Post on 17-Feb-2021
Representação da Miséria e da Violência no Cinema Brasileiro dos
Anos 60 e na Contemporaneidade
Aluna: Nayara Furtado
Orientador: Rodrigo Nunes
Introdução
O cinema brasileiro pode ser tido como uma ferramenta política que reflete realidades,
ainda que em se tratando muitas vezes de ficções. Foi na década de 30 onde surgiram as
primeiras produções cinematográficas. O cinema brasileiro na década de 60 com o
surgimento do Cinema Novo, possibilitou que várias produções ganhassem notoriedade
até internacional. O contexto do surgimento do Cinema Novo se deu a partir da
insatisfação de cineastas com as situações das artes em geral no Brasil. Este contexto
era marcado pela presença de “mentiras elaboradas de verdade”, como diz Glauber
Rocha, o precursor do Cinema Novo no Brasil em seu manifesto “A Estética da Fome”
(ROCHA, 1965). Estas mentiras tinham haver com a forma como o cinema retratava a
realidade, pois perfumava a miséria e a violência a qual os mais pobres sofriam, por
exemplo.
A repercussão em volta do Cinema Novo se deu pelo seu caráter subversivo ao retratar
os problemas importantes para as cenas política, social, cultural e econômica do país.
Enquanto que os dirigentes do país, os censores, e os comercialistas tinham a intenção
de produzir artes ilusórias sobre a realidade nacional, os cineastas do Cinema Novo
estampavam as realidades tão escondidas de maneira nua e crua. A realidade da miséria
e da violência no país, que é presente há décadas, e assume novas faces ao decorrer dos
anos, era um dos problemas importantes que o Cinema Novo questionava em suas
criações. Filmes com personagens sujas e feias, morando em casas sujas, representavam
tudo o que o “cinema digestivo”1 (apelido atribuído por Glauber a todas as produções
que tinham o único interesse de lucrar, e que só faziam filmes que refletiam a realidade
de pessoas ricas, limpas, com carros luxuosos, com alto poder aquisitivo) não queria
mostrar.
Atualmente com a ascensão do narcotráfico e do tráfico de armas no Brasil; a guerra às
drogas, e a disputa pelo poder político, os debates atuais do cinema estão voltados para
este novo cenário do país. Em se tratando desta violência que atinge majoritariamente as
zonas periféricas, os cineastas, provavelmente influenciados pelo movimento do
Cinema Novo, oferecem então narrativas críticas ao cenário violento atual.
Apresentando mudanças como por exemplo na linguagem, no figurino dos personagens,
no plano-sequência, e outras características peculiares que ilustram assim algumas das
mudanças de um período para outro.
Metodologia
Dado o projeto ser de propensão qualitativa, partimos de um levantamento bibliográfico
de livros, artigos e entrevistas, bem como o levantamento de filmes, para a comparação
dos mesmos nos dois momentos passado e presente. Seguindo em diante, fizemos da
análise dos materiais coletados, com a leitura dos textos, e análise dos filmes, a fim de
compará-los e detectar a representação da miséria e da violência, bem como o debate
em relação ao tema, nos dois períodos, e o que a transformação da representação e do
1 Ibid.
debate a seu respeito pode revelar em termos de mudanças de atitude em relação a estes
dois temas.
Iniciado em agosto de 2016, o projeto começou a partir da leitura de dois clássicos do
filósofo Frantz Fanon, que vem a ser a base teórica do projeto. Pele Negra, Máscara
Branca (1952) e Os Condenados da Terra (1961) são livros que retratam as
consequências psicológicas, físicas e políticas do processo de colonização. O filósofo
apresenta então aspectos econômicos, sociais e culturais da violência utilizada na
colonização, e que trouxeram como consequência o fenômeno da desigualdade social,
portanto, a miséria e a violência.
Após a leitura e o fichamento destes, veio a leitura do artigo de Glauber Rocha A
Estética da Fome (1965), presente no seu livro A Revolução do Cinema Novo (2004) –
sendo este o único livro de Glauber utilizado, com um conjunto de seus artigos –, bem
como a leitura de trechos dos livros do estudioso do cinema brasileiro Ismail Xavier
Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal e
Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome, que formam a bibliografia principal do
projeto. E a partir de então, foi-se caminhando para a análise dos filmes Deus e o Diabo
na Terra do Sol, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), Vidas Secas
(1963); BarraVento (1962); Cinco Vezes Favela, 5x Favela: Agora por nós mesmos
(2010); Cidade de Deus (2002); e Tropa de Elite (2007 e 2010).
Frantz Fanon, a Violência, e a Estética da Fome
O filósofo francês Frantz Fanon (1925-1961) oferece uma discussão acerca do processo
da colonização e das suas consequências psicológicas, sociais, econômicas e culturais
nos países colonizados. Sua análise se remete ao processo de colonização e à
descolonização, indo a partir da forma como a colonização se introduziu na realidade
dos povos colonizados, até o processo violento da descolonização promovida pelos
colonizados. Esta análise tem ligação com o projeto de Glauber Rocha, no sentido de
que o interesse do cineasta era relacionar o processo de colonização da cultura com o
cinema brasileiro, que ao incorporar o modelo euro-americano – voltado para os
interesses da classe dominante –, estaria dando espaço para uma dissimulação da
realidade da miséria e da violência do Brasil.
A colonização se instala em vários âmbitos, constata Fanon. No âmbito das relações
sociais, a colonização tem seus traços mais expostos através da relação de brancos e
negros. Os negros, segundo Fanon, fazem de tudo para serem como os brancos, ou seja,
uma forma de se desprender de sua origem, e se tornarem civilizados, era pensando
como eles, se comportando como eles, falando como eles. O que acaba fazendo com
que o negro renegue sua negritude, sua origem, tornando-se mais branco, mais
“civilizado”. E a adaptação do negro à linguagem metropolitana mostra esta aculturação
(FANON, 1983, p.34). Sua primeira observação foi a linguagem, pois segundo ele, falar
é assumir uma cultura e, portanto, assumir o peso de uma civilização (FANON, 1983,
p.33). A partir de sua observação dos escravos negros da África trazidos para as
Antilhas, ele percebeu que os negros antilhanos incorporaram até os sotaques da língua
francesa, como forma de se estabilizar no mundo colonizador, e isso se dá pela
imposição de civilidade promovida pela colonização. A partir dessa primeira
observação, percebe-se que, aos poucos, os colonizadores foram influenciando os
colonizados de acordo com seus ideais, até que o povo colonizado tomasse a posição de
sua cultura, que Fanon categoriza como “metropolitana” (FANON, 1983, p.34).
A intenção do colonizador é distanciar o nativo de sua “selvageria” (FANON, 1983,
p.34) – até mesmo para não correr riscos de resistência por parte dos nativos, que são
vistos como indivíduos extremamente violentos. Dessa forma, os colonizadores
promovem toda uma “lavagem cerebral” a fim de marginalizar o comportamento dos
nativos, e sobrepor assim a sua cultura. O negro se torna um civilizado, mais discreto; e
até o sotaque da metrópole tenta incorporar, pois sabe-se que a burguesia das Antilhas
só fala a língua “crioulo”2 nas relações com os domésticos. A escola então terá o papel
então de desdenhar do “crioulismo”, desviando o máximo de seu uso. Ou seja, há todo
um cuidado para alinhar o negro a cultura dominante.
A explicação desta transformação é dada a partir da concepção de que a metrópole é o
lugar de onde surgiram importantes intelectuais, e também de onde surgiram os
médicos, os homens de cargos administrativos importantes, etc. Ou seja, existe uma
espécie de feitiço que a metrópole cria em sua volta, que atrai o negro, que fica
deslumbrado, e assim aceitará mais passivamente a dominação. O negro se vê na
necessidade de usar roupas dos europeus; tentar se aproximar da linguagem europeia;
suas formas de civilidade, enfim, todas são características que ao serem adotadas pelo
negro, denotam uma tentativa de se sentir igual ao europeu. Como Fanon tira suas
conclusões baseadas nas observações dos antilhanos, observa a superioridade que os
antilhanos passam aos demais colonizados. O antilhano é considerado mais “evoluído”
que o negro da África, por ser mais próximo do branco (FANON, 1983, p.40). Isso por
se mostrar mais afim de se tornar parte da civilização metropolitana, pois a lógica
funciona da seguinte forma: quanto mais selvagem o colonizado se apresentar, mais
distante do branco ele será (FANON, 1983, p.40).
Como Fanon explica, o negro é marginalizado de todas as formas possíveis, e
aculturado para que se transforme em um branco. E quando no meio desse caminho, se
depara com autores como Marx – que foi responsável pela desconstrução da ideia da
superioridade da classe dominante –, e começa a ter uma postura diferente ao receber o
mesmo tratamento, imediatamente é insultado pelo colonizador como “ingrato”, já que
“nós vos educamos e agora vocês se voltam contra seus benfeitores” (FANON, 1983,
p.48). Em resumo, a colonização além de invadir o terreno dos nativos, e explorar suas
reservas naturais, e os próprios nativos, submetendo-os a escravidão, a fome, e à
miséria, constroem uma ilusão na cabeça destes de que eles necessitam de civilidade.
