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A distribuição da renda e o desenvolvimento econômico∗
Fernando Cardoso Pedrão
Salvador, 1960
∗ Tese apresentada em concurso de títulos e provas para obtenção dos títulos de Doutor e Docente Livre da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia em 1960. Muitas modificações foram introduzidas nesta versão de 2004, para atualizar a linguagem, dar mais clareza ao texto e para remover expressões e exemplos que se tornaram arcaicos.
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Sumário
Introdução
Primeira Parte. A identificação do problema
1. Os diferentes aspectos da distribuição da renda
2. As funções da distribuição
Segunda Parte. Antecedentes teóricos
3. A contribuição dos clássicos
4. Marx e os contemporâneos
Terceira Parte. Fatores determinantes da distribuição
5. As formas de produção
6. As instituições políticas e sociais
7. O setor exterior
8. O governo
9. A inflação
Quarta parte. Uma incursão teórica
10 O tratamento unificado da distribuição
11. A fita de Moebius
Bibliografia
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Introdução
A preocupação central que tive na realização deste trabalho foi a de verificar as
condições oferecidas pelos países subdesenvolvidos para elaborar um esquema teórico
de análise da distribuição da renda em seu sentido mais amplo, dirigido ao próprio
desenvolvimento. Por isso, creio ser necessária uma explicação inicial do que pretendo
com essa orientação.
Muito se escreveu em economia sobre a distribuição da renda e o que se escreveu,
geralmente, constitui uma exploração no domínio da chamada distribuição funcional da
renda, isto é, da distribuição da renda entre fatores da produção. Esse ângulo para
abordar o problema interessa, mas não basta. Devemos ter presente que, se colocamos o
desenvolvimento na condição de ponto básico da vida econômica, teremos que
trabalhar sempre com o pressuposto de uma renda expansiva. Igualmente, teremos que
admitir que todo desenvolvimento implica, de um modo ou de outro, em alterações
estruturais dos regimes econômicos, e temos presente que as condições de distribuição
da renda exprimem características de estrutura, concluiremos que nosso tratamento do
tema do desenvolvimento econômico deverá partir de um ângulo nitidamente estrutural.
Assim, nesta pesquisa se toma como central a relação entre o processo de formação da
renda e o processo de expansão e mudança de composição do capital.
Entendo que a maior dificuldade que teremos que enfrentar neste caso, não está
tanto no comportamento da distribuição nos países subdesenvolvidos, onde,
evidentemente, as coisas acontecem de modo diferente a como acontecem nas
economias mais desenvolvidas, senão que provirão das dificuldades para conciliar o
tratamento da distribuição funcional da renda com essa distribuição vista desde outros
ângulos, tais como por setores da produção e por níveis de remuneração das pessoas.
Isto porque, sempre que se considere a distribuição do ponto de vista do
desenvolvimento, será preciso encará-lo, não só incluindo não só uma classificação por
setores da produção e no espaço, senão, também, da divisão funcional do produto e de
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seu grau de desigualdade segundo os níveis de renda pessoal. E o fato de ter sido a
distribuição funcional o ponto de partida para muitas especulações teóricas desde Adam
Smith, pode fazer esquecer que esses outros aspectos são de vital importância para uma
teoria que se ocupa do desenvolvimento. Mas se as estatísticas de renda nacional são
geralmente capazes de oferecer informações mais ou menos completas sobre esses
aspectos da distribuição, creio que não se exploraram suficientemente seus efeitos na
dinâmica do processo de desenvolvimento.
As razões da insistência em tratar a distribuição da renda através de seus múltiplos
aspectos, para identificar seus verdadeiros efeitos na dinâmica do desenvolvimento está
em que o desenvolvimento é um processo que tende a localizar seus focos dinâmicos
em certas atividades pertencentes a certos setores da produção e em certas localizações
físicas, tendendo a produzir determinados efeitos na repartição proporcional da renda
entre os fatores responsáveis de sua formação.
2. Em sua maior parte, os estudos sobre a distribuição não se preocuparam com o
desenvolvimento econômico. Alem de precisarmos de uma conceituação satisfatória de
desenvolvimento, precisamos estabelecer uma orientação de análise compatível com
essa abordagem. Entendemos desenvolvimento econômico como um processo de
transformação do sistema produtivo que dá lugar a melhoras das condições de vida da
maioria da população. Desenvolvimento econômico, portanto, entranha modificações
na distribuição da renda. Em razão disso, as premissas básicas de que nos serviremos
aqui tenderão a dar a nosso trabalho uma perspectiva pouco usual. As alterações
estruturais causadas pelo desenvolvimento, e as relações existentes entre essas
alterações, bem como o padrão de distribuição prevalecente, são objeto de nossas
apreciações, nas quais, por outro lado, procuramos sempre enquadrar as características
próprias das economias subdesenvolvidas que realizam esforços para emergir dessa
situação.
A abordagem clássica da teoria da distribuição deve-se a Ricardo: “O principal
problema da economia política é o de determinar as leis que regulam a distribuição da
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produção total da terra entre os trabalhadores, capitalistas, proprietários rurais e
latifundiários”. Essa frase de Ricardo exprime a situação do problema da distribuição
em um caso específico, o da Inglaterra, num determinado momento históricos, em que
havia uma disputa pela posse de uma fração proporcionalmente maior da renda entre
latifundiários e capitalistas. Contudo, ressaltam três pontos nessa afirmação: a
importância dada pelos Clássicos à teoria da distribuição, o tipo de distribuição a ser
feita, a funcional, que continua sendo o favorito da teoria, e o fato de que se referiam a
uma dada renda. Essa condição, uma dada renda, permanece ao longo de quase toda a
história da teoria da distribuição. Como já dissemos, parte desse ponto a diferença entre
o enfoque tradicional e o nosso. Desenvolvida em países do centro, a teoria se
preocupou do problema principal para aqueles países, que são as variações cíclicas dos
negócios. Na nossa perspectiva os ciclos são limites variáveis dos movimentos da
acumulação de capital, que regulam as possibilidades de desenvolvimento.
Em nosso caso, considerando que as variações cíclicas se originam nos países
desenvolvidos, isto é, nos países que constituem o núcleo central da acumulação
capitalista, que nossas economias estão ligadas às deles, e sofrem as conseqüências
dessas variações sem muito poder para defenderem-se delas, é perfeitamente explicável
que concentremos nossa atenção nos problemas do desenvolvimento sobre os que mais
podemos influir. Assim, daremos prioridade ao estudo da distribuição durante o
processo de crescimento das economias nacionais, antes que aos seus efeitos durante as
variações cíclicas da atividade econômica,.
Isso não impede que tenhamos presentes os efeitos das variações cíclicas sobre as
possibilidades de crescimento dos países subdesenvolvidos. As variações na demanda
dos seus produtos de exportação podem significar a anulação completa de seus esforços
de desenvolvimento e as quedas violentas nos preços internacionais de seus produtos
podem jogar fora do mercado àqueles países cuja vida econômica está baseada em suas
exportações. Em suma, a necessidade de alcançar níveis mais altos de produtividade
para enfrentar a situação adversa, ou o desestímulo causado pelas quedas nos preços,
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podem extinguir os focos dinâmicos felizmente existentes nas economias
subdesenvolvidas.
Por último teremos que fazer simplificações do material utilizado, de modo a
reduzi-lo a um conjunto de variáveis manejáveis para o raciocínio teórico. Algumas
delas são de caráter conceitual; outras, referem-se ao número de variáveis em jogo, e
outras, além disso, ao tipo dos efeitos que essas variáveis podem ter no processo
econômico em seu conjunto. Trata-se de uma análise dinâmica da distribuição da renda,
que significa trabalhar com o processo de distribuição da renda e de ligar a distribuição
da renda à distribuição do capital entre aplicações com diferentes efeitos no emprego.
A principal dessas simplificações refere-se ao que aqui se chamará de país
subdesenvolvido. A rigor, país subdesenvolvido, como entende Paul Baran, seria aquele
onde haja uma diferença entre a renda potencial e a renda real. Mas, com tal definição
quase todos podem ser considerados como subdesenvolvidos com maior ou menor grau
de justiça, e, entre eles, as duas maiores potências econômicas do mundo atual, os
Estados Unidos e a União Soviética. Mas essa classificação não nos serve, porque
diluiria os contornos de uma diferença que realmente existe entre um certo número de
países que possuem uma determinada utilização das vantagens do progresso
tecnológico e das comodidades sociais, e outros que não alcançaram essa situação. A
diferença entre a situação desses dois grupos no cenário internacional está caracterizada
pela CEPAL, quando classifica os países em centrais e periféricos e quando atribui
diferentes condições de se desenvolverem de uns e outros, com conseqüências
irreversíveis na dinâmica da distribuição da renda.
No entanto, os países da periferia tampouco estão em igualdade de condições.
Alguns têm ensaiado uma industrialização limitada, outros estão francamente
industrializados e outros ainda são meros produtores primários. Seus investimentos em
capital variam em intensidade e acerto, sua estabilidade política é apenas um desejo ou
já é uma realidade, mas quase todos desejam desenvolver-se. Neste trabalho se designa
subdesenvolvidos a todos aqueles que não têm controle sobre suas tecnologias básicas.
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E a atenção principal da análise aqui volta-se para os países em processo de
industrialização.
Cabe uma explicação da forma como o trabalho está escrito. A combinação que se
faz da discussão de um tema teórico com referências a determinados casos da
experiência de diferentes países subdesenvolvidos, resulta da convicção de que, sendo
a parte desenvolvida do mundo sujeito de uma experiência sem precedentes,
consideradas as condições sob as quais deverão realizar seus esforços para se
desenvolverem, qualquer tentativa de elaborar uma teoria com traços de aplicabilidade
nos países componentes da parte subdesenvolvida do mundo não poderá perder de vista
suas condições reais de funcionamento e suas características. Tais referências, por
força, prejudicarão o rigor do enquadramento teórico do problema que estudamos e
tirarão elegância ao método de análise. Em compensação, farão com que a análise fique
no mundo da realidade.
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PRIMEIRA PARTE: A IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA
1. Os diferentes aspectos da distribuição da renda
A distribuição da renda é um aspecto da totalidade do sistema de produção, que
deve ser vista, simultaneamente, em seu conjunto e através de seus aspectos. Como
totalidade, a distribuição surge da produção. Nas palavras de Marx, “...antes de ser
distribuição dos produtos, a distribuição é distribuição dos instrumentos de produção...a
distribuição que se realiza dentro do processo de produção mesmo”1 Essa visão de
totalidade se perdeu na teoria econômica com o advento do marginalismo, em suas
diferentes correntes.
A distribuição pode ser encarada desde diferentes ângulos, cada um dos quais com
características próprias e merece, por isso, atenção no relativo aos efeitos que a
desigualdade tem para o desenvolvimento. Entende-se que os principais aspectos pelos
quais interessa analisar a distribuição da renda estarão bem agrupados sob os títulos de
setorial, funcional, vertical, espacial, social e internacional. Nos capítulos seguintes
examinam-se esses aspectos um por um, como passo prévio para um esforço de reconstruir
a totalidade do sistema de produção através da perspectiva da distribuição da renda.
1 Karl Marx, Grundrisse, vol I, pp.12.
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2. Distribuição funcional
Importa saber quais são as porções da renda relativas ao capital e ao trabalho por
unidade produtiva. Como se viu antes neste trabalho, as participações do capital e do
trabalho nas funções de produção dos países subdesenvolvidos estão fortemente
influenciadas por fatores estranhos a suas economias, e, em grande parte, incontrolados por
eles. Do ponto de vista do empresário, pode acontecer que as técnicas de produção mais
econômicas não sejam aquelas de maior interesse do ponto de vista da economia nacional.
Um exemplo disso são as técnicas economizadoras de trabalho 2 em economias nacionais
onde há muita mão de obra ociosa. Celso Furtado nota a preferência habitual dos
empresários por essas técnicas em comparação com as técnicas economizadoras de capital.3
A conseqüência dessa preferência num sistema industrial relativamente pequeno, com uma
estrutura inadequada a suas dimensões, ao lado de outros fatores tais como uma
produtividade por homem mais baixa que a adequada às técnicas utilizadas pelo setor
industrial. Pode-se argumentar dizendo que o aumento de produtividade em um setor
aumenta a produtividade na economia em seu conjunto, mas o problema que se assinala
aqui consiste em que certos aumentos de produtividade por homem em certos setores têm
menos importância para a economia em seu conjunto, se outros setores contribuem para
criar desemprego disfarçado. Contudo, raciocinando com as coordenadas da produção
capitalista, é preciso admitir que o espírito empresarial tende a produzir uma minoria de
vanguarda onde a produtividade da mão de obra será mais alta que nas outras empresas.
Uma crítica inevitável a essa visão do problema consiste em mostrar que esses aumentos de
produtividade são temporários e que tendem a ser anulados por reajustes do sistema
produtivo em seu conjunto.
2 Preferimos a expressão técnicas economizadoras de trabalho em vez de técnicas poupadoras de trabalho, porque a segunda expressão indica trabalho que se deixa de realizar enquanto a primeira indica situações em que se obtém mais produto por um trabalho que será realizado. 3 Celso Furtado, A análise marginalista do desenvolvimento em Contribuições à análise do desenvolvimento, Rio, Liv. Agir ED., 1957.
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O papel dos empresários de tipo schumpeteriano no dinamismo da economia não
pode ser ignorado. Serão eles que incitarão o aumento de produtividade no conjunto das
empresas e, por seu intermédio, a economia entrará em condições de concorrer
internacionalmente. Dado seu pequeno número nos países subdesenvolvidos, eles merecem
apoio, enquanto sua ação drene o mercado de trabalho e impeça o congestionamento de
efeitos negativos na produtividade do capital em novos investimentos. Mas, obviamente,
eles segundo a lógica do capital e tendem, adiante, a descartar emprego.
Esse problema pode estar ligado a outro fator externo à economia nacional, mas
com resultados semelhantes. É que como os países subdesenvolvidos geralmente obtêm
seus bens de capital mediante importação, dada a pequenez de sua demanda comparada
com a dos grandes centros produtores, terminam por importar bens demasiado luxuosos
para suas condições de renda. A razão disso está em que não é econômico para os
produtores alterar suas séries de produção para atender demandas pequenas. Em alguns
casos essa situação tende a modificar-se para alguns países subdesenvolvidos, porque o fato
de que alguns deles tenham alcançado níveis significativos de industrialização tende a ser
estímulo suficiente para se produzam bens duráveis mais adequados ao seu perfil de renda.
Há, portanto, uma diferença entre o que é distribuição funcional por unidade produtiva e a
participação global do capital e do trabalho na renda nacional.
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3. A distribuição vertical
A distribuição da renda entre níveis de renda – a distribuição vertical – merece um
cuidado especial pelas relações que guarda com as condições estruturais da economia. No
caso das economias subdesenvolvidas, notoriamente naquelas onde não há uma
industrialização significativa, as condições institucionais fazem com que uma grande
concentração de renda em mãos dos proprietários dos meios de produção coincida com uma
baixa renda por homem ocupado. Isso, tanto se se considera o setor primário isoladamente,
como no relativo à população economicamente ativa em seu conjunto, em que as condições
do emprego rural condicionam a composição do emprego em seu conjunto.
A desigualdade das escalas de renda envolve, por um lado, um problema de
formação de poupança e, por outro lado, um problema de justiça social. Ambos se fazem
sentir nos países subdesenvolvidos. A concentração de poupança em mãos de um
determinado segmento da sociedade corresponde a uma abstenção de consumo vital por
outros segmentos, que quebra os princípios mais elementares de justiça social. Pode-se
argumentar que é um sacrifício necessário para a formação de poupança para investimento,
mas com os ideais de obter crescimento econômico com estabilidade, e implicando nessa
expressão, não só os requisitos de estabilidade montaria, senão também de estabilidade
social, uma distribuição muito desigual pode provocar desequilíbrios sociais de
conseqüências políticas, capazes de impedir um esforço de desenvolvimento. Além disso,
quando se considera a distribuição no sentido vertical, é preciso não esquecer que mesmo
que nos países desenvolvidos esse tipo de desigualdade seja muito grande, no entanto não
está revestida das características cruciais dos países subdesenvolvidos, por acontecer a
níveis mais altos de renda. Também, numa economia rica como a norte-americana esse
fenômeno é encontrado. Apesar das deficiências de informações apontadas por Kuznets, 4
que a atribui à ênfase dada à produção e à conseqüente falta de interesse pelo uso das
rendas., seus estudos da economia norte-americana levam a concluir que a possível
4 Simon Kuznets, Long-term changes in the National Income of the U.S.A. since 1870, Income and Wealth, série II, pp. 141 -152.
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estabilidade nas variações seculares da distribuição por níveis de renda deve estar associada
ao aparecimento de novos receptores de renda.
A distribuição vertical da renda está ligada à distribuição funcional porque as rendas
mais altas raramente estão constituídas de salários. No entanto, é preciso examinar a
distribuição de renda entre altos e baixos salários e entre rendas regulares e irregulares dos
trabalhadores.
Numa economia desenvolvida, se se considera apenas o tipo de renda dificilmente
se apresenta essa situação. Nas faixas limítrofes, é difícil distinguir entre assalariado e
capitalista, porque os receptores de altos salários, geralmente administradores de empresas,
são, também acionistas das empresas em que trabalham. Tudo indica que essa união entre a
distribuição vertical da renda e sua distribuição funcional será ainda mais flagrante no caso
dos países subdesenvolvidos, onde esse tipo de salários altos é mais raro, porque é pequena
a esfera das sociedades por ações ou que estão dispostas a pagar salários altos.
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4. Distribuição setorial
Por isso, admitida a preponderância dos setores primários nos países
subdesenvolvidos, o escasso montante relativo de seus investimentos em capital social e a
conseqüente pequena participação dos serviços de transportes em suas economias de
industrialização incipiente, não se pode considerar mais que tautológica a desigualdade da
renda nacional nesses países entre os setores da produção. Uma combinação do volume de
emprego em cada um desses setores pela participação funcional do trabalho, expressa em
termos de renda real e ponderada pelas diferenças de produtividade por homem ocupado
em cada setor, daria a diferença de distribuição entre as remunerações de um e outro setor.
O aumento geral de produtividade em todos os setores que deve resultar de um
desenvolvimento equilibrado - equilibrado no sentido de não se tratar de uma tendência do
desenvolvimento que se extingue a curto prazo por causas estruturais e possuidor de pontos
de estrangulamento que deformem a estrutura dos preços dos bens e serviços por diferentes
setores, mesmo que ainda não tenham sido suficientes para comprometê-lo até sua extinção
– deve tender a diminuir no longo prazo as diferenças de produtividade entre os setores da
produção. Elas coexistem ainda, com as formas de desigualdade anteriormente citadas, nas
quais ainda não lograram um desenvolvimento significativo, e sua presença é tanto causa
como efeito da condição de subdesenvolvimento.
Entretanto, a desigualdade setorial não ser identificada com o subdesenvolvimento,
ou se incorreria num grave erro. A desigualdade setorial precisa ser corrigida,
fundamentalmente, pelas diferenças de provisão de recursos da área considerada, sendo
essa correção válida inclusive para as diferenças intersetoriais de produtividade. Nisso vai o
mito da falta de progresso tecnológico na produção agrícola. A possibilidade de
desenvolvimento de uma economia nacional está dentro dos limites impostos por seus
recursos e poderá combinar uma grande desigualdade setorial com uma utilização adequada
dos mesmos. Isso também converte a desigualdade setorial numa informação útil porém
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pouco utilizável isoladamente para explicar o significado das desigualdades incluídas no
padrão distributivo em sentido mais amplo.
5. Distribuição espacial
Nos países subdesenvolvidos de grande extensão territorial, para que se complete o
quadro da desigualdade da distribuição da renda, é preciso introduzir o elemento espaço,
como uma categoria histórica, que experimenta modificações ao longo do tempo, segundo
se consolidam as formas de produção vigentes. O espaço econômico do Brasil resulta da
sobreposição dos espaços criados pela progressão da exploração de mercadorias tais como
açúcar, fumo, produção pecuária; ao lado da concentração de espaços urbanos. Nesses
países há grandes desigualdades entre os tipos de agricultura – a agricultura para
exportação e para subsistência – e entre a produção rural e as atividades urbanas. São,
principalmente, desigualdades causadas por fatores conjunturais passados, que
compreendem todas as formas precedentes de desigualdade.
