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INTRODUÇÃO
O título desta dissertação, uma frase atribuída a Nuno Álvares Pereira pelo
cronista Fernão Lopes1, poderia indicar o que era, na sua essência, a guerra de cerco na
época medieval: um combate direccionado às muralhas de uma posição detida por um
adversário, na tentativa de as transpôr e assim conquistar uma determinada fortificação:
uma povoação amuralhada ou um castelo.
Realizada no âmbito do mestrado em História, na área de especialização de
História medieval, esta dissertação procurará, pois, analisar as operações de cerco
ocorridas na guerra entre os reinos de Portugal e Castela desde o início da Crise
Sucessória, em 1383, até ao segundo cerco de Tui, pertencente à última campanha
militar do século XIV empreendida por D. João I, no ano de 1398, e estudar os diversos
aspectos que compunham este tipo de episódios militares.
As operações de cerco envolviam muito mais do que o que está contido na frase
“combato com as paredes”. Era necessário reunir um grande número de homens e armá-
los o melhor possível, recolher todo o tipo de mantimentos e materiais, construir – ou
montar – diversos tipos de engenhos e de estruturas, entre muitas outras acções. Isto
tudo numa fase prévia ao início das operações propriamente ditas, mostrando a
necessidade de um elevado grau de preparação para as forças em confronto, se estas
quisessem sair vitoriosas. Depois do início do conflito entre sitiados e sitiantes, assistia-
se a uma sequência de diversas manobras e acções que resultavam num duelo entre
forças adversárias, em que uns e outros procuravam frustrar os desígnios dos seus
inimigos, ao longo de um período repleto de incógnitas, perigos e sofrimentos diversos
onde a vida dos intervenientes estaria permanentemente em risco.
Apesar de não existir nenhum outro estudo que tenha analisado especificamente
as operações de cerco durante o período compreendido entre 1383 e 1398, este não é um
tema totalmente inexplorado.
Como teremos oportunidade de ver em maior detalhe no primeiro capítulo desta
dissertação, a historiografia militar, até à segunda metade do século XX, pouca
1 CDJ I, 2ª, cap. LXXVI, p. 175.
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importância deu à guerra na Idade Média, reconhecendo pouca ou nenhuma evolução na
arte da guerra neste período, balizado pela Antiguidade Clássica e pelo Renascimento.
No prefácio para a edição inglesa de La Guerre au Moyen Âge2 (edição original de
1980), Philippe Contamine refere que o progresso na historiografia medieval, após a
Segunda Guerra Mundial, levou a uma subestimação do fenómeno da guerra nos
estudos da medievalidade. Desta forma, o autor tinha o seguinte objectivo aquando do
início deste projecto: “to restore to war its decisive place both as an explanatory factor
and as the product of a whole cultural, technical and economic environment”3. Assim,
esta obra vinha cobrir cerca de um milénio da história militar, desde a queda de Roma
até à queda de Constantinopla, procurando tratar uma multitude de aspectos referentes à
guerra medieval, como, por exemplo, o armamento, o recrutamento, os costumes
militares ou regras estabelecidas para o regulamento dos conflitos, não se cingindo
somente a um reino, mas procurando estudar um pouco todo o Ocidente, da Península
Ibérica ao Levante, numa altura em que poucos trabalhos aprofundados existiam sobre o
tema.
Para o estudo específico das operações de cerco medievais (embora presente na
obra de Contamine, não era este o único tema em que a sua obra se focava), foram
necessários mais doze anos até Jim Bradbury editar The Medieval Siege, em 19924.
Embora a guerra de cerco tenha sido tão frequente na época e raras são as fontes
primárias de carácter narrativo que não possam contribuir para o estudo desta temática,
o autor reconheceu uma ausência de estudos recentes sobre o tema, com o próprio a
admitir que essa falta dificultou o seu trabalho5. Contudo, Jim Bradbury elaborou uma
obra que se tornou num marco na historiografia militar sobre os cercos medievais,
estudando a evolução deste tipo de operações militares na Europa e no Levante desde o
fim do Império Romano do Ocidente até ao cerco de Malta de 1565, já na época
moderna. O autor analisa, por exemplo, o papel das fortalezas no plano político e militar
na Idade Média, os diversos tipos de engenhos utilizados nos cercos, variados episódios
militares que pautaram este período um pouco por toda a Europa, entre outros aspectos,
fazendo desta obra um ponto de partida para o estudo desta temática.
2 CONTAMINE, Phillipe, War in the Middle Ages, tradução de Michael Jones, Barnes & Noble, Inc.,
New York, 1998. 3 Idem, Ibidem, p. x. 4 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, 3ª edição, The Boydell Press, Woodbridge, 1998. 5 Idem, Ibidem, p. xiii.
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Em 1995, a colaboração de doze historiadores na obra The Medieval City under
Siege, organizada por Ivy A. Corfis e Michael Wolfe6, trouxe um novo contributo para
esta temática através de doze artigos, estudando temas como a relação entre a guerra de
cerco e as cidades, a evolução das tecnologias de assalto e das fortificações urbanas, o
cerco nas narrativas da época e, ainda, o impacto que as primeiras armas de fogo
tiveram nas operações de cerco, aprofundando assim o estudo da temática através do
destaque dado ao papel das urbes e das fortificações nas operações de cerco e também o
lugar que este tipo de operações ocupava na sociedade e na cultura da época medieval.
Antes de passar à historiografia militar portuguesa, é necessário fazer ainda uma
referência às operações de cerco na historiografia medieval da vizinha Espanha. Por
exemplo, em 1994, Antonio Silva Torremocha edita a sua obra Algeciras entre La
Cristiandad y el Islam, Estudios sobre el Cerco y Conquista de Algeciras por el Rey
Alfonso XI de Castilla, así como de la Ciudad y sus Términos Hasta el final de la Edad
Media7, um estudo de caso sobre o cerco de Algeciras, iniciado em 1342 e que se
prolongou até 1344, bem como a história da própria cidade (destruída em 1379 por
forças muçulmanas) e termo, desde o cerco até ao final da Idade Média. No ano
seguinte, Jorge Jiménez Esteban estuda os alvos da guerra de cerco, neste caso as
fortalezas hispânicas, em El castillo Medieval Español y su Evolución8. Por último,
destaca-se a obra de Francisco García Fitz, de 1998, intitulada Castilla y León frente al
Islam – Estrategias de expansión y tácticas militares (siglos XI – XIII)9, na qual o autor
trata, em grande pormenor, a estratégia militar medieval no contexto da Reconquista,
dividindo o seu livro entre as incursões e a guerra de desgaste, as operações de cerco e
as batalhas campais.
Eis que chegamos ao panorama nacional em relação à historiografia militar
medieval. O artigo intitulado “The Medieval Military History”, da autoria de Miguel
Gomes Martins e João Gouveia Monteiro, inserido na obra The Historiography of
6 CORFIS, Ivy A., e WOLFE, Michael (ed.), The Medieval City under Siege, The Boydell Press,
Woolbridge, 1999. 7 TORREMOCHA SILVA, Antonio, Algeciras entre La Cristiandad y el Islam, Estudios sobre el Cerco y
Conquista de Algeciras por el Rey Alfonso XI de Castilla, así como de la Ciudad y sus Términos Hasta el
final de la Edad Media, Intituto de Estúdios Campogibralteños / Junta de Andaluzia, s.l., 1994. 8 JIMÉNEZ ESTEBAN, Jorge, El Castillo Medieval Español y su Evolución, Agualarga, s.l., 1995. 9 GARCÍA FITZ, Francisco, Castilla y León frente al Islam: Estrategias de expansión y tácticas militares
(siglos XI-XIII), 2ª Edição, Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, Sevilla, 2005.
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Medieval Portugal (c. 1950-2010)10, serviu como base para a elaboração do estado da
arte desta temática em Portugal. Este trabalho indica que embora tenham surgido, desde
a década de 80 do século passado, novos estudos sobre a temática, a historiografia
militar portuguesa ainda tem muito para ser explorado. Os autores começam por referir
a importância de três obras para este tema: A Guerra em Portugal – nos finais da Idade
Média11, a tese de doutoramento de João Gouveia Monteiro editada em 1998, que
trabalha a guerra no período entre o reinado de D. Fernando e a Batalha de Alfarrobeira,
em 1449; da Nova História Militar de Portugal, coordenada pelo General Manuel
Themudo Barata e por Nuno Severiano Teixeira, destaca-se o Volume I, do ano de
2003, dirigido por José Mattoso e com as contribuições de Mário Jorge Barroca, João
Gouveia Monteiro e Luís Miguel Duarte, dedicado à história militar da Idade Média
portuguesa 12 ; e a tese de doutoramento de Miguel Gomes Martins, editada
posteriormente à elaboração do artigo, em 2014, como A Arte da Guerra em Portugal -
1245-136713, cujo período tem como balizas cronológicas a guerra civil de 1245-1248 e
o reinado de D. Pedro I14. Estes são, na opinião dos autores do artigo, os trabalhos
historiográficos sobre a temática militar mais relevantes sobre o período medieval, visto
serem até hoje os trabalhos mais completos, pois estudam vários aspectos relacionados
com a arte da guerra, desde assuntos como recrutamentos, a preparação dos
combatentes, logística, diferentes tipos de operações, incluindo a guerra de cerco, etc.,
oferecendo a um leitor uma visão global e também pormenorizada da guerra medieval
em Portugal15.
Para o período entre a morte de D. Fernando I, em 1383, e o tratado de paz de
Ayllón, em 1411, existe um número mais substancial de estudos sobre matérias
militares, quando comparado com outros períodos (por exemplo, para as Guerras
Fernandinas, para além do que João Gouveia Monteiro escreveu sobre este tema na
Nova História Militar de Portugal e na sua tese de doutoramento, acima já referida,
10 MARTINS, Miguel Gomes e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The
Historiography of Medieval Portugal (c. 1950-2010), dir. de José Mattoso, IEM, Lisboa, 2011, pp. 459-
481. 11 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, Editorial Notícias,
Lisboa, 1998. 12 BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir. de), Nova História Militar de
Portugal, Vol. I, coord. de José Mattoso, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2003. 13 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, Imprensa da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 2014. 14 Idem e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The Historiography of Medieval
Portugal (c. 1950-2010), pp. 460-461. 15 Idem, Ibidem, p. 461.
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existe somente uma obra relevante de panorama geral, a de Armando Martins, As
Guerras Fernandinas. 1369-1371, 1372-1373, 1381-138216, e três estudos de casos)17.
No entanto, este mesmo período carece de estudos após a batalha de Aljubarrota,
havendo assim uma maior concentração de trabalhos na fase compreendida entre 1383-
1385 do que para os anos seguintes do conflito. A própria batalha de Aljubarrota é um
dos episódios militares portugueses mais estudados, chamada por João Gouveia
Monteiro como “a mãe de todas as batalhas portuguesas”18. O artigo que temos vindo a
seguir refere que após Aljubarrota e até à paz de Ayllón existe um período rico em
eventos de ordem militar que está pouco trabalhado, referindo somente três estudos, um
sobre a campanha Anglo-Portuguesa de 1387 em Castela (J. G. Monteiro, “A Campanha
Anglo-Portuguesa em Castela, em 1387: Técnicas e Tácticas da Guerra peninsular nos
Finais da Idade Média”, Actas do VI Colóquio da Comissão Portuguesa de História
Militar – Portugal na História Militar19), outro sobre os ataques castelhanos na costa
algarvia (Humberto Baquero Moreno, “A ameaça externa sobre o Algarve durante a
crise dos fins do século XIV”, Revista de Ciências Históricas, vol. 3, 198820), e um
último sobre o papel desempenhado pelas milícias de Lisboa, tanto no cerco de 1384,
como nas ofensivas tomadas pela coroa portuguesa nos anos de 1385, 1386, 1387 e
1398 (M. G. Martins, Lisboa e a Guerra. 1367-141121)22.
A temática das operações de cerco na historiografia portuguesa não está, ainda,
muito explorada. Embora seja possível encontrarmos referências a episódios de cercos e
alguns pequenos capítulos sobre a forma como estes se desenrolavam em diversas obras
historiográficas portuguesas, faltava um estudo dedicado à temática. Somente no início
de 2016 é que uma obra veio, enfim, dar o devido destaque às operações de cerco no
Portugal medievo. Guerreiros de Pedra – Castelos, Muralhas e Guerra de Cerco em
16 MARTINS, Armando, Guerras Fernandinas. 1369-1371, 1372-1373, 1381-1382, Academia
Portuguesa da História, Lisboa, 2006. 17 MARTINS, Miguel Gomes, e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The
Historiography of Medieval Portugal (c. 1950-2010), p. 469. 18 Idem, Ibidem, pp. 470-471. 19 MONTEIRO, João Gouveia, “A Campanha Anglo-Portuguesa em Castela, em 1387: Técnicas e
Tácticas da Guerra peninsular nos Finais da Idade Média”, Actas do VI Colóquio da Comissão
Portuguesa de História Militar – Portugal na História Militar, Comissão Portuguesa de História Militar,
Lisboa, 1995. 20 MORENO, Humberto Baquero, “A ameaça externa sobre o Algarve durante a crise dos fins do século
XIV”, Revista de Ciências Históricas, vol. 3, 1988, pp. 173-182. 21 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, Livros Horizonte, Lisboa, 2000. 22 Idem e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The Historiography of Medieval
Portugal (c. 1950-2010), pp. 471-472.
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Portugal na Idade Média, da autoria de Miguel Gomes Martins23. Para além de ser um
estudo exaustivo das fortalezas medievais portuguesas, os palcos da guerra de cerco, e
da sua evolução ao longo da Idade Média, aborda também as operações militares que
visavam a conquista destas praças-fortes durante este período, observando a vigilância e
a defesa destas, as diversas formas de ataque a que poderiam estar sujeitas, as acções
tomadas tanto por sitiados como sitiantes no decorrer de uma operação de cerco, entre
muitos outros aspectos, tornando-se assim numa leitura obrigatória para o estudo desta
temática no espaço português.
O último parágrafo de “The Medieval Military History” termina com o seguinte
trecho: “there continues to be a need for more case studies, whether on operations and
campaigns, on castles and city walls, or on the multi-faceted relationships between
certain localities and war. We hope, therefore, that these pages may contribute to
encourage researchers in their task, opening up new avenues in Portuguese medieval
military history”24. É precisamente para poder dar um contributo que ajude a colmatar
esta falha que foi escolhido o estudo deste tema na presente dissertação.
Para além do gosto pessoal pela época e pela temática militar, o que possibilitou
o estudo de um conflito a vários títulos decisivo na História medieval do nosso país,
rico em episódios militares e personalidades que marcaram a guerra portuguesa, assim
nasceu a motivação para a elaboração desta dissertação, um desejo de que esta, embora
focada num período relativamente curto, venha contribuir, de alguma forma, para o
enriquecimento da historiografia sobre a medievalidade portuguesa, especificamente na
temática das operações de cerco, procurando oferecer uma visão mais aprofundada de
todas as vicissitudes associadas aos bloqueios e assaltos que pautaram os anos finais do
século XIV do nosso país.
Esta tese de mestrado terá como metodologia a análise de vários episódios de
cercos através do testemunho das fontes narrativas, utilizando ainda documentos da
chancelaria de D. João I, relativos aos acontecimentos ocorridos neste conflito dos finais
do século XIV, recorrendo depois à bibliografia escolhida para o enriquecimento da
informação e da problematização contida na dissertação, para assim explanar o processo
23 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal
na Idade Média, Esfera dos Livros, Lisboa, 2016. 24 Idem e MONTEIRO, João Gouveia, “The Medieval Military History”, The Historiography of Medieval
Portugal (c. 1950-2010), p. 481.
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no qual consistia uma operação de cerco, desde a sua preparação até às medidas
tomadas após a conquista de uma praça-forte.
As crónicas consultadas na elaboração do presente trabalho são as seguintes: a
Cronica del rei Dom Joham I – de boa memória e dos Reis de Portugal o decimo, por
Fernão Lopes25; a Crónica do Condestável de Portugal – D. Nuno Álvares Pereira, de
autoria desconhecida26; as Crónicas, da autoria de Pero López de Ayala27. Por último,
recorreremos à Chancelaria de D. João I, publicada sob o título de Chancelarias
Portuguesas. D. João I, num conjunto de quatro volumes organizados por João José
Alves Dias e editados pelo Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de
Lisboa, em Lisboa, entre os anos de 2004 e 200628.
25 LOPES, Fernão, Chronica del Rei Dom João I da Boa Memória. Parte Primeira, reprodução
facsimilada da Edição do Arquivo Histórico Português (1915), preparada por Anselmo Braamcamp
Freire, com prefácio de Luís Filipe Lindley Cintra, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1972, e
Cronica del Rei Dom Joham I. Parte Segunda, copiada por William James Entwistle, Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1968. De acordo com passagens da própria crónica, esta começou a
ser elaborada no ano de 1443 (CDJ I, 1ª, pp. XXI-XXII) por Fernão Lopes, que foi cronista e guarda-mor
da Torre do Tombo, de 1418 até 1452, responsável também pelas crónicas dos reis anteriores a D. João I
(CDJ I, 1ª, pp. XXIX e XXXIII-XXXIV), por ordem de D. Duarte (“LOPES, Fernão”, MARQUES, A. H.
de Oliveira, Dicionário de História de Portugal, direcção de Joel Serrão, Volume II, “E-MA”,
Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1971, pp. 806-808). A crónica de D. João I diz respeito ao seu reinado,
tendo, no entanto, início ainda antes de este se tornar rei, no ano de 1382, quando ainda reinava D.
Fernando, explorando a relação entre a rainha D. Leonor Teles e o Conde João Fernandes Andeiro e os
acontecimentos que levaram à morte deste, pela mão de D. João, à época Mestre de Avis. A primeira
parte termina com a aclamação de D. João como rei de Portugal nas cortes de Coimbra de 1385. A
segunda parte vai até à paz de Ayllón, em 1411, acordada entre os reinos de Portugal e Castela,
terminando a crónica, pouco depois, com capítulos sobre o casamento de D. Afonso, filho bastardo de D.
João e futuro 1º duque de Bragança, com a filha do Condestável, D. Beatriz, e de D. Beatriz, filha de D.
João, com o conde inglês Thomas de Arundel. 26 Crónica do Condestável de Portugal – D. Nuno Álvares Pereira, edição de António Machado de Faria,
Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1972. Esta crónica relata os acontecimentos da vida do
Condestável, figura de grande relevo nos acontecimentos da época, iniciando-se com uma breve descrição
da linhagem à qual o Condestável pertencia até à sua morte, quando já se havia retirado para uma vida
religiosa no Mosteiro do Carmo, em Lisboa, no ano de 1431. A autoria desta crónica, uma questão ainda
por resolver, foi explorada por António Machado de Faria, que apresenta as quatro hipóteses consideradas
por historiadores dos séculos XIX e XX: Fernão Lopes; o escrivão da puridade do Condestável, Gil Aires;
um membro da casa do Condestável, provavelmente um seu companheiro de armas; e um frade do
mosteiro do Carmo. Machado de Faria considera que o autor teria sido alguém que acompanhara o
Condestável em vida, considerando assim a terceira hipótese como a mais viável. Para uma melhor
compreensão desta questão, cf. CCP, pp. XX-XXX. 27 LÓPEZ DE AYALA, Pero, Crónicas, edição de José-Luis Martin, Editorial Planeta, Barcelona, 1991.
Pero López de Ayala, um contemporâneo do período cronológico tratado nesta dissertação e presumível
testemunho de diversos acontecimentos, foi um cavaleiro que participou na Batalha de Aljubarrota, onde
foi preso, e foi também chanceler-mor de Castela (CRC, pp. XLV-XLVI). López de Ayala elaborou as
crónicas de quatro reis de Leão e Castela, Pedro I, Enrique II, Juan I, Enrique III (somente os seus seis
primeiros anos de reinado), cobrindo quase toda a segunda metade do século XIV, de 1350 a 1396 (CRC
p. XLV), dividindo a sua narrativa por reinados primeiro, anos de reinado, e, finalmente, por capítulos, ao
invés da divisão somente em capítulos como se encontra nas crónicas de D. João I e do Condestável. 28 Contém os documentos relacionados com a coroa durante o reinado de D. João I, começando quando
este era ainda regedor e defensor do reino, em 1384 (ChDJ I, Volume I, Tomo I, Centro de Estudos
Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2004, p. 7).
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A cronística será assim a fonte principal na elaboração deste trabalho,
destacando-se a crónica de D. João I que é, de entre as três crónicas acima mencionadas,
a mais pormenorizada nos relatos dos acontecimentos da época, enquanto as outras duas
servirão essencialmente para completar a informação ou para compará-la. Por um lado,
a Crónica do Condestável apresenta informações sobre a vida e papel desempenhado
por uma das figuras mais importantes da época e do quadro observado, e por outro, as
crónicas de Juan I e Enrique III, embora tenham bastante menos informação do que as
outras duas por se focarem em Castela e o seu autor ser mais sintético do que os outros,
oferecem a visão castelhana dos conflitos, complementando-se assim com a visão
portuguesa. A pesquisa feita nos documentos da Chancelaria de D. João I terá como
objectivo a recolha de informação adicional, não presente nas crónicas, procurando
confirmação de datas dos eventos, dos intervenientes nestes episódios militares, ou
outras informações que possam ser relevantes para o tema da dissertação.
Claro que temos a perfeita noção de que, no que às fontes narrativas diz respeito,
teremos de estar alerta para a parcialidade dos autores das crónicas, afectos à coroa para
a qual elaboraram estas narrativas. É recorrente encontrar concordâncias entre os relatos
dos autores em diversos momentos, mas ao longo destas obras não será de espantar a
ausência de determinados episódios numas e noutras, que, consoante o seu resultado,
poderiam não “merecer” a sua inclusão no projecto do cronista, ou até mesmo
discrepâncias nos relatos dos mesmos acontecimentos, sendo óbvia a tentativa de
apresentar uma imagem mais favorável à facção à qual pertencia o cronista29. Assim,
embora as crónicas sejam fontes repletas de informação e estas tenham sido analisadas
tendo em conta essa parcialidade, ressalva-se a possibilidade de, por vezes, poderem
induzir em erro.
Esta nossa viagem pelos cercos que pautaram os finais do século XIV no
conflito luso-castelhano iniciar-se-á com uma tentativa de compreender a importância
que este tipo de operações ocupava no quadro da estratégia militar da época.
Procuraremos também perceber quem eram os intervenientes nestes conflitos,
29 A título de exemplo, na batalha naval do Tejo, ocorrida no âmbito do cerco de Lisboa de 1384, Fernão
Lopes refere a participação de 17 galés e 17 naus portuguesas (CDJ I, 1ª, cap. CXXXI, p. 225), ao invés
de Pero López de Ayala, que indica a presença de 18 galés e 6 naus, (CRC, Juan I, Año Sexto (1384), cap.
VIII, p. 567). Um outro exemplo é a denominação dada a D. João I ainda em 1394, nove anos após a sua
eleição nas Cortes de Coimbra: na perspectiva de Castela e, por conseguinte, do cronista, D. João era
ainda o “maestre Davis” (CRC, Enrique III, Año cuatro (1394), cap. XXII, p. 867).
9
analisando os exércitos – tanto os que atacaram, quanto os que defenderam as
fortificações –, estudando a sua composição e a sua dimensão, bem como o armamento
utilizado por essas forças. De seguida, debruçar-nos-emos sobre as diversas medidas
preventivas que tanto sitiados como sitiantes tentariam aplicar para conseguirem ter
vantagem sobre os seus adversários e aumentarem assim as probabilidades de saírem
vitoriosos nessas operações, olhando também para os meios envolvidos nestes episódios
militares. Depois passaremos para o estudo das diversas dificuldades que poderiam
surgir no decorrer de um cerco, analisando o efeito nefasto que situações como períodos
de carência de mantimentos ou condições climatéricas desfavoráveis, entre outras,
poderiam ter nas ambições das forças em conflito. Veremos seguidamente as várias
soluções de que dispunham os comandantes para a conquista das praças-fortes,
observando episódios militares de relevo e também de grande astúcia, terminando esta
nossa abordagem com a análise das medidas tomadas pelos sitiantes vitoriosos, tendo
em vista o estabelecimento do novo poder no local recém-conquistado.
Assim, através do conhecimento dos combatentes e das suas armas, da
organização de um arraial, das descrições de sofrimento de que padeceram os
envolvidos nestes episódios, da preparação e execução de assaltos bastante engenhosos,
dos relatos das conquistas, entre uma miríade de outros aspectos, tentaremos a
elaboração de um retrato global do que era a guerra de cerco e todas as suas
envolvências ao longo de um período de quinze anos repleto deste tipo de operações
militares, operações essas que moldaram a História de Portugal naquele período. Para
além disso, teremos também a oportunidade de compreender o porquê da frequência
com que ocorreram estas operações de cerco durante estes anos, acções essenciais no
plano da estratégia militar medieval e que preencheram um relevante período de guerra
entre dois reinos ibéricos.
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CAPÍTULO I – A ESTRATÉGIA E OS EXÉRCITOS NAS OPERAÇÕES DE CERCO
Antes de nos debruçarmos sobre o estudo das operações de cerco ocorridas nos
finais do século XIV entre os reinos de Portugal e Castela, é essencial analisar, ainda
que de forma breve, os exércitos que nelas participaram, para assim conhecermos
melhor não só a forma como a guerra se desenrolava na altura, mas também os seus
intervenientes. É com esse intuito que nos debruçaremos primeiramente sobre os
princípios estratégicos que moldavam a guerra na Idade Média e o porquê das operações
de cerco ocorrerem com grande frequência, juntamente com a sua importância no
contexto militar da época, passando então para a composição e a dimensão dos exércitos
medievais que participaram nos cercos que ocorreram ao longo do período
compreendido entre 1383 e 1398, olhando, por fim, para o equipamento utilizado pelos
combatentes que fizeram parte destes conflitos.
Francisco García Fitz ao interrogar-se se “¿Hubo estrategia en la Edad
Media?” 30 , afirmou que a historiografia, durante muito tempo, não reconheceu a
existência de algo que se comparasse com estratégia ao longo da Idade Média, no
âmbito militar, criando assim a ideia de um interregno na evolução da arte da guerra
entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento31. Este autor aponta, como exemplo
desta tendência, Charles Oman, que, nos finais do século XIX, considerava que no
período medieval pouca ou nenhuma estratégia ou táctica pautavam as batalhas ou as
campanhas militares, baseando-se na ideia de que a organização feudal da sociedade
medieval convertera “todo noble en un guerrero, pero no en un soldado”. Esta
mentalidade resultaria numa hierarquia conflituosa ou até mesmo inexistente, pois,
segundo Oman, esta era organizada de acordo com o estatuto social dos nobres, não
dando assim importância às capacidades ou à experiência do indivíduo, o que, aliado ao
espírito guerreiro característico dos nobres medievais (“la temeridad de algún caballero
que no escuchara nada más que la llamada de su proprio valor”), levava estes a
cometerem erros do ponto de vista estratégico ou táctico num processo militar, o que
30 GARCÍA FITZ, Francisco, “Hubo estrategia en la Edad Media? A proposito de las relaciones
castellano-musullmanas durante la segunda mitad del siglo XIII”, in IV Jornadas Luso-Espanholas de
História Medieval. As Relações de Fronteira no Século de Alcanices. Actas, Vol. 2, Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, Porto, 2000, pp. 837-854. 31 Idem, Ibidem, p. 838.
11
resultaria, assim, em exércitos que padeciam de insubordinações, indisciplina e
desorganização32. A visão de Oman era partilhada por outros historiadores da época,
como Hans Delbrück, cujos pensamentos em torno da guerra medieval se baseavam na
ideia de que as legiões disciplinadas da Antiguidade haviam sido substituídas por uma
classe guerreira cujo comportamento militar assentava nas habilidades do indivíduo33,
ou como Basil Liddell Hart, que considerava que no Ocidente europeu os líderes
militares não tinham em conta qualquer teoria da arte da guerra, salvo alguns rasgos de
brilhantismo de alguns indivíduos ao longo deste período34. Assim, García Fitz chama a
atenção para o pouco destaque dado pela historiografia à estratégia e táctica militar
medieval, até ao início deste milénio, em prol de outras épocas, e, além disso, para a
elaboração, por essa mesma historiografia, de uma imagem dos líderes militares do
período cujo comportamento era baseado no espírito de cavaleiro ou guerreiro,
motivados pela honra ou pelo desejo de glória e ignorando qualquer planificação ou
organização (“aquellos dirigentes militares se comportaban como guerreros, pero no
como comandantes”)35.
Contudo, a partir da segunda metade do século XX, a historiografia passou a
aceitar a existência de um pensamento estratégico por detrás das acções de vários
líderes militares medievais, através dos contributos, por exemplo, de André Beaufre,
Philippe Contamine, ou Jim Bradbury36. Segundo estes, a guerra medieval era pautada
por uma estratégia que dava primazia a acções de guerrilha (como as cavalgadas,
emboscadas ou ciladas, por exemplo) e cercos, deixando as batalhas campais para
último recurso, devido ao carácter decisivo que estas tinham, procurando assim
desgastar e debilitar o inimigo ao invés de arriscar o desfecho, incerto, de uma guerra
num campo de batalha37. No caso dos cercos, os sitiados confiavam nas vantagens que
as estruturas fixas de defesa tinham sobre os meios ofensivos coevos (resultado da falta
de ritmo de acompanhamento na inovação de formas de assalto a fortalezas quando
comparada com a evolução da arquitectura militar ao longo da Baixa Idade Média),
32 GARCÍA FITZ, Francisco, “Hubo estrategia en la Edad Media? A proposito de las relaciones
castellano-musullmanas durante la segunda mitad del siglo XIII”, in IV Jornadas Luso-Espanholas de
História Medieval. As Relações de Fronteira no Século de Alcanices. Actas, Vol. 2, p. 839. 33 Idem, Ibidem, p. 840. 34 Idem, Ibidem. 35 Idem, Ibidem, p. 841. Charles Oman, no entanto, acabaria por mudar, em parte, de opinião,
reconhecendo a existência de uma “gran estrategia” ao analisar as Cruzadas, Idem, Ibidem, p. 840, nota
de rodapé nº 4. 36 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 339. 37 Idem, Ibidem, pp. 338-341.
12
motivando as forças mais fracas a procurarem a segurança por detrás dessas estruturas38,
enquanto os sitiantes preferiam também cercar uma localidade ao invés da participação
numa batalha campal, o que significaria um risco menor e ainda, “pelo menos em teoria,
algum controlo sobre o curso dos acontecimentos”39. Desta forma, a estratégia medieval
ficou marcada, de acordo com Philippe Contamine, pelo medo da batalha campal (o
confronto no terreno entre exércitos) e por uma mentalidade de cerco (perante um
ataque, os defensores procurariam o refúgio por detrás das suas muralhas e fortalezas).
Os comandantes medievais aplicavam aquilo a que então se designava guerra
guerreada, isto é um tipo de “guerra de desgaste”, que visava subjugar o inimigo
através do desgaste físico e psicológico das suas pessoas e dos seus recursos, da fome,
da sede, das doenças, e de acções de guerrilha e de devastação40.
Para compreender o lugar que os cercos tinham na estratégia da época, é
necessário, em primeiro lugar, perceber a importância dos alvos cercados no contexto
político e militar da época. Jim Bradbury refere que, ao longo dos séculos XI e XII, a
multiplicação de castelos no Ocidente veio afectar a forma como a guerra era
praticada41. O controlo destas fortalezas tornou-se sinónimo de domínio do espaço, pois
era através da posse destes pontos-fortes42 que um senhor teria “a corto o medio plazo,
el control, tanto físico como, sobre todo, político, administrativo, económico y
psicológico, de las regiones circundantes”43. Estas estruturas, em conjugação com a sua
guarnição, ofereciam protecção a pessoas e bens, não só às que habitavam no local, mas
também às que viviam nas redondezas44, e permitiam a vigilância do território em que
se encontravam 45 , fazendo com que a defesa de um determinado espaço passasse,
necessariamente, pela defesa de grande parte dos pontos-fortes aí localizados, assim
como a anexação e o domínio desse território só se materializariam com a conquista
destes, pois, tal como García Fitz afirma, por mais eficaz, organizada ou bem sucedida
que uma incursão fosse, “ningún ejército podía mantenerse permanentemente sobre el
38 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 337. 39 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 398. 40 Idem, Ibidem, pp. 339-340, e MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade
Média, p. 207. 41 “From the eleventh century siege warfare was dominated by castles”, BRADBURY, Jim, The Medieval
Siege, p. 71. 42 E também “pequenas torres, fortificaciones de variado tipo y entidade, cuidades amuralladas”,
GARCÍA FITZ, Francisco, Castilla y León frente al Islam: Estrategias de expansión y tácticas militares
(siglos XI-XIII), p. 176 43 Idem, Ibidem, pp. 176-177. 44 Idem, Ibidem, p. 180. 45 Idem, Ibidem, p. 196.
13
campo”46. Para além destas funções defensivas, era a partir das fortalezas (apetrechadas
com mantimentos e diversos tipos de armamento) que as cavalgadas ou as campanhas
militares se iniciavam, servindo assim como verdadeiras bases de operações para
incursões em território inimigo47. A importância dada às fortalezas no contexto militar e
político da época pode ser vista na acção dos reis portugueses, que, após o Tratado de
Alcañizes de 1297 e começando logo com D. Dinis, tomaram diligências para aplicar
um projecto de restauro e construção de castelos ao longo das fronteiras terrestres do
reino (pois estas zonas fronteiriças “serían los espácios más expuestos a la agresión
enemiga y a una posible conquista” 48 ), com especial atenção para as zonas que
continham vias fluviais ou vias terrestres direccionadas a fortalezas ou a cidades
importantes, procurando assim controlar efectivamente o território49.
Mas não eram só as fortalezas que representavam baluartes de resistência para os
exércitos atacantes. Philippe Contamine refere que também as vilas ou cidades, com ou
sem fortalezas no seu interior, mesmo possuíndo fortificações mais rudimentares do que
fortalezas isoladas, representavam espaço, recursos materiais e morais que favoreciam,
ou facilitavam, uma resistência prolongada a um exército sitiante, fazendo com que um
líder de uma campanha militar ofensiva em território inimigo não pudesse ignorar a
conquista destas fortalezas e centros urbanos, que representavam um polo político,
militar e económico de uma dada região, que geralmente continham em si contingentes
militares que poderiam atacar directa ou indirectamente uma hoste invasora 50 .
Utilizando o exemplo dos reinos ibéricos, ao longo do período da Reconquista, as
monarquias cristãs emergentes procuraram conquistar territórios que estavam nas mãos
das forças muçulmanas que haviam invadido a Península Ibérica no século VIII, e o
papel das cidades foi fulcral neste processo. As urbes ibéricas eram não só núcleos
populacionais dedicados a actividades económicas, que possibilitariam o sustento de
forças cada vez maiores, mas também locais de onde se poderiam lançar campanhas
ofensivas em território inimigo e defender mais eficazmente um território, com uma
46 GARCÍA FITZ, Francisco, Castilla y León frente al Islam: Estrategias de expansión y tácticas
militares (siglos XI-XIII), p. 198. 47 Idem, Ibidem, pp. 205-207. 48 Idem, Ibidem, p. 199. 49 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 164. 50 CONTAMINE, Phillipe, War in the Middle Ages, p. 101.
14
posição defensiva consolidada51 . Desta forma, uma cidade conseguiria impor-se na
região onde se encontrava, contribuindo para o efectivo domínio, ocupação e exploração
do território circundante, estabelecendo assim o controlo daquele espaço como
pertencente à coroa à qual era afecta52. Um exército que enveredasse por uma campanha
em território inimigo, sem conquistar estes centros urbanos ou fortalezas da região,
corria o risco de ser atacado pela retaguarda, em campo aberto ou mesmo no decorrer de
um cerco, por forças que não tinham sido incomodadas na movimentação do exército
atacante durante essa campanha53.
Como afirma Philippe Contamine, “In its most usual form medieval warfare was
made up of a succession of sieges accompanied by skirmishes and devastation, to which
were added a few major battles or serious clashes whose relative rarity was made up for
by their often sanguinary character”54. A importância estratégica dos pontos-fortes no
controlo do território, por um lado, e a incapacidade – causada pelo recrutamento de
exércitos ad hoc, pela fiscalidade pouco orientada para o financiamento das operações
militares, e pela ineficácia da artilharia – de levar a cabo uma acção mais directa contra
o inimigo – nomeadamente através de uma batalha campal –, por outro lado,
condicionaram então a forma como a guerra se desenrolava na época, dando assim
primazia a um tipo de estratégia de aproximação indirecta. Os cercos, em caso de serem
bem sucedidos, resultavam na conquista de fortalezas que permitiam aos exércitos, por
um lado, exercerem controlo sobre uma nova região (o que significaria, por exemplo,
mais recursos para a hoste) e a possibilidade de penetrarem mais ainda em território
inimigo minimizando os riscos de serem atacados pela retaguarda, em campo aberto ou
mesmo no decorrer de um cerco, por forças que não tinham sido incomodadas nas
movimentações desses exército ao longo das suas campanhas55. Em suma, os atacantes
vitoriosos conseguiriam assim “retirar ao inimigo as bases económicas e sociais em que
ele alicerçava o seu esforço de guerra”56.
A estratégia militar medieval em Portugal obedecia também a estes princípios,
aplicando-se aqui igualmente uma aproximação indirecta. Após a vitória das forças de
51 POWERS, James F., “Life on the Cutting Edge: The Besieged Town on the Luso-Hispanic Frontier in
the Twelfth Century”, in The Medieval City under Siege, p. 17. 52 Idem, Ibidem. 53 Idem, Ibidem, p. 30. 54 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 101. 55 POWERS, James F., “Life on the Cutting Edge: The Besieged Town on the Luso-Hispanic Frontier in
the Twelfth Century”, in The Medieval City under Siege, p. 30. 56 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 534.
15
D. João I em Aljubarrota, John of Gaunt, duque de Lancaster, declarou ao monarca
português o seu intuito de tomar o trono castelhano através de uma campanha militar
contra Juan I. Esta é uma notícia muito bem recebida por D. João I, pois este considera
que “guereamdo o Duque dhuuma parte e jsso mesmo elle per outra”, Castela teria
então de combater duas ameaças ao mesmo tempo. Desta forma, D. João I reconhecia a
vantagem que teria nesta fase do conflito, resultante da divisão das forças castelhanas
para combater em duas frentes, fazendo com que o monarca castelhano não pudesse
ripostar ou empreender uma campanha militar contra Portugal com a plenitude das suas
forças57.
Por último, debrucemo-nos sobre o exemplo de uma reunião, relatada por Fernão
Lopes, entre o rei Juan I e os seus conselheiros, após a sua hoste ter saído de Santarém,
em Março de 1384, na qual se discute o plano de acção para a campanha militar que
tinha então início, sendo sugeridas nesse conselho duas hipóteses: espalhar as forças
castelhanas em várias direcções do país, separando a hoste mas diminuindo o perigo de
contágio de doenças que começavam a surgir entre os combatentes e causando dano aos
vários locais que tinham voz pelo Mestre de Avis, ou cercar e procurar conquistar
Lisboa, que seria a hipótese escolhida pelo monarca castelhano58. Os que defendiam
esta última hipótese sugeriram que se usasse a frota castelhana para auxiliar o cerco,
bloqueando a travessia e a foz do rio Tejo, dificultando ainda mais a resistência dos
sitiados, e justificando o cerco a Lisboa com o facto de esta cidade ser “o melhor logar
de todos, e cabeça primçipall do rreino; e que de tall guisa tiinham neelha olho, quamtos
logares hi avia; que gaanhada Lixboa, todo Portugall era cobrado” 59 . Esta reunião
demonstra, por um lado, o cuidado dos castelhanos em reduzir a capacidade de
resistência da cidade, conjugando o cerco terrestre com o bloqueio naval do Tejo,
procurando cortar qualquer possibilidade de apoio marítimo que Lisboa pudesse contar
receber, facilitando assim, na teoria, a conquista, e, por outro, a importância que esse
centro urbano, a “capital e chave militar do reino” 60 , tinha no plano político e
57 CDJ I, 2ª, cap. LXV, pp. 156-157. No entanto, a vinda do duque de Lancaster para a Península Ibérica,
e após uma primeira fase em que as forças inglesas invadem, sozinhas, a Galiza, resultou numa acção
conjunta entre as forças inglesas e as forças portuguesas, que ficou conhecida como a Campanha Anglo-
Portuguesa de 1387. RUSSELL, Peter E., A Intervenção Inglesa na Península Ibérica Durante a Guerra
dos Cem Anos, trad. de Maria Ramos, rev. científica de João Gouveia Monteiro, Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, Lisboa, 2000, pp. 435-530. 58 CDJ I, 2ª, cap. LXXXVI, pp. 144-145. 59 Idem, Ibidem, cap. LXXXVI, p. 145. 60 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, Esfera dos Livros,
Lisboa, 2011, p. 271.
16
estratégico do reino português e o que a sua conquista poderia representar para o rumo
da guerra entre Portugal e Castela61.
No entanto, havia outros factores que limitavam os comandantes militares à
implementação de uma estratégia de aproximação indirecta, como, por exemplo, as
características dos exércitos medievais: a sua heterogeneidade, os seus números
reduzidos e o facto de a sua mobilização ser restringida a períodos limitados62.
