Post on 24-Jan-2019
RODRIGO DANÚBIO QUEIROZ
MIRCEA ELIADE E A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO
TEMPO NO SAGRADO E NO PROFANO
2
A memória de meu pai Manoel Queiroz Netto.
A minha filha Sophia.
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―Quando o homem, pela primeira vez, ergueu os olhos
para o céu, não foi para satisfazer a uma curiosidade
meramente intelectual. O que realmente buscava no céu
era seu próprio reflexo e a ordem do seu universo
humano.‖
Ernst Cassirer
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO............................................5
2 MIRCEA ELIADE, UM ESBOÇO
BIOGRÁFICO..............................................9
3 A DUALIDADE
SAGRADO/PROFANO..............................19
4 O HOMEM RELIGIOSO E O HOMEM
PROFANO..................................................24
5 A CONCEPÇÃO DO ESPAÇO .................32
6 A CONCEPÇÃO DO TEMPO...................53
7 A CAMUFLAGEM DO TEMPO SAGRADO DO
MITO NO MUNDO
MODERNO.................................................72
8 CONCLUSÃO............................................85
9 REFERÊNCIAS................................................90
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1. INTRODUÇÃO
O homem moderno é possuidor de um novo modo de ser
diferente daqueles que foram seus ancestrais, os homens
primitivos. Está oposição se encontra principalmente pela
forma de percepção da realidade, isto é, de como o ser
humano compreende o mundo em sua volta. Para o
homem primitivo a realidade tem seu inicio a partir do
surgimento de um ser supra-humano. Este ser, ou seres, é
o principio de todas as coisas criadas no mundo, ou seja,
não há possibilidade de conceber uma realidade senão a
partir de seres míticos que foram responsáveis pela origem
de toda a realidade. O universo existencial do mundo
arcaico conservou-se através dos mitos, dos símbolos e
costumes que, mesmo com transformações no decorrer do
tempo, deixam ver ainda claramente o seu sentido. Dessa
forma, compreendemos que o homem primitivo se
comportava como mais uma criatura que fazia parte do
cosmos ordenado por seres sobrenaturais. Percebe-se
então que as experiências de Espaço e de Tempo são
primordiais para o homem primitivo manter-se em contato
com o universo sagrado. O filósofo romeno Mircea Eliade
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nomeou esse modo de viver como homo religiosus. Por
outro lado, encontramos o homem moderno, ou não-
religioso, que fundamenta sua existência em sua própria
razão. Quer dizer, este homem não-religioso procura
estabelecer sua existência dessacralizando, sempre que
necessário, sua realidade. Em outras palavras, na tentativa
de compreender o mundo pelo meio racional o homem
moderno se esforça em negar as superstições de seus
antepassados. Porém, se o homem a-religioso colocou-se
em posição de se esvaziar das referências existenciais de
seus antepassados, significa dizer que se reconhece ainda
sobreviver raízes do homem religioso no mundo moderno.
Partindo da consideração de que existem dois modos de
existir no mundo, o que nos interessa aqui é analisar como
Mircea Eliade apresenta sua compreensão de Espaço e de
Tempo na experiência existencial do homo religiosus em
contraposição ao homem não-religioso. Como já
observamos o Espaço e o Tempo é de vital importância
para compreensão do modo de ser religioso. Assim, o
presente trabalho se propõe a pensar estas experiências a
partir das seguintes questões: Como é o modo de ser
religioso e o modo de ser não-religioso? O que é o sagrado
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e o profano? Como o homem primitivo vivencia o Espaço
e o Tempo e que importância essas concepções implicam?
O homem moderno se posiciona no Espaço e no Tempo
semelhantemente aos seus antepassados? O Espaço e o
Tempo são, por natureza, reversíveis? De que maneira o
homem religioso se esforça para manter-se o máximo de
tempo possível num universo sagrado e,
conseqüentemente, como se apresenta sua experiência
total de vida? Qual é a função do mito na vida do homem
religioso? Se o homem moderno se esforçou e continua a
se esforçar em dessacralizar o mundo, existe ainda a
possibilidade de se perceber o sagrado? Se sim, o sagrado
se manifesta ou se camufla na vida do homem não-
religioso? Como isto ocorre?
Estas questões revelam a necessidade de entender e
conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, na
tentativa de compreender outras formas de perceber o
mundo, pois este transforma a sua vida num ritual. Será
que a razão, isto é, a ciência, realmente dá conta de
explicar o mundo? Segundo Eliade, as grandes crises do
homem moderno têm, mesmo que bem dissimulado, uma
crise religiosa. Tal crise se dá na medida em que o homem
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moderno se lança no mundo sem consciência de seu
sentido de existir nesse mundo. Embora a maior parte das
situações assumidas pelo homo religiosus das sociedades
primitivas e das civilizações arcaicas foram sendo
ultrapassados pela história, ainda permanecem vestígios de
suas modalidades de ser que contribuíram para que
tornássemos aquilo que somos hoje, fazem parte, portanto,
de nossa história. ―Se estamos impossibilitados de reviver
tais experiências, pelo menos podemos imaginar a sua
repercussão na vida dos que por elas passaram. Uma vez
que o Cosmo era uma hierofania e a existência humana
estava sacralizada [...]‖. (ELIADE, 1979, p.109) Que
raízes são essas? Nosso ponto de partida para reflexão
dessas questões se fundamenta nas pesquisas de Mircea
Eliade. Como veremos adiante em sua biografia, ele
dedicou a sua vida acadêmica em compreender a
existência do sagrado e da vida religiosa sempre a partir
de uma leitura fenomenológica.