O fato de que as tendências do desenvolvimento se concentrem em determinadas
regiões de um país, faz com que o capital seja atraído para as áreas que se desenvolvem e
que, por conseguinte, se localizem ali as técnicas mais eficientes. O resultado é que a fração
da força de trabalho que se localiza nas regiões em desenvolvimento se beneficia de
trabalhar em unidades produtivas onde sua produtividade pessoal é mais alta e onde,
portanto, é possível ter atribuída uma remuneração individual mais alta. Isso cria uma
disparidade de remuneração que não depende da relação entre a quantidade de pessoas que
procura trabalho e o capital total, porquanto entram em jogo restrições de mobilidade do
capital e do trabalho à medida que aumentam as distâncias em jogo. Assim, se se considera
o uso de diferentes técnicas de produção em diferentes regiões do país, explicam-se
diferenças de remuneração para um mesmo tipo de profissão, que beneficiam aos
trabalhadores das regiões mais desenvolvidas. Mas essa disparidade geográfica está
agravada pela distribuição funcional da renda, porque a maior parte das unidades
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produtivas se localiza em áreas que experimentam desenvolvimento mais intenso,
diminuindo o número de unidades de capital por trabalhador nas áreas mais atrasadas.
Esse tipo de desigualdade está determinado pelas diferenças de concentração de
capital, podendo explicar as desigualdades da distribuição nos países mais desenvolvidos.
Nos países subdesenvolvidos ela deve ser complementada por argumentos de tipo histórico
tais como o rumo seguido pelo aproveitamento dos recursos naturais e pelos usos da terra.
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6. A desigualdade internacional
A expressão mais forte do sentido de localização do desenvolvimento econômico se
vê no plano internacional. As barreiras entre países deram forma às condições requeridas
para seu próprio interesse pelo desenvolvimento. As diferenças de dotação de recursos
constituem uma base residual dessas desigualdades. Contudo, abstraindo-se as vantagens
desse gênero, que alguns países levam sobre outros, surge uma desigualdade que exprime
os níveis de bem estar. A localização do desenvolvimento no plano internacional
historicamente separou o mundo em duas partes, deixando de um lado os países que
concentram a formação de capital e as rendas mais altas e de outro lado os países que não
conseguem reter formação de capital e têm rendas mais baixas. Toda a mudança do
complexo social, político e econômico resultante desse amadurecimento intrínseco foi
representado pelos níveis de renda percebidos pelos moradores de um e outro país. Essas
diferenças na distribuição da renda são a expressão da distribuição do desenvolvimento no
mundo, respondendo à classificação em centro e periferia. Além disso, essa classificação
envolve, não só o progresso do sistema produtivo, como também todas suas implicações em
bem estar e progresso do sistema político.
A mudança no padrão internacional do desenvolvimento depende de duas
possibilidades: (a) da capacidade endógena de cada país para desenvolver-se e (b) das
transferências internacionais de capital. O estudo dessas possibilidades é a própria teoria do
desenvolvimento. A possibilidade de eliminar a desigualdade internacional confunde-se
com o objetivo de desenvolver as economias subdesenvolvidas e está intimamente ligado à
ordem econômica internacional vigente, e, por meio dela, à ordem política internacional.
Nossos países subdesenvolvidos não podem se abster das especulações sobre o
desenvolvimento, porque muitos deles recentemente emergiram da condição de colônias.
Praticamente todos tiveram suas economias controladas por investimentos dominantes dos
países desenvolvidos e isto significa um vínculo muito forte com a ordem colonialista com
que tiveram que lutar.
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Para ser realistas e trabalhar o fenômeno do desenvolvimento sem tabus, não se
pode encarar esses vínculos de outro modo que como um dado do problema e enfrentar a
inevitável reação que aparecerá, tal como tem aparecido, nos países beneficiados pela
ordem econômica colonialista. Claro que, com isso não se pretende negar o interesse
sincero existente em vários círculos nos países desenvolvidos a favor do desenvolvimento,
já que realmente importa, para o caso é a reação dos grupos economicamente fortes nesses
países. Na maior parte dos casos, os interesses desses grupos são pela manutenção de uma
ordem que lhes convém. Principalmente porque sua ascensão no passado foi apoiada por
uma retaguarda de fornecedores de matérias primas, representada pelos países que agora
querem se desenvolver. A identificação do interesse de grupos particulares com os dos
próprios governos agrava o problema, que em muitos casos se soluciona com um mínimo
de atritos, mas que já se manifestou em suas formas mais violentas nas colônias em suas
lutas de independência. Sem ignorar os choques políticos internacionais cuja origem não é
o desenvolvimento, senão outros fatores que escapam ao escopo deste estudo, é preciso
reconhecer que a luta pelo desenvolvimento é, acima de tudo, uma luta de interesses. 5
Outra circunstância que não pode ser desprezada, para preservar o realismo do
pensamento sobre o desenvolvimento, refere-se ao conflito que se verifica, entre a
integração econômica internacional e a integração de cada país. O esforço de integração
nacional feito por cada país subdesenvolvido, concomitantemente ao seu esforço para
crescer, foi assistido no campo internacional por uma consolidação do mundo em blocos
políticos, cujos resultados são negativos para o desenvolvimento dos países
subdesenvolvidos. Além disso, a luta contra a ordem econômica colonialista nos países
subdesenvolvidos não pode estar dissociada de seu esforço em benefício de seu próprio
crescimento.
Essas circunstâncias da desigualdade internacional na distribuição da renda definem
os termos em que se poderá contar com transferências internacionais de capital para
auxiliar o aproveitamento da capacidade interna de cada país para desenvolver-se e alterar
sua posição internacional.
5 Ver Paul Baran, The Political EConomy of Growth, John Calder, Londres, 1956.
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7. A distribuição social
A teoria keynesiana, ainda trabalhando dentro dos limites endógenos da teoria
clássica, conduziu o debate do problema de que se ocupava – o desemprego e as variações
cíclicas – aos próprios fundamentos em que se assenta a solução capitalista desses
problemas. Assim, ela foi o ponto de partida para a inclusão de fatores até então
classificados como exógenos, tais como a estrutura da sociedade e a distribuição da renda
que lhe corresponde.6
Os aspectos pelos quais se considere a distribuição da renda, tal como vimos nos
parágrafos anteriores, indicam um escalonamento da renda para os diferentes grupos, que,
finalmente, exprime o nível de bem estar desfrutado por eles na sociedade em que vivem.
As funções desse tipo de distribuição como determinantes do padrão geral da distribuição
da renda, estão fortemente relacionados com as formas de produção utilizadas e com as
instituições políticas e sociais prevalecentes. No entanto, o aumento das funções do
governo no sentido de maior participação na vida econômica, bem como a persistência da
inflação, puseram a descoberto as possibilidades de variação dessa distribuição, já seja por
uma compreensão das atribuições do governo, ou pelas condições técnicas em que as
economias subdesenvolvidas são constrangidas a operar. Mais que situações de bem estar, a
distribuição social indica a margem de estabilidade e as condições de justiça social
prevalecentes 7.
Na perspectiva do desenvolvimento, a desigualdade social na distribuição da renda
combinada com o nível de consumo vital, dá o limite do esforço a que se pode submeter
continuamente uma economia. Os conflitos sociais que se originam e ganham corpo da
insatisfação pela desigualdade podem comprometer todo esforço de crescimento. Além
6 Paul Baran, op. cit. pp.8. 7 Desse modo, indicam-se as restrições políticas da taxa garantida de crescimento de que nos fala Harrod. O conceito de taxa garantida de crescimento dá por sentado que o crescimento do produto social não é afetado pelas condições de realização da mais valia, o que só pode ser aceito para uma economia de mercado aberto onde não haja ganhos de monopólio e onde a composição da demanda seja plenamente compatível com a composição da oferta.
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disso, as pressões inflacionárias que apareceram em diversos países subdesenvolvidos no
momento de seus esforços para crescer, desencadearam conflitos de interesses entre os
grupos que procuram manter ou melhorar suas posições na distribuição real da renda
nacional. Os diversos estágios do desenvolvimento econômico, que significam o
predomínio de certas atividades, correspondem ao predomínio de certas classes sociais.
Assim, as formas de exploração econômica sob cuja égide foram edificados quase todos os
países subdesenvolvidos implicaram numa preponderância dos proprietários de terra, cuja
conseqüência foi a orientação dos investimentos em capital social, em educação e da
própria produção agrícola, de modo que servisse aos interesses da classe predominante no
sistema. Assim, o aparecimento de uma tendência do desenvolvimento industrial em
economias com a referida orientação, introduziu um novo destino da renda para outras
classes em ascensão, tanto mais útil quanto os hábitos de investimento da nova classe são
mais adequados ao desenvolvimento.
Ao lado da importância dos hábitos de investimento das classes que detêm o poder,
convém notar a diferença das possibilidades de ascensão das pessoas através de grupos de
receptores de renda ou dos grupos que são afetados pelo deslocamento na composição
social do poder. A estabilização das sociedades agrícolas tem resultado numa crescente
rigidez das posições de classe e os países subdesenvolvidos não são exceção. No momento
em que a civilização européia tomou posse, ou que as nacionalidades se afirmaram, as
sociedades rurais que ali se afirmaram fizeram-no sob a inspiração das análogas européias,
imitando seus hábitos e privilégios, muitas vezes aumentados pelas condições favoráveis
que se lhes apresentavam no novo ambiente, sabendo que em seus lugares de origem não
teriam privilégios semelhantes. Foi, também, o modo de obter um prestígio que não teriam
em seus países de origem. De qualquer modo, as novas sociedades se fizeram com
estruturas rígidas, onde o aumento do número dos mestiços introduziu estratos
intermediários, entretanto, com poucas margens de mobilidade. As possibilidades efetivas
de aumento de bem estar das populações se ampliaram, como conseqüência da ampliação
do mercado de prestação de serviços, junto com alguns novos espaços para trabalho
especializado.
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Os parágrafos anteriores levam a pensar no problema da distribuição como numa
unidade polimorfa resultante de fatores históricos de conjuntura, recursos naturais,
poupanças transformadas em investimento e técnicas utilizadas para produzir e consumir.
Essa unidade encerra a resposta do problema de justiça social no país em seu conjunto e em
seus efeitos regionais. Conduz a uma explicação da proporção em que a má distribuição da
renda é responsável da estagnação. Finalmente, representa uma primeira aproximação de
resposta à questão de saber se o setor privado poderá reunir a poupança necessária para o
desenvolvimento. 8
Assim, somos conduzidos a uma realidade distributiva que se exprime numa divisão
funcional do trabalho, diferente daquela dos países desenvolvidos; em termos de uma
divisão por escalas de renda, ou de desigualdade de piores resultados; em termos de uma
baixa participação global do trabalho na renda; em termos de uma baixa participação do
trabalho na renda total; e termos de uma produtividade muito desigual entre os setores da
produção, e, por fim, em termos de uma grande desigualdade geográfica. Mas essa situação
dada de distribuição, que pode ser percebida num dado momento, evolui e transforma sob
a ação dos próprios resultados da produção a que se refere, e, sob a ação de fatores
institucionais que, depois terem concorrido para formá-las continuam agindo, comunicando
impulsos ou oferecendo resistências, e à ação de fatores conjunturais que agem no sentido
de provocar uma redistribuição de intensidade variável.
8 Indiretamente, essa é uma questão relativa ao papel do fundo público no processo geral de acumulação no sistema capitalista em seu conjunto e que corresponde a uma análise da produção capitalista.
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Capítulo 2. As funções da distribuição
1. Impulso e contenção do desenvolvimento
Desde que se busca verificar os condicionantes fáticos necessários para uma teoria
da distribuição da renda dirigida ao desenvolvimento, importa o que representa a própria
distribuição para a dinâmica desse processo. Segundo a função que tem desempenhado, a
distribuição da renda pode ser considerada como um elemento impulsionador do
desenvolvimento, sempre que atenda às necessidades de formação de capital requerida
pelos investimentos nos setores estratégicos da economia, fortalecendo seu dinamismo. A
análise dessas funções propulsoras do desenvolvimento leva a algumas indagações básicas.
Por exemplo, a desigualdade na distribuição é favorável ao desenvolvimento? Ou será o
desenvolvimento capitalista o causador da desigualdade? Por último, qual grau de
desigualdade é compatível com o desenvolvimento?
Essas indagações acompanham invariavelmente qualquer consideração que se
queira fazer sobre o papel dinâmico da distribuição. O desenvolvimento implica numa
capitalização crescente do processo produtivo e esta, logicamente, deve ser obtida por meio
de acumulação de capital, num crescimento endógeno, o qual, em última instância, será o
único modo de estudar as reais possibilidades intrínsecas de uma economia nacional. O que
importa, portanto, é como se faz a acumulação.
De um modo ou de outro, a acumulação é a retenção dos excedentes de produção.
Historicamente fez-se de diversos modos. Desde a pura e simples apropriação com apoio
militar até as modernas formas industriais de produção e o uso dos investimentos
dominantes. Enquanto isso, as pesquisas sobre as possibilidades dinâmicas com um maior
ou menor grau de desigualdade dificilmente poderão fazer-se apenas sobre comparações
históricas. É preciso trabalhar com os conteúdos sociais que acompanham as formas de
produção. Não se pode eludir o fato de que a distribuição da renda encara problemas de
justiça social. Desses problemas trataremos adiante. No entanto, observando os fenômenos
22
desde um ponto de vista estritamente econômico, teríamos que considerar que os padrões
históricos de distribuição correspondem a modos pré-industriais e industriais de
crescimento. Os padrões de distribuição verificados num modelo de crescimento não
podem ser avaliados sob as condições de outro modelo. A análise que se propõe neste
estudo volta-se para as condições sociais da distribuição nos países subdesenvolvidos hoje.
Voltemos a nossa argumentação. Deixando de lado o problema da mecânica da
acumulação, que não é nosso objetivo central, voltemos nossa atenção para a propulsão do
processo de desenvolvimento que pode resultar das condições de distribuição da renda.
Geralmente se diz que para viabilizar a acumulação de capital, a distribuição da
renda deverá ser tão desigual quanto for necessário para concentrar recursos para
investimento. Um argumento nesse sentido é que não se poderia promover o
desenvolvimento numa economia onde uma distribuição muito igualitária impedisse a
formação de poupança suficiente para os grandes investimentos necessários para a indústria
moderna. Contudo, pode-se supor que a distribuição igualitária significaria uma formação
de capital mais democrática, onde os bancos fossem intermediários e não os controladores
dos investimentos. Superficialmente, é um argumento a ser qualificado por níveis de renda.
Essencialmente, essa é uma colocação que se refere às condições históricas da composição
do capital.
O verdadeiro problema dos países subdesenvolvidos consiste na tendência objetiva
que liga a concentração social da poupança com concentração da capacidade de investir,
onde capacidade de investir significa conhecimento do mercado, de técnicas de produção e
de organização da produção e da comercialização. O problema de competência surge como
fundamental para julgar diferenças de desempenho das economias nacionais, tanto das mais
desenvolvidas como das menos desenvolvidas e em determinados momentos da formação
de capital. A preferência por um ou outro setor e por um ou outro ramo de atividade
reflete-se, adiante, nas mudanças de composição do sistema produtivo, portanto, na
expressão qualitativa da taxa de crescimento do produto. Nesse sentido, o grande problema
dos países subdesenvolvidos está em que a distribuição da renda seja compatível com uma
23
composição de investimentos por sua vez compatível com a sustentação da taxa de
crescimento.
Isso leva a rever o argumento setorial. Não se trata somente de distribuição entre
setores, senão da composição do capital em cada setor. Nos países subdesenvolvidos o setor
agrícola é responsável, direto ou indireto, da maior parte do produto. O desenvolvimento
vem acompanhado da introdução ou da expansão de um setor industrial. Mesmo que seja
comum uma rápida elevação da produtividade da agricultura durante os impulsos de
expansão industrial, o setor industrial tende a participar com uma proporção gradualmente
maior do produto nacional. Esse fenômeno, que se explica por ser a indústria o setor onde o
próprio modelo de funcionamento do capital permite maior reintegração do produto na
forma de capital, significa uma considerável redistribuição setorial da renda, que tende a
perpetuar-se, acompanhando uma profunda alteração na estrutura produtiva da economia, à
medida que ela se desenvolve. Nesse caso, o realinhamento setorial da capacidade de
produção é uma conseqüência da tendência e do modo de crescimento, que se desenvolve
com ela. 9
Considerando a disposição espacial10 da economia e os efeitos do crescimento nela,
é preciso admitir que concentrando-se mais numa área que em outra, o crescimento agrava
a desigualdade já existente, ou uma suavização apenas se se faz com recursos antes não
utilizados que novas tecnologias tornam utilizáveis. De qualquer modo, os efeitos verticais
e setoriais do crescimento são aleatórios, não havendo fundamento lógico algum em fazer
generalizações sobre análises comparativas de países.
O aspecto da distribuição que tem sido mais tratado pela análise marginalista é o da
distribuição funcional da renda, que examinaremos na segunda parte deste ensaio. Em
termos gerais, enquanto se podem vincular as variações da distribuição funcional da renda 9 Uma diferença fundamental entre a abordagem histórica da economia e a análise marginalista está na concepção de setores, como conseqüência da composição do capital ou como perfis técnicos. Agricultura e indústria são setores enquanto não se olha para suas inter-relações nem para as combinações de interesses das empresas em uma e na outra. Para trabalhar com a distribuição se precisa de uma conceituação mais rigorosa de setor. 10 Aqui se usa a expressão disposição espacial do sistema produtivo para indicar onde ele se encontra e distinguir de localização, que indica decisões de onde localizar as atividades.
24
com a acumulação de capital, com as circunstâncias político-sociais e com o grau de
monopólio.
A acumulação de capital tende a fazer com que aumente a proporção do produto que
fica em poder dos capitalistas, basicamente porque se trata de desenvolvimento do sistema
capitalista de produção, que se faz mediante captação de mais valia. As circunstâncias
políticas e sociais podem constituir um freio a essa tendência, tanto como o fortalecimento
das instituições protetoras do trabalho – organização sindical, legislação trabalhista etc. -
seja eficaz. A tecnologia tende a favorecer a participação do capital, mas também cria
oportunidades seletivas para os trabalhadores, tanto para trabalhadores qualificados como
para trabalhadores com melhores condições de se qualificarem.
A análise do grau de monopólio é uma contribuição importante de Kalecki a essa
análise. O papel do grau de monopólio como fator favorável a uma maior participação do
capital na distribuição funcional da renda depende do desenvolvimento das forças
produtivas, das instituições políticas e sociais e da tecnologia. A questão do grau de
monopólio interessa, especialmente, no relativo aos investimentos dominantes. No capítulo
5 adiante examinam-se as idéias de Kalecki, focalizando nos efeitos do grau de monopólio
na distribuição da renda..
A pesquisa que se faz neste capítulo corresponde ao objetivo central do ensaio.
1. Apresentando uma função inversa à vimos comentando, o padrão prevalecente de
distribuição da renda pode ser um elemento de bloqueio do crescimento nas situações de
orientação negativa da desigualdade, tal como comentamos nos parágrafos anteriores. Na
opinião de W.Arthur Lewis é o hábito de investimento produtivo que distingue as nações
ricas das nações pobres, antes que as diferenças em igualdade de renda, ou as diferenças
relativas aos mais ricos. Discordarmos, porque se formos buscar a raiz do hábito dos
investimentos produtivos, concluiremos que certas classes têm mais que outras e que a
desigualdade na distribuição é um dado fundamental dos processos de desenvolvimento.
