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“Kuphaluxa”
uma nova geração
da Literatura
Moçambicana? Professor Francisco Noa
pág. 5 & 6
Director: Amosse Mucavele l Email: r.literatas@gmail.com l Maputo l Ano III l Edição: Nº. 61 l 02 Julho de 2014
“Sou apenas mais um
negro ciente da
minha condição
enquanto negro em
uma sociedade
racista”
Entrevista a Ricardo Riso pág. 9 à 13
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Sumário
Leia, leia, leia sempre a revista
Entrevista com Ricardo Riso|( …)
Sou apenas mais um negro ciente da minha condição (…)| Pág.. 10, 11, 12 e 13
“Kuphaluxa” uma geração da nova da Literatura Moçambicana? | Palestra com
o Professor Doutor Francisco Noa | Pág.. 3 & 4
DIRECTOR Amosse Mucavele | amoss-e1987@yahoo.com.br Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 EDITOR Japone Arijuane| jarijuane@gmail.com | japomati75@hotmail.com Cel: +258 82 35 63 201 CHEFE DA REDACÇÃO Nelson Lineu | nelsonlineu@gmail.com Cel: +258 82 27 61 184 CONSELHO EDITORIAL | Amosse Mucavele | Japone Arijuane | Mauro Brito | Nelson Lineu. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula
COLABORADORES FIXOS Moçambique: Carlos dos Santos Matiangola Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa
Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Japone Arijuane PERIODICIDADE Mensal
Ficha técnica
COLABORAM NESTA
EDIÇÃO:
Angola João Tala Luís Kandjimbo Brasil Neide Medeiros Santos Rosana Piccolo Manoel de Barros
Ronaldo Cagiano Cabo Verde Mário Lúcio Sousa
Moçambique
Sara Jona Jacaré Fernanda Anguis Elcidio Bila Celles Leta Hirondina Joshua
Portugal Samuel Pimenta A revista Literatas é uma publicação electrónica ideal-izada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divul-gação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.
Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: r.literatas@gmail.com | Tel. (+258): 82 35 63 201 | 84 51 03 474 | 84 57 03 750
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A cultura de desvalorizar a cultura
E u sou moçambicano, ou seja, um homem que não ama a sua cultura. Os meus patrícios, que não se zanguem. Todos
dizem que amam e não são capazes de revelar um simples gesto possível de amor.
A cultura, a arte em Moçambique, que nem deveria ser um elemento de adorno e ostentação, passou a ser uma simplicidade fútil
de adulação e um elo de junção entre fúteis e inúteis, a cargos e posições cujo status prevalece o nepotismo.
Como se pode chamar a um moçambicano um homem culto? Enquanto a literatura, sobrevive a um palmo e meio de leitores, que
mal podem comprar um livro, em que o maior número desses livros nascem e morrem no dia do seu lançamento? A música, que
para além de conteúdo fútil e de passagem provisória e, como isso não bastasse, é pirateada e vendida a preço de banana po-
dre; as artes plásticas sem rumos, em que as exposições, por mais tempo que permaneçam em nossas reles galerias, são
somente apreciadas às moscas? O teatro, o cinema, a fotografia, as danças e outras manifestações artístico-culturais, só coex-
istem em papel passado a rascunhos.
Como chamar os moçambicanos de um povo?, do povo moçambicano? Se bem se diz, e outorgo, que não há povo sem cultura?
Alguns, de espírito frágil, moçambicanos desprovidos de rácio, comprometidos pela causa do “povo”, dirão que estou a ser
demasiadamente antipatriota, e diriam mais: que existe cultura e que os moçambicanos são cultos. – Ainda bem que a opinião
significa posição individual. Mas que cultura seria essa? A cultura de ver a falsificação massiva de produtos culturais e deixar an-
dar?, a cultura de ter uma juventude inculta, aliás, reles juventude sem sensibilidade artística, que têm como cultura o indis-
pensável abuso e gozo excessivo do álcool?, a cultura de dizer que se ama e somente em palavras esse amor morrer?, ou essa
cultura de desvalorizar a própria cultura?
São várias e tantas as questões que me seriam desgastante faze-las, porque sei que ninguém, mas ninguém, pelo menos que eu
conheça neste país, que me poderia responde-las.
Assim vai a nossa cultura, a arte, sobretudo, sem crítica, que digam, - também a sociedade, exaltando um dogmatismo doentio
que torna a própria cultura elemento de alienação e uma indiferença colectiva. Dessa colectividade aculturada cujo presente es-
quiva o futuro e faz das massas um entulho de seres não pensantes, aliás, sem cultura.
Boa leitura e
Bem-haja a cultura!
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Editorial | Japone Arijuane
Diálogos
04 | 02 de Julho de 2014
Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com
O ntem Noite de inverno, re-
gurgita o vento norte, tem
saudades dos trópicos, quentes, las-
civos, afinal, para que ventar em
outras partes, se ensimesmado com
sua própria sorte, não sabe onde?
Cadeias o prendem, políticas do pe-
queno universo, em sua volta, quem é o ser?, e afinal,
para que, o sonho acompanhado de um sono, profundo
e à flor de uns lilases ao fundo e um pleito.
Temeria, agora,não encontrar-se no teu fundo de poço e
as orquídeas assim o sentem, olhares dormidos, sentir-
se entre balcãs, e longínquos continentes noite fria se
espalhando, muito além,e o próprio vento engasgado na
tua ilha,fãs dos primitivos instintos, e embalar da no-
ite,em refinado lamento, pelos cantos a palmeira não se
percebe, o homem esquecido,na cidade o beco, noite
de inverno, regurgita o vento norte. O arrepio das aves.
(Mário T. Saroka - Brasil)
S onho a lamparina acesa aos
trajectos tão jovens aos ve-
lhos destinos. Numa noite breve, o
norte dos sentidos perdidos no meio
do nada. No mesmo nada que faz da
vida pouca coisa. Sonho o antes de
todos os depois que o outro não precisou para não fazer da
vivência uma convivência, senão um abismo abismal, que
faz das aves apenas cinza a flora fumaça o homem o fogo.
Sonho invertido num verbo conjugado a sangue frio, na re-
ciprocidade ignorante de uma qualquer bala perdida no si-
lêncio da fala, de quem esperado não passa. Nas brilhantes
estrelas o além o comum a iluminar a mimica duma amné-
sia de consensos plenos. Sonho o sono que sonha o man-
cebo acordado no meio do nada a fazer mutuamente o na-
da. Sonho o antidoto à febre bélica que os miúdos ingenua-
mente propalam aos quatro ventos nas paredes do medo, o
alísio a fragrância desenhada à pólvora frenética dos mús-
culos da pedra engatilhados na mente urbana.
(Japone Arijuane - Moçambique)
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05 | 02 de Julho de 2014
Questão de Fundo | Redacção
M ais uma vez o Movimento Literário Kuphaluxa mostrou ao seu jovem
público que tem capacidade e força de vontade, para apostar na cul-
tura e com a cultura desenvolver.
No dia 17 de Dezembro de 2013, esta a agremiação artístico-cultural de jovens lo-
tou a sala do centro cultural Brasil-Moçambique, com o evento Eu a e Leitura com
o Professor Francisco Noa, que foi a figura de cartaz.
Este evento, segundo o Momento Literário Kuphaluxa, na voz do coordena-
dor Nelson Lineu: “visa discutir assuntos ligados a literatura moçambicana e
juntar no mesmo espaço o escritor e seus leitores”.
Com o Professor Noa, as intervenções do público, os ensinamentos sábios
do Professor, foram bastante produtivas, aliás, assim são todos os debates
deste projecto. Motivo mais do que claro que o movimento deve continuar
mobilizando jovens, o que é difícil nos dias que correm, pior ainda quando
se trata de um sexta-feira, quando aconteceu o debate, aliás, isto revelou-
se bastante curioso nos olhos do Professor Noa, suas palavras inicias:
“Vocês se esqueceram que hoje é Sexta-feira?, o quê que estão aqui a fa-
zer?, não deveriam estar nas barracas?”
Na sua apresentação começou por afirmar que a cultura é uma forma de
elevação, ou seja, Auto elevação, por exercitar o espírito contra a corrente
de mediocridade e futilidade, que não se faz sentir apenas em Moçambi-
que. Tornando assim numa crise generalizada de referência, por causa da
ausência dos pais, professores, avós porque essas pessoas corporizam
valores.
Citando o Professor: “Nos últimos anos tivemos várias transformações de
todos os cantos do mundo, a globalização do mal é real, e em países como
Moçambique têm grandes contornos. Tendo uma relação umbilical com a
educação, não só a formal como a informal”.
Este foi mais longe ao afirmar que, para a mudança apela a responsabilida-
de individual.
O evento, bastante concorrido pelo público que, pela felicidade destes, o
projecto Eu e a Leitura tratar-se-á de ciclo de debates e Tertúlias Culturais,
que teve inicio no mês Julho com o escrito Suleimane Cassamo, seguiu-se
com o João Paulo Borges Coelho e agora o Professor Noa, e assim suces-
sivamente seguir-se-ão os outros, segundo o programa.
“Kuphaluxa” uma geração da nova da Literatura Moçambicana?
Participantes
Nelson Lineu e o Professor Francisco Noa
06 | 02 de Julho de 2014
Questão de Fundo
Noa ainda partilho como o público ali presente que: “A partir da pesquisa de uma
professora da Pensilvânia, constata que os jovens que usam menos os audiovisuais
têm mais facilidade de ler o mundo em que estamos, ou melhor ler o outro.
Hoje, as pessoas não só, não tem hábitos de leitura como não gostam de ler, porque
lêem por um objectivo concreto, e quem assim o faz, não é por gostar de ler. Para
Noa, a leitura é transcendental a escrita.
A obsessão pela escrita faz-nos pensar que para saber ler é
preciso conhecer a escrita, pois acima de tudo, a leitura é
fundamental para a formação do cidadão”.
Quando questionado pela morte ou não da literatura moçam-
bicana, este lembro-se de um episódio, em que um grupo de
jovens, há alguns anos, escreveu uma carta, fazendo esse
anúncio, querendo que o professor assinasse a certidão de
óbito. O que não o fez, embora na altura, concordasse com
alguns pontos descritos na carta.
Para Noa, o que estava a acontecer eram sinais da morte da
qualidade. E hoje verifica-se alguns sinais de retorno, porque
segundo ele: “a literatura moçambicana nasce pela signo da
qualidade, com jovens como Noémia de Sousa, José Cravei-
rinha, Aníbal Aleluia entre outros; desde a qualidade estética,
tendo compromisso com a tradição literária universal; e quali-
dade temática”. E diz mais ao afirmar: “é em função dessa
génese que deve olhar-se a literatura moçambicana, pois, a
vitalidade de uma literatura está ligada a sua qualidade”.