Para Fanon, mesmo o negro se esforçando para se igualar ao branco, permanece tendo
sua presença rejeitada em sociedade. Desta forma, espera-se que o negro tenha certa
conduta de não reação – que se encolha, que se reprima.
A colonização então atinge um nível imensurável de marginalização do nativo, através
da literatura, onde são publicadas narrativas que estereotipam os negros, provocando
tanto nos europeus, como nos próprios negros, uma aversão ao “ser negro”; através do
teatro, como por exemplo a criação do “black face”3, onde os atores pintavam o rosto de
carvão de cortiça para representar os negros de forma caricata; no próprio cinema, como
o negro estereotipado, que fala algum dialeto africano, entre outras características
estigmatizadoras; e também através da própria palavra cristã, onde o negro era
determinado a uma “maldição corporal” (FANON, 1983, p.101) – termo que me remete
2 “Petit-nègre”, preto-pequeno ou pretinho, é uma expressão que designa uma língua híbrida, uma mistura da língua francesa com várias línguas africanas. O termo “crioulo” é o francês, mais elaborado, dos
territórios “Além-mar” (Antilha) (FANON, 1983, p.35). 3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Blackface
à uma história da Bíblia4 . Assim o “ser negro” seria algo pecaminoso, ou seja, uma
outra forma de inferiorizar o negro colonizado. Outras passagens que Fanon cita da
Bíblia como sendo responsáveis por perpetuar complexos são: “a separação das raças
brancas e negras se prolongará no céu como na Terra, e os nativos acolhidos no Reino
dos Céus serão encaminhados separadamente para certas casas do Pai, mencionadas no
Novo Testamentos”; e “Somos o povo eleito, observe a tonalidade das nossas peles,
outros são negros ou amarelos por causa dos pecados” (FANON, 1983, p.44). Nesse
momento a religião terá um papel importante na catequização dos nativos, para que eles
aceitem a submissão mais passivamente, pois se asseguram que Deus tem um plano e
irá confortá-los quando chegar a hora certa. Assim, atribui-se a Deus a causa dos males
sofridos pelos colonizados, a miséria e a violência a qual são submetidos. Isso facilitará
a crença dos colonizados de que Deus lhes deu esse destino, e que eles têm de aceitar, e
então o colonizado atinge um reequilíbrio interior, e chega a uma serenidade (FANON,
1979, p.44).
O sentido da colonização é se amparar numa alienação a fim de explorar um povo que
considera inferior. E o alienado aceita “na medida em que concebe a cultura europeia
como forma de se desligar de sua raça” (FANON, 1983, p.185). Este alienado é uma
vítima de um regime baseado na exploração de uma raça sobre a outra, no desprezo de
uma cultura para a exaltação de outra tida como superior. E assim, o respeito, a
racionalidade não bastam para combater isso. Segundo Fanon, a solução é a luta. Luta
essa que será necessária para conceber sua existência, usando o combate contra a
exploração, a fome, a miséria (FANON, 1983, p.185).
A sociedade burguesa, aquela que é fechada e que usa da exploração para se promover,
promove a alienação intelectual, e aquele que tomar posição contra isso, é um
revolucionário. E essa alienação é percebida quando se percebe que o negro está
disposto a apagar sua ancestralidade, para querer pertencer ao mundo do branco. Esse
mundo branco é perverso, e organiza de forma racional a desumanização. Em Os
Condenados da Terra, Fanon irá fala do processo de descolonização, e a violência
utilizada pelos colonizados. Se em Pele Negra, Máscara Branca, no livro posterior ele
fala da importância da luta, neste ele irá perpassar pelo processo dessa luta. E para isso,
irá fazer uma análise mais voltada para os âmbitos políticos e econômicos, mas sem
deixar de abordar a questão cultural, e as consequências da colonização.
Primeiro, a descolonização é definida como o encontro de duas forças antagônicas – dos
colonizados e dos colonizadores – que “extraem sua originalidade precisamente dessa
espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial” (FANON,1979,
p.26). Evidente que, assim como o processo de colonização foi violento, não deve haver
outra possibilidade de descolonizar se não for pela violência. Fanon atenta que a
descolonização não pode ser “mágica”, e feita por acordos, já que o interesse é quebrar
todo o sistema colonial. O problema é que o colonizador se infiltrou nas entranhas dos
colonizados, ou seja, o colonizador “moldou” os colonizados, logo, a consequência
disso é a reutilização dos mesmos métodos dos colonos, só que com uma nova maneira,
pois a descolonização é feita por novos homens. Mas a questão é que, há o risco de o
poder permanecer, mas mudar apenas de mão, já que toda a lógica – seja de economia,
de cultura, etc – dos colonizadores foi transmitida para os colonizados.
4 Há uma interpretação sobre a bíblia se referindo a Caim, filho de Adão e Eva, que ao matar seu irmão Abel, foi amaldiçoado com a pele escura (Gênesis 4:15).
Por exemplo, o racismo, que ainda se perpetua – já que há uma opressão sistêmica aos
negros, e os colonos criaram um estigma direcionado aos negros, como visto em Pele
Negra, Máscara Branca, de criaturas selvagens, violentas –, tem de ser quebrado, mas
para que isso aconteça, o sistema colonial precisa ser quebrado, e para isso, Fanon não
vê uma reforma cabível, se não for pela violência (FANON, 1979, p.27).
Descolonização então significa a personificação da frase “os últimos serão os
primeiros” (FANON,1979, p.28), pois significa um triunfo contra a opressão.
Glauber Rocha concorda com a ideia de que a violência é a única possibilidade de o
colonizado enfrentar a dominação a qual lhe é imposta. “Na ‘situação colonial’, estamos
no terreno da contradição, e não no da pura diferença: a afirmação do eu se dá pela
negação do outro que me nega” (XAVIER, 2007, p.184). Diferentemente de Fanon,
Glauber se refere à produção cultural, enquanto o filósofo está retratando um processo
de luta armada em curso na África. As produções culturais brasileiras estariam, segundo
Glauber, embebidas na “situação colonial” por apresentar narrativas de acordo com o
modelo euro-americano de cinema, ou seja, era um tipo de cinema que não provocava
um incômodo, por mostrar uma realidade diferente da miséria que no país ocorria, eram
filmes de “gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo, filmes alegres,
cômicos, rápidos, sem mensagens e de objetivos puramente industriais” (ROCHA,
1965).
O Cinema Novo então era um projeto que visava um discurso para instigar “o Outro”,
ou seja, para a consciência do colonizador – ou do próprio colonizado que ainda se via
pelos olhos do colonizador –, logo fazia sentido para a legitimação do Cinema Novo
não ser afinado de acordo com as convenções desse Outro, que era a indústria
internacional. Assim, a violência proposta por Glauber seria um anúncio de que o
Cinema Novo teria que se afirmar pela sua violência se desvencilhando dos padrões
dessa indústria, negando o conceito vigente, e se libertando frente aos seus cânones.
Portanto, operando de forma a escancarar seu repúdio pela imitação da arte “civilizada”
dessa indústria.
Essa manifestação de violência era no plano simbólico, através de metáforas, e não se
faria nos moldes da convocação à violência, mas também operaria com o pressuposto de
combater a “situação colonial” vivida pela cultura dos autores (XAVIER, 2007, p.184).
A situação que Glauber queria inserir no cinema era uma expressão metafórica das
condições de trabalho não só do povo, mas dos próprios cineastas. Os cineastas
compreenderam o que nem o europeu e nem os próprios brasileiros entenderam: que a
fome a qual o brasileiro era submetido – que o próprio tanto tinha vergonha, e não sabia
sequer de onde vinha – não seria curada apenas pelos “planejamentos de gabinete e que
os remendos do tecnicolor não escondem, mas agravam os tumores” (ROCHA, 1965).
Ou seja, a saída não seria através de uma reforma que tapasse o sol com a peneira, mas
sim através de uma cultura da fome5, que ao construir suas próprias estruturas, poderia
se superar qualitativamente, e a forma mais nobre de manifestação cultural da fome
seria a violência.
