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IVANIA VALIN SUSIN
RETRATOS DE ARQUITETURA MODERNA
ACERVO EDMUNDO GARDOLINSKI (1936-1952)
Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do
título de Mestre em História.
Orientador: Profa Drª Silvana Rubino
CAMPINAS
2010
ii
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecária: Cecília Maria Jorge Nicolau CRB nº 3387
Título em inglês: Portraits of modern architecture: collection Edmundo
Gardolinski (1936-1952)
Palavras chaves em inglês (keywords) :
Área de Concentração: Política, Memória e Cidades
Titulação: Mestre em História
Banca examinadora:
Data da defesa: 20-12-2010
Programa de Pós-Graduação: História
Photography
Photography – Portraits – Private
collections
Memory
Architecture , Modern
Silvana Barbosa Rubino, Vania Carneiro de Carvalho,
Iara Lis Schiavinatto
Susin, Ivania Valin
Su81r Retratos de arquitetura moderna: Acervo Edmundo
Gardolinski (1936-1952) / Ivania Valin Susin. - - Campinas, SP : [s. n.],
2010.
Orientador: Silvana Barbosa Rubino.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Gardolinski, Edmundo, 1914-1974. 2. Fotografia.
3. Fotografia – Retratos – Coleções particulares. 4. Memória.
5. Arquitetura moderna. I. Rubino, Silvana Barbosa.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. III.Título.
v
Para minha mãe, meu primeiro exemplo de amor.
E para Pita, amor pra vida inteira.
vii
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Silvana Rubino pela orientação sempre presente e que foi além, tornando-se
admiração e exemplo. Por muito tempo, vou lembrar-me das conversas despretensiosas que
iluminavam vários dos meus confusos argumentos, transformando-os em parágrafos
precisos. Pela tranqüilidade e segurança que me passou durante todo esse processo, serei
eternamente grata.
Ao Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt por ter me apresentado o Acervo Edmundo Gardolinski
em 2005. E por ter permitido que eu me envolvesse com a pesquisa, mesmo sem dispor do
tempo suficiente para tornar-me bolsista do projeto. Sou grata por nossa relação ter se
transformado em amizade. Meu eterno respeito, admiração e agradecimento.
Às Profas. Dras. Cristina Meneguello e Vânia Carneiro de Carvalho pelos comentários
essenciais durante meu Exame de Qualificação, responsáveis por uma importante mudança
metodológica que tornou possível conciliar as fontes e os conceitos nesta pesquisa. Meus
agradecimentos pelas críticas, pela leitura atenciosa e pelos encaminhamentos sugeridos.
Ao meu grande amigo e historiador Evandro dos Santos, por ler meu texto com olhar
atento, sempre disposto a conversar e discutir sobre os problemas e as soluções. Quero
poder contar com sua avaliação em todos os meus trabalhos, e com nossas conversas,
durante toda a minha vida. Ademais, nossa amizade vai muito além de um trabalho
acadêmico. Muito obrigada por isso!
Aos meus grandes amigos Tiago Dias e Rafael Felice Dias pela revisão cuidadosa do texto
da dissertação. Sou grata pela parceria durante esta conquista e em todos os momentos
menos formais. A amizade de vocês me deixa forte e confiante. Obrigada!
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela bolsa concedida ao longo
de dois anos de pesquisa, sem a qual não teria conseguido dedicar-me integralmente a este
trabalho.
ix
RESUMO
O Acervo Edmundo Gardolinski constitui-se no principal conjunto documental
desta pesquisa. Gardolinski (1914-1974) era descendente de poloneses, engenheiro civil e
fotógrafo amador. Seu acervo consiste em uma coleção de vestígios particulares de
inúmeros temas da vida pessoal e profissional, arquivados em diferentes suportes. São
livros, jornais e revistas, cartas, anotações pessoais e fotografias. Do conjunto documental,
selecionei apenas a porção fotográfica e, a partir dele, as fotografias da construção da Vila
do IAPI, em Porto Alegre – o mais importante projeto profissional da vida de Gardolinski.
O objetivo da pesquisa é inserir-se nos debates sobre o uso da fotografia em trabalhos
históricos, considerando a imagem técnica como um artefato material, autônomo e
independente de seu autor ou referente. A análise inclui a circulação e a influência dos
objetos na relação entre eles e os sujeitos, e entre os sujeitos. Além disso, as fotografias são
entendidas enquanto suportes de uma memória arquivada, ao conformar uma imagem de si
do sujeito, ao mesmo tempo em que criam uma nova visualidade para a Vila do IAPI.
Palavras-Chave: Fotografia, Fotografia - coleções particulares, Memória, Arquitetura
Moderna.
xi
ABSTRACT
The Collection Edmundo Gardolinski constitutes the main set of documents of this
research. Gardolinski (1914-1974) was a descendant of Polish immigrants, civil engineer
and amateur photographer. His collection consists of a compilation of particular traces of
numerous issues of his personal and professional life, archived on various media. It is
composed of books, newspapers and magazines, letters, personal notes and photographs.
Within this collection, I have only selected the photography portion and, among them, the
photographs of the construction of Vila do IAPI in Porto Alegre - the most important
project of Gardolinski's professional life. The purpose of the research is to promote an
insertion in debates about the use of photography in historical works, considering the
technical image as a physical artifact, autonomous and independent of its author or referent.
The analysis includes the circulation and the influence of the objects in the relationship
between such objects and the subjects, as well as between subjects. Moreover, the
photographs are seen as carriers of a filed memory, since it conforms an image the subject
itself, while creating a new visuality for the Vila do IAPI.
Keywords: Photography, Photography – Portraits – Private collections, Memory,
Architecture, Modern.
xiii
SUMÁRIO
1. Introdução................................................................................1
2. O Acervo Fotográfico Edmundo Gardolinski: documentos
pessoais em um espaço público..................................................13
3. A visualidade instaurada pelo Acervo de Edmundo
Gardolinski.................................................................................39
4. A fotografia como suporte da memória...............................139
5. Conclusão.............................................................................163
6. Bibliografia..........................................................................171
xv
“O movimento, ocupação de diferentes lugares em
diferentes momentos, é inconcebível sem tempo;
também o é a imobilidade, ocupação de um mesmo
lugar em diferentes momentos do tempo. Como pude
não sentir que a eternidade, almejada com amor por
tantos poetas, é um artifício esplêndido que nos livra,
mesmo que de maneira fugaz, da intolerável opressão
da sucessividade?”
Jorge Luis Borges
1
1. Introdução
Esta pesquisa tem por fonte o Acervo Edmundo Gardolinski, em sua porção
fotográfica referente à Vila do IAPI – bairro popular construído em meados do século XX,
na cidade de Porto Alegre. Tal conjunto de fotografias relaciona-se com episódios diversos
dentro do processo de construção e estabilização do bairro, bem como solenidades,
inaugurações e outros eventos.
Edmundo Gardolinski nasceu em 22 de Abril de 1914, na cidade de São Mateus do
Sul, no Paraná. Era Engenheiro-Civil e mudou-se para Porto Alegre nos anos 40, já
integrando a equipe que coordenaria a construção da Vila do IAPI na cidade. Gardolinski
era descendente de poloneses (e defendia fortemente valores morais e conservadores, o
apego à família, o apreço pela educação e pela religião – segundo ele, características dos
imigrantes poloneses), católico praticante e ativista de direita - inclusive tentou ingressar na
vida política candidatando-se a deputado estadual em 1954, sem sucesso.
Por outro lado, interessava-se por assuntos e ofícios modernos, como a fotografia, o
cinema, as artes e a literatura. Aparentando certa tensão entre o moderno e o conservador,
acabou por projetar um bairro com objetivos sociais modernistas – quais sejam: a habitação
operária de baixo custo que define, juntamente com outras mudanças nos planos urbanos,
novos usos e sentidos para as cidades industriais – porém, com características físicas de
modelos considerados conservadores, tal qual era a ideologia do Estado Novo por detrás
dessas construções. O modelo cidade-jardim, escolhido no projeto da Vila, é o mesmo que
serviu de inspiração à construção dos bairros-jardins, presentes em grande parte das cidades
brasileiras, com alto valor no mercado imobiliário e só acessível às classes mais abastadas.
Sabe-se que no Brasil, a industrialização ocorre tardiamente se comparada a países
como a Inglaterra, por exemplo, onde as primeiras indústrias datam de meados do século
XIX. Da mesma forma, é somente na década de 1910 que se verificam as primeiras
reivindicações de “reformadores” quanto às grandes cidades, influenciados por ingleses e
franceses, sobretudo. Além disso, outra especificidade do caso brasileiro era a própria
situação política do país e da classe trabalhadora que, segundo um ideal de Nação, deveria
2
ser incluída nas políticas estatais, por meio do assistencialismo e da construção de
residências apropriadas. Neste momento, os engenheiros-arquitetos assumem o papel de
técnicos da política modernista do período, posto ocupado anteriormente pelos médicos e
higienistas nos primeiros esforços de urbanização e aplicação de medidas sanitaristas ao
longo do século XIX.