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2. MIRCEA ELIADE, UM ESBOÇO BIOGRÁFICO
Mircea Eliade nasceu em 09 de março de 1907 em
Bucareste, capital e maior cidade da Romênia. Considera-
se, como ele mesmo afirma1, uma síntese cultural de dois
principados que faziam parte do reino de seu país, a saber,
Moldávia e Olténia. De seu pai, que era militar e nascido
na Moldávia, herdou a melancolia, o interesse pela
Filosofia, pela poesia e certa passividade perante a vida.
Por parte de mãe que era olténia, adquiriu uma energia que
o deixava inquieto. Nascido em um lar católico ortodoxo e
considerado burguês, aos treze anos de idade já obtinha
autorizações dos pais para fazer pequenas viagens, gosto
este que o acompanhou por toda a sua carreira de
pesquisador das religiões. Outro prazer que o acompanhou
desde jovem foi o da escrita, Mircea publicou seu primeiro
artigo aos treze anos de idade intitulado: “Como descobri
a pedra filosofal”. Tratava-se de um pequeno conto
cientifico que foi apresentado para um concurso aberto
entre todos os liceus da Romênia, Eliade ganhou o prêmio
em primeiro lugar. Desde jovem tornou-se poliglota,
aprendendo o italiano, inglês, francês e alemão. Mais
1 Cf. ELIADE, 1987, p. 12
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tardiamente aprendeu o hebraico, o sânscrito e o pársi
(idioma falado no oriente médio de origem Persa).
Em outubro de 1925 inscreve – se na faculdade de letras e
de Filosofia da universidade de Bucareste. Neste período a
Romênia se encontrava numa atmosfera intelectual de
liberdade e descobertas de suas próprias raízes culturais
como também de culturas diferentes. Neste contexto,
Eliade se interessou pela alquimia e principalmente pelo
orientalismo. Seu interesse se deu na tentativa de buscar
outras formas de explicar o homem europeu além do
pensamento de Kant, Hegel e Nietzsche. Isto é, Eliade
percebia a necessidade de resgatar a importância de raízes
esquecidas pelo homem moderno. Como ele mesmo
afirma; ―Sentia que não podemos compreender o destino
humano e o modo especifico de ser do homem no universo
sem se conhecer as fases arcaicas da experiência‖.
(ELIADE, 1987, p.20)
No ano de 1928 Mircea Eliade viaja à Roma para
participar de um seminário e trabalhar sua tese “A
Filosofia Italiana de Marsílio Ficino a Giordano Bruno”.
Na sua visita a biblioteca descobre o primeiro volume da
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―Historie de La Philosophie indienne” de autoria do
professor Surendranath Dasgupta. Mircea se interessa
bastante pelo assunto e escreve duas cartas para a Índia.
Uma endereçada ao professor Dasgupta comunicando o
desejo de trabalhar sob sua orientação na Universidade de
Calcutá estudando o sânscrito e a Filosofia indiana e outra
carta para o então mecena de Dasgupta, o maharaja
Manindra Chandra Nandy de Kassimbazar solicitando a
oportunidade de um apoio financeiro para seus estudos em
Calcutá. Os resultados destas cartas foram positivos, ou
seja, ambos aceitando e apoiando seu pedido. Assim, logo
após a defesa de sua tese de licenciatura em 1929, Mircea
embarca em sua jornada para Índia ao encontro do
professor Dasgupta, em busca do conhecimento indiano.
Na Índia, Eliade sob orientação de Dasgupta estudou
profundamente e ―existencialmente‖ a cultura indiana.
Além disso, fez questão de apreender a praticar o ioga.
Sem perder, contudo, a sua forma de conceber o mundo
ocidental (Weltanschauung). No período em que ficou nas
Índias (1929-1931) Eliade aprendeu através do Sâmkhya2
2 Sâmkhya é o sistema filosófico indiano que foi desenvolvido
concomitantemente com o ioga. A palavra significa "Enumeração" ou
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e no ioga que o homem, o universo e a vida não são
produtos da ilusão. Ao contrário, a vida é real, o mundo é
real e se pode conquistar o mundo e dominar a vida. Isto
ocorre quando a vida é alterada por uma experiência de
santificação. O filósofo romeno aprendeu também a
importância dos símbolos, isto é, a representação de
imagens que significam algo de sagrado capaz de revelar
os valores do mundo espiritual. Descobriu o chamado
―homem neolítico‖, ou seja, o homem que ainda possui
traços de civilizações arcaicas, fundadas sobre a
agricultura marcadas por vestígios religiosos e culturais
que servem como ferramentas para se compreender no
mundo. O homem arcaico, segundo o pensador romeno, é
aquele que se percebe como um organismo vivo que faz
parte do ciclo da natureza, homem que encara a vida como
um movimento cíclico natural e ao mesmo tempo
espiritual onde ele nasce, envelhece, morre e volta a
ressurgir.
