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Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (1)
RELIGIÃO "AFRO-BRASILEIRA, COMO RESPOSTA ÀS AFLIÇOES"
RESUMO
Relato de observação realizada em um terreiro de Umbanda de urna comunidadede Natal (RN) onde,ao lado do sistema afro, realizam-se rituais de origem ameríndialigados a "Jurema". Além da descrição do terreiro, procura examinar suas relaçõescom a Igreja Católica e com o sistema oficial de saúde, assim como analisar os m~tivos que levaram as pessoas a procurar, como clientes, aquele centro e as formasali existentes de atendimento às suas necessidades. Discute finalmente a posiçãoda cura nos terreiros e questiona a eficácia da utilização de suas práticas p~losnão iniciados.
1 INTRODUçAo
Embora seja uma grosse~ra simplificação reduzir os te~reiros (Centros de religião afro-brasileira) a casas de "cura",atualmente as atenções de muitoscientistas convergem para eles,encarados como "centros de medicina alternativa" (1).
Em são Luís, na casa-de-santo mais prestigiada pelo seutradicionalismo, a "Casa das Minas~ a cura talvez não ocupe lugar maior do que aquele que lheé reservado pelo catolicismo PQpular. Tal como foi dito nos es
tudos clissicos (2), na Casa dasMinas o desempenho maior daquelafunção e encarado como "afastamento da ortodoxia", ou como sinal de absorção de elementos culturais ameríndios.
A busca na religião dealívio para aflições, contudo, ébastante conhecida e, inegave..!.mente, um certo número de pessoasque procuram os terreiros enco~tram-se atribuladas por probl~mas de saúde, às vezes não reso..!.vidas pela medicina científica,quer por falta de recursos financeiros, quer por ineficicia dos
(1) Mestre em Ciências Sociais - Antropologia. Professora Adjunto - Departamentode Psicologia - UFMA.
Cad4 Pesq. são Luís, 4 (1) 87 - 97, jan ./jun . 1988 87
tratamentos (3) e (4).
No segundo semestre de
1980, enquanto aluna de AntropQ
logia da Religião, no Mestrado
em Ciências Sociais da UFRN, rea
lizamos urna observação em um Cen
tro de Urnbanda de um bairro prQ
letário de Natal, procurando de
tectar as relações ali existen
tes entre religião e medicina.
O trabalho foi orientado por M~
deleine Recheport, então empe
nhada no levantamento de experi
ências terapêuticas realizadas
pelos diversos centros religiQ
sos existentes no mesmo bairro.
A pesquisa desenvolveu-
se durante quatro meses, envol
vendo sete observações de cerca
de três horas. Durante o traba
lho tivemos a oportunidade de as
sistir a um Candomblé, a uma se
çao de Jurema, a jogos de búzio
e a uma "panela de Iemanjá" rea
lizada em terreiro ligado ao Cen
tro. Fizemos também entrevistas
com a mãe-de-santo e entabulamos
conversa com membros, clientes
e freqlientadores da casa durante
nossas idas ao terreiro.
Neste trabalho tentamos,
em primeiro lugar, descrever de
forma resumida o terreiro, suas
relações com o catolicismo e com
o sistema oficial de saúde. Num
segundo momento, procuramos de
tectar os motivos que levaram as
pessoas a procurar, como clientes,
aquele Centro e as formas ali
existentes de atendimento às suas
necessidades. Procuramos, também,
a partir de depoimentos de fi
lhos-de-santo, discutir o valor
terapêutico do transe religioso,
tão apregoado atualmente no Bra
sil nos meios psiquiátricos nao
tradicionais.
2 o TERREIROLocalizado emMãe Luísa,
um dos bairros proletários de Na
tal, o terreiro observado ocupava
a maior parte da área da residên
cia da mãe-de-santo, ficando o
espaço religioso entre a sala e
a cozinha. A casa, situada na
principal rua do bairro, era de
alvenaria, coberta de telha e com
piso de cerâmica. Possuía agua
encanada, luz elétrica e ficava
bem próxima da parada de ônibus
e de várias pequenas casas de co
mércio onde se poderia comprar
vela,cachaça e outras coisas ne
cessárias aos rituais. Além de
terraço, duas salas, dois quartos,
banheiro, cozinha e quintal, h~
via ali um barracão e dOl'S qua!,
tos de santo, o do Orixá e o do
Jaguarema.