Focando-nos na hoste régia medieval portuguesa, esta “não era senão o resultado
da congregação de uma série de parcelas com elevado grau de autonomia”63, retomando
assim a heterogeneidade referida anteriormente e relacionada, essencialmente, com a
proveniência de cada contingente. Com um carácter provisório e excepcional (a
manutenção deste exército acarretava elevados custos, sendo assim convocado
principalmente para campanhas de grande envergadura encetadas pelo monarca ou para
a defesa do reino perante ameaças internas ou externas), a hoste régia era composta por
indivíduos que se ausentavam das suas terras, casas e dos seus ofícios por um período
considerável, e que, por isso e pelo elevado risco de vida que acarretava a participação
em operações militares, esperavam assim ser bem recompensados pelo serviço prestado
ao seu senhor64. A hoste régia contava com indivíduos provenientes das três ordens
sociais, tanto do povo, como do clero (através das ordens militares) e da nobreza, com
esta última a representar o núcleo principal da hoste (com os elementos mais rotinados
na arte guerreira e melhor equipados quando comparados com os membros oriundos do
povo)65.
61Onze anos antes, Diogo Lopes Pacheco, que havia fugido de Portugal após a sua participação no
assassinato de D. Inês de Castro, tinha aconselhado Enrique II da mesma forma, “dizendo que entrasse
logo supitamente per Portugall e que sse fosse logo lançar sobre Lixboa, nom curando d’outro logar
nẽhũu, a quall podia tomar ligeiramente; e que cobrando esta cidade entendesse que tiinha todo o rreino
cobrado e fiinda sua guerra”, o que demonstra, uma vez mais, a importância da cidade de Lisboa para o
planeamento da guerra contra o reino português por parte dos monarcas castelhanos. LOPES, Fernão,
Crónica de D. Fernando, ed. de Giuliano Macchi, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1975, cap.
LXX, p. 246-247, e MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp.
274-276. 62 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 339. 63 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 27. 64 Idem, Ibidem. 65 Idem, Ibidem, p. 31.
17
Começando pela nobreza medieval, esta tinha, de acordo com o “modelo
funcional tripartido da sociedade medieval – oratores, bellatores, laboratores”66, como
função principal a prática da guerra, “competia[-lhe] pegar em armas e lutar”67. Assim,
os combatentes provenientes da nobreza, pelo facto de possuírem bom equipamento e
montadas (tinham possibilidades financeiras para adquirirem as melhores armas e o
equipamento mais completo) e por terem treino regular no manejo das armas e, em
alguns casos, um bom conhecimento de tácticas bélicas, representavam a elite militar
desses exércitos, a “espinha dorsal” das hostes medievais68. Para a coroa poder então
usufruir do serviço (e garantir a lealdade) destes combatentes, esta tinha de criar
condições apelativas, ou seja, recompensas, para aliciar a nobreza a participar na guerra
ao seu serviço. No reino de Portugal, pelo menos desde o reinado de D. Dinis69 ,
desenvolve-se um processo, semelhante aos que se observavam nos outros reinos da
Europa ocidental, no qual o rei entregava a determinado vassalo uma “contia” anual70,
uma quantia fixa em numerário, cuja contrapartida seria o serviço militar quando o rei o
requeresse, levando ainda consigo um contingente com um número de “lanças”,
calculado em função da respectiva “contia” que o vassalo recebia71. A partir do reinado
de D. Fernando, estas “contias” poderiam ser reforçadas ou até mesmo substituídas por
doações de terras, bens, rendas e até de direitos para os vassalos do rei72. Para além das
“contias” anuais, os vassalos na época, e também as suas “lanças”, quando serviam o rei
numa campanha, recebiam ainda um soldo mensal, pago em numerário ou bens e
proporcional à duração da campanha e ao equipamento que o combatente deveria
66 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245 a 1367, Imprensa da Universidade
de Coimbra, Coimbra, 2014, p. 24. 67 Idem, Ibidem. 68 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p.
79. 69 “Embora pareça ter surgido, algo timidamente, ainda durante o reinado de Afonso III”, MARTINS,
Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245 a 1367, p. 44. 70 Nomeados por Fernão Lopes como “vassallos del-Rey”, estes fidalgos recebiam a sua “contia” do rei,
calculada em função da do seu pai, após o seu nascimento e sujeita a posteriores alterações consoante a
vontade do rei. Quando falecesse o pai, o filho mais velho passaria a receber a “contia” que era destinada
ao seu pai, efectivamente substituíndo-o. D. Fernando acabaria por alterar este processo, pagando a
“contia” somente ao pai e ao filho mais velho, devido ao esforço financeiro que a coroa teve que
empreender, motivada pelas guerras fernandinas, mas “per morte del-Rey dom Fernamdo, [...], çessou
esta hordenamça de todo”. Cf. CDJ I, 2ª, cap. LXXI, pp. 167 e 168, e MONTEIRO, João Gouveia, A
Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 33-34. 71 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 32-34. 72 Idem, Ibidem, pp. 34-35.
18
possuir, procurando assim a coroa motivar a nobreza a participar nas campanhas
encetadas pelo rei73.
A crise sucessória de 1383-1385 e o conflito que se seguiu fracturaram a nobreza
portuguesa em facções políticas, afectas a D. João ou ao partido castelhano, o que
causou desordem no sistema de “contias” e “lanças” que vinha dos reinados anteriores,
com, por exemplo, D. João I a incorporar na sua hoste indivíduos que, por iniciativa
própria, se ofereciam para defender a sua causa. Isto resultaria numa necessidade de
recompensar os combatentes que iam engrossando as fileiras do partido joanino, fossem
vassalos ou não, tivessem direito às “contias” ou não, proliferando assim um sistema de
recompensas diverso (em numerário, doações, direitos, bens, ...) a indivíduos que
podiam ou não pertencer à nobreza74. Esta conjuntura iria originar uma situação confusa
na nobreza, a qual o rei procura regularizar a partir de 1387, aplicando novas “contias”
anuais para os vassalos e para as suas lanças, e estabelecendo que os filhos dos fidalgos
somente receberiam a “contia” que lhes era destinada a partir da idade em que poderiam
servir militarmente o monarca 75 . É necessário referir ainda que, influenciadas pela
conjuntura que se viveu nesse período, as fontes da época empregam termos como
“escudeiro”, “vassalo”, “homem de armas”, “lança”76, entre outros, para, na maior parte
dos casos, designar os elementos da nobreza que combatiam nos exércitos77.
Passamos agora para o estudo das forças concelhias que figuravam na hoste
régia, compostas pelos aquantiados (em cavalo e armas, em cavalo, e em besta), e pelos
besteiros do conto. Aos aquantiados pertenciam os moradores do reino com casa
própria, sendo irrelevante estes serem casados ou não, incluindo-se ainda clérigos de
ordens menores, deixando assim de fora clérigos beneficiados, e a baixa nobreza, como
cavaleiros, escudeiros vassalos do rei e escudeiros de ascendência fidalga (tanto paterna
73 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 36. 74 Idem, Ibidem, pp. 36-38. 75 Idem, Ibidem, pp. 40-41. 76 Uma “lança” representava um combatente a cavalo e devidamente equipado que pertencia ao séquito de
um vassalo do rei, e inclui-se nesta designação o próprio vassalo e os seus cavaleiros (geralmente
fidalgos, mas não só), recebendo “contias” pelo serviço militar prestado. Idem, Ibidem, pp. 33-34 e nota
37 da p. 100. 77 No entanto, estes termos nem sempre remetiam para elementos da nobreza, pois, como Fernão Lopes
diz a propósito do alardo de Vilariça, em 1386, “estas lamças que ally acharom, nom cuides que eram
vassallos del-Rey como ora sam; ca ajmda el em este tempo nom hordenara contyas, nem os tomara da
guissa que os outros reis faziam, pollo gramde aficamento da guerra em que fora posto depois que
começara de reger e regnar; mas cada huum seruia com aquelles que podia seruir, assy homeens darmas
come de pee, e para todos auya soldo”, ou seja, neste alardo, as “lanças” não eram somente fidalgos, mas
também se inseriam indivíduos que não tinham ascendência nobre nesta designação. CDJ I, 2ª, cap.
LXXI, p. 167, e MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 31-
32.
19
como materna). Estes indivíduos, de acordo com uma avaliação dos seus bens, móveis e
imóveis, eram integrados em determinadas categorias militares que exigiam a posse de
determinadas armas e, nos casos de indivíduos mais ricos, de um cavalo também78. A
avaliação dos bens dos aquantiados estava a cargo de determinados oficiais locais
(coudéis, auxiliados por, geralmente, entre um e três homens-bons do concelho, e
escrivães das coudelarias, responsáveis por fazer o registo da avaliação) e, noutros
casos, era feita aquando da realização de alardos79 . Para o período estudado, João
Gouveia Monteiro apresenta cinco escalões militares distintos através da documentação
da época, especificando o armamento que um aquantiado teria segundo a sua categoria:
os combatentes mais abastados eram obrigados a possuir um bom cavalo e a mantê-lo,
necessitando ainda de ter armamento (defensivo e ofensivo) completo; no escalão
seguinte era obrigatória a posse e manutenção de “um cavalo de menor envergadura
(por isso chamado ‘singelo’ ou ‘raso’)”; de seguida, os elementos deste escalão
deveriam apresentar-se com uma besta de garrucha juntamente com um bacinete e uma
couraça ou solha; os combatentes menos abastados teriam somente que possuir uma
besta de polé ou uma lança (neste caso necessitando também de um dardo ou de um
escudo); aos combatentes que recebessem quantias muitíssimo baixas, “apenas se exigia
a apresentação de um escudo, eventualmente acompanhado de alguma arma branca
rudimentar, como um punhal ou uma adaga”80. Estes escalões estariam ainda sujeitos a
alterações, como, por exemplo, os aquantiados em cavalo e armas de um concelho
serem autorizados pelo rei a equiparem-se com dois arneses em vez de um arnês
completo, com uma besta de garrucha81. É ainda importante referir que esta pequena
amostragem dos escalões que compunham a estrutura dos aquantiados é mais um
exemplo da heterogeneidade no armamento dos elementos que integravam uma hoste,
visto que membros oriundos do mesmo local, com a mesma origem social e
pertencentes ao mesmo grupo militar tinham entre si equipamentos variados.
Os besteiros do conto compõem um corpo militar peculiar, quando comparados
com os outros corpos que se inserem na hoste régia. Os besteiros do conto são uma
milícia de número limitado (cuja quantificação é possível graças aos arrolamentos de
78 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 44. 79 Idem, Ibidem, pp. 44-46. 80 Idem, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in
Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 195-196. 81 Idem, Ibidem, p. 196
20
besteiros do conto que sobreviveram até aos nossos dias 82 ), com uma estrutura
hierárquica própria (estes contingentes eram comandados pelo respectivo anadel local83,
existindo ainda o anadel-mor do reino), e era uma milícia na qual os seus membros se
especializavam somente no manejo da besta, cuja utilização eficaz requeria um treino e
uma prática constantes84. Estes membros eram mesteirais, casados, excluindo-se assim
do arrolamento lavradores e solteiros (sendo, no entanto, possível que, em caso de uma
localidade não ter mesteirais suficientes para cumprir o conto, mancebos, sem mester,
que vivessem com as suas mulheres e que soubessem manejar a besta podiam fazer
parte da milícia 85 ). Para além disso, desde D. Dinis (em cujo reinado surgem os
primeiros besteiros do conto, sendo a milícia oficialmente estabelecida nas cortes de
Santarém de 1331, por D. Afonso IV86), e principalmente com D. João I, a coroa
empenhou-se em conceder aos membros desta milícia direitos e privilégios (como, por
exemplo, o usufruto dos mesmos direitos e condições dos cavaleiros em demandas e
custos judiciais, a sua hierarquia e mobilização separadas, sendo responsabilidades do
anadel, e não de, por exemplo, um alcaide, isenções nos pagamentos de várias peitas e
talhas concelhias, entre outros87) que tornassem apelativa a pertença a este grupo de
combatentes, indispensável “ao sucesso da maioria das operações militares”88. Estes
elementos eram ainda obrigados a possuir, para além da besta, 100 virotões, dardos (o
número exacto não é conhecido) e um bacinete89.
De seguida, encontramos os membros das ordens militares. Embora fosse
possível encontrar entre a nobreza e alguns sectores das milícias concelhias efectivos
com um elevado grau de especialização na arte de guerrear, os membros das ordens
militares afirmavam-se “como os verdadeiros ‘profissionais’ da guerra”90. Estes corpos
militares, para além de serem tacticamente bem disciplinados, de terem treinos
82 O rol de besteiros do conto presente no primeiro livro da Chancelaria de D. João I (que contém
documentos do período compreendido entre 1384-1388), intitulado “Titollo dos besteiros do conto.,,”,
apresenta uma lista de 54 localidades das comarcas de Entre-Tejo-e-Guadiana e do Algarve, indicando o
número de besteiros que estas localidades teriam que garantir, representando um total de 1182 besteiros
nessas comarcas. ChDJ I, Vol. I, Tomo II, fls. 112vº-113, doc. 778, pp. 138-140. 83 De acordo com João Gouveia Monteiro, os anadéis eram eleitos pelos besteiros da respectiva milícia
até ao reinado de D. João I, com essa tendência a prolongar-se, pelo menos, até ao fim do século XIV.
MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 70. 84 Idem, Ibidem, pp. 58-60. 85 Idem, Ibidem, pp. 62-63. 86 Idem, Ibidem, p. 59. 87 Idem, Ibidem, pp. 65-66. 88 Idem, Ibidem, p. 58. 89 “Titollo dos besteiros do conto”, ChDJ I, Vol. I, Tomo II, fls. 112vº-113, doc. 778, org. DIAS, João
José Alves, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2004, pp. 140. 90 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 160
21
frequentes, de estarem bem equipados, de terem um carácter de serviço permanente e
serem comandados por indivíduos com grande experiência militar, todos dedicados à
arte da guerra, não tinham limitações no tempo de serviço e, embora fossem
contingentes com números de efectivos reduzidos, tornaram-se assim peças importantes
nas acções do período da Reconquista91. Fundadas nos Estados Latinos do Levante nos
inícios do século XII, estas ordens vão gradualmente tornando-se no “mais importante
suporte militar” 92 da Cristandade contra as forças muçulmanas no Levante e na
Península Ibérica, recebendo, por isso, doações que lhes possibilitaram acumular
fortuna e patrimónios (como fortalezas cuja defesa ficava a cargo da respectiva ordem),
resultando numa crescente capacidade bélica 93 . Este poderio, após o fim da
Reconquista, é aproveitado pela coroa portuguesa nas suas guerras, com as ordens a
manterem o controlo de fortalezas importantes (localizadas em regiões de elevado valor
estratégico), ficando a seu cargo a protecção e a defesa dos territórios circundantes e das
vias de comunicação que por aí passavam, assumindo assim “um papel crucial no
quadro da defesa do reino”94.
Mas o fim da Reconquista no espaço peninsular trouxe também uma mudança
importante nas ordens: estas deixaram de somente combater forças muçulmanas,
começando a ser utilizadas pelas coroas ibéricas nos seus conflitos externos e também
internos, com o rei D. Dinis a utilizar efectivos das ordens na sua intervenção em
Castela, aquando da guerra civil que flagelava o reino vizinho nos anos de 1295-98, mas
também nos confrontos com o infante D. Afonso, irmão do rei95. Reconhecendo então o
valor bélico e estratégico destas ordens96, até ao período estudado nesta dissertação, a
coroa procurou colocar as ordens militares sob a sua tutela 97 , influenciando até a
atribuição dos cargos de mestres das ordens (D. Pedro nomeia o seu filho bastardo, o
futuro D. João I, como Mestre da Ordem de Avis com cerca de sete anos)98, e, no caso
da Crise de 1383-1385 e consequente conflito com Castela, D. João I pôde contar com o
apoio militar das ordens de Cristo, Santiago e Avis (o Priorado do Hospital participou
91 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 165. 92 Idem, Ibidem, p. 160. 93 Idem, Ibidem, p. 160-165. 94 Idem, Ibidem, p. 178. 95 Idem, Ibidem, pp. 199-201. 96 A coroa portuguesa continua a deixar sob o controlo das ordens fortalezas importantes (localizadas em
regiões de elevado valor estratégico), ficando a seu cargo a protecção e a defesa dos territórios
circundantes e das vias de comunicação que por aí passavam, assumindo assim “um papel crucial no
quadro da defesa do reino”, Idem, Ibidem, p. 178. 97 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 79. 98 COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I, Temas e Debates, Rio de Mouro, 2008, p. 21.
22
no conflito pelo partido castelhano), contribuindo para a vitória do novo monarca
português99.
Embora somente no século XV se tenha institucionalizado uma “guarda militar
permanente e montada da pessoa do rei”, é bastante provável a existência prévia de um
corpo militar cuja função seria a protecção do monarca. Inicialmente uma “guarda da
«câmara», portanto doméstica, palaciana, sem atribuições militares específicas fora da
esfera da corte régia”, com D. Afonso IV começou a assistir-se a uma crescente
definição e organização deste corpo, surgindo, pelo menos desde o reinado de D. Pedro
I, o cargo de guarda-mor do reino. No reinado de D. João I encontramos a presença
deste grupo a acompanhar o rei, por exemplo, na batalha de Aljubarrota, começando a
participar assim nos palcos de guerra, deixando as suas “funções exclusivamente
palacianas”. Os membros desta guarda seriam cavaleiros e escudeiros (ou, ainda,
besteiros montados e combatentes a pé) da criação do monarca, assumindo-se, a partir
do período estudado, “como que um primeiro elemento constitutivo da hoste régia”, um
contingente de guerreiros que, embora fosse de números reduzidos, seria de fácil
mobilização e, sobretudo, fiéis e dedicados ao seu rei100. É necessário acrescentar ainda
que de acordo com João Gouveia Monteiro, logo a partir do início do reinado de D.
João I, é criado um corpo permanente de 100 besteiros que deveriam acompanhar o rei,
os “besteiros da câmara do rei”, que teria alguma relação com a guarda do rei, mesmo
que só complementar101.
As hostes medievais continham também, em diversos casos, a presença de
contingentes de mercenários. Estes grupos de, no máximo, algumas centenas de
combatentes viviam da guerra, lutando “em troca de um estipêndio (e não de um ideal
ou, sequer, de um senhor)”, e eram peritos em diversos tipos de operações militares,
podendo ser utilizados não só como “fortalezas de picos impenetráveis colocadas no
centro das batalhas”, ou em assaltos furtivos, infiltrando-se em vilas ou fortalezas,
sendo os seus efectivos “em nada […] inferiores aos nobres, em matéria de ousadia e de
arte de fazer a guerra”. Desta forma, estes contingentes eram muito procurados pelas
coroas europeias durante o período, pois o contributo de um corpo de combatentes
experientes e eficazes poderia fazer a diferença tendo em vista a “feliz resolução dos
99 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 81. 100 Idem, Ibidem, pp. 28-29. 101 Idem, Ibidem, pp. 30-31.
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seus problemas político-militares” 102 . No conflito estudado, mercenários ingleses
fizeram parte da campanha realizada por D. João I no Minho, na Primavera de 1385,
com Fernão Lopes a referir a sua presença no cerco de Ponte de Lima103, e encontramos
mercenários franceses, entre outros, a auxiliar as forças castelhanas, por exemplo, na
defesa de Valderas, em 1387, frente às forças de D. João I e do duque de Lancaster104.
Por último, é necessário referir ainda a presença dos homiziados nos exércitos da
época. Estes eram criminosos ou marginais, incluindo até, por vezes, homicidas, ou seja
“indivíduos a contas com a justiça”, que eram integrados na hoste régia, trocando o seu
serviço militar por uma amnistia, fosse uma redução da pena ou até mesmo um perdão
total, sendo esta uma forma que D. João utilizou para engrossar as suas fileiras em
1384105.
Conhecendo a composição das hostes medievais que participaram nas operações
de cerco no período estudado, observemos agora as dimensões dessas forças sitiantes e
sitiadas. Ao observarmos ambas as forças em confronto, é possível verificar uma
disparidade entre os números de efectivos das hostes participantes nestes conflitos,
números esses que se alteravam de campanha para campanha e de local para local ou se
fosse um exército sitiante ou uma guarnição defensiva de uma determinada localidade
ou fortaleza. Começando pelas hostes que realizaram campanhas militares que
incluíram cercos, os cronistas deixaram-nos algumas estimativas do número de
combatentes, por vezes díspares de cronista para cronista, outras vezes semelhantes, e
veremos, como exemplos, o alardo realizado em Valariça em 1386, a hoste real que
participou na campanha anglo-portuguesa de 1387 e a hoste do rei Juan I de Castela que
cercou Lisboa em 1384, entre outros casos.
No primeiro caso, o alardo de Valariça, D. João I reúne, em Junho de 1386, uma
hoste com cerca de 4500 lanças, para além de um número indefinido de combatentes a
pé e besteiros, numa situação que Fernão Lopes descreveu como “o mais fremoso
allardo que ata ally em Portugall fora visto”106. Este alardo ocorre após a vitória no
cerco de Chaves de 1386, e a hoste dirige-se depois para Coria, tomando Almeida pelo
102 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 84-85. 103 “vijnte de cauallo, jngreses frecheros”, CDJ I, 2ª, cap. XVII, p. 33. 104 “Em esto logar estaua […] monse Roby Brocamonte, com framçeses e outros estrangeiros que por
guarda daquela comarca eram postos”, Idem, Ibidem, cap. CVI, p. 221 105 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 86-88. 106 CDJ I, 2º, cap. LXXI, p. 166.
24
caminho. D. João I sai do Porto em direcção a a Trás-os-Montes, “que he terra de
Portugall, por cobrar alguns logares que naquela comarca ajnda comtra elle
reuelauom107, desy per emtrar per Castella”108, procurando assim atrair para uma batalha
campal as forças de Juan I, que ainda estavam a recuperar da derrota na Batalha de
Aljubarrota109.
Em 1387 ocorre a campanha anglo-portuguesa, com o intuito de reclamar o
trono castelhano para o duque de Lancaster, John of Gaunt, durando somente alguns
meses, entre Abril e Julho110. De acordo com Fernão Lopes, as hostes combinadas
perfaziam um total de cerca de 11000 efectivos, com o exército do duque a ser
composto por 2000 combatentes, dos quais 600 eram homens de armas e outros 600
arqueiros, e D. João I a trazer consigo 3000 lanças, 2000 besteiros e 4000 peões, mais
um número indefinido de combatentes que se foram juntando à hoste ao longo da
campanha 111 (Pero López de Ayala refere também que seriam cerca de 9000 os
combatentes portugueses)112. Embora tenha terminado em fracasso, devido à crescente
dificuldade em manter uma tão volumosa hoste113, na bem sucedida tomada de Valderas
a hoste anglo-portuguesa encontra uma força castelhana auxiliada por combatentes de
outros reinos europeus, principalmente franceses114, sendo este confronto um exemplo
de que esta guerra não envolveu somente Portugal e Castela, com as rivalidades
resultantes da Guerra dos Cem Anos a propagarem-se para território ibérico115.
O cerco de Lisboa de 1384 é um cerco marcante deste conflito (e do período e
tema que esta dissertação observa), no qual participou um grande número de
107 Para além de Chaves, também Bragança tinha voz por Castela, mas João Afonso Pimentel, por recear
ser cercado por D. João I e o rei castelhano não acorrer em seu auxílio, tal como se sucedeu com Chaves,
e “por seguramça da sua homra e estado cuidou preitejar com el-Rey qye lhe ficasse Bragamça com todo
aquello que tinha, e que tomasse sua voz”, CDJ I, 2ª, cap. LXXII, p. 169. 108 Idem, Ibidem, cap. LXIII, p. 152. 109 Idem, Ibidem, caps. LXVII, LXVIII, LXIX, pp. 160-164. 110 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 277. 111 CDJ I, 2ª, cap. C, p. 214, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de
Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 277. 112 CRC, Juan I, Año Noveno (1387), cap. I, pp. 626-627. 113 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 278. 114 CDJ I, 2ª, caps. CV, CVI, pp. 220-222. 115 As tréguas assinadas em Brétigny, em Maio de 1360, entre ingleses e franceses obrigaram companhias
de mercenários de ambos os reinos a procurarem um outro local onde pudessem continuar a pelejar,
encontrando na Península Ibérica um palco propício para a continuidade da sua actividade, participando
nos conflitos internos castelhanos (entre o rei D. Pedro I de Castela e o seu irmão bastardo, o conde D.
Enrique de Trastâmara), nas Guerras Fernandinas e ainda em diversos momentos da guerra entre Portugal
e Castela causada pela crise sucessória de 1383-1385, especialmente na já referida campanha de 1387.
MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da idade média, p. 286.
25
combatentes e meios, e será frequentemente visitado ao longo desta dissertação116. As
forças sitiantes castelhanas eram compostas por, de acordo com Fernão Lopes117, 5000
lanças de cavalaria, 1000 ginetes, 6000 besteiros e um número indefinido de peões, para
além de membros da nobreza portuguesa afectos a Juan I e D. Beatriz, de um
contingente de 2000 mercenários franceses, e ainda as tripulações da frota castelhana. A
esta hoste com mais de 14000 combatentes adicionam-se ainda acompanhantes da hoste,
com funções auxiliares, fazendo com que esta ascendesse a um número, de acordo com
Miguel Gomes Martins, entre 15000 e 20000 homens, referindo ainda que alguns
autores apontam para cerca de 25000 pessoas118.
No primeiro cerco de Alenquer de 1384, o Mestre de Avis procura, sem sucesso,
conquistar a vila com 200 lanças e alguns besteiros e soldados a pé, sem, no entanto,
levar qualquer engenho de cerco119. No assalto à mesma localidade, cerca de quatro
meses depois, 50 homens de armas liderados por Manuel Pessanha, juntamente com a
população, tentam a conquista do castelo, resultando, no entanto, em fracasso120. O
Condestável consegue a conquista de Neiva e de Viana do Castelo liderando um
contingente de 150 escudeiros a cavalo, 40 homens de armas e um número indefinido de
combatentes a pé, tanto “gallegos come portugueses”121. Mértola é cercada em 1385, de
acordo com Pero López de Ayala, por cerca de 200 homens a cavalo e 4000
combatentes a pé, que são depois derrotados com o auxílio de um exército de socorro122.
Para o cerco de Melgaço de 1388, D. João I leva consigo 1500 lanças e “muyta gente de
pee”123. Por último, em 1398, após um alardo em Ponte de Lima, no qual reúne um
exército de “quatro myl lanças e (muitos) peoẽes e beesteiros” 124 (embora tenham
morrido afogados vários combatentes na travessia do rio Minho)125, D. João cerca e
conquista Salvatierra, Sotomayor e depois Tui126.
116 Entre a decisão de Juan I de Castela de cercar Lisboa, no capítulo LXXXV, e o fim do cerco, no
capítulo CL, as ocorrências do cerco, e eventos relacionados com este, são relatadas por Fernão Lopes em
24 capítulos da Crónica de Dom Joham I. 117 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, pp. 192-195. 118 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 308. 119 CDJ I, 1ª, cap. LI, pp. 90-91. 120 Idem, Ibidem, cap. CIX, pp. 184-186. 121 Idem, Ibidem, cap. VI, pp. 14-15. 122 CRC, Juan I, Año Séptimo (1385), cap. IX, pp. 588-589. 123 CDJ I, 2ª, cap. CXXXIV, p. 275. 124 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, p. 356. 125 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, pp. 357-358. 126 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, p. 356.
26
Agora, vamos olhar para o outro lado da barricada, e tentar perceber qual a
dimensão dos contingentes que asseguravam a defesa das fortalezas, ou seja, qual a
dimensão da oposição com que os sitiadores se deparavam. Ao longo deste conflito,
João Gouveia Monteiro refere que estas guarnições contavam, geralmente, com cerca de
200 combatentes127. Este número é uma média, pois as forças defensoras oscilavam
bastante de local para local, e apresentam-se em seguida alguns exemplos que permitem
compreender este número: no cerco de Guimarães de 1385, Aires Gomes resistiu
durante um mês com cerca de 110 escudeiros galegos e castelhanos128; Lopo Gomes de
Lira e cerca de 80 combatentes defendem-se durante três dias das forças combinadas de
D. João I e do Condestável em Ponte de Lima, em Maio de 1385, utilizando as torres da
vila129; a guarnição castelhana de Chaves, liderada pelo alcaide Martim Gonçalves de
Ataíde, composta por cerca de 110 lanças e um número indefinido de combatentes a pé
e besteiros, contando ainda com um trom, resistem durante quase quatro meses, entre
Janeiro e Abril de 1386, ao assédio da força de D. João I130; no cerco de Melgaço de
1388, as forças sitiadas de cerca de 300 homens de armas e um número indefinido de
peões fazem frente à hoste de D. João I, composta por 1500 lanças e um número
indeterminado de combatentes a pé131; no segundo cerco de Tui, em 1398, a cidade era
defendida por um contingente de 300 lanças e um número indefinido mas razoável de
peões e besteiros132.
Como último exemplo, no caso da tentativa de cerco do Porto protagonizada, em
1384, por uma força castelhana liderada pelo arcebispo de Santiago, composta por 700
lanças e 2000 combatentes a pé galegos e portugueses, não se consegue, numa primeira
fase, cercar eficazmente a cidade e, com a chegada de reforços vindos de Lisboa, a força
sitiada inicial de 700 homens de armas, 300 besteiros e 1500 combatentes a pé que se
encontravam no Porto (um número de efectivos, já neste momento, bastante mais
considerável quando comparado com o número das outras guarnições mencionadas)
torna-se numa força de cerca de 1000 homens de armas, 800 besteiros e 5000
127 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 512. 128 Idem, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in
Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 268. 129 CDJ I, 2ª, caps. XV, XVI, XVII, XVIII, pp. 29-37. 130 Idem, Ibidem, caps. LXIII, LXIV, LX, LXVI, LXVII, LXVIII, LXIX, pp. 152-164. 131 Idem, Ibidem, cap. CXXXIV, p. 275. 132 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 281.
27
combatentes a pé, o que acabaria por dissuadir as forças castelhanas de levar a cabo o
cerco à cidade portuense133.
No caso do cerco de Lisboa de 1384, o Mestre de Avis tinha sob o seu comando
cerca de 2000 homens de armas, mais o contingente de besteiros e peões que
compunham as forças de infantaria da milícia concelhia lisboeta134. Porém, não foram
somente estes combatentes que participaram e contribuíram para a defesa bem sucedida
da cidade, pois também os habitantes e refugiados que aí se encontravam participaram e
auxiliaram nas tarefas defensivas ao longo dos cerca de quatro meses de cerco. Em caso
de perigo, mesteirais, e não só, paravam de trabalhar, pegavam em armas e auxiliavam
no combate, e as mulheres transportavam cestas com pedras para os adarves que
posteriormente seriam atiradas contra os sitiantes que se aproximassem da cidade135.
Também os clérigos faziam a sua parte, “espeçiallmente da Trindade”, participando nas
vigias das muralhas e das torres136, e até os prisioneiros137. Aos fidalgos e homens bons
que se encontravam em Lisboa por altura do cerco foram-lhes atribuídas diversas tarefas
de grande importância respeitantes à organização da defesa da cidade, como a guarda
das portas e das torres que se encontravam ao longo das muralhas lisboetas138.
Nota-se também nestes exemplos que as guarnições que defenderam os castelos
e localidades neste conflito (exceptuando o caso do Porto, após a chegada dos reforços)
tinham, na generalidade dos casos, inferioridade numérica em relação aos sitiantes. No
entanto, esta inferioridade não era sinónima de derrota, pois, nas palavras de João
Gouveia Monteiro, “em condições ideais (isto é, com uma guarnição minimamente
numerosa e fiel, com bons muros e com uma boa provisão de armas e de mantimentos),
uma fortaleza era potencialmente capaz de resistir ao assédio de um exército inimigo,
para mais tendo em conta que estes exércitos eram geralmente recrutados por períodos
de tempo limitados e incluíam no seu seio importantes contingentes de mercenários,
133 CDJ I, 1ª, caps. CXVIII, CXIX, CXX, CXXI, CXXII, CXXIII, pp. 202-212. 134 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 311. 135 CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 196. 136 Idem, Ibidem, cap. CXV, p. 197. 137 “E [o Mestre] perdoava as mortes e mallefiçios a quamtos lho rrequeriam, com tamto que nom fosse
alleive ou treiçom, e sse forom feitos amte do primeiro dia de dezembro, em que ell matou o Comde
Joham Fernamdez, da era de quatroçemtos e viimte e huũ, com condiçõ que a çertos dias sse vehessem a
Lixboa pera servir aa sua custa em quamto durasse a guerra”, Idem, Ibidem, cap. XXVII, p. 50 e
MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 87. 138 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 88.
28
cuja manutenção prolongada no terreno era (financeira e disciplinarmente) muito difícil
de suportar”139.
Por último, terminamos este capítulo inicial com uma breve observação do
armamento individual ofensivo e defensivo utilizado em Portugal durante o período em
análise neste estudo e, como tal, pelos combatentes que participaram nos cercos
ocorridos nesse mesmo espaço de tempo. Ao longo da Idade Média, Philippe
Contamine considera que existiram dois modelos contrastantes em relação ao
equipamento de um combatente. Por um lado, um modelo em que o armamento de um
combatente, ofensivo e defensivo, e até mesmo o cavalo, era adquirido por este,
consoante os seus meios económicos e o que este pretendia para a sua própria segurança
e eficácia em combate. Por outro lado, embora mais raro e sem ser completamente
implementado, um outro modelo em que o poder político se encarregava de equipar os
seus combatentes, zelando pela definição e regulamentação do equipamento para
assegurar a uniformização e a padronização do seu exército140. Em relação ao primeiro
modelo, praticado na medievalidade portuguesa, as autoridades, régias ou locais,
exerciam, no entanto, uma influência na escolha do equipamento, pois, embora não o
fornecessem em muitos casos 141 , poderiam exigir que os seus combatentes se
apresentassem com um equipamento específico ou decretar leis que estabeleciam o tipo
de armamento que um indivíduo deveria possuir aquando da sua chamada para
combater ou, ainda, as autoridades poderiam simplesmente procurar garantir que esse
equipamento fosse facilmente acessível e que os seus custos fossem o mais económicos
possível (proibindo a exportação de armas ou cavalos em período de guerra ou
concedendo benefícios aos artesãos que trabalhassem com equipamento bélico) 142 .
Assim, as hostes medievais apresentavam um armamento bastante heterogéneo. Para
além disso, este modelo permitia que os combatentes tivessem consigo ou guardadas em
139 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 338-339. 140 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, pp. 188-189. 141 Havia excepções comprovadas pela existência de arsenais, sendo, em Portugal, os maiores exemplos
disso os grandes arsenais régios em Lisboa (século XIII) e no Porto (século XIV), nos quais o rei
acumularia armamento ofensivo e defensivo, controlando o seu estado de conservação e a quantidade de
equipamento à sua disposição, permitindo-lhe fornecer essas mesmas armas aos combatentes (membros
da sua guarda e da sua mesnada), planear melhor as suas campanhas, e enviar, em caso de necessidade,
auxílio sob esta forma para fortalezas em perigo. Também os senhores, que tinham capacidade para tal,
forneciam armamento (e até montadas) aos combatentes que integravam as suas mesnadas, MARTINS,
Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 211 e 255-260. 142 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, pp. 188-189.
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sua casa, mesmo em tempos de paz, as suas próprias armas143, num processo que se
manteria, pelo menos, até ao terceiro quartel do século XV, de acordo com Luís Miguel
Duarte, que observou ainda, citado por João Gouveia Monteiro, que os portugueses “na
sua esmagadora maioria, andavam armados; e todos eles tinham acesso fácil e rápido
a armas”144.
De acordo com o modelo de classificações utilizado por João Gouveia Monteiro,
o armamento dos finais da Idade Média dividia-se em armas individuais e armas
colectivas. Neste capítulo trataremos somente as armas individuais ofensivas (de mão
ou de arremesso) e defensivas. Começando pelas armas ofensivas de mão, encontramos
neste grupo as armas brancas (espada, punhal, cutelo, etc.), as armas de choque (fachas,
achas-de-armas ou maças), e as armas de haste (principalmente as lanças145). Das armas
brancas, João Gouveia Monteiro destaca a importância e contínuo uso das espadas neste
período (“a arma mais importante dos cavaleiros medievais, a par da lança”146), devido
à sua versatilidade, podendo ser utilizada tanto para fender, cortar ou espetar o seu
adversário 147 . Em relação às armas de choque, João Gouveia Monteiro refere a
importância da facha (ou acha-de-armas), uma arma frequentemente utilizada não só por
combatentes dos estratos populares mas também, em alguns casos, por membros da
nobreza148, e Miguel Gomes Martins refere também as maças de armas149. Por último,
nas armas de haste, com um uso tão disseminado como as espadas, encontramos as
lanças, que serviam para arremessar ou para estocar150.
As armas ofensivas de arremesso eram divididas em armas de arremesso de
“simples propulsão muscular”, como o dardo e as azagaias, e armas de arremesso
143 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 144. 144 Idem, Ibidem. 145 Idem, Ibidem, p. 184. 146 Idem, Ibidem. 147 As espadas de estoque ganham popularidade nesta época face à evolução dos equipamentos
defensivos, pois permitiam penetrar por entre as falhas e pequenas aberturas dos arneses. MARTINS,
Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 277, e MONTEIRO, João
Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in
Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 184-185. 148 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 185-186. 149 “que funcionavam como verdadeiros «abre-latas», usados para rasgar as defesas adversárias”,
MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 277-278. 150 As lanças foram ainda adaptadas ao combate a cavalo, aliando a força do cavaleiro com o
embalamento da montada, resultando num movimento com um impacto final sobre o adversário mais
potente ainda. BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de
Portugal, Vol. I, p. 138.
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neurobalístico, como os arcos, bestas e fundas151. Deste tipo de armas ofensivas, as que
mais se destacam neste período são as bestas. Estas ressurgem no panorama militar
europeu no último quartel do século XI (eram já utilizadas na Antiguidade mas não há
registos da sua utilização ao longo da Alta Idade Média), encontrando uma enorme
adesão e difusão na Península Ibérica152, não só pela conjuntura de constante conflito
com forças muçulmanas153, mas também por medidas régias como a instituição dos
besteiros do conto 154 . A eficácia e poder das bestas vinham do facto de estas
possibilitarem ao combatente, após armá-la, esperar em repouso até a oportunidade
surgir para desferir um tiro bastante certeiro, de longo alcance (entre 200 a 300 metros),
e com grande poder de impacto e perfuração (graças à ponta do virotão, volumosa,
maciça e pesada), resultando numa arma extremamente mortífera155.
Prosseguimos agora para as armas defensivas, começando pelo escudo, que era
na época medieval uma protecção de extrema importância156. No período estudado, os
escudos mais utilizados tinham uma forma aproximadamente triangular, os mais
comuns na época, ou ainda em forma de “U” 157 . Os besteiros, exclusivamente,
utilizavam ainda outro tipo de escudo, os paveses, que eram escudos canelados de
grandes dimensões e protegiam totalmente o combatente (oferecendo uma protecção
mais eficaz ainda quando este se encontrava acocorado), permitindo-lhes recarregar a
sua arma em maior segurança158.
151 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 186-187. 152 O uso da besta na Península Ibérica é de tal forma popular que no período estudado o arco é
praticamente inexistente, sendo somente utilizado pelas forças inglesas que auxiliaram D. João I (os
ingleses preferiam e especializavam-se no manejo do longbow, arco de maior alcance, potência e
resistência do que o arco comum, e com uma maior cadência de tiro que a besta). Idem, Ibidem, pp. 186-
187. 153 As bestas eram armas tão mortíferas que a Igreja procurou restringir o seu uso, através da condenação
por parte do papa Urbano II e a proibição da sua utilização em combates entre cristãos no II Concílio de
Latrão no século XII, acabando por, no entanto, ser uma arma comummente utilizada por toda a Europa já
no século XIII. BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de
Portugal, Vol. I, pp. 140-142. 154 Idem, Ibidem, e MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 227-
229. 155 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I,
pp. 142-143. 156 No entanto, graças à evolução observada nas protecções de corpo, a dimensão dos escudos foi
tornando-se cada vez mais reduzida, MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na
Idade Média, p. 277. 157 Idem, Ibidem. 158 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 187-188.
31
Para além do escudo, o guerreiro medieval necessitava também das protecções
para a cabeça e para o corpo. Neste período o bacinete era a protecção para a cabeça
mais comum e eficaz159, pois era uma peça que protegia toda a nuca e cabeça, e era
frequentemente complementada por uma viseira móvel (“cara” ou “volante”) que
conferia protecção para a cara do combatente, contendo frechas que facilitavam a
visibilidade e a respiração160. Em conjugação com o bacinete utilizava-se ainda o camal,
um avental de malha de ferro para o pescoço161, que protegia o pescoço e a garganta dos
combatentes, e, com o mesmo intuito, o gorjal (utilizado com os capelos ou as
capelinas), feito de malha, placas de ferro ou couro fervido162. Vemos nas crónicas
referências ao uso do bacinete, como, por exemplo, Nuno Álvares Pereira na batalha de
Atoleiros, em 1384, que ainda antes da batalha “pos seu baçinete sem cara, e tomou a
lamça nas maãos que lhe tragia o Page” 163 , ou ainda o alcaide de Neiva, quando
defendia o castelo de um ataque do Condestável, embora tenha sido atingido por um
virotão pela “vasagem do baçinete”, falecendo e levando ao fim desse cerco164.
