu. O potencial mais admirvel de luz e de esperana com que ns,
seres humanos, podemos contar62
.
O objetivo do autor possibilitar aos cristos um contato mais prximo com a
pessoa histrica de Jesus de Nazar, sem cair em abstraes de cunho metafsico ou
elucubraes, que mais afastam que aproximam de seu objetivo.
Pagola, no decorrer da obra, tentando ajudar os leitores, enfoca pontos que, para
ele mesmo, ainda no so claros e fceis de serem entendidos e professados pela f,
como tradicionalmente explicada. Assinala que tem dificuldades em crer num Cristo
sem carne, ou seja, tem dificuldade em acreditar no Jesus da F com ausncia do Jesus
histrico, ou em um Jesus doutrinrio, que somente pode ser encontrado nos manuais
58
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 59
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 60
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 64. 61
RATZINGER, Jesus de Nazar, p. 65. 62
PAGOLA, Jesus, p. 11.
27
teolgicos e no, na realidade concreta da existncia humana. Adverte sobre o risco de
se reduzir a pessoa de Jesus a um mero objeto de culto, desprovido de sua condio de
profeta do reino de Deus.
Pagola procura ressaltar que no h como chegar ao genuno Jesus, se esse for
desvinculado do Reino. Jesus e o Reino esto em perfeita relao. O que ocupa o lugar
central na vida de Jesus no Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a
histria humana, que culminar com o advento do Reino definitivo.
O objetivo que perpassa toda a obra o de resgatar a memria a respeito desse
profeta itinerante e carismtico que nasceu e viveu na Palestina, no primeiro sculo da
era crist, e que acreditava ser o Filho de Deus e o anunciador de uma Boa Notcia de
salvao, que consistia na proximidade do reino de Deus (Mc 1,15). Sua inteno com
a obra colocar Jesus disposio de todos, pois sua vida e a mensagem que traz
consigo no so propriedade exclusiva dos cristos, mas patrimnio da humanidade.
Pagola opta pela perspectiva narrativa com a inteno de aproximar o leitor,
crente ou no, do Jesus histrico. Esse o mrito da obra: levar o leitor a fazer uma
experincia semelhante experincia vivida por todas aquelas pessoas que se
encontraram com Jesus, e, assim, aprender com o prprio Mestre tudo aquilo a que hoje
temos acesso pelos evangelhos, mas de que no temos compreenso satisfatria. O
caminho de acesso ao Jesus histrico, proposto por Pagola, o seguimento a Jesus. Esse
seguimento brota de um encontro pessoal com Jesus, seguido de profundo fascnio que,
consequentemente, leva proposta de Jesus para segu-lo (Mt 4,19) e resposta
generosa de seguimento.
No captulo 3, Pagola esboa um Jesus que um buscador singular de Deus63
,
mas de um Deus cujo agir se pauta sobre a compaixo e a misericrdia. um Deus que
quer entrar no corao do povo. Por isso, Jesus vai ao deserto. Anseia por ouvir esse
Deus que, no deserto, fala ao corao64
de forma amorosa e compassiva. Pois,
segundo Pagola, a melhor metfora para expressar a ideia de Deus a do Deus
compassivo65
. Jesus, ento, a externalizao da compaixo divina. Em seu falar e
63
PAGOLA, Jesus, p. 87-107. 64
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 88. 65
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 159-175.
28
agir, revela o Deus das compaixes. No captulo 5, desenvolve esse belssimo tema da
compaixo, denominando Jesus de Poeta da Compaixo/ Misericrdia66
.
De acordo com Jesus, o reino de Deus uma oportunidade que ningum dever
deixar passar. preciso arriscar tudo que for preciso para conseguir acolh-lo67
. A
partir dessa proposio, Pagola comea a se questionar: Ter razo Jesus? Onde se
esconde esse tesouro que ele descobriu? [...] Em que consiste essa fora salvadora de
Deus, que j est transformando secretamente a vida?68
. Pagola comenta que, diante de
todos esses questionamentos, Jesus procurou responder com as parbolas mais belas e
comovedoras que jamais saram de seus lbios69
. E todas elas convidam a intuir a
incrvel misericrdia de Deus, como apresentada na cativante Parbola do pai bom70
.
