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TERMO DE APROVAÇÃO
Giovanna Carolina Tortato
A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA JORNALÍSTICA EM O.J: MADE IN
AMERICA
Trabalho de conclusão de curso aprovado com nota 100,0 como requisito parcial
para a obtenção do grau de bacharel em Jornalismo pelo UniBrasil Centro Universitário,
mediante banca examinadora composta por:
Prof. Orientador e Presidente Ivan Mizanzuk
Prof. Rodolfo Stancki Silva
Prof. Luiz Gustavo Vilela
Curitiba, 12 de março de 2018.
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CENTRO UNIVERSITÁRIO AUTÔNOMO DO BRASIL – UNIBRASIL
GIOVANNA CAROLINA TORTATO
A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA JORNALÍSTICA EM O.J:
MADE IN AMERICA
CURITIBA
2017
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GIOVANNA CAROLINA TORTATO
A DRAMATIZAÇÃO DO CRIME REAL: A NARRATIVA
JORNALÍSTICA EM O.J: MADE IN AMERICA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como
requisito para a obtenção do grau de bacharel
apresentado à Banca Examinadora do Curso de
Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo,
do Centro Universitário Autônomo do Brasil
(UniBrasil).
Orientador: Professor Ivan Mizanzuk.
CURITIBA
2017
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RESUMO
Este trabalho procura, a partir da análise narrativa do documentário O.J: Made In
America, identificar as técnicas utilizadas no cinema documentário, considerado de
não-ficção, que são emprestadas das narrativas jornalísticas e/ou ficcionais. Através
de uma análise pragmática da narrativa, serão apontadas as características que
compõem a narrativa jornalística em um filme documentário, ressaltando suas
similaridades com o roteiro de ficção. Possibilita-se também discutir se esses
artifícios diminuiriam de alguma forma o valor da narrativa originalmente jornalística,
ou se seriam apenas mais uma forma do jornalismo contar uma história real de
maneira mais atrativa.
Palavras-chave: jornalismo, o.j: made in américa, documentário, ficção, jornalismo
literário, narrativa jornalística, narratologia.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aqui a todos que de alguma forma me impulsionaram a terminar esse
trabalho mesmo quando me faltou estímulo, força de vontade ou confiança.
Especialmente ao sempre paciente e carinhoso Guilherme Teixeira, que aguentou
em casa as revoltas quando a frustração (que só a escrita acadêmica traz) batia. Às
amigas, muito antes que colegas, Gabriella Maciosek, Giovanna Menezes e Ketlin
dos Santos: o talento e esforço de vocês em seus próprios projetos foi inspirador,
assim como a generosidade e disponibilidade para ajudar os outros. E, sortuda que
sou, aos meus dois orientadores, quando não oficialmente, em espírito: Professor
Ivan Mizanzuk e Professor Rodolfo Stancki. Aos mestres agradeço a confiança em
mim e no projeto, assim como a paciência e a calma transmitida quando essas me
faltaram em inúmeros momentos.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………………….. 7
2. O.J: MADE IN AMERICA……………………………………………………………………….... 8
2.1 JUSTIFICATIVA………………………………………………………………………………... 9
3. A NATUREZA DO DOCUMENTÁRIO………………………………………………………. 122
3.1 DOCUMENTÁRIO E JORNALISMO ENQUANTO GÊNEROS……………………………. 133
3.2 JORNALISMO LITERÁRIO CINEMATOGRÁFICO………………………………………. 144
4. ANÁLISE DA CLASSIFICAÇÃO DE O.J: MADE IN AMERICA COMO UM DOCUMENTÁRIO JORNALÍSTICO…………………………………………………………….... 18
4.1 VEICULAÇÃO PRATICAMENTE LIMITADA AOS CANAIS DE TVS EDUCATIVAS OU CANAIS DE TV POR ASSINATURA…………………....…………………………………..........18
4.2 O SEU CARÁTER AUTORAL…………………………………………………………………. 19
4.3 A NÃO OBRIGATORIEDADE DA PRESENÇA DE UM NARRADOR……………………. 20
4.4 USO DE IMAGENS E DEPOIMENTOS, FUNCIONANDO COMO DOCUMENTOS…... 21
4.5 AMPLA UTILIZAÇÃO DE MONTAGENS FICCIONAIS NO SENTIDO DE SIMULAR FATOS……………………………………………………………………………………………... 22
5. ANÁLISE PRAGMÁTICA DA NARRATIVA JORNALÍSTICA………………………….... 23
6. 1° MOVIMENTO - A RECOMPOSIÇÃO DA INTRIGA OU ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO…………………………………………………………………………………….. 25
7. 2° MOVIMENTO - COMPREENDER A LÓGICA DO PARADIGMA NARRATIVO……. 26
8. 3° MOVIMENTO - DEIXAR SURGIREM NOVOS EPISÓDIOS…………………………….. 28
9. 4° MOVIMENTO - PERMITIR AO CONFLITO DRAMÁTICO SE REVELAR…………….. 30
10. 5° MOVIMENTO - PERSONAGEM: METAMORFOSE DE PESSOA A PERSONA…... 32
11. 6° MOVIMENTO - AS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS E ARGUMENTATIVAS….. 34
11.1 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS DO REAL (A CONSTRUÇÃO DA VERACIDADE)....................................................................................................................... 35
11.2 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS ESTÉTICOS……………………….... 35
11.3 A RELAÇÃO COMUNICATIVA E O “CONTRATO COGNITIVO”................................... 36
12. 7° MOVIMENTO - METANARRATIVA: SIGNIFICADOS DE FUNDO MORAL OU FÁBULA DA HISTÓRIA………………………………………………………………………….... 37
6
13. O MÉTODO DE ANÁLISE…………………………………………………………………….. 39
14. RECONSTITUIÇÃO DA NARRATIVA……………………………………………………….. 40
14.1 LINHA DO TEMPO COMENTADA………………………………………………………….. 41
15. ANÁLISE DO PROJETO DRAMÁTICO E LÓGICA NARRATIVA……………………….. 512
15.1 PROJETO DRAMÁTICO OU METANARRATIVA …………………………………….... 52
15.2 CONFIGURAÇÃO DOS EPISÓDIOS………………………………………………………. 523
16. CONCLUSÕES…………………………………………………………………………………. 54
REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………………... 56
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1. INTRODUÇÃO
Adaptar uma história real e notória em um produto audiovisual não é novidade
para o cinema ou para a televisão. No entanto, o fato de um filme ou série televisiva
ser baseado em uma história verídica não o torna automaticamente um
documentário ou um produto jornalístico. Podemos pensar em diversas películas
“baseadas em fatos reais” que são tão ficcionais quanto as mais criativas obras de
ficção científica. Os filmes documentários se aproximam do jornalismo tanto quanto
dos gêneros cinematográficos ficcionais, emprestando características narrativas e
técnicas de ambos, e é sobre essa relação, chamada de “promíscua” por Bezerra
(2010) que se trata essa pesquisa.
Para tanto, analisaremos pragmaticamente as escolhas narrativas feitas em
um produto audiovisual que transcende os dois gêneros, no caso um documentário
biográfico com aspirações jornalísticas.
Será usado também o conceito de jornalismo literário cinematográfico,
corrente que acredita que as liberdades poéticas tomadas pelo documentarista se
assemelham ao método de jornalistas, tanto da tele reportagem quanto do meio
escrito, que optam pelo jornalismo narrativo e/ou literário (SILVA, 2014).
Mas essas escolhas irão refletir não somente na estrutura narrativa, como
também nas escolhas técnicas, de trilhas sonoras ameaçadoras a enquadramentos
vilanescos, típicos de gêneros cinematográficos ficcionais. Para exemplificar essas
teorias na prática foi escolhido como objeto dessa análise o documentário O.J: Made
In America, devido ao seu caráter documental jornalístico (é produzido pelo canal de
jornalismo esportivo ESPN) e biográfico.
Dessa forma, pretendemos responder: Como as narrativas do jornalismo
podem ser encontradas no documentário O.J. Made In America? O caminho para
isso será levantar as técnicas narrativas e procedimentos jornalísticos utilizadas,
analisar as consequências e teorizar as intenções por trás das abordagens
narrativas escolhidas, demonstrando a proximidade da produção documental ao
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jornalismo de reportagens televisivas.
2. O.J: MADE IN AMERICA
O já premiado documentário O.J: Made In America1 foi lançado no Festival
Sundance de Cinema, em 22 de janeiro de 2016, com apenas um intervalo apesar
de seus 467 minutos de duração. Foi essa breve exibição nos cinemas que o tornou
elegível para o prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (os
Oscars) que viria a ganhar. Posteriormente, ele foi exibido diariamente ao longo de
uma semana na televisão americana em uma série de cinco episódios no canal a
cabo ESPN, como parte da série jornalística 30 for 302. É o quarto filme dirigido pelo
documentarista Ezra Edelman e o terceiro para o 30 for 30. A série se utiliza de
imagens e entrevistas que marcaram a história do canal e do esporte em geral,
reconstituindo e por vezes investigando esses eventos históricos. Documentaristas e
jornalistas reconhecidos se revezam no papel de condutores das narrativas que, por
essa diversidade de autores, variam bastante em formato e discurso.
O filme acompanha o ex-jogador de futebol americano Orenthal James
Simpson, de sua carreira estelar no esporte universitário e na National Football
League (NFL) até o que viria a ser um episódio trágico e marcante, não só em sua
vida, mas em toda a cultura norte-americana: o duplo assassinato brutal de sua ex-
esposa, Nicole Brown, e de um amigo dela, Ron Goldman, pelo qual foi acusado em
1994. Na época, o nível de celebridade de O.J (como é mais conhecido), que a essa
altura já havia se aposentado do esporte e ingressado em uma carreira como ator,
garoto-propaganda e queridinho da América, tornou seu julgamento e todos os
desdobramentos do caso em um dos maiores circos midiáticos da história dos
Estados Unidos até hoje (TOOBIN, 2016).
O documentário traz depoimentos dos envolvidos no caso, amigos e
1 O documentário foi o vencedor da categoria Melhor Documentário nas seguintes premiações: ACE Eddie Awards 2017,
American Film Institute Awards, Boston Society of Film Critics, Chicago Film Critics Association, Chicago Film Critics Association, Detroit Film Critics Society, Gotham Independent Film Awards, Houston Film Critics Society Awards, Independent Spirit Awards, Indiana Film Journalists Association, IndieWire Critics Poll, International Documentary Association, Los Angeles Film Critics Association, Online Film Critics Society, Producers Guild of America Awards e Academy Awards. Além de ter recebido mais de 30 outras indicações. 2 30 for 30 é uma série especial de documentários esportivos transmitido pela ESPN desde 2009. Todos os episódios retratam
a vida de esportistas notáveis, seja por suas vidas ou performances extraordinárias ou momentos marcantes do esporte.
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familiares e constrói um perfil psicológico do personagem principal desde a infância
em um bairro pobre de São Francisco até o estrelato e o fascínio com a cultura de
fama e celebridade. Passando pelo abuso doméstico contra a esposa e o ostracismo
seguido do resultado do julgamento do crime, que o absolveu, ao contrário de
grande parte da opinião pública.
Aproxima-se muito de uma grande reportagem investigativa de profundidade
ao passo que se utiliza de documentos históricos, entrevistas de testemunhas
especialmente para a produção do documentário e também retiradas de filmagens
antigas da televisão americana. Também não se utiliza de um narrador presente,
sendo a narrativa conduzida por falas e relatos, o que ajuda na construção do
distanciamento do cineasta, afastando a noção de sua subjetividade.
O documentário serve também como um retrato das tensões raciais da Los
Angeles dos anos 90, assim como os polêmicos casos de violência policial com
motivação racial por parte do departamento de polícia da cidade, o que veio
inclusive a afetar profundamente o andamento do caso. Será possível também
analisar durante esta pesquisa como o distanciamento histórico muda a forma que a
narrativa jornalística toma, comparando a cobertura midiática na época retratada
pelo próprio documentário e as escolhas narrativas do documentarista.