25
Em muitos países subdesenvolvidos, onde a principal fonte de renda é a agricultura,
geralmente orientada para o mercado externo, soe acontecer que os detentores dessa fonte
de renda agrícola também concentram a propriedade fundiária e o poder político
conseqüente a seu poder econômico. Tais grupos, que vêm a agricultura como uma
atividade pouco mais que extrativa, dão à terra um uso muito inferior ao que seria possível
com o capital e as técnicas disponíveis.11 Entretanto, esses grupos não estão dispostos a
relaxar de seu poder econômico, baseado em seu controle da terra, controlando os
movimentos que alteram a estrutura fundiária e, direta e indiretamente, controlando a
produtividade da exploração da terra. Esses grupos, por sua posição privilegiada, têm
padrões de consumo ditados pelos países mais desenvolvidos, o que resulta em uma parte
significativa da renda nacional gasta em consumo suntuário. Sem interesse em
investimentos que quebrem os padrões prevalecentes, essas pessoas realizam muitos
investimentos improdutivos em aquisição de propriedades, que é um modo de valorizar seu
capital e ganhar status segundo os padrões ideológicos de seu segmento social.
O inverso da estagnação pelos padrões de distribuição são aqueles países e regiões
subdesenvolvidos, onde as leis sucessórias, unidas a uma grande pressão demográfica sobre
extensões reduzidas de terra, determinam a predominância de propriedades muito pequenas,
que são os minifúndios. A minifundização retém grandes contingentes de população rural
submetida a rendas ínfimas, vinculados à produção de produtos de baixo valor adicionado e
que operam em condições econômicas e técnicas inadequadas. Numa visão mais penetrante
do problema, pode-se dizer que a minifundizaçào é um processo complementar daquele de
concentração fundiária, onde o essencial da questão rural é o controle da produção rural,
que se faz através de uma combinação do controle da produção com o controle da
comercialização da produção, onde o controle da produção depende do controle da água e
do capital incorporado nas unidades produtivas.
2. O fator integração e a justiça social
11 A subutilização da terra nas grandes propriedades na América Latina em geral e no Brasil em particular foi comprovada em inúmeros estudos realizados por órgãos internacionais durante a década de 1960, especialmente pela OEA e pelo Banco Inter Americano.
26
A teoria da distribuição é uma parte da teoria econômica claramente social. Suas
formulações estão estreitamente vinculadas a diversas concepções da justiça social e dos
destinos da sociedade. As contribuições trazidas pelas diferentes correntes do pensamento
econômico são, por isso, representativas da filosofia social que as sustenta. Não
surpreenderá, portanto, que nem sempre as idéias, explícitas ou implícitas, dos economistas
sobre o que realmente é a distribuição justa do produto nacional concordassem; ou que,
também, não tivessem a preocupação de trabalhar a teoria da distribuição como um
elemento da teoria do bem estar mais que como um estudo puro e simples de como se
divide o produto entre seus fatores, como já colocara Ricardo. A pesar disso, o inegável
fundamento social da teoria da distribuição entranha uma das funções básicas do
movimento de transformação do capital e do produto.
Um padrão de distribuição do produto implica sempre numa certa situação de
justiça social, que poderá ser julgada desde diferentes pontos de vista, mas que não poderá
ser negada. Os fatores da produção representam as forças constitutivas da sociedade, e esse
fato aparentemente banal deve ser considerado pela teoria da distribuição, sob pena de ficar
esquecida essa condição fundamental do funcionamento das economias nacionais, que é sua
estabilidade social. É preciso não esquecer que todo o movimento de desenvolvimento
iniciado depois da segunda guerra mundial, está constituído de movimentos sociais cuja
meta principal é a justiça social, na esfera nacional e na internacional. Por ser uma
aspiração dos que buscam o desenvolvimento econômico, a justiça social – que é uma das
principais formas de que se reveste o corte social da distribuição – converteu-se numa das
diretrizes tácitas dos programas a serem executados, influindo, portanto, de modo
ponderável, no tratamento que se dá aos agregados componentes do produto nacional.
A justiça social é uma meta do desenvolvimento quando o padrão atual de
distribuição é um empecilho ao próprio processo de desenvolvimento e quando, mesmo
servindo aos modelos pelos quais se realiza o desenvolvimento, as condições de
distribuição são consideradas injustas pela sociedade. Em ambos casos, a conseqüência
27
concreta será uma alteração estrutural da base econômica sobre a qual se espera que haja
desenvolvimento.
Nas situações em que predomina o desejo consciente de melhorar a base
institucional para o desenvolvimento, é evidente que a distribuição se torna um elemento
favorável, mas, fora disso, converte-se em obstáculo inicial do desenvolvimento. Aí, esse
padrão socialmente negativo de distribuição atinge negativamente os processos sociais
através de alterações das instituições que sustentam a atividade social. A transformação de
uma economia exportadora de matérias primas em economia exportadora de produtos
industrializados envolve uma alteração profunda do padrão social da distribuição, com uma
reorientação espacial do destino da renda e, principalmente, com a introdução de atividades
em que a distribuição funcional será diferente, porque estará ordenada pelas novas formas
de produção. Por fim, a justiça social inclui a incorporação da população e do espaço
produtivo na maioria dos países subdesenvolvidos na América em geral. Isso ser refere
especialmente àqueles paises que têm uma parte considerável de sua população ocupada em
atividades primárias e em regime de troca. Claro que a incorporação desses grupos sociais
representaria um aproveitamento de capacidade de produção e um melhoramento de
condições de vida. Incorporação surge como o oposto da exclusão inerente ao sistema
colonial.
3. Função conjugada da distribuição.
Qualquer dos aspectos pelos quais se veja a distribuição não deve ser considerado
como algo isolado. A distribuição pode influir na dinâmica da economia através de uma
série de condições como as seguintes.
• Uma concentração de renda em uma classe, acompanhada de alicientes para os
investimentos necessários para o desenvolvimento.
28
• Uma ampliação sensível das fronteiras da técnica, capaz de criar uma classe para
tomar o poder econômico, de modo súbito ou gradual, capacitando-a para influir no
destino dos investimentos no país.
• Oportunidades externas que facilitem a passagem do poder na direção de uma classe
até então de segunda ordem, através de uma mudança de orientação setorial dos
benefícios provenientes do exterior.
• Condições anormais do mercado internacional que obriguem o país a usar sua renda
para a industrialização, mesmo quando na distribuição de renda já prevalecente.
• Uma revalorização das atividades econômicas, no sentido de atribuir uma maior
parcela de renda e de importância para as classes inversionistas.
Em seu conjunto, essas condições desembocam em duas grandes possibilidades, que
são as de que o processo desenvolvimento se inicie dentro de condições gerais de
distribuição capazes de permitir o aparecimento de uma tendência de crescimento do
produto social com certa composição do capital, ou de que o desenvolvimento transcorra
com o apoio de uma alteração nos padrões de distribuição da renda nacional. Além disso,
cabe anotar que essas duas possibilidades estão condicionadas pelos efeitos que se
acumulam de alterações estruturais do sistema produtivo. É o que André Marchal apontou
como as alterações progressivas de estrutura que deslocam o sistema até transformá-lo em
outro sistema e as mutações bruscas de estrutura que levarão a de imediato a essa nova
forma sistemática. 12 Mesmo aqui é preciso ter claro que essas duas possibilidades não
excluem que o desenvolvimento comece dentro de certo padrão de distribuição da renda e
que a aceleração do processo crie as condições para alterar o destino da renda nacional.
Inversamente, o desenvolvimento pode com o aparecimento de um setor novo que,
ganhando importância no sistema por operar a níveis mais altos de produtividade, produza
uma alteração rápida de um certo padrão de distribuição da renda e que essa nova
distribuição se suavize em seus aspectos mais drásticos dentro de certo período, inclusive
aproximando-se do padrão anterior.
12 André Marchal, Methode Scientifique et Science Écnomique, Problemes actuels de l’analyse économiique, Tome II, Editions Genin, Paris, 1956.
29
A grosso modo, essas duas alternativas poderiam ser identificadas do seguinte
modo. No primeiro caso, o desenvolvimento de economias primário exportadoras, que são
estimuladas pela abertura de uma corrente de comércio exterior. No segundo caso, o
aparecimento de um núcleo de atividades industriais, por empresas isoladas ou por
complexos industriais.
4. Estruturas de mercado e tecnologia
É preciso reconhecer que as condições de absorção de tecnologia são diferentes nas
diferentes estruturas de mercado. A distribuição é afetada por um conjunto de fatores que
aparecem constantemente na teoria da renda nacional, que, segundo Kurihara 13 são os
seguintes: Monopólio, mudanças tecnológicas, importância relativa dos fatores, condições
de emprego, estrutura tributária, instituição da herança e outros fatores.
A importância do monopólio foi mostrada por Kalecki em sua teoria, que explora os
efeitos de condições de monopólio sobre os fatores da produção. O essencial dessa teoria
será examinado adiante.
O trabalho pouco qualificado predomina nos países subdesenvolvidos, com poucas
possibilidades de mudança. Há baixos salários para trabalhadores não qualificados e
dificuldade de qualificar os trabalhadores. A falta de flexibilidade do mercado de trabalho
leva a um aumento do emprego com menores rendas individuais dos trabalhadores.
As mudanças tecnológicas nos países subdesenvolvidos vêm acompanhadas de
treinamento equivalente de mão de obra, quando esses países importam técnicas dos países
mais desenvolvidos. A grosso modo, as mudanças tecnológicas têm as conseqüências de
(a) aumentar a participação do capital na divisão funcional da renda, atribuindo, em
13 Kenneth Kurihara, Distribution, employment and secular growth, em Post- Keynesian Economics, Londres, 1955.
30
conseqüência disso, uma maior retribuição para esse fator no produto total; e (b) diminuir o
emprego total quando essas novas técnicas economizam mão de obra.
As mudanças tecnológicas geralmente acompanham períodos de expansão e se
concentram nos setores de vanguarda do sistema produtivo. O fato de que haja períodos de
expansão implica em dizer que se trata de épocas em que aumentam as oportunidades de
emprego. Contudo, se não se pensa necessariamente em termos de investimentos em
expansão – e não de investimentos de manutenção do sistema - e se admite que as
mudanças aconteçam apenas na modernização dos processos de uma capacidade já
existente, no que concerne às atividades onde essas mudanças são mais prováveis, as
mudanças tecnológicas podem operar em forma negativa naquelas atividades que absorvem
mais mão de obra, impactando negativamente na distribuição funcional da renda.
Nos países subdesenvolvidos as condições de emprego têm certas peculiaridades. A
baixa produtividade do trabalho permite o emprego de grande número de trabalhadores que,
de outro modo, só encontrariam emprego se houvesse uma expansão do produto sem
renovação tecnológica. O desemprego disfarçado, que incide desigualmente nos diversos
setores da produção, responde pelo crescimento exacerbado dos quadros de funcionários
em cargos determinados por políticas do Estado ou das empresas. O excedente de
trabalhadores, principalmente em funções de trabalho não qualificado, pressiona as
oportunidades de emprego, impedindo uma elevação da participação relativa do trabalho na
renda. No modo como essa pressão se distribui entre trabalho qualificado e não qualificado,
há uma pressão vertical, de baixo para cima, em detrimento da qualidade dos trabalhadores
que concorrem a um mesmo conjunto de postos de trabalho. Assim, as condições sociais do
emprego nos países subdesenvolvidos tornam necessário separar a margem de desemprego
disfarçado de suas economias, para que se perceba seu desenvolvimento como um
incremento real da produção líquida por homem hora, que aconteça em condições de pleno
emprego. Torna-se claro que o desenvolvimento aqui não se entende como a simples
expansão do capital, senão como a ampliação do trabalho atual no processo de produção.
31
Tal movimento acontece em condições de desigualdade da situação tributária. Há
aspectos de concentração social da carga tributária, de capacidade para evitar a carga
tributária e de concentração social dos benefícios resultantes do pagamento de impostos.
Uma grande parte da população não tem capacidade de pagar impostos. Há um conflito
fundamental entre o objetivo fiscal de sustentar a despesa pública e o objetivo social de
estender os benefícios da despesa social aos que não têm renda suficiente para pagar
impostos.
A situação tributária logicamente se conecta com o problema da herança, que
protege a desigualdade de capital. A questão de justiça social envolve a questão de uma
tributação significativa das heranças em países onde uma grande parte das riquezas
privadas é proveniente de apropriação violenta ou de concessões obtidas do controle do
Estado.
32
SEGUNDA PARTE: ANTECEDENTES TEÓRICOS
Capítulo 3. A contribuição dos Clássicos.
Como o objetivo central deste trabalho é o estudo do papel da distribuição da renda
no processo de desenvolvimento, é preciso averiguar a importância a ela atribuída na teoria.
O papel atribuído à distribuição permite ver quais foram as linhas fundamentais do
pensamento sobre essa matéria, despojadas de suas roupagens circunstanciais. Veremos o
papel da distribuição na concepção dos economistas clássicos, reservando para o capítulo
seguinte a apreciação das contribuições de Marx e dos modernos.
Adam Smith
A escola clássica trouxe para a economia uma concepção determinista, que se
estendeu às formulações teóricas sobre a distribuição. Nesse caso estão as idéias de Adam
Smith que, mesmo não tendo dado um tratamento sistemático à distribuição funcional da
renda, trouxeram essa qualidade que tende a ser descuidada pelos críticos. Como diz Dobb, 14 “ introduziu-se nos negócios do homem um determinismo até então reservado às leis da
natureza. A sociedade econômica adquiriu um conceito determinista”. A base social é o
fundamento da teoria clássica da distribuição.
O caráter determinista da economia traçado pelos Clássicos depende de sua
concepção de sociedade. Crendo que a sociedade tinha alcançado sua plena madurez,
procuraram formular leis gerais que a regiriam, a partir da base empírica de que dispunham.
Supondo que essa base empírica poderia representar toda a experiência da sociedade, nada
mais lógico que procurar leis universais. Daí, que a contribuição dos Clássicos conduz a
uma sistematização cuja justificação seria a maturidade da economia da Europa ocidental.
14 Maurice Dobb, Political EConomy and Capitalism, New York, 1954.
33
No entanto, a base social da obra de Smith não se limita a essa experiência. Quando
discute as condições favoráveis dos padrões de distribuição na formação dos salários, aduz
outras circunstâncias sociais, tais como suas comparações da agricultura inglesa com a
polonesa.Seu tratamento social do problema da distribuição foi esvaziado por seus
sucessores, até perder sua natureza histórica e circunstancial. Esse abandono foi criticado
por Paul Sweezy em seu estudo da economia marxista ao rever os Clássicos.15 No entanto,
não se pode avaliar corretamente a obra de Smith sem colocá-la na situação histórica que
lhe corresponde. A não consideração das limitações do acervo teórico de que dispunha
Smith levou vários de seus comentaristas a subestimarem o papel da distribuição em sua
obra. Nesse caso estão Cannan e Barre, que dizem que Smith estuda a distribuição como
subsidiária da teoria dos preços. Cannan argumenta baseado em que a teoria da distribuição
foi tratada por Smith no capítulo sobre preços e não foi seguida por uma distinção entre o
preço natural e o preço de mercado das mercadorias. No entanto, ao recorrer ao próprio
Smith, percebe-se que o preço total para ele não era mais que a valoração do produto
nacional, que em linguagem moderna é a renda nacional, que ele se esforçava para provar
que não era a medida adequada para aferir a riqueza das nações. “O mesmo que o preço ou
valor de troca de toda mercadoria tomada por separado resolve-se em alguma e em todas
essas três partes, assim também o de todas as mercadorias que formem o produto anual
total do trabalho de cada país, em seu conjunto há de resolver-se nessas mesmas partes e
dividir-se entre os diferentes habitantes do país... dessa mesma maneira se distribui
originalmente entre alguns dos diversos membros de cada sociedade tudo que recolhe ou
produz anualmente por seu trabalho, e, o que vem a ser o mesmo, seu preço total”. 16
Desse modo, os objetivos teóricos de Smith na mesma lógica que orientou sua
divisão em capítulos, tornavam inúteis aquelas discussões consideradas como essenciais
por Cannan. Mas a explicação da crítica talvez esteja em que, tanto Cannan como Barre,
tomaram Smith ao pé da letra, não utilizando essa valoração do produto por seu preço total
com a verdadeira função lógica desempenhada por ela no esquema smithiano. Se Smith
valorava o produto por seu preço total, inevitavelmente, teria que discutir o preço como um
15 Paul Sweezy, Teoria del desarrollo capitalista, México, FCE, 1958. 16 Adam Smith, La riqueza de las naciones, Fondo de Cultura Económica, México, 1958.
34
somatório das diferentes participações dos fatores da produção, tal como se faz com a renda
nacional a preço de mercado. Logicamente, portanto, sua teoria da distribuição estava
fortemente ligada à valoração da renda nacional, mas não era sua conseqüência. Além
disso, partindo de que os componentes do preço podem crescer independentemente uns dos
outros, tal como fez Smith, a conseqüência será que ao estudar-se o preço natural dos
fatores e seu crescimento, se estaria de fato discutindo sua participação no preço total e as
possibilidades de ascensão social dos grupos seus detentores. Não se está, portanto, fazendo
mais que pura distribuição. Cannan subestimou Smith por ter visto nele apenas uma análise
funcional da distribuição, ignorando suas circunstâncias históricas.
O alcance teórico da obra de Smith pode ser mais bem apreciado ao considerarem-
se as observações de Keirstead, 17 de que seu interesse pela troca de mercadorias e pelo
preço de mercado foi uma tese subordinada e circunstancial, introduzida para demonstrar a
ineficácia do valor monetário do produto nacional como termo de medida da riqueza de
uma sociedade.
A obra de Adam Smith contém algumas contribuições líquidas para a teoria da
distribuição. Uma delas é distinguir entre os destinos da renda, que é, praticamente, a de
hoje. A dupla orientação que deu ao seu trabalho conduziu a um estudo macro e
microeconômico do problema, ao que Cannan denominou de pseudo-distribuição e
distribuição efetiva. Uma contribuição de Smith foi, também, a análise do que ocorre com a
participação dos diferentes fatores durante um processo de crescimento. Apesar das
limitações empíricas com que trabalhou, seu enquadramento dos termos do problema é uma
das partes que mais nos interessa agora, quando tentamos integrar as tendências
distributivas de cada modo de crescimento com os recursos disponíveis em cada um desses
modos de crescimento.
Malthus
17 Keirstead, B.S. apud Francisco Zamora, Dinâmica económica, FCE,México, 1958.
35
A figura de Malthus tem sido quase sempre omitida pelos historiadores econômicos,
exceto no que se refere a sua teoria da população. Além disso, cabe atribuir-lhe a
importância que realmente teve para a teoria da distribuição da renda.
Malthus foi um economista que uniu uma intuição audaz a uma lógica penetrante,
sendo, além disso, um excelente escritor, e sua contribuição à teoria da distribuição,
segundo os interesses deste trabalho, pode ser resumida nos seguintes pontos:
a. Identificação da existência de uma renda diferencial da terra;
b. Tratamento da distribuição desde um ponto de vista funcional;
c. Inclusão de condições de desenvolvimento entre as premissas de sua
exposição.
Segundo ele, “há certas características relacionadas com a renda da terra que têm
grande afinidade com um monopólio natural... devido a sua escassez relativa”. A essas
circunstâncias chama de monopólio parcial. Contudo, a renda da terra quase não estaria
determinada por esse motivo. Malthus distinguiu três causas para a renda da terra: a
qualidade produtiva do solo, a aptidão de criar sua própria demanda e sua escassez relativa.
Considerou a primeira delas como uma dádiva da natureza ao homem, independente de
qualquer monopólio. A qualidade produtiva do solo estaria relacionada com sua capacidade
de criar demanda para seus produtos, e sobre esse ponto Malthus desenvolveu um
pensamento sobre a base da lei de Say. O monopólio parcial a que se refere se relaciona
com a escassez relativa da terra e as conseqüências do sistema de apropriação nas épocas
primitivas de ocupação da terra. Não considerou adequadas as formas pelas quais essa
ocupação foi feita, como lhe atribuiu Roll, pois julgou-as excessivamente violentas,
preferindo, por isso, observar esse mesmo fenômeno nos países que em sua época estavam
sendo colonizados.18 Apesar de tudo, a argumentação de Malthus baseou-se na admissão de
uma intervenção da natureza na explicação do fenômeno da renda da terra, como notou o
mesmo Roll. Ali estaria, como veremos adiante, o germe do desenvolvimento da teoria da
renda da terra de Ricardo, e a base para toda uma argumentação distributivista.