Jesus um profundo apaixonado pelo reino de Deus: este o norteia e d sentido a
sua vida. Esse amor profundo que Jesus tem pelo reino de seu Pai faz com que traduza
na histria, em gestos efetivos, a Boa-Nova que recebeu de seu Pai. A Boa-Nova de
Jesus consiste em poder afirmar, com certeza, que Deus est se empenhando em
construir uma vida mais ditosa para todos. O sinal concreto de que Deus est realmente
agindo na histria comprovado na atividade de Jesus, atravs de sua pregao e dos
milagres que realiza. O anncio do Reino realizado por Jesus desenvolvido, por
Pagola, no captulo 6, com o ttulo de Curador da Vida71
. Nesse captulo, sintetiza o
ministrio de Jesus enquanto fora curadora de Deus72
, que cura os enfermos do mal
fsico e tambm espiritual e liberta o ser humano das foras do demnio73
. Jesus tinha
o poder de despertar energias desconhecidas no ser humano, criando com isso as
condies necessrias para que se restabelecesse a sade. No ministrio de Jesus, Pagola
perscruta sinais de um mundo totalmente novo que j est irrompendo e transformando
a realidade deste mundo74
.
66
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 145-186. 67
PAGOLA, Jesus, p. 158. 68
PAGOLA, Jesus, p. 158-159. 69
PAGOLA, Jesus, p. 159. 70
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 159. 71
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 191-214. 72
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 202-206. 73
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 206-212. 74
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 212-214.
29
Outro trao importante de Jesus para Pagola a acolhida aos pobres. H uma
identificao de Jesus com os ltimos da sociedade de seu tempo. Jesus vai aos poucos
ensinando que o caminho para chegar a Deus no passa necessariamente pela religio
institucional, pelo culto ou ritos pomposos, mas pela compaixo para com os mais
pequeninos. Trata-se de uma grande revoluo religiosa provocada por Jesus, que abre
um novo caminho de acesso a Deus, que passa pela acolhida e compromisso com os
necessitados, sobretudo os mais pobres. Esse tema Pagola desenvolve no Captulo 7,
cujo ttulo Defensor dos ltimos75
. Nesse captulo, Jesus aquele que, ao anunciar a
Boa-Nova do Reino, restabelece a dignidade para os indesejveis da sociedade.
No captulo 8, temos mais uma das novidades de Jesus apresentadas por Pagola:
ele amigo das mulheres76
. Diante da discriminao sofrida por elas, Jesus lana um
olhar diferente sobre elas, dando-lhes maior visibilidade e presena. Mostra como as
mulheres fizeram parte do grupo dos discpulos desde o incio, permanecendo fieis, todo
tempo, a Jesus e causa do Reino. O autor sugere que elas estiveram presentes na
ltima ceia e tiveram um papel de protagonistas na origem da f pascal. Merece ateno
a belssima reflexo que o autor faz sobre Maria Madalena, a melhor amiga de
Jesus77
. Pagola apresenta Maria Madalena como fiel seguidora de Jesus e testemunha
da Ressurreio78
.
Desse modo, Pagola oferece um novo modo de reinterpretar a figura histrica de
Jesus e, com isso, reinterpretar o sentido do reino de Deus inaugurado por ele.
Um terceiro autor o telogo jesuta espanhol, Igncio Ellacura. Para Ellacura,
o reino de Deus aquela realidade que Jesus viveu e anunciou at com a prpria morte.
Jesus assumiu totalmente a vontade do Pai, de modo que sua morte aceita como
consequncia de sua fidelidade incondicional ao Pai e ao reino de Deus. o Reino de
Deus que se torna realidade com Jesus e na existncia dos que recebem sua Boa
notcia79
. Ellacura insiste em que a morte de Jesus no deve ser vista como fato
isolado, mas em conexo com toda a sua misso. A morte na cruz a sntese da vida de
Jesus.
75
PAGOLA, Jesus, p. 219-252. 76
PAGOLA, Jesus, p. 255-283. 77
PAGOLA, Jesus, p. 280-283. 78
Cf. PAGOLA, Jesus, p. 280-283. 79
SCHNACKENBURG, Signoria e Regno di Dio, p. 139.
30
A realidade do reino de Deus presente em Jesus e realizada atravs de seus
gestos, liga-se prxis crist atual. Ellacura aponta para uma prxis crist que se
desenvolve no esprito de Jesus. A ocorre uma circulao hermenutica que vai do
Reino prxis, mas que volta da prxis ao Reino, com o que ambos os plos se vo
reinterpretando pela presena e o influxo do Esprito de Cristo80
. A relao entre o
reino de Deus e a prxis construtiva e explicitadora do alcance de ambos, a partir das
situaes concretas. Isso evidencia que o reino de Deus no algo abstrato ou
meramente terico, mas, o fundamento e o sentido da prxis crist.