Atualmente, O.J Simpson cumpre 33 anos de prisão por crimes cometidos
anos depois, em 2007, quando foi preso por formação de quadrilha, assalto a mão
armada e sequestro. O documentário tem como premissa não buscar responder a
grande pergunta que ainda paira no imaginário internacional, “foi ou não foi ele,
afinal?”, mas sim tentar trazer o máximo de evidências possíveis para que o
telespectador faça seu próprio julgamento (TOOBIN, 2016).
2.1 JUSTIFICATIVA
O produto midiático escolhido foi sucesso de crítica e de público no ano de
2016. Sucesso esse comprovado por suas avaliações nos mais relevantes sites de
cinema e revistas do gênero. No RottenTomatoes e no MetaCritic, websites
consagrados que separam suas pontuações por críticos conceituados e voto
popular, ambos os grupos consagraram a obra com raras notas altas em comum. No
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Internet Movie Database (IMBb), a maior enciclopédia online de cinema do mundo
e um dos sites de notícias sobre áudio visual mais visitados da internet, o sucesso
se repete. Em todos, foi avaliado por dezenas de milhares de espectadores.
Em relação à audiência, é preciso considerar que o documentário seriado foi
exibido na TV a cabo fechada americana, no canal de jornalismo esportivo ESPN.
Os números são expressivos se considerados os meios onde foram exibidos e a
restrição de público.
O. J: Made In America
Audiência Média 3.5 milhões/episódio
IMDb 9.0/10
Rotten
Tomatoes
Críticos: 10/10
Público: -
MetaCritic Críticos: 96/100
Público: 7.8/10
A discussão e engajamento incitado pela exibição dessa série deve resultar
em futuras pesquisas acadêmicas. Porém, o meio acadêmico geralmente se dedica
à análise do formato no gênero documental, mais interessados nos aspectos
técnicos, como no livro Documenting the Documentary, compilação dos textos de
diversos autores americanos sobre o processo de produção de documentários. Já
estudos de narrativa, partindo da narratologia, também são comuns, mas falam
majoritariamente sobre ficção. Uma análise da narrativa jornalística dentro do meio
documental seria uma nova abordagem, a qual este trabalho tem a intenção de
seguir. Essa técnica até agora só foi usada para análise de séries de reportagens
televisivas (MOTTA, 2007). E também pelo fato de os produtos midiáticos analisados
serem bastante recentes, e pouco ter se estudado sobre eles ainda, imprime-se um
caráter inédito à pesquisa.
A relevância social pode ser resumida em uma crença extraída de Bernard
(2008). Ela acredita que, ao compreenderam as escolhas narrativas feitas pelos
documentaristas e cineastas, os espectadores se tornaram consumidores de cultura
mais críticos e conscientes.
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[Os espectadores] terão uma ideia mais clara do motivo de algo funcionar ou de não soar “verdadeiro”, da razão pela qual alguns filmes parecem trazer consigo um maior peso emocional ou intelectual, de por que alguns programas os fazem se sentir manipulados ou entediados, e do modo como mudanças no tom ou no ponto de vista podem alterar a natureza da apresentação. (BERNARD, 2008, p. 9)
Em uma sociedade tão saturada de mídias como a atual, a alfabetização
midiática e, principalmente, a interpretação do trabalho jornalístico, considerando-se
sua subjetividade e não só sua tecnicidade objetiva, se faz necessária.
A discussão sobre até que ponto podemos considerar filmes documentários
como produtos jornalísticos ou apenas outro gênero do cinema de ficção é antiga e
cheia de bons argumentos, seja qual for o lado de defesa, mas irrelevante para o
nosso objetivo de pesquisa atual. Esse trabalho não pretende resolver a questão,
mas entender que aceitar que a subjetividade também faz parte da produção
jornalística, assim como a necessidade de envolver o público em sua narrativa, é um
passo para essa resposta.
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3. A NATUREZA DO DOCUMENTÁRIO
O que vai definir a natureza de um filme será sua forma e narrativa. Nichols
(2016) diferencia o gênero documental jornalístico das narrativas ficcionais da
seguinte maneira:
Os documentários falam de situações ou acontecimentos reais e honram os fatos conhecidos; não introduzem fatos novos, não comprováveis. Falam sobre o mundo histórico diretamente, não alegoricamente. Narrativas fictícias são fundamentalmente alegorias. (id, 2016, p. 31)
Bernard (2008) também reforça a importância do documentário como gênero
jornalístico para o público, que espera desses produtos a mesma apuração e
credibilidade creditada ao jornalismo tradicional. Ambos os autores admitem o
aspecto subjetivo que uma obra autoral audiovisual vai inevitavelmente adquirir.
Apesar do documentário ser tanto uma forma de jornalismo quanto uma forma de
autoexpressão, como o romance, a canção e a pintura, ainda assim é necessário
manter a objetividade, ou ao menos a aparência desta (id, 2008).
[...]os documentaristas trabalham com fatos, não com ficção; não somos livres para inventar pontos de trama ou arcos de personagem e, em vez disso, temos de encontrá-los no material bruto da vida real. Nossas histórias dependem não da invenção criativa, e sim do arranjo criativo, e nossa narrativa deve ser feita sem o sacrifício da integridade jornalística. A tarefa não é fácil. (ibid, 2008, p. 02)
Esses conceitos serão explorados por este trabalho, que tratará da
aproximação do gênero de filmes documentais ao jornalismo, seja em sua função
investigativa, seja como no jornalismo literário, com liberdade criativa para contar
uma história verídica de forma participativa. Isso devido a características em comum
que os dois compartilham, como a subjetividade do autor impressa em seu trabalho
e a liberdade de transitar entre o jornalismo e a ficção.
Para mim, como etnógrafo e cineasta, não há praticamente fronteiras entre o filme documentário e o filme de ficção. O cinema, arte do duplo, já é a passagem do mundo do real para o mundo do imaginário, e a etnografia, ciência dos sistemas de pensamento dos outros, é uma travessia permanente de um universo conceitual a outro, ginasta acrobática em que perder o pé é o menor dos riscos (FELD, 2003, p. 185)
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É para demonstrar quais são as ferramentas narrativas do jornalismo que
atuam nesse gênero fílmico, muitas vezes partilhadas com a narrativa de ficção, que
será utilizada a série documental O.J: Made In America.
3.1 DOCUMENTÁRIO E JORNALISMO ENQUANTO GÊNEROS
“Esse não é um filme de ficção”. É assim que se inicia Ilha das Flores, filme de
Jorge Furtado, lançado em 1989, automaticamente criando no espectador a
expectativa de que, se não é ficção deve se tratar de um filme documental. Porém,
na narrativa que se segue o que vemos são personagens, direção de atores e até
criação de cenários em estúdio. Ainda assim, por fim e apesar desses elementos, o
caráter documental prevalece na hora de categorizar a obra (MELO, 2002).
O exemplo acima serve para demonstrar como pode ser nebulosa a fronteira que
separa a definição dos filmes documentais e ficcionais. Bakhtin (1992) criou gêneros
do discurso para denominar as esferas de utilização de linguagem. A comunicação
se utiliza desses gêneros, e mesmo inadvertidamente (sem treino ou conhecimento
teórico) um indivíduo saberá usar com fluência a linguagem do meio que está
inserido.
Muitas vezes, os gêneros discursivos têm marcas linguísticas mais ou menos estereotipadas e identificáveis. É o caso de expressões como: "era uma vez ..." (na abertura de narrativas infantis), "prezado amigo" (na abertura de cartas), "conhece aquela do português..." (em piadas) etc. O gênero documentário não pode ser definido a partir da presença de determinados enunciados estereotipados ou de tipos textuais fixos (narração, descrição, injunção, dissertação). No entanto, não temos dúvidas que o documentário é um gênero com características particulares, e são essas características que nos fazem apreendê-lo como tal. (BAKHTIN apud MELO, 2002, p. 19)
Descrever e conceituar essas características é mais fácil do que enquadrar o
documentário em um gênero. O discurso sobre o real e a utilização de imagens
gravadas in loco, ou ainda retiradas de arquivos, confundem o gênero com o
jornalístico, ainda que não o seja propriamente.
Enquanto o jornalismo busca um efeito de objetividade ao transmitir as
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informações, no documentário predomina um efeito de subjetividade, evidenciado por uma maneira particular do autor/diretor contar a sua história. Por isso dizemos que o documentário é um gênero essencialmente autoral. (MELO, 2002, p. 27-28)
Dizer que o documentário é um gênero essencialmente autoral é dizer que
apesar de ser um gênero não totalmente comprometido com a objetividade, assim
como acontece com as reportagens, as informações reveladas por um documentário
são tomadas como fatos, “revelações” (MELO, 2002). Em filmes de ficção não há
dúvida nenhuma que o proposto pelo autor é resultado de sua criatividade e visão de
mundo, ou mesmo se questiona sua legitimidade como informação verídica. Ainda
que encontremos exemplos de hibridismo em alguns gêneros e obras como Bruxa
de Blair (1999), apontar isso seria entrar em uma terceira discussão que não nos
cabe agora.
Não devemos esquecer que qualquer relato (independentemente de sua natureza) é sempre resultado de um trabalho de síntese, que envolve a seleção e a ordenação de informações. Assim, tanto nas narrativas pessoais como nas jornalísticas, o sujeito-autor cria uma situação nova a partir de um fato que já passou. Dessa forma, mesmo configurando-se como um discurso sobre o real, documentários e reportagens não são reflexos, mas construções da realidade social. Ou seja, no documentário ou na reportagem não estamos diante de uma mera documentação, mas de um processo ativo de fabricação de valores, significados e conceitos. (id, 2002, p. 27-28)
Identificar as técnicas para essa construção de valores e significados, ainda que
acobertada por um manto de credibilidade dado ao gênero, é um dos objetivos
dessa pesquisa.
3.2 JORNALISMO LITERÁRIO CINEMATOGRÁFICO
Lima (2003) usa um conceito de jornalismo literário cinematográfico, utilizado
também na pesquisa de Silva (2014), que discute a existência dessas técnicas do
jornalismo literário (ou narrativo, como o autor se refere) na criação de produtos do
cinema não-ficcional. Partiremos do princípio que, tanto nos filmes documentários
escolhidos quanto no jornalismo literário, o papel do autor é tão ou mais importante
do que a informação passada (BEZERRA, 2003). O autor se beneficia do
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pressuposto e da credibilidade que o gênero confere à notícia, mas também utiliza
disso para garantir uma liberdade estilística beirando ao ficcional (quando não
mesmo ultrapassando essa linha, veremos no exemplo do autor Hunter Thompson).
Outros autores aplicam o mesmo conceito, ainda que não o nomeando da
mesma maneira. Para Bezerra (2002), o jornalismo gonzo empreende uma relação
promíscua com a ficção e essa relação não só contribui para tornar a narrativa mais
envolvente, mas também para fornecer outro nível de informação.
Em geral, jornalistas e documentaristas estão baseados em suposições diferentes sobre seus objetivos e se distanciam pela diversidade de tratamentos à disposição de seus respectivos autores. Mas estas diferenças não garantem uma separação absoluta entre eles. Existe, inegavelmente, um núcleo de questões técnicas e práticas que gravitam em torno destes domínios (e os aproximam) e lhes conferem uma espessura empiricamente reconhecível. (BEZERRA, 2002, p. 27)
Hunter Thompson, um dos maiores expoentes do jornalismo literário gonzo,
defendia que categorias como ficção e jornalismo são artificiais e inventava trechos
inteiros de situações que nunca aconteceram em suas matérias e livros jornalísticos,
com a intenção de criar alegorias para fatos reais, porém menos fantásticos
(THOMPSON apud BEZERRA, 2002).