O Professor, como sempre o é (o Professor), deixou um pu-
xão de orelhas aos jovens que estavam e gostariam que um dia fos-
sem escritores, e os novos autores, o desafio para estes, lessem por
prazer e que fosse essa leitura aos clássicos da sua literatura, e
mais do que ir a cenário de querelas com os mais velhos, trazerem
novas propostas.
E este fechou colocando a questão se estávamos perante a uma
nova geração: “A Geração Kuphaluxa?”
A nós, resta-nos: dizer que sabe? Só o tempo dirá.
Participantes
07 | 02 de Julho de 2014
Ensaio www.revistaliteratas.blogspot.com
Lapidar a Palavra em
Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio*
Sara Jona - Moçambique
[…] O objecto pode ser: 1) criado como prosaico e percebido como poé-tico; 2) criado como poético e percebido como prosaico. Isto indica que o carácter estético de um objecto, o direito de relacioná-lo com a poe-
sia, é o resultado de nossa maneira de perceber; chamaremos objecto estético, no sentido próprio da palavra, os objectos criados através de
procedimentos particulares, cujo objectivo é assegurar para estes objec-tos uma percepção estética. Chklovski (1999:41)
M aior parte dos poemas em Dentro
da Pedra ou a Metamorfose do
Silêncio podem ser colocados na área dos Estudos
Literários que analisa o metapoema. Esses poemas
revelam a preocupação do autor em fazer da palavra a
sua matéria-prima, lapidando-a ou esculpindo-a a fim
de obter poesia. Neste labor, ele colocou um sujeito
poético que fala sobre a função da poesia; que fala
sobre a própria poesia e indaga-se sobre o seu pro-
cesso de criação. Em síntese, o autor: afinou, retocou,
envernizou, burilou a palavra a fim de compor os seus
poemas. O esmero nesse trabalho de “construir” a po-
esia, assemelha-se ao de moldar, lixar, alisar, polir,
uma pedra com intuito de a transformar.
O título do livro remete-nos a esse tipo de leitu-
ra. O poema da pg. 35, por exemplo, contém significa-
dos que o condensam. É como se as palavras, depois
de esculpidas, saíssem da pedra a desfilar. São pala-
vras que resultam de uma exaustiva lavra que as adorna, a fim de serem capa-
zes de transmitir significados:
Aprumadas as palavras/ acordadas no sono da pedra/ relíquia reinven-
tada em sonhos/ gestos inauditos em vozes/ desfilam lento o som/ pela
vaidade do silêncio/ a palavra aprumada/ a dizer o nada, pg. 25.
Até porque, as expressões repetidas em trocadilho: aprumadas as pala-
vras, palavra aprumada e o verso relíquia reinventada em sonhos reforçam es-
sa imagem de retocar.
O mais espantoso nesse esforço de burilar é que, mesmo depois de tan-
to trabalho, a palavra não atinge a sua plenitude para comunicar. Ela transporta
consigo algumas limitações, uma vez que, o sujeito poético refere, no poema
acima, que dada a força do silêncio, essas palavras nada dizem. O verso: “a
dizer o nada” permite-nos chegar á essa constatação.
Há nisso uma contradição, porque as palavras, nunca são de silêncio.
Isto faz-nos colocar este tipo de poesia no niilismo, corrente filosófica centrada
na busca do ideal, negando o que é facilmente perceptível.
Nos poemas desta obra, a pedra, não é apenas um objecto prosaico,
não tem o valor de um objecto morto ou que sufoca. Não é em objecto comum,
corriqueiro que, por vezes, é percebido como banal. Ela ganha o lugar de dese-
jo, de objecto vital e estético e de busca do si mesmo. É dentro da pedra que o
sujeito poético procura alcançar o seu mundo ideal, o do silêncio. Da adoração
do silêncio temos como exemplo:
[…] quem se vê ao espelho/ não vê senão o espelho…/ É no silêncio da pedra/ que espelho a alma, pg 12.
Sou professor do silêncio/ensino o nada sei/ a faculdade das minhas sensibilidades/a tornar-se pedra/sangue e suor/flor e fogo/[…], pg 81.
A homenagem ao silêncio pode ser realçada através da ideia de recolhi-
mento nos versos que seguem:
Para mim volto/nas mãos acesas do avesso/naquilo que me é essência/à intrínseca introspecção […] ilumino o destino em mim ancorado […] que me traz a mim, pg 23.
[…] a morte não é o fim/ […] é a indiferença das coisas/à espera do no-vo dia, pg. 42.
O silêncio de que se fala não é só o de ausência de companhia ou de
ruído. É também o das palavras; o que é reforçado pelo poema da pg. 22, no
qual vemos afirmado:
Das palavras/sinto o inexplicável amor/pela ineficácia que te-
nho/em descrevê-las/com amor/o que por elas sou/Nunca me
eduquei para amar/qualquer que fosse o silêncio/senão o das
palavras.
O procedimento a partir do qual a pedra é tratada permite
atribuir-lhe diferentes valores, nomeadamente:
Valor de espelho:
É no silêncio da pedra/ que espelho a alma, pg. 10.
Valor de silêncio: um universo de silêncio/
metamorfoseado/em pedra, pg.11 e 31.
Valor estético: Lavo a cara nas pedras do medo/vejo
sangue na maciez da pedra/[…] vivo colhendo o pó-
len das pedras. Um outro exemplo desta categoria pode
ser encontrado na pg. 14.
Valor de pessoa (personificação):
A/ cidade/um pássaro / mastiga a felicidade da pedra, pg. 39.
Quanto ao metapoema importa referirmo-nos a reflexão
que o sujeito poético faz acerca do poema utilizando três critérios:
O primeiro - para que serve o poema, de onde podem ser apontados os
seguintes exemplos:
Quando/ escrevo um poema/tento compreender-me à vida./ Se escrevo
um poema/vivo/ e/ vivo-me, pg. 15.
Navego-me/ a poesia me aconchega ao cais/meu destino é encontrar-
me/comigo à deriva/na imanente vastidão do mar. /(incrédulas certezas/
se esboçam na fé/ de me tornar espécie/ de coisa alguma)/ pinto no vão
o cão vadio/ que encontra na escuridão/ a felicidade de não ser visto/
por si…/ , pg. 27.
Ao Nhambaro/da minha poesia,/só os surdos/ancorados/à sombra do
silêncio/saberão dançar/no ritmo quente de Junho/saberão sonhar, pg.
57.
Um outro exemplo desta categoria de poemas pode ser encontrado na
pg. 81.
Acerca da segunda dimensão de análise - poema em que o sujeito poé-
tico fala sobre o próprio poema encontramos os seguintes exemplos:
Lavo as faces do vento/ como quem rasga a emoção do poema/ as fa-
ces do vento não me são excitantes/ como o papel em branco onde
cabe da/ caneta o cio/ a pureza do papel não e emociona/ poderia fazer
barcos de papel/ poderia fazer barcos de poema/ barcos de papel fi-los
na infância/ os de poema fazem-nos os poetas/ Eu…/ lavo as faces do
vento como quem rasga a emoção do poema, pg. 31.
08 | 02 de Julho de 2014
Todos os dias em: www.revistaliteratas.blogspot.com
Ensaio
LEITURA:
UM UNIVERSO MÚLTIPLO
Neide Medeiros Santos – Brasil
A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriar-se de
sua fragilidade, com seus sonhos, seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda no
sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos.
(Bartolomeu Campos de Queirós. Sobre ler, escrever e outros diálogos).
A reflexão sobre leitura e o ato de ler nos conduz, inicialmente, o livro de
Maria Helena Martins (1984) – O que é leitura. Neste livro, a autora
estabelece três níveis básicos de leitura: sensorial, emocional e racional.
O primeiro nível de leitura é sensorial, fase da descoberta do mundo; a
visão, a audição, o olfato e o gosto são os referenciais desse nível.
Paulo Freire (1995), quando fala da leitura da “palavra-mundo”, da leitura do
quintal e dos quartos de sua casa, refere-se a uma leitura sensorial, a uma leitura
presa aos órgãos do sentido.
A respeito da leitura sensorial, Alberto Manguell (1997)
estabelece uma relação íntima, física entre o ato de ler e os sentidos
quando diz que os olhos colhem as palavras; os ouvidos escutam os
sons que estão sendo lidos; o nariz inala o cheiro familiar de papel, cola,
tinta, papelão ou couro; o tato acaricia a página áspera ou suave, a
encadernação macia ou dura; e até mesmo o paladar pode participar da
leitura, quando os dedos do leitor são umedecidos na língua.
Consideramos que o paladar pode ser também despertado pelas
referências gastronômicas. Eça de Queirós, em seus romances,
inúmeras vezes, faz o leitor sentir vontade de saborear as delícias da
cozinha portuguesa.
O mesmo ocorre com Jorge Amado, especialmente, no livro Gabriela,
cravo e canela. A decantada comida baiana parece adquirir um gosto
peculiar quando preparada pelas mãos de Gabriela. O escritor
Bartolomeu Campos de Queirós (2012), criador do projeto “Por um Brasil
Literário”, no artigo Entre silêncios e diálogos, fala sobre seu primeiro
livro de leitura.
A leitura que nos deixa alegres ou deprimidos, que desperta a
curiosidade, estimula a fantasia, provoca descobertas e lembranças, é a
leitura emocional. Maria Helena Martins afirma que na leitura emocional
não importa perguntarmos sobre o que o texto trata, mas sim o que ele
provoca em nós. É a leitura da paixão, das emoções, lida com os
sentimentos, com o subjetivismo, é a leitura que foge do controle do
leitor.
Ensaio
Nesta classe podemos ainda incluir os poemas das pgs. 22 e 27.
O terceiro critério - o processo de criação do poema pode ser demonstrado a
partir dos poemas das pgs. 35, 48, 50 e 79.