Ellacura acredita que necessria uma adequada compreenso do anncio do
Reino, a partir do interior da insero em uma prtica concreta. Nessa prtica, incluem-
se, de modo estrutural, os elementos constitutivos da prtica do prprio Jesus. O Reino
de Deus o fim de uma prxis crist iniciada em nome de Jesus e sustentada na
esperana ativa que flui do Ressuscitado e de sua presena nova na histria81
. Ellacura
reconhece que h um grau de condicionamento nessa forma de aproximao do
contedo do reino de Deus. Porm, no ocorre um reducionismo do Reino a uma prxis
ou realidade meramente temporal. Essa formulao da noo de reino de Deus
possibilita uma contnua atualizao histrica da prpria prtica de Jesus82
.
Ellacura entende que no se pode, pura e simplesmente, identificar o reino de
Deus com determinadas prticas de libertao, pois seria reducionismo. Porm, para que
se possa falar de Reino, de modo pertinente e credvel, preciso que ocorram
acontecimentos histricos concretos que sejam libertao para quem se encontra
oprimido. Assim, se torna razovel aceitar-se que a supresso da misria, da explorao,
da fome, etc., sejam sinais comprobatrios de que o reino de Deus j chegou.
Uma das grandes contribuies de Ellacura para o pensamento atual sobre o
reino de Deus a articulao que faz entre a noo de reino de Deus e a vida de f
concreta dos cristos que leva a uma prxis libertadora. Ou seja, o reino de Deus como
80
ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 81
ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 82
Esta compreenso do significado do reino de Deus encontra sua fundamentao no evangelho de Lucas
que, segundo Schnackenburg, pode ser considerado um evangelho histrico. O evangelista traa a linha
da histria da salvao de maneira tal que a presena de Jesus no mera preparao para o futuro da
soberania de Deus. Para Lucas, a fora escatolgica do Reino de Deus j est atuando eficazmente no
presente e se manifesta nos bens salvficos atuais, sobretudo no Esprito Santo que age na existncia dos
discpulos (cf. SCHNACKENBURG, Signoria e Regno di Dio, p. 140.).
31
realidade concreta e atuante na vida do povo, libertando contra as foras hostis presentes
na histria. Nesse sentido, o seguimento a Jesus e seu Reino algo concreto. Exige uma
prxis concreta. Tanto os cristos como as comunidades de f esto imbudos do valor
histrico e transcendente do reino de Deus. Por isso, se fala da esperana de um mundo
onde se respeite a dignidade dos mais fracos83
.
A abordagem que Ellacura faz sobre a vida e a atuao de Jesus acentua o que
Jesus fez, relacionando seus gestos com a justia e a converso pessoal e eclesial a Jesus
Cristo e ao reino de Deus. H ntima ligao entre o contedo cristolgico e a
eclesiologia. A Igreja chamada a seguir Jesus no servio solidrio humanidade. E, no
seguimento solidrio a Jesus, o Reino vai acontecendo e mudando a realidade do
mundo.
1.2.4 A voz da Igreja hoje
A Igreja, na atual transformao da Amrica Latina, luz do Conclio Vaticano
II, apresenta, especialmente, dois grandes documentos conciliares: a Lumen Gentium,
com a nova compreenso da Igreja; e a Gaudium et Spes, que situa a Igreja dentro do
mundo de hoje. Percebemos, assim, na Igreja Catlica do ltimo meio sculo, uma
retomada do conceito do reino de Deus nos documentos conciliares Lumen Gentium
(LG 3; 9; 35) e Gaudium et Spes (GS 39; 72) e na teologia da libertao.
1.2.4.1 O Conclio Vaticano II: Igreja Povo de Deus a caminho do Reino
O Conclio Vaticano II, XXI Conclio Ecumnico da Igreja Catlica, foi
convocado pelo papa Joo XXIII, em 25 de dezembro de 1961, e aberto em 11 de
outubro de 1962, atravs da bula papal Humanae Salutis84
. O Vaticano II foi o que
poderamos chamar de o sonho de Joo XXIII. Duas palavras sintetizam o que
pretendia com o Conclio: aggiornamento e dilogo, como bem observou um insigne
participante85
. Duas realidades que se completam, mas que tambm se implicam
mutuamente.