Além de Edvaldo Pereira Lima (2003), outras pesquisas se utilizaram do conceito
formulado pelo autor, como Silva (2014), já referida, e Mariana Ferreira Lopes
(2007), que desenvolveu um estudo partindo da análise do documentário Ônibus
174 e sua possível utilização de técnicas do jornalismo narrativo para “além do
terreno da escrita”, em suas palavras. Algumas das características tiradas do livro-
reportagem que Lopes utilizou a partir de outro trabalho de Lima (1995), serão as
mesmas buscadas para a análise dessa pesquisa. São elas: a entrevista de
compreensão; o relato de histórias de vida; a observação participante; a importância
da memória; o uso de documentação referencial; a visão pluridimensional, a partir do
uso de diversas vozes; a fruição do texto; a utilização da descrição e da exposição; o
uso de funções de linguagem, as técnicas de angulação; o ponto de vista
diferenciado; e as técnicas de edição. Todos esses são conceitos oriundos de livros-
reportagem, por isso a aproximação do jornalismo narrativo, que não
necessariamente é o mesmo que o literário como veremos, mas partilham dessas
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características em comum.
Outro autor que estruturou traços do gênero foi Norman Sims, presente na
pesquisa de Silva (2014). Ele acrescenta sete características marcadas em
documentários de Eduardo Coutinho que considera provenientes do jornalismo
literário: imersão do repórter na realidade; estilo; voz autoral; precisão de dados e
informações; uso de símbolos do status de vida; digressão; e humanização (SIMS,
1995). Coutinho é denominador comum de diversos trabalhos acadêmicos que
investigam o diálogo entre jornalismo narrativo, literário e documentário:
Mônica Martinez (2012) também investiga os possíveis diálogos entre esse tipo de jornalismo e o cinema, mais especificamente o gênero documentário, a partir do trabalho de Coutinho, estabelecendo como eixos de aproximação as formas de apuração, ou seja, a captação de informações; a digestão, que seria a compreensão do material apurado; e, por fim, a redação em estilo literário, simplificados pela autora enquanto captação e estruturação do material coletado, no âmbito jornalístico, e captação e montagem, no processo fílmico. O artigo inicia-se com o relato de experiência da diretora de cinema Nora Ephron, contando como o trabalho enquanto roteirista contribuiu com a sua percepção a respeito da importância do desenvolvimento de uma estrutura narrativa para contar os fatos, aprendendo com o cinema técnicas que a teriam ajudado na carreira como repórter. (MARTINEZ apud SILVA, 2014, p.17)
O próprio Lima (1987) prefere trabalhar as questões narrativas que
aproximam os gêneros literários, jornalístico e cinematográfico. Ele chega a sugerir
formas de prender a atenção do espectador/leitor, descrever momentos cíclicos do
processo narrativo, componentes dramáticos e variação rítmica. Todos esses, que
podem ser considerados artifícios de roteiro, estão presentes nos três gêneros
citados.
Já Márcia Detoni (2010) tem como objeto de estudo a influência que a
objetividade jornalística e a invenção do cinema direto têm sob a produção de
documentários, como meio até de cercear a criatividade dos produtores.
A autora menciona as formas de resistência ao jornalismo tradicional, ressaltando especialmente o Novo Jornalismo enquanto movimento que teria propiciado uma revisão estilística, a aproximação entre o jornalismo e a literatura, o estímulo à subjetividade e o surgimento de um jornalismo autoral, levando realizadores a repensarem o cinema-documentário. (DETONI apud SILVA, 2014)
Todos esses trabalhos, portanto, apresentam similaridades e têm importância
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para o tipo de narrativa que propomos analisar, já que “demonstram a aproximação
possível entre produções do jornalismo narrativo e do cinema-documentário,
principalmente a partir da atenção dada à forma e do uso de recursos atribuídos aos
textos ficcionais, sejam eles literários ou fílmicos” (SILVA, 2014). São pesquisas
teóricas, fundamentadas nas teorias da comunicação e em produtos
cinematográficos documentais. No entanto, não é todo e qualquer documentário que
entra nessa classificação. Primeiramente, é necessário que se classifique o filme
como uma obra dentro do espectro do jornalismo.
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4. ANÁLISE DA CLASSIFICAÇÃO DE O.J: MADE IN AMERICA COMO UM
DOCUMENTÁRIO JORNALÍSTICO
Já afirmamos que não há consenso no meio acadêmico se o documentário
seria um gênero jornalístico e não pretendemos responder essa pergunta
definitivamente. Por isso, partiremos do pressuposto que dentro do gênero
documental e jornalístico encontramos filmes e argumentos que sustentam
respostas diferentes. Entendendo que alguns filmes documentais se enquadram no
jornalismo mais do que outros, será usado o conceito estabelecido pela pesquisa
das doutoras em comunicação Gomes, Melo e Morais3 (2001) para verificar se o
produto midiático analisado nesta monografia pode ser categorizado como um
documentário jornalístico e assim prosseguir com a pesquisa. São os cinco critérios
definidores aplicados os seguintes:
4.1 VEICULAÇÃO PRATICAMENTE LIMITADA AOS CANAIS DE TVS
EDUCATIVAS OU NOS CANAIS DE TV POR ASSINATURA
Por meio de uma observação da programação jornalística na televisão
brasileira, percebeu-se que o documentário pouco aparece na programação da
televisão aberta, com exceção dos canais educativos. A conclusão encontrada para
isso é que o formato documental não tem lugar na dinâmica pauta jornalística. O
imediatismo e a informação factual são prioridade para os programas jornalísticos.
Enquanto reportagens de profundidade e documentários são considerados “pautas
frias”, ou seja, notícias sem necessidade imediata de serem veiculadas para que não
percam sua relevância (MELO, 2002). Ainda que seus temas sejam considerados
atuais, o tempo e o custo de produção, especialmente no caso dos documentários,
acaba sendo um impeditivo que explicaria essa falta de espaço.
Sua produção torna-se insustentável para as emissoras e desinteressante do
ponto de vista econômico. Ao prolongar o tempo de pesquisa e produção para
3 O artigo “O Documentário Como Gênero Jornalístico Televisivo", da qual foram retirados os critérios utilizados
por este artigo, faz parte um projeto maior que tem como objetivo estudar comparativamente diversos gêneros jornalísticos existentes, impressos ou audiovisuais. Pesquisa essa desenvolvida pelo Grupo em Comunicação e Discurso, do Departamento de Comunicação Social da UFPE.
19
aprofundar seu conteúdo, o custo do produto final não condiz com aquele esperado
pelas emissoras, levando as mesmas a “comprar” a produção (terceirizando um tipo
de serviço) em vez de investir em uma equipe de profissionais ou mesmo
equipamentos que justificariam essa produção. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001,
p. 4).
Resumidamente: a maioria dos canais abertos de TV não pode dispor de uma
equipe exclusivamente dedicada à produção dos documentários. Quando isso
acontece, costumam ser direcionadas à produção das chamadas grandes
reportagens, como os programas Globo Repórter ou Profissão Repórter, da Rede
Globo de Televisão. Essa preferência possibilita dizer que “as exigências
organizacionais impostas ao trabalho jornalístico influenciam na escolha do gênero e
definem a recontextualização de mundo para a comunicação jornalística.” (GOMES
& MELO & MORAIS, 2001, p. 5).
A série O.J:Made In America foi produzida originalmente por - e para - os
canais fechados de televisão da rede de jornalismo esportivo ESPN. Além das
ocasionais reprises, o conteúdo está disponível na plataforma de streaming online
da rede. Assim, atenderia o primeiro critério estabelecido pelas autoras.
4.2 O SEU CARÁTER AUTORAL
Aqui o que implica afirmar é que o documentário é sempre influenciado
pela subjetividade do seu autor, que não precisa ser escondida ou diminuída, como
acontece com outros gêneros jornalísticos que buscam a objetividade e, até onde é
possível, a imparcialidade. É um privilégio do documentarista que outros jornalistas
não têm, com o risco de serem acusados de manipulação da notícia, por exemplo.
Entretanto, isso não significa que seja um jornalismo de menos credibilidade ou
ainda monofônico, com somente um ponto de vista (MELO, 2002).
Geralmente, o documentarista busca ouvir a opinião de várias pessoas sobre
determinado acontecimento ou personalidade, seja para confirmar uma tese (caso,
por exemplo, dos documentários biográficos), seja para confrontar opiniões (caso
dos documentários sobre conflitos urbanos, sociais, raciais, religiosos etc). No
entanto, apesar de apresentar um emaranhado de vozes, que muitas vezes se
20
opõem e se contradizem, uma voz tende a predominar: aquela que traz em si o
ponto de vista do autor. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001, p. 7).
O controle da narrativa é o que garante ao cineasta que sua mensagem
chegue aos espectadores. Em O.J: Made In America encontraremos essa
subjetividade reprimida, mas por meio do tempo de tela de determinados
entrevistados ou ainda de recursos narrativos (a serem explorados na etapa de
análise da narrativa da pesquisa) fica clara que existe uma tese sendo defendida
pelo autor. Aqui, essa tese é a culpabilidade do ex-atleta pelos crimes de que foi
acusado e ainda que houve frieza e dissimulação de sua parte durante todo o
processo judicial. Apesar de uma variedade de mais de 50 entrevistados diferentes,
grande parte só de depoimentos narrativos e não opinativos, não existe nenhum
personagem que de fato defenda a inocência ou advogue a favor do protagonista.
4.3 A NÃO OBRIGATORIEDADE DA PRESENÇA DE UM NARRADOR
Diferentemente das reportagens, no documentário a narração em off
ou voiceover não é obrigatória ou mesmo necessária. Esse é o caso da série
analisada, que é inteiramente composta por depoimentos e imagens de arquivo que
costuram a narrativa. São utilizadas paráfrases discursivas para reforçar a
informação mostrada e então confirmada por uma sequência de depoimentos,
muitas vezes propositalmente repetitivos. Essa técnica inclusive reforça a ideia de
que a história está sendo contada de um ponto de vista neutro, apesar de ser uma
suposição enganosa, como visto no tópico anterior.
As paráfrases atuam como elementos importantes da argumentação.
Portanto, o funcionamento discursivo da paráfrase na prática jornalística revela um
equívoco teórico dos cânones jornalísticos, que condenam o uso de repetições. Em
vez de condenar a ocorrência de repetições, por não acrescentar um novo conteúdo
informacional ao texto, deverse-ia olhá-la como importante estratégia discursiva de
redimensionamento do fato. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001, p. 7). Repetir as
informações se torna uma forma de conectar e reforçar os novos fatos, visto a
ausência de um narrador que normalmente faria a condução tradicional da narrativa.
A série documental analisada se utiliza amplamente de paráfrases,
21
especialmente as visuais. Ao contar uma passagem histórica em um depoimento,
por exemplo, um jogo de futebol particularmente marcante, em sequência o exato
mesmo momento é mostrado com uma filmagem da época ou ainda repetido por um
entrevistado diferente, mas com ponto de vista similar, se não igual.
4.4 USO DE IMAGENS E DEPOIMENTOS, FUNCIONANDO COMO
DOCUMENTOS
A presença de documentos é fundamental para a caracterização de um
documentário, mas o que deve se atentar são o que são considerados documentos
e como caracterizá-los. Detectamos, então, dois tipos de documentos, os materiais –
ou seja, os que estão num suporte material por já terem sido produzidos
anteriormente – e os imateriais – os que estão em forma de relato, num suporte
imaterial e só a partir do documentário enquanto filme irão se tornar parte da
memória. (GOMES & MELO & MORAIS, 2001, p. 8).
O documentário analisado se utiliza fortemente de ambos os tipos de
documentos, materiais e imateriais. O fato do personagem principal ter sido uma
personalidade midiática pela maior parte de sua vida adulta facilita muito o trabalho
da produção, já que são inúmeras as imagens de arquivo e mesmo entrevistas
antigas com o próprio. Quase tudo que se afirma sobre sua vida pública pode ser
ilustrado com imagens da época em que ocorreram, incluindo integralmente o seu
julgamento penal. A utilização das imagens de arquivo supera o uso dos
depoimentos gravados especialmente para o documentário, principalmente no caso
de personagens já falecidos ou que não quiseram participar da produção da obra.
Alguns depoimentos são reutilizados de entrevistas para outros veículos, mas
encaixados na narrativa assim como os exclusivos do filme. Nos casos de momentos
mais pessoais e de construção da personalidade privada do protagonista, são
ouvidos mais de 50 entrevistados diferentes que servem como narradores e
comentaristas.