Apesar de ser denominado
"Centro Espírita Umbanda" e de se
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·declarar seguir nele a linhanagô, de origem af rí.cana , a chefedo terreiro, nossa principal informante, definia-se em termos religiosos como católica, devotado Padre Cícero e de Nossa Senhorados Impossíveis,invocação muitoconhecida no Rio Grande do Norte.
A instituição foi regi~trada na Federação de Umbanda deRecife em 1957 mas,segundo aquelafonte, já existia ali há váriosanos,pois,antes de se transferirpara Natal, residiu 40 anos naquela cidade, onde foi iniciadana religiáo afro-brasileira.
Embora não se ligJsse anenhuma das Federações de Natal,não estava isolada. Uma rede deoutros terreiros nat aLenses e decidades próximas se ligavam aela, algumas vezes recebendoorientação da mãe-de-santo.
Parece que no passadoteve mui tos membros mas, na epoc:da pesquisa, apesar de sua chefedeclarar a existência de 40 a 50membros, quase não se realizavamali cerimônias públicas e não sedispunha mais de tocadores, queeram substituídos por crianças,às vezes menores de 10 anos, oupor tocador cedido por terreiroamigo.
A líder do Centro erapessoa muito idosa, magra e de
saúde precária. Morava com trêsnetos de 8 a 13 anos que a auxiliavam nos "trabalhos" e nos rituais públicos, tocando tambor,atendendo as entidades que bal:.xavam,etc. Ocupava grande partedo seu tempo em jogo de búzio e"trabalhos" solicitados por cll:.entes, que pareciam muito numerosos. Sendo feita na linha deOrixá e de caboclo,aceitava tr~balhos tanto "para a direita como para a esquerda".
Embora tivesse j ust i f icado sua magreza afirmando que nãotinha auxiliar e que, quando e~tava com seus" guias ",não poderiacomer,mais tarde fomos informadosde que fora internada no sanat~rio com tuberculose avançada-doença também contraída pelo m~nos por duas de suas filhas-de-santo, como tivemos oportunidadede constatar pelos seus comentários após o transe religioso.
A clientela do terreiroera constituída,em 1980, por pe~soas do bairro e por "gente quetem carro", categoria esta geral:.mente de nível sócio-econõmicomais alto e constituída muitasvezes por pessoas "de fora" (deoutras cidades). Pelo aspecto dacasa dava para se concluir queno passado sua clientela forabem mais rica ou numerosa. Falandode sua situação na época da pe~
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qui.sa , explicou a chefe do terr e í.ro . "O santo e que manda a
pessoa" (cliente) , "Tudo que tem
aqui foi dado por eles", "A ge~te não pode e botar uma coisanuma pessoa para ela ter que virtirar ... "
Em duas festas que paEticipamos,pudemos constatar quea maior parte das pessoas quedançavam ali e que freqlientavamo Centro nos dias de festa erampessoas ligadas à mãe -de-santopor laços consangliíneos (mãe,irmã, sobrinha, neta, etc.), emsua maioria mulheres e residentesno mesmobairro.
Embora na entrada da casa existisse umcartaz proibindoa entrada de crianças,elas eramtraz idas pelas mães nas noi tes emque havia ritual e duas delas, de
cerca de 8 anos,já recebiam sa~to. A participação de criançasnas atividades do terreiro p~recia ser desencoraj ada pela mãe-de-santo, por considerar as obri.gações de um filho-de-santo muito sérias para serem assumidasna infãncia.
Coexistiam no terreiroobservado dois sistemas religi~sos, um de origem afro (linhanagõ) e outro de origem ameríndia(linha de Jurema), ambos influenciados pelo espiritismo e pelocatolicismo. A .penetração deste
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se fazia sentir tanto pela pr~sença dos santos como pela freqliência com que se recorria aorações católicas nos rituais.Embora houvesse ali cerimôniassó para Orixás e só para jurem~dos (e houvesse quartos separadospara as entidades das duas linhas), parecia haver influênciamútua entre os dois sistemas,inclusive fomos informados daexistência ali de "toque" paracaboclos.