Alcir Lenharo1 analisa o momento em que o discurso da Engenharia Civil cruzou-se
com o projeto do Estado Novo, pelo interesse comum e a emergência de um discurso para a
habitação proletária enquanto responsabilidade social e a aplicação de novas formas de
controle. Também no tocante a esta política, o trabalho de Robert M. Levine2, contextualiza
as ações paternalistas de Getúlio Vargas depois de 1938, especificamente, quando:
“A maneira de falar de Vargas evoluiu. Antes de 1938, ele dizia “meu governo”,
“nossa organização”, “vossa vontade”; mas, no decorrer de 1938, sob a
orientação atenta do Departamento de Propaganda, passou a usar a palavra
“eu”. Tinha feito a transição para uma identificação de si próprio com as
massas, a que se dirigia como “trabalhadores do Brasil”, e as expressões que
usava eliminavam quaisquer intermediários entre o povo e o governo. Deixava
naquele momento muito claro que estava ao lado das massas; que ele e o povo
eram um só. Vargas rogou aos brasileiros que celebrassem a dignidade do
trabalho e os valores tradicionais. (...) Para Vargas, incutir um senso de
identidade nacional afirmativo e comum a todos constituía-se no esforço
prioritário de seu governo.”
No Rio Grande do Sul, como em boa parte dos estados brasileiros no período,
ocorre um grande surto migratório do campo para a cidade, aliado a um crescimento
demográfico expressivo. A iniciativa do governo para as moradias populares materializa-se
em Porto Alegre na construção do Conjunto Residencial Passo d‟Areia, ou Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários, em 31 de dezembro de 1936, por meio do
Decreto Lei 367. O IAPI, como ficou conhecido, é inaugurado em 1952.
Edmundo Gardolinski participa como Engenheiro-Chefe do DIO (Distrito de
Obras), órgão responsável por coordenar todo o processo da construção dos edifícios. Por
interessar-se por fotografia e possuir equipamento próprio, registrou todas as etapas de
construção e ocupação do bairro e transformou essas imagens em narrativas dentro do
acervo, compondo extensos álbuns. Muitas imagens, porém, foram produzidas por outro
1 LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986.
2 LEVINE, Robert M. Pai Dos Pobres? Brasil Na Era Vargas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
3
fotógrafo: o russo Nikolaj Lenskij, do foto estúdio Nick, que ocasionalmente acompanhava
Gardolinski em suas visitas às obras.
No projeto da Vila do IAPI, Gardolinski - enquanto Engenheiro - utilizou as
referências do modelo de cidade-jardim, considerado, apesar de revolucionário, pouco
moderno quando comparado às Unités d‟Habitation, de Le Corbusier3 – modelo preferido,
inclusive, pelos arquitetos modernistas no Brasil. Porém, o objetivo do projeto era
modernizar a cidade de Porto Alegre, conforme escreveu Gardolinski no Jornal dos
Iapiários4, em 1953: “É uma verdadeira cidade moderna que surge na antiga „Fazenda da
Vva. Pires‟ e que, sem favor algum, será maior do que a maioria das nossas cidades, sob
diversos aspectos.”
André Lapolli5 trata a Vila do IAPI como contrária aos padrões modernistas
vigentes na arquitetura brasileira, no período. O projeto assemelhava-se mais a tendências
neocoloniais, com características de uma busca pelo passado rural, longe das grandes
metrópoles emergentes. Para Lapolli é clara a influência da arquitetura moderna inglesa
praticada no modelo das cidades - jardins de Ebenezer Howard6 no final do século XIX.
Com isso, a Vila do IAPI diferencia-se de outras obras realizadas pelo Instituto,
visto que seu projeto aproxima-se mais da linha culturalista, “que procura resgatar uma
característica de ocupação do solo que combinava a aldeia e a cidade (...) onde as
facilidades da cidade se mesclavam com a qualidade de vida no campo.” 7 José Lourenço
3 Conjuntos habitacionais verticalizados, com baixo custo de material e construção. Foi projetado por Le
Corbusier após a Segunda Guerra Mundial, como uma das medidas do plano de reconstrução do governo
francês. Nas décadas seguintes, o modelo foi adotado por arquitetos modernistas em larga escala na habitação
popular voltada às classes trabalhadoras. O primeiro edifício deste modelo foi construído na cidade de
Marselha entre 1947 e 1953. 4 Publicação mensal interna do Instituto de Aposentadoria e Pensões.
5 LAPOLLI, André. Como destruir um patrimônio cultural urbano. A Vila IAPI, “crônica de uma morte
anunciada”. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PROPUR-UFRGS, 2006. p. 43 6 Ebenezer Howard foi o responsável pelo projeto das Cidades-Jardins, em 1848. Segundo Dacio Ottoni, ele
sintetiza muitas das idéias inglesas do século XIX para o problema da habitação e do crescimento acelerado
das grandes cidades. Como Howard não era arquiteto nem urbanista, apresentou o plano em diagramas. Este
modelo, originalmente pensado para as classes populares, anos mais tarde foi adaptado em bairros nobres das
grandes cidades. Os chamados bairros-jardins nem sempre apresentam semelhança na forma com o modelo
original, porém mantêm a ênfase na arborização e nos amplos espaços viários. (prefácio à segunda edição
brasileira do livro: HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de amanhã. São Paulo: Hucitec, 2002) 7 LAPOLLI, André. op. cit. p. 43.
4
Degani8, porém, admite que tal padrão, quando transposto e adotado na Vila do IAPI,
acabou por ser o mais adequado, já que permitiu a manutenção das características naturais
do terreno e tornou o ambiente mais próximo do cotidiano dos futuros moradores. Não se
observou, portanto, dificuldades de adaptação, e a conservação de muitos espaços
existentes no projeto original até hoje, dá a prova disto.
Dito isso, cabe lembrar que o interesse desta pesquisa recai menos sobre a
arquitetura moderna em si, ou as diferentes vertentes e escolhas deste movimento, do que
sobre o registro fotográfico de uma de suas experiências. Neste sentido, o objetivo principal
da pesquisa é participar da discussão sobre o uso da fotografia em trabalhos históricos,
ressaltando a necessidade de uma leitura visual crítica para este tipo de fonte. Não menos
importante, esta pesquisa propõe entender as representações imagéticas da política estado-
novista nas fotografias do acervo Edmundo Gardolinski, bem como as discussões que se
faziam no âmbito da Arquitetura e do Urbanismo a partir do encontro com a fotografia.
Além disso, temos no acervo o recorte individual da memória de Gardolinski sobre os
eventos coletivos. A fotografia, neste caso, é o suporte material desta memória.
As fotografias serão analisadas, então, de acordo com questões pertinentes ao
campo historiográfico para o uso deste tipo de suporte. A partir dessa perspectiva,
considero a fotografia enquanto objeto material e, assim, procuro compreendê-la a partir de
seus próprios elementos, como uma invenção moderna, um artefato que emerge no tempo e
no espaço, e permite alcançar a sociedade à época de sua criação.
Como se trata de um artefato fotográfico, ao mesmo tempo em que é documento
histórico, e historicamente contextualizado, é importante considerar todas as dimensões que
perpassam a imagem fotográfica, desde sua produção até a circulação em meios
acadêmicos de pesquisa, como é o caso do presente trabalho. Isso inclui os elementos
internos que a transformam, finalmente, em artefato: o aparelho, a produção, a recepção, a
circulação e a reprodução, bem como a escolha pela guarda em um acervo particular, o
gênero da imagem (escolhas profissionais e estéticas, como enquadramento ou temas
privilegiados), o lugar do fotografado e do fotógrafo (os conceitos que articulou e
8 DEGANI, José Lourenço. Tradição e modernidade no ciclo dos Iaps. O conjunto residencial do Passo
d‟Areia e os projetos modernistas no contexto da habitação popular dos anos 40 no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Porto Alegre: PROPAR-UFRGS / UNIRITER 2003
5
transcreveu em imagem), o uso dessas fontes e a necessidade de relacioná-las com outras
categorias de documentos.
A documentação teve uma trajetória bastante longa e cheia de perdas e rearranjos. O
primeiro capítulo desta dissertação dá conta da biografia destes documentos arquivados.
Por hora, é suficiente dizer que o acervo divide-se entre fotografias avulsas (que
ultrapassam o número de 1000) e um extenso álbum criado por Gardolinski, que
compreende mais de 12 anos da história da Vila do IAPI, em uma narrativa visual cheia de
indicações de datas, nomes e lugares, escritos à mão por Gardolinski. Pela abrangência
desta pesquisa e pelo tempo que lhe foi concedido, não foi possível trabalhar com a
totalidade do acervo, de onde é necessário dizer que se podem construir inúmeras temáticas
diferentes dentro da História, ou mesmo da Arquitetura, das Ciências Sociais, ou de
qualquer outro campo disciplinar que se dedique a fazer questionamentos de toda ordem
sobre elas. A escolha metodológica e teórica justifica-se ao longo do trabalho, ainda que
composta pela análise de uma parte muito pequena, porém significativa para os temas aqui
levantados.
Além das fotografias, outros documentos existentes no próprio acervo de
Gardolinski, foram incluídos, como alguns artigos publicados de autoria de Gardolinski
sobre imigração polonesa no Periódico Polônia de Hoje, e os livros “Escolas da colonização
polonesa no Rio Grande do Sul” e “Imigração e Colonização Polonesa”, também de autoria
de Gardolinski, originados de suas incursões a algumas cidades de colonização polonesa no
Rio Grande do Sul. Também a Revista Inapiários, publicação interna do IAPI, na qual
Gardolinski publicou alguns artigos sobre a obra que acontecia em Porto Alegre.
Outros periódicos de grande circulação à época, como O Globo, Correio do Povo,
Diário de Notícias e Jornal do Dia, incluídos a partir do ano de 1952 (ano de inauguração
do IAPI) foram importantes para entender um tipo de circulação bastante específico das
fotografias de Gardolinski. Periódicos especializados de arquitetura contemporâneos às
fotografias, como Architecture d‟aujourd‟hui (França), Architectural Review (Inglaterra) e
Domus (Itália), apenas veicularam imagens de outros conjuntos residenciais importantes, de
iniciativa do IAP, como o prestigiado Conjunto Habitacional de Pedregulho, no Rio de
Janeiro.