22
4.5 AMPLA UTILIZAÇÃO DE MONTAGENS FICCIONAIS NO SENTIDO DE
SIMULAR FATOS
Outra ferramenta bastante característica dos documentários é o uso de
reconstituições ou ainda as reencenações, que são passagens inteiramente
ficcionais, deixando de lado o caráter documental. Esse é único critério que aparece
como não-obrigatório para a definição, mas sim como uma ferramenta opcional a
mais.
O apelo a tais recursos, que funcionam como ilustração dos fatos, muitas
vezes se deve à falta de registros históricos ou mesmo de pessoas para dar
depoimentos que possam autenticar a verdade. No entanto, vale chamar atenção
para o fato de que essas estratégias não devem ser consideradas neutras, pois,
sempre atuam dentro de um discurso ideologicamente orientado, fato que só reforça
nosso ponto de vista em relação ao caráter autoral do gênero. (GOMES & MELO &
MORAIS, 2001, p. 10).
A utilização desses elementos quebra a crença de alguns de que o
documentário só pode se utilizar do real. O.J: Made In America não se utiliza desses
artifícios de reencenação, mantendo assim sua proximidade maior com a grande
reportagem jornalística e preferindo não entrar tanto na área cinzenta entre ficção e
metáfora. Pontualmente, são inseridas imagens dos locais onde os fatos ocorreram
produzidas especificamente para este documentário, mas servem como
ambientação e não representação do real.
Após a checagem dos cinco critérios, chegamos a uma conclusão que será
imprescindível para a continuidade da pesquisa que é: a série documental O.J:
Made In America entra no âmbito do gênero documentário jornalístico segundo os
critérios de Melo, Gomes e Morais. Dessa forma, podemos escolher analisar sua
narrativa pela metodologia jornalística ou ainda pela estrutura narrativa de ficção.
Não se trata de uma resolução ou uma conclusão original para um problema, mas
sim um meio de análise para um fim acadêmico específico.
23
5. ANÁLISE PRAGMÁTICA DA NARRATIVA JORNALÍSTICA
Devido a sua natureza estritamente teórica e analítica, a principal metodologia
utilizada será a pesquisa bibliográfica para embasar os parâmetros teóricos para
análise do uso documental e/ou ficcional da narrativa.
Será seguida a análise pragmática da narrativa jornalística, estabelecida por
Motta (2013). Esse método de análise é muito utilizado para produtos jornalísticos
seriados, em que se constrói a narrativa em capítulos, sejam reportagens escritas ou
televisivas. O fato de o documentário ter sido produzido em formato capitular para a
televisão o enquadra nessa categoria.
Motta (2013) também considera a narratologia como uma ciência que estuda
tanto a narrativa de produtos jornalísticos quanto ficcionais. Partindo disso, ela será
utilizada para a análise comparativa com os aspectos ficcionais encontrados na
trama.
A narratologia é a teoria da narrativa. Abarca também os métodos e os procedimentos empregados na análise das narrativas humanas. É, portanto, um campo e um método de análise das práticas culturais. Como a concebemos aqui, a narratologia é um ramo das ciências humanas que estuda os sistemas narrativos no seio das sociedades. Dedica-se ao estudo das relações humanas que produzem sentidos através de expressões narrativas, sejam elas factuais (jornalismo, história, biografias) ou ficcionais (contos, filmes, telenovelas, videoclipes, histórias em quadrinho). (id, 2007, p. 144)
Na análise pragmática da narrativa jornalística, entende-se a narratologia não
apenas como um ramo das ciências de linguagem ou literatura, mas como uma
forma de análise e um campo de estudo antropológico. É algo que leva além de
suas expressões de ficção, mas também ao entendimento da cultura de uma
sociedade, ajuda a compreender seus mitos, ideologias, valores e cultura política
(ibid, 2007).
O ambiente midiático em si é formado por narrativas, sejam elas factuais
(notícias, documentários, transmissões ao vivo) ou fictícias (telenovelas, filmes,
livros, comerciais). Ambas as vertentes utilizam a narrativa para ganhar a atenção e
24
interesse do espectador, para fazê-lo sentir e pensar determinadas coisas.
“Exploram o fático para causar o efeito de real (a objetividade) e o fictício para
causar efeitos emocionais (subjetividade) ”. Essa citação de Motta (2007) começa a
explicar como os profissionais da comunicação e entretenimento usam o discurso
narrativo como forma de causar efeitos e significado e é esse uso que será
analisado nessa pesquisa.
A narratologia tem suas raízes próximas às da análise do discurso, visto que
ambas surgiram de estudos estruturalistas russos. Mais especificamente, o termo
narratologia foi cunhado por Tzvetan Todorov na sua obra Gramática do Decameron
(1969). Ele foi um famoso teórico do estruturalismo, também conhecido por suas
obras que tratam da análise de simbologias e do discurso (CEIA, 2017).
Por essa conexão entre as áreas se considera cabível trabalhar também com
os conceitos da análise do discurso de Todorov para analisar o produto escolhido,
ainda que seu trabalho tenha uma base na narrativa de ficção. O discurso utilizado
para cada narrativa é naturalmente diferente, e Todorov ajudará a identificar as
intenções por trás das técnicas utilizadas.
Com a intenção de estruturar a aplicação de sua técnica de análise, Motta
elenca sete passos, que ele chama de movimentos. São itens que devem ser
identificados no produto analisado e explorados pela análise. Vale apontar que
apesar de enumerados, eles não necessitam de uma ordem de análise ou execução,
mas sim devem ser observados em paralelo durante a análise. Eles servem mais
como um guia de pesquisa do que uma doutrina, e serão seguidos para a
continuidade desta pesquisa. Seus objetivos e embasamentos são encontrados nos
capítulos a seguir.
25
6. 1° MOVIMENTO - A RECOMPOSIÇÃO DA INTRIGA OU ACONTECIMENTO
JORNALÍSTICO
Esse passo consiste em fazer uma reconstituição da narrativa completa, seja
em ordem cronológica e conectada, ou ainda em uma nova lógica criada pelo
analista. Especialmente importante em casos de histórias contadas em uma
serialidade temática, como o produto escolhido para ser analisado, que se trata de
uma série documental com episódios centrados em pontos temáticos específicos da
trama (racismo, machismo no ambiente de trabalho, violência contra a mulher e
assim por diante). Esses episódios devem ser vistos como um todo, para que se
possa observar a continuidade e a justaposições temáticas (MOTTA, 2013).
O analista precisa decompor e recompor a estória com rigor e identificar suas partes componentes, as sequências básicas, os pontos de virada ou inflexões essenciais, os limites dos episódios parciais, as conexões entre eles, os conflitos principais e secundários, o protagonista e o antagonista principais e seus adjuvantes, como o enredo organiza a totalidade, e assim por diante, a fim de compreender como o narrador compôs sua estória na situação de comunicação. (id, 2013, p. 141)
Essas relações temporais ou em uma outra ordem lógica também são
chamadas de “relações de solidariedade” e devem ser apontadas nessa nova linha
cronológica criada. É aqui também que serão identificados os ganchos narrativos,
desfechos e construção da sequência. Como trataremos da série como um todo,
também serão apontadas as ações e suas finalidades posteriores. Por exemplo, um
evento do primeiro episódio que somente após o conhecimento do todo possa ser
visto como relevante, já será destacado desde o início nessa etapa.
Outro destaque nessa fase são os chamados pontos de virada, ou plot twists,
momentos na ação em que o inesperado ou contraditório acontece com um
personagem ou com o direcionamento da intriga (PROPP, 1984). Como trabalhamos
com um produto factual com amplo conhecimento para o grande público, será mais
interessante uma análise focal das ações que modificam estruturalmente a história,
chamados grandes predicados ou grandes transformações (TODOROV, 1970).
26
7. 2° MOVIMENTO - COMPREENDER A LÓGICA DO PARADIGMA NARRATIVO
Além de uma nova linha do tempo, outra sugestão de Motta utilizada é uma
nova sinopse que exponha o que ele chama de “projeto dramático”. Esse projeto
dramático seria algo como a verdadeira história que o narrador teve a intenção de
contar, uma que só pode ser identificada após a análise e leitura do produto como
um todo. Nessa sinopse, a função dos personagens aparece com mais clareza,
assim como o seu fundo moral e mesmo qualquer ideologia ou fábula intrínseca. A
lógica que se procura no paradigma narrativo é a lógica dramática definida por
Ricouer (1994). Para ele, o discordante (acidentes, o inesperado, o lamentável) é o
cerne da narrativa dramática e é o ponto alto de tensão, onde se funde a surpresa e
a necessidade da narrativa.
A resposta emocional do espectador é construída no drama, na qualidade dos incidentes destruidores e dolorosos para os personagens, as inversões (teatral ou dramática). A inversão está a nossa espera, mas é criada pela intriga. Ricouer aplica essa lógica dramática a toda narrativa, e não apenas à narrativa ficcional. Para ele, qualquer estória (inclusive a historiografia) trata de estados de mudança, para melhor ou pior. São as demandas da intriga que tornam os incidentes necessários e verossímeis: é incluindo o discordante no concordante que a intriga inclui o comovente no inteligível. (MOTTA apud RICOUER, 2013, pg 148)
O procedimento de ordenar o encadeamento e a lógica dos eventos proposto
por Ricouer, aplicado ao contexto do produto analisado, começa a mostrar como o
narrador se utiliza do verossímil para efeitos de tensão e dramaticidade, entre
outros. Ou seja, para conseguir uma resposta emocional do seu espectador.
Partiremos do princípio que todo narrador, ao se comunicar narrativamente,
está se utilizando de estratégias e de recursos de linguagem para construir um
discurso argumentativo a ser transmitido ao seu interlocutor. São recursos de
atração, sedução, persuasão, convencimento, entre outros. A intenção é sempre
obter resultados subjetivos e efeitos de sentido que satisfaçam o projeto dramático
do narrador/documentarista/jornalista em questão (MOTTA, 2013).
Esses e outros procedimentos nos ajudam a encontrar constantes narrativas
e entender a estrutura interna do documentário, ou qualquer que seja o produto
27
jornalístico analisado. Entretanto, seu objetivo maior é revelar a intenção da
comunicação entre narrador e destinatário, e como essa é projetada pelo primeiro.
28
8. 3° MOVIMENTO - DEIXAR SURGIREM NOVOS EPISÓDIOS
Foi Vladimir Propp que usou primeiramente o termo função para se referir a
ações tomadas por personagens que têm um papel a desempenhar na narrativa
ficcional. Propp enumerou 31 funções iniciais, adaptadas e reduzidas em quantidade
com o tempo por outros autores. Aqui o termo é adaptado, pois a função passa a ser
exercida pelas escolhas do documentarista ou cineasta. Porém, o conceito de
episódio que usaremos aqui, ainda que tenha suas bases no estruturalismo de
Propp, tem mais proximidade do que propuseram Reis e Lopes (2007).
Assim como os dois autores portugueses, definimos o episódio como uma
unidade narrativa não necessariamente temporal e demarcada. Sua extensão pode
ser variável e está mais relacionada à ação, que ocorra em sua totalidade narrativa,
dentro dessa unidade e espaço temático que pode ser redefinido ou mesmo
identificado pelo analista (MOTTA apud REIS e LOPES, 2013).
Motta (2013) sugere uma renomeação e configuração dos episódios que
compõem o objeto de estudo por parte do analista. Dessa forma, poderemos dividi-
los não só pelo formato de exibição, mas por eixos temáticos e funções narrativas,
ressignificando-os. Procuramos então analisar os episódios de O.J: Made In America
não por sua divisão original (partes um à cinco, sem nomeação dos capítulos), mas
pela nova divisão temática que proporemos na etapa de análise.
A identificação temática e a nomeação dos novos episódios podem revelar estratégias semânticas do narrador na construção dos sentidos da estória e os papéis funcionais dessas unidades básicas. Podem revelar como o narrador dispõe estrategicamente personagens, cenários, incidentes, conflitos, tensões, fracassos e conquistas. Ou seja, como ele organiza o plano da intriga a fim de produzir determinados efeitos dramáticos como o suspense, a tensão, o clímax, os pontos de virada, etc. (MOTTA, 2013, pg 160)
Na análise da narrativa jornalística, e nesse movimento em particular, é muito
comum a observação sistemática dos momentos de suspense. Por isso, iremos
inserir aqui também a busca por esse artifício para retardar a conclusão da história,
deixar em suspenso significados, aumentar a tensão ou ainda as expectativas do
interlocutor.