O objetivo então era a “afirmação de uma cultura nacional como instrumento de luta, na
medida em que cineasta, músico, teatrólogo e escritor pensam e trabalham no interior
desse modelo” (XAVIER, 2007, p.185), para identificar como o modelo vigente opera,
5 Termo que explica a intenção de Glauber ao impulsionar o Cinema Novo como um cinema voltado para a discussão da fome, da miséria e da violência.
e tentar oferecer algo diferente, existe um esquema de Fanon na caracterização da
atitude do intelectual de frente à colonização:
1. Atitude imitativa, quando o intelectual tem a cultura da Metrópole como padrão, a
toma como Universal, produzindo suas artes de acordo com os padrões dela;
2. Negação da cultura da Metrópole, quando o intelectual tenta preservar sua identidade,
e vai em busca das tradições de sua própria cultura, para recuperá-las. [...] Fanon
comenta as ambiguidades desse gesto, pois conforme o mergulho nesse resgate, a
recuperação pode-se perder no mascaramento da realidade presente, na adesão
conformista a costumes esvaziados de conteúdo, enfim, pode ser um mergulho em um
beco sem saída, ou ser manifestação de um gesto populista, essencialmente paternal.
3. Compreensão da existência de relação recíproca entre luta pela liberdade e formação
da cultura nacional; o intelectual percebe com profundidade, que ‘as verdades na nação
estão, antes de tudo, na sua realidade (atual)’ e vê na luta pela libertação, pela soberania
nacional, o processo que cria as condições para a cultura nacional viva, para a
renovação de expressão. Esta está expressa na consciência de Fanon. (XAVIER, 2007,
p.185-186).
De acordo com tais moldes, na situação brasileira, o filme que mais se aproximaria da
primeira atitude é O Cangaceiro (1953), “por ter uma atitude que funde o imitativo
frente à Metrópole e uma valorização do nacional com tom conservador (face já a um
projeto burguês-populista?). Por outro lado, nos anos 60 torna-se nítida uma vertente
crítica que procura superação de um nacionalismo conservador e formal, e ataca a
primeira atitude, e se debruça sobre a realidade presente e suas verdades, proclamando
uma participação na história nos moldes da terceira atitude apontada por Fanon”
(XAVIER, 2007, p.186-187).
O que Fanon irá definir na primeira atitude como “atitude imitativa”, Glauber Rocha irá
classificar as artes do período no Brasil como esterilidade, como explica no trecho em A
Estética da Fome:
São obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios
formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado
da universalização; artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim,
vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e
poemas; peças teatrais; filmes... [..] (ROCHA, 1965).
Ou seja, o momento da esterilidade é a situação onde as produções culturais estão
confortáveis diante da situação em que estão. Suas produções não fazem referência
nenhuma aos problemas políticos, econômicos e sociais do país. Mas ainda assim, o
“mundo oficial” proporcionou certa notoriedade para estas artes. Por outro lado,
Glauber menciona outra classificação para as artes que destoavam do discurso
enfeitiçado da esterilidade: a histeria:
Um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O
primeiro sintoma é o anarquismo pornográfico que marca a poesia jovem até hoje (e a
pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de
sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte
popular. (ROCHA, 1965).
Entrando assim nas peculiaridades do Cinema Novo que representava a realidade, este
era marcado por ser cru e apresentar, como disse Glauber, “personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens matando para comer, personagens sujas,
feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras” (ROCHA, 1965), foi esta
junção de características que fizeram com que o Cinema Novo fosse identificado pelo
seu “miserabilismo”6, que era condenado “pelo Governo do Estado da Guanabara, pela
Comissão de Seleção para Festivais do Itamarati, pela crítica a serviço dos interesses
oficiais, pelos produtores e pelo público” (ROCHA, 1965) – este último que não
suportava assistir as imagens da miséria, pois estava enfeitiçado pelo cinema “limpo” da
burguesia euro-americana.
Desta forma, o Cinema Novo foi um fenômeno e obteve repercussão internacional
justamente pelo seu compromisso com a verdade, através do seu miserabilismo, que era
apresentado pela literatura na década de 30 como uma denúncia social, e passou a ser
discutido, através do cinema, como problema político. Ou seja, para Glauber o Cinema
Novo teve uma repercussão que o permitiu abrir os debates sobre a situação mais
deplorável do país e dos indivíduos menos favorecidos.
Glauber assim como Fanon argumentaram que a resposta violenta do colonizado à
exploração sofrida não era primitiva – assim como era vista pelo colonizador – mas
revolucionária. A estética da violência tinha como objetivo conscientizar, através de
imagens violentas, o colonizador para que ele compreendesse através do horror, a força
da cultura a qual ele explora. Glauber argumenta ainda, que essa violência não está
integrada ao ódio, mas sim a um humanismo, a um amor que visava a ação e a
transformação (ROCHA, 1965).
Os pensamentos se cruzam ainda quando Fanon, em sua conclusão de Os Condenados
da Terra reforça a necessidade de uma inovação que supere o modelo europeu
econômico e político. Por fim, Fanon aconselha que não se deve criar Estados,
instituições e sociedades inspiradas no modelo europeu – isso se quiser um mundo novo
(FANON, 1979, p. 275). E era essa a intenção de Glauber ao impulsionar o Cinema
Novo, para que este desmembrasse o velho modelo euro-americano de fazer cinema, e
assim inspirar uma nova forma de fazer cinema: humanizando-o, e fazendo-o refletir a
torpe realidade a qual, não só o Brasil, mas toda a América Latina se encontrava por
conta da colonização da cultura.
Resultados e Discussões
A representação da miséria e da violência no cinema nos anos 60 e atualmente
Os filmes aqui selecionados traçam bem as intenções do Cinema Novo ao impactar
aqueles que permaneciam enfeitiçados pelas ideias colonialistas. Ademais, os filmes da
atualidade que foram selecionados, são os que mostram, da forma mais realista também,
a situação do país nos dias de hoje.
Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
Ambos filmes dirigidos por Glauber Rocha apresentam a realidade através de metáforas.
No sertão do Nordeste, marcado pela seca, a fome do povo e a exploração pelos
latifundiários. Deus e o Diabo na Terra do Sol é desenvolvido, com cantigas de cordel, e
um aspecto de tristeza e desesperança. Esta obra nasce da intenção de desprender o
cinema das referências europeias, afim de criar um cinema antropofórmico – no sentido
de utilizar mitos, sejam religiosos, sejam folclóricos, para compor suas produções –
brasileiro. No entanto, é uma obra que se trata mais de um sentimento do que de
reflexão e crítica, onde o sentimento e o romantismo são objeto central do filme
(ROCHA, 2004, p.210). A obra é dotada de personagens históricos concretos, como
6 Termo empregado por Glauber Rocha em “A Estética da Fome” para um dos principais objetivos do movimento: escancarar da miséria existente no país.
caganceiros, coronéis, beatos, o legado de Lampião, Corisco e jagunços – assassinos por
encomenda.
Manuel, um vaqueiro insatisfeito com o coronel Morais, se desentende com ele pois de
dezesseis vacas do coronel, quatro morreram picadas por cobras, e então coronel não
aceita negociar, afirmando que as vacas eram de Manuel, quando na verdade tinham a
marca dele. Manuel ao perceber que sairá prejudicado, inicia uma briga com o coronel,
e em um ato de desespero mata o homem – tal história remete a histórias frequentes da
literatura em que o camponês, desesperado pelas injustiças, mata seu patrão. Manuel
então foge com sua esposa Rosa, e acaba se deparando com um grupo de seguidores do
profeta negro Sebastião, em Monte Santo, lugar que há a promessa de melhoria e fim do
sofrimento através de crenças religiosas.
No ponto crucial do filme, o profeta afirma que “um dia o mar vai virar sertão e o sertão
vai virar mar – que quer dizer que os ricos ficarão pobres, e os pobres ficarão ricos –, e
o sol choverá outro, mas para que isso aconteça, é preciso matar todos os que fazem o
mal, principalmente os padres e as prostitutas”, a partir disso, fica mais claro o que o
filme quer passar: como a ignorância, a fome e a miséria podem induzir o povo a
alucinações e práticas desesperadas. O povo compra a esperança de que chegarão na
Terra Prometida. Enquanto isso, o jagunço Antônio das Mortes, a mando dos
latifundiários e da própria Igreja Católica, é designado para dizimar os seguidores do
beato. E para fugir de Antônio, Manuel e Rosa se juntam a Corisco – cangaceiro que era
do bando de Lampião, e sobreviveu ao massacre promovido por Antônio.
Manuel se entrega para a ilusão da profecia, no entanto se depara com a verdade: se o
sertão vira mar, o religioso vira assassino, mas a Igreja já havia se tornado assassina ao
contratar Antônio para acabar com os infiéis – os seguidores do profeta. Nas
representações, Sebastião e Corisco representam, respectivamente, Deus e o Diabo,
sendo ambos atormentados pela miséria e pela solidão do sertão. A solução do
problema, do sofrimento dos sertanejos é representada na figura de Antônio, que
imagina que eliminando Deus e o Diabo haverá a revolução que irá salvar o sertão.
Antônio então mata o profeta e o cangaceiro, enquanto Manuel, que representa o povo,
escapa e segue seu rumo. O filme marca a realidade brasileira, transmitindo a
mensagem que “o sol seca a terra em que Deus e o Diabo se digladiam” (FAN, 2014).