Para o corpo, o arnês assume-se como a protecção mais utilizada pelos
combatentes da época, tanto portugueses como castelhanos 165 , vindo substituir ou
reforçar as couraças ou as solhas, que ainda se utilizam em finais do século XIV. O
arnês era um conjunto de cerca de 20 a 30 placas metálicas polidas e resistentes,
independentes, unidas e articuladas por dobradiças, gonzos e atilhos de couro166, que
facilitavam o deslize das armas dos combatentes inimigos, para além de permitirem uma
articulação e flexibilidade razoáveis para o combatente, sendo, no entanto, necessário o
complemento das protecções de malhas de ferro, como a loriga ou as brafoneiras, para
159 A barbuda e o bacinete surgem por volta da década de 1340, com a primeira a ser introduzida logo no
início dessa década no contexto ibérico, simultaneamente ao contexto extra-peninsular, e a segunda a
partir de, pelo menos, 1347. A barbuda é, no entanto, rapidamente substituída pelo bacinete por este ser
mais eficaz na protecção da cabeça do combatente, “ao ponto de, em 1366, o inventário dos bens da
Ordem de Avis registar apenas a existência de bacinetes nos vários arsenais da ordem”, MARTINS,
Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 277. 160 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 188. 161 Idem, Ibidem. 162 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 277. 163 CDJ I, 1ª, cap. XCV, p. 159. 164 CDJ I, 2ª, cap. VI, p. 15. 165 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 276. 166 Das peças que faziam parte do conjunto do arnês, destacam-se o peitoral ou peito (que protegia o
tronco do combatente), as gorjais ou babeiras (protegendo o queixo, pescoço e ombros), peças discoidais
que protegiam as articulações dos membros superiores, arnês de braços (braçais, avambraços e
manoplas), a panceira ou escarcela, para proteger a cintura, e, por fim, o arnês de pernas (coxotes,
joelheiras, grevas e sapatos de ferro ou escarpins). MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325)
à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal,
Vol. I, p. 189.
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proteger as articulações e outras partes do corpo não protegidas pelo arnês167. Como
exemplo de um armamento defensivo de um combatente, encontramos, no cerco de
Guimarães de 1385, “Aluaro dOuter de Fumos [...] armado dhuumas solhas e huum
loudell e huum gorjall de malha e huum baçinete de camal em çima e huuma aduffa de
madeira antelle e huum escudo no braço”168.
Após esta breve síntese inicial focada na estratégia militar medieval e nos
exércitos que a praticaram, os capítulos que se seguem analisarão as diversas fases de
um cerco, desde a chegada de um exército sitiante e a instalação do respectivo arraial,
bem como as medidas tomadas por sitiados previamente, as dificuldades que ambos os
exércitos enfrentavam ao longo do período do cerco, as diversas formas de ataque a uma
fortaleza, ou ainda as acções tomadas por parte de vencedores e vencidos após o
término do cerco, procurando assim demonstrar a complexidade da estratégia (e a
própria existência desta) no âmbito dos cercos ocorridos ao longo dos cerca de 15
últimos anos do século XIV, no contexto da guerra entre os reinos de Portugal e Castela.
167 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 276, e
MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da
Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 188-189. 168 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 24.
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CAPÍTULO II – OS PREPARATIVOS PARA ATACAR OU RESISTIR
Antes de se dar início a um cerco, ambas as forças em conflito tinham a hipótese
de pôr em prática determinados preparativos, medidas ou precauções que poderiam
conferir alguma vantagem sobre o adversário, previamente ou mesmo durante o
decorrer do cerco. Assim, este capítulo terá como objectivo o estudo desses mesmos
preparativos, medidas e precauções que sitiantes e sitiados tomavam no período que
antecedia o início de um cerco, desde as tentativas de controlo do território que
circundava o alvo a ser cercado, as características pelas quais se regiam as instalações
dos arraiais e a própria composição destes, as recolhas prévias de mantimentos e
armamento, ou ainda a atenção dada às estruturas fixas de defesa, entre outros aspectos.
Iniciamos o estudo dos preparativos do cerco pelo lado das forças que cercariam
e procurariam conquistar a localidade. Os sitiantes de uma praça-forte poderiam,
previamente, caso fossem necessárias (o cerco poderia perspectivar-se como tendo um
elevado grau de dificuldade) e tivessem os meios para as concretizarem, desencadear
determinadas acções que isolassem ainda mais o alvo do cerco, impedindo o acesso a
essa praça de reforços ou de mantimentos, enfraquecendo assim a sua capacidade em
resistir ao assédio e aumentando, do lado dos agressores, as probabilidades de sucesso
dos atacantes.
A razia dos campos e povoações vizinhas do local assediado169, assim como a
presença de combatentes dos sitiantes na região, impediam as forças prestes a serem
sitiadas e os próprios moradores do local de se movimentarem livremente e
conseguirem recolher mantimentos (ou destruí-los)170, podendo esta acção servir ainda
não só para a recolha de mantimentos, mas também como um efeito de intimidação aos
sitiados através dessas demonstrações da força dos futuros sitantes171. É com este intuito
que Juan I de Castela ordena a um contingente de combatentes castelhanos, comandado
por Pero Fernández Cabeza de Vaca, Pero Fernández de Velasco e Pero Rodríguez de
169 Como, por exemplo, no cerco de Cória de 1386, no qual, partindo do arraial, “coriam as gemtes comtra
Prazemça e Gallisteo e outros logares que per ally ha”, CDJ I, 2ª, cap. LXXV, p. 173. 170 Tal como D. João I ordenou que se fizesse nos dias que antecederam o cerco a Guimarães em 1385.
Idem, Ibidem, cap. X, p. 21. 171 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227.
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Enxarmiento172, a ir para o termo de Lisboa antes da chegada do exército principal.
Assim, esta força chega ao Lumiar no dia 8 de Fevereiro e espalha-se pelas aldeias
próximas para procurar impedir a chegada de mantimentos à cidade, dificultar possíveis
movimentações dos habitantes de Lisboa e dos seus arredores, obrigando uns a
manterem-se no interior da cidade e condicionando e pondo em perigo a deslocação
daqueles que procuravam refúgio dentro das muralhas, e semeando a destruição nos
territórios circundantes173. No cerco de Meaux, ocorrido no Inverno de 1421-1422 no
âmbito da Guerra dos Cem Anos, as forças inglesas de Henry V queimaram as
redondezas da localidade para impedir que a guarnição conseguisse reabastecer-se, de
tal forma que Jean Juvenal des Ursins, autor de Histoire de Charles VI Roy de France,
observou, a propósito deste episódio, que “war without fire is like sausages without
mustard”174.
No mesmo cerco de Lisboa, e ao contrário do que tinha sucedido no cerco de
Enrique II à cidade no ano de 1373175, Juan I contava agora com o apoio das principais
fortalezas próximas, nas quais se incluíam Sintra, Óbidos, Santarém, Alenquer e Torres
Vedras, que tinham voz por si e pela sua esposa, garantindo assim uma maior segurança
para o seu arraial e para as linhas de abastecimento que se formariam176. Ficava, no
entanto, a faltar Almada, o que levou o monarca castelhano, já no decorrer do cerco a
Lisboa e face à recusa da vila em se entregar, a ordenar o cerco a essa vila, assim
impedindo e dissuadindo qualquer tentativa vinda daquele local de envio de socorro
militar ou de mantimentos para a cidade, bem como mostrar a Lisboa uma operação
militar bem sucedida sobre um local que ainda conferia alguma esperança aos sitiados,
procurando assim desmoralizá-los e forçar uma rendição mais célere177. Com o sucesso
nessa operação, as forças castelhanas garantiam assim o controlo dessa praça e também
da margem Sul do Tejo, e, estando o rio já sob o controlo castelhano 178 e Lisboa
cercada, Juan I havia conseguido isolar por completo o Mestre de Avis e a cidade
lisboeta179.
172 CDJ I, 1ª, Cap. LXXI, p. 122. 173 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 302-303. 174 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 170. 175 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 297. 176 Idem, Ibidem, p. 324. 177 Idem, Ibidem, p. 323. 178 CDJ I, 1ª, cap. CXXXIII, p. 228. 179 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 324.
35
Tendo o caminho aberto para a instalação do acampamento, os comandantes das
hostes sitiantes tinham de fazer uma observação cuidada da praça a ser atacada, para
que os sitiantes pudessem planear o melhor local para assentarem o arraial e a melhor
forma de atacarem o alvo180. Nos próximos parágrafos iremos utilizar o exemplo do
arraial castelhano construído no cerco de Lisboa de 1384 devido à extensa e
pormenorizada descrição apresentada por Fernão Lopes181, que permite a observação de
uma concepção geral do que seria um arraial completo (ou melhor, de um arraial de
grandes dimensões e com mais aspectos e características para serem estudados) nesta
época.
Em primeiro lugar, o arraial deveria ser instalado num local que permitisse aos
sitiantes estarem suficientemente afastados das muralhas do objectivo para não serem
fustigados directamente pelos defensores (tanto pelo arremesso de projécteis como pelas
possíveis sortidas por parte dos sitiados) 182 , e a uma distância que permitisse a
utilização eficaz dos seus engenhos 183 . Ainda, se possível, a instalação do arraial
próximo da margem ou com acesso a uma via fluvial permitia chegar com mais
facilidade e rapidez a vias de abastecimento marítimas e fluviais, e também abria a
perspectiva de uma retirada com maior segurança por essa via, caso fosse necessário184.
Por exemplo, no cerco de Lisboa de 1384, Juan I ordena a instalação do arraial
castelhano em redor do mosteiro de Santos-o-Velho, a “pouco mais de dous tiros de
beesta” da cidade185, onde é construída “uma cómoda «casa» de dois pisos, assente
sobre quatro traves grossas e com paredes de pedra” 186 na qual o rei e a rainha se
instalam, encontrando-se em seu redor as tendas dos membros mais proeminentes da
hoste e os seus principais capitães, com o resto dos elementos do arraial a espalharem-se
180 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. Por exemplo, Fernão Lopes indica
que, no cerco de Chaves de 1386, D. João I, após a recusa de Martim Gonçalves em lhe entregar a vila,
procede à observação da zona para encontrar o melhor sítio para assentar o arraial. CDJ I, 2ª, cap. LXIV,
p. 154. 181 No capítulo CXIV, “Como elRei de Castella chegou sobre Lixboa, e como asseemtou seu arreall
sobrella”, na primeira parte da Cronica del rei Dom Joham I, pp. 192-195. 182 No cerco de Benavente de Campos por parte de D. João I e do duque John of Gaunt, o arraial foi
instalado tendo em conta a observação prévia da praça e também o facto de os sitiados não terem
engenhos para disparar sobre o arraial. “E assy chegarom ao meo dia e assentarom seu areall muyto
açerca da villa, homde nojo fazer nom podesse o tirar dos viratoões; ca outro troom nem emgenho nom
auya demtro que lhe nojo podesse fazer”, CDJ I, 2ª, cap. C, p. 215. 183 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 184 Idem, Ibidem. 185 A cerca de 400-600 m da cidade, sendo o alcance de um tiro de besta entre 200-300 m. BARROCA,
Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p.140. 186 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 307.
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por “Alcamtara, e per Campolide, e per a comarca darredor, em grandes e bem
hordenadas rruas; e todas em çima com bamdeiras e pemdoões de desvairadas armas e
sinaaes”187. A escolha inicial para a instalação do acampamento teria o seu centro no
monte Olivete, um local mais alto (o que facilitaria a sua defesa e permitiria uma melhor
vigilância e observação da cidade), mas não tão próximo do rio Tejo como o mosteiro, e
a proximidade a essa via fluvial, e aos navios com reforços e mantimentos que aí
estavam ancorados, pesou mais na decisão do monarca castelhano 188 . Em caso de
necessidade, os sitiadores poderiam mover o acampamento para outro local, tal como
ocorreu nos inícios do cerco de Coria em Junho de 1386, no qual D. João I, devido ao
calor que se fazia sentir na altura e ao adoecimento de alguns combatentes, ordena a
deslocação do arraial para que este ficasse “aaquem do rio açerca da cidade”189.
Era também ideal para os sitiantes, se porventura os meios dos quais estes
dispunham o permitissem, cercar a praça na sua totalidade, não deixando assim qualquer
via aberta para a saída e entrada de combatentes adversários ou mantimentos, e nisto se
incluía, se existisse, o acesso ao mar ou a vias fluviais, pelas quais os sitiados poderiam
também estabelecer linhas de apoio marítimo 190 . Se, por falta de meios, pelas
características geográficas do local ou pela extensão das muralhas, não fosse exequível
o cerco total do espaço circundante da praça, ou estes aspectos não favorecessem essa
acção, então os sitiantes teriam que espalhar as suas forças por mais do que um
acampamento ou o arraial deveria concentrar-se num ponto que permitisse perturbar
mais eficazmente qualquer tipo de acção por parte dos sitiados no exterior das muralhas,
e somente se distribuíam as forças sitiadoras em redor da fortaleza aquando de um
187 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, p. 193. 188 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 71. 189 CDJ I, 1ª, cap. LXXVI, pp. 174-175. 190 O arcebispo de Santiago de Compostela, quando se discutia a possibilidade de cerco à cidade do Porto,
reconheceu a desvantagem que teriam caso concretizassem o cerco, pois não conseguiriam bloquear o
acesso marítimo aos portuenses, para além de reconhecer que a cidade tinha demasiada gente, preferindo
causar dano ao termo da cidade e assim impedir o livre-trânsito de pessoas e mercadorias naquela região:
“Vaamos ao Porto que ssom daqui oito legoas, e cerquemollo per huũa parte; e nosso arreall seja posto
a porta do Olivall, e em breves dias o tomaremos; (...).
O Arçebispo quamdo esto ouvio, rrespomdeo estomçe e disse: Eu nom som em esse comsselho por duas
rrazoões: a huũa por a çidade seer de muita gemte que a poderom bem deffender; a outra porque he
porto de mar, que per muitas guisas pode aver acorrimento quamdo tall cousa avehesse; mas pareçeme
que sera bem nom nos chegarmos muito a elle, mas amdemos a geito duas legoas arredor, e tirarlhemos
os mantiimentos; e porque elles nom ssom emcavallgados, nom nos podem viinr fazer nojo; e emtamto
hirsseam gastando amtressi; e per vemtuira por este aazo se tornarom da nossa parte, sem outro nenhuũ
nosso dano”, Idem, Ibidem, cap. CXVIII, p. 203.
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ataque directo a esta, procurando assim também evitar a concentração dos sitiados num
ou em poucos locais191.
O arraial deveria estar bem organizado, ordenado e vigiado para prevenir
situações em que os sitiados poderiam aproveitar o efeito surpresa sobre os sitiantes,
permitindo uma defesa mais eficaz em caso de uma sortida vinda de dentro das
muralhas ou da chegada de um exército de socorro 192 . Assim, as hostes sitiantes
estabeleciam atalaias diurnas e escutas nocturnas para a vigia dos sitiados, do espaço em
redor do arraial e da própria região em que se encontravam, e, no caso do cerco de
Lisboa de 1384, é estabelecido ainda no arraial “um rigoroso sistema de policiamento
interno e externo, adequado à envergadura da operação em curso”193, e também de
vigilância ao arraial e à cidade, com as forças castelhanas a estabelecerem uma vigia
constante sobre os sitiados, onde se incluíam combatentes a cavalo, de tal forma que
“nenhuũ podesse sahir [de Lisboa], que logo delles nom fosse visto” e rapidamente
interceptado, e a garantir o policiamento do arraial, que “Era muito mamtheudo em
justiça, de guisa que nenhuũ homem rreçeava de dormir soo, posto que muitos dinheiros
comssigo tevesse”. Também o rio Tejo foi alvo de vigilância constante através do
patrulhamento permanente do rio por parte de duas galés. Outros acampamentos, de
dimensões bem menores, e postos de observação foram criados em redor da cidade para
auxiliar na tarefa de vigia à urbe lisboeta194.
A fortificação do arraial era também, e pelos mesmos motivos, uma medida
aconselhada aos líderes militares, com a escavação de fossos ou a construção de
trincheiras, paliçadas e até algumas torres, em redor do acampamento, para dificultar o
ataque por parte de um exército de socorro ou as sortidas encetadas pelos defensores.
Através destas construções, os sitiantes passavam a beneficiar de um conjunto de
estruturas fixas que permitiriam uma defesa mais eficaz do arraial. Ironicamente, as
sortidas dos sitiados ou a chegada de um exército de socorro enfrentariam então uma
das características fulcrais (se bem que feita de construções improvisadas) que
compunham as defesas das localidades e uma das maiores vantagens de que os sitiados
191 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 192 Idem, Ibidem. 193 Idem, Ibidem, p. 226. 194 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, pp. 193-194.
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dispunham num cerco195. No arraial castelhano no cerco à urbe lisboeta foi erigida uma
paliçada virada para a cidade, protegendo o acampamento das eventuais sortidas
realizadas pelos sitiados, não considerando que fosse necessária a fortificação do resto
do arraial pois as fortalezas em redor de Lisboa estavam sob o controlo de Juan I196. Por
seu turno, no segundo cerco de Tui, em 1398, D. João I ordena a construção de uma
paliçada em redor de todo o arraial197.
Era necessário também estabelecer linhas de abastecimento ao arraial, mantendo
o livre acesso a uma via fluvial ou marítima (caso o cerco se desenrolasse nas
proximidades de um rio ou do mar), e assegurando as comunicações e a segurança ao
longo dessas mesmas linhas de abastecimento, terrestres ou aquáticas, para impedir a
disrupção destas198. O arraial castelhano era servido por linhas de abastecimento por via
marítima, com uma rota que vinha desde Santarém, com mantimentos transportados em
barcas pelo rio Tejo, e outra de navios que vinham de Sevilha, e por via terrestre, não só
de Santarém, mas também “de todollos outros logares que por elRei de Castella
estavom”, com Juan I a ordenar a colocação de guardas em determinados pontos dessa
linha onde receasse que o transporte dos mantimentos pudesse ser ameaçado199.
Estas linhas de abastecimento tornaram arraial “avomdado e muito farto de
manttiimentos”, podendo aí encontrar-se, de acordo com Fernão Lopes, “nom (...)
soomente (...) mantiimẽtos, mas espeçiarias de muitas e desvairadas maneiras”,
“desvairados modos de comfeitos e açucares e comservas”, “Agua rrosada, e outras
destilladas aguas de que os viçosos homẽes husam no tempo da paz”, ou “Panos de
sirgo e de lãa de desvairadas maneiras”, rematando o cronista que, naquele arraial,
“muitas outras cousas que dizer nom curamos, achariees em ell a vemder”, havendo,
aparentemente, só falta de sapateiros. As linhas de abastecimento e as necessidades dos
combatentes permitiam a presença de, e até atraíam, diversos elementos cuja função no
arraial não era militar 200 , sendo assim possível encontrar aí, para além do grande
número de combatentes que Juan I liderava, outros indivíduos como físicos, cirurgiões
195 MONTEIRO, in João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os
Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 196 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, p. 193. 197 CDJ I, 2ª, cap. CLXIX, p. 359. 198 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 199 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, p. 193. 200 Fernão Lopes indica a paragem de dois navios mercantis oriundos do Levante e com destino a
Flandres na zona do Restelo devido ao mau tempo, aproveitando Juan I para convencer esses mercadores
a encetarem trocas comerciais com os “habitantes” do arraial. Idem, Ibidem.
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ou boticários (que tinham também acesso a bastantes ingredientes necessários para
poderem cuidar dos seus pacientes), assim como ruas repletas de oficinas de mesteirais,
armeiros, ferreiros, mercadores cristãos e judeus, cambistas e ainda prostitutas (havendo
mesmo uma “rua de molheres mumdayras […] tamanha como se costuma [encontrar]
nas gramdes çidades”)201.
Todas estas atracções, como referimos, atraíam indivíduos cuja função não era
guerreira, o que chegou a levar o Condestável a expulsar todas as mulheres do seu
arraial próximo de Bragança, em 1386202, considerando-as como distracções e fazendo-
o por “seruiço a Deus e prol dos que eram em sua companha”, causando bastante
desagrado entre os seus combatentes203. No entanto, Nuno Álvares convence ainda o rei,
que entretanto se juntara a este com a sua hoste, a aplicar a mesma sanção e a proibir
também “o arenegar e jogo dos dados”204.
A implementação de um sistema de abastecimento era, no entanto,
“extremamente exigente e complexo em termos logísticos”: uma linha de abastecimento
terrestre exigia um “número muito avultado de animais de carga e de tiro”, carros e
carroças para o transporte dos mantimentos, os condutores destes veículos, escoltas
armadas e vias em bom estado para uma movimentação célere (para impedir que os
víveres não se deteriorassem ao ponto de se tornarem “impróprios para consumo”). E
embora as vias de abastecimento marítimas ou fluviais permitissem um transporte mais
rápido e uma maior quantidade de mantimentos, de tal forma que “os comandantes
militares optavam [por estas] – sempre que fosse possível”, também estas rotas estariam
sujeitas a diversos perigos, como condições climatéricas adversas ou a ataques 205 .
201 CDJ I, 1ª, cap. CXIV, pp. 193-194. 202 “E estamdo assy em terra de Bragamça, mandou poer em obra huuma cousa que muyto auya tinha
vomtade de o fazer, vemdo que o comtrario era perigoso pera homeens que em querra auyam de
comtinuar; a quall foy esta: que por quamto os de sua companhia tragiam todos mançebas, tambem os que
eram casados como os que nom eram casados, hordenou que nenhuum dhij em diante nom trouuesse
molher comsigo, e se alguuma fosse mais achada no areall, que fosse logo açoutada pubricamente per
elle”, CDJ I, 2ª, cap. LXX, pp. 165-166, e CCP, cap. LV, p. 162, no entanto, em ambas as crónicas, é dito
que algumas mulheres se mantiveram subrepticiamente com o arraial. 203 “Deste mandado desprougue tamto a todollos que as [mulheres] tragiam, que nom ouue hij tall que o
soffrer podesse com paçiemçia; (...) E huuns diziam que ante saberiam perder sua merçee. Outros se
desnaturauom delle, que nunca o mais serueriam; outros dauom com as armas em terra, dizemdo palauras
e mostrando geitos que seria longo descpreuer; em tanto que o Comde dezia depois per vezes que ante
quisera sperar huuma batalha, posto que de muyta gente fora, que esperar de respomder a tamtas razoões
e tam desuairadas quamtas cada huum mostraua por sy, a ser-lhe forçado tragel-la consigo”, CDJ I, 2ª,
cap. LXX, p. 165. 204 Idem, Ibidem, cap. LXX, p. 166. 205 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 224.
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Assim, eram necessárias outras alternativas para garantir o sustento da hoste sitiadora,
como a pilhagem do território circundante e as forragens, “meios consideravelmente
menos dispendiosos, mais fiáveis e, sobretudo, mais eficazes”206. Já tendo referido a
acção do contingente avançado castelhano no cerco de Lisboa de 1384, fazemos menção
das forragens ocorridas no cerco de Chaves de 1386207 ou no cerco de Coria de 1386,
onde o destacamento responsável por esta operação dirige-se para Hervás (a cerca de 75
km do local cercado), pois nesta localidade “deziam que auya muytos vinhos, de que o
areal era muyto mynguado”. Ao fim de cerca de 50 km, nas proximidades de
Granadilla, este grupo intercepta uma caravana que transportava vinho de Hervás para
Plasencia, voltando para o arraial e trazendo ainda consigo muitas vacas e porcos208.
Os sitiantes que tivessem engenhos ou fossem forçados a recorrer a estes,
podiam construir e montar os engenhos no arraial ou transportá-los, montados ou em
peças, de outros locais. Na perspectiva de os engenhos terem de ser construídos no
próprio local209, era necessário então que artesãos especializados acompanhassem as
hostes para os erigir, num processo longo e que requeria também a existência de
ferramentas e matérias-primas para a sua construção no arraial ou nas suas redondezas,
e cuja visualização de todo o processo de construção, em determinados casos, poderia
mesmo ser entendido como uma forma de intimidação aos sitiados através da
demonstração das suas máquinas de guerra, procurando, através da sugestão do poder
destrutivo que estas representavam, demovê-los de resistirem ao cerco 210 . Quando
possível, os sitiantes traziam consigo ou ordenavam o transporte de engenhos de um
local para o outro, como é o caso dos engenhos vindos de Lisboa a pedido do Mestre de
Avis, utilizando primeiro barcas e depois animais de carga, para o último cerco de
Alenquer211, nos finais de 1384, levando-os depois para o cerco de Torres Vedras212, ou
206 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, pp. 225-226 207 A qual desenvolveremos em maior detalhe no capítulo seguinte. 208 CDJ I, 2ª, cap. LXXV, p. 174. 209 No cerco de 1386 a Chaves, D. João I ordena a construção de uma bastida “açerca da ponte pera
defender aquella agua e combater a uylla; a quall tijnha tres sobrados; e ssuyam-lhe chamar antygamente
castellos de madeira. A bastida estaua forrada de canjços e cajqueija por guarda das pedras como he
custume; e homens darmas e beestejros em ella, que husauom de tal defemsom que os da villa nom
podyam tomar agua do ryo”, Idem, Ibidem, cap. LXIV, p. 154; ou no caso de Melgaço, em 1388, onde D.
João I ordena a construção de uma bastida de 3 andares e duas escadas, num processo que durou 15 dias,
Idem, Ibidem, cap. CXXXV, pp. 276-277. 210 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 226-227. 211 CDJ I, 1ª, cap. CLXVI, pp. 313-314. 212 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 317.
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dos engenhos vindos do Porto para auxiliar o cerco a Guimarães em 1385213. Para o
cerco de Chaves de 1386, a hoste de D. João I transportou consigo “muytos caros com
emgenhos”214, e estes foram armados no local, após a organização do acampamento,
iniciando-se assim o conflito215.
Por último, é necessário referir que as montadas dos combatentes, juntamente
com os animais de carga e aqueles que eram destinados ao abate para sustento da hoste
deveriam ser colocados em currais afastados do arraial, para procurarem evitar a
propagação de doenças que a urina e dejectos animais poderiam causar216.
A organização e ordenação do arraial castelhano em Lisboa não deveria ser
original, obedecendo a determinadas regras base, com Miguel Gomes Martins a referir
que tanto o arraial do cerco à urbe lisboeta em 1373 como o de 1384 poderiam ter sido
projectados e construídos segundo os mesmos “princípios básicos da estruturação de um
cerco”217. Nascia assim uma nova “cidade” a escassas centenas de metros de Lisboa,
cujas dimensões consideráveis, meios e a amálgama de artigos e mercadorias
disponíveis nesse arraial encontram algumas semelhanças com o cerco de Calais de
1346, inserido no âmbito da Guerra dos Cem Anos, no qual o acampamento sitiante de
Edward III de Inglaterra é responsável pela construção de uma “New Town”, mostrando
também que os princípios básicos acima referidos não eram somente aplicáveis no
contexto ibérico218.
Também os sitiados tinham à sua disposição diversos argumentos para contrariar
e, se possível, frustrar a acção do inimigo, começando desde logo pelas estruturas fixas
de defesa. Com efeito, estes meios defensivos conferiam ao local assediado, à partida e
caso estivessem em boas condições, vantagem sobre os meios ofensivos que as forças
sitiantes tinham à sua disposição, fazendo com que os defensores preferissem organizar
a resistência a um exército adversário (especialmente se este fosse numericamente
213 “Entom hordenou el Rey de combater a çerca velha, e fez vijr do Porto emgenhos e armas e gemtes e
mesteiraaes e todallas outras cousas que pera combater faziam mester”, CDJ I, 2ª, cap. XII, p.24. 214 Idem, Ibidem, cap. LXIII, p. 152. 215 Idem, Ibidem, cap. LXIV, p. 154. 216 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 308-309. 217 Idem, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, pp. 74-75. 218 “[Edward III em Calais, 1346] constructed a ‘New Town’ for the besiegers, consisting of hutted
accomodation, with its own streets and shops and a regular market. Letters were sent round the
neighbouring towns to obtain flour, bread, corn, wine, beer, meat and fish”, BRADBURY, Jim, The
Medieval Siege, p. 158.
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superior) por detrás da segurança que muralhas e torres ofereciam, do que encontrarem
e confrontarem em campo aberto as forças inimigas219.
Assim sendo, começaremos por falar sobre as características e inovações que o
castelo gótico e as estruturas a si ligadas trouxeram à arte da guerra medieval.
Contrastando com o seu antecessor, o castelo românico, o castelo gótico teve várias
inovações que permitiram às guarnições destas estruturas aplicar concepções de “defesa
activa”, inovações essas como, segundo observou João Gouveia Monteiro: o aumento
do número de torres no perímetro amuralhado, possibilitando o ataque a agressores que
se encontrassem na base das muralhas; a construção de cubelos ou torreões cilíndricos,
permitindo um ângulo de tiro mais amplo; um alargamento do espaço nos adarves ou
nos caminhos de ronda, conferindo uma maior capacidade de circulação aos
combatentes que por aí se movimentavam; o surgimento de ameias de corpo largo,
protegendo com maior eficácia os atiradores e incorporando no seu centro seteiras,
propícias aos disparos de arqueiros ou besteiros; e a difusão de balcões, principalmente
na zona das portas, com matacães, “aberturas arredondadas” através das quais os
sitiados poderiam desferir tiros directos do pavimento superior aos adversários que se
encontrassem nas portas220. Para além destas inovações, os castelos dos finais do século
XIV e inícios do XV começaram a ser construídos, reparados ou remodelados tendo em
conta a crescente utilização de armas pirobalísticas, rasgando no pano das muralhas
buracos redondos apelidados de troneiras, através dos quais eram disparados trons,
fazendo muros um pouco mais baixos e engrossando-os (reduzindo a possibilidade dos
sitiantes acertarem nos muros e fortalecendo-os, respectivamente), e erigindo barreiras
ou barbacãs em determinados pontos considerados mais importantes da muralha, em
geral, no caminho de torres ou portas221. Ainda no período do castelo gótico, as torres
distribuídas ao longo das muralhas foram sendo construídas com intervalos cada vez
menores, para além de as próprias torres serem edificadas com uma maior área e altura.
A partir deste período, de acordo com Philippe Contamine, as torres passaram a
constituir unidades de defesa autónomas 222 , ligadas entre si através das galerias
219 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 220 Idem, A guerra em Portugal - nos finais da idade média, pp. 337-338. 221 Idem, Ibidem, p. 338. 222 Tal como é demonstrado no cerco a Ponte de Lima em 1385, numa localidade que, não tendo castelo,
tinha torres, as quais João I, após já ter conseguido entrar nas muralhas, teve de conquistar até à última.
CDJ I, 2ª, caps. XV-XVIII, pp. 29-37.
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superiores das muralhas223. O cerco de Ponte de Lima de 1385, após a entrada das
forças de D. João I na vila, foi o palco de um combate pelas várias torres da vila, “que
eram muy fortes e fornecidas darmas e de gemtes”224.
Assim, era de extrema importância que o “pano da muralha, as torres, a barbacã,
as portas, e tudo o mais que tradicionalmente protegia os defensores [estivessem] em
boas condições para resistir ao assalto inimigo”225. Para que uma guarnição sitiada
conseguisse eficazmente resistir ao assédio adversário, era então necessário garantir o
bom estado de conservação dos elementos defensivos que tinha à sua disposição (os
seus muros, as suas torres, as suas barbacãs, etc.). Este aspecto assumia uma elevada
importância para os sitiados que se traduzia no facto de os preparativos para a
resistência a um assédio começarem exactamente pelas reparações ou reforços destes
elementos226, dando especial atenção às partes mais degradadas das muralhas, e ainda a
construção de estruturas improvisadas, como os caramanchões, dos quais falaremos
adiante, que conferiam ainda mais vantagens aos defensores da praça227.
Uma das outras preocupações iniciais de uma guarnição pertencente a uma praça
ameaçada de ser alvo de um cerco seria o bloqueio do maior número possível de
aberturas e passagens para dentro das muralhas e a desobstrução de todo o terreno em
volta destas no lado interior, de forma a permitir a rápida circulação por parte dos
combatentes sitiados e elementos que auxiliavam na defesa do local, tanto nas bases das
muralhas como no topo destas228. Por exemplo, as forças de D. João I que atacam Ponte
de Lima em 1385 têm somente uma porta por onde entrar na vila, pois todas as outras
“estauom çarradas com pedra”229. Para além das medidas de desobstrução dos espaços
próximos dos muros, eram também destruídos todos os tipos de edifícios que estivessem
223 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 114. 224 CDJ I, 2ª, cap. XVIII, p. 34. 225 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 344. 226 Nas Siete Partidas, no Título XVIII da Segunda Partida, a Lei XV estabelece a necessidade de uma
célere reparação das estruturas em caso de guerra, e refere que em caso de algo ser derrubado, os homens
que no castelo se encontrassem deveriam logo acorrer ao local e repará-lo. Mesmo em tempo de paz, caso
o senhor não ordenasse as reparações, os homens que se encontrassem no castelo deveriam repará-las.
AFONSO X, Las Siete Partidas Del Sabio Rey Don Alonso El Nono / Nvevamente Glosadas Por El
Licenciado Gregorio Lopez, Del Consejo Real de Indias de su Magestad, Vol. I, em Madrid por Juan
Hasrey, 1610-1611, Segunda Partida, Titulo XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e
en defender los castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, Lei XV – "Como los castillos deuen ser
acorridos e labrandolos", fls. 59v-60. 227 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 228 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 107. 229 CDJ I, 2ª, cap. XV, p. 29.
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encostados ou próximos do pano das muralhas230 , para impedir os atacantes de os
tomarem e utilizarem para seu benefício231. No exterior das muralhas, essas casas e
outros edifícios, assim como pomares, dificultavam a defesa aos sitiados, pois
permitiam aos atacantes aproximarem-se das muralhas com a protecção desses edifícios
e ainda utilizá-los para facilitar o acesso ao topo das muralhas ou para encetar acções de
sabotagem a partir do interior destes contra os muros e as torres da praça cercada, como
a escavação de minas232. Ao mesmo tempo, era necessário reparar, reforçar ou construir
plataformas, passagens levadiças ou paliçadas, e era dada também uma especial atenção
às portas da localidade, sendo comum o seu bloqueio e a presença de homens e
armamento nas torres onde essas portas se localizavam ou nas que as flanqueavam, e
ainda a construção de barreiras, barbacãs, fossos e valas à frente destes elementos
defensivos, bem como muros interiores e aberturas por cima de portas (através das quais
os sitiados poderiam fustigar os atacantes que destas se aproximassem)233.
Observemos agora algumas medidas relacionadas com a defesa ao cerco
castelhano a Lisboa em 1384. O anterior cerco de Lisboa, no ano de 1373, causou
grandes estragos na cidade, não só ao nível dos seus edíficios, mas também nas suas
muralhas, resultando assim na necessidade de encetar um plano de reconstrução
significativo que permitisse uma defesa mais eficaz e segura em caso de a cidade ser de
novo ameaçada por uma força inimiga. Assim, D. Fernando ordenou a construção de
uma nova cerca, que acabaria por ficar conhecida como a Cerca Fernandina, e que
“alterou por completo a fisionomia da cidade, rodeando-a de um perímetro amuralhado
que abrangia a totalidade das edificações existentes, mas que deixava ainda grandes
espaços por urbanizar”234. Esta cerca seria testada onze anos depois, no novo cerco
castelhano à cidade, estando ainda em boas condições aquando da chegada de Juan I às
imediações da urbe e do início do subsequente cerco235. Às torres da cidade236 (77, de
230 No cerco de Lisboa de 1373, D. Fernando ordena a demolição de várias casas que se encontravam
encostadas à Cerca Moura e à barbacã, mesmo contra a vontade dos respectivos proprietários, para evitar
a existência de estruturas próximas das muralhas que permitissem às forças castelhanas aproveitarem-nas.
MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 280. 231 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 232 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 107. 233 Idem, Ibidem, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira
(1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 234 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 293. 235 Idem, Ibidem, pp. 293-294. 236 Para além do hasteamento de bandeiras de São Jorge, bandeiras com as armas de Portugal e de Lisboa
no castelo e em algumas torres, em casos em que um nobre tivesse a seu cargo a defesa de uma torre teria
os seus próprios sinais no topo dessa torre, representando a divisão de tarefas e a atribuição do comando
45
acordo com Fernão Lopes 237 ) que se encontravam ao longo da muralha foram
acrescentados caramanchões 238 no seu topo que permitiam um disparo directo aos
combatentes castelhanos que se aproximassem da base das muralhas, pois
possibilitavam ângulos de disparo diferentes e também com maior amplitude. Para além
disso, os caramanchões estavam apetrechados com diversos tipos de armas ofensivas e
defensivas, como escudos, bacinetes e armaduras, lanças, lanças de armas, dardos e
bestas, e também trons e os seus respectivos projécteis239. É construída também uma
barbacã entre as muralhas e o local onde se instalaria o arraial castelhano, indo desde a
porta de Santa Catarina até à Torre de Álvaro Pais, percorrendo uma distância de cerca
de 400-600 metros240. São ainda erguidas duas barricadas junto ao rio, perpendiculares a
este e em ambos os extremos da cidade, para impedir o acesso à praia e a ocupação
desta pelos castelhanos nas proximidades da cidade, procurando assim estorvar o
transporte de reforços e mantimentos naquela zona241, e utilizando para a sua construção
madeiras de diversas proveniências, vinda dos armazéns do rei e de particulares, e todo
o tipo de objectos de madeira aos quais tiveram acesso, “como era corrente em situações
de cerco”242. Para além destas construções e adições, é ainda improvisada nas portas de
Santa Catarina, que eram as portas mais próximas do arraial castelhano (tornando-as no
principal ponto de partida de sortidas), uma enfermaria improvisada para prestar um
célere apoio e tratamento aos combatentes que regressavam à cidade243.
No entanto, citando Miguel Gomes Martins, “de nada serviria um conjunto
eficaz de estruturas fixas de defesa se nelas não se encontrasse uma guarnição capaz e
motivada, auxiliada por uma população cooperante”244. Era então necessário conjugar as
estruturas fixas de defesa de que os sitiados dispunham com uma guarnição fiel e
preparada para combater, com uma dimensão considerável (auxiliada ainda pela
população local, como já foi referido no anterior capítulo o exemplo da participação de
vários elementos da população lisboeta na resistência ao cerco de 1384), que permitisse
de determinadas torres e portas a elementos proeminentes da guarnição sitiada. CDJ I, 1ª, cap. CXV, p.
196. 237 CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 196. 238 “galerias de madeira de onde era possível efectuar tiro vertical sobre os inimigos que se aproximassem
da base dos muros”, MARTINS, Miguel Gomes, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de
1384, Prefácio, Lisboa, 2006, p. 28. 239 Idem, Ibidem. 240 “que sseriam dous tiros de beesta”, CDJ I, 1ª, cap. CXV, pp. 197-198. 241 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 87. 242 Idem, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de 1384, p. 29. 243 Idem, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 313. 244 Idem, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 86.
46
a defesa da fortaleza e das suas muralhas, e que possibilitasse vigias, nocturnas e
diurnas, eficazes245, para ser possível assim fazer face ao assédio inimigo246. É uma
guarnição como essa que, por exemplo, resiste a um assédio de quase quatro meses247
no cerco de Torres Vedras de 1384/1385248, frustrando as várias tentativas do Mestre
para conquistar a praça ao longo desse tempo, acabando as forças sitiantes por
abandonar este cerco sem terem concretizado o seu objectivo249.
A vigilância das fortalezas estava geralmente a cargo do alcaide (em alguns
casos, fosse pela natureza do concelho ou da posição estratégica do local, poderia estar a
cargo de homens bons da localidade), e, em tempo de guerra, era necessária uma
vigilância constante e apertada250, fazendo com que o alcaide convocasse os moradores
do lugar e do termo (juntando-se ainda as pessoas que se refugiavam naquele momento
no local) para estes prestarem o serviço de “vela”, “rolda” e guarda de portas251, não só
nas muralhas e nas torres, mas também no castelo. Assim, “a obrigação de velar e roldar
os castelos acabava por tocar gente que vivia bastante longe da fortaleza em causa, mas
cuja colaboração era considerada imprescindível” 252 . Havia, no entanto, algumas
excepções, aplicáveis a membros das ordens religiosas, servidores dessas mesmas
ordens, de fidalgos e também de ordens militares, moradores ou trabalhadores de
245 No caso de Ponte de Lima, aquando do cerco realizado em 1385 por D. João I, a vila era guardada da
seguinte forma: a guarda era feita por membros da vila e do termo, e de manhã cinco peões percorriam as
redondezas à procura de ciladas ou de inimigos. Após garantirem que nada havia, voltavam à vila e os
que estavam de guarda durante a noite iam dormir. CDJ I, 2ª, cap. XVII, pp. 31-32. 246 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227. 247 WERMERS, Manuel Maria, "Nun'Álvares Pereira. A sua cronologia e o seu itinerário", Lusitania
Sacra, 1ª Série, nº5 (1960-1961), Centro de Estudos de História Eclesiástica, Lisboa, 1961, p. 31. 248 CDJ I, 1ª, cap. CLXIX, CLXXIII, CLXXIV, pp. 317-319, 324-325, 325-327. 249 “Joham Duque que a villa por elRei de Castella tiinha, era huũ fidallgo castellaão bem acompanhado
dhomeẽs darmas e peoões e beesteiros, que pera deffemssom do logar eram assaz abastamtes”, Idem,
Ibidem, cap. CLXIX, p. 317. 250 No caso do cerco de Lisboa de 1384, o Mestre ordena que as vigias fossem repartidas entre fidalgos e
“çidadaãos homrrados”, liderando grupos de “beesteiros e homeẽs darmas”, fazendo com que todos os
elementos da guarnição fossem chamados a exercer esta função e garantindo assim que tanto as torres
como as muralhas estariam sempre sob vigia, mesmo que fossem poucos elementos, mas garantindo uma
resposta e rápida afluência de combatentes, através do aviso de sinos presentes ao longo das muralhas, em
caso de alarme. Idem, Ibidem, cap. CXV, p. 196. 251 João Gouveia Monteiro, contrariando pensamentos e historiografia anteriores, considera que a vela e a
rolda eram acções distintas. A primeira consistia na colocação de um número reduzido de sentinelas,
cerca de duas, em torres, geralmente nas maiores e nas principais, especialmente nas que estivessem nas
proximidades de portas, a partir das quais poderiam vigiar as torres, as portas e as possíveis investidas dos
sitiantes. A segunda consistia numa acção móvel, ao contrário da vela, que era estática, na qual algumas
sentinelas, também à volta de duas, procediam à vigilância dos muros e dos lanços de muralhas entre
torres, mediante uma constante deambulação em vaivém. MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV
(1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de
Portugal, Vol. I, p. 178. 252 Idem, Ibidem.