29
O suspense é um recurso dramático chave, relativamente desprezado na narratologia. Talvez porque fosse considerado pelos romancistas clássicos um recurso da narrativa popular e desprezível. Entretanto, todos os grandes romances da literatura ocidental utilizam frequentemente os recursos da sedução dramática: fazem perguntas, trazem situações inconclusivas e retardam respondê-las para capturar a atenção. (MOTTA, 2013, pg 156)
Lodge (2010), separa as perguntas narrativas em duas categorias:
causalidade (“quem fez?”) e temporalidade (“o que vai acontecer em seguida?”).
Segundo ele, o suspense é um efeito de sentido derivado dos thrillers, gênero que
vive essencialmente da tensão, medo e ansiedade. Já Campos (2007) define
suspense como o sentimento de expectativa para alguma ação ou incidente, ou
ainda de uma informação que deveria se seguir a uma pergunta. E são essas
perguntas que motivam os espectadores a continuar seguindo a narrativa. Como o
próprio diz, elas têm a finalidade bem definida de “prolongar as ações das
personagens e reter a atenção”.
30
9. 4° MOVIMENTO - PERMITIR AO CONFLITO DRAMÁTICO SE REVELAR
Esse passo é especialmente relevante pois, entende-se que o conflito (ou
conflitos, quando o caso) é o elemento central de qualquer narrativa, em especial a
jornalística, que lida sempre com o discordante (RICOUER, 1994). Ou seja, eles vão
gerar a ação que impulsiona a história contada e continuarão a manter a narrativa
viva quando inseridos novos conflitos diferentes na sequência episódica. “O conflito
é o núcleo em torno do qual gravita tudo o mais na narrativa”, afirma Motta. Há
sempre ao menos dois lados em um conflito, assim como interesses contraditórios,
que devem aqui ser levantados.
Cabe então ao analista identificar os conflitos principais e secundários da história recomposta (da nova síntese). Eles podem ser políticos, econômicos, psicológicos, familiares, jurídicos, policiais, etc. O analista trabalha agora com a sua própria recomposição do acontecimento, que confrontará permanentemente com as notícias originais para construir sua interpretação. (MOTTA, 2007, p. 150)
Como o documentário se apresenta como biográfico, ainda que o maior
conflito seja o assassinato de Nicole Brown e Ronald Goldman, ele não é
apresentado de imediato. Vários outros conflitos são introduzidos durante a narrativa
como embates raciais, judiciais e os elementos decorrentes da fama. A identificação
desses conflitos permitirá discernir e compreender a funcionalidade de cada episódio
dentro do enredo.
Vale apontar que o conflito não é originário da representação dramática, mas
sim do “mundo real” em que estamos inseridos. Pode ser considerado uma categoria
específica da política, psicanálise, sociologia ou ainda de outros estudos sociais
(SCHMIDTT, 2009). Dessa forma, é natural que seja retratado, comumente em seu
modo exacerbado, em nossas representações dramáticas da realidade.
Em diferentes formas, encontramos o conflito como motor impulsionante da
narrativa nas sequências-tipo (citadas anteriormente) ou ciclos narrativos de
diversos autores. Todorov (1970) trabalha com o equilíbrio-desequilíbrio-novo
equilíbrio, Larivaille (1974) usa os termos perturbação-resolução-transformação e
Field (1979) a apresentação-confrontação-resolução. Seja chamado de
31
transgressão, incidente, ruptura ou afins, o conflito sempre está presente no foco da
história.
Aqui voltamos a tratar de um projeto dramático maior, onde Motta (2013)
reforça a necessidade de sua identificação afirmando que o conflito dramático é “o
frame cognitivo (enquadramento, perspectiva, ponto de vista) através do qual o
narrador organiza a difusa e confusa realidade que pretende relatar”. Entender e
observar os conflitos dramáticos permite ao analista perceber o projeto dramático
em construção.
A narrativa jornalística coloca sucessivamente uma personagem versus outra, como opositores (partidos, políticos profissionais, autoridades, etc.) nas páginas e telas, contaminando toda a cobertura, incitando oposições e, assim, instituindo (e fomentando) dualismos artificiais na vida política contemporânea. (MOTTA, 2013, p.171)
Aplicando-o no contexto do jornalismo, o frame dramático é aquilo que está
consolidado no imaginário popular e é utilizado pelos jornalistas pois facilitaria o
trabalho recorrente de fazer com que os receptores compreendam a notícia do modo
que é esperado (MOTTA, 2013). Seria como uma fórmula, que retira a complexidade
da maioria das narrativas.
32
10. 5° MOVIMENTO - PERSONAGEM: METAMORFOSE DE PESSOA A
PERSONA
O personagem é o ponto central de toda narrativa, é o foco do conflito
dramático. Há certo consenso sobre essa centralidade do personagem, seja em
autores da narrativa jornalística, como Motta (2013) ou ainda o roteirista de ficção
Syd Field. Field (2001) ainda separa as interações possíveis das personagens em
três ações: “1) experimentar conflitos para alcançar uma necessidade; 2) interagir
com outras [personagens] antagônica ou cooperativamente; 3) interagir consigo
mesma (medo, coragem, determinação, etc.)”.
Como tratamos aqui de uma narrativa jornalística, é a partir do conflito que
poderemos mais claramente identificar nossos agentes narrativos (CAMPOS, 2007).
Desvendando o projeto dramático já estabelecido, é fácil chegar a conclusão que
suas forças antagônicas serão personagens principais da narrativa geral, e devem
ser essas o foco da observação.
Deve-se, portanto, evitar a análise psicológica ou social da personagem e concentrar as observações de sua representação como figura do discurso jornalístico, observar como o narrador imprime no texto marcas com as quais pretende construir a personagem na mente dos leitores/ouvintes. É por outras vias que chegaremos às questões políticas e sociais. (MOTTA, 2007, p. 150)
A pesquisa irá identificar os papéis atribuídos pelas narrativas aos atores
sociais que delas participam. Será interessante notar como vários desses atores
sociais (termo de Bill Nichols que engloba tanto as pessoas representando a si
mesmas no documentário, quanto atores de fato interpretando esses) não são
necessariamente seres dotados de traços antropomórficos, replicando atitudes e
comportamentos humanos, como definido por Prince (1987).
Um personagem pode também ser a representação de um conceito ou
mesmo um local (CAMPOS, 2007). A cidade Los Angeles, ou a instituição
Departamento de Polícia, pode ser considerado um personagem, já que realizam
ações que estimulam o andamento do enredo e participam ativamente da
intriga/conflito principal da trama. O sentimento coletivo de injustiça racial que vai
sendo construído do primeiro ao último episódio do documentário analisado, também
33
pode ser considerado um personagem, já que influi ativamente no desenrolar da
história.
Um segundo passo possível para a análise é a caracterização desses
personagens, de suas dinâmicas sociais, de como se posicionam dentro da intriga
da narrativa e mais ainda, como suas personalidades são representadas e
construídas pelo narrador.
34
11. 6° MOVIMENTO - AS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS E
ARGUMENTATIVAS
Tanto Bernard (2008) quanto Motta (2007) pregam em seus discursos que
parte do trabalho jornalístico documental é narrar a história como se não houvesse
nenhuma interferência de um narrador, dissimulando a estratégia narrativa como se
não houvesse uma pessoa por trás da narração, como se a “verdade estivesse lá
fora”. Diferentemente da ficção, que se diferencia pela presença (explícita ou
implícita) do sujeito narrador (MOTTA, 2007). Destacar os recursos de linguagem
que causam esses efeitos de real e interpretar a sua utilidade na estratégia narrativa
é uma das tarefas fundamentais do analista nesse passo do processo. Desmascarar
a falsa objetividade se quisermos entrar na dramaticidade do tema, pois “a
objetividade é também uma estratégia argumentativa” (id, 2007). Citações
frequentes, datação e o uso abundante de números e estatísticas são só alguns
exemplos do que serão apontados aqui como recursos. Porém, se essas citadas
acima são estratégias de objetivação, também teremos que observar as estratégias
de subjetivação, com a intenção de construir efeitos poéticos ou sentimentais. Esses
jogos de linguagem e ações estratégicas de constituição de significação em contexto
serão observadas nesse movimento em particular, divididas muitas vezes em efeitos
do real e efeitos estéticos de sentido.
Toda narrativa é um permanente jogo entre os efeitos de real (veracidade) e outros efeitos de sentido (a comoção, a ironia, a dor, o riso, a compaixão, etc.), mais ou menos exacerbados pela linguagem dramática. As narrativas realistas utilizam uma linguagem referencial para vincular sempre os fatos ao mundo físico, mas criam incessantemente efeitos catárticos, como na ficção. A retórica dessas narrativas estimula um permanente jogo entre as intenções do narrador e as interpretações do receptor. (MOTTA, 2013, pg 196)
Enquanto o discurso narrativo subjetivo (ficção) é menos discreto, o discurso
narrativo objetivo de um jornalista, biógrafo ou historiador, é definido pela
afastamento e dessubjetivação da atuação do narrador. Caberá ao analista achar
esses efeitos na narrativa jornalística, particularmente sutil e, por natureza, treinada
em camuflar ou dissimular suas estratégias argumentativas. É o que chamamos de
35
retórica da narrativa realista, proeminente no jornalismo e na historiografia, o
narrador que finge não narrar, na tentativa de negar sua presença (MOTTA, 2013).
11.1 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS DO REAL (A CONSTRUÇÃO
DA VERACIDADE)
Aqui tratamos de estratégias que ajudem o narrador realista a fazer com que
seus interlocutores interpretem os fatos apresentados como verdades absolutas,
“como se os fatos estivessem falando por si mesmos” (MOTTA, 2013). No texto
escrito, citações frequentes conferem a veracidade que só uma testemunha ou
especialista pode dar sobre o tema. No audiovisual, depoimentos e entrevistas
fazem o mesmo, afastando o narrador (jornalista) do discurso que está transmitindo.
Situar geograficamente, e sistematicamente, lugares e personagens também
é uma maneira de reforçar o domínio da informação. O mesmo vale para uso dos
nomes próprios de lugares, instituições ou outros agentes de conhecimento público.
A familiaridade com esses irá reforçar a realidade das situações em que estão
envolvidos, pensando no ponto de vista do leitor, ouvinte ou telespectador.
Estar sempre referenciando temporalmente os eventos têm propósito
semelhante. Datas, horários exatos ou especificações como “após o almoço”, “na
saída do trabalho” e afins. São os chamados dêiticos espaço-temporais4 (MOTTA,
2013). Por último, mas utilizando a mesma lógica de transmitir veracidade, está o
uso extensivo de números e estatísticas, assim como quantias ou dimensões
precisas. Aqui desde a altura de pessoas a números como “a vítima comprou seis
pães naquele dia” são estratégias.
11.2 ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE EFEITOS ESTÉTICOS
Quando falamos de efeitos estéticos de sentido, é importante não confundi-
los com o que vemos nas imagens ou o que a semiótica nos permitiria interpretar.
Ao menos não no conceito do autor a que nos referimos aqui. O efeitos de sentido
4 Dêiticos são elementos do discurso com função de trazer coerência e situar a ação e os sujeitos no ato de
comunicação.
36
para Motta (2013) são descritos como os mesmos que podem ser observados na
recomposição da intriga, no primeiro movimento de análise de Motta. Observaremos
aqui as sutilezas de forma e estilo narrativa que induzem o espectador a sentir
determinadas emoções. O encaixe de determinada entrevista e personagem em
seguida de outro menos carismático ou crível, por exemplo, é uma estratégia de
efeito estético com resultados que afetam a subjetividade do interlocutor. Aqui ele os
considera os efeitos poéticos e metafóricos, fazendo relação direta com o que será
encontrado no sétimo movimento de análise.