O Conclio e as prprias encclicas de Joo XXIII olham com especial carinho e
cuidado para todas as situaes concretas que ferem a dignidade humana e colocam em
83
Cf. ELLACURA, La teologa como momento ideolgico, p. 468. 84
Cf. BRESSOLETTE, Vaticano II, p. 1820. 85
Cf. LORSCHEIDER, Introduo, p. 6.
32
risco a vida, depondo contra os valores da justia e da fraternidade, sinais do Reino que
a Igreja, no seguimento de Jesus, chamada a construir.
Com o Conclio Vaticano II, repensa-se o lugar social da Igreja, que deve estar
inserida no mundo, com a finalidade de ferment-lo com o fermento bom do Evangelho,
oferecendo a todos, sem excluso, direitos reconhecidos, dignidade respeitada, enfim,
vida nova e plena (cf. Jo 10,10).
Toda a importncia da Igreja deriva de sua estreita relao com Cristo. E o
Conclio Vaticano II, de diversos modos, descreveu a Igreja como povo de Deus, Corpo
de Cristo, Esposa de Cristo, Templo do Esprito Santo, Famlia de Deus 86
. Ao
enfatizar a Igreja Povo de Deus, o Conclio apresentou uma reflexo profunda sobre a
natureza do povo de Deus, falando do sacerdcio comum dos fiis e do sacerdcio
ministerial, como realidades ordenadas uma a outra (LG 10). O Conclio props uma
nova imagem do papa e dos bispos, cujo trao dominante o de pastor. O prprio
magistrio define-se como servidor da palavra de Deus; no est acima da Palavra, mas
a servio da Palavra (DV 10) 87
.
Porm, no era suficiente mudar o lugar social. Era necessrio reformular
tambm o lugar eclesial. Se a vocao da Igreja ser sacramento do Reino para e no
mundo, o exemplo deve comear por ela. Ento surge uma das mais belas intuies do
Vaticano II que foi sugerir a imagem da Igreja como Povo de Deus, com igualdade de
direitos e obrigaes, onde o Sacramento do Batismo confere a todos a mesma
dignidade: um povo de irmos que, na diversidade de dons e carismas concedidos pelo
nico Esprito, responsvel pela misso de construir o reino de Deus no mundo.
Na Constituio Dogmtica sobre a Igreja, Lumen Gentium, os padres
Conciliares resgataram a imagem bblica de Povo de Deus. Essa conscincia tem
dupla consequncia: uma, a superao de uma eclesiologia jurdica; e a outra, a
conscincia de uma nova relao com o reino de Deus e com o mundo. O Snodo acena
para a Igreja como instrumento de Deus no mundo, cuja misso a de proclamar a Boa-
Nova do reino de Deus. E, para isso, a Igreja precisa estar inserida no mundo, voltando
sua ateno para aquilo que o essencial e o sonho de Jesus, o reino de Deus.
86
CERFAUX, As imagens simblicas da Igreja no Novo Testamento, p. 331-345. 87
Cf. LATOURELLE, Vaticano II, in: DTF, Petrpolis-Aparecida, p. 1046.
33
Com essa viso, est preparado o terreno frtil que tornar fecunda a
Conferncia de Medelln, cujo contexto similar ao do Conclio, porm com agravantes
no que concerne realidade singular da Amrica Latina.
Na Constituio Dogmtica Lumen Gentium lemos:
O mistrio da santa Igreja manifesta-se na sua fundao. O Senhor Jesus deu
incio Sua Igreja pregando a Boa-Nova, isto , o advento do reino de Deus
prometido nas Escrituras havia sculos: Porque completou-se o tempo e o
reino de Deus est prximo (Mc 1,15; cf. Mt 4,17). Este Reino manifesta-se
na palavra, nas obras e na presena de Cristo. A palavra do Senhor
comparada semente semeada no campo (Mc 4,14): aqueles que a ouvem
com f e entram a fazer parte do pequeno rebanho de Cristo (Lc 12,32), j
receberam o Reino; depois, por fora prpria, a semente germina e cresce at
o tempo da messe (cf. Mc 4, 26-29) (LG 5) .
