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Universidade de Lisboa
Faculdade de Ciências
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do
século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine.
O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica.
Ana Henriques Pato
Dissertação
Mestrado em História e Filosofia das Ciências
2012
Universidade de Lisboa
Faculdade de Ciências
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do
século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine.
O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica.
Ana Henriques Pato
Dissertação orientada pela Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins
Mestrado em História e Filosofia das Ciências
2012
2
Resumo
Palavras-chave: Materialismo. Idealismo. Dialéctica. Mecânica quântica.
Lénine expôs e desenvolveu um conjunto de aspectos da teoria do conhecimento na sua obra
Materialismo e Empiriocriticismo. Nela, o autor analisa o confronto entre as correntes materialistas e
idealistas na ciência do seu tempo. Em particular, analisa aquilo a que chama “idealismo físico”, isto é, a
tendência de alguns físicos para interpretarem de forma idealista os resultados de um ramo das ciências.
Lénine apontou como uma das razões para a crise da física a negação do valor objectivo das suas teorias:
“a matéria desaparece, restam apenas as equações”.
O confronto entre estas duas linhas filosóficas fundamentais, o materialismo e o idealismo,
permaneceu ao longo dos tempos. Para compreender as formas que esse confronto assume na ciência
actual, estudar Materialismo e Empiriocriticismo é da maior relevância. Por todas estas razões, procede-
se a uma recensão do conteúdo desta obra. Pretende-se, assim, expor as principais posições da teoria do
conhecimento materialista e dialéctica para, então, melhor compreender a relação entre aquelas linhas
filosóficas e a ciência de hoje.
Verifica-se que a interpretação ortodoxa da mecânica quântica – tomada a partir dos textos de
Bohr – está profundamente marcada por tendências agnósticas e idealistas. Em particular, conclui-se que
Bohr antepõe, como condição de possibilidade, uma correlação entre objecto e instrumento de medida
que é, no fundo – para além de um limite epistemológico inultrapassável –, a negação da independência
ontológica do ser face à prática (do ente quântico face à experiência): trata-se de um “idealismo da
práxis”. Conclui-se que Bohr não pôde resolver o problema central da mecânica quântica, o dualismo
onda-corpúsculo, porque não considerou dialecticamente a unidade e a contradição do ser, acabando por
“desmaterializar” a teoria, negando assim a teoria científica como reflexo aproximadamente verdadeiro da
realidade objectiva – o que é uma condição de cientificidade.
3
Abstract
Keywords: Materialism. Idealism. Dialectic. Quantum mechanics.
Lenin expounded and developed a number of aspects of the theory of knowledge in his work
Materialism and Empirio-Criticism. In it, the author analyzes the confrontation between materialism and
idealism in the science of his time. In particular, he examines what he calls "physical idealism", ie, the
tendency of some physicists to interpret in a idealistic fashion the results of a branch of science. Lenin
pointed out as one of the reasons for the crisis of physics the denial of the objective value of its theories:
"matter disappears, there remain only the equations.
The confrontation between these two fundamental philosophical lines, materialism and idealism,
remained throughout the ages. To understand the ways that this confrontation takes on science today, to
study Materialism and Empirio-Criticism is of utmost importance. For all these reasons, I proceed to a
recension of the content of this book. The aim is thus to disclose the main positions of the dialectical
materialist theory of knowledge and therefore to better understand the relationship between those
philosophical lines and science nowadays.
I verify that the orthodox interpretation of quantum mechanics – as it is given by Bohr's writings
– is deeply marked by idealistic and agnostic tendencies. In particular, I conclude that Bohr gives the
precedency, as a condition of possibility, to a correlation between object and measuring instrument that is,
essentially – and beyond being an insurmountable epistemological limit –, the denial of the ontological
independence of the being in relation to practice (of the quantum entity in relation to the experience): this
is an “idealism of praxis”. I conclude that Bohr could not solve the central problem of quantum
mechanics, the wave-corpuscle dualism, because he did not consider the dialectical unity and
contradiction of the being, ultimately "dematerializing" the theory, thus denying the scientific theory as a
true reflection of objective reality – which is a condition of scientificity.