Gostava ainda de me referir a dois aspectos referentes á caracterização do
sujeito poético desta obra:
Num momento ele revela-nos a sua essência, ou seja de que é feito - e é to-
do poesia, tal como o revela no poema da pg. 54:
Não tenho senão/essa vontade/de me reinventar/em palavras./ Meu mundo/
é esse pedaço/de papel. /Imortal pedaço/riscado/de silêncios./O que não
sou/só termina/onde neste espaço/me começo./(ser poeta é isto/extinguir-se
num papel estreado de silêncios)
No outro momento revela-nos a sua essência multifacetada. Isso é-nos demonstra-
do a partir de um poema que não segue as características dos que acabei de menci-
onar, pois não louva a pedra, não se venera o silêncio, não se indaga sobre a poe-
sia, nem sobre a sua função e processos de elaboração; apenas, diz-nos quem é o
sujeito poético da obra, alguém com múltipla identidade, tal como o seria uma ima-
gem de Moçambique, um país multicultural.
Essa ideia é espelhada através da representação dos seus diferentes grupos étni-
cos: machuabo, machangana, makonde, ndau, macua, chewa, nyungues, yaos, no
poema da pg 58:
O machuabo em mim/não é senão um/matchangana disfarçado/a sonhar-se
makonde/com engenho da sua arte/se esculpir ndau/m´siro na fé/pintar a
crença makua/adormecida nos chewas/, nyungues e yaos/à minha diáspora.
Do ponto de vista do labor poético podemos colocar Japone Arijuane em pa-ralelo com outros poetas que se dedicam a escrever sobre a poesia, nomea-damente:
os moçambicanos Armando Artur, Eduardo White, Filimone Meigos e
Jorge Viegas; os brasileiros: Carlos Drummond de Andrade e José
Cabral de Melo Neto.
E outros que devolvem à pedra o grande valor que ela tem para a hu-
manidade, homenageando-a, tal como o fizeram Carlos Drummond e
os angolanos Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho.
Os poemas do livro acabado de apresentar demonstram a bus-
ca do si mesmo, por parte do sujeito poético, uma vez que a maioria
encontra-se na primeira pessoa. E utilizar a primeira pessoa contra-
posta a multi-identidade reforça a ideia de busca de sentido para a al-
ma, para a identidade própria e a pedra acaba por ser essa entidade
ôntica.
Um estudo da poesia de Japone Arijuane poderia fazer o levan-
tamento das diferentes contradições propositadamente elaboradas por
este autor.
___________________
BIBLIOGRAFIA
ARIJUANE, Japone. Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio.
Maputo: Revista Literatas. 2014.
PAZ, Olegário; António Moniz. Dicionário Breve de Termos Literários.
Lisboa: Editorial Presesença. 1997.
*Notas para apresentação da obra Dentro da Pedra ou a Meta-
morfose do Silêncio de Japone Arijuane. Junho de 2014.
09 | 02 de Julho de 2014
Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista da semana por e-mail: r.literatas@gmail.com
Ensaio
Na leitura racional, destaca-se o aspecto reflexivo, o leitor quer
compreender o texto, dialogar com ele. Para Martins, a leitura racional
acrescenta à sensorial e à emocional o fato de estabelecer uma ponte entre o
leitor e o conhecimento. A leitura racional questiona tanto o mundo individual
como o universo das relações sociais, amplia as possibilidades de leitura do
texto. [...] que oásis! Abrir minha estante e senti-los um por um nos seus
couros, carneiras, pergaminhos, papéis, percalinas – como quem passa a
mão, sente e palpa a pela da mulher amada. (1987: p. 51)
Cabe lembrar aqui Roland Barthes (1988), que, em O Prazer do texto,
estabelece distinções entre o “prazer do texto” e o “texto de fruição”. Para o
semiólogo francês, o texto que provoca prazer é o que contenta, enche, dá
euforia, é aquele que vem da cultura, não rompe com ela e está ligado a uma
prática confortável da leitura. O texto do prazer corresponde à prática
bachelardiana – “ler-sonhar”. O texto de “fruição” é aquele que desconforta,
que faz vacilar as bases históricas, culturais e psicológicas do leitor, a
consistência dos seus gostos, valores e recordações. Barthes ainda afirma
que a fruição não implica o prazer, pode até, aparentemente, causar
aborrecimentos. “O texto de fruição é absolutamente intransitivo”
Ele aprendeu a ler na cartilha O livro de Lili, de Anita Fonseca e, neste artigo,
reverencia a professora que lhe ensinou a decifrar as letras e as somas. A
palavra foi a grande mestra, através da palavra aprendeu a encurtar
distâncias, alcançar a fantasia, ultrapassar a linha do horizonte. Cada página
virada, cada folha passada era uma esquina dobrada, uma montanha
escalada. O livro passou a ser o porto e a porta, o cais e a sua rota. O
escritor e memorialista Pedro Nava (1987) expressou muito bem a sua visão
de leitor no livro Galo-das-Trevas. Ao olhar as estantes que continha os livros
de que mais gostava, ele revela:
E mais adiante, prossegue:
Vejo-os nas letras de que se enfeitam: caracteres
góticos, os das impressões com capitais livrescas,
minúsculas carolinas, maiúsculas insulares, itálicos, caixas
altas, baixas, versais e versaletes contemporâneos. (p.51)
Pedro Nava revela um amor material pelo livro, um amor tocado pelos
sentidos, principalmente pelo tato. O ver se associa ao sentir. Passar a mão
pelos livros amados, ver as letras que enfeitam as capas lhe dá uma
sensação de posse, de ser dono de um tesouro precioso – muitos livros.
O poeta Elias José (1997), em um texto-depoimento – Leitura: prazer, saber e
poder, publicado na revista Leitura: teoria e prática, ao falar sobre sua
experiência com a leitura, assim se expressa:
Somos capazes de sentir no texto, os cheiros, os gostos, os sons, as
cores e as formas do mundo, quando tocados pela magia das palavras. Os
bons leitores também são artistas. Artistas recebedores, recriadores do texto.
Eles enriquecem o jogo com suas vivências. Acrescentam sonhos aos
sonhos, mistérios aos mistérios. Completam ou modificam o que lhes foi
proposto. Na soma de experiências entre o que vivi e a porção diferente de
vida que o poema e a ficção me trazem, como autor ou leitor, está o prazer do
texto. É um prazer sensual, uma fruição. (1997: p. 69)
Se tudo é leitura no universo, talvez a melhor postura a ser adotada seja a do
fenomenólogo, que examina cada coisa minuciosamente, que procura tirar os
véus que encobrem as palavras. Essa atitude fenomenológica conduz o leitor
ao encontro de Gaston Bachelard (1994).
No livro La Poétique de L´Espace, ao analisar a imagem poética, o
filósofo estabelece diferenças entre o fenomenólogo e o crítico literário que
merecem registro.
O crítico literário ou o professor de retórica julga uma obra que não poderia fazer
ou que não desejava fazer. “O crítico literário é um leitor necessariamente
severo”. Distanciamento, não envolvimento, imparcialidade são marcas do
crítico literário.
Atitude diferente é a do fenomenólogo, ele cria a ilusão de participar do
livro, é um coautor. Essa atitude de coparticipante não é assumida na primeira
leitura, geralmente esta se faz com excessiva passividade. Se o livro nos
agrada, devemos fazer uma segunda, uma terceira leitura e, pouco a pouco,
vamos sendo envolvidos a tal ponto que chegamos à conclusão de que
“devíamos ter escrito isso”. A releitura apaixonada alimenta e recalca o desejo, o
sonho de ser escritor. Quando o leitor ascende a esse matiz, ele se aproxima do
fenomenólogo.
A vivência de um escritor muitas vezes condiz com a do leitor. Se vivemos em
uma mesma época, se participamos do mesmo espaço geográfico, se falamos a
mesma língua, se ouvimos e lemos as mesmas histórias que falam do nosso
povo e da nossa cultura, não obstante as diversidades individuais, os nossos
sonhos, nossos devaneios se aproximam.
Após essas observações de escritores e de teóricos da leitura, concluímos que
ler significa ver, sentir e refletir sobre o objeto da leitura. A boa leitura é aquela
que apaixona, que leva o leitor ao devaneio. A leitura que não é sentida, que
não proporciona uma reflexão, é incompleta.
O bom leitor complementa, recria, acrescenta sonhos, enriquece o texto-mãe.
Ele participa do livro, é um coautor, sente o sabor do texto, identifica-se com ele.
A professora Eliana Yunes (2012), discorrendo sobre o conceito de leitura, no
texto Leitura e ética ou a ética da leitura, assegura que:
A consequência maior do aprendizado da leitura reside na ampliação dos
horizontes de mundo e da capacidade neurológica de pensar. A leitura é, pois,
instrumento para tornar-nos efetivamente humanos, mais racionais, uma vez
que a sensibilidade animal e vegetal que nos habita também precisa de
refinamento e apuro. (2012: p. 13)
Depreendemos, através das palavras de Eliane Yunes, que a leitura nos torna
mais humanos, mais sensíveis e refinados, além de ampliar nossos horizontes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. La Poétique de L´Espace. 4 ed. Paris: Quadrige, 1994.
BARTHES. Roland. O prazer do texto. Trad. Eduardo de Prado Coelho. Lisboa: Edições
70, 1988.
JOSÉ, Elias. Leitura: prazer, saber e poder. In: Leitura: Teoria & Prática. Associação de
Leitura do Brasil. No. 29. Campinas: São Paulo: ABL: Porto Alegre: Mercado Aberto,
1997.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
MANGUELL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
NAVA, Pedro. Galo-das-Trevas. (Memórias). 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Sobre ler, escrever e outros diálogos. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
YUNES, Eliana et al. Manual de reflexões sobre boas práticas de leitura. São Paulo:
Editora UNESP: Rio de Janeiro: Cátedra UNESCO de Leitura PUC-RIO, 2012.
Entrevista | Pombal Maria
12 | 02 de Julho de 2014
Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista por e-mail: r.literatas@gmail.com
Entrevista com Ricado Riso Fonte: Jornal o País– Angola
U rge a cura do complexo de papagaio residente na maioria dos jovens
doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.
Importante frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida.
Temos Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Sa-
lústio, Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... no-
mes restritos, mas, e pa-
ra não me acusarem de
essencialista, destaco as
ausências de Maria Hele-
na Sato e Carlota de Bar-
ros, duas escritoras cabo-
verdianas de grande va-
lor. Porém, e o negro es-
critor?
P:- Ricardo Riso é um
grande activista de
luta contra o racismo
na cultura, especifica-
mente na literatura,
há racismo na litera-
tura brasileira e como
vocês combatem es-
se fenómeno?
Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e se-xuais, jamais o intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o míni-mo de reflexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificul-dades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a uni-versidade brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violên-cias no campo do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, teme-roso com a próxima blitz policial, já que minha cor representa a marca da sus-peita. Conforme o poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/ No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo cotidiano de um negro inserido na farsa da democra-cia racial. Sendo assim, quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocu-pou-se em inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o proble-ma dos negros, tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes for-mas de embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos ne-gros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os respon-sáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do pen-samento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como “delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e te-ve o disparate de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapa-receriam da população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente en-tre a nossa elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua na-tureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de Assis. Sendo assim, a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasilei-ra engloba algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pes-quisador brasileiro que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido
As escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrup-
to e fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição
e formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim,
existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não percebe
o negro como consumidor de literatura nem como escritor.
A literatura negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais
conseguiu, por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e este-
reotipados nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país.
Os autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos
sociais negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos”
esses livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são
financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro
pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a
“Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no Rio
de Janeiro.
Outro dado importante para a constituição dessa rede é a publicação coletiva,
frisando que a opção
pelo coletivo é oriun-
da da dificuldade de
aceitação pelas gran-
des editoras que não
querem ter nos seus
catálogos títulos que
demonstrem as ten-
sões raciais no Bra-
sil, assim como os
altos custos gráficos
que são extrema-
mente pesados para
boa parte dos escri-
tores negros. Nesse
sentido, a série
“Cadernos Negros”
ocupa lugar de des-
taque. Desde 1978
que esta série publica negras e negros intercalando poesia em um ano e no se-
guinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório para o escritor e o
leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a diversidade da literatura
brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a 36ª edição, a série ainda en-
frenta problemas com a divulgação e distribuição de seus exemplares, contando
com as diferentes redes negras do país e no estrangeiro. Uma outra ação que
merece destaque é o site “Ogum’s Toques”, coordenado por Guellwaarr Adún e
que sou colaborador. A proposta de Ogum’s Toques é divulgar as literaturas ne-
gras no mundo, em qualquer língua. Literatura que expõe as dificuldades da mu-
lher negra, do homem negro na diáspora ou em África, estará na Ogum’s To-
ques. Por um humanismo que contemple as diferenças conforme proclamava
Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as restrições da universalidade do sul-
africano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques representa tudo isso. De suma impor-
tância e que não poderia ficar de fora é o portal “Literafro”, organizado pelo Dr.
Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste portal estão catalogados mais de du-
zentos autores negro-brasileiros com biobibliografias, textos críticos e excertos
de textos literários.
P:- Quer dizer que o Canone literário no Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros brasilei-ros? Você sabia que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseri-
dos no cânone da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Ma-
chado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros
completamente excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convive-
mos com absurdos de que Machado não tocava na questão racial e olhava com
desdém o processo abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Ma-
chado ao problema do negro está presente nos seus romances, contos, crônicas
e poemas. O Dr. Eduardo de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redun-
dou no livro “Machado afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas
universidades brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Macha-
do estava atento aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além dis-
so, há uma incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de ad-
mitirem o nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação
de Machado, recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial
televiso que o ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano.
Óbvio que as organizações que formam o movimento social negro protestaram e
o comercial precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro.
Precisava disso?
Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro
em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se
tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude
negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares soci-
ais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o intele-
cutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de re-
flexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das di-
ficuldades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; cien-
te dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra
no território hostil que é a universidade brasileira, (...)
Entrevista
13 | 02 de Julho de 2014
Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista por e-mail: r.literatas@gmail.com
O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u) com a
doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na brancura de
sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o racismo e o
problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses poemas. Chega
a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas verdadeiras boba-
gens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o louco, o bêbado
que não sabia escrever. Todas as características do modernismo brasileiro já
estão presentes em sua obra, e ele é considerado um pré-modernista. Por quê?
Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite carioca, e a denúncia do racis-
mo é central em textos como “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaí-
as Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima Barreto?
Necessário destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era repre-sentada na nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros tra-balhos de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasi-leira, 1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em 1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores ne-gros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a desenvol-ver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de poder. Con-ceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se tornaram dou-tores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de “legitimar” os seus discursos. Alguns nomes que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como
escravo por seu pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista.
Ele sim o verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura
brasileira vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de
um negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um ro-
mance foi Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decor-
rer do século XX foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira,
Oswaldo de Camargo, o fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil
exemplares da primeira edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente
traduzido para mais de uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Caro-
lina Maria de Jesus? Porém, é a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lem-
brando que abordar o racismo enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Naci-
onal, e no decorrer dos anos 1980 que coletivos negros começam a se rearticu-
lar e destacar seus escritores, caso do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens
(Salvador/BA), Garra Suburbana e Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros
e Quilombhoje (São Paulo/SP). Literatura e movimento social negro atuam lado
a lado e na distensão da ditadura fortalecem organizações como CECAN,
MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Ti-
ção, entre outros. Os 90 anos da Abolição, em 1978, foi uma data marcante nes-
se processo. Também temos que considerar as influências e contatos externos:
as lutas pelos direitos civis nos EUA e a descolonização dos países africanos,
principalmente os de língua portugesa, foram eventos motivadores para os ne-
gros brasileiros. Há uma aura de solidariedade negra no Atlântico negro. Assim,
nomes como José Craveirinha e Agostinho Neto influenciaram os autores ne-
gros brasileiros e contribuíram no resgate de África como capital simbólico para
nós. Autores marcantes desse processo são Éle Semog, José Carlos Limeira,
Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodri-
gues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição, Geni Guimarães, Miriam Alves, Es-
meralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de Almeida Pereira, Lia Vieira, Ro-
nald Augusto... a partir dos anos 90 consolidam-se Conceição Evaristo, Lande
Onawale, Lepê Correia, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva...
P:- Um dos principais produtos da relação África- Brasil devia ser a
cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual proporção ao que a
África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos, cultu-
ralmente?
Dentro do nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro,
tanto que por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e
assim vira identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo des-
prezo das políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando aconte-
cem, tendem para a valorização do exótico e das representações estereotipa-
das. Mas, o que os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interes-
se desse intercâmbio por parte dos angolanos?
P:-Como a África no geral, e Angola em particular, é vista hoje no
Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão Massiva, depois do lon-
go tempo de guerra civil?
A visão de África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereoti-
pia, da África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas
temos que começar pontuando que Angola e outros países falam português, que
passaram por uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por
aqui. Exceto os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é
falar de miséria, fome, guerra...
P:- Porquê que os mídias africanos têm dificuldade de penetração no
Brasil?
Creio que pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximar-
se dos países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os
africanos são os que lidam com a cultura negra,
P:-Na relação com as antigas colónias portuguesas, o Brasil supera
Portugal, pela influência dos mídias e produtos culturais como a mú-
sica, cinema, literatura e televisão, além do poder económico. Acha
que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da me-
lhor forma?
Percebo práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo. Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus péssimos produtos. Tenham cuidado!
P:- O mundo vive o fenómeno das manifestações anti-governamentais. Na sua observação o que se está passar? No caso brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de represen-tação partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na sa-úde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de or-dem ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a he-terogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e go-vernança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e vários me-ninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A triste reali-dade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar. Po-rém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de televi-são ou primeira capa de jornal. É algo natural.
P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade social. Ou uma mu-dança progressiva na relação social ao nível do mundo? No Brasil é um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a amplia-ção descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e manifesta-ções.
P:- Quando restam grandes desigualdades sociais e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade brasileira hoje? Com uma dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solu-cões. Reina a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos tra-balhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária e insatisfação das classes abastadas.
P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os negros no Brasil e Améri-ca tem sido descriminados e até hoje há grandes dificuldades de in-serção social. Quais as estratégias que vocês tem para inverter a situ-ação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a Áfri-ca precisa de ouvir de vós? W. E. B. Du Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescin-
dível “As almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e america-
no sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da
Oportunidade brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avança-
mos para a construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é
mundial, atravessa espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador
cubano Carlos Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raci-
ais entre melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo
no decorrer dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos
e/ou africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de
cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.
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Entrevista
10 | 02 de Julho de 2014
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Pergunta:- O ministro da Educação de Angola, Pinda Simão, disse, no dia 10 do corrente mês, na sede da União dos escritores Angola-nos, que Angola ainda está aprofundar a reflexão sobre o acordo or-tográfico que considera positivo, mas que pensa haver aspectos dos povos de Angola que devem ser tidos em conta e que o acordo poria de parte. O que tem a comentar sobre este facto? O novo acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua ineficiência e que em nada contribui para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante de tantas carências que temos e que preci-sam de soluções emergenciais nas áreas de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais um dado que reflete o total descom-passo do brancocentrismo da elite com o restante da popu-lação, assim como a manu-tenção da dominação pela língua; a língua como proces-so de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas per-manecem desaparelhadas e os professores precisam usar a criatividade para ter condi-ções mínimas de trabalho.
P:- Será que podemos
estar diante de uma crise
sobre a ratificação e im-
plementação do acordo
ortográfico na lusofonia?
Precisamos sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mes-ma maneira? Por que a refe-rência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há espa-ço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um novo acor-do? Não estamos nos comu-nicando? Precisamos de me-nos ordens, normas, obediên-cias e afins.
P:- Como classifica as literaturas africanas de língua portuguesa? Toda classificação é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixa-me em difícil posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado literaturas africanas de língua portugue-sa. Ser “tudólogo” em literaturas africanas exige que escolhas sejam feitas. Sen-do assim, começamos a perceber as exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores prejudicadas nesse processo. Pensando na Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a
literatura angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a são-
tomense, e a partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão:
por que somente as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse
neocolonialismo acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a
saber inglês, francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessan-
te que o pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura ango-
lana em quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No ca-
so de Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica
brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como res-
peito ao pluralismo linguístico desses países africanos.
P:- Acha que elas estão no mesmo nível de concepção estético-discursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é que existe essa divulgação na terra do rei pelé? Dentro das suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a com-paração. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003 (obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a educação bási-
ca) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes sobre assun-tos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos cursos de pós-graduação ao longo dos anos que contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido cânone luso-descendente do mercado editorial e das universidades. E no caso angolano, is-so é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida, levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros autores, é pre-
ciso que o pesquisador saia da inércia e se transfi-gure em um arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de minha autoria. Buscar outros au-tores que não constam no cânone estabelecido, pode trazer surpresas agradá-veis.
P: Quais os nomes que
mais lhe ressalvam
nesta literatura, tanto
na velha como nova
gerações?
Creio que sua pergunta
esteja direcionada à litera-
tura angolana. Bom, é im-
portante para o pesquisa-
dor conhecer o sistema
literário em sua plenitude.