A Constituio salienta que Jesus iniciou sua Igreja a partir do anncio da Boa-
Nova do reino de Deus, que foi prometido aos antigos e que se torna realidade na vida e
pregao de Jesus. O texto prossegue:
Cristo Jesus que era de condio divina... despojou-se de si mesmo,
tomando a condio de escravo (Fl 2, 6) e por ns, sendo rico, fez-se pobre
(2Cor 8,9): assim tambm a Igreja, embora necessite dos meios humanos
para o prosseguimento da sua misso, no foi constituda para alcanar a
glria terrestre, mas para divulgar a humildade e abnegao, tambm com o
seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai para evangelizar os pobres, sanar
os contritos de corao (Lc 4,18), procurar e salvar o que tinha perecido
(Lc 19,10). Semelhantemente, a Igreja abraa com amor todos os afligidos
pela fraqueza humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a
imagem do seu fundador pobre e sofredor. Faz o possvel para mitigar-lhes a
pobreza, e nele procura servir a Cristo. Mas enquanto Cristo santo, inocente,
imaculado (Hb 7,26) (LG 8) .
O texto insiste em afirmar que, se a Igreja inaugurada na pregao de Jesus
quiser permanecer na fidelidade a ele, tem que viver em constante exerccio de knosis,
tem que ser uma Igreja quentica e servidora do Reino.
Quando a Lumen Gentium fala sobre a nova aliana como novo Povo de Deus,
assim se expressa:
Este povo messinico tem por cabea Cristo, o qual foi entregue por causa
dos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificao (Rm 4,25) e, tendo
agora alcanado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos cus.
Tem por condio a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos
coraes o Esprito Santo habita como num templo. A sua lei o
mandamento novo de amar como o prprio Cristo nos amou (cf. Jo 13,34).
Por ltimo, tem por fim o reino de Deus, iniciado pelo prprio Deus na terra,
a ser estendido mais e mais at que no fim dos tempos seja consumado por
Ele prprio, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cf. Cl 3,4) e a prpria
criao for liberta do domnio da corrupo, para a liberdade da glria dos
filhos de Deus (Rm 8,21) (LG 9).
34
O novo Povo de Deus, que surge da nova aliana com Cristo, chamado a viver
na liberdade de filhos de Deus, e a nica lei que deve nortear seus coraes e seu agir
a lei do amor. E no basta qualquer tipo de amor, mas tem que ter a mesma intensidade
do amor com que Cristo amou a humanidade (Jo 13,34). Vivendo a lei do amor em seus
coraes, o povo messinico tem a firme esperana de ser herdeiro do Reino vindouro,
que ser consumado no fim dos sculos. E aqui est uma das grandes intuies do
Vaticano II: somos povo (Igreja) que caminha em direo ao reino de Deus.
A todo o povo de Deus, o Conclio, atravs da Lumen Gentium, lembra que:
Mesmo quando se ocupam com as tarefas temporais, os leigos podem e
devem exercer preciosa ao para a evangelizao do mundo. Porque se j
alguns deles, na falta de ministros sacros, ou estando os mesmos impedidos
no regime de perseguio, suprem na medida do possvel os ofcios sacros; e
se muitos dentre eles dedicam todas as suas foras no labor apostlico: todos,
contudo, devem cooperar na dilatao e incremento do Reino de Cristo no
mundo (LG 35).
O Conclio, fiel s palavras de Cristo, exorta a todos os fiis para que se
empenhem no anncio da Boa-Nova a todas as gentes (cf. Mt 28,19). Recorda que
ningum pode se eximir da obrigao de difundir o reino de Cristo aos coraes
humanos. Diante do Reino que surgir no final dos tempos, na Parusia, todo o povo de
Deus, leigos e pastores, devem somar foras para que o Evangelho do Reino seja
difundido em toda a Terra.
A Constituio Pastoral sobre a Igreja no Mundo, Gaudium et Spes, quando trata
da atividade econmica e o reino de Cristo, assim afirma:
Tendo adquirido competncia e experincia, absolutamente indispensveis no
meio das atividades terrestres, observem a hierarquia dos valores, fiis a
Cristo e ao Evangelho, de tal modo que toda a sua vida, individual e social,
seja impregnada do esprito das Bem-aventuranas, destacando-se pobreza.
Todo aquele que, obedecendo a Cristo, procura em primeiro lugar o Reino de
Deus, encontrar, em consequncia, um amor mais forte e mais puro para
ajudar todos os seus irmos e realizar a obra da justia inspirada pela
caridade (GS 72).