18 Eric Roll, História das doutrinas econômicas, Cia Ed. Nacional.
36
Malthus atribuiu quatro causas ao aumento da renda da terra durante o que
denominou de desenvolvimento normal das sociedades civilizadas e avançadas, que são: a
acumulação de capital, o aumento da população, os melhoramentos agrícolas e o aumento
de atividade em geral e o aumento do preço dos produtos agrícolas.
Diferentemente do que faria Ricardo, Malthus não viu um obstáculo ao processo de
crescimento na queda do estimulo para o investimento, apesar de crer que isso aconteceria.
Seu pensamento leva a que a remuneração do capital sofra reduções proporcionais à medida
que for necessário procurar solos menos férteis, apesar de que o capital sempre preferirá
fazê-lo antes que ficar ocioso. E o móvel dessa atitude será a satisfação das necessidades de
uma população crescente.
Ricardo
Pertence a Ricardo a afirmação de que a principal finalidade da ciência econômica é
o estudo da distribuição. Essa afirmação, feita em carta a Malthus, consagrada no prólogo
dos Princípios de Economia Política e repetida pela maior parte de seus críticos, exprime
bem a importância da teoria da distribuição em sua obra. A distribuição da renda entre
capitalistas e rentistas de um lado e trabalhadores de outro lado é o fundamento do modelo
que conclui com a visão de uma situação de estagnação geral, o chamado estado
estacionário. Ricardo retomou a teoria da renda diferencial onde West a tinha deixado.
Abandonou todos os argumentos baseados em uma interpretação da natureza e nos favores
especiais recebidos pelo homem. Como diz Kaldor, 19 o interesse de Ricardo pelo problema
da distribuição não se vincula à questão da simples distribuição funcional, senão a sua
crença de que a teoria da distribuição ofereceria a chave para a compreensão do mecanismo
do sistema econômico, em última análise, do próprio desenvolvimento, ao determinar a
taxa de progresso. Se se examina com cuidado, portanto, há uma coincidência de enfoque
entre Ricardo e o que nos parece ser de interesse dos países empenhados em se
desenvolverem. Claro que ressalvadas algumas diferenças, porque Ricardo buscava uma
19 Nicholas Kaldor, The alternative theory of distribution, (1956).
37
espécie de chave mestra da ciência econômica, enquanto nosso interesse, mais limitado, é a
identificação das qualidades dinâmicas do padrão de distribuição como variável implicada
no processo de desenvolvimento. Um e outro, entretanto, significam a atribuição de
qualidades dinâmicas ao padrão de distribuição.
Contudo, vale anotar o papel regulador da população no dinamismo da economia. O
aumento de salários está detido pelo crescimento demográfico e o fator que na teoria de
Ricardo conduziu ao uso de terras inferiores para cultivo ainda é o crescimento
demográfico. Acerca da ocupação de terras inferiores produzida por esse fenômeno,
Ricardo encontra os dois princípios básicos sustentadores de sua teoria: o principio
marginal e o princípio do excedente. A participação dos salários está dada pela teoria do
fundo de salários, o da renda da terra pelo princípio dos rendimentos decrescentes,
deixando determinada a participação dos lucros em forma residual. Ainda é o crescimento
da população que servirá de freio para a queda da participação dos lucros, como um
resultado inverso de sua ação sobre os salários. Assim, Ricardo pensava que o
desenvolvimento seria mais rápido nos países com abundancia de terras férteis, por que
neles a acumulação de capital poderia avançar mais rápido que o aumento da população.
Se bem a teoria de Ricardo conduz antes à estagnação própria do estado estacionário
que a uma possibilidade efetiva de crescimento, adverte-se nela uma compreensão do
aproveitamento do padrão de distribuição como elemento dinâmico, desde que na forma de
relações entre os fatores de produção a que constitui a base de seu modelo e a suposição
que o levou ao seu fim lógico, isto é, que o processo de desenvolvimento conduziria as
economias nacionais a uma situação de desestímulo para os investimentos, pelo que
surgiria a estagnação.
Além disso, a teoria ricardiana trouxe uma contribuição à análise da distribuição
intersetorial e ao seu equilíbrio, dado que pressupõe correspondências entre as taxas de
lucro obtidas nos diferentes setores e a situação de equilíbrio. A equivalência intersetorial
das taxas de lucro seria a base da retenção de capital numa ou noutra atividade.
38
John Stuart Mill
A contribuição trazida por Mill à teoria da distribuição depende diretamente da
maior maleabilidade dada pelo modelo básico de crescimento produzido pelos Clássicos, ao
qual correspondia uma tendência endógena à redução do estímulo para investir, e em
conseqüência disso, para crescer. A posição de J.S.Mill sobre esse ponto encontra-se no
anexo ao capítulo XIV de seu tratado de economia política. Ao admitir novas
possibilidades técnicas de uso do capital - combinação de capital adicional com terra
disponível - Mill retirou algo da inexorabilidade do advento do estado estacionário
contemplado no modelo de Ricardo, pela combinação da teoria da renda da terra com a do
fundo de salário, introduzindo um limite tecnológico, além da restrição física. Essa
limitação tecnológica, exterior ao setor agrícola, permitia um incremento dos recursos
sempre que as novas técnicas forem capazes de aproveitar terra disponível que antes não
eram economicamente aproveitáveis. Começa a haver, portanto, uma possibilidade de
incorporar produto à capacidade produtiva, não contemplada no modelo ricardiano. Os
efeitos de monopólio, que chegam com as novas técnicas, passam a influir no padrão de
distribuição.
A base sobre a qual Mill raciocina ainda é a mesma oferecida pela teoria
demográfica de Malthus. Em sua opinião, onde o desejo de acumular de uma população é
suficiente – o que, correspondendo à vontade de se desenvolver, seria um requisito
indispensável do desenvolvimento – o empobrecimento da população seria causado pela
impossibilidade de atender à solicitação resultante do aumento de população através da
combinação de capital com terra, dada a tecnologia atual. Pior do que acontece com os
outros Clássicos – especialmente Smith – Mill foi julgado por seus críticos, que não
consideraram adequadamente sua contribuição à teoria da dinâmica do crescimento. O
chamado ecletismo de Mill seria uma incoerência com sua adesão ao socialismo e ao
liberalismo.
39
Segundo a teoria de Ricardo há uma tendência decrescente da taxa de lucro ao
avançar a produção. Observe-se que essa tendência só se materializa porque as compras dos
trabalhadores são cada vez menos suficientes para reproduzir o capital aplicado. Para Smith
haveria uma queda da taxa de lucro, de terminada pela concorrência entre os capitalistas
que, pressionados, pagariam salários cada vez maiores aos trabalhadores. Para Ricardo, a
elevação dos salários seria menos proveitosa para os trabalhadores, porque resultaria no
encarecimento dos meios de consumo, provocado pela necessidade crescente de usar terras
em piores condições. Vê-se, assim, que a argumentação de Ricardo depende
primordialmente de observações sobre a economia rural, envolvendo por isso, uma
excessiva simplificação no relativo ao sistema de comercialização, que se tornou um ponto
fundamental da análise de Marx. Segundo Ricardo, portanto, quem reteria um aumento
líquido de remuneração não seriam os trabalhadores, que individualmente continuariam no
nível de subsistência, mas seriam os proprietários das terras. Mais uma vez, faltou a
Ricardo ligar as vantagens de reter a propriedade fundiária e de controlar as condições
materiais da formação do capital.
Smith acreditou que o aumento da produtividade do trabalho, resultante das
inovações introduzidas no processo de produção, seria um freio suficiente para a queda da
taxa de lucro. Ricardo foi mais pessimista a esse respeito, mas, um e outro tacitamente
admitiam que o aumento da população, com uma absorção cada vez maior do produto total
pelos trabalhadores, seria o móvel conducente ao estado estacionário. Talvez por ser mais
pessimista que Smith – e por contemplar uma ação significativa do Estado 20 - tanto em
termos de política fiscal como de política colonial, para contrabalançar os efeitos negativos
do crescimento demográfico.
20 Não se pode esquecer que Ricardo optou espontaneamente por uma atividade legislativa e que foi um parlamentar voltado a assuntos econômicos.
40
Capítulo 4. Marx e os contemporâneos
Marx
Tal como Ricardo, Marx usou a teoria da distribuição para explicar a dinâmica do
sistema econômico, que distinguiu como sistema capitalista de produção ou como sistema
burguês. No entanto, há uma diferença muito grande entre os dois, quanto à direção dada ao
uso da distribuição. Ricardo vinculou a distribuição da renda à explicação da queda
progressiva do impulso para crescer, apoiado em alguns pressupostos básicos, tais como o
crescimento demográfico, a importância crucial do setor agrícola para a distribuição
funcional da renda e o fundo de salários. Com Marx aparece uma conceituação tácita da
atividade econômica como atividade industrial, no sentido mais amplo dessa expressão.21
Essa concepção do sistema produtivo como de um sistema industrial – ou industrializado –
significou uma mudança de posição acerca do tratamento que se dá a vários dos
pressupostos da teoria ricardiana, dentre os quais o relativo ao nível dos salários.
Do mesmo modo que os clássicos, Marx previu uma redução da taxa de lucro sem
que, entretanto, os motivos desse movimento em sua opinião fossem os mesmos
imaginados por Ricardo. Ao contrário de seu predecessor, Marx previu a possibilidade de
continuação do funcionamento do sistema produtivo. Exatamente, são essas possibilidades
onde se introduzem as mudanças mencionadas frente às premissas dos clássicos. Marx
admitiu a possibilidade de que outros fatores se introduzissem no modelo, permitindo a
continuação de uma taxa de lucro suficiente para estimular a acumulação de capital. Tais
fatores seriam um aumento da taxa de exploração, viabilizado pelas inovações tecnológicas
responsáveis de uma elevação da produtividade dos trabalhadores e a formação de um
excedente de mão de obra, constituindo o exército de reserva.
21 Acerca dessa conceituação ampla da atividade econômica como atividade industrial – equivalente de certo modo à conceituação antropológica de cultura – ver, por exemplo, Pei-Kang-Chang, em Agricultura e industrialización. Chang faz uma apreciação cuidadosa do tema no começo do livro, evidenciando a propriedade de um conceito amplo de indústria ao lado do comum, que é mais restrito. Estendendo esse tratamento aos diversos setores da economia, Marx levanta os pontos em comum de todos eles, que são os usos de capital fixo e de trabalho nos departamentos I e II.
41
Não tendo sido o primeiro a tratar o problema da substituição de trabalhadores por
máquinas – Ricardo já tinha feito antes, mostrando como as máquinas economizadoras de
trabalho liberam quantidades de trabalho, entretanto retendo trabalho nas quantidades e
composição que lhe são necessárias – Marx tratou desse problema independentemente da
teoria demográfica de Malthus, vinculando-o a uma teoria geral da acumulação. O poder de
expandir-se do capital aumenta com sua acumulação. Para Marx, a queda da mais valia
resultante do aumento – relativo e absoluto – do uso de capital acumulado, e a conseqüente
absorção do exército de reserva, compensaria a redução do ritmo da acumulação mais
adiante, quando houver escassez de mão de obra, mantendo-se a capacidade de explorar do
capitalista.
Além das qualidades apontadas, o modelo de transformação econômica de Marx
dota a análise da repartição do produto nacional de três características, que foram
habilmente expostas por Jean Marchal 22: macroeconômica, de longo prazo e sociológica.
Tais características configuram a abordagem marxista, Se bem Jean Marchal não as tenha
utilizado para identificar o dinamismo implícito no padrão distributivo, o debate sobre as
tensões num dado regime econômico e o exame das possibilidades de formular leis da
evolução do padrão de distribuição, o debate sobre as tensões num dado regime
econômico23 e o exame das possibilidades de se formularem leis da evolução do padrão
distributivo ao longo do crescimento sobre bases capitalistas, implicam num modo indireto
de uso desse padrão de distribuição – do capital e da renda – para identificar o tipo de
dinamismo de que se trata. Por outro lado, as três características descritas aproximam o
esquema marxista do objetivo central que procuramos dar ao tratamento do padrão de
distribuição da renda.
A preponderância dos elementos de longo prazo sobre os de curto prazo tem como
conseqüência natural uma desvinculação inicial do padrão de distribuição dos fatores que,
regendo as possibilidades de crescimento a curto prazo, estão, no entanto, ligados às
condições de crescimento a longo prazo. Inversamente, as influencias coletivas que se
22 Jean Marchal, Deux essays sur lê marxisme, Editions de M. Génin, Paris, 1955. 23 Uma característica essencial da análise de Marx é dedicar-se a explicar o atual sistema capitalista de produção, que distingue dos modos pré capitalistas de produzir.
42
manifestam por uma transformação das instituições, e cuja atuação pode ser observada a
longo prazo, foram omitidas pelos economistas mais interessados no curto prazo, tanto
neoclássicos como keynesianos. O plano do longo prazo das transformações das
instituições não se faz pela passagem de um esquema institucional a outro, senão acontece
como resultado do amadurecimento do sistema atual, 24 que prossegue ininterruptamente,
sob a ação de desafios contínuos do sistema de relações internacionais a que as economias
nacionais estão submetidas. O contexto internacional é essencial à produção capitalista
desde sua origem.
Isso faz com que os fatores a curto prazo sejam essencialmente instáveis, já que
estão pré-condicionados por esse quadro a longo prazo, que não é processado pela análise
econômica. Além disso, esses elementos a curto prazo são as expressões mecânicas dos
elementos do longo prazo, pelo que, sua não consideração representa uma insuficiência
teórica da própria análise a curto prazo.
Os marginalistas
Tal como Marx, os marginalistas – ingleses - partiram da teoria de Ricardo, mas
seguiram um rumo muito diferente. 25 O enfoque marginalista tem suas bases no princípio
da utilidade marginal e partiu da elaboração ricardiana da renda da terra. Os marginalistas
deram um lugar central a uma tese lateral de Ricardo, procurando generalizar e construir
através da generalização de seu uso. Esse novo uso do principio da utilidade marginal e
suas implicações para o esquema geral do marginalismo, foram bem sintetizados por
Kaldor.26 Ricardo limitou o uso do principio da utilidade marginal à análise das aplicações
do fator variável trabalho ao fator constante terra. Como inferência dessa aplicação, o
princípio marginal mostrava como um fator constante ganhava a diferença entre o produto 24 Marx denomina de desenvolvimento das forças produtivas, que engloba os aspectos materiais e os de conhecimento incorporados pelos trabalhadores. 25 É preciso registrar desde aqui a diferença epistemológica entre a corrente inglesa e a corrente austríaca do marginalismo, com o contraste entre a visão positivista austríaca e a visão empirista inglesa. 26 Nicholas Kaldor, Alternative theories of distribution, Review of Economic Studies, fevereiro, 1956.
43
médio e o produto marginal do fator variável. Os marginalistas, ao expandir o uso do
princípio marginal para toda a economia focalizaram em seu uso inverso.
Suas concepções são nitidamente microdinâmicas. Estando basicamente
interessados em criar um corpo teórico capaz de responder à teoria marxista do valor
trabalho, os economistas neoclássicos – herdeiros dos marginalistas – elaboraram um
esquema distributivista em caráter e intenção, incapaz de oferecer uma base para uma teoria
do desenvolvimento. Um esboço do que poderia ser uma teoria do desenvolvimento nos
moldes neoclássicos foi-nos dado por Celso Furtado.27 Os economistas neoclássicos
ignoraram as condições materiais determinantes do nível da poupança e que influem na
redistribuição da renda a longo prazo. Dada a situação de consumo total da renda em que
vive a maioria da população nos países subdesenvolvidos – e ali importa saber se a
desigualdade de renda é igual ou não nos dois tipos de países - é fundamental para quem
estuda os países subdesenvolvidos, conhecer a origem e o comportamento da poupança.28
Entende-se ser essa uma causas da pouca valia de sua teoria para uma análise do
desenvolvimento.
Desde o ponto de vista da teoria da distribuição, Kaldor considera indiscutível a
contribuição marginalista em três pontos. Primeiro, marcando o vínculo necessário entre a
teoria da produção e a teoria da repartição da renda, através da relação entre a
produtividade marginal e a demanda de fatores, pondo em relevo a associação essencial
entre a produtividade e a remuneração dos fatores. Segundo, é uma teoria econômica
fundamental que traz de volta a atenção aos problemas de valor e às funções econômicas da
renda, assim oferecendo elementos inestimáveis para a política econômica. Terceiro,
oferece uma explicação homogênea e unitária da remuneração dos fatores da produção.
27 Celso Furtado, El análisis marginal y la teoria del desarrollo, México, El Trimestre Económico, 1958. 28 Nesse ponto não há como deixar de considerar o argumento de que os países e as regiões subdesenvolvidos exportam capitais para os países e regiões mais desenvolvidos, através do mecanismo controlado da comercialização de seus produtos, do controle do financiamento e da migração de capitais formados nas atividades primário-exportadoras. Esse argumento foi apresentado por nós na análise do funcionamento da economia da região cacaueira na Bahia (A Zona Cacaueira, 1959).
44
No entanto, entendemos que o caráter microeconômico da análise marginalista
constitui uma limitação semelhante àquela da crítica de Böhm-Bawerk a Marx. A falta de
uma resposta satisfatória à teoria do valor trabalho foi oportunamente apontada por Paul
Sweezy. O marginalismo realiza um deslocamento temático na teoria do trabalho, que
significa desconsiderar os argumentos relativos à exploração e reduz tudo a uma
proporcionalidade da remuneração dos fatores, sem entrar no mérito da restrição dos
pagamentos aos trabalhadores. É revelador que autores como Raymond Barre e Paul
Samuelson utilizam a crítica de Böhm-Bawerk sem mencionar esse deslocamento temático.
Mas Paul Sweezy contra-argumentou baseado no caráter global da extração de mais valia,
que afeta o sistema de produção em seu conjunto. Mais penetrante ainda nos parece a
análise de Paul Baran, quando distingue as condições históricas que regem a diferença entre
a renda real e a renda potencial.
O viés microeconômico da análise marginalista é o mesmo que levou Schumpeter a
perder o significado do “fluxo circular” dos Fisiocratas, ao reduzi-lo a relações entre
indivíduos. Entendemos que, mesmo admitindo que os marginalistas extraíram elementos
válidos de análise, tanto para as economias de mercado aberto como para as economias
planificadas, e que contribuíram amplamente para progressos no domínio da distribuição
funcional da renda, o viés microeconômico limita decisivamente o escopo da teoria, que se
torna incompatível com a construção de uma teoria unificada da distribuição.
A teoria do grau de monopólio
A teoria do grau de monopólio é a contribuição de Michal Kalecki a este debate. A
teoria de Kalecki baseia-se na determinação da participação dos salários de trabalho manual
na renda nacional pelo grau de monopólio e pela relação entre a despesa total em materiais
e o montante dos salários. Trata-se, portanto, de uma exploração da explicação de Marx da
acumulação em geral. Usa o pressuposto de uma análise a curto prazo onde o grau de
monopólio - elemento que se agrega ao lucro – é a diferença entre o lucro marginal obtido
em condições de concorrência perfeita e o lucro marginal obtido sob condições
45
monopolísticas. Vê-se que na verdade Kalecki toma um aspecto da análise de Marx da
estruturação do sistema produtivo e extrái dela um rebatimento – a nível micro – das
condições de formação da taxa de mais valia, retirando dela, entretanto, seu significado
histórico, isto é, reduzindo a análise de Marx a um argumento mecanicista.
A teoria do grau de monopólio foi formulada para o caso específico do setor
industrial e construída a partir de uma unidade industrial. Exprime-se por um sistema de
três equações básicas, que se apóiam em pressupostos representativos das economias
nacionais mais desenvolvidas. Trata o grau de monopólio como uma situação e não como
um processo, pelo que se aproxima mais de Keynes que de Marx.
