Post on 28-Jul-2018
Rua do Mar da China/1900-138 (hipermídia em estado bruto)
Sergio de Moraes Bonilha Filho
ECA/USP
EntradaIntitulado “Rua do Mar da China / 1900-138” (Ohira e Bonilha, 2008), o objeto-ação-
instalação a ser analisado neste texto é um possível exemplo do acúmulo de referências
e conexões que podem adentrar o trabalho do artista durante as etapas de materialização
de determinados projetos. Apresentado durante o '809 International New Image Art
Festival' (Yichang - Hubei - China), o trabalho em questão envolveu em seu processo o
deslocamento de seus autores para o outro lado do globo terrestre, acarretando
necessariamente em bem-vindos imprevistos.
Certamente, em face da própria natureza deste texto - muito próximo às formas do
“ensaio” e do “relato de caso” - não será objetivo central teorizar acerca de sua hipótese
visando a uma sistematização capaz de fornecer parâmetros para a análise de outros
trabalhos e obras de diferentes artistas. A intenção aqui é apenas iluminar futuras
análises com a inquietação da dúvida em relação aos limites hoje freqüentemente
associados à idéia de hipermídia, muitas vezes, restritos somente ao uso de softwares e
redes computacionais.
PercursoEmbora seja muito freqüente encontrar artistas contemporâneos trabalhando sob a égide
da idéia de “projeto”, o proceder destes em relação a tal conceito não possui grande
uniformidade. Grosso modo, pode-se definir três grupos, cujos procederes acarretarão
em diferentes resultados durante ou após a execução/materialização de cada obra:
1) artistas que não colocam em prática/viabilizam seus projetos,
2) artistas que colocam em prática/viabilizam seus projetos e delegam a etapa de
materialização a terceiros (técnicos, fornecedores, assistentes etc.),
3) artistas que colocam em prática/viabilizam seus projetos e acompanham/participam da
materialização de seus projetos.
Tais diferenças podem parecer apenas procedimentais, porém, cada uma delas implicará
na alteração da duração do estado de 'poiesis' ao qual artista e obra estarão entregues.
Noutras palavras, a duração da permeabilidade de determinado projeto em relação ao
entorno será maior ou menor dependendo do ponto em que se defina ou não a conclusão
do projeto.
No caso específico de “Rua do Mar da China / 1900-138” não havia um planejamento que
tivesse como objetivo o aumento dessa “permeabilidade” ao entorno, o projeto visava a
discussão de conteúdos específicos relacionados a problemáticas abordadas em outros
trabalhos da mesma série, por isso a necessidade do percurso Brasil-China. A própria
execução do projeto foi motivo para lançarmos atenção em direção às questões até aqui
levantadas, tendo como estopim um rico conjunto de conexões inesperadas que a seguir
serão descritas.
fig. 01) “Rua do Mar da China/1900-138” em exposição no '809INIAF' (vista parcial).
Em linhas gerais, o projeto pretendia buscar coincidências e/ou diferenças entre lugares
homônimos separados por grandes distâncias. Envolvendo três países, Brasil, Portugal e
China, o processo se iniciou ainda em São Paulo com a etapa de marcenaria, continuou
em Lisboa(onde foram captados imagem e som da “Rua do Mar da China”) e em
Shanghai (onde foi finalizada a construção do objeto, impresso e encadernado o livro e
editado o áudio.
fig. 02) “Rua do Mar da China/1900-138”, vista geral com visitante.
Mas a dimensão do projeto escapa a sua própria materialização, envolve também a
apresentação e doação da obra para a instituição realizadora do festival ('809 Art District',
em Yichang), o que conduz o projeto para o campo da ação ou da performance. Os
autores aparecem aqui como portadores de um projeto que paulatinamente vai se
materializando como objeto durante um deslocamento intercontinental rumo a um ponto
específico que guardará uma espécie de condensação deste e de inúmeros
deslocamentos anteriores responsáveis por essa manifestação cultural em forma de arte.
Por sua vez, a escolha do logradouro lisboeta implicou num encontro simbólico com este
arcabouço cultural primeiro que nos perpassa necessariamente na forma da língua
portuguesa. Invertendo a ordem das navegações de cinco séculos atrás, paradoxalmente
volta-se ao passado por meio da madeira e dos eletrônicos que compõem a obra - pinho
de áreas reflorestadas e eletrônicos 'Made in China' - num estranho tráfico de especiarias
contemporâneas, remanufaturadas para tornarem-se algo bastante avesso à lógica do
comércio global.
fig. 03) “Rua do Mar da China/1900-138”, vista parcial com e luminária fornecida pelo '809 INIAF'.
Composta por madeira, acrílico, fotografias e um mini-sistema de som, esta caixa
condensadora de tempos, espaços e referências culturais distintas, quando inserida no
contexto em que fora apresentada - 809 International New Image Art Festival – pôde se
transformar em fomentadora de relações interativas materiais e mentais, às quais aqui
chamaremos de “hipermídia em estado bruto”. Sem sistemas de busca automatizados
nem acesso a bancos de dados externos, obra e contexto figuram como agenciadores de
situações propícias ao surgimento de conexões com informações já presentes no
repertório do próprio observador/participante incidindo num amplo espectro de
possibilidades que, segundo relatos dos próprios visitantes, abarcou desde fatores
geopolíticos até percepções e divagações estéticas estritamente pessoais.
fig. 04) “Rua do Mar da China/1900-138” (detalhe), capa do livro impresso e encadernado em Shanghai.