Havia também interpen~tração entre os dois sistemas.Assim,o jogo de búzio (de origemafro) era quem normalmente indicava a necessidade de se fazerum trabalho e este, algumas vezes,deveria ser feito na Jurema.
Pelo depoimento da chefeda casa, o pessoal do terreiro,embora se considerasse católicoe costumasse iniciar seus rituaiscomorações e invocações oriundasdaquela religião, era objeto dediscriminação pelos representa~tes do clero, ligando-se àquelaigreja principalmente enquantoromeiro do Juazeiro do Norte, devoto do Padre Cícero.
Conscientes do pr ecoric eL
to do clero em relação às religiões afro-brasileiras, os membros daquele terreiro nao par~ciam nem inclinados a abandonara religião dos Orixás, nem emp~
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nhados em lutar pela sua aceitação
por outros segmentos da socieda
de. Como expressou nossa infor
mante: "Acima dos padres está
Deus, que é nosso advogado e q~e
sabe que não há mal nenhum em se
matar um pinto em sacrifício,
quando todo mundo vive comendo g~
linha ... "
As relações com o sistema
oficial de saúde pareciam então
menos cheias de conflito do que
o foram no passado. Segundo a
mãe-de-santo, já se conseguia en
trar num hospi tal para fazer "tra
balho" e tirar de lá pessoas que
nao tinham "doença de médico", a
fim de tratá-Ias em casa pela
"seita".
Na época da pesquisa, mui
tos clientes do terreiro estavam
sendo submetidos ao mesmo tempo
a tratamento médico e espiritual
e, se muitos nao procuravam os
dois, era mais por falta de re
cursos ou por acredi tar que o seu
caso era só espiritual, do que por
julgar as duas esferas incompati
veis.
Conforme nos explicou a
mãe-de-santo, para eles há males
diagnosticados pelo jogo de búzio,
os quais fogem totalmente a com
petência do médico e que só podem
ser resolvidos no terreiro. Ad
mi tem, também, a situação inver
sa, embora que nos casos meneio
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1)
nados nunca se tenha referido a
encaminhamento de clientes a
serviços médicos antes de terem
feito "obrigação" no terreiro.
3 ATENDIMENTO AOS CLIENTES
Pelo que pudemos perc~
ber tanto pela obrigação como
pelos depoimentos colhidos du
rante a pesquisa, os motivos
que levavam as pessoas a se a
proximarem da casa como clientes
eram bastante variados. Enqua~
to urnas procuravam o terreiro
devido a problemas ae saúde,o~
tras eram traz idas por problemas
financeiros, sentimentais, ou
por desentendimentos dentro da
família, trabalho ou vizinhança,
muitas vezes relacionados 'com
loucura,alcoolismo e criminali
dade.
Grande parte daquelas
pessoas estavam se sentindo
"passadas para trás" ou ameaç~
das por terceiros - traídas p~
10 marido, marcadas pelo chefe
ou pelo professor, rebaixadas
no emprego ou alvo de inveja de
viz inhos e companheiros - e seus
problemas eram interpretados
ali como "coisa feita".
Segundo explicação da
chefe do terreiro,há gente que
vive pensando só em prejudicar
os outros. Muitos dos que estão
presos ou hospi talizados pr~
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cisam de um trabalho para desfazer
malefícios, pois "os guias não são
maus mas sao como crianças, ofer~
cendo comida e sabendo falar com
eles se consegue que façam tudo o
que se quer ... "
Existia ainda atribula
çoes que eram tidas como próprias
dos filhos de certos santos dota
dos ou não de mediunidade. "Os de
Xangõ sao dados a perturbações
mentais, os de Abaluaiê (São Se
bastião) a doenças de pele e a to
da sorte de dificuldade pois o
santo está amarrado. Já os de
Iansã,mesmo que vivam enfrentando
dificuldades devido a relação d~
ia com os "oguns", sempre conse
guem vencer,pois sua protetora é
forte e quando invocada pode de
morar, mas nunca falhar".
No período pré-eleitoral
era comum a casa ser procurada
também por políticos à cata de v~
tos ou de proteção do sobrenatural.
Conforme a mesma informante,
aqueles sempre prometiam grandes
ajudas mas nunca voltavam após as
eleições ou nunca se lembravam de
que estiveram lá, quando procur~
dos por eles.