A proposição básica resultante do desenvolvimento dessas equações é de que as
partes dos capitalistas e dos assalariados na renda bruta estão determinadas pelos retornos
do capital, com grande aproximação ao grau de monopólio.29 Evidentemente que isso seria
inaplicável em condições de mercado aberto, quando o grau de monopólio seria nulo, ou
em condições de processos de monopolização que sejam mutuamente bloqueados. Os
motivos pelos quais a teoria do grau de monopólio é pouco aplicável para nós radicam em
suas características de curto prazo que condicionam essa combinação de micro e
macroeconomia. Mesmo se expandindo essa abordagem a outros setores da produção, seria
difícil integrá-la com esse esforço de ver as qualidades dinâmicas do padrão distributivo.
Inicialmente, a teoria de Kalecki tem para nós o interesse de que seu entendimento
da participação do trabalho manual está adequada à composição do trabalho nas economias
subdesenvolvidas, onde há uma proporção majoritária de trabalhadores ocupados em
atividades de baixa tecnologia em que o componente de trabalho manual é mais elevado
que a media das economias mais industrializadas. Esse, seguramente, é um ponto que exige
maior aprofundamento, porque não se trata de maior número de trabalho manual stricto
sensu senão de maior carga de trabalho por unidade de produto, mesmo em ambientes em
que decresce a participação de trabalho manual propriamente dito. A hipótese básica de
29 Michal Kalecki, The determinantes of distribution of National Income, Econometrica, agosto, 1938.
46
uma economia onde o trabalho socialmente necessário diminui lentamente é a mais
próxima da realidade para o conjunto de cada economia periférica, mas compreende setores
onde ele cai rapidamente e outros onde ele se mantém praticamente invariante. Não há
como supor que todos os setores da indústria se comportem do mesmo modo, como se em
todos houvesse a mesma concentração de capital.
A teoria keynesiana
Neste trabalho trata-se principalmente de contribuições de pensadores considerados
como adeptos das idéias de John Maynard Keynes que das obras dele mesmo. A teoria de
Keynes contém pressupostos de concentração de renda, implícitos no mecanismo de sua
teoria do investimento, mas sua análise da formação de renda está prejudicada por seu foco
no curto prazo. Para nossos fins, interessam mais as obras de alguns economistas rotulados
como post-keynesianos. Especialmente, interessam-nos mais os trabalhos de Nicholas
Kaldor e de Roy Harrod.
Baseado nas idéias de Keynes, Nicholas Kaldor começou um esquema teórico da
distribuição, publicado em um artigo na Review of Economic Studies de fevereiro de 1956.
Nele, partiu de um novo uso do multiplicador, prescindindo da sua finalidade original de
determinação do nível do emprego, para utilizá-lo na determinação da relação preços-
salários, tomando como dado o nível do emprego. Tal como ele mesmo admite
explicitamente, a condição necessária para a validez de seu esquema teórico é o pressuposto
de ser o investimento uma variável independente. Seria perfeitamente concebível o uso
desse pressuposto numa economia desenvolvida. A dependência ou a autonomia dos
investimentos nesse caso estaria em função dos estímulos para investir. Noutras palavras,
dependeria da demanda efetiva, supondo-se uma propensão para investir igual à unidade.
Nas economias subdesenvolvidas também haverá lugar para o pressuposto do investimento
autônomo, sempre que houver demanda insatisfeita, isto é, que a demanda cresça mais
rápido que a capacidade de produção, o que seria inevitável, especialmente se o processo é
analisado a nível dos setores da produção. Contudo, grande parte do volume dos
47
investimentos nessas economias depende de variações na propensão a investir, causadas
especialmente pela insuficiência de sua capacidade para importar e pela inadaptabilidade
técnica de sua estrutura produtiva para produzir os tipos específicos de bens necessários
para a realização dos investimentos.
Noutras palavras, a teoria keynesiana do investimento encontra limitações
decorrentes da composição do capital, que limitam decisivamente sua validade a longo
prazo. Mais ainda, se essa limitação fosse considerada no contexto de um modelo de
planejamento econômico, seu pressuposto básico, que é o caráter independente da variável
investimento, não seria válido. Isso porque a necessidade de fixar metas para um programa
tornaria necessário estabelecer taxas de crescimento e então, afastada a possibilidade de
variações bruscas na relação produto/capital a curto prazo, o investimento se tornaria uma
variável dependente dentro do sistema.
A premissa a partir da qual Kaldor supõe que a relação investimento/produto seja
uma variável independente é a de que ela está determinada pela taxa de crescimento da
capacidade de produção e pela relação capital/produto, o que implica admitir uma
adaptabilidade perfeita do sistema industrial para produzir os bens necessários aos
investimentos, além de uma capacidade suficiente para atender em quantidade e em tempo
adequado a essas necessidades de produção. Isso significa que a análise de Kaldor contém
uma simplificação que não é explicada e que restringe sua aplicabilidade às mesmas
condições de curto prazo da análise keynesiana em geral. 30
A alternativa é dispor de uma capacidade de importação que se expande sem
elevação de custos. A primeira das duas alternativas é utópica. Quanto à segunda, a
30 Esse aspecto de adaptabilidade do sistema está muito pouco explorado na corrente keynesiana e está apenas indicado por Harrod, como um desdobramento da teoria do acelerador.. Para nós é fundamental, porque reflete os movimentos progressivos da composição do capital, que logicamente mudam de feição à medida que o sistema se torna mais complexo. Observamos que a análise do desenvolvimento desenvolvida nas economias mais ricas e poderosas pressupõe que essa adaptabilidade está dada e, praticamente, representada pela renovação de tecnologia. Entendemos que essa é uma simplificação improcedente, já que a adaptabilidade está ligada ao desempenho do grande capital e que se distribui desigualmente no sistema produtivo e ao longo do tempo.
48
experiência dos estudos do subdesenvolvimento mostra como surgem restrições de balança
de pagamentos, em que a capacidade de importar enfrenta dificuldades crescentes.
Distribuição, emprego e crescimento secular
Nesta parte consideram-se os argumentos que ligam a distribuição aos movimentos
do sistema produtivo em períodos longos, que é uma pré condição necessária da análise do
desenvolvimento, mesmo quando se trata com problemas de subdesenvolvimento em curto
prazo. A referência de longo prazo envolve duas considerações, que são as de que as
principais mudanças na composição do capital se realizam em longos períodos, e que
somente com um horizonte de longa duração é possível apreciar os principais
deslocamentos na relação entre a expansão do sistema produtivo e as modificações da
população. As implicações do processo de distribuição em períodos longos são parte
essencial da formulação teórica de Marx, mas ficaram perdidas no marginalismo em suas
diversas correntes.
Por isso, vale a pena examinar a contribuição de Kenneth Kurihara. Na linha do
pensamento keynesiano, Kenneth Kurihara, em trabalho incluído em coletânea de
economia post-keynesiana, analisou os fatores que influem na distribuição, a relação entre a
distribuição e o equilíbrio a longo prazo, estudando-a, por fim, através da função consumo
e da função investimento. O trabalho de Kurihara parte da justificação do enfoque de
Keynes da teoria do emprego, segundo a qual a estrutura distributiva pode ser tomada como
dada quando se considera o nível do emprego no curto prazo. No longo prazo, contudo – e
é nesse ponto que nosso interesse coincide com o dele – acontecem alterações institucionais
significativas que afetam a distribuição. Por extensão – e por um efeito de integração com o
modo de produzir – a distribuição afeta o emprego e o crescimento secular do produto,
introduzindo-se assim um efeito distribuição entre as variáveis macroeconômicas
intervenientes no crescimento.
49
Partindo dessas premissas, o objetivo do trabalho de Kurihara é analisar as relações
entre a distribuição da renda e o emprego secular no contexto de um equilíbrio dinâmico.
No transcorrer do trabalho, Kurihara tenta, além disso, provar que a diferença entre os dois
lados da dinâmica que servem de base para as elucubrações de Harrod, de Domar e de Joan
Robinson – o investimento e a poupança – são mais aparentes que reais. Justifica-se o
interesse dos mencionados economistas, tanto como o do próprio Kurihara, e o dos
economistas dos países mais desenvolvidos, onde supostamente a propensão a investir não
é um problema. A partir daí, desenvolve uma análise da relação da função consumo e da
distribuição, considerando que são os efeitos dos hábitos de consumo que têm maior peso
na análise a longo prazo.
Para nós, essa análise deve ser revista, porque esses pressupostos sobre o efeito
renda da distribuição têm diferente sustentação para os países mais ricos e maiores e para
os países mais pobres e menores. A análise de Kurihara refere-se a hábitos de consumo e
nós precisamos ter claro que se trata das condições históricas do consumo dos diferentes
grupos sociais, que estão delimitadas pela segmentação social e não só por diferenças de
posição numa distribuição contínua do consumo. O consumo está condicionado pelas
condições de pobreza de grupos provenientes da sociedade escravista e que não têm nem
tiveram acesso a oportunidades de obter renda. Por isso, são diferentes curvas de consumo
com as quais é preciso trabalhar. Assim, só será possível reorganizar essa análise estudando
a estrutura do consumo dos países subdesenvolvidos, distinguindo – tal como fez Ricardo –
o consumo dos que têm rendas do capital, o dos que têm rendas de trabalho e considerando
nossos equivalentes dos wanderers de que ele fala, que são todos os que têm ficado fora do
mercado de trabalho.
Hábitos de consumo ou propensão a consumir são qualificações cujo significado
fica restrito a sociedades em que todos participam do mercado com rendas regulares, isto é,
onde não há exclusão significativa. Certamente, não são as condições dos países latino-
americanos em geral nem do Brasil em particular.
50
TERCEIRA PARTE
FATORES DETERMINANTES DA DISTRIBUIÇÃO DA RENDA
Capítulo 5. As formas de produção
Se considerarmos a produção em seu estagio primitivo, poderemos perceber que o
problema da distribuição da renda praticamente não existe tal como ele geralmente é
concebido e discutido. O lavrador que trabalha sua própria terra e o artesão que recolhe a
matéria prima no ambiente onde vivem recebem o valor total da produção que realizam.
Numa comunidade onde todos trabalham desse modo não há como formar uma
desigualdade acentuada na distribuição da renda entre as pessoas, a não ser por fatores tais
como a raridade dos bens que se produzem, a qualidade das terras que se cultivam, etc. Na
sociedade capitalista moderna as coisas acontecem de modo muito mais complexo,
demandando uma análise mais detalhada da relação entre a formação de renda e a
distribuição da renda disponível. Adam Smith compreendeu a importância do aumento da
complexidade nos métodos de produção para a distribuição da renda, tendo sido esse, em
conseqüência disso, seu primeiro ponto de abordagem da teoria da distribuição. Como
vimos no Capítulo 3, todo o esquema teórico construído pelos Clássicos, inclusive a teoria
da renda diferencial, em sua essência, está sustentado num raciocínio desse gênero.
A identificação das formas de produção como elemento determinante do processo
distributivo faz-se a partir da consideração de que a estreita dependência entre a demanda
efetiva e o padrão prevalecente de distribuição da renda implica em uma relação das formas
de produção e a dinâmica das economias nacionais, dependente, por sua vez, da demanda
efetiva. Evidentemente que há essa circularidade de interdependências dá num raciocínio
tautológico, que toma efeitos por causas. Mas essa tautologia só aparece enquanto se tenta
51
resolver teoricamente os problemas da distribuição apenas na esfera da renda, isto é,
enquanto não se trabalha com a relação entre distribuição da renda e formação de capital.
Isso significa colocar a distribuição como uma decorrência do modo de produção
capitalista e, especificamente, como um movimento que está atrelado às formas específicas
em que se materializa o modo de produção capitalista. O modo de produção capitalista se
operacionaliza numa combinação de formas industriais de produção com formas de
operação bancárias e com uma extensão às formas de produção rural. A visão do sistema
socioprodutivo como de uma combinação de formas de produção é um desdobramento
inevitável da abordagem de Marx31 , que se situa na perspectiva de processos históricos que
se materializam em formações sociais, que são a expressão das economias nacionais32 ,
com seu componente material e seu componente ideológico, com suas práticas operacionais
e suas instituições. Assim, a leitura do processo através das formas de produção não é ,
portanto, uma redução de seu fundamento histórico, nem é uma perda da dimensão crítica
da tensão entre a progressão da formação de capital e a concentração de renda social. Nesse
sentido, as formas de produção definem as qualidades dinâmicas próprias do sistema
socioprodutivo, convertendo-se em limites de suas possibilidades imediatas de crescimento.
As formas de produção estão vinculadas às respostas históricas encontradas para os
problemas de ajuste das estruturas suscitados pelos movimentos de crescimento do produto
social. Constituem os matizes introduzidos em uma ou outra parte, com as complicações
introduzidas pelas circunstâncias, aquilo que Henri Guitton denomina de regimes
produtivos.33 Esses regimes estiveram ao longo da história, baseados em determinados
estágios da técnica que, por suas próprias características estruturais, incluem certas
respostas aos problemas sociais da distribuição dos resultados do trabalho, variando desde
os conceitos legais da propriedade da renda até as formas habituais de remuneração do
capital e do trabalho. O fundamento institucional surge como uma determinação histórica
31 A doutrina de Marx sobre os modos de produção significa que o modo de produção capitalista é sempre misto – e não só complexo – porque carrega formas superadas de modos anteriores, que dão a originalidade de cada formação social. 32 É oportuno lembrar que Marx se refere nominalmente a economia nacional e que reconhece as implicações de uma análise de processo internacional do capital como de um processo que pode ser definido nos parâmetros institucionais das nações. 33 Henri Guitton, Economia Política, Rio de Janeiroi, Fundo de Cultura, 1959,vol. II, pp. 12.
52
das condições técnicas da produção e não como um elemento separado do quadro técnico
da economia.
O papel dinâmico das formas de produção veio a ter importância na teoria
econômica de Marx, onde aparecem como resultados da experiência prática da produção.
Essa importância pode ser aferida das seguintes linhas “Na produção social que realizam os
homens, estão em determinadas relações, que são independentes de sua vontade. Essas
relações de produção correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das
forças materiais de produção. A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade – a base sobre a qual se levantam as superestruturas legal e política
e da qual correspondem determinadas de consciência social” 34 A seguir, desenvolvendo as
possibilidades dinâmicas implicitamente admitidas nesse raciocínio, prossegue: O modo de
produção na vida material determina o caráter geral dos processos sociais, políticos e
espirituais da vida...Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças materiais de
produção existentes - isso não é senão uma expressão legal do mesmo – com as relações de
propriedade dentro das quais tinham operado antes. De formas de desenvolvimento das
forças de produção essas relações se converteram em suas travas” 35 É a dialética marxista
aplicada à base material do processo econômico, a produção em suas formas técnicas,
apresentando-as como as forças dinâmicas que comovem regimes econômicos
estabelecidos sobre formas de produção anteriores, agitando-os, preponderando sobre eles e
passando a ser a base de sustentação dominante até que outro movimento técnico, incluindo
nessa expressão as relações sociais que acompanham a todos os movimentos técnicos, as
comovam por sua vez e produzam um movimento semelhante. Para Marx, a importância da
mais valia transcorre desde a forma histórica específica do capitalismo como forma de
produção. No capitalismo, portanto, não importava o fato em si da exploração de uma parte
da população por outra, senão a forma assumida pela exploração, isto é, a produção de mais
valia. Para nós, entretanto, interessa discutir não só esse aspecto global do movimento que
nasce das formas de produção, senão também as implicações que esses movimentos têm
sobre o padrão geral da distribuição.
34 Karl Marx, El capital, México, Fondo de Cultura Econômica, 3 vols. 1956. 35 Karl Marx, op. cit.
53
O debate distributivo baseado na crítica das formas de produção foi anterior a Marx
e estava implícito no interesse de Ricardo no mecanismo da distribuição da renda da terra.
Essa distribuição seria a causa central de conflitos entre diferentes grupos considerados pela
forma de sua participação na produção e, como assinalaria Sweezy36, preferiu o capital. Em
segundo termo, as formas de produção são a causa oculta por cuja presença não se pode
perceber com clareza as verdadeiras condições em que se encontram os indivíduos para ter
acesso aos meios de produção. A estrutura dessas formas de produção, tal como ocorre na
produção capitalista, pode impedir o acesso de muitos indivíduos aos referidos meios de
produção, restringindo seu controle àqueles que representam o setor estrategicamente bem
situado na estrutura do sistema produtivo. Essa impossibilidade foi muito menor ou
simplesmente não existiu nas formas pré-capitalistas de produção. Contudo, a produção
capitalista aparenta uma igualdade baseada na produção de mercadorias na base de relações
contratuais que, em princípio, não impedem o acesso de todos ao consumo.
No modo pré-capitalista de produção organizado sobre uma combinação de
exploração agrícola com artesanato, a possibilidade de que se formem grandes
desigualdades na distribuição depende da estrutura da propriedade fundiária e da
participação da economia nacional em um sistema de relações internacionais.
Historicamente, para os países que estão atualmente tentam emergir do
subdesenvolvimento, a grande fonte de desigualdade na distribuição resultou do primeiro
fator, desde que o segundo dependeu sempre do período econômico dos países mais
desenvolvidos, seja expressado por suas frotas, seja por uma alta participação na própria
comercialização interna de seus produtos agrícolas. Sob tais condições, considerando-se
que a propriedade rural tende a perpetuar-se por herança, o excedente da produção terá um
destino sempre igual, fixando as possibilidades dinâmicas do padrão distributivo. O
resultado geral sempre foi uma retenção do excedente de produção em mãos de uma classe
rural dedicada a produzir para exportar e com oportunidades e interesses de investimento
36 Paul Sweezy, La teoria del desarrollo del capitalismo, México, FCE,1956.
54
bastante reduzidos 37. Assim, a menos que os próprios produtos de exportação sejam
alimentos, a tendência é para que o processo de urbanização gerado pelo comércio seja
prejudicado, quando não detido, por uma alta constante do custo de vida, causada pela
escassez de alimentos. Tal escassez de alimentos, como se sabe, tem sido um traço
característico dessas economias exportadoras de matérias primas agrícolas e mineiras.
Haverá, portanto, um duplo choque entre os interesses naturais dos detentores da
agricultura de exportação, dos indivíduos dedicados a produzir alimentos 38 e dos
integrantes dos centros urbanos. Esse conflito de interesses precede a determinação de
classes sociais, que aparece primeiro nos centros urbanos, mas que tem um indiscutível
fundamento rural.
Essas têm sido as mais próximas dentre as novas formas de produção e aquelas que
com mais facilidade se identificam com as tendências de industrialização da produção em
geral. Identificam-se com a agricultura de exportação, de modo geral, como uma faixa de
intermediação, em que avultam interesses opostos aos dos agricultores. Igualmente, apesar
de que raramente se tenha dito, há uma conjunção de interesses com os dos produtores de
alimentos em todas as oportunidades de começo de industrialização, quando se precisa
elevar rapidamente o coeficiente de urbanização. Apesar disso, enquanto perdurar o sistema
tradicional de agricultura de exportação, serão os comerciantes das cidades seus integrantes
complementares que, entretanto, a encaixam num sistema mais amplo de relações
internacionais.
A capitalização das formas de produção em muitos países subdesenvolvidos
precedeu sua industrialização. Geralmente ela começou pela própria agricultura de
exportação, inclusive como parte da produção colonial. Entretanto, deixada de lado a fase
37 A produção de mercadorias para exportar na América Latina em geral esteve controlada por grandes comerciantes localizados nas principais cidades, que, por sua vez, estiveram sob o controle de grandes capitais instalados nos países líderes da economia mundial. O poderio econômico da Inglaterra esteve claramente associado a sua capacidade de controlar os negócios com as principais mercadorias, tais como chá, café, cacau etc. 38 Observa-se que a produção de alimentos tem sido realizada em pequena escala por pequenos capitais, oprimida pela produção para exportação. Isso se torna particularmente flagrante nos países tropicais, onde a maior parte da exportação agrícola é de produtos de sobremesa.