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reguengos, profissionais de determinados ofícios, indivíduos de idade avançada ou em
fraca condição física, e, ainda, habitantes de localidades fronteiriças ou pouco povoadas.
As velas e as roldas ocorriam à noite, sendo assim necessário um estabelecimento de
turnos253, começando logo ao cair da noite e terminando ao raiar do dia. A vigilância era
uma missão de elevada importância no contexto de cerco, existindo mesmo a supervisão
dos elementos que participavam nas acções de vigilância, estando este controlo a cargo
das “sobrevelas” e das “sobreroldas”, que, periodicamente e através de chamamentos,
provavelmente codificados, iam verificando se as sentinelas estavam acordados e
atentos. Por altura do assalto furtivo a Portel em 1384, as roldas eram compostas por
castelhanos que iam supervisionando as velas, compostas por portugueses naturais do
local254. Os alcaides tinham também o cuidado de não colocar as mesmas sentinelas
repetidamente nos mesmos locais, numa medida que visava impedir a acomodação e o
surgimento de rotinas, que poderiam resultar num desleixo nas suas funções, além de
reduzir os riscos de uma possível traição255. A vigilância e guarda das portas também
eram preocupações bastante relevantes para as guarnições sitiadas. As portas eram
geralmente todas fechadas durante a noite, sendo as chaves destas portas entregues a
indivíduos considerados leais, e durante o dia somente algumas portas, tidas como
essenciais às movimentações de homens e animais, se mantinham abertas, sendo
necessário garantir a guarda destas passagens abertas com um destacamento de
combatentes que teriam como função o controlo rigoroso das entradas e saídas de
pessoas da praça; as torres que se encontrassem em cima de portas eram também
reforçadas com mais combatentes ainda e material bélico, procurando assim dissuadir
ou neutralizar prontamente qualquer situação que surgisse na respectiva porta256. Em
253 De acordo com João Gouveia Monteiro seriam, geralmente, três turnos por noite, de três a quatro
horas, mas que podiam variar bastante, tendo em conta as condições climatéricas ou a estação do ano, a
extensão e o estado de conservação da muralha, ou o número de combatentes disponíveis. MONTEIRO,
João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade",
in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 178. 254 CDJ I, 1ª, cap. CLVII, p. 295. 255 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 17 256 Durante o cerco de Lisboa de 1384, das 38 portas que Fernão Lopes afirma terem existido nesse
período em Lisboa [de acordo com o Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, Lisboa naquela época
tinha 3 portas na alcáçova, 9 (7 portas e 2 postigos) na cerca Moura, 11 (9 portas e 2 postigos) na cerca
Dionisina, e 30 (16 portas e 14 postigos), na nova cerca Fernandina, MARQUES, A. H. de Oliveira,
“Lisboa”, in Atlas de Cidades Medievais Portuguesas, dir. de A. H. de Oliveira Marques, Iria Gonçalves
e Amélia Aguiar Andrade, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1990, p. 55], 12 estavam
abertas todo o dia, com o Mestre à noite a encarregar alguém da sua confiança de as ir fechar e devolver
as respectivas chaves a D. João, que tinha em sua posse todas as chaves da cidade, exceptuando as de
algumas portas, cujas chaves ficavam durante a noite com homens leais para a eventualidade de terem de
ser abertas, pela chegada de mantimentos a coberto da escuridão. CDJ, 1ª, cap. CXV, p. 197.
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conjugação com a vigilância de muros, torres e portas, era também feita uma vigilância
do território circundante, através das atalaias, diurnas, e das escutas, nocturnas, para
poder conhecer de antemão as movimentações inimigas e assim evitar que estes se
aproximassem da praça sem conhecimento prévio, visto que “a guerra praticada na
Península Ibérica durante a Idade Média era uma guerra sustentada por ataques de
surpresa e por golpes de mão fulgurantes, [daí ser] indispensável garantir uma boa
vigilância nocturna do território em redor das fortificações, especialmente quando se
suspeitava de que o inimigo andava (ou podia surgir) por perto”257.
Para além da reparação ou remodelação das estruturas fixas de defesa e da
organização da vigilância e guarda da praça e dos territórios circundantes, aquando da
ameaça de um cerco, os sitiados procuravam também recolher dentro das suas muralhas
os habitantes dos arrabaldes e das povoações mais próximas258, aumentando assim o
número de indivíduos que pudessem contribuir para a defesa do local. Do mesmo modo,
juntava-se todo o tipo de mantimentos, garantindo uma boa reserva de alimentos para os
sitiados e impedindo os sitiadores de aproveitarem esses mesmos recursos. A
importância da existência de uma reserva considerável e variada de mantimentos é
visível nas palavras de João Gouveia Monteiro, que refere que “Pode, assim, dizer-se
que o resultado de um cerco começava a decidir-se na forma como a praça sitiada se
encontrava abastecida, em particular de certos géneros alimentícios de primeira
necessidade, tais como o pão, a carne e o peixe (muitas vezes salgados), o sal, óleo,
legumes e, evidentemente, água, muita água (especialmente caso a praça não dispusesse
de cisterna própria, ou não tivesse acesso a uma nascente, a uma fonte ou a uma
qualquer linha de água)”259 . Com a chegada dos refugiados à praça, as bocas que
necessitavam de alimento aumentavam, o que, aliado ao facto de o cerco que se seguiria
dificultaria ou impediria mesmo a recolha de mais mantimentos, conferia uma
importância fulcral à recolha prévia de todo o tipo de mantimentos da região para, por
um lado, os sitiados poderem assim resistir mais tempo e não terem de depender de
257 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 177-179. 258 Uma das primeiras medidas tomadas pelo Mestre, após ter abandonado o cerco de Alenquer em
direcção a Lisboa para organizar a defesa da cidade perante a iminência do cerco, foi ordenar a todos os
moradores do termo de Lisboa que se refugiassem dentro das muralhas da cidade, trazendo todos os
mantimentos que pudessem carregar consigo: “Oo! Que doorida cousa era desguardar, veer de dia e de
noite, tamtos homeẽs e molheres viir em manadas pera a çidade com os filhos nos braços e pella maão, e
os pais cõ outros aos pescoços, e suas bestas carregadas dalfayas e cousas que trager podiam!”, CDJ I, 1ª,
Cap. LXX, p. 121. 259 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 227.
49
auxílio exterior, e, por outro, impedir os sitiantes de poderem usufruir dos víveres que a
população, em fuga, teria deixado para trás na região. Nestes mantimentos, a prioridade
era dada a que fossem recolhidas as maiores quantidades possíveis de pão, carne
(principalmente salgada) e vinho260.
Para este efeito, o Mestre de Avis, antes do cerco de Lisboa de 1384, aplicou
algumas medidas para conseguir abastecer o melhor possível a cidade para o assédio
que se avizinhava. Por exemplo, o Mestre envia para a região do Ribatejo barcas e
batéis para recolherem gado morto, que era posteriormente colocado em tinas e salgado,
para se conservar mais tempo261; incentiva a captura de navios que se encontrassem nas
proximidades, sendo exemplo disso a apreensão de embarcações de mercadorias
castelhanas e, noutra ocasião, genovesas, antes do início do cerco262; concede a isenção
dos pagamentos de portagem, usagem e costumagem aos lisboetas, procurando motivar
mercadores a transportarem ainda mais mantimentos para a cidade263; e ordena a ida de
vários combatentes a locais que tivessem voz por Castela nas proximidades de Lisboa,
para aí procurarem mantimentos que apoiariam os seus adversários, sendo exemplo
disso a ida de Nuno Álvares Pereira, juntamente com 300 lanças, entre escudeiros e
cidadãos, e alguns combatentes a pé, ao termo de Sintra, onde “apanhou muitos
mantiimentos de gaados e triigo, e outras cousas de comer” 264 . Era ainda comum
proceder-se à destruição de largas quantidades de produtos agrícolas e cabeças de gado
que não podiam ser transportados para dentro da praça, impedindo assim também os
sitiantes de aproveitarem esses mesmos mantimentos 265 . Embora fora do período
estudado, durante a Guerra Civil de 1319-1324, o futuro D. Afonso IV, ao chegar a
Tomar para cercar a localidade, encontrou uma região desprovida de quaisquer
mantimentos, tanto para os seus efectivos como para as suas montadas, “em resultado
260 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 342. Nas Siete
Partidas, no Título XVIII da Segunda Partida, a Lei X estabelece que o alcaide deveria garantir que no
seu castelo, em tempos de paz e de guerra, existissem sempre mantimentos em quantidades consideráveis,
como carne, pescado, pão, legumes, sal e azeite. O alcaide deve ainda garantir a existência de aparelhos
de produção e cozinha de comida, como moinhos ou lenha e carvão. AFONSO X, Las Siete Partidas,
Segunda Partida, Titulo XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e en defender los
castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, Lei X – “En que manera deuen ser bastecidos los castillos de
viandas: e de todas las otras cosas que son menester”, fls. 58-58v. 261 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 94 e CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 195. 262 MARTINS, Miguel Gomes, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 94 e CDJ I, 1ª, cap. LXIX, pp. 118-119. 263 MARTINS, Miguel Gomes, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de 1384, p. 29. 264 CDJ I, 1ª, Cap. LXXI, p. 122 265 Embora não se encontrem registos da aplicação desta medida antes do cerco de Lisboa de 1384,
Miguel Gomes Martins considera que existe a possibilidade de tal ter ocorrido, visto que no cerco de
1373 o mesmo foi feito. MARTINS, Miguel Gomes, A vitória do quarto cavaleiro: O cerco de Lisboa de
1384, p. 29.
50
da recolha feita pela população local”, que destruiu ainda diversos bens e também
“meios de produção, como as segurelhas dos moinhos, de modo a que o inimigo não
pudesse moer os cereais que, eventualmente, pudesse encontrar”266.
Mas, mais importante do que qualquer tipo de mantimento, assegurar o
abastecimento de água, de preferência em abundância, era a tarefa mais relevante nesta
fase267, sendo bastante proveitosa a existência dentro das muralhas de fontes perenes,
poços ou cisternas, ou, caso se encontrassem fora dos muros, garantir a protecção destas
fontes, fosse pelo lançamento de projécteis vindos das torres e das ameias das muralhas,
ou mesmo através da existência de uma pequena fortificação no local268. No caso do
cerco de Almada em 1384, a vila, embora estivesse bem aprovisionada, tendo
quantidades consideráveis de pão, vinho, carnes, etc., somente podia contar com uma
pequena cisterna para o abastecimento de água, o que levou a um racionamento muito
cuidado do seu consumo, que, contudo, foi na mesma insuficiente para poder resistir ao
assédio castelhano269. No cerco de Chaves de 1386, D. João I ordenou a construção de
uma bastida na margem do rio Tâmega para impedir o acesso à água por parte dos
sitiados, motivando-os a, eventualmente, realizarem uma sortida tendo em vista a
destruição daquele engenho, com sucesso, conseguindo assim restabelecer a recolha de
água270.
Para além da recolha de mantimentos e mais elementos para a defesa da praça e
de assegurar o acesso a fontes de água, a guarnição tinha também a necessidade de
recolher armas e munições em grande quantidade, não só armamento individual, mas
também pedras (para serem disparadas pelos engenhos e para serem directamente
arremessadas sobre os sitiadores quando estes se aproximassem das portas ou da base
das muralhas) e ainda líquidos e materiais inflamáveis 271 . A existência destes na
fortaleza permitia à guarnição a construção ou reparação de estruturas, instrumentos,
266 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 227. 267 Nas Siete Partidas, no Título XVIII da Segunda Partida, a Lei X refere a importância do castelo estar
bem abastecido de água, “que es cosa, que pueden menos escusar que las otras”, alertando-se ainda para o
facto de que em caso cerco, para além das ameaças externas, a guarnição do castelo poderá começar a
guerrear-se pela água restante e por isso a água deve ser bem guardada e racionada. AFONSO X, Las
Siete Partidas..., Segunda Partida, Titulo XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e en
defender los castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, Lei X – “En que manera deuen ser bastecidos
los castillos de viandas: e de todas las otras cosas que son menester”, fls. 58-58v. 268 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 343. 269 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, pp. 233-234. 270 CDJ I, 2ª, caps. LXIV, LXV, pp. 154-155. 271 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 227-228.
51
projécteis e máquinas de guerra essenciais à defesa da praça, garantindo assim a
possibilidade de contrariarem a eventual destruição que os sitiantes iriam causar nas
estruturas de defesa do local. Destes materiais, era dada prioridade à madeira, na forma
de vigas e tábuas, mais pregos, tanto para o fabrico de engenhos ou rodas, como para a
construção ou melhoramento das estruturas defensivas, ferro e carvão para armas,
alcatrão, azeite, enxofre e pez utilizados para incendiar e queimar engenhos adversários
e os próprios combatentes sitiantes, cordas feitas de nervos e tendões de animais para
serem utilizadas em engenhos de arremesso por torsão, e couros crus que serviam como
protecção para as máquinas de guerra sitiadas272.
Estando todos os preparativos e medidas aplicadas, o melhor possível dentro das
suas possibilidades, tanto pelos sitiantes como sitiados, as forças de ambos os lados
encontravam-se assim preparadas para, respectivamente, cercar e resistir a um conflito
com um desfecho e duração imprevisíveis, devido a uma miríade de variáveis,
condições e situações que testariam todos os envolvidos em vários aspectos ao longo do
assédio que se iniciava. Para terminar este capítulo, adequam-se as palavras de Fernão
Lopes acerca do início do cerco de Lisboa de 1384: “Oo que fremosa cousa era de veer!
Huũ tam alto e poderoso senhor como he elRei de Castella, com tamta multidom de
gemtes assi per mar come per terra, postas em tam gramde e boa hordenamça, teer
çercada tam nobre çidade. E ella assi guarneçida comtra elle de gemtes e darmas com
taaes avisamentos por sua guarda e deffenssom; em tamto que diziam os que o virom,
que tam fremoso çerco de çidade nom era em menoria dhomeẽs que fosse visto de mui
lomgos anos ata aquell tempo”273.
272 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal – nos finais da idade média, p. 345. 273 CDJ I, 1ª, cap. CXV, p. 198.
52
CAPÍTULO III – AS INCÓGNITAS E OS PERIGOS NO ARRASTAR DOS CERCOS
Neste capítulo teremos a oportunidade de compreender os vários perigos e riscos
que corriam os participantes nas operações de cerco. Começando pela duração dos
cercos ocorridos no período estudado (no qual estudaremos problemas surgidos graças
ao arrastar das operações, incluindo-se ainda as sortidas e escaramuças, assim como a
acção dos espiões na guerra de cerco), veremos também como as estações do ano
poderiam influenciar o desenrolar do cerco, e, ainda, o peso que situações de sede, fome
ou doenças teriam ao longo destes episódios. Assim, tenciona-se transmitir o ambiente e
as relações entre os intervenientes nas operações e os riscos a que estes se sujeitavam.
Ao iniciar-se um cerco, nenhuma das partes teria, à partida, uma ideia exacta do
quanto esse conflito se iria prolongar. Todas as características das forças em confronto,
as suas dimensões, mantimentos e armamentos disponíveis, a aplicação de determinadas
práticas ofensivas e defensivas, bem como as condições climatéricas e outras
vicissitudes a que os combatentes poderiam estar sujeitos, tornavam estes episódios
militares em eventos de duração variável e bastante imprevisível.
De entre os 39 eventos militares estudados neste período 274 , 14 foram
considerados como tomadas de localidades ou fortalezas (caracterizadas por confrontos
de rápida resolução, não durando mais do que um dia, e que envolviam, geralmente,
apenas o assalto ao respectivo alvo, como as tomadas, em 1384, do castelo de Évora275,
Arronches 276 ou Monsaraz 277 , entre outros), e os outros 24 278 como cercos
(caracterizados por uma permanência de combatentes sitiantes em redor do alvo, que
decorre durante um determinado período superior a um dia, e confinando os sitiados ao
seu espaço amuralhado ou à fortaleza, bloqueando movimentações para dentro ou para
fora do local, como os cercos de Lisboa de 1384279, Torres Vedras, em 1384/1385280, ou
274 Para uma melhor compreensão, remetemos para o “Quadro 5 – Durações, Datas, Estações e Resultados
dos Episódios”, nos Anexos. 275 CDJ I, 1ª, caps. XLIV e XLV, pp. 77-80. 276 Idem, Ibidem, cap. XCVI, pp. 161-162. 277 Idem, Ibidem, cap. CXLIII, pp. 256-257. 278 Excluindo a tentativa de cerco ao Porto, Idem, Ibidem, CXVIII-CXXIII, pp. 202-212. 279 Idem, Ibidem, caps. CXXXVI, CXXXVII, CXXXIX, CXL, CXLI, CXLII, CXLVIII, CXLIX, CL, pp.
235-237, 237-238, 242-247, 247-249, 249-252, 253-255, 268-271, 271-273, 273-276. 280 Idem, Ibidem, caps. CLXIX, CLXXIII, CLXXIV, CLXXX, pp. 317-319, 324-325, 325-327, 339-341.
53
Guimarães, em 1385 281 , entre outros). Considerando 22 dos cercos convencionais
estudados282 , encontramos durações (algumas exactas, outras aproximadas) bastante
díspares, tendo, num extremo, por exemplo, os cercos de Portel, Braga e Ponte de Lima,
no ano de 1385, com uma duração de 3 dias. No extremo oposto, encontramos o cerco
de Torres Vedras de 1384/1385, que se prolongou por cerca de 106 dias, o cerco de
Chaves de 1386 que decorreu ao longo de um período de 105 dias, ou ainda o cerco de
Lisboa de 1384, estando a cidade completamente cercada por 100 dias283. Fazendo uma
média da duração dos cercos estudados neste período e no contexto desta dissertação,
chegamos a um resultado de cerca de 35 dias. No entanto, e como já foi referido, os
cercos tinham durações bastante desiguais entre si, tendo 8 deles uma duração igual ou
inferior a uma semana284. Assim sendo, uma média feita somente com os outros 14
cercos, os que se prolongaram por mais do que uma semana285, apresenta-nos uma
duração média de cerca de 52 dias. É possível então depreender que, em média, os
cercos mais longos estudados neste período representavam um confronto que poderia
durar aproximadamente cerca de dois meses, um largo intervalo de tempo ao longo do
qual tanto sitiados como sitiantes estariam sujeitos a uma panóplia de dificuldades que
poriam em risco a vida dos intervenientes, podendo estas serem escaramuças ou os
assaltos, bem como a fome, a sede ou diversas enfermidades.
Para os sitiados o prolongar do cerco iria, gradualmente, erodir a sua moral e a
sua capacidade de resposta e resistência, flagelados durante largos períodos pelo assédio
inimigo, através de assaltos dirigidos à praça-forte, ou pela destruição causada pelos
seus engenhos, pela fome e, por vezes, pela sede, o que resultava num avolumar do
281 CDJ I, 2ª, caps. X, XI, XII, XIII, pp. 19-28. 282 Não contando, uma vez mais, com a tentativa de cerco ao Porto e, ainda, com os cercos de Coimbra de
1384 e de Mértola de 1385, visto não ter encontrado nas fontes ou na bibliografia qualquer referência à
duração exacta ou aproximada destes episódios. 283 Estes 100 dias são contados a partir de 27 de Maio de 1384, dia a partir do qual Lisboa se encontra
totalmente cercada por terra e por mar (CDJ I, 1ª, cap. CXII e CXIII, p. 190). Fernão Lopes refere que o
cerco durou 4 meses e 27 dias, contando a partir do momento em que Juan I chega ao Lumiar, no dia 5 de
Abril (CDJ I, 1ª, cap. CL, p. 276). A presença de uma força avançada castelhana nas imediações da
cidade e na comarca, no entanto, é constatada através de alguns confrontos desde o dia 8 de Fevereiro
(CDJ I, 1ª, Cap. LXXI, pp. 122-123, e MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra
na Idade Média, p. 302). 284 Cerco do castelo de Lisboa de 1383, primeiro cerco de Alenquer de 1384, cerco de Portel de 1384,
cerco de Braga de 1385, cerco de Ponte de Lima de 1385, cerco de Benavente de Campos de 1387, cerco
de Villalobos de 1387, e cerco de Sotomayor de 1398. 285 Cerco de Lisboa de 1384, cerco de Almada de 1384, cerco de Vila Viçosa de 1384, segundo cerco de
Alenquer de 1384, cerco de Torres Vedras de 1384/1385, cerco de Guimarães de 1385, cerco de Elvas de
1385, cerco de Chaves de 1386, cerco de Coria de 1386, cerco de Melgaço de 1388, cerco de Campo
Maior de 1388, primeiro cerco de Tui de 1389, cerco de Salvatierra de 1398, e segundo cerco de Tui de
1398.
54
número de baixas entre os defensores, conferindo aos sobreviventes uma perspectiva
pouco animadora em relação à probabilidade de resistirem ao cerco que não parecia ter
um fim à vista286.
Embora em muitos casos os sitiadores preferissem limitar as suas acções
ofensivas à permanência nas proximidades do seu alvo de cerco, não arriscando a vida
dos seus combatentes em assaltos directos e esperando pela rendição dos sitiados,
forçada pela fome, pela sede, ou por outros factores287, o arrastamento da acção poderia
resultar também num acumular de dificuldades para as forças sitiantes. Quando isto
sucedia, os sitiantes enfrentavam inúmeros problemas, o mais sério dos quais era, muito
provavelmente, a eventualidade da chegada de um exército de socorro com o objectivo
de forçar o levantamento do cerco.
O arrastar do cerco aumentava a probabilidade do surgimento de um exército
vindo em socorro dos sitiados que poderia forçar um fim prematuro do cerco, obrigando
os sitiantes a retirarem-se ou a serem sujeitos a um desfecho desse assédio numa batalha
campal contra as forças de auxílio e as forças sitiadas. A vitória para os sitiadores nesse
confronto poderia resultar na rendição imediata da fortaleza cercada, mas a derrota
significaria um rude golpe nas aspirações dos sitiantes e um consequente fim do cerco,
terminando este assim da pior maneira288, sendo um exemplo disto o cerco de Mértola
de 1385, no qual as forças atacantes portuguesas são vencidas por um exército de
socorro oriundo de Sevilha, levando à retirada das forças afectas a D. João I do local e,
assim, ao término da acção289.
A renovação dos efectivos era necessária quando os cercos duravam para além
do período de serviço a que determinados contingentes, como as mesnadas senhoriais
ou as milícias concelhias, estavam sujeitos. Nesses casos, os comandantes eram
obrigados, para manterem a sua força e poderem prosseguir com o assédio, a
procurarem convencer os membros dos contingentes que estariam de saída a
permanecerem em troca do pagamento de um soldo adicional proporcional ao período
de serviço necessário para o término do cerco ou a procurarem convocar outras forças
286 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 268. 287 Idem, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, p. 73. 288 Idem, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 437-438. 289 CRC, Juan I, Año Séptimo (1385), cap. IX, pp. 588-589.
55
para substituir as que saíam ou as baixas sofridas290, como é o caso da convocação por
D. João I, quando já decorria o cerco de Chaves de 1386, das milícias concelhias de
Lisboa, Coimbra e Santarém291. Assim, o arrastamento do cerco fazia com que este se
tornasse ainda mais dispendioso, podendo obrigar alguns comandantes a abandonarem
os cercos por não terem capacidade financeira suficiente que lhes permitisse sustentar a
continuação da operação e a permanência das suas forças no local292.
A deserção entre os sitiantes era também um problema causado pelo
arrastamento da situação. O arrastamento do cerco influenciava vários combatentes,
“compreensivelmente impelidos pelo medo, mas também pela doença, pela fome e pelo
descontentamento causado pela inexorável passagem do tempo”293, a procurarem uma
forma de abandonar o cerco antes do término deste e ainda com vida, enfraquecendo
ainda mais o contingente dos sitiantes294, como veio a suceder no cerco de Coria de
1386295.
Um outro aspecto que contribuía para o arrastar do assédio era a resistência
demonstrada pelos agredidos e expressa, por exemplo, no lançamento de sortidas. A
missão dos sitiados ao longo do cerco não era “a adopção de uma postura de
passividade” 296 , esperando que as estruturas fixas de defesa de que dispunham
bastassem para que o inimigo fosse forçado a terminar o cerco, mas sim a tentativa de
frustração das acções ofensivas levadas a cabo pelos sitiantes e a resistência ao flagelo
por essas mesmas forças, procurando assim enfraquecer os seus adversários até ao ponto
em que estes fossem forçados a desistirem. O lançamento de sortidas, diurnas e
nocturnas, era uma das medidas de que as forças sitiadas dispunham para procurarem
290 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 438-439. 291 Em relação aos reforços oriundos de Lisboa, “E logo per todos foy acordado que por sseruiço del-Rey
e honra da cidade lhe emvysassem trigosamente duzentas e dez lanças bem corregidas, as duzentas da
cidade e as dez da villa de Sint(r)a que estonçe era seu termo, e duzentos e cincoenta beesteiros e
duzentos homeens de pee e que fosse por capitaão destas gentes com a bandeira da cidade, de que era
alferez, Gonçallo Vaasquez Carregueiro (e) Steuam Vaasquez Filipe, anadal moor de todo o reyno, e que
leuassem duas trombetas e dous alueitares e dous ferradores e dous sselheiros e dous correheiros e huum
jogral; e todos pagados por tres meses, saber, março e abril e mayo, e trezenta(s) liuras cada lança por
aquell tempo, as duzentas e seteenta em dinheiro e as trinta lhe dauom em pano pera todos hirem dhuma
liuree pella guysa que foy acordado. E assy pagarom aos de Sintra que hiam em companha da bandeira da
cidade. E ao besteeiro dauom vijnte e cinquo liuras por mes, que eram cinquo dobras e ao homem de pee
vinte, que eram quatro”, CDJ I, 2ª, LXVI, cap. LXVI, p. 157. 292 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 438. 293 Idem, Ibidem, p. 439. 294 Idem, Ibidem, pp. 437-439. 295 O qual será abordado ainda neste capítulo na análise das doenças ocorridas num contexto de cerco 296 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, p. 444.
56
frustrar as acções dos sitiantes297. Olhando para a acção dos sitiados no cerco de Lisboa
de 1384, restava-lhes somente procurar repelir ataques castelhanos ou desencadear
sortidas, fazendo com que as acções militares de ambos os lados deste conflito
resultassem em escaramuças quase diárias 298 . Estas escaramuças ocorriam
frequentemente na guerra de cerco, de tal forma que estas se tornavam em episódios de
“exercícios de adestramento e de «desentorpecimento»”299.
No entanto, as sortidas, e consequentes escaramuças, não eram somente uma
quebra da rotina num contexto de cerco, ou ainda momentos propícios à demonstração
de habilidades bélicas e de bravura do indivíduo perante adversários e companheiros de
armas 300 . Em vários casos, essas operações eram desencadeadas tendo em conta
objectivos estratégicos que beneficiariam a defesa da praça. Em primeiro lugar, as
sortidas e as escaramuças permitiam aos comandantes analisarem as defesas montadas
pelos seus adversários e o seu arraial, bem como o seu armamento, o moral dos seus
combatentes, e, ainda, a sua capacidade bélica, possibilitando uma defesa mais eficaz
graças aos conhecimentos adquiridos nessas acções301. As sortidas eram também uma
forma de ir desgastando gradualmente as forças sitiantes, causando baixas nos inimigos,
embora em número reduzido, ou a captura de combatentes adversários (o que reduzia o
número de opositores, assim como encetar trocas de prisioneiros com o seu adversário,
e ainda, mediante a libertação através do pagamento de resgates, poderia ser uma fonte
de rendimentos extraordinária)302. Para além disso, as sortidas poderiam ser executadas
com propósitos mais peculiares, como a destruição ou inutilização de todo o tipo de
engenhos que os sitiantes aí tivessem303, a tentativa de impedimento da construção de
297 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 444-445. 298 O facto de os episódios bélicos ocorridos ao longo do cerco de Lisboa de 1384 se reduzirem
principalmente à realização de escaramuças de pequena dimensão teve a particularidade de permitir, sem
pôr em causa o cerco à cidade, a utilização de vários combatentes castelhanos para, por um lado,
realizarem pilhagens e causarem destruição em todo o termo de Lisboa, e, por outro, cercarem também
Almada. Idem, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 313-314. 299 Idem, Ibidem. 300 Idem, Ibidem. 301 Idem, Ibidem, p. 288, e Idem, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 264. 302 Idem, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p.
264. 303 No cerco de Chaves de 1386, uma sortida dos sitiados bem sucedida culmina com a destruição da
bastida de três andares construída sob as ordens de D. João I e que defendia a ponte sobre o rio Tâmega.
CDJ I, 2ª, cap. LXV, p. 155
57
minas ou de formas de travessia de fossos ou cavas304, a recolha de mantimentos305, ou,
ainda, a tentativa de matar ou capturar o comandante da força sitiante306 para forçá-la a
abandonar o cerco307.
As sortidas tinham ainda uma outra função. Um dos aspectos fulcrais para a
resistência a um cerco era a reacção à pressão psicológica ofensiva, ou seja, resistir ao
medo causado pelo desfilar dos combatentes e engenhos inimigos e pela perspectiva das
dificuldades que iriam surgir ao longo do cerco. Uma das formas de tentar fomentar esta
resistência passava pela realização de uma sortida nos primeiros momentos do cerco,
“sacudindo temores e tornando pública uma grande disponibilidade para resistir”308. O
cerco de Lisboa de 1384 tem, logo nos seus primeiros instantes, enquanto as forças
castelhanas desfilavam à vista da cidade, uma violenta escaramuça que ocorre diante
das portas de Santa Catarina. À passagem das forças castelhanas, um contingente de
alguns homens de armas, besteiros e combatentes a pé das forças sitiadas coloca-se
diante das portas, mantendo-se o Mestre na torre que estava a cargo de Álvaro Pais para
poder observar os castelhanos. Juan I, ao ver que esta força lisboeta tinha saído da
cidade, estando à “vista delles, sem mostramdo que lhe aviã medo”, ordena o ataque a
esse contingente, mesmo com alguns conselheiros seus a procurarem dissuadi-lo de o
fazer, pois não entrariam na cidade. Embora as forças sitiadas contassem com apoio
vindo da muralha, na forma de lançamento de pedras, trons e virotões em direcção aos
combatentes castelhanos, as forças adversárias eram mais numerosas e o contingente
lisboeta acabaria por ficar encurralado entre as muralhas e as forças castelhanas, dando
origem a uma retirada em direcção à cidade. O Mestre, face a essa retirada
desorganizada e que poderia permitir a entrada de castelhanos na cidade, ordena o
encerramento das portas de Santa Catarina, obrigando assim as suas forças a colocarem-
se entre a muralha e a barbacã, defendendo-se mais acerrimamente contra o avanço
304 No 2º cerco de Alenquer de 1384, os sitiados, ao aperceberem-se da construção de uma cava por parte
dos sitiantes, saem da vila na direcção da cava para impedir a sua construção, dando-se início a uma
escaramuça. CDJ I, 1ª, cap. CLXVI, p. 314. 305 No cerco de Elvas de 1385, as forças sitiadas conseguem interceptar um carregamento de mantimentos
com destino ao arraial castelhano, um episódio que retomaremos mais adiante neste capítulo. CDJ I, 2ª,
cap. XXVI, pp. 52-53. 306 Embora não fosse resultar numa mera escaramuça e sim numa batalha campal, a situação de desespero
vivida dentro da cidade de Lisboa no cerco de 1384 levou o Mestre e os seus conselheiros a procurarem
encetar um derradeiro ataque contra o arraial castelhano através de uma sortida oriunda da cidade, em
conjugação com outros combatentes liderados por Nuno Álvares Pereira. CDJ I, 1ª, cap. CXLII, pp. 253-
254. 307 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 264. 308 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 361.
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castelhano, e acabando por o suster. Eventualmente, as forças castelhanas retiram-se,
visto que a escaramuça já durava há algum tempo e estava a revelar-se infrutífera para
as aspirações dos sitiantes309.
As sortidas e as resultantes escaramuças, embora não fossem “momentos
decisivos de defesa da praça sitiada”310, acabavam por ser, devido às vantagens que
poderiam ser obtidas pelos sitiados, uma ocorrência recorrente ao longo de todo o
período de quase todos os cercos311, representando assim uma ameaça constante para os
sitiantes enquanto estes prosseguissem com o assédio, podendo arrastar o cerco até que
as forças sitiadoras não pudessem mais prosseguir o ataque.
A acção de espiões e agentes infiltrados tinha também a sua influência no
contexto da guerra de cerco, podendo causar o fim do cerco ou o arrastar deste. Estes
agentes eram uma peça importante no decorrer dos cercos, pois a recolha de informação
a respeito das estruturas defensivas locais (o seu estado de conservação ou número de
portas e torres), as dimensões das guarnições, os hábitos dos seus efectivos ou as suas
movimentações permitiriam a organização de acções que aproveitassem momentos
oportunos para desencadearem determinadas operações 312 . Para os sitiados, saber
quando o inimigo descansava ou comia, ou como decorriam e eram organizados os seus
turnos de vigia, possibilitava a realização de sortidas ao arraial adversário, aproveitando
o factor surpresa para procurarem causar o maior dano possível aos sitiantes e pegar
fogo às suas máquinas de guerra313. Por seu lado, os sitiados tinham também de ter em
atenção a presença de agentes adversários no interior da sua praça cercada, pois estes
espiões poderiam fazer a diferença no desfecho dos combates através do seu auxílio aos
sitiantes314.
No período estudado nesta dissertação, um exemplo que demonstra a eficácia da
acção dos espiões em cercos é o sucedido em de Torres Vedras em 1384/1385. Por duas
vezes, o Mestre de Avis ordena a construção de minas, em segredo, uma indo de uma
309 CDJ I, 1ª, cap. CXIII, pp. 190-192 310 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 361. 311 No cerco de Melgaço de 1388, por exemplo, ocorrem na primeira semana quatro escaramuças. CDJ I,
2ª, cap. CXXXIV, p. 275. 312 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 190. 313 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 366. 314 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 314-315.
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tenda no arraial até ao adro da igreja de Santa Maria, já no interior da vila315, e a outra
até às fundações da muralha e de uma torre, com o intuito de criar uma brecha no
perímetro fortificado 316 . Graças a elementos próximos do Mestre, a guarnição
castelhana, através de “sinaaes e outras emcubertas maneiras”, como, por exemplo, a
utilização de virotões com mensagens317, é avisada da construção do primeiro túnel e,
assim que as forças sitiadoras o completam e procuram entrar na igreja, os defensores
utilizam tábuas e portas para estorvar a saída e atiram água para apagar os fogos que os
sitiantes utilizavam para tentar destruir os pedaços de madeira que bloqueavam o túnel.
É ainda colocado um trom no túnel para ir destruindo os destroços, embora sem que
fizesse a diferença, pelo que os sitiantes abandonam esta manobra318. O Mestre ordena
então a construção de um novo túnel em direcção à muralha da vila, para lhe atear fogo
e tentar fazer desabar parte da muralha e uma torre. Uma vez mais, os defensores já
sabiam as intenções de D. João e reforçaram o local com uma bastida; perante a abertura
da brecha e as estruturas fixas de defesa provisórias aí colocadas, o Mestre acaba por
desistir de atacar 319 . Ainda no mesmo cerco, D. João ordenava que os engenhos
disparassem contra o muro e contra as torres, mas os elementos que estavam em conluio
com a guarnição sitiada pressionavam o Mestre a disparar somente contra a muralha da
vila, “e que per alli fariam huũ portall, per que emtrassem a tomar o castello”. O
encarregado pelos engenhos continuava a disparar tal como o D. João havia ordenado,
mas este, pela forte pressão daqueles “nom fiees comsselheiros”, acabaria por ordenar o
encarregado dos engenhos a disparar somente contra a muralha da vila e, que caso não o
fizesse, “o mamdaria lamçar na fumda do seu emgenho dentro no castello”, o que faria
com que o encarregado, “que por seu boom serviço lhe prometiam tall gallardom de que
ouve gram medo, fugio aquella noite e foisse pera Leirea”320.
Outras situações ocorreram ao longo deste período nas quais as acções destes
espiões ou agentes infiltrados mereceram destaque em diversas operações de cerco. Em
Lisboa, no cerco de 1384, D. Pedro de Castro, após a morte do seu pai D. Álvaro Peres
de Castro, conde de Arraiolos, fica encarregue da vigia de uma quadrilha entre as portas
de Santo André e Santo Agostinho. De acordo com Fernão Lopes, “dom Pedro de
315 CDJ I, 1ª, cap. CLXIX e CLXXIV, pp. 318 e 325-326. 316 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 326. 317 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 279. 318 CDJ I, 1ª, cap. CLXXIV, p. 326. 319 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, pp. 326-327. 320 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 327.
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Castro com todos seus vassalos, por gramde cãtidade douro e de prata que delRei [Juan
I] avia de rreçeber, lhe tinha vemdida a dita çidade”, planeando permitir a entrada de
combatentes castelhanos na cidade pelo lanço de muralha que estava à sua guarda, na
noite de 14 para 15 de Agosto. O sinal para dar início à operação seria a colocação de
uma vela numa seteira, significando que era seguro prosseguir com o plano e um
contingente de sitiadores avança então com escadas para subir aos adarves. No entanto,
João Lourenço da Cunha, ex-marido da rainha D. Leonor, confessa, no leito da morte,
estar a par das acções de D. Pedro, fazendo com que o Mestre ordenasse a colocação de
efectivos nas proximidades do local, recebendo esta força avançada com “seetas e
pedras e outras cousas”, rechaçando-os e frustrando esta tentativa de assalto. D. Pedro
“ficou bem preso e arrecadado” e os seus companheiros foram todos expulsos da
cidade321.
O assalto furtivo a Portel, 1384322, e a entrada das forças de D. João I em
Guimarães, no início do cerco a esta vila em 1385 323 , casos que abordaremos no
próximo capítulo, foram bem sucedidas graças ao papel desempenhado por agentes
infiltrados. Também Ponte de Lima é um exemplo da acção fulcral destes agentes nas
operações de cerco. Na manhã de 19 de Maio de 1385, a vila é invadida por um
contingente liderado pelo monarca português através da acção de dois indivíduos, os
irmãos Estêvão e Lourenço Rodrigues, auxiliados no planeamento e na execução por
frei Gonçalo da Ponte, a esposa de Estêvão e um combatente local. Os dois irmãos
(juntamente com oito companheiros que acabariam por desistir de participar na
operação com receio de sofrerem represálias) planeiam a abertura da única porta da vila
que se encontrava em utilização a uma força de D. João, contando com o auxílio de frei
Gonçalo que viaja ao Porto para pôr o rei a par deste plano. Na data combinada, Estêvão
Rodrigues sai da vila sob o pretexto de ir buscar animais que se encontravam fora da
vila, “que cuidaua que lhe eram furtadas”, indo, no entanto, encontrar-se com o monarca
(que tinha vindo de Guimarães, onde a sua hoste cercava ainda a alcáçova, com cem
lanças) durante a noite, e esperam pela manhã, a escassos dois tiros de besta da vila,
numa “deuessa escussa e cuberta daruores”. Como era costume, todas as manhãs um
grupo de cinco peões saía para patrulhar as redondezas da vila e garantirem que não
havia qualquer perigo em deixar a porta aberta durante o dia. Nessa manhã, como
321 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVIII, pp. 239-242. 322 Idem, Ibidem, cap. CLVII, pp. 294-296. 323 CDJ I, 2ª, caps. X, XI, pp. 19-23.
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expectável, os cinco peões saem para fazer a sua ronda, cruzando-se com Estêvão
Rodrigues, que lhes conta como tinha andado a perseguir em vão durante a noite dois
animais, afirmando ainda que nada de irregular se passava nas imediações e
convencendo os peões a irem beber “duas duas vezes de muy boom vynho” a sua casa
antes de irem para a sua ronda. Os peões, ao verem que naquela manhã “fazia huum
pouco neuoaço, e [Estêvão Rodrigues] uinha molhado do orualho”, aceitaram o convite
e foram para casa de Estêvão. A mulher de Estêvão, em conluio com o marido, convida
os homens também a comer, passando depois para um jogo de dados. Estêvão
Rodrigues, deixando os outros em sua casa a jogar, ausenta-se e encontra-se depois com
o seu irmão e outro combatente a pé e dirigem-se para a porta. Aí, pedem ao porteiro
que a abra porque já era tarde, mas este esperava ainda pela patrulha. Estêvão Rodrigues
assegura o porteiro que estes ainda demorariam pois estavam em sua casa a jogar, e que
ele próprio havia já feito a ronda por eles. O porteiro abre então a porta, e Lourenço
Rodrigues, propositadamente e discretamente, coloca várias moedas no chão e começa a
apanhá-las lentamente (e voltando a deixar cair algumas delas à medida que as ia
recolhendo) referindo que as havia perdido ao serão. O porteiro e outros guardas que aí
se encontravam procuram ajudar Lourenço Rodrigues, e o seu irmão, aproveitando a
distracção, coloca a pedra que servia de assento para os guardas para impedir a porta de
se mover. O outro companheiro faz sinal a Estêvão que, por sua vez, faz outro para as
forças de D. João I, que rapidamente se dirigem para a ponte e para a porta, que se
mantém aberta pela acção dos dois irmãos Rodrigues, com Lourenço a defender o lado
de dentro da porta contra os guardas que aí se encontravam e se tinham apercebido,
entretanto, do iminente assalto, permitindo a entrada na vila dos atacantes. Ao fim de
três dias de combate pela conquista das torres da vila, a última é incendiada e a vila fica
em poder do monarca português324.