Fomos também informados
de que alguns freqllentadores de
terreiro tinham propósitos não d~
clarados de abrir uma casa de Um
banda, sem passar pela devida ini
92
c í acâo , Emrelação àqueles, e sc l.a
receu a mesma fonte: "Não adianta
olhar, pois podem aprender alguma
coisa mas, como não sabem o que
se faz antes, se jogarem o jogo
e cego e se pedirem alguma coisa
ao santo ele não atende ..• "
Os problemas apr e sent.a
dos pelos clientes eram ali clas
sificados como sendo coisa para
Orixá,para o Caboclo ou para os
da esquerda.
Os Orixás, vistos mais
como protetores dos homens, ti
nham urna função preventiva, em
bora pudessem ser chamados para
resolver problemas que não t í ve s
sem sido provocados por magia e
não exigissem soluções imediatas.
Os trabalhos realizados
por Orixás eram sempre "para a
direita". Em geral, através de
oferendas o devoto procurava
obter maior proteção ou a sus
pensão de um castigo recebido.
Por intermédio do jogo de búzio
o cliente era informado ares
peito do que deveria oferecer a
divindade para pôr um fim em
suas aflições. Feita a "obrig~
ção", passava a aguardar os resu.!.
tados que, embora nunca fossem
imediatos, eram certos, pois "o
santo em hipótese alguma aceitava
uma oferta maior de outra pessoa
interessada em sua ruína".
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 87 - 97, jan./jun. 1988
Na linha de Jurema traba l.hava=se tanto para a "direita~sob o comando do caboclo Tup!nambâ , como para a "esquerda",sob as ordens de zé Pilintra ede Exu, seu "portador", de modoque tudo poderia ser ali solicitado.
Nos trabalhos para a "e~querda" os juremeiros ou mestresda Jurema agiam através de Exu,embora no terreiro se afirmasseque este também trabalhava paraa direita. Exu era chamado pri~cipalmente para resolver probl~mas decorrentes de magia negra(coisas feitas), ou tidos comoprovocados pelos Exus, como lo~cura, alcoolismo, infidelidadeconjugal, crime, etc. Eram também chamados para resolver problemas urgentes, como a aprovaçãoem concurso, questões amorosas,etc., cuja solução poderia aca~retar sérios prejuízos a outraspessoas. Contudo, para poder f~zer um trabalho para a "esquerda"era preciso obter o consentime~to de Deus,caso contrário o feitiço poderia cair sobre o feiticeiro.
Naquela casa de Umbandaavaliava-se a eficácia dos "trabalhos" at.ravésdo jogo de búzioe pela rapidez com que a entidade presenteada receba a oferenda.Assim,quando a cachaça oferecida
a Exu "desaparecia" logo se p~deria ter certeza de que fora doseu agrado e que se poderia contar com ele.
Quando o problema era p~ra Orixá,após o conhecimento docaso, consultava-se o santo,através do jogo,para se saber oque estava querendo receber paralibertar aquela pessoa da atribulação pela qual estava passa~do. Normalmente os casos maisgraves exigiam oferendas que r~presentavam para o cliente gra~des sacrifícios financeiros.
A comida oferecida aosanto não poderia ser consumidapor ninguém, pois "tinha dono",e deveria permanecer no quartodo santo por três dias, quandoera então depositada no pé de umaarvore ou jogada nas águas, emlugar que nao corresse risco deser pisada.
Segundo a chefe do terreiro, antes de se come çar a "trabalhar",é preciso pagar as obrigações com o santo, caso contr~rio, não se consegue nada comele e está se arriscando a receber severos castigos, uma vez que"o santo não pode ser enganado".
Para que o trabalho outratamento possa dar certo, acr~ditava-se que o cliente precisavacumprir fielmente as recomenda
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cõe s recebidas, "tal como se faz
quando se procura ummédico". S~
gundo nossa informante, não ad i an
tava alguém oferecer um pinto p~
ra Exu e ficar bebendo pela rua.
Quem está em tratamento tem que
ficar em casa após o trabalho e
vol tar ao terreiro quando for de
terminado, caso contrário, o re
sul tado obtido sera semelhante
ao que se consegue indo ao me
dico e não tomando os remédios.
Os que desaparecem do terreiro
logo que sentem uma " melhora
zinha" sempre têm de que se quei:.
xar mais tarde.