A Constituio afirma que h uma hierarquia de valores para os cristos, uns de
maior, outros de menor peso, pelo que necessrio um discernimento para no correr o
risco de se apegar ao menos importante e esquecer o essencial, que o reino de Deus e
sua justia. O restante vem por acrscimo (Mt 6,24-34). Segundo Mateus, devemos
viver buscando em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justia (Mt 6,33). Paulo
identifica a justia com o reino de Deus. Pois o reino de Deus no comida nem
bebida, mas justia, paz e alegria no Esprito Santo (Rm 14,17).
35
1.2.4.2 De Medelln a Aparecida: Igreja discpula missionria a servio do Reino
Em 1968, ainda sob o sopro do Esprito Santo presente no Conclio Vaticano II,
realizou-se na cidade de Medelln, Colmbia, a II Assemblia Geral do Episcopado
Latino-Americano, que deu origem ao documento que passou a ser chamado
Documento de Medelln. Em Medelln, explodiu forte o grito bblico de libertao, de
opo pelos pobres, com uma Igreja a servio do Reino. Foi a que deslanchou a
caminhada das CEBs, que procuram vivenciar a prtica concreta de Jesus e o sonho de
realizar o reino de Deus. Termos como justia, fraternidade, solidariedade,
compromisso e caminhada revelam o seguimento a Jesus e a vontade de implantar
concretamente o reino de Deus.
A Igreja de Medelln, amadurecida luz do Conclio, prope e realiza a
abertura de novos caminhos para a Amrica Latina em diversos nveis: na luta para
garantir os direitos humanos dos povos, na substituio do assistencialismo pela
verdadeira promoo humana e social, no empenho consciente para que os pases em
desenvolvimento no deixem na margem os pobres e os operrios, na articulao de f e
vida, na superao do autoritarismo e da centralizao eclesistica, no valor da vida
comunitria e social, na construo de sociedades solidrias e democrticas que
evidenciem os sinais do reino de Deus.
Por fim, Medelln prope pistas de ao pastoral, visando a transformar, no
sentido do reino de Deus e da libertao dos pobres, a realidade atravessada por
estruturas de pecado e pelo clamor e esperana dos pequenos. Seu olhar pastoral parte
da periferia do sistema, da sociedade real da Amrica Latina em processo de
transformao.
A III Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em
Puebla, no perodo de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. O tema desta conferncia
foi Evangelizao no presente e no futuro da Amrica Latina. Em Puebla ouviram-se
fortes apelos comunho, participao co-responsvel na Igreja, e defesa da
dignidade humana. Puebla representou a busca de uma nova estratgia pastoral.
Puebla explicitou a opo pelos pobres j presente em Medelln. importante
sublinhar o significado transcendente dessa opo evanglica e, ao mesmo tempo,
estratgica para a vida e a pastoral da Igreja. Iluminada pela opo de Puebla, o agir da
Igreja no mais devia articular-se a partir do poder, mas a partir do pobre, na tica do
36
pobre. A Igreja devia entra no tecido social pela porta da sociedade civil e, nela, pelo
caminho dos pobres88
. O agir eclesial possibilitaria a construo de uma Igreja fundada
no binmio comunho e participao. Comunho, enquanto criaria as condies de
unidade do corpo eclesial em vista da sua misso evangelizadora, participao,
enquanto criaria as condies para um compromisso efetivo na transformao da
realidade social.
A IV Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em Santo
Domingo, no perodo de 12 a 28 de outubro de 1992. Foi convocada e inaugurada pelo
Papa Joo Paulo II. Santo Domingo teve um objetivo bastante especfico: comemorar os
500 anos da evangelizao do Continente e fazer-lhe um balano. O tema j orienta para
isso: Nova Evangelizao, promoo humana, cultura crist. Ele aponta para a
evangelizao inculturada que postula uma pedagogia pastoral adequada. Santo
Domingo, tambm, valorizou o protagonismo do leigo na Igreja.
Em Santo Domingo aparecem dois grandes temas que servem como fio condutor
de todo o Documento : a promoo humana e a inculturao. Postulam nova pedagogia
pastoral para o projeto da nova evangelizao. A discusso central deu-se justamente,
em torno da nova evangelizao. Como deve ser a evangelizao para ser nova em
relao aos processos tradicionais de evangelizao? O que ela exige de cada cristo?