11.3 A RELAÇÃO COMUNICATIVA E O “CONTRATO COGNITIVO”
No campo da narratologia de ficção, podemos chamar o que será analisado
aqui de foco narrativo ou perspectiva narrativa ou ainda de “o ponto de vista”. Na
teoria jornalística fala-se mais em abordagem ou até enquadramento. De qualquer
forma, seguindo a análise pragmática da narrativa, o que nos interessa
academicamente aqui é a relação comunicativa entre narrador-narratário, o jogo de
interpretações da audiência e intenções do comunicador. Aqui o interesse foge da
relação entre narrador e narrativa, já abordada anteriormente. O texto servirá
apenas como a conexão a ser analisada entre os dois pontos. Serão levantados
pontos externos e situações que ocorrem extracampo de tela, como por exemplo
repercussões ao lançamento do produto e o contexto em que foi lançado. Também
será abordado o chamado pelo autor “contrato cognitivo” firmado entre jornalistas e
documentaristas (narradores) e audiência (narratário). Por convenção, esse contrato
estabelece como certos os princípios da objetividade e “verdade dos fatos” (MOTTA,
2007). É esse pacto que gera a confiabilidade necessária para uma eficiente
comunicação jornalística, e é sua maior diferenciação da comunicação ficcional de
entretenimento.
37
12. 7° MOVIMENTO - METANARRATIVA: SIGNIFICADOS DE FUNDO MORAL OU
FÁBULA DA HISTÓRIA
Partimos do pressuposto defendido pela narratologia de que toda narrativa se
constrói sobre um fundo com cunho ético ou moral (TODOROV, 1970). Claramente
nas fábulas infantis, novelas e romances essa mensagem é mais evidente, mas
mesmo as narrativas jornalísticas não deixam de apresentar essa característica.
Esse fundo ético e moral vai surgindo cada vez mais nítido ao longo da análise do acontecimento: é o plano da estrutura profunda da narrativa. Ele pode saltar logo no princípio, aparecer gradualmente quando os movimentos iniciais da análise forem sendo concluídos ou só se configurar no final. Pode ser predominantemente de ordem ética, moral ou filosófica, ainda que também possa ter aspectos políticos, religiosos ou ideológicos. Nenhuma notícia está nos jornais sem que haja uma razão ética ou moral que justifique seu relato. (MOTTA, 2007, p. 150)
Neste último movimento analítico chegamos a instância da interpretação mais
livre da narrativa, ainda que objetiva. Serão exploradas as camadas que produzem
reações emocionais do leitor, ouvinte ou espectador. Entendendo que a narração de
um acontecimento afeta as pessoas e desencadeia uma série de sentimentos, são
esses processos, que Marina e Penas (1999) chamam de catárticos e cognitivos,
que a análise precisa revelar. Para isso, eles podem ser divididos em tribos ou
blocos de sentimentos (asco, coação, euforia, desânimo, confusão, segurança,
medo, fracasso, confiança, esperança, culpa, felicidade, etc.) e identificados por uma
função narrativa básica, que pode mudar de acordo com os desencadeamentos,
intensidade ou rumos em que a história se encaminhar ou se situar (MOTTA apud
MARINA e PENAS, 2013).
Esse momento de compreensão da metanarrativa é comparado ao conceito
literário de epifania. Para Lodge (2010), epifania se refere aos momentos ou
passagens em que a realidade esteja carregada de um significado transcendental.
Já as metanarrativas que buscaremos na análise podem conter também elementos
ideológicos, referenciais ou históricos no lugar de tais elementos transcendentais.
Ainda assim Motta (2013) afirma que “as metanarrativas têm sempre muito de
epifânico: ao revelarem certas transcendências, funcionam algumas vezes como o
clímax da resolução e da compreensão mais profunda de uma estória”.
38
É nessa etapa também que indagaremos a necessidade da arte imitar a vida,
do desejo de transformar eventos reais em histórias. Seria o impulso cultural de
narrar, que remete às mitologias gregas e religiosas e à necessidade de
compreender o todo? De qualquer forma, a necessidade da narrativa dentro de uma
história real (já uma narrativa em si) caracteriza essa última etapa. Assim como o
fundo fabulesco, que pode aparecer da maneira mais simples como uma moral da
história em um conto infantil, ou ainda em seu formato metáfora mais complexa da
sociedade.
39
13. O MÉTODO DE ANÁLISE
Foram utilizadas algumas das sugestões de Motta (2013) e de seus
movimentos para que fossem criados os métodos de análise do documentário O.J.
Simpson: Made In America nesta pesquisa. Apenas o quinto movimento,
“Personagem: Metamorfose De Pessoa A Persona”, não será explorado nesta
pesquisa, pois o foco aqui é a construção da narrativa e, apesar de fazer parte de
como é contada a história, a caracterização dos personagens pode ser considerado
um tópico de pesquisa separado em si. Todos os outros movimentos, do primeiro ao
sétimo, estão relacionados a relação de comunicação entre o narrador e seu
interlocutor, assim como a relação destes com a própria narrativa, e por isso serão o
foco desta análise.
Foi escolhido trabalhar com o produto em sua forma seriada, visto que ele foi
exibido em sua totalidade no festival de Sundance, em formato de filme único, e em
cinco episódios pelo canal de televisão fechada ESPN. Isso facilitou a análise, pois o
modo episódico é como o produto foi pensado inicialmente, o que fica claro quando
observado onde estão seus pontos de virada e suspense, além da divisão de temas
pelo tempo aproximado de um episódio.
O primeiro passo será decompor e recompor a história, isto é, organizar os
eventos distribuídos nos capítulos da história em uma ordem cronológica
reorganizada, com destaque para os pontos de virada ou ganchos narrativos. Isso
atenderia o primeiro e o segundo movimento de Motta (2013), que estabelecem a
“reconstituição da intriga” e a “compreensão da lógica do paradigma dramático”.
Aqui foi criada uma linha do tempo com destaque para os acontecimentos-chave das
jornadas de quem consideraremos os dois protagonistas do documentário analisado:
O.J. Simpson e o embate entre a população negra e a polícia da cidade de Los
Angeles. Em determinado ponto histórico essas duas histórias irão convergir,
momento em que identificamos a intenção da narrativa construída (ou a dita lógica
do projeto dramático) assim como começa a se desenhar a fábula por trás do
discurso, ou a metanarrativa segundo o sétimo movimento.
Motta já dizia que a análise dos movimentos não precisa nem deve ser feita
numericamente ou em sequência, mas sim paralelamente. É por isso que o primeiro,
40
segundo, terceiro e sétimo movimentos serão analisados a partir das escolhas de
montagem que serão exemplificadas na análise da linha do tempo. Para o quinto
movimento, faremos a re-significação da divisão dos episódios, para assim
relacionarmos essa divisão com a ordem narrativa clássica. Usaremos sequências-
tipo de Propp, Field, Todorov e Larivaille para verificar comparativamente se nosso
produto segue essas diretrizes, que atendem tanto a ficção quanto a narrativa
jornalística.
Finalmente, o sexto movimento demanda que as estratégias de efeitos do real
e estéticos sejam apontadas de forma a justificar o projeto dramático pretendido pelo
autor. Após uma observação sistemática do discurso, encontramos algumas
recorrências que podem ser apontadas como resultados.
41
14. RECONSTITUIÇÃO DA NARRATIVA
A linha do tempo construída abaixo segue os principais eventos da vida de
O.J. Simpson, o personagem-título, e do conflito entre a população negra da cidade
de Los Angeles e o departamento de polícia local, conforme relatados pelo
documentário O.J: Made In America. Reforçamos que muitos outros eventos
simultâneos acontecem aos fatos que foram escolhidos para serem destacados. Isso
é uma opção de análise, já que estabelecemos o interesse nas narrativas já
discutidas. O efeito da fama e a personalidade pública versus a personalidade
privada de O.J. Simpson, assim como detalhes do relacionamento entre Simpson e
a segunda esposa são temas abordados pelo documentário que escolhemos não
aprofundar por questões práticas de pesquisa. Como sugerido anteriormente por
Motta (2013), é necessário que um frame de análise seja definido para que não se
perca o foco.
Os eventos estão ordenados nem sempre cronologicamente pois, dispondo-
os da maneira que a série os exibiu, conseguimos começar a entender os efeitos de
sentido pretendidos. Esses efeitos, assim como os artifícios de suspense e
veracidade serão exemplificados nessa mesma sequência de eventos por meio de
notas explicativas.
Seguiremos a análise somente até o momento em que, conforme
interpretamos, as duas histórias convergem e se tornam a mesma narrativa: no
momento em que o ex-atleta é preso pelo assassinato de sua ex-mulher e se torna
um caso judicial notório. Isso acontece na marcação de 01 hora e 03 minutos do
terceiro episódio, ou passados aproximadamente 56% do tempo total (7 horas 26
minutos e 28 segundos) da trama.
Depois desse frame temático e temporal escolhido, a narrativa já foi
construída, o que encontramos são as consequências e eventos que o narrador
estava nos “preparando” para interpretar da maneira pretendida. Continuaremos
essa linha de raciocínio em um capítulo subsequente.
42
14.1 LINHA DO TEMPO COMENTADA
----------------------------------------- Primeiro episódio -----------------------------------------------
[ARTIFÍCIO DE SUSPENSE] - Primeira Cena: Vemos imagens de arquivo de
uma audiência de condicional, a data não é estabelecida. Sabemos que um
O.J. Simpson já envelhecido está preso, porém não se fala sobre o motivo.
Alguém pergunta sua idade no ano da primeira prisão. Ficamos sabendo que
foi em 1994. Fim da cena.
1947 - Orenthal James Simpson nasceu na cidade de São Francisco, Califórnia, no
dia 09 de julho.
1967 - O.J. chama a atenção de olheiros por suas habilidades atléticas, ganha uma
bolsa estudantil e ingressa na Universidade do Sul da Califórnia (USC) onde começa
sua carreira estelar no futebol americano universitário
.
Início dos anos 60 - Depoimentos da época e estatísticas do crescimento
exponencial da da população negra em Los Angeles, muitos em fuga da segregação
ainda existente em estados do sul dos Estados Unidos. As oportunidades estão
aqui, assim como a violência policial.
1950 - “Chief” Bill Parker assume o comando do corrupto departamento de polícia de
Los Angeles (LAPD) e promove uma limpeza e mudança de conduta vista como
muito positiva pela população, porém incluindo sua possível visão racista de mundo
na corporação. Começam os relatos de brutalidade policial contra a comunidade
negra.
NOTA: É no momento em que, após conhecer o personagem principal, O.J.
Simpson, e sermos transportados para a Los Angeles dos anos 50 que começa
a se desenhar a maior metanarrativa da série documental: como o racismo
institucionalizado da polícia promoveu uma situação tão insustentável de
43
desconfiança entre a comunidade negra e o sistema de justiça que causou a
absolvição de um homem possivelmente, em outras circunstâncias,
considerado culpado.
11 de Agosto de 1965 - No bairro periférico de Watts, a polícia reage com força
exagerada a um incidente, gerando a revolta da comunidade que toma as ruas e
revida violentamente. O evento ficou conhecido na mídia e posteriormente como
Watts Riots (as revoltas de Watts).
NOTA: Os bairros pobres, como Watts, ficam logo atrás da região do Coliseu,
estádio de futebol americano da USC. Voltamos as imagens de OJ como
celebridade na USC e seu status como único/primeiro negro que muitos
tinham conhecido na vida. USC não é vista como uma faculdade politicamente
engajada como outras na Califórnia, era focada no futebol e nos privilégios.
Seus alumni controlam todas as instituições importantes em LA,
resumidamente, o narrador quer nos mostrar que os filhos das pessoas
poderosas e influentes são vizinhos da periferia, mas estão isolados dessa
realidade. E é nesse ambiente que O.J. vai viver por muitos anos.
1967 - Muhammad Ali se recusa a servir ao exército americano na Guerra do Vietnã,
vários atletas negros, como Jim Brown e Bill Russell, seguem seu exemplo e falam
abertamente contra a Guerra e o racismo norte-americano. O esporte se mistura
com a política.