Mas não seria somente a duração do cerco que poderia trazer vantagens ou
desvantagens às forças de ambos os lados das muralhas. Para os comandantes
medievais, era necessário ter também em atenção o período do ano em que o bloqueio
ou o assalto iria decorrer, já que isso poderia influenciar o rumo das operações325. Com
o intuito de aumentarem a probabilidade de serem bem sucedidos, os sitiantes teriam de
324 CDJ I, 2ª, caps. XV, XVI, XVII, XVIII, pp. 29-37. 325 A tomada do castelo de Gaia, em 1384, por não ser possível precisar a data exacta deste episódio e, por
conseguinte, a sua estação, não é contada nesta parte.
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aproveitar qualquer vantagem que lhes permitisse levar a bom termo o cerco a que se
propusessem e uma dessas vantagens seria a realização de cercos (que representavam
processos que potencialmente poderiam prolongar-se ao longo de semanas ou até
meses) durante períodos em que o clima fosse o mais propício à sustentabilidade e
sobrevivência da hoste atacante326. A Primavera, principalmente, e o Verão assumiam-
se assim como os períodos mais oportunos para os comandantes empreenderem
operações de cerco, visto que, ao longo desses meses, as temperaturas e as condições
climatéricas eram as mais favoráveis, os campos providenciavam uma fonte mais rica
de mantimentos para as forças sitiantes, e, principalmente durante o Verão, o calor
causava secas em rios e fontes, eliminando assim algumas vantagens que poderiam
beneficiar os sitiados, como fossos ou cavas que tivessem água, ou a probabilidade de
ocorrência de uma maior escassez desse bem essencial para a sobrevivência humana
entre os sitiados327 . Havia, no entanto, alguns perigos relacionados com os cercos
decorridos ao longo do Verão para os sitiantes, que abordaremos mais à frente neste
capítulo quando analisarmos a ameaça que as doenças representavam para a vida dos
participantes nestas operações. O período compreendido entre o Outono e, sobretudo, o
Inverno não seria então o mais conveniente para que um cerco fosse bem sucedido. O
cerco de Chaves, ocorrido entre 15 de Janeiro e 30 de Abril de 1386328 e sendo assim
coincidente com uma grande parte do Inverno, embora tenha terminado com a vitória
das forças sitiantes comandadas por D. João I, é um exemplo do perigo que representava
a realização de cercos neste período, visto que a hoste sitiante foi fustigada por
condições climatéricas extremamente adversas, como o frio e a neve, que causaram
várias mortes entre os combatentes ao serviço do monarca português329.
No período estudado, as tentativas de conquistas de praças-fortes tiveram uma
maior incidência na estação da Primavera, com 23 operações a ocorrerem ao longo desta
estação, seja na sua totalidade ou com o seu início ou o seu término nesta. De entre estes
23 episódios, 15 são cercos convencionais. Sendo uma estação com condições
favoráveis para a sustentabilidade e sobrevivência da hoste, era natural neste período os
326 Para a verificação das estações em que ocorreram as operações de cerco neste conflito, remetemos, de
novo, para o “Quadro 5 – Durações, Datas, Estações e Resultados dos Episódios”, nos Anexos. 327 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 226. 328 MORENO, Humberto Baquero, Os itinerários de el-rei Dom João I: 1384-1433, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, Lisboa, 1988, “1386”, p. 25, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325)
à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal,
Vol. I, p. 277. 329 CDJ I, 2ª, cap. LXV, pp. 155-156.
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comandantes empreenderem campanhas militares onde decorriam vários cercos ou
tomadas, como é o caso da acção das forças de D. João I entre Maio e Junho de 1385,
que cercaram, neste período, Guimarães, Braga e Ponte de Lima, ou ainda a campanha
anglo-portuguesa de 1387, que, entre Abril e Maio, cercou Benavente de Campos e
Villalobos, tomando ainda Roales e Valderas. A estação seguinte com um maior
número de episódios de tentativas de conquistas de fortalezas é a do Inverno com 11,
dos quais 7 foram cercos convencionais. Das 8 operações de assalto ou cerco que são
concorrentes com o Verão, 7 são cercos, e, por último, coincidiram com o Outono 6
cercos convencionais e nenhuma tentativa de tomada de praças-fortes.
Analisando estes números, podemos constatar então que no período que envolve,
principalmente, a Primavera e também o Verão330 ocorreram a maior parte dos cercos (6
dos cercos estudados neste período têm o seu início na estação primaveril e terminam na
estação seguinte). Aliás, era esta a altura preferida pelos comandantes militares para a
realização das campanhas, independentemente do seu objectivo. A campanha militar
empreendida no Minho pelo rei D. João I na Primavera de 1385, aproveitando o ímpeto
causado pela sua eleição nas cortes de Coimbra de 1385, resulta na conquista de
Braga331, Ponte de Lima332 e Guimarães333 no espaço de um mês, entre os inícios de
Maio e de Junho desse ano.
No entanto, é possível verificar ainda que, ao longo deste conflito, coincidem
com o Inverno cercos e tomadas que perfazem números superiores aos ocorridos no
Verão ou no Outono, teoricamente a estação que representaria um maior perigo para os
sitiantes. Os episódios que coincidem com o Inverno, contudo, são, regra geral,
motivados pela conjuntura política que se vivia na altura e não por uma preferência dos
comandantes das hostes sitiantes em realizar estas operações naquela estação, como nos
exemplifica o período de transição entre os anos de 1383 e 1384, no qual os episódios
de cercos e tomadas dos castelos de Lisboa, Évora, Beja, Portalegre, Estremoz, Évora e
a tentativa falhada de conquista de Alenquer334 são resultado das acções de partidários e
330 Ocorrem, no período estudado, 6 episódios (todos cercos) que coincidem com a Primavera e com o
Verão. 331 CDJ I, 2ª, cap. XIV, pp. 28-29. 332 Idem, Ibidem, caps. XV, XVI, XVII, XVIII, pp. 29-37. 333 Idem, Ibidem, caps. X, XI, XII, XIII, pp. 19-28. 334 Alenquer, devido à sua proximidade com Lisboa e por se localizar sensivelmente a meio caminho
entre a cidade lisboeta e Santarém, serviria como base de operações para fustigar as movimentações da
hoste castelhana que iria cercar Lisboa e, posteriormente, como ponto de encontro para as forças afectas
ao partido de Avis para daí desferirem ataques contra o arraial castelhano. MARTINS, Miguel Gomes, De
Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 301.
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apoiantes do Mestre de Avis e das insurreições populares que alastraram após a morte
do conde João Fernandes Andeiro, devidas ao descontentamento e receio de
concretização dos termos acordados em Salvaterra de Magos com Castela335. O cerco de
Torres Vedras, ocorrido no Inverno de 1384/1385, surge num contexto de tentativa de
recuperação de fortalezas em redor de Lisboa pouco tempo após o cerco castelhano a
esta cidade. Após a recuperação de Almada e a conquista de Alenquer, a vila torreense
foi o alvo seguinte, pois esta encontrava-se próxima do litoral e também de Lisboa,
afigurando-se como um local de elevada importância estratégica na defesa da cidade
lisboeta336.
Na sequência da vitória na batalha de Aljubarrota, a 14 de Agosto de 1385, D.
João I procura, rapidamente, aproveitar um momento em que as forças castelhanas
estavam debilitadas, iniciando uma campanha que o levaria a cercar, já em 1386,
Chaves e Coria, conquistando Almeida pelo meio. O monarca sai do Porto com a sua
hoste indo para “tras os Montes, que he terra de Portugall, por cobrar alguuns logares
que naquella comarca ajnda comtra elle reuelauom” para depois fazer uma incursão em
território castelhano. “reçeauom as gemtes aquella partida” pois o Inverno estava a
aproximar-se, mas o desejo do rei manteve-se, acabando por conquistar Chaves, após
um longo cerco, e Almeida, num assalto, mas falhando o cerco a Coria337.
Assim, é possível compreender a decisão dos intervenientes em cercarem
localidades ou fortalezas num período de Inverno: impelidos pelas conjunturas vividas e
pela sucessão dos eventos ocorridos, os comandantes eram forçados ou consideravam
mais vantajoso naquele momento arriscar o cerco e o confronto com as forças sitiadas e
com as condições climatéricas adversas típicas da estação invernal para atingirem os
seus objectivos.
Como já foi referido no capítulo anterior, garantir o abastecimento de água era a
tarefa mais relevante na preparação da defesa por parte dos sitiados, sendo assim de
elevado valor para a resistência a um cerco a manutenção de cisternas, poços e fontes
em boas condições que permitissem aos sitiados acesso a água potável durante o
decorrer de um cerco. Tal como a fome, a sede poderia levar à capitulação de uma
335 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 261. 336 Idem, Ibidem, p. 267. 337 CDJ I, 2ª, cap. LXIII, p. 152.
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guarnição, e com um efeito mais célere ainda, fazendo com que os sitiadores, para
pressionar e forçar a rendição dos seus adversários, tentassem, quando possível,
envenenar as fontes de abastecimento de água dos sitiados ou impedir o acesso destes a
fontes fora das muralhas. Era então de elevada importância garantir um bom
abastecimento de água, o que iria assegurar um contributo fulcral para a resistência a
um assédio inimigo338.
O segundo cerco a Alenquer, ocorrido entre Novembro e Dezembro de 1384, é
um exemplo do valor que o acesso a água tinha na defesa contra um cerco. O alcaide
desta localidade, Vasco Peres de Camões, decide render-se quando, por um lado, vê o
engenho e as cavas que o Mestre ordenara que fossem feitas, e, por outro, ao fim de
mais de um mês de cerco a água começava a escassear no interior da vila, mesmo
estando em “tempo dimverno, nom chovia cousa que aproveitasse”, levando assim a
guarnição e a população a uma situação próxima de uma carência absoluta de água e
sem qualquer perspectiva do panorama se alterar339. No cerco de Torres Vedras de
1384/1385, ao fim de algum tempo, “começarom os da villa daver mimgua dagua de
duas çisternas que tiinham demtro”, embora o Mestre, líder da hoste sitiadora, acabasse
por não prosseguir com o cerco340. Também os sitiados em Elvas, aquando do cerco
imposto à vila por Juan I, passaram por uma situação de “tamanha […] fame e sede”341.
Mas, no período estudado, o caso do cerco de Almada, no Verão de 1384, é o
que melhor exemplifica a influência que a falta de água poderia ter num cerco. A vila é
cercada ao longo de sensivelmente dois meses, resistindo com sucesso a vários assaltos
castelhanos, e estava abastecida com mantimentos para durarem, de acordo com Fernão
Lopes, pelo menos cerca de seis meses342. No entanto, a principal fonte de acesso a água
potável aí existente era somente uma pequena cisterna dentro da vila, sendo esta vigiada
e racionada pela guarnição343.
À medida que o cerco prosseguia e a água ia escasseando, os sitiados decidiram,
no contexto de racionamento de água, impedir os animais presentes na vila344 de a
consumirem, reservando-a assim somente para consumo da guarnição e população
338 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 447-449. 339 CDJ I, 1ª, cap. CLXVIII, p. 317. 340 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 326. 341 Voltaremos, em maior pormenor, a este cerco adiante. CDJ I, 2ª, cap. XXVI, p. 52. 342 CDJ I, 1ª, cap. CXXXV, pp. 233-234. 343 “damdo a cada huũa pessoa por dia huũa canada e mais nom”, Idem, Ibidem, cap. CXXXV, p. 234. 344 “eram huũs quareemta cavallos, afora outras bestas de serventia”, Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 235.
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sitiadas345. A água é também necessária para a confecção de alimentos e, como outra
medida de racionamento deste elemento, os habitantes de Almada tiveram de substituir
a água por vinho para poderem fazer pão e cozer carne e peixe346.
A água contida na cisterna acaba por se esgotar no decorrer do cerco, e a
população teve de recorrer à água do fosso, indo homens, principalmente a coberto da
noite e por meio de cordas, buscar essa água, a qual aí jazia graças às chuvas do Inverno
mas que havia sido previamente utilizada para a lavagem de roupa (incluíndo as fraldas
das crianças) e onde se encontravam diversos animais mortos. Esta água347 era fervida
antes de ser consumida ou utilizada na preparação de alimentos, mas as forças sitiantes
terão acabado por colocar guardas ao pé do fosso, ocorrendo várias escaramuças no
local, até durante o dia, com feridos e mortes para ambos os lados348.
As forças castelhanas acabariam por impedir o acesso à água encontrada no
fosso, que estava próxima de se esgotar também, e então os sitiados procuram uma
outra alternativa, que foi a tentativa de recolha de água do mar e de água proveniente de
uma ribeira próxima, encontrando-se no local tinas para o transporte desta. No primeiro
dia, os almadenses conseguem trazer água para a vila mas os castelhanos reparam nas
suas movimentações, preparando uma emboscada para o dia seguinte, na qual, de
acordo com Fernão Lopes, dezassete sitiados são surpreendidos por cerca de cem
adversários, resultando numa escaramuça na qual morrem três pessoas da vila e os
restantes são “mui mall feridos de seetas e de dardos” 349. Somente chegam à vila dois
odres e meio de água e as tinas foram destruídas, impedindo assim novas recolhas de
água através deste método350.
A situação em Almada no fim do cerco era então de desespero pela falta de água
e pela impossibilidade de renovar as suas reservas. Esta carência resultou no
falecimento de pessoas pela sede “assi homẽes e molheres, come moços pequenos”,
levando indivíduos a fugir da vila durante a noite em busca de melhores condições de
345 Os animais, não tendo outra forma de saciarem a sede, “homde mijavom os homeẽs, hiam as bestas
chuchar, e comiam aquella terra molhada”. A população acabaria por matar esses animais lançando-os
“todos pella barroca affumdo comtra o mar”, CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 235. 346 “e comiã o pam em quamto era queemte, e como era frio, nom o podia nemguem comer, e assi outras
viamdas”, Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 236. 347 “a quall era verde e muito çuja, e jaziam em ella bestas mortas, e caães, e gatos que era nojosa cousa
de veer”, Idem, Ibidem. 348 Idem, Ibidem. 349 Idem, Ibidem. 350 Idem, Ibidem.
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sobrevivência351. Almada estava a ser gradualmente derrotada pela sede, mantendo-se,
no entanto, a resistir às forças sitiantes até conseguir trocar mensagens com Lisboa, que
se encontrava também cercada no outro lado do rio, tendo o Mestre ordenado à
guarnição de Almada que procurasse chegar a acordo com o monarca castelhano para a
rendição da vila, o que eventualmente acabaria por suceder352.
Ao longo deste cerco, a crescente míngua de água obrigou as forças sitiadas, em
vários momentos, a arriscarem as vidas de diversos combatentes na obtenção do
precioso líquido, a consumirem água que potencialmente poderia causar graves doenças
ou até mortes no seio da população, e, ainda, a desfazerem-se dos seus animais. Estes
sacrifícios foram feitos na procura de alívio da escassez de água, mostrando o quão
importante seria a existência de água em abundância dentro de um local assediado,
podendo-se observar os riscos tomados por sitiados na recolha e no racionamento deste
elemento e do resultado que uma situação de carência poderia dar a um cerco.
O bloqueio a que as localidades sitiadas estariam sujeitas no decorrer de um
cerco tinha como um dos seus principais objectivos criar uma crescente e gradual
carência de alimentos no interior do local assediado, procurando, por este meio, levar os
sitiados a capitularem sem que as forças sitiantes tivessem de arriscar as vidas dos
combatentes da sua hoste num assalto directo. Em 1385, Juan I, por exemplo, inicia
uma nova ofensiva em território português meses após o falhanço do cerco de Lisboa de
1384, dirigindo-se para Elvas, localidade essa que, segundo haviam informado o
monarca, tinha poucos mantimentos, “e que se jouuesse sobrella quinze dyas, que a
tomarya per fame”353. O cerco não durou os previstos quinze dias e arrastou-se por mais
outros dez, num período marcado por escaramuças e por um episódio em que as forças
sitiadas conseguem mesmo interceptar um carregamento de mantimentos oriundo de
Badajoz, renovando as suas reservas, e tornando assim a perspectiva de vitória
castelhana nesse cerco mais longínqua. Perante este percalço, e aliado à derrota de um
outro exército castelhano na batalha de Trancoso, Juan I abandona Elvas, considerando
que a sua vitória nesse cerco seria bem mais complicada e morosa do que aquilo que
inicialmente havia previsto354. A possível iminente falta de mantimentos em Elvas tinha
351 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 236. 352 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, pp. 237-238. 353 CDJ I, 2ª, cap. XXVI, p. 52. 354 Idem, Ibidem, cap. XXVI, pp. 52-54.
68
tornado esta localidade num alvo apetecível para o rei castelhano, mas a intercepção de
mantimentos foi um rude golpe para as aspirações castelhanas, pois os elvenses
poderiam então resistir por mais tempo sem serem afectados pela fome, o que
demonstra o peso que a diferença entre um alvo bem aprovisionado e outro à beira de
uma situação de carência tem na guerra de cerco medieval.
A conquista de Monsaraz por Nuno Álvares Pereira, no Verão de 1384, tem a
peculiaridade de a guarnição estar a viver um período de escassez de alimentos sem
estar cercada, com o futuro Condestável a aproveitar essa situação para ludibriar os
combatentes castelhanos e tomar o castelo355.
Para as forças castelhanas no cerco de Lisboa de 1384 desde cedo ficou claro
que somente através da fome é que os habitantes da cidade se renderiam. Lisboa tinha
na época uma nova muralha e estruturas fixas de defesa em boas condições, muita gente
no seu interior, não só os combatentes mas também uma população que estava disposta
a resistir ao cerco castelhano, e tinha à sua disposição bastante armamento, o que fazia
com que um assalto directo à cidade representasse um risco bastante elevado. No
entanto, as suas reservas de mantimentos não seriam suficientes para aguentarem um
cerco prolongado num local com uma população tão elevada356. Esperar que as reservas
de mantimentos em Lisboa minguassem seria, no entanto, um processo que demoraria
um período considerável, ao longo do qual as forças castelhanas teriam de manter o
cerco à cidade, o que poderia causar diversas dificuldades, como o próprio
abastecimento dos sitiadores, vendo-se assim ameaçados pelo próprio flagelo com o
qual pretendiam forçar a rendição da urbe. Para então garantirem que não sofreriam de
uma carência de alimentos, as forças castelhanas vieram cercar Lisboa bem
aprovisionadas: mantimentos e equipamentos foram trazidos por via marítima na frota
oriunda de Sevilla (que continuou a fazê-lo ao longo do cerco), e terrestre, com a hoste e
o estabelecimento de rotas de abastecimento com as localidades mais próximas afectas a
Castela, realizando ainda forragens e pilhagens ao longo do caminho até Lisboa e nas
355 No capítulo seguinte desenvolveremos com maior detalhe esta operação. CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, pp.
256-257. 356 MARTINS, Miguel Gomes, “Abastecer as cidades em contexto de guerra. O cerco de Lisboa de
1384”, in Alimentar la ciudad en la Edad Media – Encuentros Internacionales del Medievo, Instituto de
Estudios Riojanos, Logroño, 2009, p. 137.
69
redondezas da própria cidade, antes e durante o cerco, acumulando assim sustento
suficiente para a hoste castelhana357.
No cerco de Benavente de Campos em 1387, D. João I envia para forragem
alguns membros do seu contingente que, chegados às proximidades da localidade
Castrocalbón, pegam fogo às suas portas, entram no local e saqueiam-no, procedendo
depois à pilhagem de aldeias nas suas imediações, recolhendo assim mais mantimentos
para o sustento da hoste anglo-portuguesa que se encontrava em campanha militar em
Castela358.
O cerco a Cória em 1386, por seu turno, termina quando as forças sitiantes de D.
João I desistem de prosseguir com o assédio porque, por um lado, no arraial começaram
a surgir vários doentes e, por outro, as provisões de mantimentos estavam já bastante
reduzidas e a perspectiva de uma carência de alimentos entre as forças atacantes estaria
próxima de se tornar numa realidade (o que, para além de poder causar mortes devido à
fome, poderia piorar e aumentar ainda mais o número de doentes na hoste)359.
A fome era então uma “arma” que poderia fazer pender o resultado do cerco
para ambos os lados, consoante as características deste. No entanto, o risco de se chegar
a uma situação de carência de alimentos era mais provável de ocorrer no interior dos
perímetros amuralhados sitiados, visto que o bloqueio aplicado pelas forças sitiantes
dificultava ou impedia a movimentação dos sitiados e a recolha e o transporte de
mantimentos para a localidade cercada. Embora houvesse o cuidado de garantir, face à
ameaça de um cerco, que os armazéns das fortalezas tivessem em qualquer altura uma
quantidade considerável de mantimentos aprovisionados 360 , era sempre necessário
recolher mais alimentos ainda, estes, mesmo com um consumo racionado, nem sempre
seriam suficientes para garantir a subsistência da guarnição e também da população que
se encontrava no local, um número que aumentava consideravelmente aquando da vinda
de reforços para a guarnição ou dos habitantes da região que procuravam refúgio atrás
das muralhas. Embora estes pudessem trazer víveres consigo, esse contributo não seria
357 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, pp. 309-310. 358 CDJ I, 2ª, cap. CI, pp. 216-217. 359 Idem, Ibidem, cap. LXXVIII, p. 179-181. 360 Na Segunda Partida, no título XVIII – “qual deue el pueblo ser en guardar, e en bastecer, e en
defender los castillos e las fortalezas del rey e del reyno”, a lei VI – “Quales deuen ser los alcaydes de los
castillos: e que es lo que deuen fazer por sus cuerpos, en guarda dellos”, fl. 57, refere-se que o alcaide de
um castelo deve garantir o abastecimento deste, e a lei X – “En que manera deuen ser bastecidos los
castillos de viandas: e de todas las otras cosas que son menester”, fls. 58-58v., refere que o alcaide
deveria garantir a existência no seu castelo de víveres como a carne, o pescado, pão, legumes, sal e azeite.
70
o necessário para garantir que a praça-forte resistisse por muito mais tempo face ao
súbito crescimento da população na localidade cercada361. Isto é visível no cerco de
Lisboa de 1384, no qual, como Fernão Lopes descreveu, “esta fame e falleçimento que
as gemtes assim padeçiam, nom era por seer o çerco perlomgado, ca nom avia tamto
tempo que Lixboa era çercada; mas era per aazo das muitas gemtes que sse a ella
colherom de todo o termo; e isso meesmo da frota do Porto quamdo veo, e os
mantiimentos seerem muito poucos”362.
A escassez de víveres começava a sentir-se através de um brusco aumento dos
preços em alimentos de primeira necessidade, como, por exemplo, nos cereais, que,
mesmo com preços bastante inflacionados, acabavam por eventualmente se esgotar363.
No caso do cerco de Lisboa de 1384, o trigo ia escasseando cada vez mais e, em
contrapartida, o seu preço ia subindo364, levando as pessoas carenciadas a procurarem
outras fontes de subsistência, como comerem “pam de bagaço dazeitona, (...) queyjos
das mallvas e rraizes dervas, e [outras] desacostumadas cousas, pouco amigas da
natureza”, ou ainda, nos locais onde se vendia trigo era possível encontrar, de acordo
com Fernão Lopes, pessoas a procurarem na terra grãos de trigo e a ingeri-los ali e sem
qualquer preparação do cereal365. Mas não era somente o preço e as reservas de trigo
que seriam afectadas pela escassez que derivava do cerco inimigo: a carne de porcos,
vacas ou galinhas, e os seus respectivos produtos derivados, à medida que as suas
reservas iam sendo consumidas também aumentavam os seus preços, tornando-se
incomportáveis para uma considerável porção da população presente no interior das
muralhas, tendo esta carência de proteína ainda o efeito de facilitar o surgimento e a
propagação de doenças366. Até os cavalos seriam sacrificados pela sua carne, procurada,
por esta altura, “nom soomente [pelos] pobres e mimguados, mas grãdes pessoas da
361 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 446-447. 362 CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 271. 363 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 447-448. 364 “Na çidade nom avia triigo pera vemder, e se o avia, era mui pouco e tam caro, que as pobres gemtes
nom podiam chegar a elle; ca vallia ho alqueire quatro livras; e o alqueire do milho quareemta solldos; e a
canada do vinho tres e quatro livras; e padeçiam mui apertadamente, ca dia avia hi, que, aimda que
dessem por huũ pam huũa dobra, que o nom achariam a vemder”, CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 269. 365 Idem, Ibidem. 366 “Das carnes, isso meesmo, avia em ella gramde mimgua; e sse alguũs criavom porcos, mantiinhãsse
em elles; e pequena posta de porco, vallia çimquo e seis livras que era huũa dobra castellãa; e a gallinha,
quareemta solldos; e a duzia dos ovos, doze solldos; e se almogavares tragiam alguũs bois, vallia cada
huũ sateemta livras, que eram quatorze dobras cruzadas, vallemdo emtom a dobra çimquo e seis livras; e
a cabeça e as tripas, huũa dobra; assi que os pobres per mimgua de dinheiro, nom comiam carne e
padeçiam mall”, Idem, Ibidem.
71
çidade”367. Outros ainda utilizavam a água para tentarem aplacar a fome que sentiam, e,
por a consumirem em grandes quantidades, acabavam por falecer “imchados nas praças
e em outros logares”368. Esta situação traduzia-se numa cidade repleta de imagens de
carência extrema e de desespero, com crianças a pedirem qualquer tipo de comida na
rua, não havendo frequentemente quem pudesse doar, ou mães, que por falta de
alimento não conseguiam amamentar os recém-nascidos e “choravom ameude sobrelles
a morte amte que os a morte privasse da vida”369. Desta forma, surgiam também no seio
da população querelas e discórdias, contribuindo para um adensar maior deste ambiente
mórbido, de tal forma que, nas palavras de Fernão Lopes, havia quem preferisse que “a
morte que os levasse, dizemdo que melhor lhe fora morrer, que lhe seerem cada dia
rrenovados desvairados padeçimentos” 370 . Os sitiados lisboetas viam-se assim
confrontados com duas guerras: “hũa dos emmiigos que os çercados tiinham, e outra
dos mantiimentos que lhes minguavom, de guisa que eram postos em cuidado de sse
deffemder da morte per duas guisas”371, e Juan I, ciente da situação vivida em Lisboa,
acreditava que seria somente uma questão de tempo até o Mestre e a população cederem
e renderem-se ao monarca castelhano372. Este estado de desespero causado pela fome
poderia, contudo, provocar outra reacção que não a rendição: em Lisboa, a fome
motivava cada vez mais a ideia de desferir um ataque directo ao arraial castelhano373,
uma jogada bastante arriscada para os defensores, pois poderia resultar numa derrota
retumbante e no fim das aspirações da resistência lisboeta e até do próprio Mestre de
Avis. Contudo, esta acção afigurava-se como a única forma para os sitiados
conseguirem o fim do cerco com a sua vitória, havendo alguns momentos em que este
ataque esteve mesmo próximo de ocorrer374.
À medida que o cerco se prolongava, as reservas de mantimentos iam sendo
consumidas, pelo que não sendo possível renová-las, os comandantes das forças
sitiadas, por vezes, recorriam à expulsão de elementos supérfluos à defesa da praça-
forte, como animais, numa primeira instância, mas também idosos, doentes, mulheres e
367 CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 269. 368 Idem, Ibidem. 369 Idem, Ibidem. 370 Idem, Ibidem, cap. CXLVIII, p. 270. 371 Idem, Ibidem, cap. CXLVIII, p. 271. 372 Juan I: “e tenhoa [Lisboa] ja tam aficada per fame que os de dentro padeçem, que sem combato nem
outra pelleja, segumdo as novas que eu sei de çerto, elles me rrogarom com ella ante de muitos dias, e
farom a minha voomtade”, Idem, Ibidem, cap. CL, p. 275. 373 Idem, Ibidem, cap. CXLII, pp. 253-255. 374 MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra na Idade Média, p. 317.
72
crianças, procurando através da evacuação destes membros para fora das muralhas fazer
durar mais tempo os mantimentos que restavam à guarnição, os elementos que tinham
maior capacidade para melhor defenderem o local375. No cerco de Lisboa de 1384, o
Mestre de Avis, face à crescente míngua de alimentos, ordena a expulsão dos elementos
supérfluos já referidos376, sendo estes, numa primeira instância, recebidos com agrado
pelas forças castelhanas, até se aperceberem do porquê da saída dos sitiados da cidade,
passando a impedi-los de passarem ou recusando-se a prestar-lhes auxílio, fazendo com
que alguns dos elementos de Lisboa preferissem serem feitos cativos do rei castelhano,
podendo assim ter a esperança de serem alimentados377. Henry V de Inglaterra, num
cerco a Rouen ocorrido entre 1418-1419, também impediu os sitiados que haviam sido
expulsos da cidade de passarem pelo seu arraial e obrigou-os a ficarem no fosso que se
encontrava entre as forças sitiantes e as muralhas, sem qualquer tipo de mantimentos,
destinados, portanto, a morrer à fome. Os sitiados procuraram, sem sucesso, negociar
com o monarca inglês a passagem destas pessoas carenciadas, e este limita-se a
retorquir “‘who put them there?’”, pois, como Jim Bradbury assinalou, a visão de
pessoas deixadas a morrer à fome à frente das muralhas de um local sitiado era uma
forma comum na época de os sitiantes aplicarem pressão aos sitiados. “We may not
much admire such ruthlessness, but it was part of the normal siege code”378.
O período em que decorria uma guerra podia ainda causar bastantes dificuldades
às populações presentes no espaço do conflito. A redução da mão-de-obra,
principalmente agrícola, e as passagens de exércitos pelos campos traduziam-se numa
escassez de mantimentos devido ao abandono, recolha excessiva ou mesmo destruição
dos campos, levando, como por exemplo no cerco de Chaves de 1386, diversas pessoas
375 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 448-449. 376 “Em esto gastousse a çidade assi, apertadamente, que as pubricas esmollas começarom desfalleçer, e
nenhuũa geeraçom de pobres achava quem lhe dar pam; de guisa que a perda comuũ vemçemdo de todo a
piedade, e veemdo a gram mingua dos mamtiimentos, estabelleçerom deitar fora as gemtes mimguadas e
nom perteeçemtes pera deffemssom; e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa lamçarem fora as mançebas
mundairas e Judeus e outras semelhamtes, dizemdo que pois taaes pessoas nom eram pera pellejar, que
nom gastassem os mantiimentos aos deffemssores; mas isto nom aproveitava cousa que muito prestasse”,
CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, pp. 268-269, e MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota. A guerra
na Idade Média, p. 316. 377 “Os Castellaãos aa primeira prazialhe com elles, e davomlhe de comer e acolhimento; depois veemdo
que esto era com fame, por gastar mais a çidade, fez elRei tall hordenamça, que nẽnhuũ de demtro fosse
rreçebido em seu arreall, mas que todos fossem lamçados fora; e os que sse hir nom quisessem, que os
açoutassem e dezessem tornar pera a çidade; e esto lhes era grave de fazer, tornarem per força pera tall
logar, omde choramdo nom esperavom de seer rreçebidos; e taaes hi avia que de seu grado se sahiam da
çidade, e se hiam pera o arreall, queremdo amte de todo seer cativos, que assim pereçerem morremdo de
fame”, CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 269 378 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 309.
73
daquela região, em busca de apoio e alimento, a juntarem-se à hoste do rei D. João I,
que, face ao assédio que liderava e às gentes que se juntavam ao seu arraial, ordenava
incursões na Galiza até 8 ou 10 léguas de distância para a recolha de mantimentos e
forragem, com os encarregados destas acções a levarem consigo 2000 animais de carga
ou até mais379.
A realização de um cerco implicava ainda a possibilidade de as hostes serem
ameaçadas por outros factores que não somente os combates, a fome ou a sede. As
hostes sitiantes e as forças sitiadas corriam também o risco de, ao longo do desenrolar
do cerco, serem assoladas por surtos de doenças que poderiam causar um grande
número de baixas entre os combatentes. No cerco de Coria de 1386, o arraial de D. João
I via-se afectado por uma carência de mantimentos e por um crescente número de
doentes. A situação vivida nesse arraial era tal380 que levava elementos da hoste a
fingirem que padeciam de alguma maleita para poderem ser levados para Penamacor381,
e, pelo caminho, tentavam escapar da sua escolta e voltar para as suas terras, obrigando
mesmo D. João I a inspeccionar todos aqueles que insinuavam estarem doentes382. O
cerco pouco evoluía e a possibilidade de vitória estava cada vez mais longínqua383,
fazendo com que, eventualmente, e também motivado pela falta de engenhos de cerco, o
monarca português desse por terminadas as operações384.
Mas, para ter uma melhor noção da influência que um surto de doenças poderia
ter no desfecho de um cerco, é necessário voltarmos ao cerco de Lisboa de 1384 e
analisar o que sucedeu no arraial castelhano. A realização de um cerco implicava a
concentração de um elevado número de pessoas e de animais no mesmo local, o que
resultaria numa situação de deficiente higiene. Não existindo formas eficazes de
379 CDJ I, 2ª, cap. LXV, pp. 155-156. 380 “de guissa que mais eram ja os doentes que os saãos”, Idem, Ibidem, cap. LXXVIII, p. 180. 381 “E taaes desejauom de [serem doentes] por teer aazo de se partir da hoste; outros fingiam que o eram,
atamdo panos nas cabeças, porque el-Rey mandaua leuar os doentes a huum logar de seu regno que
chamam Penamacor”, Idem, Ibidem. 382 “E taaes desejauom de o seer por teer aazo de se partir da hoste; outros fingiam que o eram, atamdo
panos nas cabeças, porque el-Rey mandaua leuar os doentes a huum logar de seu regno que chamam
Penamacor, que eram dally treze legoas, e homens darmas com elles em guarda; delles er fugiam sem
liçemça, e tornauam-sse pera a terra. El-Rey, quamdo semtio esto, começou de os veer per pessoa, e bem
conheçeo de muytos que nom eram doemtes”, Idem, Ibidem. 383 O Condestável e o conselho do rei estavam cientes de que o cerco, enquanto durasse, só pioraria a
situação e mais elementos da hoste procurariam abandoná-lo, e “diseram a el-Rey: Senhor, que feuza
podees uos teer em taaes homeens pera uos seruir nem fazer nenhuum bem per sas maãos, quando elles,
nom semdo doemtes, fingem sinaaes de gramde doemça”, Idem, Ibidem. 384 Idem, Ibidem.
74
eliminação de resíduos poluentes como lixo, fezes e urina, tanto de humanos como de
animais, ou o transporte destes para locais bem afastados do arraial, a concentração dos
resíduos poluentes nas proximidades dos arraiais (muitas vezes “auxiliada” pelo calor
que se fazia sentir no período Primavera-Verão, no qual decorre o cerco em questão, o
que permitia uma maior libertação de bactérias e odores para o ar e também o
aparecimento de pragas de insectos) contribuíam ainda mais para o surgimento e
propagação de doenças, em muitos casos de elevada gravidade. Para além disso, a
penetração destes resíduos no solo e a sua subsequente infiltração nos lençóis freáticos
contaminavam a água que se encontrava na zona do arraial e que era consumida pelos
sitiantes, tornando-se assim num outro foco de origem e propagação de doenças,
principalmente do foro gastro-intestinal, como disenteria ou febres que resultavam em
mortes385.
A hoste castelhana que se deslocava para Lisboa liderada por Juan I, de acordo
com Fernão Lopes, era, desde que havia entrado no reino português, assolada por
“pestellemça”386, causando, gradualmente, um crescente número de mortos entre os
elementos da hoste. O surgimento deste surto entre os seus combatentes obrigou o rei
castelhano a movimentar-se frequentemente entre aldeias nas proximidades de Lisboa,
enquanto esperava pela chegada da sua frota à cidade, procurando reduzir a propagação
do surto e, por conseguinte, as baixas na sua hoste. Porém, tendo já Lisboa cercada,
elementos da frota castelhana começam também a adoecer e a falecer, e desde a
chegada à cidade e início do assédio que o surto foi crescendo cada vez mais387.
A situação foi motivando, ao longo do cerco, alguns elementos da hoste a
tentarem dissuadir Juan I de prosseguir com o assédio, incluindo o infante D. Carlos,
herdeiro ao trono de Navarra e cunhado de Juan I, e também o próprio conselho do rei
castelhano. Argumentavam que o próprio monarca se arriscava a ser contagiado e que
havia ainda no território português “cavalleiros e outras gemtes que tiinham muitas
villas e castellos, domde fariam guerra ao Meestre, e aos que sua voz quisessem
mamteer”388 . Para além disso, o infante e o conselho argumentam ainda que uma
retirada para Castela permitir-lhes-ia recuperarem das perdas causadas pela peste e
385 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra em Portugal - 1245-1367, pp. 436-437. 386 CDJ I, 1ª, cap. CXLIX, p. 272. 387 “e desque y [Lisboa] fue, era ya la pestilencia muy grande en los suyos”, CRC, Juan I, Año Sexto
(1384), cap. VII, p. 566, e “Pero la mortandad fue luego en el real muy grande, e morían cada día muy
muchos omes”, Idem, Ibidem, Año Sexto (1384), cap. VII, p. 567. 388 CDJ I, 1ª, cap. CL, p. 274
75
esperarem um término para a epidemia389, renovando assim a sua hoste e podendo voltar
numa data posterior a cercar novamente Lisboa 390 , havendo ainda quem tentasse
convencer o monarca a chegar a alguma preitesia com o Mestre, “por levar alguũa
homrra de sua viimda” 391, e a campanha não resultaria assim num fracasso total. No
entanto, o rei castelhano foi recusando estes conselhos, visto considerar que, sem
qualquer perspectiva de auxílio, o Mestre acabaria por se render num espaço de poucos
dias, permitindo assim ao rei conquistar Lisboa392.
Contudo, a continuação do cerco levou a uma cada vez maior propagação do
surto de peste, tanto no arraial como na frota castelhana, chegando a um ponto em que,
de acordo com Fernão Lopes, morriam entre 100 e 200 membros da hoste diariamente,
levando a que os do arraial passassem os dias “ocupados em soterrar seus mortos”393.
Este surto de peste acaba por afectar elementos da hoste oriundos de todas as ordens
sociais, falecendo assim muitos combatentes nobres castelhanos, incluindo membros
importantes da alta nobreza e titulares de cargos de relevo394, chegando a morrer, ao
longo de dois meses, mais de dois mil homens de armas que estavam ao serviço do rei
de Castela395. Assim, a hoste castelhana era afectada por uma peste que atingia “nom
soomente escudeiros e fidallgos, e doutros de pequena comdiçom, tamtos que era
estranha cousa de veer; mas ainda começou de emçetar nos senhores de gramde estado,
de guisa que pos gramde espamto em todos”396, mostrando que este surto era um perigo
para qualquer indivíduo aí presente, independentemente das condições em que viviam
no arraial. Para além disto, aparentemente tanto os nobres portugueses que tinham voz
por Castela e se encontravam no arraial como os prisioneiros portugueses, e também os
389 CDJ I, 1ª, cap. CL, p. 275. 390 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 272. 391 Idem, Ibidem, cap. CXLI, p. 249. 392 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 272, e cap. CL, p. 274. 393 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 272. 394 “Ca do dia que sse finou de trama o Meestre de Santiago dom Pedro Fernamdez Cabeça de Vaca ataa
esta sazom, [morreram também] dom Rui Gomçallvez Mexia a que elRei deu o Meestrado depois da
morte de dom Pero Fernamdez; e dom Pero Rodriguez de Samdovall, Comemdador moor, que cuidou de
ser meestre; e Pero Fernamdez de Vallasco, Camareiro moor delRei; e dom Fernam Samchez de Thoar
seu Almiramte moor; FernamdAllvarez de Tolledo, Mariscall de Castella: Pero Rodriguez Sarmento,
Adeamtado em Galliza; dõ Pero Nunez de Lara, Comde de Mayorgas, que pouco avia que casara como
ouvistes; dom Joham Affomsso de Benavides; dom FernamdAffomsso de Çamora, Meestre de Samtiago,
e com este forõ tres Meestres; Joham Martiinz de Rojas; Lopo Uchoa dAvellaneda; e treze cavalleiros
delRei da çidade de Tolledo; e muitos outros cavalleiros e escudeiros de Castella e de Leom”, Idem,
Ibidem, cap. CXLIX, p. 272. 395 “en manera que del día que morió el maestre de Sanctiago fasta dos meses morieron de las compañas
del rey dos mil omes de armas de los mejores que tenía”, CRC, Juan I, Año Sexto (1384), cap. XI, p. 570,
e “mais de dous mill homẽes darmas dos melhores que elRei de Castella tiinha”, CDJ I, 1ª, cap. CXLIX,
p. 272. 396 CDJ I, 1ª, cap. CXLI, p. 249.
76
sitiados em Lisboa, não contraíam a doença, contribuindo assim para o aumento do
sentimento de frustração no seio da hoste castelhana e funcionando como um tónico
para a moral dos sitiados397.