É interessante frisar que não foram utilizadas mídias não-lineares para apresentação dos
registros visuais e sonoros realizados no logradouro em questão, porém, a desconexão
entre ambos pôde ocasionar diferentes leituras a cada novo cruzamento entre som e
imagem, dependendo do momento no qual cada visitante tomava contato com a
instalação e conforme a maneira com que estes “editavam” a seqüência de imagens
durante a leitura do ensaio fotográfico.
A união entre peças artesanais de madeira e aparelhos eletrônicos desnudados de seus
invólucros habituais também participa desse estado de “hipermídia bruta”, pois funções e
visualidades são alteradas a fim de favorecer o surgimento de novas conexões. Agora, o
sistema de som serve à auscultação de uma paisagem desconhecida e não mais a
músicas carregadas pelo usuário individual, mostra entranhas antes ocultas deixando de
lado o 'design clean' tão comum aos massivamente difundidos eletrônicos portáteis.
Dessa forma, esses aparelhos nascidos na China retornam des(re)ordenados a sua
origem, embebidos de outras partes do mundo, mudados por dentro e por fora em
ligações imprecisas entre o imprevisto e o improviso.
fig. 05) “Rua do Mar da China/1900-138”, vista geral da relação espacial com a sala de exposição.
Lá do título, a palavra “mar” também assume especial importância nesse oceano de
significados, caminho para aqui chegar nossa língua e, antes disso, as naus portuguesas
que tocaram o Oriente de onde agora zarpam para o mundo eletrônicos de toda sorte.
Vocábulo de tantos significados, sinônimo nosso para o “www”, faz-me agora pensar
numa outra sigla “waves waves waves”...
fig. 06) 'Print screen' do site utilizado durante o planejamento inicial do projeto para buscar em Portugal
logradouros relacionáveis a China.
RetrovisorEm Lisboa fomos também à caça de maiores informações sobre dois artistas
portugueses - a dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva - e nessa toada visitamos a
Galeria Zé dos Bois, com a qual trabalham. Grata surpresa, encontramos o que não
imaginaríamos se lá não fossemos: num prédio antigo (de uns 300 anos), que fôra uma
pequena fábrica de couros, funciona a “ZDB” recebendo apoio da municipalidade de
Lisboa - que lhes cede o imóvel e algumas isenções de taxas - para trabalhar junto aos
artistas fazendo papel de interlocutora intelectual e fomentadora de pesquisas poéticas,
deixando o lucro em segundo plano para cultivar o interesse pela produção artística em
todos seus espaços - que se faça saber caso algum dia surja notícia de outra galeria
assim, totalmente oposta ao usual parasitismo dos inomináveis comércios de arte...
Havia lá uma edição bastante generosa sobre os artistas supracitados, de onde provém o
seguinte excerto: “El lugar del observador es cultural; al mismo tiempo que participa en la
composición de un sujeto-voluntad (volunta de ver y de pensar sobre lo que ve), organiza
también el sentido de lo que le es dado a ver según una recepción ideológica que opera
un agente en él. Es, por lo tanto, una función histórica.”
Pois sim, esta vontade não precisa ser cartesiana (João Maria Gusmão e Pedro Paiva
estão a perverter Descartes) e havendo possibilidade de contato, contexto, erro, espaços
vazios, não planejamento, algo que possa sair dos eixos para correr em outros caminhos,
o inesperado virá e caberá a quem recebê-lo “estar à altura do acontecimento”, como
diria o maior dos perversos Gilles Deleuze.
Foi torcendo as palavras de Gabriel Tarde que Deleuze (re)propôs a idéia de erro como
fonte de diferença, e a idéia de diferença como possibilidade de alteração ou revolução. É
quase impossível copiar algo sem embutir nessa cópia algum ruído, alguma “falha” que
noutro prisma pode tornar-se diferença, ampliação ou inovação. Pois bem, errando mais
ao longe proponho esta idéia-pergunta-chave para sair dessa breve imersão em forma de
ensaio: – Um projeto, ainda que parecido com outros, não conseguirá ser o mesmo que
outro foi ao estar à altura do acontecimento.
São Paulo, Lisboa, Shanghai, Yichang,
julho a agosto de 2008.
CombustíveisDELEUZE, Gilles (1988). Diferença e Repetição, Rio de Janeiro, Graal (1a. ed.:
Différence et Répétition). Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado.
GUSMÃO, João Maria; PAIVA, Pedro; CHECA, Natxo; URBANO, João (2008).
Abissología - Horizonte de Acontecimentos, Madrid; Ayuntamiento de Madrid, La Fábrica
y Zé dos Bois.
GUSMÃO, João Maria & PAIVA, Pedro (2005). Acesso em 12/08/2008
www.efluviomagnetico.com.
809 Art District (2008). 809 INIAF, acesso em 12/08/2008, www.809iniaf.com.
Via Michelin (2008). Mapa Viário de Lisboa, acesso em 09/07/2008,
www.viamichelin.fr.