Alguns tratamentos exi
giam que o cliente permanecesse
no terreiro por vários dias, co
mo ocorrera com uma filha de
Abaluaiê que chegara ali com o
corpo cheio de feridas. Como o
tratamento exigia que se esfre
gasse em seu corpo sangue de galo
e grãos de milho, foi preciso sua
permanência junto a mãe-de-santo
para que esta pudesse fazer o r~
médio. Outras vezes, mesmo que o
cliente pudesse fazê-Io em casa,
preferia que fosse realizado lá
mesmo ou por acreditar que ali
teria maior eficácia ou por nao
poder revelar a seus familiares
que procurara umterreiro para o
tratam~nto.
No terreiro observado,
. embora o trabalho fosse feito me
94
diante pagamento,a dona da casa
afirmava que muitas vezes não r~
cebia nada em troca por ele pois
a pessoa que precisava dele nem
sempre tinha com que pagar. Se
gundo ainda a mesma fonte,o san
to também ajudava sem receber
nada em troca. Quando alguém of~
recia comida ao santo, a comida
servia também para outras pe~
soas; por isso costumava dirigir
seu pensamento para prisões e
hospitais sempre que fazia alguma
"obrigação" .
Pelo que pudemos const~
tal, embora algumas pessoas em
tratamento tivessem que perm~
neoe r no terreiro por vários dias,
os clientes não prec:isavam apa
recer lá com muita freqtiência.
Além de acreditar que a comida
garantia por muito tempo os cui
dados do Orixá, aquela senhora
tinha plena consciência das di
ficuldades enfrentadas por eles
para chegar até ali.
As pessoas em tratamento
deveriam, no entanto, ir ao te~
reiro por ocasião dos toques. F~
lar com a mãe-de-santo quando ~
Ia estava com seus guias poderia
ser de grande valor para a cura.
Embora freqtientemente os
filhos-de-santo se refiram a pr~
blemas de saúde enfrentados antes
de ter começado a "dar passagem"
ou nos períodos em que, por re
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 87 - 97, jan./jun. 1988
beldia, tentarem se afastar de
suas obrigações, dançar e recebersanto nunca nos foram apontadospor eles como uma estratégia terapêutica.
Indagando também a duasdançantes de outra casa existenteno mesmobairro (então submetidasa tratamento psiquiátrico em insti tuição da rede estadual de saude), se sua participação em atividades religiosas trazia paraelas algum efeito terapêutico,recebemos como resposta: "As vezes sim, às vezes não", sem queisso parecesse gerar-lhe qual:quer desapontamento.
Tudo indica que, paraaquele grupo, "trabalho", tratamento e iniciação eram categoriasdiferentes, embora pudessem serencontradas juntas em algum casoconcreto.
o valor terapêutico dotranse tem sido, contudo, acerit.uado nos meios científicos. Existeatualmente tanto no Brasil comoem outros países, experiênciasde utilização do êxtase religi~so no tratamento de "doenças ne!.vasas", realizadas em consultórios e clínicas psiquiátricas,por pessoas não iniciadas nas religiões afro-brasileiras. O resul tado desse trabalho deveráser, inclusive,analisado este ano
em Congresso Internacional a serrealizado no Rio de Janeiro.
4 CONCLusAo
Umterreiro não é um mundo à parte ou uma instituiçãoisolada do resto da sociedade .Além de seus menbros serem pe~soas integradas a outras instituições, através de clientes efreqllentadores estabelecem lig~ção com muitos outros segmentosda sociedade.
Pel~s caracteristicas apresentadas pode-se perceber queo Centro de Gmbanda (com que entramas em contato em Natal, noano de 1980), ligava-se par t í.cu Lar
mente às camadas subalternas eà cultura :legra. Não obstante,era procurado por poli ticos e porpessoas de classe média e integrava em seu sistema religiosomuitos elementos do catolicismo,espiritismo Kardecista e de religiões indígenas.
Naconcepção de seus membros, aquele sistema cul tural nao
se mostrava incompatível com o~tros existentes em nossa sociedade, dai se dizerem "católico-umbandistas ", apesar do catolici~mo se apresentar comoa única r~ligião verdadeira e do clero tentar proibir, muitas vezes, osfiéis de participarem de ativid~
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des de outras religiões. Assim,
podiam ir à missa e dançar tambor,
em homenagem ao santo de sua d~
voção, consultar médico e jogar
búzio quando enfrentavam pr~
blemas de saúde.