6
A bibliografia referente ao tema é vasta. A complexidade da análise fotográfica,
bem como do substrato documental da fotografia, não permite prescindir de um arcabouço
teórico substancialmente consistente e aplicável ao tipo de documentação que se apresenta.
Não obstante, as fotografias de Gardolinski ainda inserem-se em outro nível de análise,
quando compreendidas em sua especificidade de documento arquivado em um lugar
privado de memória, o que supõe questionamentos referentes a escolhas, recortes,
esquecimentos, preferências, intenções de eternizar estas e não outras narrativas imagéticas
sobre determinado momento da vida desse sujeito.
Ao tirar as fotografias da Vila do IAPI, Gardolinski arquivava a representação de
um projeto bem sucedido e que havia, melhor do que nenhum outro IAP, atendido às
necessidades mais imediatas da moradia operária. Ao mesmo tempo, reproduzia padrões
estéticos da fotografia e, mais particularmente, para a fotografia de Arquitetura. Um
exemplo disto são as imagens aéreas tomadas do terreno da Vila do IAPI em diferentes
estágios do processo de construção dos edifícios. Segundo Eduardo Costa9, a cidade
industrial que começa a se desenhar no final do século XIX, traz novos elementos para sua
leitura, influenciando as formas de representação do urbano, e prossegue:
“(...) compreende-se a transformação da compreensão das cidades em paralelo
ao desenvolvimento do avião, que fez com que tomadas aéreas passassem a ser
instrumento de fundamental importância na análise urbana. (...) Não se trata
aqui de uma leitura contemplativa da cidade a partir de uma tomada aérea,
como Nadar já havia realizado no século XIX. Trata-se de uma abstração da
leitura da cidade, uma funcionalização do ambiente urbano, transposto para
visualidade a partir da máquina fotográfica. Ou seja, o que se expõem diante da
lente da câmera fotográfica – ou, precisamente, diante do fotógrafo – é uma
cidade regrada por uma outra dinâmica, a industrial e não mais a cidade
naturalizada. A própria velocidade da máquina impõem uma outra leitura da
cidade, agora mais rápida, veloz, tornando a apreensão pela contemplação uma
leitura incongruente com a nova dinâmica da cidade. O „real‟ – o espírito
moderno da cidade – é industrial.”
Então, quando consideramos a questão da tecnologia, o incremento de recursos, a
progressiva sofisticação dos equipamentos, e a conseqüente ampliação significativa das
possibilidades, e a própria materialidade do suporte, entendemos que a fotografia é um
9 COSTA, Eduardo Augusto. "Brazil Builds e a construção de um moderno, na arquitetura brasileira".
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
2009
7
documento não escrito, exige leitura particular, mas, sobretudo, é produzido historicamente
– como um artefato, tanto quanto um acontecimento oficial, uma ata, um inventário post-
mortem. Além disso, o desenvolvimento da tecnologia criou outras possibilidades com
relação ao tempo de exposição necessário para se obter as imagens no papel sensível. Tal
condição alterou os motivos, as feições dos personagens e a interação do profissional de
fotografia com seu equipamento. Todas essas mutações constam de um processo histórico
onde a técnica fotográfica inseriu-se no campo das mudanças tecnológicas, e a sua relação
com o tempo foi substancialmente modificada.
Dito isso, apresento a estrutura da dissertação, dividida em três capítulos. O
primeiro deles, intitulado O Acervo Fotográfico Edmundo Gardolinski: documentos
pessoais em um espaço público, tem por objetivo descrever o lugar dos artefatos
fotográficos, no momento em que foram incluídos nessa pesquisa. Tal reconhecimento
esclarece que a análise, desde o início do trabalho, é perpassada pela memória de
Gardolinski, como um fio condutor. Aqui, procurei problematizar a categoria “acervo” e
entendê-la enquanto uma descontinuidade de substratos de tempo subjetivos por fazerem
parte de uma escolha arbitrária e pessoal de Gardolinski. E, nesse sentido, tracei a biografia
do acervo, também entendido como um conjunto de artefatos materiais, desde a
acumulação original do autor, passando pelos inúmeros re-arranjos de familiares e pessoas
ligadas à instituição de guarda, até o momento de minha própria intervenção, enquanto
pesquisadora.
Também neste capítulo, incluí referências às características modernas das
fotografias do acervo, não só pela época da tomada, mas também pela eleição dos motivos
urbanos e industriais. Reforça esse aspecto, a participação de Gardolinski em concursos
realizados por Foto Clubes, com fotografias de orquídeas e outros temas artísticos, com
uma orientação bem diferente daquela encontrada nas fotografias da Vila do IAPI. Para
Helouise Costa10
, a fotografia moderna no Brasil tem início com o Foto Cine Clube
Bandeirantes, em São Paulo.
10
COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A fotografia moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995.
8
Há ainda a atuação dos fotógrafos imigrantes na capital gaúcha, sua importância na
construção da visualidade da cidade, bem como a relação destes fotógrafos com as
narrativas fotográficas que se construíram a partir de suas tomadas, moldadas por olhares
europeus e padrões de fotografia internacionais. O acervo de Gardolinski situa-se nessa
perspectiva não só pelo próprio Gardolinski, descendente de poloneses, como também pela
autoria de Nick, o fotógrafo russo que o acompanhava.
No segundo capítulo: A visualidade instaurada pelo Acervo de Edmundo
Gardolinski - analiso as fotografias, agrupadas em temas curtos, porém de grande
relevância. Em um primeiro momento, porém, tratei do documento histórico para, em
seguida, compreender como a fotografia torna-se um documento, em determinado contexto,
e qual a conseqüente e necessária crítica para esta fonte. Retomei os textos de historiadores
importantes, como Paul Ricoeur e Michel de Certeau, na tentativa de explicitar as bases
sobre as quais me apóio para chegar naquilo que André Rouillé chamou de fotografia-
documento. Em verdade, este autor foi responsável por uma virada teórica neste trabalho,
ao lado de Ulpiano T. B. de Meneses, Alfred Gell, entre outros11
.
Tal mudança refere-se à adoção da idéia de fotografia-artefato, em substituição a
alguns posicionamentos da semiótica12
, mais especificamente os que tem a ver com a
ligação da fotografia a seu referente. Como um artefato material, de existência própria e
autônoma, a fotografia circula entre meios sociais diversos e os influencia, de acordo com
11
Estes trabalhos encontram-se referenciados na bibliografia desta dissertação, bem como ao longo do texto,
quando citados. 12
A leitura de uma análise semiótica da fotografia centrou-se basicamente em três autores: Ana Maria Mauad,
Boris Kossoy e Philippe Dubois. A primeira, em diversos artigos, conceitua o método de análise partir de uma
abordagem histórico - semiótica da fotografia. Para Mauad, a imagem é um dos produtos do trabalho cultural
humano e este baseia-se em códigos convencionalizados socialmente que, quando analisados, direcionam os
seus elementos ao contexto e às práticas da época de sua construção. Contudo, para Mauad, tal relação não é
automática, pois, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora, existe muito mais que do que os olhos
podem ver. Já Boris Kossoy, apresenta um estudo técnico-iconográfico, onde detalha não somente as
atribuições físicas do quadro da fotografia, mas também suas dimensões icônicas de sentido. Para ambos,
entretanto, a fotografia é entendida como “rastro” de uma realidade passada, de onde podemos visualizar não
somente as relações explícitas na imagem, como também indícios de um real não revelado imediatamente.
Dubois, por sua vez, afirma que a fotografia é índice ao carregar consigo um traço da realidade que a fez
surgir. Segundo este autor, o referente sempre retorna, “irresistivelmente”. Ver: CARDOSO, Ciro F. e
MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro F. e
VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Editora
Campus, 1997. KOSSOY, Boris. Fotografia &História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. DUBOIS, Philippe.
O Ato Fotográfico. Campinas, SP: Editora Papirus, 2004.
9
as relações que com eles estabelece. Assim, é possível ir além da análise do referente, de
onde a fotografia é apenas uma semelhança, sem ligação definida nem pelo suporte, nem
pelos sentidos dos signos comuns a determinada comunidade.
Ao analisar as fotografias, então, parto de uma rápida descrição da visualidade da
capital gaúcha, entre os anos de 1930 e 1950, com base no trabalho de Zita Possamai13
, que
analisou o círculo da fotografia no mesmo local, à mesma época. Incluo aqui dados que
mostram uma quantidade significativa de estúdios e fotógrafos profissionais em Porto
Alegre, e que indicam certo gosto pela fotografia, enquanto distintivo de modernidade. Já
dentro do acervo, pontuo algumas poses e ambientes preferidos de Gardolinski que, mesmo
quando não operava a câmera, guiava a tomada de quadros pelo espaço da Vila, tornando-
se assim, usando o termo nas acepções de Alfred Gell, o agente das fotografias – tema
discutido com maior atenção no terceiro capítulo.
Também no capítulo 2, tratei das fotografias onde a identidade inapiária – termo
derivado da sigla IAP (Instituto de Aposentadoria e Pensões) fica mais evidente. Foi de
grande importância a leitura do texto de Gilberto Hochman14
, cuja tese de doutorado trata
entre outros temas, deste órgão público, elencando as razões que construíram a forte
identidade entre os funcionários. Analiso, também, o equipamento de Gardolinski e as
conseqüências da popularização dos modelos portáteis a partir de 1920, no Rio Grande do
Sul.