Na preparao da Assemblia de Santo Domingo havia duas tendncias na
abordagem da questo da cultura e da inculturao89
. Uma compreendia a cultura como
a conscincia consolidada de um grupo social, ligada a formas culturais j assentadas
historicamente. Essa corrente tendia a compreender a cultura crist como meta-
cultura, reguladora das demais, superior s demais. Preferia falar de evangelizao da
cultura. A expresso cultura crist, nesse contexto, dificilmente escapa suspeita de
fazer parte da proposta de nova cristandade.
A outra tendncia buscava justamente a compreenso mais dinmica e
processual. Apresentava a cultura como processo ligado ao mundo vital dos sujeitos
histricos concretos. Este mundo vital dos sujeitos culturais diferenciado, plural.
Neste sentido, a evangelizao, para ser nova, deve partir do pressuposto de que toda
88
Cf. PALCIO, Uma conscincia histrica irreversvel, p. 59-83; CALIMAN, Identidade histrica da
Igreja no Brasil nos ltimos 20 anos, p. 17-33. 89
Cf. TABORDA, Nova Evangelizao, promoo humana, cultura crist, p. 9.
37
cultura pode chegar a ser crist, ou seja, a fazer referncia a Cristo e inspirar-se nele e
em sua mensagem90
. Essa tendncia prefere falar de evangelizao inculturada. Visa
promoo da pessoa humana no sentido da libertao integral e inculturao do
Evangelho nas culturas.
De 13 a 31 de maio de 2007, realizou-se em Aparecida, So Paulo, a V
Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, solenemente
inaugurada pelo papa Bento XVI. Os bispos tiveram a oportunidade de refletir sobre a
realidade e os desafios eclesiais latino-americanos. Como concluso, foi elaborado um
documento com o ttulo: Discpulos missionrios de Jesus Cristo para que nossos
povos nele tenham vida. Textos conclusivos da V Conferncia Geral do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe, que servir para orientar a caminhada da Igreja Latino-
Americana e Caribenha no trabalho pastoral e evangelizador dos prximos anos.
Nosso tempo caracteriza-se para alguns, como ps-cristo, ou ps-cristandade.
Nele de fundamental importncia a personalizao da f, ou seja, a reconstruo do
elo perdido entre o indivduo e a f eclesial. Para que o fiel discpulo de Jesus Cristo
chegue a ser missionrio, preciso que a apropriao subjetiva da f, como experincia
pessoal, seja acompanhada por uma adeso firme aos contedos objetivos da f. S
assim o individualismo religioso pode ser vencido. O cultivo da intimidade com o Deus
de Jesus Cristo se torna fonte de entusiasmo missionrio pelo reino de Deus.
A Conferncia de Aparecida significou para a Amrica Latina uma hora de
graa, um novo Pentecostes, um autntico acontecimento salvfico que ps a Igreja,
peregrina nestas terras, num estado permanente de misso (DAp 547).
O mtodo VER-JULGAR-AGIR perpassa o documento inteiro, mesmo que seja
de maneira bastante sutil. O julgar marcado por trs eixos que explicitam a
experincia crist: a) o encontro pessoal com Jesus Cristo que nos torna discpulos
missionrios, fonte de grande alegria e paz (cap. III-IV); b) a vivncia eclesial, onde
todos se sintam acolhidos e valorizados como sujeitos eclesiais (cap. V); c) o processo
formativo permanente, capaz de gerar convico forte e corajosa (cap. VI). O agir que
segue misso para valer, fecundo e permanente. Atinge de cheio a realidade scio-
econmica, poltica, cultural, religiosa (cap. VII-X).
90
JOO PAULO II, Discurso Inaugural, Concluses de Santo Domingo, n. 4.
38
Algumas novidades que aconteceram na V Conferncia Episcopal: 1) A
presena de um nmero significativo de participantes de todos os estados do Brasil, que
fez com que os bispos no se esquecessem da Igreja Povo de Deus, ainda mais por se
realizar no santurio mariano que tem sua histria relacionada com o povo pobre, os
negros e excludos da sociedade. 2) O Frum de participao fazendo referncia aos
mrtires da Amrica Latina e do Caribe, homens , mulheres e crianas que doaram a
vida pelo reino de Deus. 3) A presena de um grupo de telogos(as), exegetas,
pastoralistas e cientistas sociais, e do grupo Amerndia, que colaboraram com os bispos
na linha da reflexo teolgica, bblica e pastoral. 4) A retomada da colegialidade na
Igreja latino-americana e caribenha.