Os últimos momentos do cerco de Lisboa acabariam assim por ser uma “guerra
de persistência”: enquanto os habitantes da cidade de Lisboa estavam sujeitos a uma
crescente situação de fome cada vez mais grave, os elementos do arraial castelhano
viam-se confrontados com uma crescente mortalidade causada pela peste que aí
grassava, resultando num impasse, no qual o Mestre e Juan I esperavam que o outro
desistisse. 398 No entanto, a rainha D. Beatriz começou a mostrar sintomas que
indicavam que ela própria poderia ter contraído a doença, o que levou a que Juan I, por
fim, ordenasse o levantamento do cerco, a partir de 3 de Setembro, sendo a destruição
do arraial executada ao longo de um fim-de-semana, com o rei a abandonar a cidade na
2ª feira seguinte pela manhã, dia 5 de Setembro, terminando assim um assédio que
durou cerca de três meses e uma semana399.
Este capítulo demonstra que, por melhor que fosse a preparação dos
intervenientes, diversas vicissitudes poderiam afectar decisivamente o desenrolar do
cerco, tanto para sitiadores como para sitiados. As forças em confronto nestas operações
militares teriam que ser capazes de enfrentar todas as envolvências de um cerco, os
frequentes combates, as condições climatéricas desfavoráveis ou períodos de
sofrimento, cuja duração se desconhecia, causados por fome, sede ou surtos de doenças.
Estes aspectos transmitem-nos a importância que a guerra de cerco tinha na época e
também o papel que fortalezas ou povoações desempenhavam no plano político, com
nenhuma das forças a quererem ceder perante os seus adversários, procurando rumar à
vitória, arriscando assim a travessia de um período em que todos os intervenientes
teriam, em todos os momentos, as suas próprias vidas em perigo.
397 “E era gram maravilha per juizo a nos nom conheçido, que em fervor de tamanha pestellemça, nenhuũ
dos fidallgos portugueeses que hi amdavom nem prisiuneiros, ou doutra quallquer guisa, que nenhuũ nom
morria de trama, nem era tocado de tall door. E os Castellaãos doemtes, e dos Portugueeses nenhuũ
pereçia, nem demtro na çidade que era tam perto do arreal, nẽ fora em no termo”, CDJ I, 1ª, cap. CXLIX,
p. 272. 398 Idem, Ibidem, cap. CL, pp. 273-274 399 Idem, Ibidem, cap. CL, pp. 275-276.
77
CAPÍTULO IV – À PROCURA DA CONQUISTA
Fosse pela estratégia delineada pelos seus comandantes, pela contínua
resistência ao assédio por parte dos sitiados, ou pelo surgimento de uma oportunidade
vantajosa antes ou no decorrer do cerco, muitas destas acções armadas foram
conduzidas com o recurso ao assalto às muralhas, através do qual os sitiadores
procuravam conquistar a praça-forte sitiada. Segundo João Gouveia Monteiro, o assalto
às praças fortificadas poderia ser desencadeado de acordo com quatro formas gerais400:
através da utilização de determinados tipos de engenhos consoante as suas
características, por um lado, os engenhos de aproximação e, por outro, os de arremesso
de projécteis, do escavamento de túneis com diversos propósitos, ou, ainda, a partir de
assaltos furtivos ou recorrendo a estratagemas ludibriosos.
A primeira forma e, simultaneamente, a mais comum, era levada a cabo através
de “técnicas específicas de aproximação às muralhas”401, na qual as forças sitiantes
avançavam em direcção a estas com o intuito de as transporem, através da
ultrapassagem das muralhas ou da destruição ou queima das portas, contando com o
auxílio de determinado tipo de engenhos que conferiam protecção aos combatentes nas
manobras de aproximação ou que permitissem o acesso ao topo das muralhas sitiadas.
Atulhando previamente fossos e cavas que se encontrassem no local, entre o arraial e o
perímetro amuralhado402, e após ultrapassarem ou destruírem as barbacãs, caso estas
existissem403, os sitiantes poderiam então avançar em direcção às muralhas livres desses
obstáculos e com o caminho livre para a deslocação dos engenhos de aproximação404.
400 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 228. 401 Idem, Ibidem. 402 Como foi feito pelas forças de D. João I no cerco de Melgaço de 1388, no qual as forças do monarca
português, enquanto construíam os engenhos que seriam depois utilizados no assalto, “nam quedauam em
tanto fazer camynhos e calçadas pera homde avião dhir a bastida e escallas” (CDJ I, 2ª, cap. CXXXV, p.
277), ou no cerco de Campo Maior em 1388, por exemplo, no qual, após uma cava aí existente ser tapada,
as forças sitiantes avançam em direcção às muralhas e procedendo a um assalto com uma escada (Idem,
Ibidem, cap. CXXXVII, pp. 280-281). 403 A ultrapassagem das barbacãs era também de extrema dificuldade, devido à possibilidade da presença
de inimigos nesta, aos projécteis lançados pelos sitiados de dentro da praça-forte, ou ainda pela altura
destas, “que geralmente oscilava entre os 3,25m e os 8,85m”, MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de
Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 245. 404 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 228.
78
Após termos observado o armamento individual da época no primeiro capítulo,
olharemos agora para o armamento colectivo, começando pelos engenhos de
aproximação, utilizados nesta forma de assalto. Daremos início ao estudo destes
engenhos com as escadas, quase sempre de madeira, devido à resistência do material,
pois teriam que aguentar com a escalada de vários combatentes ao mesmo tempo, mas
existindo também de corda. Eram, normalmente, de simples e rápida construção
(geralmente no local do cerco, mas, por vezes, as hostes transportavam consigo escadas,
em peças ou até mesmo completas405), devendo apresentar uma altura equivalente ou
superior à das muralhas, para permitir aos sitiantes aceder aos adarves e tomar controlo
destes ou transpô-los. Contudo, a escalada das escadas representava um risco para os
sitiantes devido à relativa facilidade com que os sitiados conseguiam tombá-las, mesmo
com combatentes a trepá-las no momento, para além de que as escadas não ofereciam
qualquer protecção aos utilizadores contra os diversos tipos de projécteis lançados pelos
sitiados. Por exemplo, a primeira escada utilizada pelas forças sitiantes comandadas por
D. João I no cerco de Campo Maior de 1388 parte-se num momento em que diversos
combatentes procuravam escalá-la, resultando em “muytos ferydos, e prouue a Deus de
nam morrer nenhuum”406. Mesmo tendo em conta os riscos corridos pelos combatentes
nesta forma de assalto, a utilização das escadas justificava-se não só pela rapidez de
construção destas, mas também pela possibilidade de concretizar um assalto com várias
escadas, permitindo um ataque simultâneo a diversos pontos das muralhas, fazendo com
que as escadas fossem frequentemente utilizadas no contexto da guerra de cerco na
época407. No cerco de Guimarães de 1385 encontra-se, por exemplo, uma referência à
construção de “escadas de maão, feitas de madeira, pera por ao muro” no assalto à cerca
interior da vila408, assim como no já referido cerco de Campo Maior de 1388, no qual as
forças sitiantes de D. João I vencem com o auxílio de uma segunda escada colocada
próxima de uma torre e que permitiu a tomada da vila pela força das armas409. Ainda no
cerco de Tui de 1389, encontra-se referência à construção e utilização de “huma gramde
escalla” neste assédio410, provavelmente mais complexa que as usadas em 1385 e 1388.
405 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 248. 406 CDJ I, 2ª, cap. CXXXVIII, p. 282. 407 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 412-413, e
MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 347. 408 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 24. 409 Idem, Ibidem, p. 282. 410 Idem, Ibidem, cap. CXL, p. 288.
79
Nas fontes encontramos, por vezes, expressões como “combatendo muy
rijamente de toda parte” ou “combater afficadamente per todallas partes”411 durante
ataques a determinados locais, nestes casos, o castelo de Neiva e Viana do Castelo412.
Atendendo à frequência, referida na bibliografia, com que se recorria às escadas no
contexto de guerra de cerco medieval, é muito possível que estas expressões se refiram,
precisamente, à utilização dessas escadas413.
Contudo, nem sempre as escadas utilizadas nos cercos da época eram tão
simples ou rudimentares como as que acabámos de descrever. D. João I utilizou, em três
cercos diferentes, escadas com características e construções bem mais complexas do que
as escadas comuns. No cerco de Guimarães de 1385, é construída por ordem do
monarca uma escada que é utilizada no assalto à segunda cerca da vila e que era
constituída por três eixos verticais, o que permitia a subida às muralhas de combatentes
aos pares, contando ainda com rodas para facilitar a sua deslocação até às muralhas414.
Em Chaves, no cerco de 1386, D. João I projecta, e as suas forças concretizam, uma
escada com uma resistência impressionante que, de acordo com Fernão Lopes, era de
“tam forte maneira quall na Espan(h)a amte desto nom fora vista, de que se todos
espantauom”415, e que foi um dos factores que contribuíram para a decisão do alcaide
em procurar a preitesia com as forças sitiantes416. Por último, no cerco de Melgaço de
1388, foram construídas duas escadas com quatro rodas cada, descritas por Fernão
Lopes, em grande detalhe, como sendo compostas por eixos verticais de ferro “bem
grosos”, contando ainda com seis traves e outros paus que serviriam como esteios para
poderem suportar e também ajustar a altura destas escadas417. Estas contavam ainda
411 CDJ I, 2ª, caps. VI e VII, p. 15. 412 Ocorridos em Abril de 1385, inseridos num contexto de uma expedição, ordenada por D. João I e
liderada pelo Condestável, na tomada de localidades que tinham voz por Castela na comarca do Entre-
Douro-e-Minho, Idem, Ibidem, cap. V, p. 12. 413 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 213. 414 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 24. 415 Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159. 416 “Martym Gonçalluez, vemdo todas estas cousas [para além da escada, as forças sitiantes não cessavam
de arremessar projécteis através de engenhos e havia ainda uma bastida], e reçeamdo seer emtrado per
força, pois se nom podia defemder, preitejou-sse emtom com el-Rey”, Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159. 417 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 277.
80
com um sistema de guindaste para as erguer418 e com traves que as ligavam à torre de
assalto (engenho que será abordado de seguida) que estava a ser construída419.
As torres de assalto eram também um outro engenho de aproximação
comummente utilizado nos cercos da época em análise neste estudo, frequentemente
referidas nas fontes como “bastidas”420. O método em que estas eram utilizadas era o
“mais seguro e, simultaneamente, o mais aparatoso de efectuar a aproximação e a
abordagem às muralhas de uma praça-forte”421. Embora tivessem de ser construídas no
local do cerco (ou, em alguns casos, montadas, com partes da torre previamente
construídas e transportadas com a hoste), devido à sua dimensão que impossibilitava a
deslocação ao longo de grandes distâncias, as torres de assalto ofereciam aos
combatentes uma maior protecção na ultrapassagem das muralhas do que escadas de
cordas ou madeira, pois assim os combatentes podiam chegar ao topo da muralha sem
serem expostos aos disparos dos defensores. Além disso, tinham um acesso directo ao
cimo desta, visto que as torres eram construídas com uma altura superior à das muralhas
que atacavam. Os sitiados procurariam defender-se destas torres através de sortidas –
durante as quais as tentavam derrubar ou incendiar – ou de disparos de projécteis para
as reduzir a cinzas422. Por seu lado, os sitiantes tentavam minimizar o risco de incêndio
418 “e em cada huma [das escadas] d(u)as polles de guymdar, que guymdauão doze cabres grosos de linho
canaue, e tres dobaduras detras pera guymdarem e dous gramdes cabrestantes como de nao”, CDJ I, 2ª,
cap. CXXXVI, p. 277. 419 “E hia cada huma escalla pregada de tauoas grossas sobre quatro paos, compridos como pontõees, em
que avya de longo quorenta e oyto couados e em ancho noue, e çimqoenta degraaos de meyos pontõees e
canyços, e coyros de vaca verdes nos logares homde conprião, pera hirem na bastida (cada hum) de sua
parte”, Idem, Ibidem. 420 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229. O termo “castellos de madeira”
também era utilizado nas fontes para se referirem a torres de assalto. CDJ I, 2ª, cap. LXIV, p. 154. 421 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 249. 422 Vegécio recomendava, no Epitoma Rei Militaris, primeiro, “se existir audácia e forças militares”, a
realização de uma sortida e o posterior ateamento de um fogo, após serem retirados os couros de
protecção, e, segundo, caso “os sitiados não ousarem sair”, fazer uso dos engenhos de arremesso de
projécteis que pudessem disparar “malleoli ou faláricas incendiárias”. Os primeiros eram “como setas, e
onde quer que se fixem incendeiam tudo uma vez que vêm a arder”, e as segundas eram como “uma
lança, [...] guarnecida com um ferro bem forte; mas, entre a haste e a ponta, ela é envolvida por enxofre,
resina, betume e estopas e ensopada com um óleo a que chamam de ‘incendiário’”, e que através do seu
lançamento e impacto perfuraria as protecções da torre e, aí fixa, atearia o fogo que destruiria o seu alvo a
partir do interior. VEGÉCIO, Compêndio da Arte Militar, trad. de José Eduardo Braga e João Gouveia
Monteiro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009, p. 351.
81
e a força de impacto dos projécteis lançados por sitiados contra estas torres forrando-as
com vimes, peles cruas de animais humedecidas423 ou lama424.
Estas torres moviam-se através de várias rodas colocadas por debaixo destas, “de
tal forma que um volume e um peso tão grande possa ser deslocado por meio de um
deslize fácil”425. Compostas geralmente por três pisos, no andar inferior de uma torre de
assalto poderia encontrar-se um aríete ou um espaço protegido para que combatentes
pudessem picar as muralhas ou destruir as portas de uma fortaleza. O piso intermédio
servia como um espaço de abordagem aos muros, existindo, por vezes, uma ponte
levadiça que poderia ser lançada ao topo das muralhas, criando assim uma passagem
pela qual os combatentes sitiantes poderiam aceder aos adarves. O piso superior
conferia uma posição segura e elevada onde homens de armas e atiradores podiam
atacar com armas de arremesso426 os combatentes adversários que se encontravam ao
longo dos adarves e das torres, enfraquecendo assim a defesa e facilitando o ataque e a
passagem dos seus companheiros que assediavam a muralha no piso intermédio427 .
Deste modo, as torres de assalto ofereciam diversas possibilidades de assalto aos
sitiantes no decorrer do ataque às muralhas inimigas428. A torre de assalto construída no
cerco de Melgaço de 1388 pelas forças sitiantes de D. João I, composta por quatro
andares e com rodas, é descrita por Fernão Lopes em grande detalhe. Começando pelas
medidas da torre, esta tinha “de roda e roda do carro em ancho treze couados, (e) em
alto, des homde se começaua per cima dos carros, avia treze braças e mea”. O primeiro
andar estava “madeira(do) de pontões bem grossos (e) estrados de bastos canyços” para
os combatentes se poderem deslocar, “e avya deradir cemto e xxxvj. pontõees”. O
segundo andar teria “derador cemto e xxiiij. pontõees” e continha quinze recipientes
cheios de vinagre para apagar qualquer tentativa de pegar fogo à torre, “e o terçerio
cento e xxx.”. Um último andar, aberto, tinha “cento e xxviij.º meyos pontõees derador,
em que hiam tres mjl pedras de maão”. A parte de trás da bastida (em relação às
muralhas) era aberta e aí encontravam-se escadas de alçapão que ligavam os diversos
423 Como as utilizadas na torre de assalto construída a propósito do cerco de Melgaço de 1388. CDJ I, 2ª,
cap. CXXXV, pp. 276-277. 424 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I,
pp. 146-147, e MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 414-416. 425 VEGÉCIO, Compêndio da Arte Militar, p. 349. 426 Setas, virotões, dardos ou pedras. MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos,
muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 249. 427 Idem, Ibidem, e MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp.
348-349. 428 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 348.
82
pisos da torre, e esta, como protecções, “leuaua diante seis gramdes canyços, forados da
carqueyja, e xxiiij. coyros de bois verdes, pregados sobre ella por goarda do fogo e dos
troons”429.
É necessário ainda referir que as torres de assalto nem sempre eram utilizadas
num ataque directo às muralhas: por exemplo, no ataque à segunda cerca de Guimarães
no assédio ocorrido no ano de 1385, D. João I ordena a construção de uma bastida no
topo de umas casas próximas dessa cerca para que besteiros pudessem usufruir de uma
posição mais alta e protegida, tendo assim um ângulo de disparo mais vantajoso contra
as forças sitiadas430. Também as torres de assalto construídas no cerco de Chaves de
1386 eram utilizadas para um efeito semelhante. Uma primeira, destruída com fogo
numa sortida nocturna, encontrava-se próxima do rio Tâmega, impedindo os sitiados de
recolherem água do rio e permitindo aos sitiantes atacar a vila431. A segunda torre de
assalto é construída perto da barbacã e de uma das entradas da vila, num local mais
próximo do arraial do que a anterior432, pois a capacidade dos sitiantes em acorrerem em
socorro da primeira torre foi prejudicada pela distância que separava a torre destruída do
acampamento. Por ter uma altura superior às muralhas, a segunda torre de assalto
permitia aos combatentes que estavam no piso superior o lançamento de virotões e
pedras contra os adversários presentes num lanço das muralhas, de tal forma que, de
acordo com Fernão Lopes, nenhum dos sitiantes “ousaua em elle destar, com reçeo do
dano que da bastida reçebiam”433. A torre permitiu também às forças sitiantes o derrube
de uma parte da barbacã, possibilitando, assim, a passagem de combatentes para
procurarem britar as muralhas434.
Um outro tipo de engenho de aproximação era a “gata”, uma estrutura construída
com madeiras leves, “com superfícies da ordem dos 2,50 metros x 5 metros e com
alturas de cerca de 2 metros”435, com um telhado coberto por uma dupla cobertura de
tábuas juntas e por couro, cru e recém-esfolado, estando ainda as faces laterais
429 CDJ I, 2ª, cap. CXXXV, pp. 276-277. 430 Idem, Ibidem, cap. XII, p. 24. 431 Idem, Ibidem, caps. LXIV e LXV, pp. 154 e 155. 432 Esta segunda torre foi construída de forma a ser bastante mais resistente do que a anterior, “era tam
forte e assy forrada de traues e caniços e coiros cruus que per(o) huum emgenho que demtro tinham lhe
tirasse huuma noite trimta pedras e as vimte e sete dessem em ella, nenhuuma dellas lhe pode fazer nojo”,
Idem, Ibidem, cap. LXV, p. 155. 433 Idem, Ibidem. 434 Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159. 435 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229.
83
protegidas com vimes436. Este engenho tinha como objectivo proteger a aproximação de
um pequeno grupo de combatentes em direcção às muralhas, permitindo-lhes depois
pegar fogo às portas, picar os muros ou minar os alicerces das muralhas com alguma
protecção em relação aos projécteis arremessados dos adarves437. É com um destes
engenhos que o Mestre de Avis, no final de 1383, pretende atacar o castelo de Lisboa,
embora não tenha sido utilizada por a guarnição se ter rendido ao fim de 3 dias438.
Semelhantes às gatas, nesta época eram utilizadas ainda as “mantas”, também
denominadas como “manteletes”. Com dimensões bem mais reduzidas do que as gatas –
e por isso com capacidade para proteger um número mais reduzido de combatentes –,
serviam para dar cobertura contra projécteis lançados pelos sitiados contra os homens
que, por exemplo, procuravam atulhar os fossos, ou que avançavam em direcção às
escadas, às bastidas ou que se deslocavam nas imediações das muralhas (nomeadamente
com o intuito de recolherem os feridos ou os corpos dos camaradas falecidos), ou,
ainda, para o ataque às portas dos castelos ou das barbacãs, protegendo os guerreiros
que procurariam pegar fogo às portas439. É necessário referir ainda que, para além da
função de protecção dos combatentes, as mantas permitiam também proteger os
engenhos de arremesso de projécteis, quer contra possíveis sortidas, quer contra o
arremesso dos projécteis lançados pelos adversários440. De acordo com Fernão Lopes,
no cerco de Almada de 1384, as forças de Juan I utilizaram este tipo de engenhos num
assalto à vila441, assim como as forças de D. João I, no cerco de Tui de 1389442.
Com o auxílio dos engenhos acima referidos, a aproximação às muralhas podia
ser feita de modo mais seguro, ou seja, com um número menor de baixas. No entanto,
só o acesso a estes pontos das muralhas ou das fortalezas não bastaria, pois os sitiantes
teriam ainda que resistir à acção dos sitiados. No assalto ao castelo de Alenquer,
ocorrido em 1384, as forças sitiantes afectas ao Mestre contam com a ajuda da
população, que abre as portas da vila, e, perante a recusa do alcaide em entregar o
castelo, os combatentes atacantes iniciam o combate por este, procurando pegar fogo às
436 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229. 437 Idem, Ibidem. 438 CDJ I, 1ª, cap. XLI, pp. 70-71. 439 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 351. 440 Idem, Ibidem. 441 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 235. 442 CDJ I, 2ª, cap. CXL, p. 288.
84
suas portas443. No entanto, os defensores, com a água que atiravam e pelo facto de a
porta estar abrigada do vento, conseguiram apagar os fogos que os sitiantes tentavam aí
atear. Esta contrariedade, juntamente com as notícias de que Juan I estaria a caminho de
Alenquer com o seu exército, fez com que os atacantes, ao aperceberem-se da
impossibilidade de tomarem rapidamente o castelo, desistissem do ataque444. No cerco
de Vila Viçosa de 1384, Nuno Álvares Pereira procurou que as suas forças entrassem na
vila pela porta da Torre, “que he a mais forte que ella tem”445, localizada na base de
uma torre bastante larga com uma abóboda que se encontrava directamente sobre a
porta e que a defendia. Uma força avançada, liderada Fernão Pereira, procurou atacar
essa porta, mas este foi atingido por “huũ gramde camto de çima, [...] que lhe esmagou
o baçinete e a cabeça toda, e foi logo morto” 446 . Álvaro Coitado, por outro lado,
conseguiu chegar à porta, mas, ao entrar na vila, foi ferido e aprisionado, e as portas da
vila foram fechadas, antes ainda de Nuno Álvares Pereira chegar com o resto do seu
contingente. Ao saber da morte do seu irmão e da dificuldade que teria em tomar a vila,
o comandante das forças sitiantes decidiu então retirar447. Há, no entanto, casos de
sucesso para os sitiantes, como são exemplos a tomada do castelo de Beja, por altura da
passagem de 1383 para 1384, pela população, em nome do Mestre, após a queima das
portas e entrada na fortaleza448, ou cerco de Ponte de Lima de 1385, no qual as forças de
D. João I entram na vila e iniciam o assalto às torres, bem guarnecidas de homens e
abastecidas, com ataques vindos de dentro e de fora (liderados pelo Condestável) das
muralhas, pelos lanços dos muros, e através da “força darmas e de fogo e per
preitesya”449 foram todas tomadas. Ficava a faltar então a última torre, “a mais alta e a
mais defemssauel de todallas outras que ha na villa”450, e esta é prontamente atacada,
havendo o intuito de pegar fogo às portas da torre. Após negociações para preitesia, que
falharam, o combate é retomado, com Martim Afonso de Melo, João Rodrigues da
Guarda e Antão Vasques a subirem as escadas do muro em direcção a uma das portas,
443 “ca huũs levavom tramcas e touçinhos, outros lenha e azeite”, CDJ I, 1ª, cap. CIX, p 185. 444 Idem, Ibidem, cap. CIX, pp. 184-186. 445 Idem, Ibidem, cap. CLXXII, p. 322. 446 Idem, Ibidem. 447 Idem, Ibidem, caps. CLXXI, CLXII, pp. 320-323. 448 Refere-se ainda o caso da tomada do castelo de Beja pela população, em nome do Mestre, após a
queima das portas e entrada na fortaleza, Idem, Ibidem, cap. XLII, pp. 72-75. 449 “e auya em ella dous sobrados, e he toda chea ataa ho muro.[...] Esta tore, estaua açalmada de muitos
touçinhos e lenha ataa o prymeiro sobrado; e porque naquella quomarca ha muytas egrejas e moesteiros,
ademais da prata e denheiros que hij auia tinha o dito Lopo Gomez em guarda naquella tore”, CDJ I, 2ª,
cap. XVIII, p. 35. 450 Idem, Ibidem.
85
sendo o segundo atingido por um canto e morrendo, o terceiro ferido gravemente, mas o
primeiro, protegido pelo arco da porta, estava já a tentar atear fogo à mesma. O fogo
que foi posto na porta acabaria por alastrar para dentro da torre, queimando a lenha e o
toucinho que aí se encontrava, deixando o primeiro andar em chamas, forçando os
defensores que estavam no segundo andar a irem para as ameias da torre, renegando
Lopo Gomes de Lira e os seus apoiantes, e anunciando a sua rendição451. Um último
caso é a tomada de Almeida, na qual as forças de D. João I conseguem começar a picar
o muro e a pôr fogo às portas de uma grande torre que aí havia, fazendo com que o
alcaide, ao deparar-se com a situação, pedisse para discutir termos para a entrega do
castelo452.
As diferentes características destes engenhos de que temos vindo a dar conta
permitiam ainda a sua utilização em conjunto num assalto à praça-forte, conferindo às
forças sitiantes mais soluções e possibilidades de saírem vitoriosas no ataque. Exemplos
disto são os cercos de Melgaço de 1388 e o primeiro cerco de Tui, de 1389. No primeiro
caso, as forças de D. João I constroem as já atrás referidas duas escadas e a torre de
assalto453, atacando depois a vila com esse conjunto de engenhos a avançarem até à
muralha, de tal forma que “chegou-sse tanto a villa que punhaão huum pee no muro
dentro e outro na escala”454. O monarca ordenou que um grupo de combatentes se
colocasse no último piso da torre, com besteiros a dispararem virotões e homens de
armas a atirarem pedras de mão contra os sitiados que se encontravam nos adarves, e,
após as escadas serem postas contra a muralha, iniciou o assalto que fez com que os
sitiados (que procuravam atingir os atacantes e os engenhos com pedras, cantos e fogo,
mas sem sucesso) acabassem por procurar chegar a um acordo para a sua rendição, face
à impossibilidade de resistirem ao assalto455. No segundo caso, no cerco de Tui, as
forças sitiantes lideradas por D. João I usaram uma grande escada, uma torre de assalto
e mantas para combater a cidade, acabando também por forçar a rendição da guarnição
sitiada456. A possibilidade da conjugação destes engenhos no ataque deveria “imprimir
ao assalto uma grande espectacularidade”457, de tal forma que em ambas as ocasiões o
451 CDJ I, 2ª, cap. XVIII, pp. 34-37. 452 Idem, Ibidem, cap. LXXIII, pp. 170-171. 453 Num processo que durou quinze dias, Idem, Ibidem, cap. CXXXV, p. 277. 454 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 278. 455 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, pp. 278-279. 456 Idem, Ibidem, cap. CXL, p. 288. 457 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229.
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monarca português convidou a rainha D. Filipa de Lencastre a deslocar-se aos cercos
para assistir ao desenrolar dos assaltos458.
A segunda forma de assalto às praças fortes era feita através da “utilização de
engenhos (neuro ou pirobalísticos)” 459 . Usufruindo do poder de destruição destes
engenhos, as forças sitiantes460 procuravam causar o maior dano possível nas diversas
estruturas fixas de defesa que auxiliavam os sitiados na sua resistência ao adversário,
retirando-lhes assim uma das principais vantagens na defesa do local. Ao derrubar torres
ou partes da muralha, os atacantes procuravam também abrir uma brecha por onde
pudesse ser lançado o assalto, permitindo a entrada de combatentes no interior do local
assediado. A destruição provocada pelos projécteis nas estruturas fixas poderia ainda
atingir os defensores que aí se encontravam, causando baixas entre os sitiantes e
aliviando assim a pressão que estes poderiam exercer sobre atacantes que estivessem
nas imediações das muralhas461.
Antes de iniciarmos o estudo destes engenhos de arremesso, de diversos tipos de
projécteis, “geralmente pelouros de pedra de peso variável, mas também materiais em
chamas”462, é necessário observar, em primeiro lugar, que, para o período estudado, as
fontes cronísticas indicam a utilização de “engenhos” nos palcos de guerra relatados,
sem, no entanto, serem especificados os tipos de engenhos presentes nos cercos. João
Gouveia Monteiro, ao alertar para este facto, refere que Fernão Lopes, embora fazendo
várias referências à presença dos engenhos nas operações militares por si narradas, não
foi nenhuma excepção e não distinguia os seus tipos, nomeando-os somente como
“engenhos”463. Assim, de entre os existentes na época, que se dividiam de acordo com a
sua forma de arremesso do projéctil, havia os engenhos que funcionavam por tensão ou
458 Melgaço, “E queremdo el-Rey mandar mouer os seus artefiçios pera combater o logar, fez saber a
Raynha que viesse ver o dia do combato. E veo entam ally” (CDJ I, 2ª, cap. CXXXVI, p. 278), e Tui, “E
mamdou por a Raynha ao Porto, que vyesse ver como combatião; e veo e estaua com el-Rey no cerco”
(Idem, Ibidem, cap. CXL, p. 288). 459 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 229. 460 Também as forças sitiadas poderiam fazer uso destes engenhos, como sucede, por exemplo, no cerco
de Chaves de 1386, no qual Fernão Lopes refere a existência de um engenho que dispara trinta pedras
contra uma torre de assalto (CDJ I, 2ª, cap. LXV, p. 155), ou no cerco de Melgaço de 1388, onde os
defensores da vila disparam trons (tipo de engenhos que será abordado mais à frente) constantemente ao
longo do assédio (Idem, Ibidem, caps. CXXXIV, CXXXV, CXXXVI, pp. 275-280). 461 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, pp. 235-236. 462 Idem, Ibidem, p. 236. 463 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 353-354.
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torsão de cordas (como a balista e a catapulta, “descendentes medievais das antigas
máquinas romanas”464, que recebiam designações como “algarrada”, a “mangana”, e o
“mangonnel”, considerados como “descendentes do célebre onager romano”465), e ainda
por contrapeso, como o trabuco. Seriam estes últimos, de acordo com João Gouveia
Monteiro, o tipo de engenho mais utilizado durante este período na guerra de cerco em
Portugal466 , se não mesmo os únicos que foram utilizados neste contexto 467 . Estes
engenhos de contrapeso468 tinham um maior poder de destruição do que os anteriores,
podendo disparar projécteis maiores e mais pesados, tendo assim um “efeito arrasador,
destruindo construções no interior das fortificações e abalando seriamente a estrutura
das muralhas”469. A frequente presença a que se assiste dos trabucos na poliorcética da
época justifica-se com a possibilidade de afinação com algum rigor da altura e da
distância do lançamento do projéctil470, através de ajustes efectuados “no braço e/ou no
contrapeso” 471 , permitindo um disparo relativamente certeiro de projécteis, que
poderiam ascender a mais de 100 quilos, às muralhas, torres ou outras estruturas que se
encontravam no local assediado472. Dois exemplos da utilização com sucesso destes
464 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 180. 465 Idem, Ibidem, pp. 180-181. 466 Idem, Ibidem, p. 181. 467 Idem, “3. Armamento de sítio”, in Pera guerrejar. Armamento medieval do espaço português, coord.
científica de Mário Jorge Barroca e João Gouveia Monteiro, Câmara Municipal de Palmela, Palmela,
2000, p. 409. 468 O trabuco de contrapeso “consistia numa longa trave assente num eixo suportado por dois grandes
cavaletes ou estruturas de madeira. Para armar o dispositivo, a ponta do lado mais comprido da trave era
rebaixada para que o projéctil fosse colocado numa funda, ou numa «colher» aí instalada, ficando a arma
então travada, através de um mecanismo de linguetas, até ao momento do disparo. Na outra extremidade,
elevada agora a alguns metros do solo, pendia uma caixa cheia de pedras, chumbo ou outros materiais
pesados, ou seja, o contrapeso. Assim que a máquina era destravada, a força exercida pelo contrapeso
fazia rapidamente descer essa mesma extremidade, elevando simultaneamente a oposta, imprimindo
velocidade à funda e soltando o projéctil, que descrevia uma trajectória parabólica até ao alvo”,
MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal
na Idade Média, p. 238. 469 BARROCA, Mário Jorge, "Da Reconquista a D. Dinis", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I,
pp. 145-146. 470 De tal forma que, por ordem de D. João I, a catedral de Tui não foi atingida em nenhum dos dois
cercos aí realizados, tanto em 1389 (“E de todas partes faziam grande destroyçam na cidade, saluo a see,
que nam tirauam”, CDJ I, 2ª, cap. CXL, p. 288) como em 1398 (caso referido no capítulo anterior do
acordo entre sitiados e sitiantes, “E el-Rey comsemtio em ello, porque lhe não prazia per nenhuum modo
que huma honrrada see antiga que ha na cidade, domde haa fama que jaz o corpo (de) frey Pero
Gonçalluez, recebesse nenhuum dapno da sua parte”, Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 359). MARTINS,
Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade
Média, p. 239. 471 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 239. 472 Idem, Ibidem.
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engenhos ocorrem nos cercos de Chaves de 1386473 e de Campo Maior em 1388474, nos
quais são destruídas, respectivamente, duas e uma torre. Um outro exemplo que
demonstra o potencial destruidor destes engenhos que poderiam permitir a abertura de
brechas nas muralhas ou a destruição de torres, ocorreu no cerco de Torres Vedras de
1384-1385. A discussão, já abordada no capítulo anterior, entre os “nom fiees
comsselheiros” e o mestre de artifícios sobre qual seria o melhor local para orientar os
disparos dos projécteis, se para uma parte das muralhas ou se para a torre de menagem e
um lanço dos muros, demonstra a confiança depositada no poder destrutivo destes
engenhos e na sua capacidade de criarem brechas pelas quais os agressores poderiam
invadir o perímetro amuralhado475.
Em relação ao transporte dos engenhos, dificultado pelo peso e dimensões
destes, embora fosse complicado, era possível fazê-lo, através da desmontagem e
montagem destes, o que por vezes facilitava e acelerava uma operação de cerco,
utilizando engenhos construídos para outras operações anteriores, transportados com a
hoste ou guardados em localidades ou fortalezas. Por exemplo, no segundo cerco de
Alenquer de 1384, após o cerco de Lisboa, o Mestre de Avis ordena o transporte de dois
engenhos de cerco e um trom de Lisboa, que são levados para o arraial por barcas476, e,
após ter sido bem sucedido nesse cerco, D. João dirige-se para Torres Vedras, onde João
Fernandes Pacheco já tinha iniciado o cerco à vila, levando consigo os engenhos de
cerco e o trom utilizados em Alenquer477. No cerco de Vila Viçosa de 1384, Nuno
Álvares Pereira ordena o transporte de um engenho de cerco vindo de Elvas, devido à
proximidade das vilas e para não ter que despender tempo na construção de um novo
engenho 478 . É necessário frisar ainda que devido à complexidade da construção,
montagem e manuseamento de engenhos de cerco a presença de elementos
especializados – os “mestres dos engenhos”, como são designados – nos exércitos era
fulcral para um uso eficiente destas armas479.
473 CDJ I, 2ª, cap. LXIV, p. 154. 474 Idem, Ibidem, cap. CXXXVIII, p. 282. 475 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 319. 476 Idem, Ibidem, cap. CLXVI, pp. 313-314. 477 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 317. 478 CDJ I, 1ª, cap. CLXXII, p. 323. 479 A estes especialistas eram atribuídos privilégios e recompensas, demonstrando a sua importância no
contexto de cerco da época. MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e
guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 236, e MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em
Portugal - nos finais da Idade Média, p. 357.
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Após este breve estudo sobre os engenhos neurobalísticos, passamos agora para
os engenhos pirobalísticos, sobre os quais Philippe Contamine defende que, ao longo do
último quartel do século XIV e do primeiro quartel do século XV (no contexto da
Guerra dos Cem Anos), estes tenham tido uma utilização reduzida quando comparada
com a dos engenhos neurobalísticos, que continuavam a ter um papel preponderante na
poliorcética da época480. A utilização da pólvora na Europa, e, por conseguinte, de
armas pirobalísticas, inicia-se, de acordo com aquele autor, no século XIV,
possivelmente em 1324 (num cerco a Metz) ou a partir de 1331, em Cividale, no
nordeste da Península Itálica, referindo ainda que estas armas são introduzidas na
Península Ibérica pelas mãos dos muçulmanos, com fontes hispânicas a referirem a sua
utilização pelos exércitos islâmicos na guerra contra Afonso XI de Castela em 1343481.
No contexto português, começam a surgir as primeiras armas de fogo, ou pirobalísticas,
como os trons ou as bombardas, pelo menos desde o reinado de D. Fernando482. Estas
armas disparavam projécteis de pedra ou ferro a grande velocidade e que poderiam
percorrer grandes distâncias. No entanto, nesta fase inicial, a pontaria e o alcance destes
disparos eram reduzidos, devido a factores como a falta de um qualquer mecanismo que
permitisse apontar com precisão (visto que somente era possível apontar a olho), o
vento483, ou a imprevisibilidade do projéctil à saída da boca de fogo, devido à rotação e
choques daquele ao longo do interior da arma, resultando assim numa maior dispersão
do tiro e numa redução considerável da velocidade inicial do disparo484. No entanto,
estas armas tinham ainda outras desvantagens, como as suas dimensões e peso, que
dificultavam o seu transporte, a cadência reduzida de disparo, os perigos no seu
manuseamento ou os seus custos de fabrico ou de aquisição, resultando assim numa
480 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, pp. 194-195. 481 Idem, Ibidem, pp. 138-139. 482 Nuno José Varela Rubim aponta para uma passagem na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes,
que permite constatar que, pelo menos desde 1381, já eram produzidas em Portugal armas pirobalísticas.
Para além disso, o mesmo autor refere ainda que, também de acordo com uma passagem da Crónica de D.
Fernando (Cap. CXXXIV), em 1382 algumas peças pirobalísticas já eram fabricadas em Évora. RUBIM,
Nuno José Varela, Sobre a possibilidade técnica do emprego de Artilharia na Batalha de Aljubarrota,
separata da Revista de Artilharia, Serviços Gráficos da Liga dos Combatentes, Lisboa, 1986, pp. 8-9 (nºs
725-726, Jan-Fev 1986, pp. 257-283) e RUBIM, Nuno José Varela, “3.2. Bocas de Fogo”, in Pera
guerrejar. Armamento medieval do espaço português, p. 417. 483 Nuno José Varela Rubim indica uma diferença de 9% entre as velocidades iniciais das bombardas do
século XIV e as do século XVI, causada por influência do vento (velocidades iniciais de 286 m/s e 315
m/s, respectivamente). RUBIM, Nuno José Varela, “Sobre a possibilidade técnica do emprego de
Artilharia na Batalha Aljubarrota”, Revista de Artilharia, p. 17. 484 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 181-183.
90
utilização pouco frequente, quando comparada com os engenhos neurobalísticos485. O
uso destes engenhos pirobalísticos era, na sua maioria, feita pelos sitiados486, visto que a
limitada mobilidade e ângulo de tiro dos primitivos trons e bombardas dificultavam o
seu uso pelos sitiantes487. Um exemplo desta dificuldade maior para os sitiantes é a
tentativa de utilização de um trom por parte das forças que montam cerco a Torres
Vedras em 1384-1385, no qual o Mestre ordena a colocação de um destes engenhos no
túnel que havia sido escavado para dentro da vila para ir destruindo os destroços
colocados pelos defensores à saída deste túnel, sem, no entanto, atingir o resultado
esperado, acabando por abandonar esse plano488. Existia, no entanto, a possibilidade de
utilizar as bocas-de-fogo de menor dimensão, por exemplo, a bordo de algumas
embarcações. A frota castelhana que se encontrava no rio Tejo a participar nos cercos
de Lisboa e Almada, em 1384, tinha alguns barcos equipados com bocas-de-fogo489.
Atentemos ainda em dois exemplos que demonstram as diferentes eficácias dos
engenhos neuro e pirobalísticos: o primeiro, no cerco de Chaves de 1386, no qual os
engenhos das forças sitiantes faziam grandes danos à vila e ao castelo, não só materiais
mas também causando baixas, enquanto o trom e o engenho que a vila tinha pouco dano
faziam ao arraial, mostrando que um uso eficaz dos engenhos dava uma grande
vantagem no conflito à força respectiva490. Um segundo exemplo é o cerco de Melgaço
de 1388, que durou 51 dias, com Fernão Lopes a relatar que “cada dia tirauão os troons
(e emgenhos huns aos outros); e o enjenho fazia muyto mal na villa. E os troons não
enpeçião nada” 491 , e no qual foram lançadas pelos sitiados 120 pedras de trons,
enquanto os sitiantes lançaram 336 pedras de engenho, mostrando o considerável fosso
na cadência de disparo entre as armas comparadas (cuja média resulta em,
respectivamente, cerca de 2 disparos de trons e 6 lançamentos de pedras por dia)492.
485 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 183. 486 Como acontece no cerco de Almada em 1384, onde as forças almadenses atingem com um disparo de
um trom um estrado no campanário da igreja de Santiago que o monarca castelhano havia ordenado
construir para poder observar o assalto à vila, matando dois combatentes castelhanos e ferindo outros três.
CDJ I, 1ª, cap. CXXXV, p. 235. 487 MONTEIRO, João Gouveia, A guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, p. 355. 488 CDJ I, 1ª, cap. CLXXIV, p. 326. 489 Idem, Ibidem, cap. CXXXIX, p. 242. 490 CDJ I, 2ª, cap. LXV, p. 155. 491 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 277. 492 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 279, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à
Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol.
I, pp. 279-280.