Apesar de termos nos a
proximado do terreiro por inter
médio de pessoas ligadas ao si~
tema oficial de saúde (Ln t e r e a
sadas no acompanhamento de casos
de pessoas atendidas por médicos
e por instituições religiosas ao
mesmo tempo), e de direcionarmos
nossa atenção naquela pesquisa
para a relação entre religião e
saúde, o terreiro não pareceu aos
nossos olhos como um centro de
saúde popular.
Um terreiro e, antes de
mais nada, uma instituição reli
giosa e não um sistema cultural
completo e auto-suficiente, e!:0.
bora possa ter em alguns momen
tos a função de educar crianças I
curar enfermidades, recrear a co
munidade, etc.
Muitas pessoas que pr~
curam o catolicismo também o fa
zem movidas pelo desejo de liber
tação de males físicos e psiqui
cos, às vezes na esperança de
obter um milagre. Não obstante
o volume de promessas e ex-votos,
aquela religião nunca é confun
dida com medicina popular. A
pouca sistematização dos conheci
mentos transmitidos oralmente e
em contato direto com o pai ou
mãe-de-santo,no processo iniciá
tico,contribuem para que se pense
que naquelas religiões inexiste
um corpo de doutrinas desenvol
vido e uma visão de mundo parti
cular.
Os dados de nossa obser
vação no terreiro de Natal nao
fornecem nenhuma base para a a
firmação de que eram as atribu
lações no plano da saúde o que
rnais arrastava as pessoas até
aquela instituição e que a medi.
cina era a sua principal função.
Por outro lado, a análise
de casos de pessoas atormentadas
por problemas de saúde e atendi
das por aquele centro permitiu-
nos compreender que:
1. o tratamento ali realizado era
subordinado ao culto dos
Orixás e ao s i.s t.erna de crenças
a eles relacionado;
2. dificilmente aquele tratamen
to podia ser realizado e se
mostrar eficaz sem que a pe~
soa tivesse fé e conhecesse
o ~istema cultural que torna
lógico e conseql1ente tudo o
que é ali utilizado;
3. acreditava-se que o "jogo de
búzio" e os "trabalhos" quando
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realizados por pessoas nao investidas de autoridade religiosa e consideradas dotadasde força mística não possuíama mesma eficácia ("o jogo ecego", "o santo não atende opedido") .
Diante de tudo isto, c~loca-se para nós duas questões:Até que ponto o conhecimento ea manipulação das "práticas terapêuticas" dos terreiros, porparte de médicos, psicólogos ee psiquiatras garantirá a estesos mesmos resultados que têm sido obtidos pelos pais e mães-de-santo,que deles se utilizam den
.tro de um contexto religioso ede um determinado universo Slm
.'.bólico.E, até que ponto as exper í êric La s de utilização de taispráticas tem trazido benefíciospara a camada social de onde seoriginou e tem contribuído parao reconhecimento da cultura p~pular e do saber não erudito.
~ preciso que tais esp~riências não se transformem emmero chamariz de clientes ávidospor novidades e erotismos e quenão se constituam em mais umaforma de expropriação das camadassubalternas de nossa sociedade.
5 REFERtNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. AKSTEIN, David. A função das
seitas espir ituais brasileiras no biopsicossocial(Trahapresent. no VI Cong. PanAmericano de Hipnologia e M~dicina Psicossomática e VCong. Bras. de Hipnologia -mar /78 - RJ).
2. BASTIDE, Roger. Religião afro-brasileira. S. Paulo, pioneira, 1971.
3. FRY, P.H. e HOWE, G. N. "Duasrespostas à aflição: Umbandae Pentecostalismo". in D.§.bate e Crítica, nº 6, jul.75 p. 75-95.
4. RECHEPORT, Madeleine. "Recursos numa comunidade nordestina" (roteiro de filme).
ENDEREÇO DO AUTOR
MUNDICARMO MARIA ROCHA FERRETTIDepartamento de PsicologiaCentro de Ciências SociaisUniversidade Federal do MaranhãoCampus Universitário do Bacanga65.000 - SÃO Lufs-MA.
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