Em seguida, discuto especificamente a forma como Gardolinski fotografou o IAPI.
A partir dos padrões visuais que ele criou, tem-se no acervo um tipo de fotografia bem
diferente daquela fotografia de arquitetura que se praticava no período, inclusive com os
outros prédios do IAP, como Pedregulho e Japurá. A intenção é justificar, em certa medida,
porque as fotografias de Gardolinski não circularam tanto quanto as de Marcel Gautherot
para Pedregulho, por exemplo, e, com este propósito, incluí reportagens de revistas
13
POSSAMAI, Zita Rosane. Cidade fotografada: memória e esquecimento nos álbuns fotográficos-Porto
Alegre, décadas de 1920 e 1930. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, 2005. 14
HOCHMAN, Gilberto. De inapiários a cardeais da previdência social.. A lógica da ação de uma elite
burocrática. Mestrado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia). Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro, IUPERJ-Tec, Brasil, 1990.
10
especializadas internacionais no início da década de 50, quando este e outros prédios, foram
inaugurados.
A circulação das fotografias de Gardolinski, por sua vez, foi medida pela análise de
alguns periódicos diários e mensais do Rio Grande do Sul e do Brasil, conforme citado
acima. Entretanto, foi necessário considerar o visível distanciamento entre as formas de sua
publicação, bem como o público a que se destinavam e em quais meios profissionais
tiveram aceitação. Ao longo da análise, fica claro que não são fotografias de mesmo
estatuto e, por isso, têm trajetórias diversas.
O último capítulo desta dissertação, A fotografia como suporte da memória, é
dedicado a outro substrato do acervo: o lugar de acervo privado, com vestígios particulares
de uma vida, acumulados pelo próprio autor destes vestígios. Tal substrato é, antes de tudo,
temporal, porque se refere ao tempo de vida de Gardolinski, e torna a análise ainda mais
complexa, porque não é possível negar que as inferências da memória pessoal como recorte
sobre a memória coletiva, estão presentes.
O recorte da memória de Gardolinski incide sobre a narrativa fotográfica que ele
construiu no interior do acervo. O álbum de fotografias e as fotografias avulsas compõem
inúmeros quadros que, além de agenciados por Gardolinski, são atravessados por discursos
particulares sobre a forma de ver, de circular e de viver na Vila do IAPI. Além disso, não é
somente a sua versão dos fatos que Gardolinski imprime no acervo, é também outra
visualidade para o bairro, a partir de seus clichês. A escolha por uma narrativa fotográfica
deixa claro que o sujeito não quer apenas contar uma história; ele quer que as pessoas
vejam a história da forma como ele viu, e nisso se inclui a imagem que faz de si mesmo,
aquilo que é dele e que deve ser eternizado entre os vestígios.
Neste momento, a análise de Alfred Gell, foi fundamental, ainda que o autor refira-
se a objetos de artes plásticas, basicamente, como pinturas. Gell concentra-se na questão da
agência da ação social, ou seja, os objetos materiais têm origem na ação de um sujeito, nem
sempre consciente de suas capacidades, da influência de sua ação e da influência da ação
dos seus objetos. Neste sentido, os objetos podem seguir uma trajetória completamente
autônoma e fora do raio de expectativa de seu agente. No caso de fotografias, o conceito de
agência, melhor desenvolvido por Gell, permite pensar o artefato como autônomo e
11
circulante, mesmo após o tempo de vida de seu sujeito, ainda que carregue consigo traços
de sua agência, como qualquer outro produto manufaturado artesanalmente.
E, nesse sentido, não significa simplesmente abrir mão da semiótica ou
desconsiderá-la em uma pesquisa histórica. Ao invés disso, trata-se de concentrar a análise
no caráter material da imagem e nas características que a definem enquanto objeto, e não
mais enfatizar a descoberta de possíveis significados ocultos, ou signos comuns, ou ainda, a
conexão entre referente e a sua representação mecânica: a fotografia.
O objeto da História não são as fotografias, mas sim a sociedade, ou a história dos
homens no tempo, e isso inclui tudo o que se refere ao homem. Assim, as fotografias, como
qualquer outro vestígio ou objeto material, são fontes para o conhecimento histórico da
sociedade. Como já é sabido que nenhum documento é objetivo e precisa ser questionado
com as perguntas certas para que deles se extraia as respostas úteis, o mesmo ocorre com as
fotografias. Sobretudo, a inclusão desta categoria documental provoca o surgimento de uma
crítica específica que considere a tangência deste artefato no interior de um método
histórico.
13
2. O Acervo Fotográfico Edmundo Gardolinski: documentos pessoais em um espaço
público
“[...] a banalidade do passado é feita de pequenas
particularidades insignificantes que, ao se multiplicarem, acabam
por compor um quadro bem inesperado.”
Paul Veyne
2.1 - Acervo Edmundo Gardolinski: instituições de guarda e novos arranjos.
As fotografias de Edmundo Gardolinski, fontes desta pesquisa, são parte de um
conjunto maior de indícios que compõem o Acervo Edmundo Gardolinski. Trata-se de uma
coleção com inúmeras categorias de documentos que, posteriormente à morte do titular, foi
doada ao Núcleo de Pesquisa em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Não havia uma organização prévia que concordasse com os parâmetros da arquivística15
até
o momento da sua chegada ao Núcleo – apenas a disposição dos documentos escritos e
outras categorias, de acordo com o interesse pessoal de Gardolinski. As fotografias,
principalmente, receberam maior atenção do titular (e autor da maior parte das imagens
fotográficas), com vistas à documentação de sua atividade profissional, e pelo seu interesse,
ainda que amadoristicamente, pela prática da fotografia.
O acervo Edmundo Gardolinski é composto por livros que constituem uma pequena
biblioteca sobre os temas da história polonesa e a história do estado do Paraná, além de
inúmeros outros livros em polonês, periódicos (brasileiros e poloneses), cartas (que trocou
com o irmão Tadeusz Gardolinski durante o ano de 1944 quando este se encontrava na
Itália, lutando pelas Forças Armadas Brasileiras), anotações pessoais, agendas, cartões
15
Refiro-me aos parâmetros propostos pela leitura de alguns autores da área da arquivística que cito ao longo
deste primeiro capítulo.
14
postais e centenas de fotografias em diferentes suportes, além de negativos fotográficos16
,
incluindo alguns negativos em vidro.
Figura 1 - 6: Formatos de fotografias.
Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.
16
Sobre a coleção de Marcel Gautherot, Lygia Segala afirma: “A acumulação de negativos, imobilizando-os
no mercado fotográfico, sustenta seu interesse de preservar uma totalidade, pressuposto à monumentalização
de sua obra”. SEGALA, Lygya. A coleção fotográfica de Marcel Gautherot. Anais do Museu Paulista, São
Paulo. n. ser, v. 13, n 2, p. 73-143, jul/dez – 2005. (citação p. 110).
15
Figura 7 - 9: Formatos de fotografias.
Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.
Os temas possíveis presentes no acervo definem-se pelas escolhas profissionais de
Gardolinski (Engenharia Civil e sua participação no projeto do Conjunto Habitacional
Passo d‟Areia, conhecido como Vila do IAPI17
), a descendência polonesa, sobre a qual
realizou breve exercício de história oral com imigrantes no interior do Estado, além de
coletar dezenas de imagens de suas respectivas famílias18
(imagens que ele mesmo
produziu e outras imagens já pertencentes a estes indivíduos). Na pesquisa, Edmunda
Gardolinskiego (Edmundo Gardolinski escrito em polonês), procurou destacar entre o
17
A Vila IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários) é parte do programa nacional de
habitação popular empreendido pelo Estado Novo, a partir dos anos 30. 18
Segundo consta no material arquivado, Gardolinski pretendia escrever a história da cidade de Ijuí-RS, onde
existe uma das maiores colônias polonesas do RS. Tal vontade não chegou a realizar-se, porém muita
documentação sobre o tema, coletada por Gardolinski, encontra-se disponível no acervo.
16
contingente de imigrantes, as escolas19
e as personalidades, como Copérnico e Chopin, cuja
obra lhe inspirou grande interesse ao longo da vida. Também fotografou pilotos e outros
temas relacionados à aviação e à poloneidade, além de manter uma pequena coleção de
recortes noticiando a vinda de artistas e políticos poloneses para o Brasil (um dos mais
citados é o Grupo de Dança Mazowske que veio a Porto Alegre em 29 de Abril de 1975).
Sobretudo o gosto pela fotografia, principalmente de orquídeas – outra de suas
paixões - gerou imagens de forte apelo artístico, com as quais Gardolinski participou de
eventos e concursos realizados por cineclubes de fotografias em todo o Brasil. Está contida
na porção fotográfica, por sua vez, inúmeras fotografias de visitas e solenidades
envolvendo a presença de políticos importantes, como Getúlio Vargas e Eurico Dutra.
Outras fotografias do IAPI, contudo, só existem em negativo fotográfico. As viagens com a
família também foram cuidadosamente registradas e arquivadas de acordo com o destino:
Curitiba-PR, Garibaldi-RS, Caxias do Sul-RS (que Gardolinski refere como Campo dos
Bugres) e o Rio de Janeiro, de onde temos belíssimas imagens das praias cariocas na
década de 40. Outros eventos, como a candidatura de Gardolinski a deputado estadual e a
campanha política de 1954, estão relacionados entre as fotografias.
As fotografias referentes à Vila do IAPI registram o início da construção dos
edifícios, incluindo algumas imagens dos terrenos antes de qualquer fundamento, até a
ocupação das residências pelos moradores - que eram todos, inicialmente, industriários.