55
inicial da colonização, a agricultura de exportação realizada em grandes unidades e em
moldes capitalistas tornou-se e com ela mobilizaram-se grandes capitais dos países mais
ricos. O mesmo aconteceu com a grande mineração, que teve o efeito adicional de exaurir
recursos não renováveis. Assim, ao observar o processo em seu conjunto, não se pode
identificar uma linha única de interesses capitalistas nesses países. Na realidade eles
funcionaram com a lógica do capital, mesmo quando corresponderam a formas de
preliminares da organização da produção capitalista. Torna-se, portanto, necessário
distinguir o capital operacional em sistemas pré-industriais e em sistemas de produção
industrializada. Por isso, o conceito de forma de produção ganha uma importância especial
na análise das economias dos países subdesenvolvidos de hoje.
O aparecimento do capitalismo industrial nos países subdesenvolvidos altera
radicalmente suas possibilidades dinâmicas. Há uma redistribuição social do excedente da
produção e abrem-se novas possibilidades e interesses quanto ao destino dado ao produto
nacional. No essencial, houve uma redistribuição do produto territorial. Ao mesmo tempo,
as áreas que não alcançaram um vínculo eficiente com o sistema capitalista de produção,
permaneceram praticamente em estado de economia natural. A incorporação às formas
industriais ou às formas capitalistas em geral converteu-se em um quadro político
completamente novo. O principal efeito da introdução de um setor industrial na dinâmica
dos países subdesenvolvidos tem sido a orientação de uma parte crescente do produto
nacional a um setor social disposto a realizar investimentos tendentes a exercer a longo
prazo uma pressão favorável continuada sobre a balança de pagamentos e um
amadurecimento geral do sistema produtivo. É preciso lembrar que, em muitos casos, um
setor agrícola capitalista – com efeitos na balança de pagamentos – esteve recebendo o
produto nacional sem promover investimentos proporcionais ao que recebe. No entanto, em
quase todos os países há amplas oportunidades para investir no próprio setor agrícola,
capazes de fazê-lo crescer. Também, como vimos no Capítulo II, são as características
próprias de um e outro setor – do agrícola e do industrial – que fazem a diferença. A curto
prazo, o novo setor industrial, por causa da incapacidade do sistema produtivo para prover
os bens de capital e o combustível que necessita, está obrigado a pressionar a capacidade de
importar do sistema, para instalar-se, funcionar e se desenvolver. Enquanto a economia
56
nacional não tenha se desenvolvido, a capacidade de importar será dada pelo reduzido
grupo de produtos agrícolas de exportação, sendo a diversificação das exportações uma das
características históricas que o processo de desenvolvimento tem tido.
Mencionamos uma alteração do quadro político internacional concomitante à
introdução de formas capitalistas de produção em regiões subdesenvolvidas nos últimos
anos. Esse fato é verdadeiro para a América Latina, para a Ásia e para a Oceania, porém em
menor escala para a África, onde o colonialismo ao estilo do século passado assentou raízes
mais fortes.Para as demais regiões subdesenvolvidas do mundo, se bem que perdura uma
dependência em relação com os países desenvolvidos sob as formas de investimentos de
dominação, realizadas por estes últimos, principalmente na agricultura de exportação, em
transportes, serviços urbanos etc., que passaram a ter novas condições de negociação no
cenário internacional, em grande parte, pela participação assumida na Segunda Guerra
Mundial pelos países subdesenvolvidos e pelo equilíbrio dela resultante. As características
dessa nova situação internacional foram bem expostas por Paulo de Castro39. As novas
condições estiveram acompanhadas de uma determinação geral de obter melhores
condições de vida, que marcou desde então a orientação de diversos governos e que se
tornou uma condição de elegibilidade para cargos de governo em outros países. Nesse
esquema histórico tornou-se necessário enquadrar a necessidade de introduzir formas
capitalistas de produção em regiões subdesenvolvidas.
O denominador comum das políticas desses países ativou as funções operativas dos
governos permitindo-lhes novas possibilidades de intervenção sempre que aparecem como
promotores de novas atividades, que é uma capacidade que antes não tinham, de conduzir
movimentos de modernização do sistema produtivo. A conseqüência dessa nova
capacidade de intervir é a formação de novos grupos econômicos, que desestimula a
perpetuação do sistema tradicional constituído de produção para exportação e extrativismo.
A implantação e subseqüente expansão do capitalismo industrial representam uma
dinamização progressiva do sistema produtivo, tal como acontece no Brasil desde o fim da
Segunda Guerra Mundial.
39 Paulo de Castro, Terceira Força, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1958.
57
58
Capítulo 6. As instituições políticas e sociais
Os fatores econômicos determinantes da distribuição da renda operam em um
quadro não econômico formado pelas instituições políticas e sociais. Essas instituições
representam, não só o ambiente onde os fatores econômicos atuam, senão elas próprias são
elementos determinantes do padrão de distribuição da renda, mesmo não sendo
econômicos. O esforço para crescer se manifesta no aumento de atividade em geral e numa
expansão de certos tipos de atividade sobre outros, bem como na atitude correspondente a
esse incremento de atividade poderá estar favorecido ou prejudicado pelas instituições
predominantes. O apoio ao esforço para crescer dado pelas instituições, geralmente
significa que elas são adaptáveis às idéias de desenvolvimento e que, por conseguinte, têm
a flexibilidade necessária para acompanhar as transformações sociais trazidas pelo
processo de desenvolvimento. Ajudam, portanto, a sua expansão e o esforço para
desenvolver-se pode aumentar, ao envolver mais componentes da sociedade.
Sob o impacto do crescimento, as instituições tendem a ser reformadas, buscando
um estilo social melhor adaptado às novas condições de vida. Se, contudo, não se apresenta
uma tendência de expansão e a economia permanece estagnada, as instituições tornam-se
mais rígidas por sua antiguidade, perpetuando-se o modelo econômico que rege a sociedade
e que concorreu para criar essas instituições. Interessa-nos estudar aqui as formas pelas
quais elas podem afetar ao desenvolvimento e à distribuição da renda. Nesse sentido, cabe
referir a algumas observações de W.Arthur Lewis, que resumiu a influencia das instituições
em três pontos seguintes: protegendo o esforço para crescer, ganhando oportunidades de
especialização e dando liberdade de escolha de ocupação aos trabalhadores.40
40 Nesse ultimo ponto, Lewis foi precursor de uma polêmica que atravessa a teoria econômica desde então, relativa à mobilidade dos trabalhadores para se moverem em busca de melhores perspectivas de aumento de sua renda familiar, já seja através de incrementos de salário, ou seja, pelo aumento do número dos membros da família que encontram emprego. As observações de Lewis estavam inspiradas no ambiente colonial tardio das ilhas do Caribe – de onde ele era originário – e onde a noção de mobilidade refere-se a uma mobilidade no âmbito do império britânico de que era parte. Diverge, portanto, das condições históricas em que se apresentam nossos problemas de mobilidade na sociedade brasileira.
59
A questão, portanto, está em que o próprio desenvolvimento influi no padrão de
distribuição, iniciando ou alterando processos de distribuição da renda. Assim, as
instituições afetam o esforço para crescer e a possibilidade de expansão de novas
atividades, pela segurança que podem ter essas novas atividades e pelas tentativas de novas
explorações econômicas que eventualmente surjam com elas. Se as instituições admitem
discriminação contra algum grupo, ou se, mesmo descartada essa situação, há uma
fragmentação do poder que dá lugar a um ambiente de insegurança para os investimentos
em geral, ou para os investimentos de algum grupo social específico, o esforço para crescer
será prejudicado e serão reduzidas as possibilidades de sua disseminação. Em muitas
regiões subdesenvolvidas em que a decomposição do poder central – efeito do antigo
sistema colonial – onde a debilidade do Estado e as grandes distâncias favorecem condições
de intranqüilidade, esse tipo de interferência das instituições sociais apresenta-se de modo
decisivo.
Outra forma de intervenção das instituições sociais apontada por Lewis é a proteção
ao esforço para crescer, garantindo a remuneração referida a esse esforço a aqueles cujo
direito sobre ela está reconhecido pelas pessoas que a realizam. Excluímos uma discussão
do destino último dado a essa remuneração, ou sobre quais sejam aqueles cujo direito sobre
a renda é reconhecido, por supor que sejam quais forem esses indivíduos, ou mesmo o
Estado, o estímulo para o esforço para crescer estaria atendido. Contudo, há uma relação
estreita entre a garantia do destino do produto para aqueles que a sociedade reconhece
como donos legítimos e o estímulo dado pelas instituições aos setores da sociedade dotados
de capacidade inovadora, em organização e em tecnologia. Se a compreensão de justiça
social incorporada pelas instituições favorece setores desprestigia aos setores capazes de
promover o desenvolvimento econômico e tecnológico, é pouco provável que a definição
de justiça das instituições favoreça aos setores que representam as minorias capazes de
promover as alterações identificadas com o desenvolvimento. As preferências para o
destino do produto em regiões como o Tibet não atendem aos objetivos do
desenvolvimento material, como também acontece em países subdesenvolvidos dominados
por ditaduras e sultões ociosos.
60
As instituições estarão auxiliando a realização do espírito empresarial se
reconhecem um status animador na sociedade. É importante notar que não só em
sociedades aristocráticas como a França anterior à Revolução Francesa, o empresário foi
relegado a uma condição inferior, sendo-lhe negado o acesso aos estratos mais altos da
sociedade. Em muitos países subdesenvolvidos onde impera a grande propriedade
fundiária, de produção predominantemente agrícola, as preferências da sociedade se
inclinam a profissões tais como advocacia, a carreira militar e o sacerdócio, deixando as
atividades produtivas e com elas as inovações, reservadas para pessoas de pouca instrução,
prevalecendo preconceitos contra o trabalho manual e admitindo que os grupos mais ricos
não trabalhem.
Nessa lógica da ordem social, não se poderia recriminar às sociedades de economia
rural por essa atitude no relativo à formação profissional, pelo simples fato de que essas
sociedades vão organizando e institucionalizando uma atitude que corresponde a sua
verdadeira necessidade de trabalho qualificado – em suas atuais formas de produção – e
atendem aos seus preceitos de prestígio. Há aí um fundamento prático para a perpetuação
do sistema de privilégios e preconceitos. Os indivíduos pertencentes a famílias ricas terão
que continuar o trabalho de seus maiores, cuidando de propriedades agrícolas, onde
tampouco há grandes mudanças em tecnologia e em organização da produção. No Brasil, a
conseqüência foi que o desejo de prestigio social passou a ser satisfeito – possivelmente
dado o baixo nível de instrução na sociedade colonial – com um título de nobreza, com a
cultura canônica ou na carreira das armas. A conseqüência disso foi a formação de uma
resistência cultural dos jovens frente a carreiras técnicas, não distinguidas com status,
preferindo a atividade política. Isso significou, em última análise, um obstáculo ao
desenvolvimento pela falta de trabalho qualificado e a formação de uma classe ociosa de
políticos tendentes à corrupção, sem identidade ideológica. Naquelas regiões do Brasil onde
a carência de mão de obra foi suprida com imigração e com a reorientação profissional
induzida por ela, passou-se a contar com mais trabalhadores qualificados. Em outras
regiões, como o Nordeste, onde a estrutura rural deitou raízes mais fortes, onde não houve
esse afluxo de imigrantes, permaneceu o predomínio das antigas preferências, que
61
encontram meios de se atualizarem na modernização da economia nacional, sem modificar
seriamente a estrutura produtiva.
No entanto, as pessoas provavelmente estarão dispostas a realizar o esforço para o
crescimento da produção, se se sentem unidas por uma tarefa comum, seja pelo sentimento
de dever, seja por que descobrem vantagens pessoais significativas nas tarefas coletivas que
realizam. O entusiasmo que se desprende de uma obra comum não deve ser associado às
formas de operação das economias socialistas, mesmo que seja uma forma dirigida para
prover trabalho para empresas de interesse determinado pelo Estado.
A principal aplicação do estímulo para a produção baseado na crença de uma obra
comum, antes de estar relacionado com a forma política que dispersou poder nos últimos
anos com mais freqüência e melhores resultados, que tem sido o socialismo, deve estar
identificado com o desejo de grandes massas humanas de edificar em bases sólidas sobre o
fundamento da nacionalidade. Além dos exemplos irrecusáveis dos esforços gestados por
países que no século passado não se alinhavam entre as potências mundiais, como a Rússia,
a China e o Japão, a história moderna tem outro exemplo no Estado de Israel, que foi
implantado e edificado sobre a base estrita da crença numa causa comum. Não é o caso da
amplitude de esforços para se desenvolverem que empreendem hoje a Índia e o Brasil.
Todos esses países, além de estarem regidos por sistemas políticos diferentes, representam
tentativas que seguem diferentes rumos pré-condicionados por sua história e cultura,
representando manifestações de diferentes composições sociais e de poder. As condições de
comparabilidade entre essas experiências não podem ser adequadamente avaliadas sem
considerarem-se os efeitos da Segunda Guerra Mundial, com sua devastação e com o fim
de certas formas de colonialismo.
A captação de um entusiasmo da sociedade para uma obra coletiva revela-se mais
acessível a níveis regionais historicamente formados, antes que nas estruturas nacionais,
que, em vários casos se formaram, justamente, nesse período. Nos exemplos mencionados a
mobilização social pode ser contraposta por interesses particulares de pessoas e de grupos,
sobrepondo os interesses de minorias aos das maiorias. Os conflitos de interesse estão no
62
centro do problema e as diferenças de condições de manifestação dos interesses dos grupos
sociais refletem, justamente, a história da formação das nações. Assim, historicamente há
maiores possibilidades de mobilização em escalas regionais e locais, onde a opinião pública
tem maiores referencias de uma experiência socialmente identificada. As tradições
comunitárias estão mais próximas da experiência tribal e regional que os princípios
abstratos identificados com o Estado nacional. Quando uma sociedade incorpora a
responsabilidade por obras públicas, assume uma responsabilidade correlacionada com a
consciência social dos seus componentes. Daí, que esse é um processo interno, apesar de
estar profundamente atingido pela internacionalidade dos relacionamentos da sociedade em
seu conjunto com outras nações. A experiência desse período pós-colonial é eloqüente em
mostrar a profundidade dos condicionamentos locais, segundo a trajetória histórica da
formação das sociedades coloniais. Daí, que a parte mais fácil e superficial da mobilização
social seja a inicial, quando os móveis da mudança estão mais próximos do cotidiano das
pessoas. Ao rever as experiências dos países que foram colônias verifica-se com clareza
que a mobilização política da opinião pública muda totalmente de feição entre as escalas
locais e as nacionais. Países como o Brasil e a Argentina, onde há fortes tradições
regionais, contrastam com países como o Chile e o Uruguai, onde a formação social é
claramente unitária, são exemplos cabais do que o perfil nacional é uma resultante de
complexos processos regionais que estão ancorados em algumas cidades chave. A
identidade regional aparece com mais facilidade em expressões culturais, mas está
fundamentada em articulações entre sistemas de poder ancorados na propriedade fundiária
– ligada a sistemas internacionais – e formas locais de organização.
Assim, são algumas formas tradicionais de aproveitamento do potencial da vida em
comum que facilitam essa conjugação de visão local e interesses nacionais. Ao desenterrar
esses fundamentos históricos da organização social, descobrem-se as inter-relações entre os
processos que levaram à formação das nações e os processos que se realizam na escala de
regiões e que continuam interagindo com as transformações da esfera nacional. A
instituição dos ejidos mexicanos 41 e a dos panchayats 42 indianos têm tido certos papéis na
41 Formas de organização da produção camponesa, de origem colonial, em que cada produtor destina uma parte de sua terra para um programa de produção comunitário e outra parte para
63
história dessas nações e podem ser aproveitados em novas funções, com resultados que
podem ser compensatórios de tendências de concentração da renda postas em marcha pela
produção industrial. A questão central é que as tradições representam uma força que pode
ser mobilizada a favor de processos de desenvolvimento socialmente equânimes. Mas o
principal problema com que lutam os países que tentam se desenvolver não é de cultivar e
reviver tradições, As obras que demandam conjugação de esforços e que devem ser feitas,
são geralmente de envergadura superior às daquelas realizadas por meios tradicionais.
Trata-se de passar à sociedade a crença na construção de uma obra comum, com força
suficiente para superar a descrença – também tradicional – nos empreendimentos
governamentais, causado em parte pela falta de maturidade do aparelho governamental e
pela corrupção determinada pelo desequilíbrio interno sob cujo signo os países
subdesenvolvidos de hoje se formaram enquanto foram colônias. Um dos maiores
obstáculos à inoculação da crença na possibilidade de um movimento prolongado de
desenvolvimento é a distribuição desigual da renda e a inflação, que serão examinadas no
capítulo 17 deste estudo.
A organização social pela qual se regem algumas sociedades, e de que decorrem as
fontes de prestígio nelas prevalecentes, as crenças religiosas e os tabus de suas populações
deram lugar, repetidas vezes ao longo da história, a que algumas profissões gozem da
preferência popular, em quanto outras sejam relegadas a um segundo plano, ou também
deslocadas. Isso que sempre guardou uma correspondência com a base de exploração
econômica sobre o qual o país se desenvolveu no longo prazo, tendeu a ser um
impedimento para o desenvolvimento econômico. Temos exemplos palpáveis a esse
respeito em países latino-americanos, como o próprio Brasil, onde a formação profissional
se apresenta distorcida, pelas preferências que, em algumas áreas, todavia se manifestam
por profissões estrategicamente menos importantes, mas que ainda são muito prestigiadas.
O problema que isso enuncia é o trazido por uma mudança de mentalidade implícito no
desenvolvimento, e da necessidade de adaptação da escala de preferências e do prestígio
social, às condições sob as quais o homem terá que viver quando a sociedade da qual faz
produção individual. A expressão formas de produção é usada aqui para indicar formas específicas de organização da produção que se identificam a partir de soluções técnicas que usam. 42 Conselhos comunitários em aldeias.
64
parte sofra esse processo. A solução foi dada por uma diferença nas recompensas
econômicas que umas e outras profissões possam ter. Entretanto, é preciso não esquecer
que a aceitação de uma nova escala de valores por parte dos grupos sociais interessados só
pode ser gradual e é sempre incerta. Enquanto a sociedade não estiver plenamente
convencida, ou enquanto não aceita as mudanças, o esforço para crescer será dificultado e
os requisitos de profissionais para novas atividades não serão atendidos.
Essas atitudes afetam a escolha de profissões. Algumas profissões, que antes foram
praticamente proibidas pelo desprestígio social de que foram objeto, estarão melhor
colocadas com o fim dos preconceitos. No entanto, até hoje tem havido uma verdadeira
interdição à participação das mulheres na vida profissional, que se modifica lentamente e
com diferenças salariais. A desvantagem na pirâmide populacional dos países
subdesenvolvidos foi profundamente agravada pela não utilização do trabalho feminino,
especialmente do trabalho qualificado. No entanto, as ocupações domésticas, só as
mulheres nascidas nas famílias mais pobres ajudam a contrabalançar o elevado número de
crianças e de velhos de nossas pirâmides demográficas.
Em princípio, pode se estabelecer uma relação entre os costumes relativos a
obrigações familiares e à expectativa de amparo que os membros das comunidades terão
em sua velhice. Tal relação dará apenas alguns elementos preliminares de juízo, mas de
fato iremos encontrar maiores obrigações dos mais jovens com seus maiores nas sociedades
tradicionais que nas sociedades capitalistas modernas. Essas obrigações equivalem ao
seguro social, mas há certas diferenças quanto a incidência sobre a renda, porque elas não
incluem transferência de renda à burocracia nem aos bancos que lucram com as
aposentadorias e com o seguro social. Tecnicamente, nos países capitalistas esse serviço se
faz mediante um cálculo atuarial, mas inclui a formação de estruturas de instituições
responsáveis desse serviço cujo custo poderia ser evitado se fossem feitas apenas
transferências automáticas de renda. Para relacionar essas obrigações com o
aproveitamento das possibilidades de crescimento oferecidas pelos recursos, o caminho
correto talvez seja o de identificar as áreas pioneiras de crescimento com a estrutura
demográfica da população que as ocupa. As necessidades de vigor físico e as condições
65
adversas dessas regiões farão com que para elas sigam os mais jovens e mais fortes, que
passam a superar em número aos mais velhos e aos inválidos. O que importará será,
portanto, a capacidade das regiões para atrair trabalhadores e para criar mecanismos de
imigração através dos laços familiares.