Têm-se a impressão de que O Dragão da Maldade seja uma continuação de Deus e o
Diabo, já que neste ocorre o retorno de Antônio das Mortes, dos cangaceiros, dos beatos
e a presença do Santo Guerreiro. A marca de Glauber se mostra pela mescla de
didatismo e problematização, mas numa dose ajustada ao padrão da cultura de massa
(XAVIER, 1993, P.265). “O Dragão da Maldade traz a teatralização, o plano-sequência,
a câmera na mão, a fala solene, as longas sequências de reflexão em que as personagens
mergulham na imobilidade e as tensões deságuam sobre o poder, o mito e a história”
(Idem, p.265).
Se passaram vinte e nove anos desde que Antônio achara que tinha matado o último
cangaceiro. Mas Coirana aparece no Jardim das Piranhas para reivindicar comida e
dignidade ao seu povo. O cenário é em plena caatinga, sertão nordestino, com os
mesmos resquícios do cangaço. E então desenvolve o enredo sobre este homem que
quer entender ainda o seu propósito. Glauber ainda utiliza da mistura de cordel e opera,
com imagens estáticas, cantador de cordel, exibindo a cultura brasileira pela dança, por
elementos folclóricos e religião.
Coirana vem acompanhado de Antão, da Santa e do povo. Acontece um duelo entre
Antônio e Coirana, e o cangaceiro é morto. Diante de seu triunfo, Antônio fica com
peso na consciência, e vai conversar com o professor, que representa a intelectualidade
dentro da alegoria. Chega à conclusão de que todos os cangaceiros que matou, o fez
pelos motivos errados, pois o verdadeiro inimigo é o latifundiário – que é o coronel
Horácio, e sua esposa Laura. Antônio entra em um remorso, e não consegue tirar a
imagem da Santa lhe dizendo “Aí, arrebenta a guerra sem fim” – que significa que ele
precisa lutar com o coronel.
No combate final, a batalha então é entre o coronel, Laura, o Mata Vaca contra o
professor e Antônio das Mortes. A santa devolve os pertences de Antônio – perdidos
enquanto ele estava em crise de consciência – para que ele vá até a batalha, e então o
homem segue, e a batalha ocorre em frente à Igreja. O professor toma as armas do
cangaceiro, e afirma que suas mãos são limpas de sangue, mas que quer sujá-las para
vingar o “sertão injustiçado”, e cita as palavras da bíblia “olho por olho, dente por
dente”. O professor pede para que Antônio divida o inimigo com ele, mas Antônio pede
para que o professor lute através de suas ideias – e não da força bruta, como ele –, e
então desafia Mata Vaca. Há um grande tiroteio, Mata Vaca é morto, Antão mata o
coronel, o professor lamenta a morte de Laura, e Antônio segue seu caminho.
Dentro das representações, o dragão é o latifundiário, enquanto o Santo Guerreiro se
transforma no Professor – que pega as armas do cangaceiro Coirana – e Antônio das
Mortes. Segundo Glauber, os papeis sociais não são eternos e imóveis, e que
componentes solidamente conservadores, ou cúmplices do poder, podem vir a mudar e
contribuir para a mudança, mas para isso é necessário que entendam quem é o
verdadeiro Dragão (ROCHA, 2004, p.212). Para o cineasta, a revolução brasileira só
pode ser possível com o encontro das mentalidades místicas e não politizadas como
Antônio, e a tomada de consciência dos camponeses e dos negros analfabetos, pois o
povo tem necessidade da clareza política que a vanguarda intelectual – o Professor –
pode proporcionar (Idem, p. 212-213).
Vidas Secas
Foi gravado no sertão de Alagoas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, sendo uma
narrativa triste que é baseada no livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos. O filme é
sobre Sinhá Vitória, seu marido Fabiano, um vaqueiro rústico, dois filhos, e a cachorra
baleia. Assim como Glauber, Nelson tem como característica a acentuação crua da
miséria, ou seja, retratando fidedignamente a dura realidade da seca do Nordeste. Em
Barravento os personagens estão em um litoral, há a praia, e há fonte de água e outros
alimentos. Enquanto que em Vidas Secas, a situação é envolta de um cenário de extrema
pobreza, falta de água e alimentos.
Sinhá Vitória e Fabiano vão em busca de prosperar, após a seca atingir a fazenda de Seu
Tomás da Bolandeira, onde eles viviam. O objetivo então é conseguir se manter com
sua família. Chegam a uma outra fazenda, onde encontram um casebre e lá tentam se
abrigar. O casal segue instalado no casebre, quando se deparam com o dono da fazenda.
E então é que Fabiano lhe pede para permanecer, e oferece até os seus serviços de
vaqueiro para que sua família seja mantida no local. Quando perguntado sobre como
quer ser pago, escolhe por um bezerro – mostrando sua humildade.
O filme assim como Barravento, possui poucos personagens, e até menos. Os diálogos
são poucos, e curtos. É um filme mais expressivo pela sua fotografia, e não é tão focado
nos diálogos. O que chama atenção no filme é o próprio cenário, onde os personagens
no início têm poucos recursos para se manter, têm de pegar água no poço, ou rios sujos,
roupas maltrapilhas, pouca comida, enfim, o filme representa o retrato dessa cultura da
fome a qual Glauber se refere. Cultura essa que escancara a situação de fome a qual o
brasileiro vive, sobretudo no Nordeste – e não quer enxergar. E que não há nenhuma
perspectiva de mudar a situação.
Sinhá e Fabiano aceitam aquilo que lhes é “dado por Deus”, não há ambição, exceto o
sonho de Sinhá em dormir em uma cama de couro parecida com a do Seu Tomás da
Bolandeira, que é considerado a figura erudita no livro, por poder votar e saber ler. No
filme, ele é lembrado na cena em que Sinhá conta o seu sonho de ter uma cama parecida
com a dele, e Fabiano relembra sua relevância em ser conhecedor de tudo: “Seu Tomás
era homem de leitura, sabia de tudo, até quando ia chover”, afirma Fabiano. Sinhá
também aparenta ter mais conhecimentos que Fabiano, pois ainda consegue fazer
contas. Quando a família já está instalada na fazenda, e Fabiano já desempenha seus
serviços, há mais uma situação que se refere ao mau caráter do dono da fazenda, quando
ele paga menos pelos serviços de Fabiano.
Nesse momento, Fabiano retruca o fazendeiro dizendo que o pagamento está errado, e o
homem ainda assim afirma que está certo pois tirou do pagamento os “juros” que
Fabiano devia por conta de empréstimos que pediu. Quando Fabiano aceita o
pagamento mínimo, mostra como ocorre uma passividade frente à exploração. Fabiano
merecia receber mais pelo seu suado serviço, mas aceitou passivamente sua condição de
submissão. Ao decorrer do filme a família até consegue se estabelecer, comprar roupas
melhores para ir à missa – eis aqui um traço semelhante ao Barravento, a fé como
garantia de melhoria de vida –, comer melhor, mas ainda assim não há perspectiva de
maior ascensão.
Este é um filme mais voltado para a miséria, mas também há violência bruta quando
Fabiano é enquadrado por policiais, pois um deles não aprovou quando Fabiano saiu à
francesa de um jogo de baralho num grupo onde havia esse policial, e então este acusou
o protagonista de ter lhe desacatado, e então os policiais o espancam. É uma cena que
incomoda pela injustiça cometida – Fabiano nada fez para que fosse preso e agredido–,
e pela imposição de superioridade a todo momento por parte da polícia, que também é
pobre.
Por fim, Fabiano sacrifica a cachorra Baleia – talvez por ser uma boca a mais para
alimentar, e por estar “doente”, como afirma Sinhá Vitória. Eis essa uma cena forte,
pois a cachorra não morre de imediato, fica machucada e agoniza –, para o caminho
ficar mais fácil (ROCHA, 2004, p.27) e a família sai da fazenda e vai em busca de outra
moradia. E então permanecem nessa andança, e Sinhá segue com o mesmo sonho da
cama de couro, e ainda querendo botar seus filhos na escola para que eles sejam como o
Seu Tomás.
Barravento
O cenário de Barravento, de Glauber Rocha, é uma típica aldeia de pescadores negros
no litoral da Bahia, e seus antepassados vieram escravos da África, e por conta disso,
sua religião e suas crenças fazem cultos a deuses africanos, logo todo o povo é
dominado por um “misticismo trágico”, como mencionado no início do filme. O termo
Barravento, como explicado no início, é o momento da violência, “quando as coisas de
terra e mar se transformam, quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas
mudanças”.O filme foi gravado numa aldeia em “Buraquinho”, perto de Itapoã, na
Bahia. A narrativa é sobre Firmino, um negro “letrado” que após passar uma temporada
fora da aldeia retorna e se depara com a exploração a qual os nativos são submetidos por
parte dos comerciantes locais. Os nativos são analfabetos e aceitam com passividade a
submissão, e a pobreza a qual vivem. O trabalho consiste em pescar os peixes, e vender
para os comerciantes, que pagam bem mal ao serviço prestado – sequer notei se pagam.