Assim, temos imagens do processo de construção em suas fases sucessivas, em locais
variados do bairro.
Figuram políticos importantes, como Getúlio Vargas, presente na solenidade de
inauguração da Vila, e outros senadores e deputados, envolvidos ou não com os IAP‟s. Da
mesma forma, foram fotografados eventos onde participou a comunidade polonesa não só
do Rio Grande do Sul, mas de outros estados, como Paraná, por exemplo. Também
19
Sobre as escolas de imigrantes poloneses no interior do estado, Edmundo Gardolinski escreveu o livro:
“Escolas da colonização polonesa no Rio Grande do Sul” (Porto Alegre: UCS/EST, 1976). Ainda sobre o
tema da imigração, é autor de “Imigração e Colonização Polonesa” (Separata da Enciclopédia Rio-Grandense,
V.5. 1980).
17
visitaram o IAPI, poloneses famosos como o Capitão Stanislaw Skarzynski20
e alguns
pianistas (não identificados, mas para os quais se organizou grande recepção.
Gardolinski registrou a inauguração de alguns monumentos, praças e locais de
sociabilidade na Vila: a Paróquia Nossa Senhora de Fátima (1966), a cancha de bolão
(1966), a sede provisória da Associação dos Moradores da Vila dos Industriários (1952), a
praça Frederico Chopin, o estádio Alim Pedro, e algumas placas comemorativas, como a
que foi feita em homenagem a Semana Oficial do Engenheiro e do Arquiteto. Fotografou
também o time de futebol da Vila e a Escola Doutor Edmundo Gardolinski21
, em inúmeras
celebrações relacionadas à poloneidade.
O acervo inclui também algumas fotografias de tomadas aéreas do bairro, que
compreendem o espaço, de forma que o objeto referido não se perca demasiado no contexto
da malha urbana. Mas, mesmo assim, o bairro parece adequar-se perfeitamente às
condições pré-existentes do entorno, como denotam as fotografias.
Os funcionários do IAPI são outro motivo encontrado entre as imagens da Vila.
Enquanto visitavam obras ou os edifícios prontos, ou ainda, quando se reuniam para
discutir assuntos pertinentes ao Instituto, foram retratados em seu ambiente de trabalho,
sempre sorridentes e aparentemente satisfeitos.
Outras afeições de Gardolinski confundem-se com os temas das fotografias, dentro
do conjunto das imagens da Vila do IAPI. Conforme dito acima, a questão da imigração
polonesa por vezes aparece ligada à relação profissional de Gardolinski com o bairro, ao
nomear a Praça Chopin, ou ao incluir no calendário da escola da Vila, algumas datas
importantes para os poloneses. Da mesma forma, o gosto pelas orquídeas e o cultivo de
orquidários estende-se para o paisagismo aplicado no bairro, não somente pela existência
dessas flores, mas por uma grande preocupação com a qualidade natural da Vila, investindo
na criação de parques e na plantação de muitas árvores. Desses temas, também existem
algumas imagens.
20
Segundo o Livro dos Recordes de 2006 (Guinness World Records 2006 – USA: GUINNESS
PUBLISHING, 2005), o capitão Skarzynski é recordista mundial por ter cruzado o Atlântico com a aeronave
mais leve, na época, em 07 de maio de 1933. Diz o texto: “... este foi o recorde de distância de vôo em linha
reta em aeronave de um assento.” (p.194) 21
Em 1997, a escola teve o seu nome alterado para Escola Nossa Senhora do Cenáculo, e Gardolinski seguiu
como patrono do prédio (Zero Hora, 27 de março de 2008 | N° 15553).
18
Por fim, Gardolinski deixou-se retratar inúmeras vezes, cercado pelas obras,
edifícios ou solenidades, dentro da Vila do IAPI. São fotos onde Gardolinski aparece em
primeiro plano, como se estivesse à frente de sua própria obra, controlando e
supervisionando de perto, todos os processos decorrentes da construção – afinal, este era
seu papel na equipe designada pelo Instituto. As fotografias, porém, são bastante
esclarecedoras de como Gardolinski via-se em relação àquele projeto – talvez o mais
importante de sua vida profissional.
Figura 10 - 13: Fotografias com diferentes temas.
Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.
Após permanecer muitos anos inacessível à consulta pública, o acervo foi doado
pela família ao Núcleo de Pesquisa em História - NPH, sediado no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da UFRGS, depois da morte de Gardolinski. Quando a equipe do
núcleo recebeu os materiais, estes se encontravam frouxamente arranjados; primeiramente
19
por Gardolinski, por meio de notas e envelopes identificados, e mais tarde, por familiares –
responsáveis pela identificação de sujeitos e lugares, no caso das fotografias.
Logo em seguida, procedeu-se à organização22
dos documentos escritos. De acordo
com os funcionários do núcleo, o planejamento e a organização dos documentos seguiu os
seguintes critérios:
“A documentação foi organizada em séries, de acordo com as atividades do
titular, o tipo de documento e o assunto. Desta maneira, a produção intelectual
de Edmundo Gardolinski e os documentos por ele coletados foram classificados
nas séries: IMIGRAÇÃO, POLÔNIA, DOCUMENTAÇÃO PESSOAL,
FREDERIC CHOPIN, NICOLAU COPÉRNICO e ORQUÍDEAS. As séries
reúnem documentos de diversos tipos, agrupados por assuntos e ordem
cronológica, quando foi possível identificar a data. A correspondência é parte
integrante das séries, com exceção da que se relaciona à imigração. Neste caso,
devido ao volume da documentação, a correspondência foi dividida em ativa,
passiva e de terceiros, com ordenação cronológica, constituindo a sub-série
Correspondência da série Imigração.” 23
Neste caso, o acervo foi dividido em duas partes, a fim de proceder a sua
conservação e identificação: documentos escritos e fotografias. Por se tratar de um tipo
documental específico e que demanda procedimentos mais complexos, as fotografias foram
mantidas fora deste primeiro esquema e, somente a partir do final de 2009, é que uma
equipe do Núcleo formada por pesquisadores e bolsistas24
, reiniciou o processo de
organização, ainda não finalizado. Para Aline Lacerda25
, a análise e o sentido dos
documentos fotográficos, no caso de um acervo particular, envolvem necessariamente sua
relação com o restante do arquivo e seu contexto documental. E prossegue:
22
Segundo o site do NPH (www.ufrgs.br/nph), participaram da organização os bolsistas: Anna Katarzyna
Kopaczewska, Érico Pinheiro Fernandez, Márcia Janete Espig e Viviane Carrion Castanho, com o auxílio
financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), “através da
concessão de bolsas de iniciação científica e recursos para aquisição do material necessário ao
acondicionamento da documentação”. (acessado em 26/10/2009). 23
Retirado do site do núcleo: www.nph.ufrgs.br (acessado em 26/10/2009). 24
Em contato com o NPH, recebi o relatório de estágio de uma das bolsistas envolvidas no projeto de
organização das fotografias de Gardolinski. Dúnia dos Santos Nunes conta que a intenção inicial era de
organizar a porção fotográfica imediatamente. Porém, o trabalho de pesquisa contextual e de reconhecimento
dos personagens e lugares figurados nas fotografias acabou por tomar praticamente todo o tempo disponível
da pesquisa e não foi possível concluir a catalogação. A equipe contou ainda com o auxílio do filho de
Gardolinski, Edmundo Gardolinski Jr. que identificou algumas imagens. No último boletim do NPH, de
Junho de 2010, verifiquei que o processo de organização continua em curso, porém ainda não foi finalizado. 25
LACERDA, Aline Lopes de. Fotografia e valor documentário: o arquivo de Carlos Chagas. História,
Ciências e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 16, supl. 1, jul. 2009, p. 115-138. Citação p. 118.
http://www.ufrgs.br/nphhttp://www.nph.ufrgs.br/
20
“Tradicionalmente vistas como registros autorreferentes, imagens de “alguma
coisa”, sem conexão clara com a entidade produtora e responsável pela
existência do conjunto, as imagens acabam sendo tratadas por seu conteúdo
intrínseco, não sendo percebidas como portadoras de um vínculo arquivístico,
que as remetem a outros documentos e, em última instância, as ligam ao próprio
titular do arquivo, pessoa física ou jurídica responsável pela produção e
acumulação dos documentos.”
Outra importante parte do acervo encontra-se na Faculdade de Arquitetura da
UFRGS. Pelo seu valor urbanístico, o acervo fotográfico referente à Vila do IAPI chamou a
atenção de professores e estudantes de Arquitetura e, a partir dele, bons trabalhos26
já foram
produzidos.