As instituições também afetam ao desenvolvimento e à distribuição da renda pela
igualdade de direitos, ou pelas vantagens que são monopolizadas por alguns grupos. As
vantagens mantidas por alguns grupos sociais podem ser observadas, desde aquelas
vantagens das aristocracias instauradas desde a Idade Média, até os preconceitos raciais que
vieram contribuir para fortalecer essas vantagens. 43 Os efeitos sobre a distribuição da
renda aparecem sob varias formas, dentre outras, nas isenções tributárias e nas preferências
para preenchimento de cargos públicos. Criam um ambiente de desigualdade de
oportunidades, em que a capacidade criativa e a capacidade de trabalho de grande parte da
população são deixadas de lado. Nos Tempos Modernos essa desigualdade se identifica
com o colonialismo e com suas conseqüências para as novas nações que foram colônias. Se
o impulso colonialista ao estilo do século XIX decai, mas tem recaídas e permanecem
grandes áreas do mundo sob seu domínio, sob variados disfarces. A evolução das formas de
domínio colonialista em algumas dessas áreas reduziu as vantagens entre grupos, tal como
aconteceu no Brasil com o poder político dos grandes proprietários de terras, mas a redução
desses privilégios teve um limite lógico, que foi a preservação do controle político do
sistema socioprodutivo.
Teremos, portanto, que ir além da forma do colonialismo enquanto mecanismo
controlado pelas metrópoles, para analisar as conseqüências internalizadas do colonialismo.
O colonialismo gera outras formas internas de dominação, que se reproduziram sobre a
aliança entre a propriedade da terra e o controle dos canais de comercialização, com seu
desdobramento na formação de castas militares identificadas ideologicamente com a
preservação do controle agrário, projetado em valores tradicionalistas, combinando
43 A formação dessas vantagens pode ser traçada nos movimentos que criaram o feudalismo, tal como se descreve em Jan Dhondt, La alta edad media e em Henri Pirenne, Historia econômica y social de la Edad Media, em que se mostra a complexidade das relações de classe inerentes às invasões e aos reinos a que elas deram lugar.
66
componentes de religião e de racismo. A estruturação dessas sociedades de bases agrárias e
dessas castas militares levou a um conjunto de privilégios e de imunidades, que, nos países
latino-americanos se estenderam até ao controle dos programas de reforma agrária, tal
como se viu no Equador, na Venezuela e no Peru.
Se, em termos teóricos estamos longe de aceitar doutrinas que preconizam
concentrar a carga tributária nas classes produtivas, tal como fizeram os Fisiocratas , em
termos práticos alguns grupos se beneficiam da desigualdade de incidência da carga
tributária, assim como aproveitam condições favoráveis para evitar a incidência dos
impostos. A incidência real da carga tributária distingue-se da incidência formal e reflete a
verdadeira expressão da carga tributária para a renda familiar. A combinação das formas de
produção com as instituições sociais e políticas afeta a distribuição da renda ao favorecer
ou ao prejudicar o aproveitamento das capacidades da força de trabalho, em suas atividades
atuais ou em sua mobilidade e na definição de suas perspectivas de renda. Pensando em
termos de distribuição, o mecanismo que nos interessa não é o do multiplicador do
emprego, senão é o efeito renda da distribuição da renda. Por isso, o outro aspecto que
deve ser examinado da influência das instituições políticas e sociais na distribuição da
renda é o que se exprime na diferença entre o excedente atual de produção e o potencial.
Esse aspecto foi estudado por Paul Baran, que define o excedente potencial como a
produção que poderia ser realizada com a ajuda de recursos produtivos utilizáveis num
dado ambiente técnico e cultural. A realização desse excedente potencial requer uma
reorganização social da produção e mudanças nas técnicas de produção.
Para cobrir esse aspecto da análise, destacam-se os quatro aspectos seguintes, que
são o excesso de consumo desnecessário para a reprodução social; a produção perdida pela
sociedade por meio de trabalhadores desocupados e a produção perdida por uma
organização desperdiçada e irracional do aparato produtivo existente e a produção perdida
pela existência de desemprego de fatores, pelas condições anárquicas da produção de base
capitalista. Paul Baran admite que a identificação e a quantificação dessas quatro formas de
excedente de produção tropeçam com muitas dificuldades. Crê que essas dificuldades
podem ser diminuídas, porque a categoria excedente de produção potencial transcende o
67
horizonte da ordem social existente, unindo-se ao “comportamento facilmente observável
de uma dada organização socioeconômica, mas também à imagem não tão rapidamente
visualizável de uma sociedade mais racionalmente ordenada”.44
44 Paul Baran, op.cit.
68
Capítulo 7 O setor externo
Em qualquer consideração que se faça sobre os efeitos distributivos das relações
com o exterior, é preciso esclarecer que se trata de relações econômicas de troca e de
movimentos de capitais, nos quais é necessário distinguir dois tipos de influência, que são
aqueles provenientes do funcionamento das relações internacionais na mecânica geral do
sistema produtivo, com repercussões na estrutura produtiva; e aquelas influências do poder
dos governos de interferir ou de condicionar as transações internacionais. A primeira dessas
duas influências é examinada neste capítulo, enquanto a segunda será estudada no capítulo
seguinte.
O pressuposto inicial de que nos serviremos na exposição desse tema é que
diferentes estruturas produtivas vinculam de modo diferente uma mesma economia
nacional com o resto do mundo, gerando uma progressão única de sua distribuição da
renda. Noutros termos, o que estamos afirmando é que numa economia agrícola e em
função do tipo de relações que ela pode manter com o exterior, a renda que ela gera tende a
ser distribuída segundo um dado perfil, portanto, que os efeitos da distribuição na formação
de capital seguirão um padrão previsível. No capítulo anterior discutimos a influência das
formas de produção predominantes no padrão de distribuição da renda. Cada forma de
produção e cada composição do produto nacional conduzem a certos modos de
relacionamento com outras nações, que variam de acordo com referências institucionais e
tecnológicas. Tentaremos agora ver os efeitos dessas relações internacionais no padrão
interno de distribuição da renda.
Dada uma estrutura produtiva concentrada em produção primária, 45 as variações
nas relações com o exterior, em preços e em quantidades, influem nas participações devidas
dos diferentes setores que contribuíram para a exportação. Por outro lado, preços
45 É preciso corrigir uma falsa impressão de que as economias periféricas estão marcadas unicamente por uma produção agrícola e da pecuária. Os sistemas de produção primária dependeram essencialmente de extração de recursos e isso compreendeu uma produção mineira e uma ampla e complexa extração vegetal e animal.
69
internacionais favoráveis são de natureza a estimular a manutenção de uma certa estrutura
produtiva, isto é, indiretamente mantêm em ação os fatores redistributivos incorporados em
cada uma dessas estruturas produtivas. Além disso, é a exportação que permite que as
formas de produção sejam substituídas por outras, constituindo-se outras formas indiretas
de mobilizar os fatores redistributivos próprios das formas de produção. Por último, durante
o processo de crescimento do produto social formam-se pressões sobre as relações com o
exterior que afetam a ação redistributiva resultante do amadurecimento da estrutura
produtiva. A relação entre o crescimento do produto e a expansão da capacidade produtiva,
que vem sendo esquivada pela teoria econômica de base marginalista, torna-se a questão
central a ser respondida por qualquer teoria que pretenda trabalhar com os problemas de
viabilidade – e sustentação – do processo de desenvolvimento.
Ao tomar as relações com o resto do mundo como derivadas das formas de
produção, da composição do produto nacional e da tecnologia, torna-se possível observar
alguns fatos básicos no relativo aos países de desenvolvimento recente. Um melhoramento
no panorama da técnica não necessariamente significou uma alteração significativa nas
posições dos países nas relações internacionais. Na realidade, há um jogo contraditório
entre as forças sociais que encaminham a renovação tecnológica – e que derivam seu poder
desse ambiente de substituição de técnicas – e as forças tradicionais que se opõem, de
modo ativo ou passivo, à substituição de técnicas porque seu poder se apóia em formas de
organização social que funcionam sobre um conjunto invariante de técnicas. 46 No limite, a
introdução de novas técnicas é decidida desde dentro das instituições sociais vigentes,
geralmente como parte de estratégias de defesa de interesses tradicionais. Esse mecanismo
de poder foi igualmente verdadeiro no Nordeste do Brasil, nas regiões agrárias dos Andes e
46 Ao analisar o modo de funcionamento das economias latino-americanas, encontra-se que há um jogo móvel de inter-relações entre um segmento tecnologicamente mais avançado e outros mais atrasados, entretanto, em que os capitais aplicados nos segmentos tecnicamente avançados usam os setores atrasados como setores de apoio, beneficiando-se de trabalho pago segundo os padrões dos setores atrasados, onde os trabalhadores têm menos mobilidade entre empregos e têm salários menores. Na realidade, a eficiência dos setores tecnicamente mais avançados depende muito de vantagens de controle de espaços de mercado, tanto do mercado de seus produtos como do mercado de trabalho. Noutras palavras, os diferenciais de “produtividade” refletem o controle de uma combinação de formas de exploração do trabalho, que fazem alterar a produção social do excedente de valor. O controle da substituição de técnicas é uma outra cara do controle da produção social e da captação de excedente.
70
na planície argentina. A renovação tecnológica representada pela mecanização da produção
de açúcar resultou de um cálculo dos produtores escravistas, que já ressentiam o custo dos
escravos antes da proibição do tráfico, e não por uma iniciativa de interesses alternativos
aos dos produtores de açúcar. A quase feudalização das regiões agrárias encobriu um
deterioramento de tecnologias originadas das civilizações pré-colombianas; e as regiões
rurais ficaram praticamente sem relações econômicas com o exterior. Os vínculos
internacionais ficaram restritos à comercialização de produtos do extrativismo, realizados
através de uma organização do trabalho quase escravo. As novidades que surgiram nas
relações com o exterior consistiram apenas em vendas de excedentes físicos de produção
em períodos de condições climáticas mais favoráveis, mas não representaram progresso
tecnológico. No Brasil, isso ficou caracterizado pelas exportações de couros e peles e pelas
de fibras, que foram produtos obtidos mediante processos de exploração tecnologicamente
atrasados. No conjunto, a falta de sensibilidade do sistema tradicional de produção à
renovação tecnológica foi uma característica dessas economias nacionais e origem colonial,
que se tornou decisiva para o desenvolvimento de suas relações com outros países.
Os efeitos cumulativos da composição do produto na distribuição da renda estão
limitados pela parte comercializada com o exterior, isto é, pelo coeficiente de exportação.
Tal como ficou demonstrado em diversos estudos realizados pelas Nações Unidas, o
coeficiente de exportação não depende do estágio de desenvolvimento em que se encontram
as economias nacionais, podendo ser alto em economias cujo produto se compõe de
mercadorias industrializadas de alta tecnologia, tal como a Alemanha, ou em países
produtores de matérias primas de baixa tecnologia, tal como Honduras. Em princípio, um
elevado coeficiente de exportação indica maior capacidade de obter produtos capazes de
alavancar a diversificação do sistema produtivo, mas é apenas uma indicação de
possibilidades, cuja concretização depende da escala e da forma de organização do
mercado. Daí que uma pressão sobre a capacidade de negociar com o exterior que não seja
respaldada pela capacidade interna de captar as oportunidades de aplicar capitais em
modelos diversificadores termina por gerar pressões perversas sobre o movimento de
reprodução do sistema produtivo. Assim, deve-se entender que não há uma separação
efetiva entre os movimentos internos e os externos do sistema produtivo, em que o
71
coeficiente de exportação reflete a complexidade do sistema produtivo, tanto como a
capacidade de cada economia nacional de mudar a composição dessa participação. O passo
seguinte necessário dessa análise consiste em comparar a análise do coeficiente de
exportação com a da relação entre o crescimento demográfico e o coeficiente de
importação.
Historicamente, o coeficiente de importação é uma medida técnica do valor que se
importa, que assume as formas materiais compatíveis com a estrutura produtiva atual, que
depende do que se exporta. Essa engrenagem do comércio exterior depende da composição
dos produtos que se exporta, especificamente, do mecanismo de elasticidade preço dos
produtos exportados, que faz uma relação entre as variações dos preços internacionais e a
remuneração interna do capital e do trabalho. Isso significa que o mecanismo do comércio
exterior age de modo diferenciado em países em diferentes situações de desenvolvimento
do seu sistema produtivo e com efeitos secundários também diferentes sobre a distribuição
da renda. As possibilidades concretas de dinamização do sistema produtivo, e de alterações
correlatas na distribuição, dependem desse ajuste entre as transformações do comércio
exterior e as da produção.
Trata-se, portanto, de identificar o relativo aos mecanismos atuais de relações
internacionais com sua correspondência com o padrão de distribuição da renda e o relativo
aos processos de formação das relações entre países, com seus efeitos nos movimentos da
distribuição da renda em cada país. Raul Prebisch fez um trabalho precursor sobre esse
tema em documento, em que pôs em evidência as tendências desfavoráveis para os países
periféricos pouco industrializados.
72
Capítulo 8 O governo
O governo é a forma operacional do Estado e é preciso distinguir o que se reconhece
como política de governo, que compreende políticas sociais no sentido mais amplo, que
alcançam os diversos aspectos da vida em sociedade, políticas econômicas, que tratam da
materialidade da produção e políticas sobre aspectos específicos da vida social. Está claro
que não separação alguma entre políticas econômicas e políticas sociais, senão diferentes
graus de abrangência das diversas políticas, segundo o modo como elas são concebidas. A
ação do governo na distribuição da renda se realiza de diversos modos. Por meio de suas
despesas, afetando o poder de negociação dos trabalhadores, por seu controle sobre
operações com o exterior e pelo modo de financiamento de suas despesas. A última dessas
formas de ação será talvez o fator de distribuição mais susceptível de ser medido. Vejamos
como se efetiva a influência das despesas do governo no padrão de distribuição da renda.
As despesas do governo podem influir na distribuição da renda segundo sua
magnitude e sua orientação. Cada um desses dois itens tem distintos efeitos na distribuição.
O significado da magnitude da despesa é inseparável do significado da composição dessa
despesa. O significado efetivo da despesa para o desenvolvimento econômico depende de
como se alteram conjuntamente a magnitude e a composição da despesa, que responde a
requisitos da reprodução do capital já acumulado e operacional e que tem o poder de
induzir novos investimentos. De qualquer modo, a magnitude da despesa pública afeta a
composição e o nível do consumo em seu conjunto e a magnitude e a composição do
investimento privado, com o qual está organicamente articulada. As interdependências
técnicas entre os investimentos diretos na produção e os investimentos nos sistemas de
infra-estrutura básica fazem com que sejam irrelevantes as doutrinas que procuram
minimizar a participação do Estado na economia, como se ela não fosse parte da mesma
composição de interesses que conduz o investimento privado. Não se trata de uma
controvérsia entre Kaldor e Sommers, senão de realismo da análise, tal como expõe
73
Kurihara.47 No momento em que as despesas públicas afetam ao consumo e ao
investimento privado, põem em funcionamento o multiplicador do emprego e o acelerador
da oferta, criando uma progressão de efeitos indiretos e complementares, que alteram o
perfil do pagamento de salários.
Para compreender como se realizam os efeitos das despesas do governo em sua
totalidade é preciso classificá-los. Eles compreendem compra de mercadorias, pagamento
de serviços, obras públicas e transferências. Quando o governo compra afeta o poder de
negociação dos assalariados. A expansão das atividades do governo, que prossegue apesar
das contradições do discurso público, significou uma subvenção completa do que se
concebeu como o mercado de trabalho na economia clássica ou entre os marginalistas. A
evolução das instituições sociais apresentou, nesse período, recursos de concorrência
imperfeita no mercado de trabalho, em parte representativos de conquistas obtidas pelos
trabalhadores em termos de assistência social e em parte, que foram resultados da própria
expansão do governo. O fato de que o desenvolvimento econômico nos países
subdesenvolvidos inclui novas modalidades de serviços e alguns segmentos de indústrias,
resultou em aumento da demanda de trabalhadores qualificados para as funções de governo,
em proporção com o aumento de trabalho qualificado no setor privado.
As quatro formas pelas que se apresentam as despesas do governo significam uma
redistribuição da renda, e, como conseqüência, afetam ao nível do consumo. Do ponto de
vista do fomento dos negócios, as duas primeiras dessas quatro formas são as mais
importantes. A realização de obras públicas não passa, na realidade, de uma compra de
mercadorias mediante o pagamento de serviços. A razão de considerá-la por separado deve-
se apenas a seus efeitos indiretos – na formação de economias externas - que aos seus
efeitos diretos de compra de mercadorias e de pagamento de serviços. Se a despesa pública
não acarreta uma produção adicional imediata torna-se mera transferência de renda que,
como efeito distribuição é limitada e temporária. O mesmo número do multiplicador que
quantifica os efeitos indiretos dos investimentos indica a distância entre o impacto inicial e
47 Esse é o tema de Kenneth Kurihara, que valoriza os aspectos de dinâmica do funcionamento da economia industrial moderna, trabalhando com o efeito distribuição incorporado no multiplicador do emprego.
74
o impacto total em renda, portanto, indica a capacidade do sistema produtivo para
responder às intenções de compra dos trabalhadores.
Esses efeitos de multiplicador têm uma expressão espacial que não pode ser
ignorada, especialmente nos países periféricos em desenvolvimento. Os efeitos de
multiplicador têm variações espaciais que se tornam referências de custos para novos
investimentos. A crescente monetarização do processo da produção deu maior espaço para
o processo de comercialização e é através deste que se vê o efeito regional do multiplicador
na formação dos espaços regionais de produção. Mas a assimetria e a insuficiência do
sistema bancário nos países e nas regiões subdesenvolvidos enviesam e atrasam os efeitos
das despesas públicas, reforçando as tendências de concentração do capital. Se bem que a
propensão a consumir mostra uma constância proporcional à renda familiar disponível, que
em principio reflete a participação na produção, ela tem sido profundamente afetada por
movimentos inflacionários cuja explicação não é incidental nem pode ser reduzida a
problemas de curto prazo. Nestas condições, as análises fundamentadas nos efeitos de
multiplicador encontram limitações que partem, justamente, dessa invariância da
distribuição da renda.
O outro aspecto dos efeitos indiretos das despesas públicas, tal como já vimos desde
outro ângulo, são seus efeitos na balança de pagamentos. As despesas com importação
podem ser consideradas como simples filtrações do processo do multiplicador, no relativo
às despesas de sucessivos setores beneficiados pela preferência governamental. A
expressão típica dessa preferência nos países subdesenvolvidos tem sido a de favorecer ao
setor industrial em detrimento de importações para o setor comércio.
Esse viés da despesa pública acontece num ambiente marcado por uma tendência
crescente da despesa. Com a expansão do sistema produtivo internacionalizado e com o
aumento de complexidade das economias nacionais, tanto das mais avançadas como das
periféricas, há uma tendência geral ao aumento irreversível da despesa pública, junto com
um aumento de funções dos governos, de políticas anti-cíclicas, que logicamente têm
custos sociais e, acima de tudo, das despesas militares especialmente das grandes
75
potências. Há, portanto, um contraste entre a busca de eficiência da despesa pública e o
aumento de despesas – tal como as militares – que não agregam ao desenvolvimento
econômico e social. No essencial, surge, portanto, uma contradição entre as políticas
governamentais anti-cíclicas, compreendendo as políticas anti-inflação, e as tendências
seculares de crescimento da despesa pública.