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Índice
Introdução _________________________________________________________________________ 6
I – Materialismo e Empiriocriticismo ____________________________________________________ 11
1. A obra no seu contexto histórico.________________________________________________ 11
2. O empiriocriticismo como o reavivar de concepções idealistas pretensamente novas. _______ 12
3. A constituição do saber: a realidade objectiva vs as sensações como origem do conhecimento
científico. __________________________________________________________________ 15
4. Tentativas (falhadas) de conciliação do empiriocriticismo com as ciências da natureza e de “tapar
buracos do solipsismo”. _______________________________________________________ 18
5. O mundo é cognoscível._______________________________________________________ 27
6. A verdade objectiva vs. a verdade como “forma organizadora da experiência humana”. A
realidade objectiva como a fonte das sensações. ____________________________________ 34
7. O conceito de matéria e a questão gnosiológica fundamental. _________________________ 37
8. A relação entre a verdade absoluta e relativa. Dialéctica vs. relativismo. Verdade e erro. ____ 39
9. A relação entre a teoria e a prática na teoria do conhecimento. ________________________ 42
10. Sobre a utilização idealista do conceito de “experiência”. ____________________________ 43
11. Causalidade e necessidade. ____________________________________________________ 44
12. O espaço e o tempo. __________________________________________________________ 51
13. Liberdade e necessidade. ______________________________________________________ 55
14. O empiriocriticismo, o seu desenvolvimento histórico e a sua correlação com outras correntes
filosóficas. _________________________________________________________________ 57
15. A moderna revolução nas ciências da natureza e o idealismo filosófico. _________________ 71
16. O empiriocriticismo e o materialismo histórico. ___________________________________ 89
17. Os partidos em filosofia e o não-partidarismo. _____________________________________ 94
II – O que há de idealismo na interpretação bohriana da mecânica quântica _____________________ 98
1. Algumas notas sobre as origens da mecânica quântica. ______________________________ 98
2. A complementaridade de Bohr. ________________________________________________ 104
3. Crítica à complementaridade. _________________________________________________ 121
4. A causalidade fica de fora. ____________________________________________________ 131
5. O valor da teoria. ___________________________________________________________ 134
III – Conclusões e notas finais ________________________________________________________ 146
Bibliografia ______________________________________________________________________ 162
5
Introdução
O âmbito principal deste trabalho, a que corresponde a primeira parte da dissertação que aqui
se apresenta, é analisar a obra de Lénine Materialismo e Empiriocriticismo1. Através dessa obra, será
estudado o confronto entre idealismo e materialismo em diversos aspectos da teoria do conhecimento e a
sua expressão na ciência do final do século XIX e início do XX, tratados nesta obra.
Mas, proceder a este estudo encerra um objectivo ulterior que é, ao mesmo tempo, a motivação
mais profunda desta dissertação: o de compreender as formas que esse confronto assume na ciência
presente, concretamente na mecânica quântica2. Esse constitui o trabalho da segunda parte desta
dissertação.
Porém, tal encargo é demasiado vasto para o trabalho presente. É, pois, necessário delimitar o
objecto sob análise. Assim, a interpretação da mecânica quântica da escola de Copenhaga será feita
exclusivamente a partir de um conjunto de escritos fundacionais de Niels Bohr, nomeadamente aqueles
em que as posições filosóficas de Bohr são apresentadas com maior relevo. Tal análise tem o objectivo de
procurar situar essa interpretação à luz dos seus termos fundamentais, isto é, procurando situá-las quanto
à questão fundamental da filosofia, nas suas diferentes consequências. A hipótese de que se parte é a de
que a interpretação bohriana da mecânica quântica está marcada por um cunho idealista e que os textos de
Bohr poderão constituir o lugar por excelência para observar o profundo confronto entre o idealismo e o
materialismo na ciência. A problematização da hipótese que orienta esta dissertação assumirá, então, a
forma da procura da resposta a uma questão fundamental: “o que há de idealismo na interpretação
bohriana da mecânica quântica?”.
Em termos metodológicos, para que o caminho proposto possa ser percorrido é necessário
trazer à luz, de forma mais ou menos sistematizada, um conjunto de aspectos da filosofia materialista
dialéctica para que então, munidos destes instrumentos, possamos melhor situar a monumental construção
teórica de um dos mais importantes físicos fundadores da mecânica quântica. Materialismo e
Empiriocriticismo constitui, evidentemente, o instrumento principal, mas não será o único.
***
A uma interpretação da mecânica quântica acusada de impor, por princípio, limites ao
conhecimento humano, de negar a existência de uma realidade objectiva independente do observador e de
ser indeterminista contrapõe-se-lhe, como é conhecido, uma outra interpretação inserida no programa de
investigação de Louis de Broglie. Embora a análise desse programa não faça parte dos objectivos desta
1 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982.
2 Utiliza-se, no presente trabalho, a expressão “mecânica quântica” como sinónimo de “física quântica”, sem procurar explorar as diferenças de domínio que entre ambas efectivamente existem as quais, no entanto, para as questões em apreço, podem não ser consideradas.