Nessa porção do acervo, localizei um álbum que Gardolinski criou sobre/para o
projeto do IAPI, que foi gentilmente digitalizado e cedido pelo GEDURB27
. Nessa imensa
documentação, é possível localizar: imagens coletadas de diferentes bairros de Porto Alegre
e de outras cidades brasileiras, onde figuram vistas de lugares onde (provavelmente) seriam
construídos conjuntos residenciais e mais especificamente, vistas do Passo d‟Areia antes do
início das obras (com a indicação do que se pretendia construir nestes locais); algumas
tipologias diferentes de edifícios ou conjuntos residenciais prontos e habitados; detalhes de
portas, janelas, esquadrias – ou, como titulou Gardolinski: “Elementos para estudo”; cenas
de trabalho (tipógrafos e trabalhadores da construção civil); visitas de políticos ou
funcionários públicos ligados ao IAPI; terrenos para abertura de vias de acesso; detalhes da
infra-estrutura básica, como os postes destinados a conduzir energia elétrica; vistas gerais
do início das obras, com ênfase nos procedimentos de terraplanagem e drenagem do solo;
algumas fotografias das casas provisórias que serviam aos funcionários durante o dia de
trabalho (ou o “acampamento dos operários”); árvores que permaneceriam compondo a
paisagem ao lado das edificações; eventos de inauguração realizados no terreno antes de ser
tomado pelas construções, como a plantação de árvores (ou “início da arborização”) e a
26
Ver: DEGANI, José Lourenço. Tradição e modernidade no ciclo dos Iaps. O conjunto residencial do Passo
d‟Areia e os projetos modernistas no contexto da habitação popular dos anos 40 no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Porto Alegre: PROPAR-UFRGS / UNIRITER 2003; e: LAPOLLI, André. Como destruir um
patrimônio cultural urbano. A Vila IAPI, “crônica de uma morte anunciada”. Dissertação de Mestrado. Porto
Alegre: PROPUR-UFRGS, 2006. 27
Gabinete de Estudos e Documentação Urbana. Faculdade de Arquitetura. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
21
construção do horto, além da cerimônia de lançamento da pedra fundamental; visitas de
Gardolinski para inspeção do andamento das obras; processo de construção dos espaços
sociais do bairro, como o estádio de futebol e a igreja; melhoramentos que iam sendo feitos
durante a construção dos edifícios, como “retirada de bolsões de lama” ou “corte
transversal de um dos muitos cupins a serem eliminados nos terrenos da vila”, inúmeras
fotografias das primeiras casas (em obras, desde os alicerces em pedra) e após a ocupação
pelos moradores, incluindo belíssimas fotografias onde há claramente uma preocupação
estética relevante. O álbum compreende 12 anos28
(1940-1952) e mais de 2000 fotografias.
Figura 14 - 16: Páginas do álbum de Edmundo Gardolinski.
Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.
28
O Instituto de Aposentadoria e Pensões foi criado em 1936 e o projeto do IAPI foi finalizado em 1947,
mesmo ano de início das obras. A inauguração aconteceu em 1952.
22
Pelo hábito de registrar e organizar as fotografias da Vila do IAPI em álbuns,
Gardolinski parece ter mantido, durante alguns anos, a intenção de documentar
fotograficamente o processo de construção do bairro. Porém, não há indícios de que estas
fotografias tenham sido publicadas ou mesmo veiculadas em periódicos especializados da
época. Nos jornais circulantes em Porto Alegre, na década de 50, bem como em algumas
revistas ilustradas29
, há reproduções de fotografias do acervo de Gardolinski, porém, não há
nenhuma indicação de autoria.
À época das tomadas, o registro sistemático que deu origem a este montante de
fotografias, realizou-se na coadunação de duas atividades realizadas com interesses
distintos: a Engenharia, profissionalmente e a fotografia, enquanto hobby. Neste momento
específico da vida de Gardolinski, porém, a realização de imagens fotográficas sobre a Vila
do IAPI, une as duas práticas em um mesmo interesse. Ao tomar a porção fotográfica em
conjunto, é fácil identificar a maioria de fotografias cujo referente é o andamento das obras.
Tal elemento dentro do acervo é indicativo da necessidade de documentar todas as fases
desse processo, além de contemplar os materiais utilizados, como tijolos, cimento ou
maquinário, e os trabalhadores da construção civil, com trajes apropriados para o ofício,
fotografados em seu local de trabalho.
O procedimento de arquivar em forma de álbum30
não é alheio ao restante das
fotografias, de onde também podemos extrair essa intenção, em algumas dezenas de folhas
onde Gardolinski colava as imagens e datilografava sua descrição. Creio que o primeiro
montante de imagens a qual tive acesso (o conjunto documental do NPH) faz parte do
mesmo processo de registro e documentação visual que Gardolinski estava montando para
o projeto da Vila. No entanto, ao produzir o álbum, algumas fotografias não foram
incluídas, e são essas as imagens que encontrei no núcleo, em péssimo estado de
conservação e organização.
29
Os periódicos consultados foram Correio do Povo, Diário de Notícias e Jornal do Dia e as Revistas O Globo
e Cruzeiro. A pesquisa foi feita por amostragem, sempre tomando o ano de 1952 (inauguração do IAPI) como
referência. 30
“A união fotografia-álbum constitui (...) a primeira grande máquina moderna a documentar o mundo e a
amealhar suas imagens.” ROUILLÉ, André. A fotografia. Entre documento e arte contemporânea. São Paulo:
Editora SENAC, 2009. p. 98.
23
Tal hipótese surgiu do fato de que inúmeros clichês se repetem dentro do álbum e
nas fotografias “soltas”. Ademais, a narrativa que se estabelece dentro do álbum
corresponde àquela possível de construir-se a partir das fotografias “avulsas”. Infelizmente,
não é possível contrapor esse argumento com outras fontes, como possíveis entrevistas, ou
relatos escritos por Gardolinski, cujos procedimentos não eram compartilhados com todos
os seus familiares, de onde muitos deles não têm conhecimento dos detalhes do
arquivamento. Também por isso, é possível que aquelas fotografias que não foram
incluídas, sejam também as “melhores”, de um ponto de vista estético e pessoal de
Gardolinski e, por isso, tenham sido separadas para sua guarda pessoal.
Para Lacerda31
, a ação que separa determinadas fotografias em álbuns e mantém
avulsas outras, acaba por determinar uma “lógica particular de exibição dessas imagens”,
onde o sujeito, ainda que não intencionalmente, constrói uma narrativa visual a partir de seu
ponto de vista pessoal sobre os eventos. Porém, além de uma narrativa visual detalhada
sobre o processo de construção da IAPI, Gardolinski compõe um álbum de referências para
o seu próprio projeto.
Em relação ao álbum, é evidente que não será possível trabalhar com o álbum
inteiro nesta pesquisa. Além do volume surpreendente de fotografias, o que primeiro
motivou este trabalho foram os documentos constantes no NPH. O álbum do Gedurb foi
localizado e acessado há poucos meses atrás e, obviamente, não pude ignorá-lo, até porque
a partir dele, foi possível tecer hipóteses mais claras sobre as intenções práticas de
Gardolinski na tomada e acumulação dos objetos fotográficos. Até então, era de meu
conhecimento apenas os documentos avulsos e desorganizados dentro do acervo no NPH.
Porém, nesta dissertação, proponho analisar algumas páginas destes álbuns32
como
amostragem, juntamente com outras fotografias “avulsas”, mas parte do mesmo acervo.
31
LACERDA, Aline Lopes de. Os sentidos da imagem. Fotografias em arquivos pessoais. Acervo, Rio de
Janeiro, v. 6, n. 1-2, p. 41-54, Jan/Dez 1993. citação p. 51. 32
Com esta escolha, admito que não será possível dar conta de todas as interfaces do álbum. Também não
discutirei (pelo menos, não detalhadamente) a metodologia de trabalho com álbuns fotográficos, exceto pelo
viés de duas autoras que considero importantes para o objetivo da pesquisa neste momento: Zita Rosane
Possamai e Aline Lopes de Lacerda, cujos trabalhos cito ao longo do texto. Ainda assim, creio que é possível
alcançar o sentido das fotografias de Gardolinski dentro do acervo, bem como a acumulação destes artefatos,
sem que seja necessária a descrição detalhada do álbum. É claro que este material permite uma intervenção
24
Sobretudo, a construção desse álbum advoga em favor do comprometimento e da
sistematicidade de Gardolinski, e com a importância profissional deste projeto, entre outros
nos quais estava envolvido. Segundo Heymann33
, a “recorrência de um tema (...) num
número expresso de documentos”, chamada de “revelação através do volume”, é
denotativa dos principais interesses do indivíduo que acumula demasiadamente um tipo de
material com determinado(s) tema(s).
Ao mesmo tempo, há a intenção de forjar certa continuidade entre as fotografias,
entendidas como fragmentos do espaço urbano. Ou seja: ao fotografar apenas uma casa ou
uma via de acesso, não é possível dar a dimensão dos arredores, do contexto, do conjunto.
Por outro lado, alinhando as fotografias ao longo de uma página do álbum, é possível
identificar um número maior de elementos.
Constrói-se aqui a mesma idéia que, mais tarde, analisarei em algumas fotografias
que, mesmo isoladas, não dão conta de detalhes, e sim, dos moradores em primeiro plano à
frente de suas habitações. Além disso, as fotografias do acervo são construídas a partir de
um saber: a Engenharia e, por isso, afastam-se tanto dos clichês de fotografias de
arquitetura realizadas a partir de edifícios e conjuntos habitacionais do mesmo período34
,
ainda que guardem semelhanças com alguns parâmetros conformados na nascente
fotografia moderna brasileira35
. Ao mesmo tempo, a memória que se desenha na análise
destas fotografias é a memória do engenheiro-fotógrafo: o sujeito que fotografa, olha para o
seu projeto com o olhar informado do profissional mas, sobretudo, dialoga com a
composição e com a luz, elementos da fotografia, além de não abrir mão de preocupações
estéticas.
muito mais aprofundada que foge aos limites desta pesquisa. Não obstante, seria de grande honra se esta
dissertação instigasse trabalhos dessa natureza, ainda inéditas para este conjunto. 33
HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos
pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, 1997, nr. 19. p. 53. 34
Japurá (SP), Realengo (BA) e Pedregulho (RJ) são iniciativas habitacionais do mesmo período. Os registros
fotográficos destes edifícios, porém, diferem muito das fotografias de Gardolinski. Analisarei este
distanciamento no próximo capítulo. 35
Sobre isso ver: COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A fotografia moderna no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995. (Recentemente uma nova edição revisada foi lançada pela
Editora Cosac Naify. Ambas constam na bibliografia desta dissertação.)