Hoje vejo nos congressos
que participo poucos traba-
lhos a respeito dos textos
fundacionais da literatura
angolana, sinto falta de
Cordeiro da Mata, Castro
Soromenho... Necessário
olharmos para o passado e
resgatarmos nomes que
foram ostracizados e não
ficarmos dependentes do
cânone. Isso é um ponto
essencial para o investiga-
dor. Avançando um pouco
no tempo, deparamo-nos
com a pouca referência ao
nome de Viriato da Cruz,
por exemplo. Lembrando
que falo daqui do Brasil. A
geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem men-
cionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão portu-
guesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é um
erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto
de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem
fascinante!
Com receio de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa tra-
jetória, aprecio muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno
Nankhova Trajanno, Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cris-
tóvão, José Luis Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o
Carmo Neto de “Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu
Paxe, inclusive as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal
Maria, Nok Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não
atingem o conseguimento estético almejado, tornando suas poéticas exausti-
vas... agora, o gênero é que fica comprometido na literatura angolana... houve
Alda Lara, agora a Paula Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da
escrita feminina angolana é algo que precisa ser tensionado, principalmente na
constituição de seu cânone e de antologias angolanas recentes. Do publicado
aqui não preciso dizer, muitos brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas
obras e autores.
Entrevista
11 | 02 de Julho de 2014
Envie-nos os seus comentários sobre a entrevistada por e-mail: r.literatas@gmail.com
P:- Falando das novas gerações, acredita que as novas gerações
tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até que ponto
está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos?
Toda nova geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrá-rio, pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita... sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jo-vens é a rapidez em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Fa-cebook, necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros auto-res.
P:- Em Angola temos estado a assistir um forte conflito de gerações. Até
que ponto esse conflito é prejudicial e/ou ajuda os novos autores?
A literatura é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo as-sim, os conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gê-nero, classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos. Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e cadernos literários...
P:- Que responsabilidade tem os escritores de gerações consolida-das na afirmação de novos autores e/ou gerações? A responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu; é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar inimizades.
P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível a promoção de autores
africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há descrimi-
nação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Bra-
sil?
Em 2012, eu e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geo-
grafia/UFBA) apresentamos, na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamen-
to de autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, intitulado:
“Mercado editorial brasileiro: seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003
e o permanente não reconhecimento do negro escritor”. Nosso levantamento
reuniu 115 livros das literaturas africanas de língua portuguesa (romance, con-
tos, poesia e infantil) lançados de 1962 a outubro de 2012. Da literatura angola-
na levantamos 62 livros, sendo que 48 obras são do cânone luso-descendente
(Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e
Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura angolana publicada no Brasil durante o perí-
odo pesquisado resume-se a cinco autores, quadro ainda mais agravante após
2003, ano da lei 10.639. E não há como se estranhar este dado? Onde está o
escritor negro angolano? Nos catálogos das editoras brasileiras é que ele não
se encontra. Quem racializa a questão? E a situação só não atinge algo perto do
zero porque editoras especializadas em temáticas afro-brasileiras se preocupam
com essa disparidade, casos da Mazza, Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje
temos editoras com forte suporte financeiro, de divulgação e obras com qualida-
de gráfica invejável que se escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a luso-
fonia nada mais é que a renovação da discriminação ao negro escritor. Enquan-
to elas tentam fugir da estigmatização de autores africanos, eliminam as repre-
sentações nacionais e continentais e incorporam um discurso diluído na lusofo-
nia.
Essas novas editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já de-
nunciado anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu bri-
lhante artigo “A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do
cânone das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975),
de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz
o seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter
forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e
Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por
outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de
dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretu-
do se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164).
Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a ex-
clusão. E se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades
e congressos de literaturas africanas, o que constataremos?
P:- As nossas literaturas africanas de língua portuguesa, francófo-
nas são estudadas nas universidades brasileiras?
Infelizmente, desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, es-
critores e/ou pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasi-
leiro. E quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente
restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado editorial/
universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a inserção de
novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades. Quando muito,
temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido no mun-
do como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no ano
passado. A íntegra de “Cahiers d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire so-
mente ano passado ganhou uma edição brasileira. Temos uma obra de Patrick
Chamoiseau, de outros negros, mas dispersas nos catálogos das editoras... No-
mes consagrados da luta antirracista nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negri-
tude, afro-americanos de línguas espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos
por aqui, assim como de outros países africanos. Até textos de líderes africanos
como Amílcar Cabral, Stevie Biko e Samora Machel não são reeditados há anos.
Ou seja, essas ausências não são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada
Esperança”, de Agostinho Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio
de Angola independente. Desde então...
No que diz respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sa-bemos seus nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros uni-versitários de literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizon-te. Ainda ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixa-das em “literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco me-lhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido. Entretanto, há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe. Esse estranho distanci-amento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais serão os seus motivos?
P:- Quais são os autores mais referenciados e porque?
As duas últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas
Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro pa-
ra percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone luso-
descendente, e acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas co-
municações. Por isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justifi-
cativa cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranhe-
za as análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos
falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será o
porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um des-
prezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso
pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e isso
o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença psí-
quica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares a
não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas perce-
be-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se na-
queles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos. Talvez
por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça o con-
forto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o contato entre os
pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser independentes ao mercado
editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os autores. Minha trajetória é
um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf, tenho um pouco mais de duas
centenas de títulos de prosa e poesia graças a generosidade dos escritores, que
agradeço a todos. Quem presta um excelente trabalho para o deslocamento do
cânone é a revista moçambicana “Literatas”, idealizada por jovens autores que
perceberam essas restrições e decidiram encarar a ordem vigente. No que diz
respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as in-
vestigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique Freitas,
todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana Lucia Sil-
va Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à mar-
gem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e comparati-
vos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a literatura
negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem outras ba-
ses epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não posso es-
quecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com demais lite-
raturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG) e
Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de homenagear-
mos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade nas li-
nhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com excelên-
cia por eles.
14 | 02 de Julho de 2014
Espaço dedicado a divulgação de escritoires emergentes. Envie os seus textos (poesia, conto, romance)
para análise através do e-mail: r.literatas@gmail.com
“33 SEGUNDOS DE SILÊNCIO” (*)
Celles Leta - Moçambique
É a segunda vez que me faço a este palanque. E olhá-los cá de ci-
ma, a sensação que tenho é que estou num avião prestes a cair
aos vossos pés. O medo de meter os pés pelas mãos aperta-me a alma.
O nervosismo é um frio que me corre a espinha dorsal. Serpentes de suor
já se fazem aos meus poros excitados. É um turbilhão de sentimentos
que, mais do que me fazerem chorar, fazem-me morrer a cada segundo
que confirmo, através do acto de respirar, que estou vivo e, com certeza,
há outras mortes que me esperam, para além daquela que me levará di-
recto à minha última morada. E a sensação de estar prestes a cair aos
vossos pés traz-me à memória o fatídico acidente aéreo de mais um avião
das linhas áreas de Moçambique: O VOO MT 470, no dia 29 de Novembro
de 2013, no Parque Nacional de Bwabwata, em Namíbia.
Ter em memória um luto nacional que chora 33 almas que se foram para
o outro lado da existência, estando cá em cima, neste palanque que mais
se parece ao pináculo do “Binga”, agora que me revisto da tarefa de de-
clamar alguns poemas, vejo-me na condição de uma rainha em xeque-
mate no infinito tabuleiro da poesia, eu que nada mais posso fazer, a não
ser insuflar-me de “eus” poéticos no leve mexer dos lábios deste declama-
dor que (penso) sou, este declamador que declama a dor dos que ficam,
assim que o Voo MT 470 trocou Luanda pelo céu que a todos espera.
O sensato seria que eu declamasse 33 poemas, posto que foram 33 al-
mas que pereceram neste acidente. Mas, se, por um lado, não se mani-
festa aqui dispor de tempo para tanto, por outro, se os 33 poemas do pri-
meiro livro (VOO MT 470) da colectânea poética intitulada 33 POEMAS
SOBRE UMA AVE MORTA (obra inédita) fossem declamados hoje,
possivelmente, ninguém mais a compraria quando este fosse parar às
prateleiras. Por isso, sendo que o número 33 é composto por dois dígitos
do número 3, números que se ladeiam como duas almas abraçadas, irei
aqui declamar apenas 3 poemas.
Contudo, antes que eu os declame, devo dizer: além da sensatez que
acabo de mencionar nas linhas anteriores, existe uma outra, que é melhor
que eu a aduza imediatamente, sob pena de que eu passe por distraído
ou algo a isso transversal: seria totalmente justificável que, em cumpri-
mento da praxe, perante fatalidades como a presença da morte, com vo-
tos de que as almas perecidas na queda do Voo MT 470 alcancem em
paz o reino dos céus, a minha declamação fosse antecedida por um pedi-
do de “1 Minuto de silêncio”. Mas não irei fazê-lo. Por uma razão muito
simples.
O 1 de um minuto nada tem a ver com a queda do VOO MT 470, o qual
vitimou 33 pessoas. 1 minuto equivale a 60 segundos. Não morreram 60
pessoas neste acidente. Tão-pouco podemos chamar aqui a equivalência
do 1 minuto com as horas, pois encontraríamos menos que uma pessoa
perecida. Restou-nos, portanto, duas opções: “33 minutos de silêncio” ou
“33 segundos de silêncios”.
33 minutos até era bom. Dava para que algumas pessoas dormitassem
aconchegados a um pseudo conforto nos seus lugares, aqui neste ven-
tre de poesia, enquanto voam pelos mundos que não conseguem che-
gar usando apenas os seus pés que pisam a sua última morada.
No entanto, é melhor que se pergunte: como é que as coisas ficariam,
se pudéssemos pensar, por hipótese, que haja aqui alguém conversan-
do com os seus botões, a si mesmo perguntando “quando é que este
chato irá abandonar o palanque?”
Seja como for, em memória às 33 vítimas da queda do VOO MT 470,
concedamos ao momento “33 segundos de silêncio”.
VOO TM-470
(Em memória de Carlinhos,
Yumala, Laisa e Jeinia Sambo)
o pedaço de papel
foi amassado na coberta do punho serrado
nada se sabe das palavras ali escritas:
vida, feridos, ou morte encontrada;
prosa, poesia, ou um papel em branco
nada! nada de nada! nada!
VOAR SEM ASAS
conforto?
que conforto?
que conforto
no confronto
de ser ave sem asas
e ter que voar?