6
dissertação, importa recordar que o programa teórico de Broglie – e mais ainda todos os programas de
investigação que nele se inspiram, nomeadamente, o programa desenvolvido pelo par José Croca-Rui
Moreira – estão em confronto expresso com as implicações idealistas do programa de Bohr. Eles têm em
comum o reconhecimento da complexidade da natureza e a complexidade e historicidade do processo do
conhecimento, assumem o objectivo de defender e desenvolver uma ciência assente no reconhecimento
da existência de uma realidade objectiva, na causalidade e na rejeição de limites definitivos para o
conhecimento da natureza.
Perante este confronto, hoje em desenvolvimento, estudar Materialismo e Empiriocriticismo é da
maior utilidade. E por diversas razões: porque a abordagem filosófica das descobertas das ciências da
natureza do seu tempo, que Lénine, armado do poderoso método da dialéctica materialista, faz nesta obra
e a caracterização que apresenta da crise da física, identificando as suas causas e apontando a saída, têm
grande importância para a presente luta contra a mistificação idealista (e, consequentemente,
anticientífica) de alguma ciência actual; porque nesta obra são combatidas, na ciência da sua época, as
interpretações idealistas das descobertas científicas; porque a aplicação que Lénine faz da dialéctica ao
complexo processo do conhecimento humano e ao problema da verdade são um contributo muito
importante para pensar as questões do progresso e da inesgotabilidade do conhecimento. Enfim, porque,
como dizem os editores russos das Obras Completas de V. I. Lénine, “todo o conteúdo do livro
Materialismo e Empiriocriticismo é uma profunda fundamentação da possibilidade do conhecimento
objectivo das leis da natureza e da sociedade, e está imbuído de confiança no poder e na força da razão
humana”3.
***
Engels, no seu Ludwig Feuerbach4 observa que os filósofos se dividem em dois grandes campos
conforme a resposta dada à “grande questão fundamental da filosofia”5: a da relação entre o pensar e o
ser. Ou, de outra forma, a questão de saber “que é o originário, o espírito ou a Natureza?” 6.
Na presente dissertação, cujo objectivo é analisar um aspecto do confronto entre estes dois
campos, é difícil não começar pela dita questão fundamental da filosofia, muito embora ela esteja
amplamente abordada na literatura. Começar por essa questão impõe-se como premissa. Essa tarefa não é
de forma alguma desnecessária, tanto mais que nos dias de hoje – e já era assim no tempo de Engels,
conforme por ele reconhecido – existe um certa confusão, propositada ou não, entre o que se pretende
significar com as palavras materialismo e idealismo. O que essas palavras designam efectivamente são as
duas posições relativamente ao primado do ser ou do pensar, da Natureza ou do espírito, da matéria ou da
3 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 6 (Nota dos Editores).
4 Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. III, 1985.
5 idem, ibidem, p. 387.6 idem, ibidem, p. 388.
7
ideia. Como mostra Engels, “aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que
admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta
criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e
mais impossível do que no cristianismo –, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a
Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo”7.
As correntes filosóficas apresentam-se sob muitas formas, escolas e matizes. Mas, em última
instância, elas partem de (ou chegam a) uma posição – de forma assumida ou não, mais ou menos
disfarçada, mais ou menos consistente, e mesmo quando pretendem situar-se acima desta divisão – quanto
ao primado do ser ou da consciência. Como diz Lénine, “por detrás do amontoado de novas subtilezas
terminológicas, por detrás do lixo de uma escolástica erudita, encontrámos sempre sem excepção duas
linhas fundamentais, duas correntes fundamentais na resolução das questões filosóficas”. Quer isto dizer
que a oposição entre idealismo e materialismo é incontornável. E o mais grave é querer escamotear essa
oposição. “A fonte de milhares e milhares de erros e de confusões neste domínio consiste precisamente
em que, por trás da aparência dos termos, das definições, dos subterfúgios escolásticos, dos artifícios
verbais, não se vê estas duas tendências fundamentais”8, afirma Lénine. Essas duas tendências atravessam
toda a história do pensamento. Como Lénine diz mais à frente: “A filosofia moderna é tão partidarista
coma a de há dois mil anos. Os partidos em luta são na realidade, uma realidade dissimulada com novos
rótulos doutorais e charlatanescos ou com um apartidarismo medíocre, o materialismo e o idealismo”9.