25
Assim, as fotografias tanto quanto o álbum, sugerem muito mais a idéia de
fotografias de urbanismo do que fotografias de arquitetura, onde há o esforço por narrar o
cotidiano do bairro e não apenas as edificações ou prédios sociais. Para Possamai36
:
“...as imagens fotográficas ao elaborarem uma representação reduzida do
gigantismo urbano, e ao estarem dispostas em um álbum, realçam essa idéia de
continuidade, jogando com a ilusão de dar a ver a cidade em sua totalidade e em
sua unidade espacial, inexoravelmente rompida pelo ato fotográfico.”
Por fim, algumas fotografias estão em posse de associações polonesas situadas em
Lageado37
– RS, para onde foram enviadas com intuito de que imigrantes de poloneses
pudessem identificar lugares e personagens. Ao identificarem as fotografias, tais
comunidades, decidiram não devolver os conjuntos, alegando que as fotografias de um
importante representante da poloneidade, como Gardolinski, deveriam ficar próximas a
outros imigrantes, e não em uma instituição de ensino sem nenhum vínculo dessa natureza
com o autor.
Não tive acesso a essas imagens antes de serem enviadas a Lageado. Acredito,
porém, que muitas dessas fotografias encontram-se reproduzidas no acervo do Núcleo, já
que Gardolinski tinha o hábito de ter mais de uma cópia das fotografias.
A divisão do acervo de Edmundo Gardolinski em diferentes departamentos da
mesma instituição, assim como o “extravio” de algumas imagens (como no caso de
Lageado), esclarece um dos pontos frágeis desta documentação de um ponto de vista
arquivístico: a perda da unidade do conjunto documental. Também sugere outro problema.
Ao longo de todos esses percursos e destinos, desde a acumulação ordenada inicialmente
pelo titular até a chegada às respectivas instituições, inúmeros arranjos foram refeitos,
adicionando novas perspectivas de sentido para o conjunto de documentos. Para
Heymann38
, tal questão explicitada no “princípio da proveniência sob o ponto de vista
interno”, é fundamental já que “desaperceber-se do modo de acumulação pode implicar no
remanejamento das órbitas, por conseguinte em construir relações outras, com a implosão
36
POSSAMAI, Zita. Narrativas fotográficas sobre a cidade. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27,
n. 53, p. 55-90, 2007. citação p. 57. 37
O contato entre estas comunidades e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul é dificultado pela falta
de interesse destas em restituir o empréstimo. 38
HEYMANN, Luciana. op. cit., p. 43.
26
do sentido original”. No entanto, de um ponto de vista histórico, tais remanejamentos não
só alteram o sentido original, como fornecem novos, de igual interesse para o campo da
História. De acordo com Lacerda39
:
“Essas imagens e a exposição das tramas nas quais seus sentidos vão sendo
tecidos no tempo nos ajudam a pensar sobre um aspecto interessante (e
exemplar) de um fenômeno recorrente nas organizações dos arquivos. Diz
respeito às ressignificações dos documentos em geral – e das imagens de forma
privilegiada – a partir do olhar de quem organiza, considerando os sentidos
conferidos à atuação do titular ao longo de sua vida e consolidados numa visão a
posteriori.”
Os re-arranjos são responsáveis pela adição de olhares e temporalidades aos
documentos. Assim, ao inserir esta perspectiva na análise, torna-se possível historicizar o
acervo.
2.2 - O lugar do Acervo Edmundo Gardolinski: uma coleção particular.
Por serem provenientes de um lugar da ordem do privado, não é possível passar à
análise das fotografias, sem considerar este importante substrato que acabou inscrito na
biografia das imagens. Primeiramente, um acervo pessoal de inúmeros materiais, arranjados
de acordo com as categorias de Gardolinski. Mais tarde, ao ser doado pela família a uma
instituição de ensino e pesquisa, o conjunto documental ganhou novo status: foi alçado, ao
lado dos outros documentos constantes no Núcleo, ao lugar de documento histórico. Para
Luciana Q. Heymann40
:
“...os centros de documentação funcionam como locus privilegiado de avaliação
desse capital simbólico, já que são instituições voltadas para a preservação
daquelas memórias reconhecidas como históricas, ao mesmo tempo em que são
capazes de conferir valor histórico aos papéis que se encontram sob sua
guarda.”
39
LACERDA, Aline. op. cit., 2009, p. 123. 40
HEYMANN, Luciana. op. cit., p. 49.
27
Mesmo sem o interesse declarado de publicizar os vestígios acumulados no acervo,
Gardolinski não deixou de prosseguir na guarda. A porção fotográfica não circulou,
conforme pesquisa documental41
, em periódicos especializados ou boletins das instituições
públicas envolvidas, ao longo dos quase 12 anos em que manteve o hábito de captar
fotograficamente a Vila do IAPI. Qual fosse a intenção contemporânea à acumulação, o
fato é que, ao final de sua vida, seus familiares consideraram o montante demasiado
informativo e desejaram doá-lo. É sempre preferível que acervos (privados ou públicos)
estejam completamente acessíveis à sociedade. Porém, neste momento, interessa mais saber
de que forma o estatuto atual da documentação atua sobre o sentido do acervo.
Quanto às fotografias “avulsas”, Gardolinski mantinha sistemas diversos de
organização. Para um dos montantes, separou as fotografias em pastas de papel, com o
título daquele conjunto, coladas em folhas de ofício tamanho A4. Abaixo de cada foto,
escrevia uma pequena nota, identificando o evento representado. Infelizmente, nem todas as
fotografias foram incluídas neste sistema, o que fez com que muitas delas não fossem
identificadas42
.
41
Ver Capítulo 2. 42
Algumas outras imagens foram identificadas posteriormente por familiares ou representantes de
comunidades polonesas no Rio Grande do Sul.
28
Figura 17 - 20: Fotografias coladas em folhas A4 e identificadas por Edmundo Gardolinski.
Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.
Gardolinski ainda mantinha outros conjuntos de fotografias dentro de envelopes
pequenos, onde os temas eram escritos à mão, como forma de identificação. Porém, entre a
organização de Gardolinski, a guarda da família e a transferência para o Núcleo, as
fotografias foram manipuladas diversas vezes e grande parte delas, perdeu-se de seu
conjunto original, misturando-se a outros conjuntos e até a outras fontes43
. Em um primeiro
momento, foi necessário separar o conjunto fotográfico do restante do acervo, para dar
conta dos temas e da quantidade de imagens.
43
Algumas fotografias foram encontradas entre as cartas e os livros, sem nenhuma conexão temática ou de
sentido.
29
Figura 21 - 26: versos de algumas fotografias do Acervo Edmundo Gardolinski.
Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.
Neste sentido, tive o cuidado de não modificar a prévia organização que Gardolinski
havia dado ao material, mas nos casos de fotografias soltas entre as caixas não foi possível
identificar o envelope de origem. Para estas fotografias, especificamente, tive o cuidado de
mantê-las junto com outras de situação temática próxima, verificando se os personagens se
repetiam ou se os lugares eram os mesmos de outras fotos separadas em envelopes. Após a
análise do álbum, porém, inúmeras fotos foram facilmente identificadas, já que se repetiam.
Em seu álbum, Gardolinski identificou a data, os lugares/situações e os
personagens. Ao final deste processo, o acervo encontrava-se mais acessível, mesmo que ao
custo de uma nova organização que levou em conta pressupostos dessa pesquisa, com
interesses definidos por mim, enquanto historiadora, e temporalidades situadas em outro
30
nível daquela organização de Gardolinski, mais próxima do ofício de engenheiro – saber
que guiou a tomada de clichês pela Vila. Para Heymann44
:
“Se o conjunto documental acumulado já é produto de um processo de
monumentalização da memória do indivíduo, sua transformação em arquivo
doado abre espaço para um novo processo de seleção/subtração (...) coloca em
destaque a questão da compatibilidade entre memória individual e memória
coletiva ou histórica.”
Em muitas das fotografias do acervo Gardolinski não aparece, o que é indicativo de
que ele seria o fotógrafo nestes momentos. Em outras imagens, porém, Gardolinski indica
que foram “apanhadas pela objetiva do „Correio do Povo‟45
” ou, ainda, no verso de quase
todas as fotografias, aparece o carimbo do Estúdio Nick - responsável pela revelação das
fotografias, e o dono do estúdio, o fotógrafo russo Nikolaj Lenskij, pela tomada de algumas
imagens. O Jornal Zero Hora de Porto Alegre, publicou matéria em sua edição do dia 19 de
Janeiro de 2008, na qual citava a atuação e importância do Estúdio Nick:
“O tradicional estúdio Foto Nick, uma tradição do bairro Iapi, em Porto Alegre,
tem uma história mais que cinqüentenária ligada à geografia dessa parte da
cidade e especialmente à sua população. Nomes importantes e pessoas simples,
uma imensa galeria de porto-alegrenses posou para o imigrante russo Nikolaj
Lenskij desde que ele instalou seu ateliê, em 1952, num dos edifícios gêmeos do
Instituto dos Industriários. Entre as personalidades do bairro que foram por ele
fotografadas estão a mais conhecida delas, a cantora Elis Regina, e o
engenheiro-chefe que construiu o bairro, Edmundo Gardolinski. Entre seus
orgulhos de fotógrafo, Nikolaj (nome do qual se originou a denominação do
estúdio) fixou para a história da cidade a inauguração, pelo presidente Eurico
Dutra, do Estádio Alim Pedro e do discóbulo e registrou o desfile de Getúlio
Vargas em carro aberto pelas ruas do bairro. Numa trajetória que se iniciou com
os negativos de vidro e que hoje se mantém na era digital, a Foto Nick
sobreviveu à morte de seu fundador, em 1981, aos 58 anos, e é hoje administrada
por seu filho Eduardo Lenskij”
Porém, mesmo quando não é Gardolinski quem aciona o dispositivo, é ainda ele o
responsável pelo agenciamento da imagem referida, já que orienta os percursos e os
motivos que Lenskji deve fotografar. É ainda responsável pela organização dos eventos
retratados, bem como dos espaços por onde a lente de Lenskji passou, como o próprio
Departamento de Obras e a Sede dos Inapiários dentro da Vila do IAPI, onde ocorreu a
44
HEYMANN, Luciana. op. cit. p. 50. 45
O Correio do Povo é um jornal impresso brasileiro em formato tablóide com circulação no estado do Rio
Grande do Sul fundado em 1º de outubro de 1895 por Caldas Júnior. Foi o jornal de mais longa publicação em
Porto Alegre, circulando por 89 anos ininterruptamente, até 1984, reiniciando sua publicação em 1986.