No filme existem traços de Pele Negra, Máscara Branca7, justamente pelo fato de
Firmino ser um negro considerado branco pelos nativos, por ser letrado e por ter ideias
de liberdade, coisa que para os nativos é ilusão. Os pescadores e moradores então
seguem as mães de Santo e o Mestre – protegido de Iemanjá –, segundo as crenças
locais, o Mestre por ser o escolhido, garante tempo bom e pesca farta. Firmino ao se
deparar com a situação dos nativos, tenta a todo custo os “desconstruir” para que eles se
libertem do domínio da religião e das crenças antigas, para que não aceitem mais a
submissão imposta. Os conflitos começam quando Mestre terá de ser substituído pois
está ficando velho, e Iemanjá escolhe Aruã – um dos pescadores mais novos – para ser o
Mestre. Aruã ao se tornar Mestre não pode dormir com outras mulheres, pois Iemanjá é
ciumenta e para não perder o rapaz, o impõe o “celibato”, no entanto o rapaz acaba
sofrendo pois se apaixona por uma jovem branca que vive na aldeia, Naína, filha de
Vicente devoto de Iemanjá. Desta forma, Firmino chega à conclusão de que a única
forma de os nativos mudarem de atitude é se ele mostrar que Aruã não é “santo”. Para
tal, pede a sua amante, Cora, que dê em cima do rapaz e destrua o encanto nele
construído. A amante falha, e por fim, Aruã desafia Firmino a um duelo de capoeira.
Desse modo a narrativa se desenvolve abordando conflitos sociais, em se tratando das
relações amorosas, que propiciam embates corriqueiros entre antagonista e protagonista;
culturais, ao se referir às crenças e à religiosidade dos personagens da narrativa; e
econômicos, ao abordar a exploração dos pescadores, que recebem menos do que
deveriam pelos seus serviços de pesca, por exemplo. O filme perpassa por toda uma
atmosfera de uma vila onde há uma pobreza acentuada, só não é mais semelhante a
Vidas Secas devida a diferença de localidade, e também alguns detalhes técnicos, como
os diálogos, que são mais extensos e contínuos, e por ser um filme que além de
expressivo, também é repleto de diálogos. Além de ser um filme com poucos
personagens, o que facilita mais a compreensão do enredo.
Cinco Vezes Favela e 5x Favela: Agora por Nós Mesmos
Estes dois filmes merecem uma seção própria pois apresentam mais diretamente como o
tema é inserido no cinema brasileiro. E até mesmo porque ambos são divididos em 5
capítulos, e fazem um contraste entre passado e “presente”, já que o primeiro se refere à
realidade daquela época, e o segundo remete à atualidade. O primeiro filme segue
diferentes situações, mas sempre tendo o tema da violência na favela bem acentuado,
com capítulos marcados por um conformismo e um pessimismo. Em Um favelado, João
mora na favela e é agredido por não ter dinheiro para pagar seu aluguel, e desta forma
precisa sair pela rua em busca de um emprego para quitar suas dívidas. E então andando
pela rua encontra um amigo – de classe superior à sua – que o envolve em um assalto, e
acaba mais agredido ainda pelo povo que roubou, povo este de sua mesma classe, e
preso.
Já em Zé da cachorra, fica evidente o tema da passividade do povo. Uma família está
alojada em um barraco onde os ricos querem fazer um prédio. Para tal eles tentam
7 Há também um outro aspecto abordado por Fanon que aparece na narrativa, como a relação de Aruã e Naína, que é um negro e uma branca, e todos os conflitos que os envolvem, a desaprovação do pai da
moça, entre outros aspectos. Isso é retratado por Fanon no terceiro capítulo do livro.
convencer os membros da favela – inclusive Zé – a convencerem a família a sair da
casa. E é quando Zé discorda, e tenta convencer o povo de que a família deve
permanecer, pois os ricos não podem sair por cima, e ter seus interesses triunfados. Por
fim, Zé não consegue convencer ninguém, e a família vai embora em busca de outra
casa.
Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman, é o único capitulo que foge do conformismo
e do pessimismo (GARCIA), apresentando um sinal de intenção de transformação por
parte dos envolvidos. A favela está em cima de uma pedreira que pode desabar por
conta da explosão de dinamites. Os operários tentam então convencer os moradores da
favela que ajude eles a iniciar um movimento de resistência para que a explosão não
aconteça. Há uma questão que torna este o capítulo mais interessante, pois o curta
constrói um personagem coletivo, que é a unção dos explorados, os favelados – que
vivem sob essa condição de risco – e os operários – que são explorados pelo chefe – o
responsável pelas explosões. Logo, todos se juntam para combater um explorador
comum, que por fim é derrotado. É um capítulo que mostra como a consciência coletiva
pode obter êxito em suas causas.
Sobre o segundo filme, os destaques mais relacionados ao tema proposto pelo projeto é
o capítulo Fonte de Renda, que é sobre Maycon, um morador negro e pobre da favela
que realiza o sonho de passar para a universidade pública. Diante dessa nova fase, ele
irá encontrar alguns desafios. Junto com a faculdade, o rapaz trabalha em uma padaria
para ajudar a pagar as contas, e as passagens para ir até a faculdade, e as xerox dos
textos que precisa ler – realidade dos estudantes mais pobres. Maycon conhece Eduardo,
seu colega da faculdade branco de classe que o pede para comprar droga em sua favela
– Maycon recusa de início, mas como Edu oferece bastante dinheiro, ele acaba
aceitando, já que sua mãe cogita até fazer empréstimos com agiota para conseguir
dinheiro.
Edu espalha para os outros estudantes a facilidade de Maycon de conseguir drogas, e o
rapaz acaba ajudando os outros, e ganhando mais dinheiro com isso. E assim Maycon
encontra um jeito de não passar mais apertos financeiros durante sua faculdade. Seu
irmão mais novo acaba ingerindo restos de cocaína que encontrou nas coisas de
Maycon, e vai parar no hospital. Após isso, ele para de “traficar”. O rapaz consegue se
formar, e o capítulo termina de uma forma otimista. O que é bastante interessante no
capítulo, é a diferença de um período para o outro – em se tratando do primeiro filme.
Neste capítulo, já se vê um jovem menos favorecido tendo a oportunidade de entrar em
uma universidade através das cotas raciais. Este é um debate bastante importante, pois
mostra como de lá para cá, algo mudou. No entanto, por mais que o sonho de entrar na
faculdade possa hoje ser realizado, há desafios maiores lá dentro. No caso de Maycon –
e de muitos estudantes – a distância, a alimentação, o transporte, o custo das xerox e dos
livros mostram que é uma grande dificuldade ainda assim, e não basta só entrar, é
preciso se manter.
Em Concerto para violino, o tráfico de drogas é abordado diretamente – ilustrando a
realidade atual, assim como o primeiro ilustrara a realidade da época. Um conjunto de
bandidos, com cordões de ouro no pescoço, com grandes armas na mão, demarcando
bem seu estereótipo, escancarando a violência da favela. Dois amigos de infância, que
seguiram caminhos opostos. Um é policial, e o outro bandido. Se encontram quando J –
o bandido – está foragido pois sua boca está sendo tomada e ele está sendo perseguido
por Tizil, que acaba tomando a boca. O capítulo termina em uma tragédia, pois o
policial executa seus amigos de infância. Enredo que mostra como o sistema sobressai,
nesse caso, o próprio sentimentalismo.
Deixa Voar é o mais sensível de todos. Duas favelas de facções rivais, uma de frente
para a outra, nenhum morador pode cruzá-las, pois se fizer, não sai mais vivo – é a lei
estabelecida pelas duas favelas, em uma demonstração clara de que dentro das favelas
há leis próprias. Até que a pipa de um amigo cai na favela rival, e Flávio por ser
responsável pela perda tem de ir lá recuperar a pipa. Essa é uma forma de trazer o medo
da violência para o filme através do arco adolescente de três amigos. O garoto então
adentra na favela rival, e a cada momento é esperada uma tragédia. Mas ele se depara
com outros adolescentes, que estão com a pipa, mas desconfiam que ele é “alemão”8, e
arrumam confusão. Até que ele é salvo por Alex, que está afim de sua irmã, e por isso o
ajuda a recuperar a pipa e se livrar dos outros. No fim ele aproveita para visitar Carol,
quem ele está interessado, e tudo fica bem. Mostrando também um final otimista diante
da violência que lhes é imposta.
Cidade de Deus
Um retrato cru da forma como funcionavam as coisas na favela da Cidade de Deus. O
filme foi produzido a partir da narrativa escrita por Paulo Lins sobre os acontecimentos
da favela na década de 60, e que viria então a ser dirigida por Fernando Meirelles. Desta
forma, o filme se inicia retratando a vida dos moradores na década de 60, e depois
retrata os anos mais tarde. O cenário é da favela da Cidade de Deus, pois o filme não foi
gravado em estúdio.