“A matéria não é um produto do espírito, mas o espírito é ele próprio apenas o produto supremo
da matéria10”. Isto, como diz Engels, é materialismo puro. Ou seja, para os materialistas o mundo
material, sensivelmente perceptível, a que nós pertencemos, é o único mundo real e a nossa consciência e
pensamento, por muito supra-sensíveis que pareçam, são um produto de um órgão material, corpóreo: o
cérebro. A existência de uma “ideia absoluta”, de “categorias lógicas” anteriores à existência do mundo
“não é mais do que um resto fantástico da crença num criador extra-mundano”11.
Mas, se o materialismo filosófico não pode ser confundido com a avareza, cobiça e vida
faustosa, nem o idealismo com perseguição de objectivos ideais, crença em ideais éticos, sociais, ou
filantropia universal – confusões estas características de uma postura vulgar ou não informada –, também
não pode o mesmo materialismo, que é uma visão geral do mundo que repousa sobre uma determinada
concepção da relação de matéria e espírito, ser tomado por uma das suas formas particulares,
características de um dado estádio do desenvolvimento histórico, nomeadamente do século XVIII12.
Também o materialismo se transforma em articulação com a história dos homens. Assim sendo, não é de
estranhar que o materialismo do século XVIII apresentasse limitações específicas como a aplicação
7 idem, ibidem.8 V.I. Lénine, op. cit., p. 254.9 idem, ibidem, p. 271.10 F. Engels, op. cit., p. 391.11 idem, ibidem.12 Cf. idem, ibidem.
8
exclusiva do padrão da mecânica a processos que são de natureza química e orgânica – e para os quais as
leis mecânicas certamente valem, mas são empurradas para um plano recuado por outras leis, superiores –
ou como a incapacidade de apreender o mundo como um processo, como uma matéria compreendida
numa continuada transformação histórica. Para Engels, esta forma de materialismo encontra a sua
justificação na história e no desenvolvimento histórico das ciências da natureza13.
“Tal como o idealismo passou por uma série de estádios de desenvolvimento, também o
materialismo [passou]. Com cada descoberta fazendo época mesmo no domínio da ciência da Natureza,
ele tem que mudar a sua forma”14. Por exemplo, Marx e Engels consideravam a dialéctica hegeliana a
maior realização da filosofia clássica alemã. E, nesse sentido, eles promoveram o seu desenvolvimento.
Em vez de tomarem a dialéctica de Hegel como acabada, eterna, Marx e Engels desenvolveram-na. Nas
suas mãos, a dialéctica de Hegel foi resgatada do seu enforme idealista – eliminou-se a inversão de
considerar as coisas reais como imagens deste ou daquele estádio do conceito absoluto, voltando a tomar,
materialistamente, os conceitos da nossa cabeça como imagens das coisas reais – e desenvolvida e
aplicada à concepção materialista da Natureza. Trata-se então de, superando aquele materialismo
metafísico característico de uma dada fase de desenvolvimento, passar a apreender o mundo não como
um “complexo de coisas prontas, mas como um complexo de processos, onde as coisas, aparentemente
estáveis, não passam menos do que as imagens de pensamento delas na nossa cabeça – os conceitos – por
uma ininterrupta mudança do devir e do perecer, na qual, em toda a aparente casualidade, e apesar de todo
o retrocesso momentâneo, se impõe finalmente um desenvolvimento progressivo”15.
Assim, o materialismo de Lénine, tal como ele o concebe, está já muito longe do materialismo do
século XVIII. O materialismo é agora um materialismo dialéctico. Mas nele, como alerta Barata-Moura, a
dialéctica não “se pode ver fundada e compreendida num horizonte de exterioridade relativamente ao seu
embasamento materialista” ou como algo que apenas “decorre do processo subjectivo em que
historicamente o saber consiste”16. A dialéctica é, em primeira instância, objectiva. A dialéctica “é algo
que na própria constatação e análise da dinâmica material das realidades se impõe”17; ela “pulsa no e do
interior da própria materialidade do ser, que integra na unidade determinada e concreta de um mesmo
movimento. Neste sentido, funda e profundamente dialéctico, o materialismo – ao arrepio de aquilo que
13 “Isto correspondia ao estado da ciência da Natureza na altura e à maneira metafísica, isto é, antidialéctica do filosofar, com aquele conexa. A Natureza, sabia-se, estava compreendida num movimento eterno. Mas esse movimento, segundo a representação da altura, girava eternamente em círculo e, portanto, nunca se mexia do sítio; produzia sempre de novo os mesmos resultados. [...] A concepção não-histórica da Natureza era, portanto, inevitável” idem, ibidem, p. 392. “A velha metafísica, que tomava as coisas como prontas, surgiu a partir de uma ciência da Natureza que investigava as coisas mortas e vivas como prontas. Porém, quando essa investigação se estendeu tanto que tornou possível um progresso decisivo, a transição para a investigação sistemática das mudanças nestas coisas que se processam na própria Natureza, então, também no domínio filosófico soou o dobre de finados pela velha metafísica. E, de facto, se a ciência da Natureza até ao fim do século passado foi predominantemente uma ciência colectora, foi uma ciência de coisas prontas, no nosso século, ela é essencialmente ciência ordenadora, ciência dos processos, da origem e do desenvolvimento dessas coisas e da conexão que liga esses processos naturais num grande todo”. idem, ibidem, p. 407-408.