Nesse contexto situam-se as políticas de desenvolvimento. A importância da função
desempenhada pelas despesas do governo nas políticas de desenvolvimento provém de que,
quando se fixam metas para o crescimento da economia, isto é, para o crescimento do
produto, para que o modelo possa funcionar os investimentos passam a ser uma variável
dependente da relação capital/produto, isto é, do montante do capital engajado no sistema
produtivo, das elasticidades do capital nos diferentes setores da produção e das taxas de
crescimento assumidas no modelo. As despesas do governo ficam como uma variável
aparentemente independente, se não se considera que a receita tributária depende da
capacidade de pagamento dos contribuintes. A utilidade final das despesas do governo
dependerá do conhecimento do sistema com que a receita pública é administrada. Na
perspectiva de políticas de desenvolvimento, é preciso considerar que há uma série de
condicionantes políticas que são as principais guias da despesa pública, além do grau de
desenvolvimento do sistema produtivo em seu conjunto. A proporção das despesas
comprometidas com decisões anteriores para reprodução da máquina pública não só
constitui um limite quantitativo da ação do governo, como restringe a composição da
despesa. Em vez de uma variável independente trata-se de uma margem de independência
da despesa pública, que pode ser instrumento de uma política de redistribuição da renda.
É muito freqüente que os governos dos países subdesenvolvidos dispõem da maior
parte de seus recursos para pagamento de sua máquina administrativa ou para manutenção
de suas forças armadas. Vimos antes como essas despesas podem servir para impedir o
desemprego e formar demanda, e vimos, também, como eles têm efeitos indiretos na
economia em seu conjunto. Contudo, elas costumam impedir outras despesas necessárias,
tais como em obras públicas capazes de contribuir ao desenvolvimento de modos não
considerados neste trabalho, quebrando pontos de estrangulamento do sistema de produção.
76
Dada a habitual escassez de capital social dos países subdesenvolvidos não será difícil
avaliar a prioridade que deveria ter esse tipo de despesa. Essa prioridade não desaparece
quando se considera o problema desde o ponto de vista da distribuição da renda, já que
grande parte das despesas no campo social elevarão o salário real dos grupos de baixa
renda, permitindo reduzir o preço das mercadorias – bens salário – por eles utilizadas.
Esse aumento da participação dos grupos de baixa renda no produto nacional pode
ser apenas o resultado de uma política geral de ampliação da assistência social, mas
também pode assumir o caráter de compensação geográfica entre as áreas mais
desenvolvidas e as menos desenvolvidas de um mesmo país. Nesta última forma, as
políticas públicas têm assumido uma importância cada vez maior nos países de grande
extensão territorial, onde se desenvolvem políticas de desenvolvimento regional. Tais são
os casos da Índia e do Brasil. A experiência do Brasil nesse particular é fundamental, pelo
que revela de inovações de política regional e pelo que mostra de recrudescimento de
estruturas tradicionais de poder. Essas despesas vão desde simples destinações de verbas
para programas emergenciais, tais como as do combate às secas no Nordeste do Brasil, até
se converterem em políticas regionais vertebradas em programas de industrialização e de
modernização da agricultura.
Vejamos como o financiamento das despesas do governo age na distribuição da
renda. O governo pode financiar suas despesas por meio da emissão de papel moeda, por
meio de empréstimos e por tributação. Representando em papel moeda o valor do produto
nacional, o governo pode emitir papel moeda em razão direta da realização do produto
nacional, do entesouramento e na razão inversa da velocidade de circulação da moeda, sem
que isso altere a relação preços/salários, sempre que as demais condições permaneçam
constantes. Uma emissão de moeda que exceda esses limites dará lugar a uma alteração na
relação produto-moeda, provocando uma redistribuição da renda em favor dos que recebem
lucros às custas das rendas dos trabalhadores. O governo também pode emitir grandes
quantidades de moeda como um meio de financiamento, nesse caso incorrendo nos riscos
de inflação. Essa prática, de injetar e retirar liquidez passou a ser um mecanismo política
econômica desenvolvido a partir da experiência dos países beligerantes na II Guerra
77
Mundial. Por sua vez, os países subdesenvolvidos, frequentemente enfrentando pressões
inflacionárias, jamais puderam trabalhar com referências genuínas de equilíbrio. Nesse
contexto, as empresas públicas surgiram como uma forma de financiamento mais dúctil
para operar no mercado aberto, consagrando-se por suas diversas vantagens. Esses recursos
de política têm sido usados como recursos regulares ou como recursos especiais para
situações de calamidade que, finalmente, também têm que ser incorporadas como parte de
um horizonte regular de política. Em todo caso, toda vez que são incorporados num padrão
regular de política esses elementos tornam-se compulsórios, já que não podem mais ser
ignorados. De fatos, tem-se aqui que registrar a transformação do quadro da política
econômica desde o advento da corrente keynesiana, mesmo quando ela seja contestada.
Nesse sentido, coloca-se que a tributação é um recurso de que os governos dispõem
para financiar suas despesas, que lhes dá a capacidade de alterar a relação entre custeio e
investimento e de modificar a composição dos investimentos. Na nossa perspectiva, é
preciso considera-la em seu efeitos econômicos, isto me, em como altera o processo de
acumulação de capital, em movimentos que incluem o impacto, a incidência e a translação
da carga tributária. O impacto do imposto acontece onde a lei estabelece a exação. A
translação é o processo pelo qual um contribuinte consegue passar a carga tributária a
outro. A incidência é o último lugar do imposto, onde se fixam os efeitos finais da
tributação no desenvolvimento da economia. 48 Os impostos podem ainda ser divididos em
diretos e indiretos, uns e outros com diferentes características de incidência e de translação
e com diferente significado na cultura econômica e política de cada país. A ação
redistributiva de renda do sistema tributário é uma ferramenta de poder que resulta de
combinações de impacto que se modificam segundo os níveis de renda.
As condições de uso dos recursos de financiamento por parte dos governos dos
países subdesenvolvidos são as conseqüências de uma freqüente instabilidade política,
seguida da desconfiança quanto ao destino do dinheiro arrecadado, que predispõem a
sociedade a uma resistência considerável para adquirir títulos emitidos por seus governos.
Se as condições da guerra podem romper essa resistência dos tempos normais, também
48 Ver Harold Sommers, Finanzas públicas e ingreso nacional (1955), onde esse autor apresenta uma leitura da relação entre a composição da carga tributária e a taxa de crescimento do produto social.
78
empreendimentos plenamente apoiados pelo consenso popular requerem algo mais que boa
vontade ou propaganda política para serem financiados.
Por essas dificuldades, as emissões de papel moeda vieram a ser a forma mais
generalizada como os países financiam suas despesas. Emitem inclusive para financiar
despesas ordinárias. Uma estrutura tributária predominantemente direta tem um efeito
tendencialmente redistributivo para os grupos de menor renda, atingindo a desigualdade
social no modo como ela se apresenta no mercado. A progressividade da carga tributária
terá que ser reconhecida como uma das principais ferramentas de políticas de distribuição
voltadas para o desenvolvimento econômico.
79
Capítulo 9. A inflação
A rigor, neste capítulo devem discutir-se os efeitos redistributivos das variações no
preço da moeda, tanto de inflação como de deflação, contudo, uma consideração realista faz
com que se deixe de lado o segundo fenômeno, concentrando-se nossa atenção na inflação.
A experiência indica a freqüência com que a inflação se faz presente durante os
movimentos do desenvolvimento, ao passo que a deflação se faz notar por sua rareza. As
circunstâncias históricas sob as quais os países subdesenvolvidos tentam emergir de sua
situação desfavorável levam-os a terem que enfrentar continuamente a inflação. Como, em
última análise, o estudo do desenvolvimento, da distribuição ou de qualquer outro processo
econômico só tem sentido se atende a essas circunstancias, esta discussão fica limitada à
inflação.
O papel da inflação como fator dinâmico utilizável para o desenvolvimento tem sido
objeto de discussão pelos economistas, em que há os que consideram viável administrá-la
eos que a consideram incompatível com o desenvolvimento. Considerando suas causas
imediatas, podem-se distinguir as seguintes, supondo que a economia nacional opera a
plena capacidade, com aumento dos investimentos privados, aumento da despesa pública e
das exportações, aumento da propensão a consumir, redução da carga tributária e das
importações e da produção para consumo. Numa relação mais estreita do aparecimento de
pressões inflacionarias com as condições de operação do modelo dinâmico, Kaldor aponta
quatro causas, que são, o governo, as indústrias, as expectativas de aumento dos preços e
tentativas de grupos particulares para recuperar posições perdidas.
O aparecimento da inflação durante o processo de desenvolvimento nos países
capitalistas subdesenvolvidos está ligado a causas estruturais e traz consigo uma ponderável
influência sobre o padrão de distribuição da renda observável. Sem excluir as causas
imediatas antes citadas, no interesse de identificar essas causas estruturais, verificamos que
elas são funcionais ao aparecimento de processos secundários que a reforçam. A inflação
tem aparecido como resultado de um desequilíbrio entre a demanda interna de bens e
serviços e a capacidade de produzir esses bens. Mais que um fenômeno de âmbito
80
exclusivamente monetário, a inflação ganha interesse para os estudos do desenvolvimento
porque, agindo de modo recíproco pode constituir um modo de financiar investimentos
nacionais, mesmo que seja a expensas da distribuição da renda.
O primeiro problema relativo a esse uso da inflação como estratégia de
financiamento do crescimento econômico está ligado a suas conseqüências distributivistas
a longo prazo, e se vincula às possibilidades de sustentar um crescimento estável de uma
economia nacional. A perda do controle da inflação torna impossível prever seus efeitos na
distribuição da renda, nem prever a aceleração da espiral inflacionária. A possibilidade de
controlar a inflação é altamente questionável, dadas as distorções que ela gera no próprio
mecanismo do financiamento. Daí, a importância da espiral inflacionária na trajetória da
formação do produto social. No contexto do movimento da industrialização distinguem-se
três modelos gerais no relativo às condições básicas em que os impulsos de
desenvolvimento têm acontecido: o das economias que cresceram com a nova tecnologia e
onde ela se originou; o dos países que optaram por uma solução socialista e o dos países
que, tendo ficado na retaguarda tecnológica, buscam o desenvolvimento no contexto da
produção capitalista. Nossa atenção logicamente se volta para o terceiro grupo, onde está o
Brasil.
Mesmo sem poder formular leis gerais acerca da mecânica do processo
experimentado pelas economias nacionais de hoje em seu crescimento, a observação mostra
como, sempre que começou um movimento de crescimento do produto nesse grupo de
países, uma parte de seus recursos foi deslocada desde outros setores e destinou-se a
atividades urbanas. Sua agricultura, que é sempre a maior provedora de força de trabalho,
viu-se responsabilizada pela alimentação de um setor não agrícola que tende a crescer. Por
sua vez, o processo de desenvolvimento vai acompanhado de um aumento da demanda de
bens de capital e de combustíveis, o que significa uma sobrecarga sobre a capacidade de
importar. As exportações continuam sendo constituídas de vendas de produtos de baixo
valor agregado, tanto da agro-pecuária como da mineração e estão sujeitas a movimentos de
retrocesso tecnológico quando não se realizam progressos significativos na participação de
produtos de maior valor agregado. Por isso, a necessidade de divisas tem sido satisfeita por
81
uma melhoria nos termos de intercambio e por um aumento linear no crescimento das
exportações.
Torna-se, portanto, necessário dar maior importância à composição das exportações
e à elasticidade preço e renda das novas mercadorias que entram no comercio internacional.
Os países subdesenvolvidos que têm suas exportações baseadas em produtos tropicais de
baixa elasticidade preço, tais como cacau e café, têm possibilidades muito limitadas de
expansão de mercados, pelo que dependem do aumento da população e da renda dos países
mais ricos. Igualmente, os produtos agrícolas de baixa elasticidade renda encontram
dificuldades para penetrar nos centros consumidores de alta renda. Mais ainda, a elevação
dos níveis de renda interna desestimulam a produção de mercadorias de elasticidade renda
inferior à unidade, sugerindo uma vinculação crescente da produção agrícola. Passa,
portanto, a pesar outra responsabilidade sobre a agricultura: a continuação dos padrões de
produtividade da agricultura tradicional de consumo eleva os preços dos bens de consumo
existencial, alterando a relação entre preços e salários. Finalmente, entram em cena outros
fatores que tendem a alterar essa relação, de modo desfavorável para os trabalhadores. São
os seguintes:
• A indústria nascente, com escala de produção reduzida, pressionada pelos custos de
depreciação do capital e que produz a custos unitários elevados.
• A necessidade de investimentos a longo prazo, cuja ausência constitui o ponto de
estrangulamento para este momento histórico da economia nacional e que, se
requerem longo tempo de maturação, induzem o país a empréstimos externos cujos
prazos de pagamento geralmente são inferiores ao começo do retorno dos
investimento, portanto, gerando uma pressão adicional na balança de pagamentos.
• O efeito das tarifas protecionistas da indústria nacional no preço dos bens de
consumo duráveis importados, que se transmite no desafogo da balança de
pagamentos, aumentando a pressão sobre os salários.
• A necessidade de financiar despesas crescentes, tanto em setores básicos como para
atender obrigações de consumo, leva o governo a emitir papel moeda e suas
82
emissões pressionam o valor da moeda, indiretamente pressionando a relação entre
preços e salários.
A inflação aparece também como conseqüência de condições climáticas que
reduzem a oferta de alimentos por diminuição do volume total das colheitas, por uma queda
da produtividade nos produtos exportáveis. Dada a dependência dos países
subdesenvolvidos de sua agricultura, essas pressões inflacionárias são, praticamente,
inevitáveis. Nessa linha de argumentação, pode-se considerar que os países
subdesenvolvidos estão, finalmente, sob a pressão de uma rigidez do desempenho de seu
setor agrícola, onde seus aspectos institucionais – desde a propriedade fundiária ao crédito
– são essenciais.
Entende-se, portanto, que os efeitos da inflação no processo da distribuição da renda
assumem um caráter diferenciado nos países subdesenvolvidos, especialmente quando sua
estrutura econômica começa a mudar, ou quando se considera que eles começam a se
desenvolver. Os movimentos do desenvolvimento geram efeitos contraditórios, justamente,
porque induzem esses países a dar primeira prioridade à luta contra a inflação. Na hipótese
em que um crescimento inercial da produção agrícola seja absorvido pelas cidades, a
aceleração da liberação de mão de obra rural para atividades urbanas pouco qualificadas, tal
como a construção civil, ajuda a deprimir os salários urbanos. Por outro lado, a falta de
crédito para habitação popular freia esse emprego pouco qualificado e eleva os preços da
habitação popular.
83
QUARTA PARTE Uma incursão teórica
10. Um tratamento unificado da distribuição
Do que se viu até este ponto depreende-se que o padrão de distribuição da renda é
causado pela ação dinâmica, direta e indireta, de um conjunto de fatores, que são
igualmente determinantes do desenvolvimento. Essa ação se exerce de modo constante
sobre a distribuição, introduzindo-lhe modificações progressivas. Por isso, é uma
simplificação grosseira estudar o processo de desenvolvimento como um movimento a
longo prazo que se realiza sob uma dada distribuição da renda. As próprias características
de mudanças do desenvolvimento representam a negociação da permanência da
distribuição. Kenjiro Ara (1955), estudando a formação de capital e o desenvolvimento
tratou da distribuição, mas limitou-se a dar-lhe um tratamento estático, apesar de integrá-la
em um modelo dinâmico.
A necessidade de considerar os fatores que alteram a distribuição foi melhor
contemplada por Kenneth Kurihara (1954), mas este autor utilizou-a como um argumento
colateral da introdução de um efeito distribuição , forma pela qual se exprime em seu
modelo o papel dinâmico da distribuição da renda, na realidade estudado como ma relação
entre os movimentos do consumo e do investimento. Em ambos os casos, o que nos
interessa notar é como a própria distribuição afeta o desenvolvimento. No nosso entender a
colocação correta do problema do dinamismo da distribuição estará feita quando os
principais fatores responsáveis de sua formação forem identificados como as variáveis
básicas de uma teoria do desenvolvimento. Tais fatores podem ser classificados em dois
grupos, em que um está composto dos fatores que condicionam a evolução das condições
ambiente para o desenvolvimento e em que o outro é responsável das alterações a curto
prazo desse quadro. Chamaremos aos primeiros de fatores de condição e aos segundos de
fatores de situação. Os primeiros são os que formam a base sobre a qual se desenvolve a
atividade econômica e que são também os limites da mudança. Os segundos são os que
resultam da orientação ideológica sobre a qual se construiu a vida social. Como variáveis
que condicionam a distribuição na vida econômica enumeramos os seguintes: a população
84
atual, as instituições atuais, o capital nacionalmente disponível, a relação produto/capital e
a propensão para investir. As variáveis identificadas com o segundo grupo são: a renda per
capita, o coeficiente de exportação, o crescimento líquido da população, a estrutura da
produção nacional, a estrutura do consumo e a composição da despesa pública. As
características dos países subdesenvolvidos podem ser resumidas nos seguintes termos:
proporção de população rural, a renda da população rural é inferior à que poderia ter com
sua produtividade de hoje, o número dos que continuam em condições pobreza crítica, as
carências de capital social, falta de trabalhadores qualificados, resistências institucionais à
mudança.
Em resumo, o problema da distribuição pode ser identificado segundo a variedade
de formas pelas quais ela pode ser percebida, mas há uma combinação de situações que
alteram as possibilidades de modificar-se o quadro geral da distribuição. A distribuição
deve ser analisada em função de condições que variam de modo irreversível, combinando a
visão do processo em sua totalidade com a visão dos seus aspectos interdependentes. Trata-
se das relações de causalidade que conduzem o processo, em sua dimensão nacional em
cada país e em sua dimensão internacional, segundo a distribuição corresponde aos
movimentos gerais do capital.
Nessa abordagem, a leitura dos aspectos institucionais da economia pode levar a um
outro reducionismo, pelo qual a distribuição pode aparecer como uma simples decisão
política. Nesse caso, em pauta está a perpetuação de padrões de distribuição, quando
através deles se criam obstáculos a ajustes entre o modo de distribuição e o movimento do
desenvolvimento econômico. A suposição de que os problemas de desenvolvimento podem
ser superados mediante uma concentração da capacidade de poupar em mãos de uma
pequena parte da sociedade equivale, de fato, a uma opção em favor de um crescimento
econômico conduzido por uma concentração de capital cuja identificação com
investimentos nacionalmente importantes não está garantida. Na verdade, essa aparente
opção por um modelo de crescimento com concentração de renda apenas descreve a
tendência geral do capitalismo em sua etapa mais avançada. Concluímos por entender que
85
a concentração de renda é uma tendência e é uma opção ideológica, que estão na base da
reprodução do sistema capitalista de produção.
86
11. A fita de Moebius
A fita de Moebius é um artefacto do ocultismo que consiste em uma fita fechada
sobre si mesma numa dupla volta, que quando cortada em sentido longitudinal se desprende
em duas argolas interconectadas. Nossa reflexão mostrou que a relação entre um padrão de
distribuição da renda e um modo de crescimento do produto social é apenas um primeiro
nível de aparência e que a relação entre modificações no perfil da distribuição e alterações
na composição do produto é apenas um segundo nível de aparência, que, finalmente, o
cerne do processo está constituído de combinações de relacionamento entre capital e
trabalho que se materializam na esfera da realização do produto social e na esfera da
formação do capital. Como nos mostrou Cannan (1948), precisamos distinguir entre uma
pseudo distribuição, constituída de situações individuais de renda e uma real distribuição,
que é aquela dada pela dinâmica da reprodução do capital. A situação de distribuição da
renda é o aspecto real materializado de uma combinação de tendências do sistema de
produção situadas no quadro de tendências sociais e políticas incorporadas nas sociedades
nacionais. A distribuição da renda é um fato social do capital e as políticas econômicas
exprimem ideologias cuja marca se encontra desde as opções de análise até o modo de ligar
os componentes econômicos e os políticos do processo da produção. A grande novidade
representada pelo aparecimento da Teoria geral ... de Keynes no campo da economia
burguesa foi ter reconhecido a necessidade de tratar com instrumentos de política que
revelam o significado político do Estado.
87
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