A história é de Buscapé – personagem que narra o filme –, um garoto que vive na
favela. Ele começa contando sua história quando era criança e tinha o irmão, Marreco,
que fazia parte do famoso “Trio Ternura” composto por Marreco, Cabeleira e Alicate.
Estes eram os bandidos que dominavam a favela, e junto com eles, duas crianças,
Dadinho e Bené – o segundo sendo irmão de Cabeleira, e ambos personagens
importantes na história. O Trio era responsável por assaltar em prol do bem coletivo dos
moradores da favela – como na cena em que assaltam um caminhão de gás e distribuem
para os moradores. E assim, portanto, eram vistos como “heróis” da favela.
A situação da favela era bastante precária, e ficou pior após uma enchente na cidade e
alguns incêndios provocados pelos bandidos de outras favelas, que fez com que todas as
pessoas atingidas fossem mandadas para a Cidade de Deus. Lá não tinha iluminação,
asfalto, facilidade para transporte, gás, e nenhum outro recurso mais favorável para o
convívio dos moradores. Este filme, dentre os outros, é o que mais se distancia de uma
ficção – quiçá Vidas Secas também se distancie –, pois até os personagens são tirados
da etnografia de Paulo Lins (RIBEIRO, 2000) – e além disso, os próprios atores que
participaram das gravações, são oriundos de favela, e tiveram a oportunidade de
participar do longa.
O Trio Ternura chega ao fim com a morte de Cabeleira – morto pela polícia, de forma
trágica. Inclusive foi neste dia que Buscapé se apaixonou por fotografia, pois viu pela
primeira vez uma câmera fotográfica. Com o crescimento de Buscapé, e das outras
crianças, têm-se um cenário diferente, uma Cidade de Deus já asfaltada, com
iluminação, prédios, vielas acentuadas, mas ainda assim com dificuldade para
transporte, muita pobreza, e falta de saneamento básico.
8 Termo atribuído aos rivais, dentro da favela.
Dadinho cresce, e com 18 anos se torna Zé Pequeno, e toma as “bocas”9 da Cidade de
Deus. É um processo bem demorado, pois ele e seu braço direito, Bené, vão derrubando
boca por boca até dominar toda a favela. Pequeno com toda sua sagacidade só não
consegue a boca de Cenoura, que é aliado do seu maior rival: Mané Galinha. Daí então,
Pequeno acaba se apaixonando pela namorada de Galinha, na festa de despedida de
Bené. Ao ser rejeitado, acaba abusando sexualmente da moça em um beco. Galinha
tenta defender sua namorada, e acaba sendo baleado por Pequeno. Na mesma noite,
Pequeno e seu bando vão até a casa de Galinha, e matam seu irmão, o que faz com que
Galinha declare guerra a Pequeno, e entre no mundo do tráfico, aceitando a proposta de
aliança com Cenoura para combater Pequeno.
A partir de então o filme se desenvolve na grande disputa pelo espaço entre Pequeno e
Galinha, em um embate sanguento repleto de mortes. Por fim, Galinha acaba sendo
morto pela vingança de um rapaz cujo pai foi assassinado por ele no seu período de
ascensão no mundo do crime, enquanto Pequeno é assassinado pelos meninos da “caixa
baixa” – garotos que atormentavam a vida dos moradores realizando pequenos assaltos.
O filme é repleto de peculiaridades, e diálogos compostos por gírias e palavrões, que
oferecem maior veracidade ao enredo. A pobreza e a violência perduram do início ao
fim, mas no final ainda depois de tanta tragédia, Buscapé realiza seu sonho de ser
fotógrafo.
Tropa de Elite
Em Tropa de Elite 1, a história é sobre o capitão Nascimento – personagem que assim
como Buscapé, narra a história – do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) da
polícia militar do Rio de Janeiro, que precisa sair da ativa para cuidar de sua esposa, e
seu filho que está para nascer, e por isso está em busca de um sucessor dentro da
corporação que esteja a sua altura, para tocar o seu trabalho. O pano de fundo da trama é
a repressão ao tráfico de drogas e a corrupção existente na polícia – cenário da violência
urbana do Rio de Janeiro.
A trama então é muito bem desenvolvida, seus personagens são bem construídos através
de estereótipos presentes no senso comum da vida cotidiana dos cariocas. A repressão
da polícia, e o seu embate com os bandidos traça o retrato da violência na narrativa. A
situação a qual os moradores das favelas vivem, com saneamento básico precário, e
risco de morte por conta de bala perdida, evidencia a situação de risco a qual são
submetidos. Um aspecto importante que se observa na trama é a relação de Matias (o
policial negro) com seu mais novo meio social, que é a universidade, pois rapaz entrou
para a melhor faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Lá ele se depara com os
estudantes de uma classe social bem mais alta, e encontra certas dificuldades para se
relacionar com os estudantes, nem por ser negro e pobre, mas porque estes possuem
repulsa por policiais.
Uma das cenas mais marcantes do filme é um debate em sala de aula, onde o grupo de
Matias e Maria está apresentando um trabalho sobre Foucault, e acabam entrando no
assunto da repressão policial. Nesta cena, fica evidente o porquê desses estudantes – os
amigos de Maria, Dudu e Roberta, que fazem parte de uma ONG em uma favela onde
ensinam as crianças a ler e escrever– terem repulsa por policiais, pois sempre tiveram
experiências em “blitz” onde foram rechaçados e acusados de estarem bêbados, ou
9 Abreviação para “Boca de Fumo”, que é onde ocorrem as vendas e compras de drogas, no caso de algumas, a produção dos pacotes.
carregados com drogas, injustamente – pois na maioria das vezes a polícia coloca
drogas na mochila dos estudantes, denotando o desvio de conduta de alguns policiais.
Nesse momento, quando Matias defende a existência de policiais honestos, se
estabelecem os conflitos que ele irá encontrar ao se envolver com o círculo social de
Maria. Seus amigos, Dudu e Roberta, são envolvidos com os traficantes da favela onde
fica a ONG em que trabalham – para manter a ONG funcionando, eles têm que “fechar”
com o comando da favela; e também para terem fácil acesso a compra de drogas. Os
traficantes não permitem o acesso de policiais na área. O filme é marcado por cenas
bastante fortes, tanto no treinamento dos soldados, como o trabalho que eles irão
desempenhar caso entrem para o BOPE. Por exemplo, as cenas de interrogação, onde as
torturas são feitas cobrindo a cabeça do acusado com saco, impedindo sua respiração;
espancamento; gritos e xingamentos. Enquanto os bandidos nem torturam os suspeitos
de “vacilo”10, eles já assassinam de forma sádica, como ocorreu com dois personagens,
Roberta e seu namorado, que foram colocados em pneus e ateados fogo. Essa
diferenciação de tortura mostra como os policiais seguem suas condutas de formação,
enquanto na favela, existem suas próprias leis, que são criadas pelo dono do morro.
A narrativa é muito bem construída num sentido em que até os desafios proporcionados
para os personagens se aproximam da realidade. Muitas pessoas acreditavam que o
capitão Nascimento existia, pois é um personagem que tem uma linguagem, e uma
composição tão bem construídas, que faz com que seja o mais realista possível. Aliás,
todos os diálogos do filme são bastante realistas, pois contém palavrões, contém frases
cômicas, e tudo aquilo que se aproxima da realidade.
Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro
Enquanto o primeiro filme é voltado mais para a relação dos bandidos com a polícia, se
tratando da repressão policial e corrupção da polícia, o segundo filme se voltará mais
para a questão da corrupção interna ao governo do Estado, que influencia diretamente
nos problemas relacionados à segurança pública da cidade. Ou seja, o título do filme ser
Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro, significa que este inimigo não mais é
diretamente o tráfico de drogas, mas sim quem o financia, e o sustenta, logo o sistema.
Toda a rede política estaria diretamente relacionada a um grupo da polícia – que
mantém sua corrupção intacta –, os milicianos.
Na primeira operação do filme, capitão Nascimento se depara com algo que no primeiro
filme não foi abordado, o desempenho do órgão responsável pelos Direitos Humanos no
Rio de Janeiro. Há uma rebelião em Bangu 1, onde o chefe de uma das maiores facções
da cidade mata seus outros dois rivais, gerando uma grande euforia na prisão.
Nascimento estaria então com sua equipe preparada para matar o chefe, quando este
obriga a presenta de Diogo Fraga, um defensor dos Direitos Humanos – e futuro
candidato a deputado estadual.