14 idem, ibidem, p. 392.15 idem, ibidem, p. 407.16 José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com
Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 50.17 idem, ibidem, p. 159.
com frequência desenvolta lhe é de ordinário assacado – nada tem a ver com um «naturalismo» de raso
voo, nem com um «fatalismo» cego desprovido de respiração, nem com um «reducionismo» universal à
imediatez rasteira das corporalidades avulsas”18.
***
Em Materialismo e Empiriocriticismo, Lénine desenvolve as teses gnosiológicas fundamentais
do materialismo dialéctico. Como escreveram os editores das Obras Completas, o livro de Lénine “dá
uma definição de matéria que é a síntese de toda a história da luta do materialismo contra o idealismo e a
metafísica e das novas descobertas das ciências da natureza”19. De facto, esta obra de Lénine é um dos
mais relevantes programas da teoria materialista dialéctica do conhecimento. Contra o idealismo
subjectivo e o agnosticismo, Lénine desenvolve aí a teoria marxista da cognoscibilidade do mundo, o que
o obriga a analisar o complexo processo dialéctico do conhecimento e as suas implicações no problema
da verdade. E, com esse movimento, com essa atenção ao destino maior do conhecimento humano,
Lénine descobre o significado da prática no processo do conhecimento como critério da verdade. No
limite, a prática deve ser o ponto de vista primeiro e o fundamental na teoria do conhecimento. Ponto de
vista esse que conduz, necessariamente, ao materialismo.
18 ibidem, p. 54.19 Cf. V.I. Lénine, op. cit., p. 6 (Nota dos Editores).
I – Materialismo e Empiriocriticismo
1. A obra no seu contexto histórico
Lénine escreveu Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas sobre uma Filosofia
Reaccionária, em 1908, essencialmente entre os meses de Fevereiro e Outubro, a partir de Genebra e
Londres, durante o exílio. A sua escrita requereu pormenorizados estudos preparatórios, incluindo a
frequência prolongada de variadas bibliotecas. São mais de 200 as fontes de filosofia e ciências da
natureza citadas ou referidas por Lénine. A obra, que viria a ser publicada em Moscovo, em 1909, pela
editora Zveno, deliberadamente adquiriu a forma de livro autónomo cuja publicação envolvia, nas
palavras de Lénine, “não só obrigações literárias, mas também sérias obrigações políticas” 20.
Na Rússia, vivia-se um clima de terror policial imposto pela autocracia czarista, após a derrota
da revolução de 1905-1907. “A justificação ideológica da contra-revolução e o ressurgimento da mística
religiosa imprimiram a sua marca na ciência, na literatura e na arte. Na filosofia dominavam as formas
mais reaccionárias de idealismo, que negavam ser o desenvolvimento da natureza e da sociedade regido
por leis, bem como a possibilidade de conhecer aquelas”21, enquadram os editores. Perante o reforço do
idealismo filosófico e do misticismo como disfarce de um estado de espírito contra-revolucionário –
situação assim caracterizada pelo próprio Lénine – a defesa da filosofia marxista impunha-se como tarefa
importante e inadiável. A obra surge na sequência da publicação de livros pelos machistas22 russos,
especialmente da colectânea Ensaios sobre a Filosofia do Marxismo que continha artigos de Bazárov,
Bogdánov, Lunatchárski, entre outros. Em causa estavam a defesa e o desenvolvimento do materialismo
filosófico marxista e da teoria materialista dialéctica do conhecimento contra o idealismo filosófico.