COMUNICADO A BORDO
“Caros passageiros,
pedimos as nossas sinceras desculpas
pelos embaraços que possamos causar
pelo sucedido
mas temos a informar
que o voo MT470
terá de efectuar três aterragens
de emergência:
1º Parque Nacional Bwabwata;
2º Cemitério de Lhanguene;
3º Cemitério de Michafutene.”
(*) Texto lido no Instituto Cultural Moçambique-Alemanha – ICMA, a 23
de Maio
Poesia
15 | 02 de Julho de 2014
Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com
Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: r.literatas@gmail.com
Arco e flecha
Samuel Pimenta - Portugal
De boa vontade...!
João Tala- Angola
Jacaré - Moçambique
CORES DO CORPO E DA AL-MA
O Sol, ordem de todas as manhãs
A Lua, que não nos viu ontem
O dia, que não sabe de nós
O Mundo, sem saber de nada
marcam suas presenças na nossa mente
mente que criou o Sol, a Lua, os dias e as manhãs
No meu coração
cheio de tudo, porque sabe tudo, tudo
espera para ser
tão cedo apareças.
De raspão povoamos a língua do nada
escritos, escrevências nada mais
do que escrevivendo o costume
alma cheia o texto é pão escrevi
vendo a multidão, a fonética. Multiforme.
Da multiplicação do sonho bandeiras.
Arde um hospício de corpo e alma
Poemas da ausência
Dos ricos corações;
Das belas emoções... África!
Foste tu que despertavas o coração dos homens forasteiros...
Transformando o teu continente de naikuros e tu mesmo os atavas... África!
África dos tempos de marfim;
África dos tempos de ouro;
África dos tempos de escravidão sem fim...
Dos teus homens conscientes;
Dos teus homens pacientes;
Oh! África!
Onde estão aqueles homens “naikuros” que navegavam mares e oceanos,
Que abriram estes caminhos duros – ao mar iam lançados – alguns levados e nunca alcançados?
Oh! África! Teus caminhos por onde homens passavam,
Com os seus barcos e canoas navegavam,
Navegavam, remavam e iam...
Iam... contra a brisa do frio,
Iam... contra a fome e porradas,
Iam... vestidos a maneira – marcados como mais um boi importado,
Iam... jamais voltaram - só você sabe confessar…
Por onde os homens que saíram e não voltaram... donde sonegam!
África!
04/04/03
A recta que verga ao galho firme, forma trespassada pela força elástica do impulso que caça e domina a morte.
Mário Lúcio Sousa– Cabo Verde
Tapete Persa
Ovelhas contínuas fervem o leite da constelação. À margem flores de lótus ou
ânforas de Júpiter. A seda derrama o zodíaco na areia. Derrama fornalhas, rígido
fio de luar. Cidades bordam o centro: crisântemo explosivo – princípio do outro,
caríssimo também. Azul não faltará de tinteiro tombado, pavão noturno e
inacessível e tão difícil de pisar, tão fácil com ele todavia voar.
Rosana Piccolo - Brasil
\
16| 02 de Julho de 2014
Você também pode publicar. Envie-nos o seu conto por e-mail: r.literatas@gmail.com
Poesia
morri no mar
e ressuscitei no rio
tenho saudades do sal
Amosse Mucavele-Moçambique
No rosto da minha vida
a beleza nunca foi o fim
é sempre um dos meios
por onde as possibilidades
se encontram em mim
em vez de rugas
em cada encontro
um novo toque desponta
e se escreve no belo
A estética da minha vida
Nelson Lineu-Moçambique
Vento?
só subindo no alto da árvore
que a gente pela ele pelo rabo…
in DE COMPÊNDIO PARA USO
DOS PÁSSAROS, 1961
Manoel de Barros– Brasil
A lua traz no halo meses e calendários
Das mulheres amáveis na curta medida
Das sementes magníficas
Do nascer e da morte
A lua desaparece na nebulosa malha
Da noite resignada
A lua perde o centro
Na noite com meses e calendários
Ficam estrelas para mulheres solitárias
E saudosas aguardam sementes magníficas
Do nascer e da noite
Luís Kandjimbo-Angola
Sob a Lua
Pretendo chegar a Deus
Sílaba a sílaba
Com sangue puro
Como quem luta
E nunca soube o que é lutar
Sou inerme
Na carne da substância pura:
Matéria do trabalho cósmico,
Fenómeno do fogo
“Strictu sensu”.
Chamo a Deus
No semblante amorfo da música.
Hirondina Joshua-Moçambique
As vezes a minha poesia
sou eu mesmo,
Meu corpo
Minha alma
E cada palavra
Que nasce
sobre a minha nudez...
Sou cada palavras
Que bebo
Para minha sede
Em cada livro
Naufragar...
Zekeene Chichava - Moçambique
"IGNOTO DEO"
17 | 02 de Julho de 2014
Você também pode publicar. Envie-nos o seu conto por e-mail: r.literatas@gmail.com
Cronica
H oje senti-me muito infeliz ao recordar a minha família perdida e ten-
tei recordar todos os que ficaram ao meu lado quando os momentos
maus me tocaram e abateram. E foram muitos os de longe e poucos os de per-
to... Será que os de longe, se estivessem estado perto, continuariam a ser mui-
tos?... Agora que estou longe, sinto que sou muito mais perto dos que deixei
longe... E penso na minha irmã e nas minhas sobrinhas, no meu cunhado de
Portugal, nos meus cunhados e sobrinhos no Brasil...
Nos amigos que em Portugal, na Espanha, França, Itália, Alemanha e em todas
as terras por onde passei e deixei amor!... E estou certa de não ter o direito de
me sentir infeliz se os que mais amo e sempre amarei me maltrataram, incom-
preenderam e esqueceram. Um dia saberão que o amor que se despreza cedo
se revolta contra quem o maltrata e se faz pagar em infelicidade e amargura que
o arrependimento não remedeia; porque quem renuncia ao amor perde o direito
à felicidade. Ora eu nunca renunciei ao amor...
Então, não devo sentir-me infeliz!... Penso que o dia de hoje foi, apenas, muito
fatigante: todo o dia no Banco para conseguir levantar os euros que pedi a Lis-
boa para poder, daqui, pagar parte das dívidas contraídas a quando do roubo de
que fui vítima em Itália. O dia todo! E só amanhã poderei ir enviar o que devo! É
aqui que eu sinto que a Europa está muito mais rica, não porque tenha mais di-
nheiro, mas porque tem mais meios de comunicação E MAIS eficazes...
Se para levantar dinheiro de uma conta é preciso um dia, imagine-se para regu-
larizar um negócio em que é preciso pensar na forma de ganhar mais do que se
pode manifestar que se ganhou...
E começo a compreender o funcionamento do país que está para além da Lite-
ratura; o país que passa mais perto de mim, agora que estou neste bairro perifé-
rico, mas ainda muito encostado à cidade "branca" de outrora. Ainda não tenho
o meu alojamento no bairro da Polana, perto da Embaixada de Portugal, e estou
em casa de uma amiga que me acolheu na sua casa de MÃE grande, onde me
sinto irmã dela e avó dos seus filhos e netos... E no bairro da Malhangalene já
não há cafés, nem Centros Comerciais elegantes... só existem os grandes Ara-
mazéns Shoprite e Premier. De resto, as ruas e pracetas, que um tempo foram
lindas, hoje apenas conservam os sinais dessa beleza antiga, quase apagados,
nas acácias e jacarandás maltratados e nas abundantes mangueiras cheias de
frutos pendentes, oferecendo-se em promessa de abundância a qualquer pas-
sante. E eu olho-as com gula, lamentando o facto de ainda estarem tão verdes e
tão longe da sua cor doirada ou rosa sangue!
Dentro do carro da Lena, enquanto a espero, à nossa porta, observo a abaca-
teira quase sem folhas e cheia de flores prestes a se transformarem em frutos.
Num dos seus ramos nus, poisa um pássaro lindo! É multicor e iridiado! O seu
tamanho é o de uma rola, a cabeça redondinha e azul, a cauda muito longa e
mais escura. Fico presa à sua beleza e desejaria ter uma máquina fotográfica.
Recordo os pássaros da Inez Paes e gostava e lhe perguntar se sabe o nome
deste. E O MEU DIA TORNA-SE MENOS TRISTE...
Na machamba da Lena, a minha amiga advogada que adora trabalhar a terra e
ver desabrochar seus frutos, há muitas mangas, muitas papaias, abacates, bana-
nas, ananases e atá morangos! Além da couve, do feijão, pimentos, alface, piripi-
ri e mandioca. E o que se come em casa vem quase tudo da machamba que fica
junto ao Umbeluzi, um rio lindo onde alguns hipopótamos vêm morar e que de-
vem ser protegidos para que a população os não mate. As contradições de um
país a crescer, tão diferentes e tão iguais às de um país, o meu, a envelhecer e a
deixar morrer o que de mais belo sempre o caracterizou: o sonho de ser maior!
A viagem a Inhambane
Regressei há pouco de Inhambane, a "Terra da boa gente”.É, acima de tudo, ter-
ra de belas águas e lindas praias! Foram 3 dias de encanto, a partilhar uma casa
fantástica, junto ao mar. Rever o Calane da Silva e a Mila, ouvir as "novelas" lo-
cais, e, sobretudo, projectar a nova Oficina de Escrita Literária para Inhambane
foi bom! Será uma operação muito interessante a que me voltará a fazer traba-
lhar com os alunos da escola primária. Julgo que a ideia terá muitos adeptos e
dos resultados prometo dar conta a partir do próximo mês de Maio de 2014.
Até lá, sonho e trabalho! A corrosiva mesquinhez de quem se preocupa com os
galões a mim não afecta. Tentarei passar por cima e provar aos que ignoram a
medida da sóbria apreciação do néctar que o belo do que se saboreia está na
capacidade de reter o sabor na boca e não na pressa de engolir...
De Inhembane, além do gosto a mar, trouxe a esperança de retomar a literatura
infanto-juvenil nas escolas primárias. Recordo as minhas queridas Angelina Ne-
ves, a Amélia Russo e a Samima que tanto se bateram comigo para levar para a
frente o projecto que o Camões fez abortar porque me obrigou a regressar a Por-
tugal (indiferente aos pedidos do próprio vice-ministro da Educação moçambica-
no), dado que já estava há mais de 8 anos em Moçambique e os Leitores não
podiam exceder 6! É fantástico como certas regras tão rigorosas, em determina-
dos momentos, se tornam permissivas e ligeiras em momentos seguintes. Neste
momento, já há quem conte 17 anos no mesmo lugar!... Mas o projecto que en-
volvia o Ministério da Educação, a UNICEF e financiado pelo Banco Mundial, co-
ordenado por mim e pelo INDE, sem custos para Portugal além do meu venci-
mento, CAIU!!! E que importância tem isso? Perguntarão... De facto teve muita!