Fraga chega a prisão, e enquanto está negociando com o chefe, Matias está a postos
esperando o sinal de Nascimento para atirar na cabeça do chefe. Ele se precipita e acaba
finalizando o chefe com um tiro na cabeça. A situação ganha grande repercussão, pois
como Fraga aceitou ser refém do chefe para libertar outros reféns, acabou tendo sua
roupa toda manchada de sangue, e sua camisa escrita “Direitos Humanos” acaba sendo
fotografada suja de sangue, e exibida pela mídia, gerando um desconforto entre o
10 Termo utilizado na linguagem da favela para denotar aqueles que fogem a conduta imposta pelos donos do morro.
Estado e os defensores dos Direitos Humanos. A situação muda quando capitão
Nascimento é afastado do BOPE pelo governador, e inserido no grampo da Segurança
Pública da cidade, como Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Lá ele
poderá atuar no grampo, e ter acesso a todas as ligações telefônicas de quem quiser.
Com isso, ele descobre que o inimigo é sim outro, os políticos envolvidos com a
milícia, incluindo o próprio governador. A trama então se desenvolve nessa busca sobre
como funciona o sistema, e como combate-lo, já que é responsável pela pobreza,
violência, e todo o caos da cidade.
A milícia uma vez que toma a boca de alguma facção instala suas próprias regras na
favela – o que é real. Cabo de televisão, internet, luz, gás, e até água tem de ser pagos
para os milicianos – estes que fazem parte da corporação de Matias, a mesma do
primeiro filme. Quando chega a eleição, onde o governador Guaracy será reeleito, uma
jornalista amiga de Fraga descobre que os milicianos estariam ajudando o governador
em sua campanha. Os milicianos flagram ela e um colega, e acabam os executando.
Quando eles pegam seu celular, descobrem que seu último contato foi com Fraga, que
passa a ser o novo alvo.
Nascimento então escuta todos os esquemas dos criminosos pelo grampo, e acaba
descobrindo que Fraga é o alvo, e então vai até sua casa para alertá-lo. Sua ex esposa,
agora esposa de Fraga, está com ele e o filho de Nascimento. Quando eles chegam,
acontecem trocas de tiros entre os “capangas” da milícia e Nascimento, até que seu filho
é baleado e fica entre a vida e a morte. Motivado pelo coma de seu filho, e o
ressentimento da morte de Matias – que foi morto pelos milicianos, por descobrir um
esquema envolvendo armas –, Nascimento se prontifica a ir até uma plenária que Fraga
o convoca, e dá o seu depoimento sobre tudo o que descobriu dentro do grampo da
segurança Pública do Rio. Por fim, através de sua denúncia, muitos políticos corruptos
acabam sendo presos. No entanto, o sistema continua, e se renova.
Tanto o primeiro filme da franquia, quanto o segundo irão abordar o sistema de uma
forma mais aprofundada. A atmosfera do primeiro filme é toda de Matias e seus
conflitos entre sua cor e classe, vive os dilemas de um policial honesto. O segundo já
foca mais nos conflitos do capitão Nascimento dentro do sistema de segurança pública
da cidade. A linguagem dos filmes, a composição dos personagens, os estereótipos e os
desafios dados a eles são bastante realistas. Talvez essas características fazem com que
seja um filme bastante repercutido até hoje. E também a profundidade do debate
proposto, pois é um filme que se aprofunda mais na questão do sistema, diferentemente
de Cidade de Deus, que é mais voltado para a realidade crua da favela.
A transformação do debate e da representação da miséria e da violência de um
período para o outro
Em A Estética do Sonho, de 1971, Glauber irá adentrar mais sobre os debates que
cercavam o período da década de 60 (ROCHA, 2004, p.217) Para ele a arte e a
revolução estariam ligadas à pobreza no sentido em que a arte revolucionária viria
diante da necessidade que o artista tinha de oferecer respostas revolucionárias à situação
da miséria e da violência, e também da “evolução sutil dos conceitos reformistas da
ideologia imperialista” (ROCHA, 1971, p.218), e que tais propostas não deveriam ser
aceitas, pois como já citado, a revolução seria a única fonte de reais mudanças.
Segundo ele, a arte revolucionária “deve atuar de modo imediatamente político e
promover especulação filosófica”, ele acusa que a existência descontínua desta arte no
Terceiro Mundo se dá por conta das repressões do “racionalismo” imposto pela
colonização. Dessa forma, o sistema cultural, tanto da esquerda quanto da direita, está
preso à razão conservadora, tanto que Glauber atribui o fracasso da esquerda no Brasil
ao vício colonizador (Idem, 1971, p.219), pois suas respostas em relação ao tema central
dos conflitos do país – as massas pobres – foram, ao ver de Glauber, paternalistas.
Enquanto a direita pensa sob a razão da ordem e do desenvolvimento, “sua tecnologia é
ideal de um poder que tem como ideologia o domínio do homem pelo consumo”. Tanto
que afirma ainda: “a razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo”,
logo, “essa colonização que predomina todos os âmbitos impossibilita uma ideologia
revolucionária integral que teria na arte sua expressão maior, porque somente a arte
pode se aproximar do homem na profundidade que o sonho desta compreensão possa
permitir” (Idem, 1971, p.219-220), logo romper os laços com esses racionalismos seria
a única opção.
A revolução para Glauber é a “anti-razão” que interliga as tensões e as rebeliões do
fenômeno mais irracional: a pobreza. Esta oferece uma carga pesada ao psicológico de
cada homem, e o induz a dois raciocínios: “um fatalista e submisso à razão que o
explora como escravo; e o outro que o pobre não pode explicar o absurdo de sua
pobreza pois ela é naturalmente mística” (ROCHA, 1971, p.220) – misticismo este
reprimido pela razão dominadora, que o tem como irracional, seja religioso, seja
político.
Ou seja, o pobre só é condicionado a estes dois pensamentos, menos o da revolução, o
da luta para que mude sua situação. Logo a revolução tende a fracassar quando o pobre
rebelde não se liberta totalmente da razão repressiva, e também quando o método e a
ideologia se confundem de forma a frear a luta. Conforme a “desrazão” – a tentativa de
libertar o pobre das garras da razão dominadora – planeja as revoluções, a razão planeja
uma repressão. Dessa forma, enquanto o misticismo da pobreza trabalha para manter o
esquema de opressão, a revolução como uma mágica – pois é imprevista dentro da razão
dominadora – pode ser a única forma de triunfo dos rebeldes.
Logo, para Glauber, o irracionalismo pode vir a ser a arma mais forte do revolucionário,
assim como o encontro de revolucionários desligados da razão burguesa – as raízes
índias e negras do povo devem ser compreendidas como a única força desenvolvida no
continente Latino Americano, pois nossas classes médias e burguesias são caricaturas
das sociedades colonizadoras, lembra Glauber –, com as estruturas significativas da
cultura popular, pode vir a ser a primeira configuração de um novo signo revolucionário
(ROCHA, 1971, p.221).
Assim, a arte revolucionária deve ser mágica e enfeitiçar o homem a ponto de ele não
suportar mais a realidade. A raça pobre e sem destino deverá elaborar no misticismo sua
liberdade, mas através dos “Deuses Afro-índios” que negarão o colonialismo do
catolicismo, que é uma feitiçaria de repressão e redenção moral dos ricos (ROCHA,
1971, p.221). Conclui-se que é uma proposta de debate voltado para a revolução da arte,
para que se desvencilhe do colonialismo em todos os seus âmbitos, para que haja a
superação da pobreza.
Enquanto nos dias atuais, o debate proposto pelos cineastas Fernando Meirelles e José
Padilha é mais voltado para uma nova cara da pobreza e da violência. Ambas não foram
superadas. Só que os conflitos atuais relacionados ao tráfico de drogas, a repressão
policial e a corrupção – da polícia (em ambos filmes), e dos políticos (em Tropa de Elite
2) –, envolvem um debate mais voltado para as políticas públicas – sobretudo a
segurança pública, e como o Estado opera diante do novo quadro.
José Padilha ao dirigir os longas Tropa de Elite 1 e 2, quando perguntado – em uma
entrevista para a revista Rolling Stone, de 2010, por Rodrigo Salem11 – sobre o que é o
segundo filme, afirmou que seu debate sobre a realidade é retratado no filme de modo a
tentar responder suas perguntas, e tentar despertar no público suas próprias
interpretações e perguntas acerca do tema. O debate que o cineasta acende no segundo
filme então é sobre como o Estado participa na ascensão da violência urbana, por conta
da má administração das cadeias que estão superlotadas, no descaso com os meninos de
rua – que estão na rua por conta da pobreza e falta de educação as quais são submetidos.
Padilha ao afirmar que “a violência urbana é alta pois fazemos isso a nós mesmos”
(PADILHA, 2010) se refere às nossas más escolhas para nossos dirigentes.
Nesse ponto se percebe uma diferenciação dos contextos em que ambos os cinemas –
Cinema Novo, e o cinema da atualidade – estão inseridos. Quando Glauber Rocha
impulsiona a ideia de revolução dentro do movimento, o objetivo seria também uma
luta contra a repressão que estava ocorrendo no período do golpe militar, onde o
“cinema digestivo” – cujo objetivo era despistar o povo, e até mesmo os outros países,
dos problemas sociais do país – ganhou peso, “ameaçando sistematicamente o Cinema
Novo” (ROCHA, 1965).