1968 - Atletas negros ameaçam boicotar os Jogos Olímpicos do México, que
aconteceram no mesmo ano, em protesto. John Carlos e Tommie Smith cerram os
punhos em alusão ao símbolo dos panteras negras ao conquistarem o pódio dos
200m livres na mesma competição.
1968 - Em entrevista, Simpson diz ter sido procurado pelo movimento dos direitos
civis dos negros, mas afirma não ter interesse em se envolver em tais questões. Ele
diz querer ser julgado pelas suas habilidades e não pela sua cor. “Não sou negro. Eu
44
sou O.J” se torna uma frase que ele utilizará inúmeras vezes em entrevistas.
NOTA: Colocar a atitude de heróis do esporte e do movimento negro em
oposição a O.J. Simpson, começa a uma série de referências que estabelecem
seu distanciamento e desinteresse pela causa racial. Essa será somente a
primeira vez em que ele começa a se ver como alguém que transcende raça.
1968 - O.J. recebe o Troféu Heismann maior prêmio do esporte universitário.
4 de abril de 1968 - Morte de Martin Luther King é sentida por todos.
NOTA: Em uma escolha de efeitos estéticos e de sentido, são alternadas
imagens de multidões negras recebendo a notícia da morte de Martin Luther
King com O.J. recebendo o prêmio em meio a uma audiência majoritariamente
branca. O luto e a euforia em contraste.
1969 - Simpson é recrutado pelo time Buffalo Bills e passa a jogar na NFL, a liga
profissional de futebol americano.
Anos 50/60 - Imagens e depoimentos de amigos de infância de O.J. estabelecem
que ele teve uma infância humilde nas áreas mais pobres de São Francisco.
Ficamos sabendo de histórias da sua adolescência. Começa aqui a construção de
sua personalidade futura.
1973 - “O renascimento de sua celebridade”, após anos apagados na fria Buffalo,
onde ele sente a falta da Califórnia e dos holofotes. Ainda assim tem uma temporada
perfeita, ganha o apelido The Juice e bate o recorde de 2000 jardas da NFL.
1975 - O.J. vira o rosto da marca Hertz com uma propaganda icônica na televisão
americana e é o primeiro homem negro com tal posição. Publicitários argumentam
que com ele é possível atingir o público negro, com representatividade, e os
brancos, já que é um atleta “contra revolucionário”. Isso catapultou sua carreira
midiática. Ele passa a ser capa de revistas, participar de talk-shows e afins.
45
NOTA: Simpson sobre raça novamente: “Esse tipo de coisa me dói [esperarem
dele uma posição política], mesmo tendo lutado por isso [sua posição
privilegiada]. Seja um homem em primeiro lugar. Talvez seja dinheiro, uma
coisa de classe. O negro é sempre identificado com a pobreza. Mas pensamos
em Willie Mays como negro, mas não Bill Cosby. Portanto, é mais do que
apenas dinheiro. Como negros, precisamos de alguém lá em cima o tempo
todo para nós, mas o que eu estou fazendo não é por princípios ou pelos
negros. Não. Estou cuidando primeiro de O.J. Simpson, sua esposa e sua
família.”
1977 - Ele começa a investir mais em sua carreira de ator com a série A Killing Affair
e o filme Capricorn One. No fim deste ano ele conhece Nicole Brown, mesmo ainda
casado, eles começam a namorar. Essa é a primeira menção a ela, que viria a ser
sua segunda esposa.
[ARTIFÍCIO DE SUSPENSE] - Cena de encerramento do episódio: entre
imagens de arquivo da época, a irmã de Nicole confirma em depoimento para o
documentário como os dois eram apaixonados... “E é isso que torna tudo tão
triste”. Fim da cena, e do episódio um. Esse é o primeiro momento que
ficamos sabendo que houve uma tragédia ligada ao relacionamento.
-------------------------------------- Começa o Segundo Episódio ----------------------------------
1978 - Brentwood, a vizinhança onde O.J. Simpson viria a morar em uma mansão é
caracterizada como um paraíso do subúrbio de Los Angeles, onde políticos e
celebridades vivem.
Janeiro de 1979 - Eula Mae Love é assassinada por policiais em sua casa em meio
a uma disputa por uma conta de gás de 22 dólares. Daryl Frances Gates, o
comissário da LAPD defende os policiais. O crime é considerado legítima defesa. Se
46
torna um novo marco de revolta.
NOTA: Novamente o contraste da vida que Simpson levava e o quão
desconectado da realidade de outros estava. Procuramos a partir daqui por
mais sinais de que o narrador está se encaminhando para o argumento de que
O.J. não poderia ser considerado parte da comunidade por não sofrer os
mesmos preconceitos que eles, e portanto não poderia depois receber os
“benefícios” de ser um deles que viriam no futuro.
1979 - OJ se aposenta do futebol e se divorcia da primeira esposa, Marguerite.
1985 - Nicole e O.J. se casam.
1988 - O primeiro filme da série Corra Que a Polícia Vem Aí é lançado, O.J. faz seu
primeiro papel cômico como um policial e é um sucesso. Policiais comentam que ele
era muito popular entre eles e dava festas caseiras para os oficiais de sua
vizinhança.
Entre abril de 1987 e abril de 1988 - Operação Hammer (Martelo), o chefe do
departamento de polícia institui uma política de guerra contra as drogas fazendo
batidas e apreensões de suspeitos sem a necessidade de mandatos.
Aproximadamente 1600 prisões são feitas em meses, todas nos bairros
majoritariamente negros da cidade.
01 de agosto de 1988 - Rua 39 e Dalton, policiais destroem uma casa onde só
moram mulheres e crianças. Não encontram drogas ou nada criminoso, ainda assim
o prejuízo é incalculável e a LAPD não se responsabiliza.
01 de janeiro 1989 - Áudio de ligação de Nicole sendo agredida para a polícia.
Policial testemunha, e vemos imagens. Descobrimos que essa é a oitava vez em
que ela tenta prestar queixas. O policial que atende o caso tenta prender O.J. em
flagrante, ele foge e se torna um fugido. Com a ajuda de contatos da polícia, ele tem
47
tratamento preferencial, faz um acordo de serviço comunitário, e não vai preso.
3 de março de 1991 - Vemos imagens da agressão contra Rodney King, um dos
casos mais icônicos de violência policial. Quatro policiais, diante de outros tantos,
espancam um homem negro indefeso no chão que havia sido parado por estar
dirigindo acima da velocidade permitida. O caso tem alcance internacional,
causando o departamento a pedir desculpas e novas condutas a serem implantadas.
16 de março de 1991 - Latasha Harlins, uma menina negra de 15 anos é
assassinada por uma comerciante coreana, o crime é filmado por câmeras de
segurança. Ainda assim, a mulher é condenada a pagar com prestação de serviço
comunitário. Isso gera reações inflamadas na comunidade negra.
1990 - Notícias da violência doméstica chegam à mídia, mas são diminuídas por
jornalistas, e pelo próprio O.J., como uma briga de casal não violenta ou um mal-
entendido. Ele admite não ter sofrido nenhum tipo de represália por parte de
patrocinadores. Nicole eventualmente o aceita de volta.
29 de abril de 1992 - Os policiais do caso Rodney King são inocentados por um júri
inteiramente branco em um bairro conhecido por ser habitado por famílias de
policiais. Isso gera novas revoltas violentas em Los Angeles, comércios são
vandalizados, casas são incendiadas e uma multidão marcha contra a polícia.
NOTA: Ao intercalar o tratamento preferencial de O.J. e seu relacionamento
amistoso com o departamento de polícia com o tratamento que outros negros
estavam recebendo pela mesma, o narrador o distancia mais uma vez da
realidade do resto desse grupo racial. Esses eventos serão particularmente
relevantes para a resolução do conflito principal, jurados viriam a admitir que
consideravam inocentar Simpson uma espécie de compensação por King. E a
escolha de retratar esse distanciamento reforça a impressão de que há um
julgamento por parte do narrador que está sendo passado ao público.
48
25 de outubro de 1993 - Já se separando e morando em outra casa, Nicole liga
para a polícia novamente. O.J. está a ameaçando e tentando invadir sua casa.
22 de maio de 1994 - Após idas e vindas, Nicole oficialmente se separa de
Simpson.
[ARTIFÍCIO DE SUSPENSE] Última cena da episódio: Uma amiga de Nicole
conta como ela finalmente conseguiu se desprender do antigo casamento e
começava uma vida nova. “Ela era agora praticamente inatingível para ele, ela
era um espírito livre. Talvez tenha sido isso que causou a sua morte”. Fim do
episódio e primeira menção ao assassinato. Agora sabemos que tipo de
tragédia se desenhava. Entretanto, a cena inicial nos direciona a crer que a
prisão de O.J., na primeira cena do documentário, está relacionada com isso.
Ainda estamos sendo direcionados ao erro pelo documentarista, garantindo
assim mais um momento de virada no futuro.
--------------------------------------- Começa o Terceiro Episódio ----------------------------------
-
13 de junho de 1994 - Dia do assassinato de Nicole Brown e Ron Goldman.
O.J. é considerado o principal suspeito com múltiplas provas físicas e DNA.
NOTA: A reconstituição dos eventos da noite do é feita por meio de legendas
com os horários dos fatos. Exemplo claro de uso de dêiticos temporais para
veracidade. Os dêiticos de localização estão presentes também em todas as
primeiras cenas que estabelecem as locações. Podemos considerar as
imagens da cobertura televisiva da época um tipo de dêitico, já que nos situa
no contexto midiático que os participantes desses eventos estavam. Essas
imagens permeiam o documentário todo, mas são particularmente
interessantes de observar durante o julgamento, já que esse foi integralmente
televisionado.
49
Anexo 1 - Sequência de seis frames de imagens retiradas conforme exibidas na marca de tempo 11 minutos e 32 segundos da terceira parte do documentário O.J: Made In America.
17 de Junho de 1994 - Seu advogado faz um acordo de rendição para O.J. que não
aparece causando um constrangimento público para a polícia, ele é considerado um
fugitivo. Helicópteros de toda mídia perseguem o carro com várias viaturas atrás.
Allen Cowlings, seu melhor amigo, liga de dentro do carro, diz que OJ está
ameaçando se matar e só quer ver sua mãe. A polícia só escolta o carro, não
tentando parar o carro de maneira alguma, considerado comportamento fora do
padrão da polícia. A desconfiança contra a polícia de Los Angeles se mostra nos
depoimentos dos apoiadores de O.J. e no medo dos policiais de tomarem alguma
ação que suje ainda mais sua reputação. Nos viadutos pessoas carregam faixas
com mensagens de apoio a Simpson. Uma multidão o espera em sua casa, para
onde a polícia o encaminha e, depois de horas de negociação, o convence a se
entregar.
50
Julho de 1994 - Durante as audiências preliminares, jornalistas descobrem que o
investigador que encontrou as provas mais importantes da acusação tem um
passado com múltiplas ofensas raciais. Os advogados de defesa decidem usar “The
Race Card”, algo como a cartada racial, ou seja, toda a defesa será baseada no fato
de O.J. ser um homem negro e um dos investigadores um policial racista.
22 de julho de 1994 - Johnnie Cochran, ícone da comunidade negra e estrela de
múltiplos casos envolvendo injustiça racial e a polícia de Los Angeles, se torna o
advogado principal do time jurídico de O.J. Simpson. Ele é parte do que viria a ser
chamado “o time dos sonhos” dos advogados de defesa que defenderiam Simpson a
partir da teoria de uma conspiração policial para enquadrar um homem negro de
sucesso.
Áudio de Simpson durante a seleção do júri: “É interessante a seleção do júri. Eu
nunca na vida olhei para raça. Agora, pela primeira vez na minha vida, eu estou em
uma posição onde eu estou contando os negros do local. Contando os asiáticos. De
repente, o sistema me obrigou a encarar as coisas pelo viés racial.”
NOTA: É no momento em que o caso de assassinato, que tem todas as
evidências de um crime passional, se torna um julgamento da conduta da
polícia de Los Angeles, que finalmente as narrativas convergem e se revela o
projeto dramático do narrador. Não se trata apenas de uma biografia com
aponta a descrição original, suas subtramas são tão ou mais importantes que
a história do personagem central.