Embora hoje tenha aprendido que tudo aquilo com que a vida nos magoa nos
deixa sempre uma lição importante. Julgo que a aproveitei e hoje estou a reco-
meçar um sonho que já encontra mais vozes que o irão tornar mais real. Sei que
Inhambane é a "terra dos bons sinais" e aquela onde as "mangas verdes com
sal" se oferecem aos bons paladares...
Fernada Angius –Moçambique
Fragmentos de
um Diário
Este espaço pode ser seu envie seus
textos para:
r.literatas@gmail.com
18 | 02 de Julho de 2014
Art&factos
Resenha Envie-nos os seus comentários sobre este assunto por e-mail: r.literatas@gmail.com
19 | 02 de Julho de 2014
F ruto de uma incursão crítica em sua vida e obra, o poeta To-
más Antônio Gonzaga acaba de merecer um justo resgate em
publicação da Academia Brasileira de Letras, que em sua coleção “Série
Essencial” convida um especialista para discorrer sobre autores que
inauguraram as cadeiras da Casa de Machado de Assis.
Coube ao professor, crítico e ensaísta Adelto Gonçalves, um os
grandes estudiosos da bibliografia do patrono da Cadeira 37, mergulhar
no universo gonzaguiano (nascido no Porto em 1744), buscando nas
suas raízes históricas a gênese estética de sua poesia, a partir de sua
vida e de seus estudos, divididos entre a infância/juventude na Bahia,
Recife e Rio de Janeiro e seu bacharelado em Coimbra.
Nesse livro, que tem a chancela editorial da Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, o professor Adelto colige alguns de seus melho-
res poemas, com estudos e comentários que situam a produção do au-
tor do antológico “Marília de Dirceu” no contexto histórico em foram pro-
duzidos, na esteira do que já havia publicado em seu Gonzaga, um Poe-
ta do Iluminismo (Ed. Nova Fronteira, Rio, 1999), resultando de sua tese
de doutorado na USP. As publicações da ABL sobre seus patronos
constituem pequenas preciosidades que alcançam não apenas a leito-
res e estudiosos, mas também àqueles que se interessam de um modo
geral pelo conhecimento de nossa ancestralidade literária, naquilo que
de fundamental a produção dos nossos antepassados têm para a forma-
ção de nossa identidade cultural e na constituição de um autêntico câ-
none brasileiro.
Ensaio crítico
resgata Gonzaga
Ronaldo Cagiano (*)
Embora os volumes contenham pouco mais de sessenta páginas,
as informações contidas e o juízo crítico dos autores convidados para a
confecção da obra rastreiam o essencial, fornecendo, de forma sucinta,
mas analítica e reflexiva – como no enfoque de Adelto sobre Gonzaga –,
informações básicas, seguidas de um breviário de poesias ou excertos do
homenageado.
Sobre Gonzaga, o professor Adelto mapeou trajetória pessoal e lite-
rária, palmilhando aspectos políticos, sociais, afetivos e culturais dominan-
tes naquele período, como as conspirações na época da Inconfidência, as
paixões, as cobiças, o movimento da Derrama, o degredo na África e sua
morte em Moçambique em 1810.
Com essa edição, a ABL deixa o registro e firma a memória definiti-
va, por meio desse breve, mas lúcido e detido estudo, daquele que foi al-
çado à condição de um dos poetas mais líricos e populares no arcabouço
da literatura lusófona. Um poeta que, apesar das vicissitudes por que pas-
sou, em razão da detenção e exílio após a Inconfidência Mineira, deixou
uma obra de dimensão épica, humanista e universal, um canto de exalta-
ção ao amor e à liberdade, que nos inspiram nesses tempos vigentes, em
que experimentamos um dilacerante e veloz de escalonamento de valores
morais, políticos e culturais.
Adelto Gonçalves, autor de vasta e premiada obra - entre as
quais Mariela Morta, Os Vira-Latas da Madrugada, O ideal político de Fer-
nando Pessoa, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido, Direito e
Justiça em Terras d´El Rei: ouvidores, juízes de fora, juízes ordinários e
vereadores em São Paulo colonial (1709-1822) – faz justiça a Gonzaga e
reforça a consolidação de uma obra basilar de nossa literatura.
_________________________
(*) Ronaldo Cagiano, escritor, é autor de Concerto para arranha-céus (contos,
LGE, Brasília, 2004, Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio,
2006) ,O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011) e Moenda de silên-
cios (novela em parceria com Whisner Fraga, Dobra Ideias, SP, 2012), entre ou-
tros.
Anuncie neste espaço
internacionalize sua marca e contribua para desenvolver a cultura.
Conto
C omeçou por comprar caniço, de luxo, pouco adquirido na aldeia que
só compram individualidades de vulto, até tinha direito de pinceladas
de verniz para resistir ao mau agoiro de aves e outros animalejos.
Quando o caniço conquistou volume, amontoado no quintal, a aquisição de ou-
tros materiais não atrasou. Em poucos dias a casa de Tchaúque marcava dife-
rença e era digna de virtuosos comentários.
A partir do período em que a casa terminou, o muro de arrames e bambu e o
poço marcaram a nova época da vida do camponês. Ele já se distanciava dos
atributos preconceituosos e olhares inferiorizantes da vizinhança. Mesmo discri-
minado outrora não impedia que tirassem a água no seu quintal e afiançava a
quem necessitassede dinheiro, mesmo que não se encontrasse em apuros.
Tchaúque nasceu na aldeia. Fugindo as rédeas da sua dinastia não emigrou à
África do Sul, preferiu as minas de plantação. Todos condenavam-no pela op-
ção, pois, bastava ser homem, com idade de se casar, para não escapar a fron-
teira de Ressano Garcia. Ninguém concordava com a escolha feminina – ir às
plantações – embora bons frutos sua enxada produzisse.
Na rua, os rapazes de sua idade disfarçavam não o ver e quando o dirigissem a
palavra era para o menoscabar por causa da sua actividade. De tanto ser crucifi-
cado, acreditava-se ser homossexual porque nunca se tinha casado e não era
do seu agrado conversar com mulheres, mesmo que fossem solteiras. Tal boato
só teve fim quando, finalmente, se casou.
Nos rapazes de sua geração, Tchaúque foi o último a se casar, numa altura em
que já não se vislumbrava esperança. Pois, os seus três irmãos, todos mais no-
vos, haviam se casado faz tempo e trabalhavam na terra do rand.
A felizarda é uma moça que já se instalou em vários lares. Por causa do seu
comportamento atormentado vezes sem conta foi corrida. Chamava-se Isabel,
bonita e caprichada no visual. Vestia-se como as moças da cidade, já que vivera
nos prédios em tempos remotos a convite da sua irmã mais velha. Tal mordomia
fugiu-a quando foi flagrada no quarto da irmã com o seu próprio marido – a his-
tória gerou muita intriga -, mas, a pedido da mãe, foi perdoada.
Quando se casou não era tão jovem como as que listavam o número de lobolos
na altura. Mas porque Tchaúque também perdera a fase gloriosa preferiu con-
tentar-se com ela, sem atender os chamamentos do passado deficiente dela.
A festa teve pouca gente mas muita comida. Os mais velhos condenaram a uni-
ão, justificando o atropelamento das normas impostas pela tradição – o lobolo é
mais do que um casamento, é um ritual – é a cantiga dos mais esclarecidos que
soava para os petizes –, para que não se descurassemna altura de seguir na
mesma aventura.
Aquele era o terceiro casamento de Isabel. Mas o que agravava o descontenta-
mento dos familiares do marido eram os três filhos que trouxera da cidade. Nes-
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20 | 02 de Julho de 2014
O Mistério do Tesouro
Elcidio Bila - Moçambique
se trio há rumores de que num deles possa correr o sangue do cunhado.
Todos queriam saber a fonte da riqueza repentina. Os mais achegados garantiam
não se revelar o mistério nem a esposa.
Tchaúque sempre foi à machamba. Lá não só trabalhava como também comia o
tempo.
A machamba era grande, somavam-se inúmeros hectares. Era a mais extensa da
aldeia. Quando a família cresceu – as mulheres casaram-se e os homens emigra-
ram outros faleceram – Tchaúque herdou o património e fez dele o seu ganha-
vida.
Certa manhã, como era de costume, começava a labuta do humilde camponês. A
enxada de cabo curto perfurava a terra, o tronco negro, nu recebia os primeiros
raios de sol; trazia na cabeça a camisa amarrada para protege-lo do brilho que
ainda se erguia na nascente e calções jeans que foram calças um dia. O suor go-
tejante anunciava tamanho esforço que a terra seca e pálida investia nos seus
músculos minúsculos.
No decorrer do trabalho, certo momento a enxada não foi fundo. Repetiu o movi-
mento, dessa vez com mais pujança, mas o obstáculo limitava o percurso da in-
vestida. Tchaúque largou o objecto que dormiu à meio-metro e perfurou o local
com as garras. Nesse gesto indiscreto sentia um objecto a coçar-lhe os dedos, por
isso curvou o corpo comprido alargando mais o buraco. Desse exercício nasceu
uma caixa de madeira que pelo aspecto data há séculos. Puxou-a para debaixo
da única árvore que doa sombra à machamba e abriu-a com cautela, medos e cu-
riosidades cruzavam-se. O recipiente continha barras de ouro.
Desde aquele dia a sua vida seguiu novos hemisférios. Constantemente ia ao
mercado onde trocava a sorte em dinheiro.
Quem comprava a fortuna era o monhê. Conheciam-se desde a tenra idade, foi
amigo dos avós e dos pais. Foi dele que soube que as barras outrora encontradas
eram de ouro e que valiam os olhos da cara a vida toda. E só monhê sabia do si-
gilo.
O monhê era o maior comerciante do mercado, importava e exportava quase tudo.
Era conhecedor de vasta complexidade de minerais. Era ourives no oriente, sua
primeira moradia, também vendia jóias e tecidos diversos em grandes proporções.