Se, no plano externo, a situação era marcada pelas duras consequências da derrota das
movimentações revolucionárias, também no interior do Partido Operário Social-Democrata da Rússia a
situação era caracterizada por uma forte tensão e complexidade. Por um lado, Plekhánov, destacado e
conhecido filósofo da facção menchevique, defendia intransigentemente, no registo da teoria, os
princípios do materialismo dialéctico. Por outro lado, Bogdánov e Lunatchárski que, do ponto de vista da
arrumação partidária, pertenciam ao grupo dos bolcheviques, assumiam posições filosóficas cada vez
mais vincadamente idealistas, inspiradas nas atitudes onto-epistemológicas de Ernst Mach e Richard
Avenarius23. Como Barata-Moura explica, “o momento correspondia, por conseguinte, a uma intricada e
imbricada situação contraditória em desenvolvimento, no âmbito da qual «oportunismo de direita» e
«oportunismo de esquerda» nas arenas políticas estavam longe, no entanto, de revelar uma
20 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 275. (Notas)
21 ibidem, p. 5 (Nota dos Editores).22 Isto é, partidários da filosofia de Ernst Mach.23 Cf. José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica
com Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 30-36.
correspondência perfeita e simplificada com a divisão das águas, no que à filosofia diz respeito, entre
materialismo e idealismo. [...] Na realidade polimórfica e lábil do processo que ao tempo estava a
decorrer, a dissensão filosófica e o diferendo na orientação política não coincidiam de todo termo a
termo”24. A clarificação dos diferendos em jogo era, também ela, necessária.
2. O empiriocriticismo como o reavivar de concepções idealistas pretensamente novas
Ao escrever Materialismo e Empiriocriticismo, Lénine tinha como objectivo combater tentativas
de descaracterização do materialismo dialéctico que estavam a ser feitas por um conjunto de autores que
se proclamavam marxistas. Apoiando-se em doutrinas pretensamente modernas, referindo-se à “teoria
contemporânea do conhecimento”, à “filosofia moderna”, ao “positivismo moderno” ou à “filosofia das
ciências do século XX”, homens como Bazárov, Bogdánov, Iuchkévitch, Valentínov, Tchernov e outros
machistas utilizavam diversos subterfúgios para encobrir o que, na verdade, era o seu afastamento face ao
materialismo dialéctico. Em alguns casos iam mesmo até ao fideísmo, isto é, à defesa de uma doutrina
que coloca a fé no lugar do conhecimento ou que, de uma forma geral, lhe atribui alguma importância.
A expressão, “machistas”, que designa os partidários da filosofia de Ernst Mach, é usada por
Lénine em pé de igualdade com a expressão “empiriocriticistas”, corrente filosófica da qual Ernst Mach
era o mais popular representante. A utilização desta expressão parece ter sido iniciada por Richard
Avenarius e não por Mach. Embora desenvolvidas de forma independente uma da outra, as concepções de
Mach e Avenarius apresentam, ao nível da sua fundamentação, substanciais afinidades, aliás
reciprocamente reconhecidas25. O aparecimento do empiriocriticismo de Mach e Avenarius decorre do
desenvolvimento do positivismo, corrente que surge no século XIX como reacção ao materialismo e
ateísmo francês do século XVIII. O fundador do positivismo, Augusto Comte, identificava o positivismo
com o pensamento científico, cuja tarefa fundamental era a descrição positiva dos fenómenos naturais a
partir dos dados da experiência. Declarava, assim, “metafísica” qualquer teoria que reconhecesse a
existência e a cognoscibilidade da realidade objectiva26.
Em Materialismo e Empiriocriticismo, tratava-se de, por um lado, clarificar o conteúdo daquilo
que era apresentado sob a aparência de marxismo e, por outro, desvelar as ligações que estas ideias,
apresentadas como novidade, tinham com as concepções idealistas há já muito apresentadas. Como diz
Lénine: “os machistas «modernos» não aduziram contra os materialistas nenhum, literalmente nem um
único argumento que não existisse no bispo Berkeley”27, filósofo inglês representante do idealismo
subjectivo.
Contra os materialistas, os machistas dizem que aqueles pretendem reconhecer algo que, a seu
24 idem, ibidem, p. 36-37.25 Cf. idem, ibidem, p. 79.26 Cf. V.I. Lénine, op. cit., p. 276-277 (Notas).27 idem, ibidem, p. 29.
ver, é impensável e incognoscível: as “coisas em si”, a matéria “fora da experiência”, para lá do meu
conhecimento dela. Para os machistas, é misticismo admitir que há algo mais que se situe fora dos limites
da “experiência” e do conhecimento; que, ao admitir-se a existência de “coisas em si”, isto é, coisas fora
da nossa consciência, dá-se origem a uma duplicação do mundo uma vez que, para além dos fenómenos,
para além dos dados imediatos dos sentidos, ainda se postula a existência da coisa em si.