91
Os incessantes disparos destas máquinas de guerra por parte dos sitiantes, em
determinados casos tanto durante o dia como durante a noite493, e por vezes de vários
engenhos ao mesmo tempo494, criavam um ambiente de constante ameaça aos sitiados,
destruindo estruturas fixas de defesa ou edifícios e podendo resultar num elevado
número de ferimentos ou mortes dentro do local assediado, exercendo assim uma
intensa pressão psicológica sobre a guarnição e população cercadas que poderia levar à
rendição destes e à tomada da praça fortificada495.
Antes de prosseguirmos com as outras formas de conquista de praças, é
necessário referir a utilização em conjunto de engenhos de aproximação e de arremesso
de projécteis. O cerco de Melgaço de 1388 é um exemplo da pressão psicológica
exercida pelos vários tipos de engenhos, quando conjugados uns com os outros, pois,
como João Gouveia Monteiro assinala, “para além desta saborosa contabilidade dos
tiros trocados entre os beligerantes496 [...], deve sublinhar-se que boa parte da pressão
exercida pelos sitiadores se consumou graças ao fabrico de duas grandes escadas [...] e
de uma bastida”497.
A terceira forma de tomada de fortalezas era executada através da “escavação de
túneis (as cavas ou minas)”498 . Num processo algo moroso e complexo, as forças
sitiantes escavavam um túnel devidamente sustentado por vigas de madeira secas para
evitar um desmoronamento precoce e garantir a segurança dos assaltantes que aí se
encontravam, profundo o suficiente para ultrapassar fossos presentes no local,
493 No cerco de Chaves de 1386, “Os emgenhos jsso mesmo tirauom ameude de dia e de noite, e
deribauom no castello e na villa muytas casas, e matauom as gemtes e faziam muyto dano”, CDJ I, 2ª,
cap. LXV, p. 155. 494 No cerco de Braga de 1385, as forças sitiantes (a população toma a iniciativa de cercar o castelo, sob o
controlo de Vasco Lourenço, que tinha voz por Castela, juntando-se depois ao assédio um contingente
liderado pelo Condestável) aproveita os quatro engenhos que se encontravam na cidade para disparar
contra o castelo, e, quando o Condestável aí se encontra, os quatro engenhos disparam “contynuadamente
per espaço de duas noites e huum dya, de guisa que eram dentro no castello alguuns mortos e ferjdos”,
Idem, Ibidem, cap. XIV, p. 28. 495 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, pp. 239-240, e MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à
Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol.
I, pp. 229-230. 496 Referida anteriormente. 497 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 280. 498 Idem, Ibidem, p. 230.
92
direccionado às fundações das muralhas ou de torres499. Após o túnel atingir a distância
desejada pelos sitiantes, estes pegariam fogo aos materiais inflamáveis aí colocados que
acabaria por alastrar às vigas que sustentavam o túnel, fazendo este ruir e, assim,
desabar parte das muralhas ou uma torre, abrindo uma brecha pela qual os atacantes
poderiam invadir o local assediado500. Havia, no entanto, outra possibilidade para as
forças sitiantes, que consistia no prolongamento do túnel para além da cintura das
muralhas e para o interior do local cercado, criando assim uma entrada dentro do
período amuralhado, através da qual, durante a noite, um pequeno contingente de
combatentes sairia da cava de surpresa e poderia rapidamente dirigir-se às portas da
praça-forte, abrindo-as e possibilitando o assalto em força com o resto dos seus
companheiros501.
No segundo cerco de Alenquer de 1384, as forças sitiantes lideradas pelo Mestre
de Avis iniciam a escavação de um fosso a partir de uma casa nos arredores da vila, que
tinha como objectivo provocar o colapso de uma torre que se encontrava na porta de
Santa Maria da Várzea (ou também chamada de porta do Carvalho)502. Embora não
tenha sido terminado, este fosso foi um dos motivos pelos quais o alcaide Vasco Peres
de Camões acabou por se decidir por uma preitesia com o Mestre503.
Após Alenquer, as forças do Mestre dirigem-se para Torres Vedras, e cercam a
vila entre os finais de 1384 e inícios de 1385. Por ordem de D. João os sitiantes
constroem uma mina, “larga e espaçosa, de guisa que tres homeẽs darmas podiam hir
apar folgadamente per ella”504, com um intuito diferente: o de criar uma passagem até
ao adro da igreja de Santa Maria, “que he demtro no logar, amtre a villa e o castello”505.
O túnel foi construído sob grande secretismo a partir de uma tenda que se encontrava já
nos arrabaldes da vila, afastada do centro do arraial, e, assim, da atenção tanto dos
sitiados como dos sitiantes, esperando o Mestre que se mantivesse em segredo esta
acção, sendo a terra escavada transportada somente a coberto da noite. Para não levantar
499 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, pp. 241-242. 500 Idem, Ibidem, p. 241. 501 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 230. 502 CDJ I, 1ª, cap. CLXVI, p. 314. 503 Para além da sede que se começava a fazer sentir no interior da vila, também “as cavas [esta é a única
referência a cavas no plural neste cerco] que lhe faziam, e o emgenho gramde que armavõ pera lhe tirar”
convenceram o alcaide da “voomtade de comthinuar seu çerco” que o Mestre tinha. Idem, Ibidem, cap.
CLXVIII, p. 317. 504 Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 318. 505 Idem, Ibidem.
93
suspeitas, o Mestre passou, a partir de determinada altura, a visitar a tenda somente
durante a noite, de forma a não dar a entender a importância daquele local para as vigias
castelhanas e também para possíveis espiões no seio da sua hoste. Eventualmente, o
túnel é completado506 e D. João envia por este combatentes, liderados por João Gomes
da Silva, que encontram, no entanto, uma tenda à volta do buraco e grande resistência
por parte dos defensores, que haviam sido informados da construção do túnel e do local
onde este desembocaria pelos nossos já conhecidos “nom fiees comsselheiros” do
Mestre de Avis507. Para impedir a saída dos assaltantes, os sitiados utilizaram tábuas e
portas para estorvar a saída e atiraram água para apagar os fogos que os sitiantes
tentavam atear para destruir os materiais com que os defensores procuravam bloquear a
saída do túnel. O Mestre ordena então a colocação de um trom no túnel para ir destruído
os destroços, mas, no entanto, sem sucesso508.
O Mestre ordena depois a construção de um novo túnel em direcção à muralha
da vila, com o intuito de fazer desabar parte da muralha e torres e criar assim uma
passagem para dentro do perímetro amuralhado. A galeria é incendiada, abrindo a
brecha mas, uma vez mais, os defensores já sabiam das intenções de D. João e
reforçaram o local, com “cubas e tonees” e com uma bastida. A brecha estava então
eficazmente protegida pelos sitiados, de tal forma que Fernão Lopes relata que “de guisa
que omde o Meestre cuidou que ficasse per alli bem largo portall, pera emtrarem aa sua
voomtade, e elle porque o logar he amotado, ficou mais forte do que amte era, emtamto
que nenhuũ podia combater nem fazer cousa que lhe dano fezesse”, e D. João manda os
seus combatentes retirar, acabando por desistir de tomar a vila através desta forma509.
Como o exemplo deste último cerco demonstra, este método de tomada de
fortalezas era de elevada dificuldade de execução e eram vários os riscos que poderiam
frustrar os desígnios dos sitiantes. Estes teriam de levar a cabo a escavação do túnel de
forma discreta e prudente, sob o risco de os sitiados se aperceberem do plano dos seus
adversários e encetarem acções que impedissem o sucesso desta manobra. Para além
disso, era necessário que os intervenientes na escavação do túnel fossem indivíduos
peritos nesta prática para evitar derrocadas enquanto prosseguiam os trabalhos ou
mesmo para não calcularem mal a trajectória do túnel, correndo o risco de
506 Durante o processo, os sitiantes foram furando a terra, e tapando esse furo com barro, para observarem
o caminho que iam fazendo. CDJ I, 1ª, cap. CLXXIV, p. 325. 507 Idem, Ibidem, caps. CLXIX e CLXXIV, pp. 318 e 325-326. 508 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 326. 509 Idem, Ibidem.
94
desembocarem no local errado510. Por exemplo, no cerco de Almada de 1384 as forças
castelhanas escavam uma mina que, embora tivesse o intuito de chegar a uma torre da
vila, acaba, com erros de cálculo, por desembocar no fosso da barbacã, estando os
sitiados já preparados para receber os sitiantes, frustrando assim as forças de Juan I511.
O sucesso destas manobras até aqui descritas, caso a guarnição continuasse
ainda a resistir ao “desgaste e à debilitação prévia das forças adversárias e, acima de
tudo, das estruturas de defesas que as protegiam”512, permitia o desencadear de um
“assalto frontal massivo”513, contra uma guarnição já bastante enfraquecida, tendo assim
uma maior probabilidade de conseguir conquistar o local assediado.
Uma outra forma havia de proceder à conquista de uma praça-forte que não
envolvia a utilização dos diversos tipos de engenhos ou de processos morosos. Caso a
oportunidade surgisse, os atacantes poderiam recorrer a uma quarta e última forma, de
acordo com o modelo apresentado por João Gouveia Monteiro, que “consistia em
recorrer a um estratagema ardiloso”514 . Através de um plano astucioso, as forças
sitiantes tentariam com um ardil tomar o seu alvo de uma maneira menos arriscada do
que pela força bruta de um assalto frontal ou por um cerco prolongado, poupando assim
tempo, recursos e as vidas dos combatentes. No período observado nesta dissertação
encontramos alguns casos em que estes estratagemas são aplicados com sucesso,
momentos em que a astúcia se sobrepõe à força das armas.
Conjugados com estes estratagemas, era possível empreender assaltos furtivos às
fortalezas, que teriam de ocorrer sob o maior secretismo possível e com determinados
cuidados515 para que os atacantes pudessem aproveitar ao máximo o efeito de surpresa
sobre os defensores e assim fazer uso dessa vantagem. Para isso, os próprios
comandantes teriam que ter determinados cuidados na fase de planeamento da operação,
510 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 242. 511 CDJ I, 1ª, cap. CXXXV, p. 235. 512 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 235. 513 Idem, Ibidem. 514 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 230. 515 Estes cuidados eram de tal forma fulcrais e tinham que ser impostos com tal zelo que, por exemplo, no
cerco de Guimarães de 1385 D. João I ordenou aos seus combatentes que evitassem que os seus cavalos
relinchassem, e havendo “huum cauallo que rynchou, mandou logo el-Rey que o matassem”, CDJ I, 2ª,
cap. XI, p. 21.
95
de forma a evitar fugas de informação. Antes do assalto furtivo a Portel em 1384, Nuno
Álvares Pereira mantém as suas intenções em segredo somente entre os principais
envolvidos na operação, saindo de Évora ao final da tarde e indo em direcção a
Evoramonte, e, ao fim de uma légua, o seu contingente envereda “per hũa rribeira
affumdo, atravessamdo sempre sem caminho, ataa que foi sahir aa estrada que vai pera
Portell” 516 . Como forma de minimizarem os riscos de serem descobertos, os
combatentes poderiam armar-se com equipamentos mais ligeiros, de forma a
movimentarem-se mais depressa, com menos restrições de movimento e sem o ruído do
tilintar das suas armas e protecções517, e, ainda, arranjar formas de reduzir o relinchar
dos cavalos, como, por exemplo, sucedeu no cerco de Ponte de Lima, no qual, durante a
aproximação das forças de D. João I à vila, as línguas das montadas são atadas com fitas
feitas com as caudas dos cavalos518. Essas cautelas deviam ser tomadas, desde logo,
durante a aproximação às praças-fortes, que deveria ser feita à revelia da atenção dos
defensores, utilizando “estradas pouco frequentadas, afastadas das vias mais
movimentadas e, se possível, escondidas pelas irregularidades do terreno ou pela
cobertura vegetal”519, ou mudando subitamente o trajecto da hoste, como fez D. João I
antes de dar início ao já referido cerco de Ponte de Lima520. À partida, os assaltantes
teriam uma maior possibilidade de sucesso se a deslocação para o local ocorresse
durante a noite, principalmente em noites nubladas ou de lua nova, permitindo às forças
atacantes aproximarem-se do seu alvo a coberto da escuridão e, assim, evitar que
fossem descobertos pelos defensores. No entanto, a escuridão também dificultaria a
visibilidade dos atacantes no momento em que estes iniciassem a sua ofensiva, fazendo
com que os comandantes, na generalidade, preferissem reunir as suas forças num local
relativamente próximo do seu alvo mas afastado o suficiente para que não levantassem
suspeita, desencadeando o ataque ao amanhecer, pois embora não estivessem já a
516 CDJ I, 1ª, cap. CLVII, p. 295. 517 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, pp. 194. 518 “E ally ficou el-Rey (e) todo(s) a pee terra, deçidos das bestas, atando-lhe as lingoas com as sedas do
rabo por nom rincharem e poderem seer descubertos”, CDJ I, 2ª, cap. XVI, p. 31. 519 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 193. 520 De Guimarães “calladamente partio el-Rey [...] e fingeo que hija caminho do Moesteiro da Costa, pol-
lo nenhuum nom entender. Pero, nom embargamdo jsto, como se el-Rey Partio, logo huum homeem que
hij amdaua por emculca se foy apresa a Pomte de Lima e disse a Lopo Gomez: Sabee de çerto que el-Rey
he partido de Guimaraaes, e nom sabem pera homde vay. Mas afirma-sse desua hida que leua caminho
do Moesteiro da Costa; outros dizem que se vay a Villa Reall. – Certamente, disse Lopo Gomez, sobre
Villa Reall hira, [...]. El-Rey, himdo per aquell fingido caminho ja boom espaço, deu volta era Ponte de
Lima, e chegou bem noite aaquem do logar huuma legoa”. CDJ I, 2ª, cap. XVI, p. 31.
96
coberto da escuridão, este era o período do dia em que, por um lado, ainda grande parte
da guarnição e da população estaria a dormir e, por outro, as sentinelas, já cansadas e
sonolentas e a prepararem-se para terminarem os seus turnos de velas e roldas,
começavam a abrir as portas do local, tornando-se este período do dia num momento em
que as forças defensivas menos atentas e preparadas estariam para resistir a uma
ofensiva rápida e sem aviso prévio521. As condições climatéricas poderiam também
auxiliar as aproximações furtivas às fortalezas, com os atacantes a aproveitarem,
principalmente durante o Inverno, o tempo frio, nevoeiros, chuvas ou até neve,
condições estas que, para além de dificultarem a visibilidade aos defensores, poderiam
fazer com que as sentinelas não desempenhassem as rondas com o mesmo afinco do que
num clima menos agreste522.
A tomada do castelo de Monsaraz, ocorrida em 1384, é um destes exemplos de
conquista através de um ardil. Gonçalo Rodrigues de Sousa, senhor do castelo de
Monsaraz, que “se lamçara com os Castellaãos”523, ordenara ao alcaide desse castelo
que tomasse voz pelo rei castelhano. Atendendo à posição estratégica de relevo que o
castelo ocupava naquela região fronteiriça, Nuno Álvares Pereira, que se encontrava em
Évora, ao saber que a guarnição do castelo era reduzida, que “o escudeiro que era
Alcaide, nom tiinha comssigo salvo sua molher, e pouco homeẽs, e que estava
mimguado de mantiimento”524, procura uma forma de tomar a fortaleza, que facilitaria a
execução de operações militares na região. Nuno Álvares Pereira ordena então que um
seu escudeiro levasse dez a doze homens consigo e que se infiltrassem no arrabalde de
Monsaraz esperando pela libertação de algumas vacas nas proximidades do local para
assim atrair os castelhanos a saírem do castelo e a deixá-lo indefeso. Prevendo que
aqueles, graças à situação de iminente falta de mantimentos, sairiam pela porta de
Solórquia525 e que não a fechariam até trazerem de volta o gado, Nuno Álvares Pereira
põe em prática o seu plano, lançando o isco em direcção a um vale próximo da vila. O
alcaide, ao ver as vacas “teve que Deos lhe tragia boa vemtuira pella porta”526, saindo
521 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, pp. 194-196 522 Idem, Ibidem, pp. 194-195. 523 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, p. 256. 524 Idem, Ibidem. 525 Miguel Gomes Martins refere a existência das portas da Vila, de Évora, da Alcoba e do postigo do
Buraco no perímetro amuralhado da vila, acrescentando que, no entanto, não é possível saber qual destas
seria a porta de Solórquia referida nas fontes narrativas. MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra
– Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 57. 526 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, p. 257.
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rapidamente com alguns homens com o intuito de trazerem as vacas para o castelo,
caindo assim no engodo. Estando a porta da vila aberta e sem guarda, os assaltantes, que
se encontravam por entre “alguũas casas mais chegadas bem açerca do castello; e outros
tras penedos e barramcos que ssom jumtos muito preto”527, entram na vila e tomam
facilmente controlo do castelo528.
No assalto furtivo a Portel, ocorrido nos inícios de Novembro de 1384, a acção
de um “clerigo de missa”529 local chamado João Mateus é fulcral na conquista desta vila
pelas forças afectas de Nuno Álvares Pereira. Este clérigo arranja moldes em cera das
chaves de uma porta da vila e dirige-se a Évora, onde fala com Nuno Álvares Pereira,
referindo o seu desejo que Portel tomasse voz pelo Mestre de Avis. As cópias das
chaves são feitas e, após voltar a Portel e verificar que estas funcionavam, volta de novo
a Évora, onde Nuno Álvares Pereira elabora um plano para tomar o castelo de Portel.
Assim, Nuno Álvares sai de Évora com um contingente de combatentes530, e, a coberto
da noite, percorrem as seis léguas até Portel, chegando de madrugada às imediações da
vila 531 . Aí esperam por um sinal de João Longo (que juntamente com outros
companheiros portugueses estavam encarregues da vigilância das muralhas e das torres
da praça-forte e haviam sido convencidos por João Mateus a cooperar com o plano de
Nuno Álvares e a rebelarem-se contra a guarnição castelhana) que indicaria a presença
de combatentes castelhanos a rondar aquele lanço das muralhas na altura532. As forças
assaltantes, após a passagem da rolda castelhana, dirigem-se até à porta, “o mais
calladamente que sse fazer pode”533, aberta entretanto pelo clérigo534, entrando assim na
vila, onde são vistos por alguns defensores castelhanos que fazem soar imediatamente o
alarme. Este aviso, no entanto, veio tarde pois as forças de Nuno Álvares Pereira535 já se
encontravam dentro do perímetro amuralhado. Todo este alarido acorda o fronteiro D.
Garcia Fernández, líder da guarnição, e os seus combatentes, que, na pressa de
527 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, p. 256. 528 Idem, Ibidem, cap. CXLIII, pp. 256-257. 529 Idem, Ibidem, cap. CLVII, p. 294. 530 Que, como já foi acima referido, saem de Évora com destino a, supostamente, Evoramonte. 531 “com os baçinetes nas cabeças, e suas acostumadas armas com as lamças nas maãos”, CDJ I, 1ª, cap.
CLVII, p. 295. 532 “E os da vela que disto tiinham esperto cuidado, como semtirom que eram açerca, e cirom viinr a
rrollda pello muro, começarom de braadar apupamdo: Ex a rraposa vai! Eylla rraposa vay! que era o
çerto sinall amtrelles”, Idem, Ibidem. 533 Idem, Ibidem. 534 “que dabrir as portas tiinha moor cuidado que de rrezar as matinas”, Idem, Ibidem, cap. CLVII, pp.
295-296. 535 Que, após o alarme dos defensores, ordena também que toquem as suas trombetas.
98
chegarem ao castelo, equipam-se mal, sendo assim facilmente capturados pelos
atacantes que se encontravam já no interior da vila. Através deste assalto furtivo, as
forças sitiantes conseguem cercar o castelo, e, sob a ameaça de Nuno Álvares Pereira de
que combateria o castelo “logo e o rromperia per tres partes”536, a guarnição castelhana
rende-se uns dias depois537.
No cerco de Guimarães de 1385, a passagem da primeira cerca pelas forças de
D. João I é feita graças a Afonso Lourenço, que pede a João Azedo, porteiro da porta do
Postigo, que de madrugada tivesse a porta aberta, pois este “andaua soo e querja trager
huma cuba em humm carro, [...], pol-lo nenhuum veer”538. O porteiro acedeu e tinha a
porta aberta à hora combinada, sendo depois atacado por Paio Rodrigues e um grupo de
combatentes avançado, que passaram a guardar a porta, colocando-se também no muro
para estorvar qualquer tentativa de defensores que se apercebessem da situação. Afonso
Lourenço chega à porta pouco depois e faz sinal a quem estava de atalaia, que por sua
vez avisa o rei, que assim cavalga com as suas forças em direcção à porta. Embora um
escudeiro de Aires Gomes da Silva, alcaide-mor, se tenha apercebido da situação e
tenha feito soar o alarme, grande parte das forças afectas a Castela, apanhadas
desprevenidas, fogem em direcção à protecção das muralhas da alcáçova, eclodindo
pequenas escaramuças dentro da vila que são resolvidas rapidamente a favor das forças
portuguesas (que contaram ainda com o apoio da população). Ao fim de poucas horas as
forças de D. João I tinham então sob o seu controlo a vila baixa e iniciam assim um
cerco à alcáçova já a partir do interior da vila, que se prolongaria por mais um mês539.
Importa referir que nestes dois últimos cercos a acção de habitantes da praça-
forte, vistos de uma certa perspectiva como acções de traição a favor dos assaltantes,
conferia uma maior probabilidade de sucesso a este tipo de assaltos.
A tomada de Badajoz em 1396 é um outro exemplo de como um ardil e um
assalto furtivo poderiam surpreender com sucesso a guarnição de um local e dar a
vitória com uma relativa facilidade às forças assaltantes. Meses antes da tomada,
Martim Afonso de Melo e Gonçalo Eanes de Cão reúnem-se para engendrarem um
plano para fazer entrar um contingente de combatentes na cidade e assim tomá-la. Para
ganhar a confiança de um porteiro local, essencial para o plano, Gonçalo Eanes
536 CDJ I, 1ª, cap. CLVIII, p. 296. 537 Idem, Ibidem, cap. CLVIII, pp. 297-298. 538 CDJ I, 2ª, cap. XI, p. 22. 539 Idem, Ibidem, cap. XI, pp. 21-23.
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convence-o a ir durante a noite até Elvas buscar um monte de trigo abandonado
(deixado aí por Martim Afonso) e que seria repartido com o referido porteiro. A mulher
do porteiro manteria a porta aberta à espera do regresso do seu marido e de Gonçalo
Eanes. Este processo repetir-se-ia várias vezes, fazendo com que o porteiro confiasse
então em Gonçalo Eanes.
O casamento de Martim Afonso com D. Beatriz, filha de João Afonso
Pimentel 540 , viria a adiar o plano, assim como uma crescente desconfiança dos
habitantes de Badajoz em relação a Gonçalo Eanes (fazendo com que este abandonasse
a cidade e se dirigisse para Sevilha de forma a apaziguar essa mesma desconfiança541).
Passados cerca de nove meses542 estes dois encontram-se de novo em Évora, e Gonçalo
Eanes convence Martim Afonso a uma vez mais tentarem tomar Badajoz, não se
importando de correr o risco e voltar à cidade543. Embora a sua entrada tenha sido
proibida, Gonçalo Eanes consegue entrar em contacto com o porteiro com quem tinha
transportado várias vezes trigo a coberto da noite meses antes, avisando-o que viria
durante a noite a Badajoz trazendo animais carregados com trigo 544 . Assim, na
madrugada do dia 12 de Maio, Gonçalo Eanes encontra-se com o porteiro, que já tinha a
porta aberta e afastam-se um pouco da torre em que esta se encontrava, dizendo o
português para que o porteiro esperasse um pouco por si enquanto ia buscar os animais.
Gonçalo Eanes encontra-se com Martim Afonso, que estava perto de Badajoz com um
contingente de combatentes, e, após dominarem o porteiro, leva dez destes até à porta,
onde estava a mulher do porteiro à espera (que é depois posta em sua casa, garantindo
que não daria alarme), enquanto Martim Afonso se aproximava com os restantes
combatentes. O grupo de Gonçalo Eanes é descoberto enquanto esperava pela chegada
de Martim Afonso, envolvendo-se numa escaramuça no adarve com os guardas
castelhanos que estavam aí de guarda, deixando a entrada livre para o resto dos
combatentes. Badajoz oferece pouca resistência, exceptuando duas torres que
eventualmente são também tomadas, visto que chegam a Badajoz contingentes de
540 CDJ I, 2ª, cap. CLVI, pp. 326-327. 541 Idem, Ibidem, cap. CLVI, pp. 327- 328. 542 O dia da tomada de Badajoz ocorreu no “dia dAçensão do anno de iiij.ᶜ xxxiiij, avemdo noue meses
que se este segredo amdaua goardado”, Idem, Ibidem, cap. CLVIII, p. 333. 543 Idem, Ibidem, cap. CLVII, pp. 328-329. 544 Idem, Ibidem, cap. CLVII, p. 330.
100
combatentes a pé e a cavalo vindos de Elvas, Olivença e Campo Maior, liderados por
Álvaro Coitado para apoiar na tomada da cidade545.
Havia ainda um outro tipo de estratagemas, “mais cruéis”546, a que os sitiantes
poderiam recorrer para forçar a guarnição de uma fortaleza a render-se. Colocando
familiares do alcaide ou de membros da guarnição sitiada nos engenhos, na funda dos
engenhos de arremesso ou no topo dos engenhos de aproximação, os atacantes
procuravam pressionar os defensores e impedir que estes atacassem esses artifícios,
“divididos entre a obrigação de resistir ao assalto e a repugnância natural em ver morrer
os seus próprios familiares!”547, ou ameaçando matar esses mesmos parentes à vista da
guarnição, impotente em relação a esta acção.
Na conquista do castelo de Lisboa em 1383, Martim Afonso Valente, alcaide em
representação do conde João Afonso Teles, envia um escudeiro ao conde para informá-
lo da situação, referindo que os habitantes de Lisboa ameaçavam colocar os familiares
da guarnição em cima da “gata” que seria utilizada no assalto ao castelo548.
Também em Estremoz e em Évora, nas tomadas dos respectivos castelos entre os
últimos dias de 1383 e primeiros de 1384, as populações locais, que estavam contra a
regência de D. Leonor Teles e os termos acordados em Salvaterra de Magos entre o
falecido rei D. Fernando e Juan I, recorrem a estes estratagemas. No primeiro caso, a
população de Estremoz exige que o alcaide saia da cidade e que lhes entregue o castelo
e, face à recusa deste em fazê-lo, a população prepara-se para tomar a fortaleza,
colocando familiares de elementos da guarnição num carro que haviam posto na praça.
A guarnição, face à ameaça aos seus familiares, pede ao alcaide que entregue o
castelo549.
Em Évora, perante a dificuldade que a população teria em tomar o castelo, “o
quall era mui forte de torres e muro, e çerco de cava, e mui maao de tomar sem gram
trabalho”550, os atacantes juntam os familiares dos defensores e colocam-nos em carros,
545 Idem, Ibidem, cap. CLVIII, pp. 330-334. 546 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 230. 547 Idem, Ibidem. 548 CDJ I, 1ª, cap. XLI, pp. 70-71. 549 Idem, Ibidem, cap. XLIII, p. 76. 550 Idem, Ibidem, cap. XLIV, p. 77.
101
amarrados, e aproximando-os do castelo551. Os atacantes exigiram que o alcaide lhes
desse o controlo do castelo, ameaçando que queimariam os familiares dos defensores à
vista da guarnição552, e de seguida puseram fogo às portas da fortaleza. O alcaide,
deparando-se com esta situação, e temendo também a reacção dos atacantes caso fosse
capturado, reuniu-se com o seu contingente e decide entregar a praça553.
Estas eram então as formas de que os sitiantes dispunham para conquistarem um
ponto-forte, gorada a hipótese de os sitiados se renderem por outros meios ou para os
sitiantes forçarem o fim do cerco a seu favor, antes que estes corressem o risco de eles
próprios serem forçados a abandonar o assédio. Através de uma aproximação e de uma
aplicação de pressão às estruturas fixas de defesa, fosse pelo assalto de combatentes ou
pela sua destruição, ou através de assaltos de surpresa, traições ou enganos, os exércitos
medievais recorriam às medidas que tivessem ao seu dispor para poderem, finalmente,
conquistar a praça-forte e dar por terminado o cerco, controlando assim a fortaleza e o
espaço que esta dominava.
551 “era huũm jogo que os poboos meudos em semelhamte caso, muito customavom entom de fazer”, CDJ
I, 1ª, cap. XLIV, p. 77. 552 Fernão Lopes refere ainda que a tomada do castelo foi mais célere e fácil, visto que era bem
defensável, devido a esta táctica, “O castello era bem forte, e çerto he que nom fora tomado tam a pressa,
da guisa que o foi, se nom fora aquell modo que teverom em poer as molheres e filhos dos que demtro
eram em çima daquelles carros”, Idem, Ibidem, p. 78. 553 Idem, Ibidem, caps. XLIV e XLV, 77-80.
102
CAPÍTULO V – APÓS A VITÓRIA
O prolongamento da operação de cerco poderia resultar num assalto frontal
decisivo, fosse pela estratégia delineada pelos comandantes atacantes ou porque a
conjuntura assim os obrigaria, procurando então os sitiantes a conquista do local através
da força das armas, num assalto frontal decisivo. Para os sitiados, esta perspectiva
representaria um desfecho do conflito extremamente desfavorável. A conquista do local
daria aos sitiantes o controlo total sobre a vida e o destino dos sitiados, o que poderia
resultar em inúmeras atrocidades cometidas contra os derrotados, tais como massacres
ou violações, escravatura, pilhagens, apropriação ou destruição de bens, móveis e
imóveis554. Por exemplo, na tomada de Arronches, em 1384, após as portas do castelo
serem queimadas e os combatentes liderados por Nuno Álvares Pereira entrarem no
castelo pela força, prendem cavaleiros castelhanos, enviando-os posteriormente para
Elvas, apropriando-se das armas e cavalos da guarnição555.
Assim, os sitiados, quando confrontados com um cerco cuja possibilidade de
saírem vencedores era diminuta, procuravam iniciar negociações com os sitiantes para a
sua rendição, tentando assim evitar as atrocidades que provavelmente se seguiriam à
entrada das forças que atacavam a sua localidade 556 . A possibilidade de poderem
negociar uma saída do conflito com as suas vidas, e, por vezes, com os seus bens, ao
invés de sofrerem às mãos dos atacantes, era então uma perspectiva bastante sedutora
para os sitiados557. Estas negociações poderiam ocorrer a qualquer momento do cerco,
se fosse esse o entendimento entre ambas as partes, mas o arrastar das operações
poderia diminuir a generosidade dos sitiantes, pois os riscos tomados por estes
multiplicavam-se e cresciam gradualmente558.
Contudo, as operações de cerco acarretavam bastantes dificuldades para as
forças em conflito, tornando o recurso às negociações como uma solução apelativa a
ambas as partes, para evitarem o arrastamento do cerco e todos os riscos que isso
554 “Storm gave the attacker complete control over the lives and fate of the defeated, almost any atrocity
was given the cloak of legality: rape, enslavement, killing, in addition to the seizure of homes and
property”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 317. 555 CDJ I, 1ª, cap. XCVI, pp. 161-162. 556 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, pp. 439-440. 557 CONTAMINE, Philippe, War in the Middle Ages, p. 102. 558 No cerco de Melgaço de 1388, D. João I chegou a considerar não negociar qualquer tipo de preitesia
com os sitiados, querendo “tomal-los per força por se vingar dalgumas desmessuradas pallauras que
contra elle dizião per vezes”, CDJ I, 2ª, cap. CXXXVI, p. 279.
103
traria559. Eram, por vezes, os próprios sitiantes que procuravam iniciar as negociações
para se chegar a acordo para o fim do cerco560. O número de baixas que crescia ao longo
do assédio, os custos associados ao arrastar da operação ou os diversos padecimentos a
que os sitiantes poderiam ser sujeitos neste período faziam com que a perspectiva de um
acordo com os seus adversários, fustigados também por diversas vicissitudes, fosse do
agrado dos atacantes561. “Uma solução negociada convinha, pois, a ambas as partes”562.
Por exemplo, na sequência da conquista da vila de Portel, em 1384, o alcaide
Fernão Gonçalves de Sousa, que ainda resistia no interior do castelo, enceta negociações
para discutir os termos para a rendição da sua guarnição com Nuno Álvares Pereira,
para tentarem chegar a “algũu preitejamento razoado”563 para a entrega da fortaleza564.
Também os cercos de Alenquer, o segundo de 1384565, de Chaves, 1386566, ou Melgaço,
em 1388567, entre outros, terminam com acordos entre ambos os comandantes e não
com um combate levado até às últimas instâncias.
Os comandantes de ambas as forças em conflito568 procuravam então acordar
uma preitesia, o compromisso negociado entre ambas as partes569. Neste momento, era
geralmente acordado um período de 30 a 40 dias para que o alcaide informasse o seu
senhor da impossibilidade da sua guarnição em continuar a resistir, por si só, à pressão
dos sitiantes e a defender a fortaleza, pedindo para que fosse enviado socorro ou a
autorização para a entrega do comando da praça-forte ao seu adversário570. Nos cercos
559 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 560 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 440. 561 MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais da Idade Média, pp. 368-369. 562 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 443. 563 CCP, cap. XXXVII, p. 107. 564 Já perto do final do cerco de Lisboa de 1384, as forças castelhanas procuram a rendição dos sitiados,
com o emissário castelhano, de acordo com Fernão Lopes, a dizer ao Mestre que a cidade estava cercada
por terra e mar, os mantimentos escasseavam, e, sendo o Mestre filho de rei, não deveria querer ser
derrotado dessa forma, mas através de uma preitesia ser-lhe-iam entregues honras e mercês dadas por
Juan I, CDJ I, 1ª, cap. CXLI, pp. 250-251. 565 Idem, Ibidem, cap. CLXVIII, p. 317. 566 CDJ I, 2ª, cap. LXIX, p. 164. 567 Idem, Ibidem, cap. CXXXVI, p. 280. 568 Os comandantes – habitualmente cavaleiros – vencidos na época receariam não receber um tratamento
adequado ao seu estatuto social, geralmente negociando ou rendendo-se somente a outros cavaleiros,
garantindo assim que, após o fim das hostilidades, ficassem sob a protecção do seu congénere,
BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 301 e 304. 569 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 570 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 441. É necessário ainda
referir que o estabelecimento destes prazos de cessar-fogo poderia beneficiar a guarnição sitiada devido
104
de Campo Maior de 1388 571 e de Chaves de 1386 572 , são acordados entre os
comandantes das forças em oposição os prazos de 30 e 40 dias, respectivamente, para a
entrega das fortalezas na ausência de auxílio em socorro dos sitiados. No entanto, os
comandantes sitiantes nem sempre seriam tão benevolentes, como se sucedeu no cerco
ao castelo de Lisboa de 1383, no qual os sitiantes dão somente 40 horas à guarnição
para avisarem o conde D. João Afonso Teles, um período que não permitia ao conde
planear qualquer hipótese de ripostar contra as forças afectas ao Mestre573.
A solicitação feita pelo comandante sitiado ao seu senhor para a rendição da
fortaleza era, na generalidade, uma forma deste conseguir capitular de forma honrosa,
pois esta seria feita com a autorização do seu senhor574, sendo frequente na época o
senhor aceder ao pedido do pelo seu súbdito, reconhecendo que a insistência na defesa
não resultaria numa vitória das suas forças575.
É isto que ocorre no cerco Guimarães de 1385, no qual o alcaide Aires Gomes
da Silva envia o seu genro, Gonçalo Marinho, a Córdoba, onde se encontrava Juan I. O
monarca castelhano elogia a defesa de Guimarães, tendo já conhecimento do que aí se
sucedia, mas informa que lhe era impossível ir em socorro de Aires Gomes, pois os
recursos e a estratégia que Juan I estava prestes a aplicar (uma nova incursão da hoste
real castelhana no reino de Portugal) não lhe permitiam socorrer as suas forças sitiadas.
Assim, o alcaide, ao saber da resposta do rei de Castela, age conforme o que havia sido
acordado, entregando o castelo a D. João I e abandonando a cidade576. No cerco de
Chaves de 1386, o alcaide Martim Gonçalves de Ataíde informa o monarca castelhano
da preitesia realizada com o rei português devido à impossibilidade de continuar a
resistir às forças portuguesas. Juan I, por esta altura, procurava auxílio junto do rei
francês Carlos VI, na forma de combatentes ou de dinheiro, para poder prosseguir com a
guerra contra Portugal (e para isso precisava de recuperar das perdas sofridas na derrota
aos períodos de serviço militar pelos quais os combatentes sitiantes se regiam, pois este prolongamento
poderia significar o fim do tempo de serviço estipulado, forçando os comandantes atacantes a procurarem
forma de pagarem soldos extraordinários para evitarem o desmembramento da sua hoste ou forçarem a
empreender um assalto directo ao local, ao invés de procurarem uma preitesia com as já debilitadas forças
sitiadas, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 326. 571 CDJ I, 2ª, cap. CXXXVIII, p. 282 572 Idem, Ibidem, LXIX, p. 164 573 CDJ I, 1ª, cap. XLI, p. 71 574 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 300. 575 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 325-326. 576 CDJ I, 2ª, cap. XIII, p. 27.
105
na batalha de Aljubarrota)577, mas, naquele momento, não lhe era possível acorrer em
auxílio do seu vassalo, escrevendo a Martim Gonçalves que “lhe quitaua a menagem
que por o logar feita tinha”578.
Havia, no entanto, ocasiões em que o pedido de auxílio ao senhor do castelo não
era contemplado na preitesia579, decorrendo negociações para a imediata rendição e
entrega da fortaleza, em troca da garantia de saída a salvo da guarnição, ou até mesmo
da população sitiada, com ou sem os seus bens, como é o caso do cerco de Portel em
1384580.
Ocorriam ainda, por vezes, trocas de reféns entre as forças em conflito, durante
as negociações entre os comandantes ou durante o período de tréguas que pudesse vir a
ser acordado nessas conversações. Esta oferta de reféns era então “in essence an
extension of the truce” 581, uma forma de garantir que as promessas seriam cumpridas,
pois, caso contrário, os reféns teriam a sua vida à mercê dos seus adversários,
motivando assim o cumprimento do acordado. No cerco de Lisboa de 1384, de acordo
com Fernão Lopes, há uma troca de reféns antes do início de umas negociações entre o
Mestre e Pero Fernández Velasco, próximas do fim do cerco582, assim como sucede na
tomada de Almeida, em 1386, onde Gonçalo Vasques Coutinho vai para esta praça
como refém, enquanto D. João I e Lopo Gonçalves Pé-de-Ferro, alcaide local,
negoceiam a rendição da guarnição castelhana583.
Ao longo do período de negociações e tréguas observavam-se determinadas
práticas comuns nesta conjuntura, como a cessação das hostilidades, não podendo
ocorrer assaltos ou sortidas de ambos os lados, ou a proibição de reabastecimentos ou
obras de recuperação para os sitiados, ou o deslocamento ou a construção de novos
577 CDJ I, 2ª, cap. LXVI, p. 160. 578 Idem, Ibidem, cap. LXIX, p. 165. 579 Os sitiantes, por vezes, podiam eles mesmos impedir o pedido de auxílio dos sitiados, como sucede em
Calais, no ano de 1346: “The besieged did try to send out messages to the French king. One messenger
was seen, and as he was pursued, threw his message into the sea tied to an axe. Unfortunately for his
efforts, the next morning the tide washed the message ashore: it described the suffering and need of the
citizens and begged for supplies. It said that they were eating cats and dogs, and all that remained was to
eat each other: they would have to surrender if they did not receive supplies or relief. Edward III, with
some wit, forwarded the message to Philip VI”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 158. 580 CDJ I, 1ª, cap. CLVIII, pp. 297-298, e MONTEIRO, João Gouveia, A Guerra em Portugal - nos finais
da Idade Média, p. 370. 581 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 311. 582 CDJ I, 1ª, cap. CXLI, p. 249. 583 CDJ I, 2ª, cap. LXXIII, pp. 170-171.
106
engenhos de cerco por parte dos sitiantes584. Embora os acordos fossem geralmente
cumpridos e os comandantes esperassem que os tratos fossem respeitados585, em alguns
casos, contudo, os sitiados poderiam, à revelia dos sitiantes, aproveitar este período de
tréguas para ganhar alguma vantagem sobre o adversário. No entanto, caso os sitiantes
se apercebessem dessas acções, isto seria um motivo para o fim do cessar-fogo e para o
retomar das hostilidades, com tudo o que isso significava, nomeadamente para a vida
dos reféns586. No já referido cerco de Guimarães, após os comandantes terem acordado
um prazo de 30 dias para a rendição da guarnição, surge entre os atacantes o rumor de
que os defensores estariam a colocar gado dentro do castelo (abastecendo-o), o que ia
contra o acordo estabelecido e levou as forças sitiantes a retomarem o combate587.
O objectivo destas negociações era, geralmente, a garantia da salvaguarda das
vidas dos sitiados e, por vezes, também dos seus bens, em troca do controlo desse
local588. Retomando uma vez mais o cerco de Guimarães, o alcaide-mor Aires Gomes
da Silva e D. João I acordam o seguinte: se Juan I não acorresse à vila no prazo de 30
dias, a guarnição render-se-ia e sairiam todos os combatentes derrotados incólumes da
vila, inclusive os seus familiares589. O cerco de Almada de 1384 termina após uma
preitesia que garante aos almadenses as suas vidas, mantendo também as suas
habitações e as suas posses590. As negociações para a rendição da guarnição de Portel,
em 1384, estabeleceram que os bens que haviam sido roubados à guarnição sitiada ser-
lhe-iam devolvidos e seria também garantido salvo-conduto até Castela, tendo por guia
um escudeiro de nome Diogo Lopes até à fronteira para salvaguardar a segurança, de
acordo com Fernão Lopes (ou ficando Nuno Álvares Pereira, comandante atacante, com
a garantia de que os combatentes derrotados não encetariam uma tentativa de
reconquista do local)591. Na tomada de Almeida, em 1386, por exemplo, é acordado
entre as forças sitiadas e D. João I a saída da guarnição e dos seus apoiantes do local
sem incorrerem qualquer risco de vida e levando consigo os seus bens592. Por seu turno,
584 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 585 “Often the agreements indicate a degree of trust between the two sides, and clearly, on the whole, it
was expected that agreements once made would be kept”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 297. 586 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 587 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 25 588 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 441. 589 CDJ I, 2ª, cap. XII, p. 25 590 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVII, pp. 237-238. 591 CCP, cap. XXXVII, pp. 108-109. 592 CDJ I, 2ª, cap. LXXIII, p. 171.