Chama a ateno a retomada da opo pelos pobres, que a V Conferncia inseriu
na f cristolgica. Pode-se ainda elencar outros aspectos importantes, como o dilogo
ecumnico e inter-religioso, base fundamental para se construir um mundo de justia e
de paz. Outro ponto salientado pelo Documento a realidade de excluso, fome e
violncia, presente na Amrica Latina e no Caribe. O documento d ateno especial ao
cuidado para com os pobres e excludos. A V Conferncia mostrou o rosto indgena e
afro-americano da Igreja latino-americana e caribenha. Outro fruto importante foi o
tema da vida para todos os homens e mulheres, vida para todas as criaturas, vida para a
natureza. Enfim, para que todos tenham vida e a tenham em abundncia (cf. Jo 10,10).
Clodovis Boff afirma que, em Aparecida, a opo pelos pobres ganha nova
amplitude:
Foram identificados novos rostos da pobreza: os desempregados, os
refugiados e migrantes, os aidticos e os txico-dependentes, a populao de
rua, as mulheres vtimas da violncia e explorao sexual, os presos e tantos
outros rostos mais. Mas, , sobretudo, a qualidade desta opo que mais
sublinhada pelo documento. Trata-se de uma opo verdadeiramente
evanglica, no sentido de vir banhada e mesmo encharcada da f em Cristo. E
isso, tanto em sua origem (ela nasce do encontro com o Filho de Deus, que
de rico se fez pobre) quanto em seu exerccio (ela vibra com os sentimentos
do corao do Bom Pastor). Quanto s aplicaes concretas, alm das
indicaes prticas que do, os bispos apelam para a imaginao da
caridade, a que se referiu Joo Paulo II91
.
O rosto da Igreja esboada pelo Documento de Aparecida de uma Igreja
profundamente missionria, que anuncia com alegria e entusiasmo a Boa-Nova do amor
91
Entrevista de Clodovis Boff concedida Revista do Instituto Humanitas Usininos: Os rumos da Igreja
a partir de Aparecida, p. 17. http://www. ihuonline. unisinos. br/uploads/edicoes/1182195938. 41pdf. pdf
acessada em 11/07/2010.
39
de Deus em Cristo, e, nesse amor, o ser humano encontra sentido para sua existncia
concreta. Igreja servidora cuja atitude concreta se traduz no cuidado com os irmos, em
especial os mais necessitados. Clodovis Boff diz que a Igreja da V Conferncia ser
uma Igreja agpica, enquanto se faz samaritana de todos os cados beira das
estradas do mundo, cuidando deles e curando-os92
.
Para Joo Batista Libanio,
uma das grandes luzes de Aparecida decorre da alegria de ter-se encontrado
com o Senhor. De tal experincia, brotam os desejos de segui-lo e anunciar-
lhe o Evangelho do Reino da Vida aos povos latino-americanos. A
revitalizao da vida do discpulo missionrio parte de um fato primeiro que
se traduz na alegria de ser discpulo para anunciar o evangelho do Reino da
Vida. H uma boa notcia que antecede ao cristo, que ele recebe e de que faz
porta-voz convencido. Na base de tal convico est o encontro com Cristo,
que chama para segui-lo e o envia para o anncio na fora do Esprito
Santo93
.
O prazo se cumpriu. O reino de Deus est chegando. Convertam-se e creiam no
Evangelho (Mc 1,15).
Na prxima Assemblia Ordinria do CELAM, que se realizar em Cuba ser
trabalhado o projeto da Grande Misso Continental. preciso aguardar para saber quais
sero as iniciativas propostas para marcar essa nova etapa na caminhada pastoral da
Igreja Latino-Americana e Caribenha.
1.2.5 A prtica das nossas comunidades
Para entendermos as prticas de nossas comunidades, faz-se necessria uma
releitura de algumas prticas do passado, a fim de termos uma compreenso mais
consistente da realidade atual e encontrarmos luzes que possam nortear o momento
presente.
Para a Reforma e o Renascimento, a f a confiana na graa que salva e nos
liberta da lei, inclusive da Lei de Deus94
. A graa justifica o ser humano e, recoberto por
ela, a justia de Cristo o faz justo, mesmo que permanea no pecado. A justificao,
para a doutrina luterana c