Enquanto Tchaúque prosperava o Régulo reclamava o constante roubo do seu
enorme gado. O curral era vandalizado todas as madrugadas, pouco a pouco min-
guava sua herança. Ele era o maior criador de gado na aldeia e quem tinha muitas
mulheres e uma multiplicação de filhos. Não vendia seu rebanho, nem com dinhei-
ros avultados, somente esfolava sempre que um dos trinta netos o visitava.
O único desconfiado na rotina dos assaltos era Tchaúque, por ter progredido de
forma substancial em tão insuficiente tempo.
Ao Régulo e a aldeia, embora soubessem da sua boa índole, não sobraram dúvi-
das.
Certo dia, depois da explanação do Régulo sobre os assaltos no posto policial fo-
ram ao encontro do indiciado no seu sítio de sempre.
Encontraram-lhe inclinado, golpeando a terra como de costume enquanto a ca-
nhenha mão afastava o capim desencharcado. Os polícias interromperam-lhe com
um mandato de prisão. Sem nenhum minuto para interrogar as causas foi levado
ao posto.
Esteve preso cinco dias. Aguardava o interrogatório. Quem lhe incumbia a missão
era o comandante que não se encontrava na aldeia. Diziam estar a participar em
simpósios policiais na capital. Mas se sabia, sem claros testemunhos, que se em-
briagava na companhia de prostitutas em lugares modestos, para que não o vis-
sem.
- Tchaúque, como explica tanta riqueza em pouco tempo?
Olhou para sala onde se encontrava.
Conto
21 | 02 de Julho de 2014
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A palhota era enorme mas degradada, numa das paredes estava afixado a
fotografia do presidente da república; tinha uma secretáriaempoeirada,
com um molho de papéis sobre a mesma e beatas de cigarros que fugiam
do cinzeiro; tinha também duas cadeiras plásticas, de cores confusas –
numa ele estava sentado e noutra o comandante –, um dos polícias estava
de pé com um chamboco numa mão e noutra par de algemas enferruja-
das. O outro polícia tinha se ausentado. O ofendido – o Régulo – não esta-
va no interrogatório, porém alguém o viu logo cedo, acredita-se que ia ex-
torquir o chefe.
- Tchaúque não respondes? Não temos todo o tempo!
Enquanto descrevia o cenário com a vista dissimulada pensava se devia
ou não desvendar o mistério. Ocorriam reacções no seu gordo pensamen-
to. Até que o desvendou:
- Fiquei rico porque encontrei ouro na machamba.
Lá foram, para certificar, com as algemas cravadas nos pulsos. O coman-
dante tomava a dianteira, Tchaúque no centro seguido pelo polícia, quem
todo o trajecto batia na sua própria palma com chamboco num gesto de
engolir a longa distância.
Chegados à machamba, Tchaúque dirigiu-se à cova. Curvou-se, ajoelhou,
já com as mãos soltas, escavou a terra. Escavou fundo, mais fundo do que
o costume, escavou com mais força que noutros dias, escavou até se can-
sar, até dar-se conta que não mais existia a caixa.
O comandante, perante aquela desilusão, ordenou ao polícia que o algemasse no-
vamente e prometeu:
- Hoje mesmo levo-te à cadeia da cidade, sacana!
- Espera Senhor comandante, vamos perguntar a minha esposa, talvez saiba.
Isabel, desde que o marido ficou preso nenhum dia o visitou, alegando o trauma
que passara desde que o pai morreu na cela da cadeia.
Quando chegaram à sua residência, o aspecto arejado do quintal mostrava ausên-
cia de gente há dias. Ninguém sabia do seu paradeiro e desde o cárcere de
Tchaúque nunca mais foi vista.
Antes de abandonarem o local, a vizinha do lado revelou que Isabel encontrava-se
às escondidas com Samuel, amigo de infância de Tchaúque, todas as noites na
mata.
Admitia-se que os dois se escapuliram com o tesouro, sem se indagar com que es-
pertezas o ouro foi descoberto.
Na noite do mesmo dia, Tchaúque recebeu no posto a visita do amigo monhê,
quem levava a fortuna de volta. Não consentiu compra-la das mãos de Isabel, pois
sabia que até ela desconhecia o segredo.
No lugar do camponês, Isabel e Samuel ficaram encarcerados e transferidos à ca-
deia da capital também indiciados de roubo de gado, com testemunhas até de so-
bra.
Quando a arte
interessa
a vida vale
a pena
Leia a revista
22 | 02 de Julho de 2014
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Lobolo
-Ligou-me agora o meu advogado a dizer-me que ele se recusa em
assinar a papelada do divórcio.
-Deverias é estar feliz, pelo menos continuas casada, ainda que seja
no papel. Sabes quantas mulheres sonham e lutam, vida toda para
um dia se casarem…?
-Tantas mulheres sonham e lutam porque ainda não se casaram.
-A tua experiência faz de ti insensível à esta ordem social…
-Não interessa a ordem , para mim foram dois e últimos meses de
agonia!
-Só dois para tanta certeza?, dá-me arrepios ouvir isso de uma mulher
a jorrar juventude!...
-Tempo suficiente para entender o tamanho da aberração que isso é:
viver a dois para a vida toda. Ora bolas…
O meu espírito caçador ia se nutrindo de chances, nada há de melhor
que uma presa fragilizada. Animal ferido requer bons cuidados e con-
solos. Mas, mantive-me no meu lugar, esperando iniciativa dela, afi-
nal, “puxa a manta quem o frio sente”...
Dei sinal ao barman para trazer-me outra cerveja. O mesmo gesto fez
ela.
-Desculpa, como que te chamas?
-Bete.
-Betinha… ofereço-te o meu peito e um lenço para enxugar as lágri-
mas…
-Enxugo as lágrimas num copo de cerveja bem gelada!... Respondeu
ela num tom cómico.
Confesso que as palavras a seguir me foram difíceis de as pronunciar,
mas como o difícil é sempre possível, lá vieram elas:
-Aposto que os dois meses de casamento foram dois meses de muita
cerveja bem gelada…
-Não é bem assim, mas é quase isso, excluindo duas semanas de lua-
de-mel passadas no Zalala Lounge.
Parecia voltar a magia, naquele rosto de linda mulher. Em seguida en-
trou um homem baixo, fazendo abdómen apresar-se antes dele, um
protótipo ideal dos frequentadores do bar. Vimo-nos impedidos de
continuar com o papo, a presença do barrigana criara uma muralha. O
que me parecia negativo revelou-se, contudo, bastante positivo: para
minha alegria, ela veio juntar-se a mim.
Já na terceira cerveja, falámos de tudo e de nada, aliás, até do nada
falamos.
Na manhã seguinte, bem ao meu lado, uma mulher de curvas que pa-
ralisam qualquer transito, estavam bem estacionadas na minha cama.
Corpos totalmente nus. Eu que já havia acordado, fui direito a geleira,
bebi uma água e trouxe-lhe, como mandam as regras do cavalheiris-
mo. Deitada, enquanto bebia eu a contempla, corpo claro, cabelos
compridos que me pareciam ser de uma outra raça humana. E disse
para mim: Como é que um homem é capaz de esperdiçar uma festa
dessas?
Depois de ter bebido, eu ainda admirando-a. Conversámos, conversá-
mos tanto! Que o tempo passou sem nos darmos conta do mesmo!
Um dia…
Duas semanas… Três meses…
E… já tínhamos encomendado as alianças e falávamos do Lobolo!
Japone Arijuane - Moçambique
O casamento é a maior causa do divórcio.
Groucho Marx
N o interior de mim, a alegria convertia-se numa tristeza que o exterior
não mostrava. Mantive o aparente aspecto. Enquanto isso, vi-a, a Be-
te, na sua gloriosa entrada. Trajada a rigor para o momento. Mãos dadas ao pai.
Dois petizes com a indumentária caprichada. Nas suas ingénuas mãos, vasos ar-
tisticamente trabalhados a verterem de pétalas de rosas.
Todos se levantaram. Olhei a Bete, como se da primeira vez a visse, não a reco-
nhecia. Esbelta e alegre, fixava os olhares em mim.
Meu corpo estremeceu de um sentimento que recuso descrever; foi quando meu
padrinho mo disse: ―esta aí a mulher que irá viver contigo para o resto da tua
vida.
Foi num sábado, estava eu sentado numa mesa de bar. Um copo de cerveja ia
fazendo o que de bom sabe fazer. Assistia ao vaivém da espuma no copo, o es-
petáculo único que esta faz com mestria própria. Pensava absolutamente em na-
da. O tempo corria a passos galopantes, persegui-lo é correr atrás de prejuízo, e
a minha espécie de homem evita, ao máximo, ter prejuízos.
Estava no segundo gole, quando uma mulher feita em pouco tempo se sentou.
Disfarcei, logrei esse intento com mais outro gole na então bem gelada Dois
Emmy ali na minha frente.
Chegou o barman, depois do “faz favor minha senhora”, na mesa oposta a minha,
já lá estava uma cerveja. Um copo semicheio, um tange de batom nas extremida-
des do mesmo.
Um vibrar de telefone estancou o silêncio nos ares. Curta e discreta. Ao tirar o
aparelho dos ouvidos, pareceu-me perder toda alegria que ostentara.
- Pelos vistos o telefonema não te fez bem… Lá vim eu, que não via hora de
abordá-la.
-Por favor…? Disse ela, da forma mais melódica possível e como se não ouvisse
o que eu dissera.
-Suponho que o telefonema te arrancou a alegria do dia…?
-E como…!
-Sem querer intrometer-me, mesmo estando a fazer. já li numa destas revistas de
auto-ajuda que o desabafo é uma das melhores terapia … Juro que o meu espíri-
to de homem caçador estava em alta naquele sábado. Antes mesmo de dar-lhe
tempo para pensar, capacidade rara nas mulheres, pior as que frequente aqueles
lugar, continuei:
-Problemas, todo mundo diz que os têm, mas na verdade somos nós os proble-
mas de nós mesmos. Espero que sejas uma excepção.
-Claro que não!, senão não estava aqui a afogá-los.
Discordei, embora não mostrasse nenhum sentimento de discórdia no rosto. Pois,
contrariamente ao que outros pensam, o bar é o pior dos lugar para afogar os pro-
blemas; pelo contrário, é o bar quem afoga as suas vítimas no fundo do abismo.
Mas, como é próprio dos homens da minha espécie (quiçá em vias de extinção),
quando se está para conquistar não se pode mostrar, à prior, qualquer oposição;
nada melhor que a indiferença, o que no fundo é o mesmo.
Entretanto, ela continuou:
-Tenho problemas com meu ex.
-Este géneros de problemas, até onde eu sei, só os dois podem resolver…
Conto(s) Contigo