107
no segundo cerco de Tui ocorrido neste conflito, em 1398, a guarnição e apoiantes da
coroa castelhana são expulsos da cidade com as suas vidas, mas sem os seus bens, com
os derrotados a saírem da cidade, dirigindo-se aos sitantes que “somente apupauão-lhe,
escarneçemdo delles, e mais nam”593. De facto, em alguns casos, no entanto, os sitiados
derrotados rendiam-se somente pelas suas vidas, “the lowest agreement, and the least
that the defeated would expect”594. Um último exemplo é a tomada de Neiva, em 1385,
na qual à mulher do alcaide (que assume as negociações com Nuno Álvares Pereira,
comandante sitiante, após a morte do seu marido no decorrer do assalto) é dado salvo-
conduto até Ponte de Lima, onde se encontrava o seu pai, Lopo Gomes de Lira, que
tinha voz por Castela595.
Por vezes, a perspectiva de uma solução negociada não agradava aos
combatentes sitiantes, principalmente quando a vitória parecia ser iminente596 e o saque
posterior bastante apelativo597, levando a que muitos combatentes se insubordinassem e
ignorassem as ordens dos seus comandantes, “geralmente mais preocupados em
alcançar objectivos à custa do mínimo sacrifício de vidas humanas e de bens
materiais”598, continuando assim as hostilidades e levando, por vezes, ao fim das tréguas
acordadas599. Em caso de quebra das negociações, os sitiantes continuariam então o
assédio até que a guarnição se rendesse, fosse por pressão directa (como um assalto à
fortaleza) ou indirecta (as diversas vicissitudes às quais uma força sitiada era sujeita)600.
Atendendo aos riscos associados ao prolongamento de um cerco, tanto para
sitiados como sitiantes, era assim natural que grande parte dos cercos na época
terminasse com uma preitesia, ao invés de ambas as forças levarem o confronto até às
593 CDJ I, 2ª, cap. CLXXIV, p. 375. 594 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 327. 595 CDJ I, 2ª, cap. VI, p. 15. 596 Como sucede no cerco de Ponte de Lima, em 1385, no qual D. João I rejeita o pedido de Lopo Gomes
para enviar um mensageiro ao monarca castelhano, alegando que já tinha a vila e todas as torres sob o seu
controlo salvo uma, na qual se encontrava o resto da guarnição, Idem, Ibidem, cap. XVIII, pp. 34-36. 597 “The division of spoil was a matter to be settled by the victors. Surrender terms sometimes resulted in
the winning of spoil, but one reason that armies often preferred victory by storm, if it could be achieved,
was that it gave the right to spoil”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 323. 598 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, p. 232. 599 Idem, Ibidem. 600 MARTINS, Miguel Gomes, A Arte da Guerra Em Portugal - 1245 a 1367, p. 441.
108
últimas instâncias601. Ao longo do conflito observado nesta dissertação, dos 27 cercos
que terminaram com a vitória dos sitiados, 20 foram através de preitesias602.
Após as negociações terminarem, o alcaide e a guarnição derrotada rendiam-se,
deixando o controlo da fortaleza nas mãos das forças vitoriosas, podendo então, como
acordado, abandonar o local603. Os combatentes vitoriosos podiam, por fim, entrar no
espaço que lhes havia resistido. Para simbolizar a conquista da praça-forte e para
assinalar o fim efectivo do cerco, as forças sitiantes vitoriosas colocavam a sua
bandeira, o seu estandarte ou o pendão no interior da praça-forte num local de destaque
que permitisse que estas insígnias pudessem ser avistadas por quem quer que se
aproximasse do local 604 , geralmente na sua porta principal, como acontece em
Villalobos, em 1387, onde a bandeira do duque de Lancaster é hasteada após a
conquista da vila pela hoste anglo-portuguesa605, ou num dos edifícios mais altos do
lugar, sendo exemplo disso a colocação da bandeira de D. João I pela mão do seu alferes
numa torre da sé de Tui, no final do cerco ocorrido em 1398606. Desta forma, aquela
fortaleza ou povoação mostrava assim que prestava menagem ao seu novo senhor.
As preitesias estabelecidas entre os comandantes das forças em conflito num
cerco nem sempre contemplavam a saída ou expulsão dos elementos derrotados que
participaram na defesa do local. Por vezes, os derrotados acordavam uma troca de
fidelidades, tomando voz pelo partido dos sitiantes, passando assim a reconhecer a
autoridade das forças vitoriosas e a prestar menagem a um novo senhor. Na tomada de
Villalobos, inserida na campanha anglo-portuguesa de 1387, os derrotados acederam a
tomar voz pelo duque de Lancaster, oferecendo ainda alguns mantimentos às forças do
duque e encetando trocas comerciais com os combatentes da hoste607. O primeiro cerco
de Tui, ocorrido em 1389, termina com o comandante sitiado derrotado, Paio Serôdio, a
601 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 324-325. 602 No “Quadro 5 – Durações, Datas, Estações e Resultados dos Episódios”, é possível verificar os
diversos resultados ocorridos nestas operações durante o conflito. 603 MONTEIRO, João Gouveia, "De D. Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os Desafios
da Maturidade", in Nova História Militar de Portugal, Vol. I, pp. 231-232. 604 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 317. 605 CDJ I, 2ª, cap. CIX, p. 229. 606 Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 375. 607 Idem, Ibidem, cap. CIX, p. 228.
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tomar voz por Portugal (contudo, este acabaria por fugir da cidade ao fim de quatro
dias, o que levou a que D. João I entregasse-a a Gonçalo Vasques Coutinho)608.
O final do cerco de Guimarães de 1385 demonstra uma divisão entre as forças
derrotadas. Após ser acordada a rendição da guarnição sitiada, à saída deste contingente,
de acordo com Fernão Lopes, 53 escudeiros e combatentes a pé decidem ficar e servir
D. João I, com o rei a conceder-lhes perdão e a entregar-lhes os bens que “dados eram,
mas nom os que lhe forom tomados na entrada da ujlla”, não seguindo então o caminho
que o alcaide e fronteiro Aires Gomes da Silva (que vê, também, todos os seus bens
confiscados) e os seus restantes companheiros tomaram após a sua derrota609.
Por último, vamos ver uma outra situação na qual, após o fim do cerco, os
comandantes acordam entre si uma tomada de voz por parte dos sitiados derrotados com
determinadas condições. A preitesia feita no final do segundo cerco de Alenquer de
Dezembro de 1384, que culmina com a vitória das forças do Mestre, estabelece a
tomada de voz de Alenquer pelo regente, o Mestre, com Vasco Peres de Camões a
manter-se como alcaide do local e a expulsar todos os homens de armas e besteiros
castelhanos, enviados para Santarém, garantindo, no entanto, que, caso a rainha D.
Leonor voltasse ao reino “em seu livre poder, sem companha de Castellaãos pera ajudar
a deffemder o rreino”, a vila seria entregue à rainha610. Contudo, passado pouco mais de
um mês, a 21 de Janeiro de 1385, Vasco Peres de Camões toma de novo voz por
Castela, levantando “huũ pemdom na torre da menagem”, prometendo mercês aos
elementos que D. João havia aí deixado que quisessem apoiar Juan I e deixando sair da
vila aqueles que recusassem essa proposta611.
Como já foi referido acima, sem ser realizada uma preitesia, os sitiados, em caso
de derrota, ficavam sujeitos aos desígnios das forças vitoriosas, impedidos, assim, de
decidir por si próprios o seu futuro. Por vezes, o destino dos derrotados significava
sujeitarem-se à captura por parte dos sitiantes. Na tomada de Arronches de 1384, após a
conquista do castelo, os combatentes derrotados que tinham voz por Castela (onde se
incluíam cavaleiros castelhanos, como Afonso Sanchez, Gonçalo Sanchez de Gumtes ou
Sancho Sanchez, trinta lanças castelhanas e ainda elementos portugueses) “forõ todos
608 CDJ I, 2ª, cap. CXL, pp. 288-289. 609 Idem, Ibidem, caps. XII e XIII, pp. 25-28. 610 CDJ I, 1ª, cap. CLXVIII, pp. 316-317. 611 Idem, Ibidem, cap. CLXXIX, pp. 337-339.
110
tomados”, com Afonso Sanchez e Sancho Sanchez a serem levados para Elvas612. Em
Ponte de Lima, no cerco de 1385, após não se ter concretizado um acordo entre Lopo
Gomes da Silva (alcaide sitiado) e D. João I, as forças sitiantes conseguem a rendição
do que restava da guarnição através da força, sendo Lopo Gomes, os seus familiares e
os seus apoiantes feitos prisioneiros e enviados para o Porto613. Na tomada de Badajoz
em 1396, as forças portuguesas capturam somente figuras proeminentes como Garcia
Gonçalves de Grijalba, marechal de Castela, e o bispo da cidade, e os atacantes“ aos
outros nam fazião nenhuum nojo, nem lhe tomauão coussa do seu”614. A captura destas
figuras importantes, para além de poderem valer um resgate considerável, poderiam
prejudicar a reacção dos seus adversários pois os seus líderes encontravam-se presos e
não podiam assim exercer as suas funções.
Mas não era somente no fim de um cerco que combatentes eram feitos
prisioneiros. Ao longo de um cerco, a qualquer momento, como, por exemplo, em
sortidas ou escaramuças, os intervenientes corriam risco de ser aprisionados pelos seus
adversários. No início do cerco de Almada de 1384, o contingente castelhano que dá
início à operação começou por atrair uma força de almadenses, liderada por Diogo
Lopes Pacheco, para fora da vila, emboscando-os e fazendo prisioneiros, entre outros, o
próprio Diogo Lopes e ainda Afonso Galo, regedor local. O Mestre, ao saber da captura
de Diogo Lopes615, enceta negociações com o monarca castelhano, oferecendo Juan
Ramirez de Arellano em troca da libertação do português616. No cerco de Lisboa de
1384, aquando do agravar do surto de peste que se fazia sentir no arraial de Juan I, os
sitiantes, segundo Fernão Lopes “por vimgamça e menemcoria”, juntaram os
prisioneiros portugueses com os castelhanos doentes, na esperança que os seus
adversários “morressem pestellemciados”617.
Após a conquista da praça-forte e a garantia de que o local estava, enfim, sob o
controlo total dos sitiantes vitoriosos, iniciava-se então “o momento de proceder à
612 CDJ I, 1ª, cap. XCVI, p. 162. 613 CDJ I, 2ª, cap. XVIII, pp. 35-37. 614 Idem, Ibidem, cap. CLVIII, p. 333. 615 Que Juan I “tiinhao preso no arreall, avemdo dell gramde queixume”, CDJ I, 1ª, cap. CXVI, p. 200. 616 D. João “comprou Joham Ramirez dArelhano a Perrim Gascom e a Diegue Esteveẽz, cujo prisoneiro
era”, Idem, Ibidem. 617 Idem, Ibidem, cap. CXLIX, p. 273.
111
pilhagem e à divisão do espólio”618, altura em que os combatentes receberiam a sua
recompensa pela sua participação no cerco que havia sido bem sucedido619. A pilhagem
deveria ser feita somente a partir do momento em que o lugar estivesse sob o controlo
das forças conquistadoras, para evitar um frenesim por parte dos combatentes na busca
de riqueza, pois estes e os seus companheiros poderiam ser expostos a riscos
desnecessários620. De acordo com Fernão Lopes, quando as forças de D. João I entram
na vila no cerco de Guimarães de 1385, João Rodrigues de Sá, na tentativa de chegar às
portas da cerca interior e impedir a retirada dos combatentes castelhanos para dentro da
alcáçova, encontra-se, subitamente, sozinho e frente-a-frente com um grupo de cerca de
vinte adversários, pois “nenhuum portugues acompanhaua Joham Rodriguez, mas
andauom pella villa roubamdo das cousas dos castellaãos que achauom em casa dos
ospedes”621.
Antes de se iniciar o saque do local era necessário, em primeiro lugar, que os
comandantes determinassem o modo como a pilhagem se iria processar, indicando o
momento em que esta se iniciaria, bem como estabelecendo a repartição do espólio de
uma forma justa entre os combatentes, de forma a satisfazê-los e a não originar conflitos
entre estes622. Por exemplo, também no cerco de Guimarães, após a entrada e controlo
das forças sitiantes na parte da vila que se encontrava entre a cerca exterior e a
interior623, D. João I somente consente o saque a propriedades castelhas e a apoiantes de
Aires Gomes da Silva (alcaide e fronteiro do local), protegendo da pilhagem “os da uilla
[que] veherom todos beijar a maão a el-Rey, reçebemdo-o por senhor”624. Na tomada de
Roales no decorrer da campanha anglo-portuguesa de 1387, os habitantes daquele
618 MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em
Portugal na Idade Média, p. 319. 619 Só após o local estar totalmente sob o controlo dos sitiantes e com o novo comandante escolhido para
governar a praça-forte é que os sitiantes poderiam proceder à pilhagem, para, desta forma, esta realizar-se
num ambiente controlado e sem descurar o objectivo principal das forças atacantes. Idem, Ibidem. 620 Idem, Ibidem. 621 CDJ I, 2ª, cap. XI, p. 23. 622 “The restoration of order was a vital matter for the victorious commander; it was usually important to
satisfy his own nobles and men”, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 323-324, e MARTINS,
Miguel Gomes, Guerreiros de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade
Média, p. 319. 623 A “vila baixa”, em oposição à “vila alta, ou seja, a alcáçova”, MARTINS, Miguel Gomes, Guerreiros
de Pedra – Castelos, muralhas, e guerra de cerco em Portugal na Idade Média, p. 258. É necessário
ainda referir que esta situação, a vila/cidade sob o controlo dos sitiantes enquanto o que resta da
guarnição sitiada continua a resistir a partir do castelo, acontece com alguma frequência na guerra de
cerco medieval, como são os casos de, por exemplo, Guimarães ou a tentativa de tomada de Alenquer em
1384 (CDJ I, 1ª, cap. CIX, pp. 184-186), BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 332. 624 CDJ I, 2ª, cap. XI, p. 23.
112
local625, ao se aperceberem de que não tinham forma de se defenderem, acordam com as
forças atacantes a sua saída da aldeia, permitindo assim a pilhagem do lugar, sendo este
“roubado de mantimentos e de quanto hij auya”626. Por último, no cerco de Tui de 1398,
após o acordo entre sitiantes e sitiados para a entrega da cidade ser concretizado, os
bens dos sitiados627 são reunidos no interior da sé, procedendo-se depois à divisão do
espólio. Antes de sair da cidade, o monarca português nomeou Lopo Vasques como
fronteiro e “deu-lhe a riqueza que hy foy achada, pera elle e pera os que com elle
fycaram por goarda do lugar”628.
Na campanha anglo-portuguesa supramencionada existe um exemplo de uma
pilhagem que ilustra a existência de normas rígidas neste processo. Na tomada de
Valderas, logo a seguir a Roales, é acordada a entrega da vila ao duque de Lancaster e o
saque é planeado da seguinte forma: os ingleses poderiam saquear até ao meio-dia e os
portugueses, depois, até à noite. Contudo, segundo Fernão Lopes os combatentes
ingleses começaram a entrar na vila e os portugueses, ao verem isto, entraram também.
O duque dirigiu-se a D. João I, dizendo que os portugueses tinham começado a saquear
antes do permitido e que estavam a roubar o que os ingleses tinham também tirado.
Perante este desrespeito pelas normas acordadas, o rei foi à vila expulsar os portugueses
que aí estavam indevidamente, “leuamdo huuma espada nas maãos, fazia sayr fora,
damdo com ella aos que achaua pellas ruas, de guissa que ouue hij feridos e [2] mortos
per tall aazo”629.
Estando o local controlado, a escolha do novo alcaide era então uma tarefa de
elevada importância, pois seria este o encarregado de defender a fortaleza recém-
conquistada e de nela restabelecer a ordem. Assim, Fernão Lopes faz referências
frequentes nos finais dos seus relatos de cercos à nomeação do novo alcaide, como
acontece, por exemplo, na tomada de Neiva, em 1385, onde Nuno Álvares Pereira, antes
de sair do local, nomeia Afonso do Casal como alcaide630, ou no segundo cerco de Tui,
em 1398, cidade na qual fica como alcaide e fronteiro Lopo Vasques, comendador-mor
625 “Ally nom estauom gentes darmas, saluo lauradores, assy do logar come das aldeas daredor”, CDJ I,
2ª, cap. CV, p. 220. 626 Idem, Ibidem, cap. CV, p. 221. 627 Os derrotados chegaram a pedir a D. João I, embora sem sucesso, que este lhes permitisse sair da
cidade com os seus bens. Idem, Ibidem, cap. CLXXIV, p. 375. 628 Idem, Ibidem. 629 Idem, Ibidem, cap. CVII, pp. 223-224. 630 Idem, Ibidem, cap. VI, p. 15.
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da Ordem de Avis na época631. É importante referir ainda que a defesa do local não era
descurada após a conquista. Nos acontecimentos acima mencionados, Neiva632 e Tui633,
por exemplo, Fernão Lopes refere a permanência de contingentes de combatentes que,
às ordens do seu novo alcaide, teriam como responsabilidade a defesa da localidade
conquistada.
A posse do local também era um assunto que teria de ser determinado após a
vitória das forças sitiadas, cabendo ao líder da hoste (ou do partido pelo qual este
lutava) a escolha de quem iria tornar-se no novo senhor da fortaleza ou da povoação.
Por exemplo, após o cerco de Chaves de 1386, D. João I oferece a vila e os seus direitos
a Nuno Álvares Pereira634, em quem depois recai a escolha do novo alcaide, com o
Condestável a nomear um seu escudeiro de nome Vasco Machado635. Um documento
proveniente da coroa (rei ou regente) confirmaria a mudança da posse do castelo, como,
por exemplo, sucede após a tomada de Monsaraz, em 1384. Gonçalo Rodrigues de
Sousa, senhor do castelo de Monsaraz e que “se lamçara com os Castellaãos” 636 ,
ordenara ao seu alcaide que tomasse voz pelo rei castelhano. Nuno Álvares Pereira, em
Julho de 1384, toma de assalto a fortaleza e expulsa a guarnição castelhana, passando o
controlo do castelo e da vila para as forças afectas ao Mestre637. Este, a 24 de Setembro
de 1384, emite um documento no qual condena a acção e traição de Gonçalo
Rodrigues638 e entrega a vila de Monsaraz, juntamente com todos os seus respectivos
631 CDJ I, 2ª, cap. CLXXIV, p. 375. 632 O cronista refere que o Condestável deixa com Afonso do Casal alguns homens de armas e
combatentes a pé, Idem, Ibidem, cap. VI, p. 15. 633 Antes de sair de Tui, D. João I deixa na cidade Lopo Vasques como alcaide e fronteiro e “deu-lhe a
riqueza que hy foy achada, pera elle e pera os que com elle fycaram por goarda do lugar”, Idem, Ibidem,
cap. CLXXIV, p. 375. 634 Algo frequente neste período de conflito, com o monarca português a premiar o contributo do
Condestável para a sua causa, dando-lhe também, por exemplo, Guimarães, em 1385, Idem, Ibidem, cap.
LXIX, pp. 163-164. 635 Idem, Ibidem, cap. LXIX, p. 164. 636 CDJ I, 1ª, cap. CXLIII, pp. 256. 637 CCP, cap. XXXII, pp. 89-91. 638 “lhe fazemos pura e irreuogauel doaçam antre viuos valedoira pera sempre de todas as terras e beeens
de todos e de todas as outras cousas que / o dicto gonçallo rodriguez ha e auja em estes regnos de que
lhe nos agora nouamente fizemos mercee ou doutros quaãesquer que fossem que perteencesem aa coroa
dos dictos regnos Reseruando os que elle auja de seu patrimonjo porque fizemos delles mercee a outrem
Porquanto ho dicto gonçallo rodriguez staua em nossa companha na cidade de lixboa e recebera o nosso
soldo de nos e outras mujtas cousas E nom esguardando as mercees que assy de nos recebeo foe se pera
el rrey de castella nosso Jmjgo e sta agora em nosso deserujço e destes regnos”, ChDJ I, Vol. I, Tomo I,
fols. 39–39 vº, Doc. 294 “doaçam da villa de monsaraz a meem Rodriguez de uasconcellos”, p. 154.
114
direitos, a Mem Rodrigues de Vasconcelos 639 , oficializando e efectivando assim a
mudança da posse do castelo.
Após a conquista de uma fortaleza cercada, como já referimos, os sitiados
acabariam por ficar à mercê das forças vitoriosas, correndo assim o risco de serem alvos
da violência que poderia seguir-se à entrada dos sitiados. No entanto, no conflito tratado
nesta dissertação, raros foram os casos de violência cometidos contra os sitiados na
sequência da capitulação de uma praça-forte, já que, por norma, eles parecem ter sido
cometidos no decurso dos cercos640. Por exemplo, um navegante capturado enquanto
transportava trigo para Lisboa sitiada em 1384, é “preso e arrastado, e deçepado e
emforcado” pelas forças castelhanas641. No cerco de Torres Vedras de 1384/1385, após
ser descoberta uma tentativa de traição a D. João por elementos que estavam na sua
hoste642, um dos responsáveis, Garcia Gonçalves de Valdés, é feito prisioneiro e, após
confessar a sua parte nesse estratagema, é queimado vivo, pois o Mestre “nom o quis
mandar matar de simprez e honesta morte, mas cruell de fogo, e grave de sofrer”643.
Como retaliação, o alcaide sitiado João Duque “mamdou tomar huũs seis ou sete
Portugueeses, homẽes de trabalho que tiinha presos, e mamdouhos todos deçepar das
maãos e fanar dos narizes, e poer todallas maãos ao collo dhuũ delles, e mamdouhos
assi ao Mestre”, levando este a considerar “lamçar na fumda do emgenho demtro aa
villa os prisuneiros que tiinha castellaãos”644. Um outro exemplo ocorre antes de Juan I
abandonar o cerco a Elvas em 1385, onde o monarca castelhano ordena que se
decepasse um prisioneiro da vila, enviando o prisioneiro “com huum scprito ao
pescoço” em que avisava que o monarca faria o mesmo a todos os que se encontrassem
na vila quando a conquistasse. Como resposta, Gil Fernandes ordena que o mesmo seja
639 “E queremos e mandamos que o dicto meem rodriguez possa tomar auer e cobrar a posse e senhorio da
dicta villa e lugares que o nom leixem por ello de fazer sua obra pella guisa que dicto he
E mandamos que o dicto meem rodriguez tenha de nos o castello da dicta vila de monsaraz e nos faça por
elle menagem E aia tidas as proees e djreitos delle”, ChDJ I, Vol. I, Tomo I, fols. 39–39 vº, Doc. 294
“doaçam da villa de monsaraz a meem Rodriguez de uasconcellos”, p. 155. 640 Talvez porque grande parte dos cercos em que os sitiados vencem terminam com preitesias, como já
anteriormente foi mencionado. No decorrer da Guerra dos Cem Anos, por exemplo, ocorrem alguns casos
de extrema violência contra as guarnições e populações vencidas, com Jim Bradbury a destacar os
massacres por parte de forças inglesas no cerco de Limoges, em 1370 (no qual participou o duque de
Lancaster, que em 1387 lideraria, juntamente com D. João I, a hoste anglo-portuguesa), e em Caen, no
ano de 1417, BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, pp. 161 e 166. 641 CDJ I, 1ª, cap. CXLVIII, p. 268. 642 Idem, Ibidem, caps. CLXXV, CLXXVI, CLXXVII, pp. 327-334. 643 Idem, Ibidem, cap. CLXXVII, pp. 333-334. 644 Idem, Ibidem, cap. CLXXVIII, p. 335.
115
feito a dois prisioneiros castelhanos, enviando-os para o arraial com a mensagem de que
deceparia os outros oitenta prisioneiros que tinha consigo em Elvas se o castelhano
voltasse a decepar algum elvense, acabando o rei por levantar o cerco e deslocar-se para
Ciudad Rodrigo (pelo caminho, no entanto, em Arronches reúne dezassete homens
locais e decepa-os)645. De acordo com Fernão Lopes, no cerco de Almada de 1384, por
exemplo, após os almadenses se recusarem a entregar a vila e após a morte de um
cavaleiro castelhano com um disparo de um trom, Juan I jura “que todos aviam de
morrer aa espada” 646. Contudo, o cerco acabaria com uma preitesia – por pressão da
rainha D. Beatriz –, como já foi acima referido, com o rei, após a rendição da vila, a
convocar os seus habitantes, ordenando-lhes que estes lhe fossem leais, oferecendo-lhes
benefícios, acedendo a alguns pedidos que lhe foram feitos, ordenando aos tabeliães a
escreverem em seu nome, e manteve os mesmos juízes da vila, não concretizando, pois,
o monarca a sua ameaça647.
No entanto, o caso da tomada do castelo de Évora por forças populares, no dia 2
de Janeiro de 1384, é um exemplo de violência ocorrida após a conquista de uma
fortaleza. Após a saída do alcaide e da sua guarnição, o castelo é saqueado e incendiado.
De seguida, a população acabaria por “sse mover per brava sanha, multiplicamdo novos
queixumes, comtra quem lhe nom avia feito erro; husavom de seu livre poder,
desdenhamdo quem aa primeira tomavõ por capitaães”, forçando “grandes do logar” a
abandonarem a cidade e acabando por matar a abadessa de São Mateus num episódio
particularmente violento. De acordo com Fernão Lopes, um grupo de populares
liderados por Gonçalo Eanes, pastor, e Vicente Eanes, alfaiate, encontra a abadessa
escondida na sé648 e aí tiram-lhe as roupas, arrastando-a para a rua, fazendo-a percorrer
parte da cidade até à praça, onde um elemento da população dar-lhe “huũa cuitelada
pella cabeça, de que cahiu morta em terra, e desi os outros começarom de acuitellar per
ella, cada huũ como lhe prazia”. Deixam o corpo da abadessa nessa praça, “forom
comer, e buscar outros desemfadamentos” e só à noite a vão buscar, “[lançam-lhe] huũ
645 CDJ I, 2ª, cap. XXVI, pp. 53-54. 646 CDJ I, 1ª, cap. CXXXVI, p. 236. 647 Idem, Ibidem, cap. CXXXVII, pp. 237-238. 648 Fernão Lopes avança duas hipóteses para esta perseguição à abadessa: Gonçalo Eanes havia
convencido os seus companheiros a matar “a alleivosa da Abadessa, que he paremta da Rainha e sua
criada”, ou a abadessa havia insurgido-se contra a acção destes populares, dizendo “Ex os bevados!
Amdam com sa bevedice, leixadeos vos, ca aimda sse elles mall ham de achar por estas cousas que
amdam fazemdo”, Idem, Ibidem, cap. XLV, p. 79.
116
baraço nos pees, e levaromna arrastamdo ataa o Ressio, açerca do currall das vas; e
leixamdo alli aquell desomrrado corpo”649.
Antes de concluirmos este capítulo, observaremos de forma breve as relações
entre os intervenientes nas operações de cerco. Estando perante um contexto de uma
localidade cercada durante um período que, à partida, se desconhecia quando poderia
terminar, sob a ameaça de um adversário que poderia causar a morte dos locais, e vice-
versa, e ainda as vicissitudes referidas ao longo do terceiro capítulo, as relações entre
sitiados e sitiantes eram, geralmente, de rivalidade e de inimizade, originando episódios
extremamente cruéis e violentos no decorrer de alguns cercos. Os acontecimentos acima
mencionados, relatados por Fernão Lopes na sua crónica, demonstram a violência que
poderia ocorrer num cerco, gerada pelo factor emotivo humano ou com um propósito
estratégico de incutir o receio nos oponentes.
Contudo, durante os cercos analisados nesta dissertação são alguns os momentos
em que as relações entre sitiados e sitiantes amenizaram um pouco, encontrando ambas
as partes períodos em que o conflito se suaviza, havendo até tempo para inimigos
conviverem uns com os outros. No cerco de Lisboa de 1384, no último dia de Agosto,
ocorre um casamento entre o conde de Mayorga e a filha do, entretanto falecido, conde
D. Álvaro Peres de Castro, com o Mestre a acompanhar a noiva “de rredea”, em vez do
falecido conde, e o conde D. Gonçalo, recebendo-a, leva-a, e à sua mãe, com os outros
homens que os seguiram de volta para o arraial650.
Em Chaves, no cerco de 1386, D. João I enviava todos os dias um cântaro de água
à mulher do alcaide, Mícia Vasques Coutinho, “por amor de seu jrmão Gomçallo
Vaasquez”, que se encontrava na hoste sitiante651. No mesmo cerco, enquanto decorria o
período de tréguas previsto na preitesia realizada entre o monarca português e Martim
Gonçalves de Ataíde, alcaide local, para que este último avisasse Juan I, “hiam alguns
demtro aa villa a falar ao alcayde e a Mjçia Vaasquez, quamdo lhe prazia”, incluindo
um escudeiro chamado Afonso Madeira, que tinha “boom conhecimento” do alcaide e
da sua esposa652.
649 CDJ I, 1ª, cap. XLV, p. 79-80. 650 Idem, Ibidem, cap. CXLI, p. 252 651 CDJ I, 2ª, cap. LXIV, p. 154. 652 Idem, Ibidem, cap. LXVI, p. 159.
117
Por ocasião da Páscoa de 1387, a hoste anglo-portuguesa encontrava-se a cercar
Benavente de Campos, por ocasião da campanha do duque de Lancaster em Castela, e aí
“fallando os de demtro com os de fora como he costume aa salua ffee”653 organizaram-
se justas654 entre um combatente português, Álvaro Gomes, criado do Condestável, e
um escudeiro castelhano, e também entre o cavaleiro inglês Maaborny e monse Roby.
Enquanto as justas decorriam, D. João I garantiu aos habitantes da localidade castelhana
que estes podiam vir assistir e conviver sem correrem qualquer risco (exceptuando um
castelhano que, por “desmesuradas pallauras comtra el-Rey”655, foi agredido por Álvaro
Coitado)656.
Mesmo em questões relacionadas com o próprio combate, havia por vezes
abertura para dialogar entre ambas as partes, como demonstra o sucedido no cerco de
Tui de 1398. Desde o início do cerco que as forças de D. João I começaram a utilizar os
seus engenhos contra Tui, de tal forma que ambas as partes acabaram por acordar o
seguinte trato: os sitiantes não disparariam os seus engenhos durante a noite para não
atingirem a catedral e os sitiados não utilizariam setas envenenadas no decorrer do
assédio657.
As operações de cerco resultavam em períodos de constante conflito, onde seria
natural o surgimento de violência entre os seus intervenientes. Era um momento de
guerra em que as forças em confronto eram adversárias directas e onde as vidas dos
participantes estavam sempre em risco de se perderem. E a par dessa violência corrente,
existiam ainda casos em que se atingia patamares de grande crueldade.
No entanto, os exemplos acima apresentados mostram uma outra face dos
cercos: havia também, no decurso destes, lugar para momentos de paz, de festa, de
confraternização e de espírito cavaleiresco. Embora existissem muralhas que separavam
os sitiados dos sitiantes neste conflito entre Portugal e Castela, muitos destes indivíduos
tinham relações de parentesco ou amizade com adversários, havendo ainda uma
653 CDJ I, 2ª, cap. CII, pp. 217 654 “as quaaes auyam de seer coridas a cauallo com baçinetes de camal sem escudos, nom mais de tres
careiras”, Idem, Ibidem. 655 Idem, Ibidem. 656 Idem, Ibidem, caps. CII e CIII, pp. 217-218 e 218-219. 657 “El-Rey pos seus engenhos aredor della, que tirauão de cada parte. E por muyto dapno que faziam, foi
pretejado desta guyssa: Que os engenhos nam tirassem de noute nem os de demtro nam lançassem
nenhumas seetas com erua. E el-Rey comsemtio em ello, porque lhe não prazia per nenhuum modo que
huma honrrada see antiga que ha na cidade, domde haa fama que jaz o corpo (de) frey Pero Gonçalluez,
recebesse nenhuum dapno da sua parte”, Idem, Ibidem, cap. CLXIX, p. 359.
118
observância e respeito pelas práticas religiosas, bem como a procura de uma vivência na
guerra que fosse honrada, à luz dos valores cavaleirescos.
Com o fim deste capítulo termina também a demonstração do processo que
consistia numa operação de cerco em Portugal nos finais do século XIV, tendo estudado
as forças e os combatentes que participavam nestes conflitos, as preparações prévias que
tanto sitiados como sitiantes teriam de observar para que o assédio lhes corresse de
feição, os diversos perigos a que todos os envolvidos estavam sujeitos ao longo do
período de combate, as variadas formas como a conquista da fortaleza ou da povoação
se poderia verificar. Neste capítulo vimos então a maneira como se processava o
estabelecimento e a afirmação de poder das forças vitoriosas sobre os derrotados nos
locais recém-conquistados, mostrando as várias questões com que o comandante da
hoste vencedora teria de lidar após o combate terminar, como os diversos aspectos dos
acordos feitos entre os comandantes em conflito, o processo de tomada de voz por um
novo senhor, o que sucedia aos combatentes aprisionados no decorrer de uma operação
de cerco, como se efectivava o controlo da fortaleza ou da localidade nas mãos da
facção vencedora, bem como exemplos da violência que poderia ocorrer durante o cerco
ou a seguir à entrada das forças vitoriosas no lugar que havia sido tomado.
119
CONCLUSÃO
Chegamos ao final desta dissertação, tendo tido a oportunidade de analisar e
melhor compreender a importância das operações de cerco no âmbito da guerra
medieval e a forma como estas se processavam no conflito que opôs dois reinos
ibéricos, Portugal e Castela, entre os anos de 1383 e 1398.
Este estudo deu-nos a oportunidade de analisar 39 operações de cerco, todas com
as suas próprias peculiaridades, desde assaltos frontais ou furtivos a cercos
convencionais, conjugações de bloqueios navais e marítimos, ardis ou até mesmo
revoltas populares. Em comparação, nos cerca de quinze anos que este estudo observa
ocorreram somente quatro batalhas campais (e logo nos primeiros anos do conflito,
Atoleiros, em 1384, Trancoso, Aljubarrota e Valverde, em 1385), o que traz à memória
as palavras de Jim Bradbury que, com algum exagero, define a guerra na Idade Média
como sendo composta por “perhaps one per cent battles and ninety-nine per cent
sieges”658. Encontramos assim as operações de cerco com um grande peso no quadro da
estratégia militar, embora a guerra medieval não se fizesse somente de cercos ou
batalhas, sendo necessário dar o devido destaque também às acções de “guerrilha”,
como as cavalgadas. Não fugindo à regra, os comandantes militares que lideraram os
exércitos nesta guerra procuraram através de uma estratégia de aproximação indirecta o
domínio do território, conjugando diversos cercos com algumas incursões, com o
objectivo de debilitar e desgastar o seu adversário, para assim forçarem o seu inimigo a
capitular, e, deste modo, saírem vitoriosos. É claro que não se pode diminuir a
importância que as batalhas tiveram neste conflito entre Portugal e Castela,
principalmente a de Aljubarrota, que se saldou numa pesada derrota que impediu a
progressão desta hoste no território português, frustrando os planos de invasão de Juan
I. Mas este desfecho está ligado a um outro episódio militar ocorrido cerca de um ano
antes. A derrota castelhana no cerco de Lisboa de 1384, para além de não ter terminado
com a conquista da urbe lisboeta – a “chave do reino” –, terminou com um elevado
número de baixas sofridas no seio da cadeia de comando castelhana, o que pode ter tido
influência no modo como a hoste do monarca castelhano foi comandada em Aljubarrota
e significou um rude golpe para as pretensões de Juan I à coroa portuguesa.
658 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 71.
120
Ao longo deste trabalho foi-nos possível também estudar os diversos
preparativos que tanto sitiados como sitiadores faziam nos momentos que antecediam
uma operação de cerco, procurando reforçar as vantagens de que dispunham e atenuar
as suas fraquezas para resistirem ou atacarem da forma mais eficaz o seu inimigo. Estes
preparativos, como pudemos observar, seguiam determinados preceitos e convenções,
encontrando-se assim semelhanças transversais a grande parte dos cercos analisados. Os
comandantes preparavam as operações militares com os meios que tinham à sua
disposição – os homens que tinham sob o seu comando juntamente com toda a logística
associada à guerra de cerco –, com os sitiantes, por um lado, a procurarem planear da
melhor forma o ataque, através da instalação do seu arraial num local vantajoso, da
construção de engenhos de assalto ou impedindo o acesso do seu adversário a água, por
exemplo, enquanto os comandantes sitiados, por outro lado, se dedicavam à reparação
das estruturas fixas de defesa ou à acumulação de mantimentos no interior da fortaleza,
entre muitos outros aspectos. Isto traduzia-se num processo complexo de organização de
homens e de logística, para ambos os lados, o que demonstra que uma operação de
cerco não começava quando os sitiantes chegavam ao local que iriam atacar, mas sim
nos seus preparativos, podendo estes fazer pender os pratos da balança para um ou outro
lado. Assim, quando as forças sitiantes acabavam de montar o seu arraial ou iniciavam
um ataque, teriam de fazer frente a uma guarnição que havia também realizado os seus
preparativos, abrindo o caminho para um longo e árduo cerco, cuja duração era sempre
uma incógnita, sujeito ainda ao surgimento de diversos problemas, muitas vezes
inesperados.
Desta forma, a melhor preparação possível, tanto para sitiados como para
sitiadores, poderia revelar-se insuficiente perante factores aleatórios que estavam fora
do controlo dos comandantes. A sede ou a fome que por vezes se sentiam devido ao
alongamento da operação ou as doenças que surgiam nos arraiais ou no interior dos
perímetros amuralhados, fossem surtos pontuais ou causadas por carências de
mantimentos, conjugadas com imprevisíveis caprichos do clima, frequentes combates
ou a destruição causada pelos diversos tipos de engenhos, podiam, de um momento para
o outro, frustrar os desígnios das forças em confronto, forçando uns a abandonarem a
tentativa de conquista e outros a renderem-se após períodos de grande sofrimento.
Para além disso, pudemos estudar as variadas soluções através das quais os
sitiantes procuravam a conquista dos pontos-fortes. Um cerco não significava somente
121
um bloqueio a uma praça-forte durante o qual se aguardava pacientemente pela rendição
do inimigo sitiado. Na verdade, os comandantes militares dispunham de várias soluções
para derrotar o seu inimigo ou levá-lo à capitulação: em muitos casos, era necessário
que os sitiantes pressionassem os seus adversários, como através de assaltos directos, do
poder destrutivo dos seus engenhos, ou da aplicação de pressão psicológica, incutindo o
receio e o desespero na mente dos seus inimigos, eventualmente dando a estes somente
duas alternativas: ou a rendição ou a morte. E embora os comandantes militares
preferissem, geralmente, operações de cerco convencionais, tivemos a oportunidade de
analisar um período rico em outras formas de ataque menos convencionais, algumas de
uma criatividade notável, onde observámos episódios de assaltos furtivos e traições de
elementos de ambos as forças em conflito, mostrando que a conquista de uma fortaleza
poderia residir num ínfimo pormenor, onde até mesmo a acção de um só indivíduo
poderia fazer toda a diferença para o sucesso destas operações.
Caso a operação fosse bem sucedida e os sitiantes conseguissem conquistar o
local, as suas tarefas não estariam ainda terminadas. Como vimos, era necessário que os
vitoriosos se estabelecessem como a força dominante do ponto-forte, para aí poderem
exercer a sua autoridade e aproveitarem os recursos que a nova conquista poderia
oferecer. Através da conjugação de várias acções, como a colocação do seu pendão num
local visível para qualquer pessoa que se aproximasse da fortaleza ou da localidade que
simbolizava o controlo daquela povoação ou praça, o aprisionamento ou a expulsão dos
combatentes adversários, a mudança do alcaide ou a atribuição do ponto-forte a um
novo senhor, as forças vitoriosas ficavam, enfim, com o controlo do alvo e dos seus
recursos, pelos quais tinham combatido contra um adversário que não lhes havia
facilitado a tarefa.
Para terminarmos este estudo das operações de cerco que ocorreram nos finais
do século XIV entre Portugal e Castela, adequa-se uma conclusão de Jim Bradbury:
“Perhaps what we have learned above all, and what will remain longest in the mind, is
the tremendous pain and deprivation which man can inflict upon his fellow, and yet
which can be overcome; and the great courage under duress which the human race is
able to display”659. Todas estas dificuldades, riscos, actos de violência e sofrimentos
pelos quais os intervenientes passaram, bem como as façanhas desempenhadas por
estes, algumas verdadeiramente heróicas, que fomos observando ao longo destes
659 BRADBURY, Jim, The Medieval Siege, p. 334.
122
confrontos, tinham em conta um objectivo: a posse dos pontos-fortes e o consequente
domínio dos seus espaços circundantes para, assim, vencer uma guerra.
123
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