A partir desse ponto até o final do episódio quatro o documentário se torna
completamente focado nas minúcias do julgamento, desde a formação do júri,
predominantemente negro, até as testemunhas de acusação desacreditadas e o
DNA refutado. Não entraremos nesse mérito na análise, a fim de não abranger
demais nossa interpretação e pesquisa.
51
15. ANÁLISE DO PROJETO DRAMÁTICO E LÓGICA NARRATIVA
15.1 PROJETO DRAMÁTICO OU METANARRATIVA
Tivesse sido contada somente a história da vida e relacionamentos de O.J.
Simpson ou ainda somente sendo conhecido o histórico de injustiça racial e jurídica
na cidade de Los Angeles, no momento em que chegamos ao ponto crítico da
narrativa, que é o julgamento altamente midiatizado e polarizado pela questão racial,
o espectador poderia ter perspectivas bem diferentes dos fatos.
Não conhecendo nada do histórico abusivo do ex-atleta e de seu
posicionamento em relação a própria cor, a teoria de que esse seria apenas mais
um caso de racismo institucionalizado pela polícia de Los Angeles pode parecer
razoável. Ou ainda, excluindo a narrativa racial completamente até o momento em
que é trazida à tona no julgamento, e levando em conta somente o que sabemos do
histórico da celebridade, pode-se chegar a conclusão que foi uma incompetência do
júri ou mesmo a sua fama e privilégios que o livraram da cadeia.
Quando o narrador nos apresenta as duas narrativas simultaneamente, com
quase que o mesmo tempo de tela, ele está sutilmente dizendo desde o início:
“Atenção! Isso vai ser relevante em algum momento”. Mais do que isso, ao sempre
apresentar a contradição de O.J. Simpson não ter nenhum interesse em ser visto
como um homem negro ou em participar de causas que interessem a esse grupo
social, o narrador já imprime o que identificaremos como seu projeto dramático: Em
meio aos conflitos sócio-raciais de uma Los Angeles dividida, um homem rico e
privilegiado se beneficiou de uma reação social resultada por anos de violência
policial e injustiça racial. O narrador é crítico ao tratamento que o Departamento de
Polícia dá aos cidadãos negros, mas mais ainda à atitude de Simpson e de seus
advogados.
Ele falha ao causar a sensação de que existe uma possibilidade de inocência,
o documentário traz um número desequilibrado de depoimentos e evidências que
apontam para a culpa. Entretanto, ele consegue construir a dicotomia dos lados
opostos. Nós entendemos de onde vem a crença dos apoiadores de O.J. Assim
como eles, nós fomos apresentados a provas de que a justiça e a polícia podem ser
52
parciais em questões raciais. Mas como espectadores oniscientes (da seleção de
fatos que nos é ofertada) também sabemos que se trata de um crime
completamente possível devido ao histórico da vítima e do acusado, como as
famílias das vítimas se sentem.
15.2 CONFIGURAÇÃO DOS EPISÓDIOS
Convenientemente, o documentário O.J: Made In America é dividido em cinco
capítulos, esses não são nomeados e somente se distinguem pelo subtítulo “Parte
Um a Cinco”. Isso deixa ainda mais clara a relação com as sequências-tipo
narrativas, já que a divisão quinária é a mais comum entre os autores estudiosos da
narrativa utilizados. Em uma tabela comparativa abaixo e uma descrição da função
de cada episódio, podemos relacionar as etapas com as divisões narrativas.
Legenda: Tabela de produção própria para efeito comparativo das teorias de sequências-tipo.
Os nomes escolhidos pela análise para identificar os episódios refletem a sua
função narrativa assim como o conteúdo temático daquele para os protagonistas. O
primeiro episódio retrata toda a carreira bem-sucedida no esporte que viria a torna
O.J. Simpson uma celebridade, assim como relatos da sua infância e adolescência
na periferia de São Francisco. O constrói como alguém que conquistou tudo sozinho
vindo do nada, e aqui vemos a história dessa “Ascensão”. Ao mesmo tempo somos
53
contextualizados com o aumento da população negra em Los Angeles, os bairros
que habitam e o relacionamento com as autoridades da cidade desde os anos 50 até
meado dos anos 70. Conhecemos algumas figuras e situações que seriam pilares do
que viria a se tornar o Movimento Pelos Direitos Civis dos Negros. A tensão racial
vai se construindo também na nossa narrativa, mas não chega ao seu pico.
É no segundo episódio que os eventos mais importantes para o conflito
principal da trama se acumulam. Observamos as revoltas violentas que ocorreram
na cidade ao longo dos anos, quase todas iniciadas após um caso de injustiça
jurídica ou violência policial. Alguns desses casos, Rodney King e Latasha Harlins,
há pouco mais de um ano antes do assassinato de Nicole Brown e Ron Goldman.
Observamos o que está sendo construído para se tornar uma situação insustentável
de tensão racial. Enquanto isso, vemos o “Auge” da carreira midiática de O.J. e de
seu relacionamento com Nicole. Do casamento às primeiras brigas, culminando com
as agressões físicas e o assassinato dela. É com essa preparação que chegamos a
terceira parte.
“O Crime” é o ponto central da narrativa daqui adiante, além de ser o ponto de
convergência entre as duas narrativas que caminhavam em paralelo. Esse episódio
cobre a reconstituição e depoimentos do que teria acontecido até o começo do
julgamento. A comunidade negra fica pessoalmente investida na campanha para
inocentar O.J. Simpson, muitos afirmando que sim, isso acontecia por um motivo
muito maior do que acreditar nele. Já Simpson, pela primeira vez em sua história
começa a se apoiar no fato de ser negro, característica que renega anteriormente
por não considerar importante já que sua celebridade transcendia fatores raciais.
Essa discussão se torna central no caso criminal, fazendo sombra às evidências e
outros fatores.
O título escolhido para a quarta parte foi “O Julgamento de Uma Nação”, já
que aqui temos um episódio exclusivamente sobre o drama no tribunal. Foi o
chamado “Julgamento do Século” pela mídia americana, seja por sua duração,
repercussão ou importância social. Não era só o julgamento de Simpson, mas de
toda uma cidade, e essa cidade era só uma amostra da realidade que o país vivia.
Segundo informações de uma pesquisa na semana do veredito replicada no
documentário, 77% dos americanos brancos acreditavam na culpa de Simpson,
54
enquanto 77% dos negros o declaravam inocente. E sim, o título escolhido também
é uma referência não tão sutil ao clássico (e infame) filme de D.W. Griffith, O
Nascimento de Uma Nação (1915)5.
Apesar de não citado na fase de análise da linha do tempo, o quinto episódio
enfoca a vida pós-julgamento de O.J. e as consequências da polarização que o
evento causou. Do momento em que o veredito é anunciado e as ruas da cidade de
Los Angeles são tomadas por comemorações de um lado e repúdio de outro. Até a
decadência de Simpson, já que, apesar do veredito de inocente, toda a mídia e o
seu antigo círculo social acredita na sua culpa. Anos depois, no ano de 2007 e com
61 anos de idade, ele invade com amigos um quarto de hotel em Las Vegas e rouba
artigos de colecionador de comerciantes que teriam objetos pessoais seus. Eles
mantêm os comerciantes no quarto e estão armados. Ele acaba indiciado por
sequestro e assalto a mão armada, sua sentença é de 33 anos no total. Finalmente
se encerra o gancho deixado na primeira cena do documentário, sabemos o real
motivo dele estar preso nas imagens mais atuais6.
A sentença é considerada exagerada para o porte do crime, por isso muitos
consideram uma compensação jurídica ao fato do júri ter o inocentado pelo
assassinato da ex-mulher e Ron Goldman. É um ciclo que se fecha. Quanto a
comunidade negra, hoje em dia a crença em sua inocência é quase nula e os líderes
do Movimento dos Direitos Civis concluem que a toda a situação só deteriorou ainda
mais a imagem do homem negro e as relações interraciais no país. Por isso o título
“Uma (Não) Resolução”. É o fim, mas ninguém teve sua realização final e nenhum
conflito foi efetivamente resolvido.
5 O Nascimento de Uma Nação é considerado um clássico do cinema mudo que retrata o período da Guerra
Civil Americana, que dividiu o país entre os estados abolicionistas e escravagistas. O filme é altamente criticado por retratar os afro-americanos como ignorantes e agressivos, além de usar atores brancos com maquiagem negra (a chamada black face) para interpretar esses personagens. A Ku Klux Klan também é considerada heroica no filme. 6 No dia 01 de outubro de 2017, o estado de Nevada concedeu a liberdade condicional a Orenthal James
Simpson, após 9 anos de pena cumprida.
55
16. CONCLUSÕES
Começamos essa pesquisa da dúvida sobre como identificar as escolhas
narrativas e em um produto documental jornalístico, visto que estas não parecem tão
claras como a narrativa de ficção, afinal, estariam envoltas pela objetividade
conferida pela função jornalística. Primeiramente, foi necessário definir quando
poderíamos chamar um documentário de jornalístico, já que não há consenso nesse
formato sendo exclusivamente informativo. Após estabelecermos essa possibilidade
com autores que criaram um método de classificação, o documentário O.J: Made In
America foi o escolhido como objeto de estudo. Pudemos encontrar em Motta (2013)
uma metodologia de análise narrativa jornalística que partia dos autores da narrativa
clássica, unindo assim as duas frentes: jornalismo e ficção. Não foi de interesse da
pesquisa seguir pelo caminho da ficção, mas foi introduzida a questão do quanto a
subjetividade do autor aparecerá em ambos.
Utilizando apenas um recorte temático de uma série documental pudemos
verificar o uso de efeitos de sentido já na escolha ordem em como são contados os
eventos. Já os efeitos de veracidade estão no uso de dêiticos, de estatísticas e na
ausência de um narrador presente, esse substituído por depoimentos e documentos
que conduzem a trama. Todas essas possibilidades foram exploradas nos capítulos
de dissertação sobre cada etapa do método, somente algumas foram exemplificadas
durante a análise, que se focou mais na construção de sentido pretendida pelo
narrador ausente (documentarista).
A reconfiguração dos episódios nos permitiu ver como eles se enquadram na
forma da narrativa clássica de ficção, sendo essa também um artifício da narrativa
jornalística, encontrando um elo entre o audiovisual informativo e o de
entretenimento. Foi feita uma releitura da sinopse de cada episódio, de forma a
encaixar nas atribuições de nossas personagens.
Enquanto essa pesquisa se trata mais de identificar meios com quem o
jornalismo conduz uma narrativa documental do que suas razões ou ainda
consequências, é apenas um primeiro passo para caminhos de pesquisa mais
amplos. Uma possibilidade é entrar na discussão da diferença de construção da
narrativa ficcional, comumente motivada pelo entretenimento, e a jornalística e seu
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viés informacional. O conceito que estão na intersecção dos dois já existe, é o
infotainment, a junção da informação factual com o formato de entretenimento.
Proponho uma comparação entre narrativas que contêm a mesma história,
como é o caso do filme ficcional, baseado em fatos reais, Monster (2013), com
Charlize Theron no papel principal, e os documentários Aileen: Life and Death of a
Serial Killer (2003) e Aileen Wuornos: The Selling of a Serial Killer (1992). Os três
filmes contam a mesma história real, a biografia e os crimes da assassina em série
Aileen Wuornos. A factualidade da história não quer dizer que a forma da narrativa
seja a mesma e pode ser interessante explorar essas diferenças de escolhas
estéticas, assim como as intenções de sentido dos realizadores. Os filmes acima são
apenas exemplos, essa metodologia poderia ser aplicada em qualquer obra que
tenha mais de uma versão. É o caso da própria história que analisamos. O seriado
American Crime Story: The People vs. O.J: Simpson é a contrapartida ficcional do
documentário analisado.
Essa foi uma pesquisa para descobrir os meios - os quais foram identificados
com sucesso - e não necessariamente os fins. É uma porta que foi criada para
pesquisas posteriores, essas sim que possibilitem maiores reflexões. Dentro do seu
pequeno ciclo, essa narrativa se encerra deixando em aberto o gancho para uma
sequência.
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