Ora, já em 1710, como nota Lénine, o bispo Berkeley, na sua obra Tratado acerca dos Princípios
do Conhecimento Humano, defendera que os objectos do conhecimento humano representam ideias e que
as coisas são unicamente “conjuntos de ideias” ou “combinações de sensações”. Isto é, Berleley havia
formulado um idealismo que negava a existência “absoluta” dos objectos, isto é, a existência das coisas
fora do conhecimento. Segundo Berkeley, é incompreensível que se fale da existência absoluta das coisas.
As coisas só existem se, e enquanto, alguém as percebe. Daqui decorre, então, que a opinião de que as
casas, as montanhas, os rios, isto é, todos os objectos sensíveis, têm uma existência real ou natural
diferente do facto de serem percebidos pela razão é uma contradição manifesta. Ou seja, para Berkeley, é
uma oca abstracção separar a sensação do objecto. “Na verdade, o objecto e a sensação são a mesma coisa
e não podem por isso ser abstraídos um do outro”28, diz. Como idealista franco e consequente (tal como
Lénine o caracteriza), o próprio Berkeley traça as linhas das duas concepções filosóficas fundamentais
afirmando que a opinião por si refutada reconhece a existência absoluta das coisas sensíveis em si ou fora
da mente. Efectivamente, nas palavras de Lénine, “o materialismo é o reconhecimento dos «objectos em
si» ou fora da mente; as ideias e as sensações são cópias ou reflexos destes objectos. A doutrina oposta
(idealismo): os objectos não existem «fora da mente»; os objectos são «combinações de sensações»”29.
Porém, como Lénine chama a atenção, os machistas apresentam como novidade a opinião de que
os conceitos de “matéria” ou “substância” são conceitos “metafísicos”. Mach e Avenarius teriam
eliminado, por via do “positivismo moderno” e das “ciências da natureza modernas”, estes “absolutos”,
estas “essências imutáveis”, esquecendo ou ignorando que Berkeley, em 1710, tinha já chamado à matéria
nada.
Berkeley havia também sido muito claro quanto às consequências, a seu ver “prejudiciais”, da
adopção de uma “absurda” doutrina que põe na sua base a existência de um mundo exterior independente
da consciência. Ele havia compreendido bem as implicações políticas do seu idealismo. Havia sido capaz
de exprimir correctamente a essência da filosofia idealista e o seu significado social: “todas as
construções ímpias do ateísmo e da irreligião foram erigidas sobre a base da doutrina da matéria ou da
substância corpórea”30. Como mostra Lénine, recordando aquilo a que Mach chamaria o “princípio da
economia do pensamento”, em 1870, ou que Avenarius designaria por “filosofia como pensamento do
mundo segundo o princípio do menor esforço”, em 1876, Berkeley havia já muito claramente afirmado
que “a matéria, uma vez expulsa da natureza, leva consigo tantas noções cépticas e ímpias, uma
28 Berkeley cit. por V.I. Lénine, ibidem, p. 19.29 V. I. Lénine, ibidem, p. 20.30 Berkeley cit. por V.I. Lénine, ibidem, p. 21.
quantidade tão incrível de de discussões e questões embrulhadas [...]”31. Ou seja, Lénine mostra que a
diferença entre o idealismo de Berkeley e o machismo do seu tempo é mínima. A diferença é meramente
retórica. Como diz Lénine, ela reside em que, “no nosso tempo”, diz Lénine, “estas mesmas ideias sobre a
eliminação «económica» da «matéria» da filosofia são dissimuladas de uma forma muito mais artificiosa
e embrulhada pelo emprego de uma terminologia «nova», para que estas ideias sejam tomadas pelas
pessoas ingénuas como filosofia «moderna»!”32.