No mês janeiro de 1931, Mircea Eliade deixa Calcutá e
volta para sua terra natal a pedido de seu pai para se
"Conta". Muito antigo, desenvolveu uma psicologia e ontologia
sofisticada, que é a base do sádhana ou prática do ioga.
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apresentar ao exercito romeno onde presta serviço militar
no 1º regimento de artilharia antiaérea, em Bucareste. No
ano de 1933 obtém o doutorado em Filosofia ao apresentar
sua tese intitulada ―Yoga: Essai sur les origines de la
mystique Indienne” (Ioga: ensaio sobre a origem do
misticismo indiano), é nomeado assistente do professor
Näe Ionescu e abre seu curso sobre o ―Problema do mal na
Filosofia indiana‖. Até 1940, Eliade oferece vários cursos
na área da Filosofia da Religião até ser nomeado no
mesmo ano como adido cultural junto da delegação da
Romênia em Londres. Entretanto, em 1941, devido ao
consentimento romeno de liberar a entrada de tropas
nazistas em seu território Mircea é transferido para Lisboa
para exercer a mesma função antes designada. Durante
este período ocorreram multiplicações dos fascismos, a
queda do regime nacional-socialismo na Alemanha e na
Romênia instaurou-se o regime comunista. Essas
alterações políticas, principalmente em seu país natal -
pois Eliade era contra o regime implantado na Romênia –
fizeram com que o ―pesquisador dos mitos‖ optasse não
mais em voltar ao seu país de origem, mas em querer
―salvar‖ a herança cultural romena.
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Assim, eu escolhi o modelo dos profetas.
Politicamente, não havia aí solução, nesse
instante: apenas mais tarde. Aquilo que
era importante, para mim como para todos
os emigrantes romenos, era saber como
salva a nossa herança cultural, como
continuar a criar no seio desta crise
histórica. (ELIADE , 1987, p.63)
Mircea muda-se para França, agora não mais como adido
cultural, em 1945 após a morte de sua primeira esposa
Nina Mares após onze anos de casamento. É convidado
pelo professor Dumézil3 a dar cursos livres na École dês
Hautes Études. Neste período a Romênia entra num
processo político e histórico que não agrada Eliade. A
partir daí, ele passa a encarar sua ausência da pátria como
período de exílio. Experiência esta que o próprio
considerou como um processo de iniciação. Encontra na
França alguns amigos de Bucareste, Emil Cioran, Eugene
Ionescu, Nicolas Herescu e Stephanie Lupasco. Em
outubro de 1948 funda a revista Lucearfarul (A estrela do
amanhãl, revista dedicada a publicar trabalhos de
escritores romenos no exílio. Em 1950 casa com Christinel
3 George Dumézil, antropólogo e filólogo francês nascido em 1898,
em Paris, e falecido em 1986, na mesma cidade. Seu trabalho é
reconhecido pela criação de uma nova abordagem na ciência da
mitologia comparada, com base num quadro teórico inspirado na obra
do sociólogo francês Émile Durkheim.
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Cottesco e viaja para a Itália para fazer conferências à
convite da Universidade de Roma. Neste mesmo ano
participa da primeira conferência Eranos4 em Ascona,
Suíça, onde se encontra com pensadores renomados como
Jung, van de Leeuw e Louis Massignon. Mircea Eliade
sempre se considerou, por ser romeno, herdeiro de uma
cultura situada em dois universos opostos, a saber:
ocidente-oriente, que implica no confronto de tradicional-
moderno, mística-religião e contemplação ao espírito
crítico. E, embora considerado um exilado, nunca esteve
tão longe de sua pátria mãe, pois para ele pátria é ―a língua
que falo com ela (esposa) e com os meus amigos, mas
acima de tudo com ela; a língua em que sonho e com que
escrevi o meu diário‖. E acrescenta:
Mas não existe nem contradição nem
tensão entre o mundo e a pátria. Não
importa onde, há sempre um centro do
4 Eranos é a designação dada a um grupo intelectual de pensadores
dedicados aos estudos da espiritualidade. Seus encontros ocorreram a
partir de 1933 na Suíça. Este nome é derivação da palavra grega que
significa banquete, onde não existiria um anfitrião a prover os
convidados, mas onde todos contribuiriam com sua comida. O grupo
de Eranos foi fundado por pela inglesa estudiosa do espiritualismo
Olga Froebe-Kapteyn em 1933, e as conferências deste grupo
ocorreram anualmente em sua propriedade desde então - às margens
do Lago Maggiore, próximo a Ascona na Suíça. O filósofo e teólogo
alemão Rudolf Otto também participou deste grupo.