O fato é que naquele período, os intelectuais, os cineastas, pintores, músicos, escritores
teatrólogos estariam em peso empenhados em alertar o povo dos problemas da ditadura,
e o Cinema Novo, junto com outros movimentos culturais – teatro do oprimido,
tropicalismo – seriam importantes para ajudar na luta. Claro que o plano do Cinema
Novo era prolongar o movimento, para que o cinema brasileiro fosse revolucionado,
afim de buscar resoluções para os problemas sociais, culturais e econômicos. Mas nesse
momento específico, era emergente que os movimentos se juntassem à luta.
Já nos dias atuais, em que a democracia está consolidada, o povo tem o poder de eleger
os seus dirigentes. E é por conta disso que Padilha afirma que nós mesmos somos
culpados pela má organização existente no governo, já que nós o elegemos. Os dois
filmes conversam ao fazer um aprofundamento de como funciona a corrupção que vai
de dentro do governo até o último cabo da corporação da polícia militar. Essa é uma
diferença de um período para o outro. E o que une um período ao outro, é observar o
antro dos problemas do país.
No filme de Meirelles – cineasta que se aproxima bastante do Cinema Novo, tanto no
sentido técnico como na fidedignidade do roteiro –, por retratar a história contada por
Paulo Lins, é um filme que irá ler a Cidade de Deus. Um conjunto habitacional
localizado em uma das áreas de maior valor e crescimento imobiliários, a Barra da
Tijuca, no Rio de Janeiro. Com condições habitacionais péssimas, sem saneamento
básico, transporte, asfaltamento de rua, iluminação, etc. A população que ali vivia foi
acostumada a um cotidiano de tragédias e a estar nas páginas dos jornais cariocas e
nacionais por suas cenas de violência, fosse provocada ou fosse sendo vítima dela
(RIBEIRO, 2000). Aqui se vê, portanto, o cinema despertando ainda um debate sobre a
realidade das favelas.
Conclusões
A partir do material analisado, têm-se alguns aspectos que apontam respostas parciais
para a problemática proposta, isto é, quais aspectos diferenciam a representação da
miséria e da violência no cinema brasileiro dos anos 60 para o atual. Os aspectos
11 Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/48/jose-padilha#imagem0
http://rollingstone.uol.com.br/edicao/48/jose-padilha#imagem0
observados são: a proposta de debate, a linguagem e a estética. As propostas de debates
não mudaram radicalmente, mas foram transformadas ao decorrer do tempo de acordo
com as mudanças que ocorreram na sociedade – que nem são tão acentuadas assim.
Exemplificando, como mencionado anteriormente, o que Glauber queria era
desmistificar o cinema brasileiro do “enfeitiçamento” do colonialismo promovido pelo
modelo do cinema euro-americano, que fazia com que o povo se iludisse e acreditasse
que os problemas sociais do Brasil não eram agravantes.
Desta forma, ao inovar o cinema com o movimento do Cinema Novo – exibindo
imagens fortes que refletiam fidedignamente a realidade dos problemas sociais,
culturais e econômicos – o cinema poderia despertar no espectador a ideia de que não é
através de reformas e uma simples conversa que a situação iria mudar, mas sim com
uma luta revolucionária. Assim, o movimento promoveu debates relacionados a
situação precária dos Nordestinos (Deus e o Diabo, Vidas Secas, Barravento), e também
dos Cariocas (Cinco Vezes Favela), levando assim ao espectador imagens da realidade
miserável e violenta dos brasileiros.
Enquanto que nos dias atuais, a situação miserável e violenta ainda é perene, no entanto
já possui características que destoam do passado: a entrada do negro na universidade
por conta das cotas; recursos como luz, água, gás, e transportes inseridos nas favelas,
por exemplo. A miséria e a violência são ainda constantemente reproduzidas pelo
cinema brasileiro, mas o debate despertado por ele hoje é acerca do tráfico de drogas e
da repressão policial, e o antro dos problemas relacionados a estes: a política.
Mostrando assim, que este é um aspecto semelhante ao do Cinema Novo, só que
renovado e de acordo com os interesses atuais.
Os outros dois aspectos são os que mais destoam de um período para o outro. A
linguagem dos filmes do Cinema Novo aqui analisados se mostra, em sua totalidade,
diferentes da linguagem dos filmes do cinema atual analisados. Os filmes do período
passado não possuíam palavrões, e eram carregados de uma teatralidade que fornecia
uma linguagem mais formal, ainda que com sotaques e palavras típicas das regiões
retratadas. Já nos filmes atuais, os palavrões são a marca dos indivíduos retratados nos
filmes. Quanto a estética, o plano-sequência é um legado do Cinema Novo, e ainda é
constantemente presente nos filmes. No entanto, com novos recursos, câmeras de última
geração, e equipes bem mais completas – o mantra do Cinema Novo “uma câmera na
mão e uma ideia na cabeça” não é mais tão presente –, fazem com que os filmes
ofereçam uma melhor qualidade.
Referências Bibliográficas
FILMES
[1] CINCO Vezes Favela (1962). Direção: Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá
Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, e Leon Hirszman. Produção: Leon Hirszman,
Marcos Farias e Paulo Cezar Saraceni. Rio de Janeiro: CPC (Centro Popular de Cultura)
da União Nacional dos Estudantes. (92 min).
[2] 5X FAVELA Agora por Nós Mesmos (2010). Direção: Manaíra Carneiro, Wagner
Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, e Cadu Barcellos. Produção:
RenataAlmeida Magalhães e Carlos Diegues. Rio de Janeiro: Tereza Gonzalez. (103
min).
[3] CIDADE de Deus (2002). Direção: Fernando Meirelles. Produção: Andrea Barata
Ribeiro e Maurício Andrade Ramos. Rio de Janeiro: Imagem Filmes. 1 DVD (130 min).
[4] BARRA Vento (1962). Direção: Glauber Rocha. Produção: Iglu Filmes. Bahia: Iglu
Filmes. (74 min).
[5] DEUS e o Diabo na Terra do Sol (1963). Direção: Glauber Rocha. Brasil: Produções
Cinematográficas Herbert Richers. (125 min). Roteiro Original disponível em:
http://www.tempoglauber.com.br/ma_roteiro.html
[7] O DRAGÃO da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Direção: Glauber
Rocha. Produção: Mapa Filmes. Rio de Janeiro: Mapa Filmes. (95 min).
[8] VIDAS Secas (1963). Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Herbert
Richers, Luiz Carlos Barreto, e Danilo Trelles. Alagoas: Hebert Richers Produções
Cinematográficas. (103 min).
[10] TROPA de Elite (2007). Direção: José Padilha. Produção: José Padilha e Marcos
Prado. Rio de Janeiro: Universal Pictures Brasil. 1 DVD (114 min).
[11] TROPA de Elite 2 (2010). Direção: José Padilha. Produção: José Padilha e Marcos
Prado. Rio de Janeiro: Zazen Produções. (115 min).
LIVROS
[12] FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.
[13] FANON, Frantz. Pele Negra. Máscaras Brancas. Rio de Janeiro: Ed. Fator, 1983.
[14] ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
[15] ______________. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify,
2003.
[16] XAVIER, I. N. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome - 2a. edição com
nova apresentação. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007. v. 1. 232 p.
[17] ___________. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo e
cinema marginal. São Paulo: Brasiliense. 1993.
ARTIGOS
[18] ROCHA, Glauber. “A Estética da Fome”. Publicado em 1965. Disponível em:
http://www.temnoglauber.com.br/t_estetica.html
[19] RIBEIRO, Paulo Jorge. Cidade de Deus: memória e etnografia em Paulo Lins.
Lugar Comum Estudos de Mídia Cultura e Democracia, Rio de Janeiro, v. 11, n.mai-
ago, p. 73-98, 2000.
[20] MENEZES, Paulo. “Tropa de Elite: perigosas ambiguidades”. 14/05/2012.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092013000100005
ENTREVISTAS
[21] SALEM, Rodrigo. Entrevista com José Padilha. In: Revista Rolling Stone.
Publicada em: 09/2010. Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/48/jose-
padilha#imagem0
CRÍTICAS
[22] RITTER FAN, Crítica: Deus e o Diabo na Terra do Sol. In: Plano Crítico.
Disponível em: http://www.planocritico.com/critica-deus-e-o-diabo-na-terra-do-sol/
[23] GARCIA, Estevão. Cinco Vezes Favela. In: Revista Contracampo. Disponível em:
http://www.contracampo.com.br/64/cincovezesfavela.htm.
[24] AUGUSTO, Heitor. Crítica 5x Favela Agora por nós mesmos. In: Cineclick.
Publicado em: 1/9/2010. Disponível em: https://www.cineclick.com.br/criticas/5x-
favela-agora-por-nos-mesmos