31
maior parte das reuniões dos funcionários do Instituto. Assim, Gardolinski, mesmo quando
aparece nas fotografias (e não operando a câmera), é o responsável pela lógica de
rememoração instaurada dentro da porção fotográfica relativa à Vila do IAPI.
Da mesma forma, os objetos fotográficos tornam-se agentes no espaço por onde
circulam: enquanto agentes, provocam mudanças no meio social onde estão inseridos.
Conforme Meneses46
, “a imagem, além de signo, também executa o papel de ator social,
produz efeitos.” Pela pesquisa em periódicos da época, conclui que esses objetos se
mantiveram, quase que em sua totalidade, dentro do âmbito privado, enquanto acumulação
pessoal de Gardolinski. As poucas fotografias que ilustraram matérias em jornais ou
revistas sobre a Vila do IAPI não traziam nem mesmo a autoria do fotógrafo.
Sendo assim, mais do que tomar as fotografias individualmente, é importante
analisar outros elementos agenciadores: Gardolinski, sujeito que acumula vestígios
enquanto uma seleção de sua própria memória, e o próprio acervo, já que é possível
verificar por onde este conjunto circulou, quais as modificações que sofreu e como
relacionou-se com outros objetos e com as pessoas dentro do espaço onde foi inserido.
Da mesma forma, a partir deste conjunto de fotografias, é possível entender de que
forma a idéia acerca da Vila do IAPI foi construída ao longo do tempo e como os clichês de
Gardolinski contribuíram para esta construção – nem sempre alcançando as expectativas do
titular para esta memória arquivada, mas freqüentemente envolvido no processo de
formação da sua imagem. Para Meneses47
, “mais que representações de trajetórias
pessoais, os objetos funcionam como vetores de construção da subjetividade e, para seu
entendimento, impõem, já se viu a necessidade de se levar em conta seu conteúdo
performático. [...] caráter de interlocução.” No capítulo seguinte, esta questão será mais
bem discutida.
46
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma “História Visual” in: ECKERT, Cornelia et all (org.). O
imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 49. 47
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público.
Estudos históricos, 1998, n.21, p. 89-103. citação p. 96.
32
a) Fotógrafos imigrantes
Outro dado importante sobre a tomada/autoria das imagens é a relação que a prática
da fotografia mantém com estrangeiros imigrantes, no Brasil. Gardolinski era descendente
de poloneses e seu parceiro, Nick Lenskij, descendente de alemães. Pode-se dizer que
vários dos primeiros fotógrafos brasileiros importantes eram imigrantes. Em um dos artigos
publicados a partir da tese de Zita Possamai48
, há a indicação dos principais estúdios
fotográficos localizados na Porto Alegre do início do século XX, todos eles comandados
por imigrantes: “... destacavam-se cinco estúdios fotográficos; cujos proprietários eram o
espanhol João Antonio Iglesias, os italianos Irmãos Ferrari, o italiano Virgílio Calegari, o
alemão Otto Schönwald e Innocencio Barbeitos.”
Ainda segundo Possamai49
, “imigrantes recém-chegados aprendiam o ofício com
outros imigrantes já radicados” fazendo com que esta atividade continuasse por muitos
anos majoritariamente entre estes grupos. A experiência européia50
anterior pode ser uma
justificativa para o número de imigrantes fotógrafos no Brasil. Apesar dos primeiros
experimentos que resultariam no dispositivo fotográfico terem tido início em meados do
século XIX, a fotografia começa a popularizar-se por aqui apenas nas primeiras décadas do
século XX: a câmera portátil Kodak51
, começa a ser vendida em 1910 e, em Porto Alegre,
especificamente, o uso da explosão de magnésio para fotografias com flash, data de 192052
.
Além disso, a fotografia apresentava-se como oportunidade de negócios duplamente
favorável: retorno imediato dos investimentos e uma posição social de prestígio entre as
48
POSSAMAI, Zita R. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922-1935). Anais do Museu Paulista
14(1): 263-289, TAB. 2006, Junho. citação p. 264. 49
Ibidem, p. 264. 50
Mais importante do que isso, é admitir que a experiência européia instaurou uma forma de ver específica,
uma visibilidade influenciada por padrões estrangeiros, pelo menos nos primeiros anos da fotografia no
Brasil. A própria difusão de formatos, como o carte de visite, que trazidos da Europa, difundiam-se
rapidamente pelos estúdios brasileiros, demonstra tal influência, bem como uma estética européia de
enquadramentos e composições. Entretanto, os mesmos fotógrafos estrangeiros envolviam-se com motivos
brasileiros, modificando, ao longo dos anos, seus olhares e sua prática fotográfica, conformando,
conseqüentemente, uma outra visibilidade mais local. 51
Inventada em 1888. 52
Ibidem, p. 275.
33
classes urbanas. Conforme disse Fabris53
, “a fotografia é a invenção mais burguesa em sua
tentativa de construir o mundo à própria imagem e semelhança.”
b) Fotografia como distintivo de modernidade
Gardolinski interessava-se por temas relacionados ao cinema e à fotografia, também
na forma de artigos e revistas especializadas. Em seu acervo, encontram-se artigos sobre
fotógrafos, como Cecil Beaton, de quem se diz que “a superposição de fotografias umas
sobre as outras, [é] uma proeza dificílima.” 54
. Além da Aconteceu, Gardolinski colecionou
alguns números das revistas O Globo, Panorama e Periódico de Ilustração Brasileira. Os
números arquivados tratam de fotografia ou cinema e ainda, artes plásticas e dança
folclórica.
Seguindo as indicações de Zita Possamai e de outros autores que tratam do tema da
modernidade no início do século XX, verifica-se nas fotografias de Gardolinski, bem como
em alguns elementos de sua biografia, a intenção de constituir-se enquanto sujeito
moderno, com práticas modernas, através da interação com as novas tecnologias, como a
câmera fotográfica e o cinema. Ao interessar-se pela fotografia, Gardolinski tornava sua
profissão mais sofisticada. Construía a documentação de seu trabalho valendo-se do suporte
mais moderno na época e que, no Brasil, especificamente, era reconhecido, quase
consensualmente, como uma forma de expressão artística, ao mesmo tempo que
documental55
.
53
FABRIS, Annateresa. A invenção da fotografia: repercussões sociais. In: ________. Fotografia – Usos e
Funções no Século XIX. São Paulo: Edusp, 1991. p. 56. 54
Revista Aconteceu – número 141. 55
Ao pesquisar os anúncios publicitários de produtos fotográficos no início do século XX, Fabris concluiu que
havia a “ausência das discussões polarizando fotógrafos e pintores que por tantos anos alimentaram a
intelectualidade européia”, referindo-se à polêmica levantada por artistas da pintura sobre a suposta
objetividade do registro produzido por uma máquina, onde o saber artístico do homem não teria nenhuma
influência sobre o produto final. Segundo ela, “aqui não parece ter havido uma resistência do mesmo porte
em aceitar a fotografia enquanto arte.” Ibidem, p. 73.
34
Gardolinski também participou de inúmeros concursos e exposições fotoclubistas, o
que é indicativo de que mesmo amadoristicamente, mantinha um forte envolvimento com a
fotografia. Da mesma forma, o hábito de fotografar motivos diversos e enviar as fotografias
para eventos desta natureza não está dissociada da intenção de documentar a construção da
Vila do IAPI, exceto pelo propósito diferenciado de cada momento. Ou seja: a experiência
com a fotografia moderna dentro dos fotoclubes pode ter influenciado – e reciprocamente,
ter sido influenciada pela tomada de fotografias no exercício profissional da Engenharia.
Segundo Helouise Costa56
, os primeiros fotógrafos considerados modernos no Brasil57
,
participaram do Foto Cine Clube Bandeirantes e foram responsáveis por “renegarem o
caráter documental da fotografia”. O acervo de Gardolinski insere-se em partes nesta
perspectiva. De acordo com Costa58
:
“A fotografia moderna começa entre nós com a crítica do pictorialismo
(tendência de caráter acadêmico que visava reproduzir na fotografia modelos da
pintura clássica) e busca em seguida uma atualização da fotografia com relação
ao estágio já alcançado pelas outras artes. Trata-se de uma fotografia de feições
radicalmente contemporâneas, urbana e cosmopolita, direta ou indiretamente
vinculada ao construtivismo e ao concretismo no