Porém, Berkeley acabou por sentir necessidade de encobrir a sua “nudez idealista” apresentando-
a livre de absurdos e aceitável para o “senso comum”, esforçando-se por parecer realista. Assim se
compreende que o filósofo inglês Fraser, idealista e partidário do berkelyanismo, chegue a chamar
“realismo natural” à doutrina de Berkeley. Serão estes subterfúgios, com o objectivo de fazerem passar tal
filosofia por “realismo”, ainda que com outra capa verbal, que serão também encontrados, ainda que com
outra capa verbal nos positivistas “modernos”, diz Lénine. Respondendo à acusação de que a sua filosofia
suprimia as substâncias corpóreas, Berkeley diz: “Se a substância é tomada no sentido vulgar da palavra,
isto é, como uma combinação de qualidades sensíveis, de extensão, de solidez, de peso, etc., não posso
ser acusado da sua eliminação. Mas se a palavra substância for tomada no sentido filosófico – como a
base de acidentes ou de qualidades (existentes) fora da consciência –, então reconheço realmente que a
elimino, se é que se pode falar de eliminação daquilo que nunca existiu, não existiu sequer na
imaginação”33. Empurrado pela necessidade de encontrar um critério que distinga o real do fictício ou da
imaginação, Berkeley constrói um critério de realidade com base na diferença entre a clareza das nossas
percepções individuais e entre estas e as colectivas. Assim, por um lado, as ideias que a mente humana
evoca à sua vontade seriam pálidas e enquanto que as ideias que percebemos por intermédio dos sentidos
– impressas em nós segundo certas leis da natureza – seriam mais estáveis e testemunhariam a presença
de uma mente mais poderosa e sábia do que a mente humana. Por outro lado, ao ligar o conceito de real à
percepção simultânea das mesmas sensações por muitas pessoas, Berkeley está, neste aspecto, a
aproximar-se do idealismo objectivo, como esclarece Lénine.
As mesmas subtilezas sucedem-se quando falamos da causa e efeito. Berkeley defende que “a
conexão das ideias não supõe a relação de causa e efeito, mas apenas a relação da marca ou signo com a
coisa significada de uma maneira ou doutra”. […] “Assim, é evidente que as coisas que, do ponto de vista
da categoria de causa que contribui ou concorre para a produção do efeito, são absolutamente
inexplicáveis e nos levam a grandes absurdos, podem ser explicadas muito naturalmente...se as
considerarmos como marcas ou signos para nossa informação”34.
É com base nestas ideias que Fraser pode afirmar que a teoria favorita de Berkeley era o
“simbolismo natural universal” ou “simbolismo da natureza” e é com base nelas que o positivista
moderno e realista crítico P. Iuchkévitch vem “descobrir”, no século XX, aquilo que chama empírio-
31 idem cit. por V.I. Lénine, ibidem.32 V. I. Lénine, ibidem., p. 22.33 Berkeley cit. por V. I. Lénine, ibidem , p. 22.34 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem , p. 23.
simbolismo. De facto, como nota Lénine, também na questão da causalidade, temos diante de nós duas
correntes filosóficas distintas. “Uma «pretende explicar as coisas por causas corpóreas»; é claro que ela
está ligada à «absurda doutrina da matéria» refutada pelo bispo Berkeley. A outra reduz o «conceito de
causa» ao conceito de «marca ou signo», que serve «para nossa informação» (proporcionada por Deus).
Voltaremos a encontrar estas duas tendências, em trajes do século XX,” (e do século XXI, poder-se-ia
dizer) “quando analisarmos a atitude do machismo e do materialismo dialéctico face a esta questão” 35.
***
Entre uns e outros, isto é, entre os idealistas e os materialistas, estão os agnósticos. Também esta
corrente de pensamento será encontrada no decurso da análise das posições assumidas pelos machistas. E
também a este respeito, a opinião do materialista consequente e do idealista consequente sobre as
correntes filosóficas fundamentais coincidem. Como Lénine chama a atenção, o materialista Engels “vê a
diferença fundamental entre elas no facto de que para os materialistas a natureza é o primário e o espírito
é o secundário, e para os idealistas o inverso” e “coloca entre uns e outros os partidários de Hume e de
Kant, que negam a possibilidade de conhecer o mundo ou, pelo menos, de o conhecer completamente,
chamando-lhes agnósticos”36. Da mesma forma, o idealista Fraser considera que aqui reside o nó da
questão afirmando que “na opinião dos materialistas, os fenómenos sensíveis são devidos a uma
substância material, ou a alguma desconhecida «terceira natureza»; na opinião de Berkeley, à Vontade
Racional. Já na opinião de Hume e dos positivistas, a sua origem é absolutamente desconhecida, e não
podemos senão generalizá-los como factos, pela via indutiva, segundo o costume”37. Para os agnósticos, e
de acordo com Hume – que chama cepticismo à recusa de explicar as sensações pela acção das coisas ou
do espírito, à recusa de reduzir as percepções ao mundo exterior, por um lado, à divindade ou a um
espírito desconhecido, por outro38 – “a mente nunca tem diante de si senão percepções e de modo nenhum
pode fazer qualquer experiência relativamente à correlação entre as percepções e o objecto” e que “as
nossas percepções são os nossos únicos objectos”39.
3. A constituição do saber: a realidade objectiva vs. as sensações como origem do conhecimento
científico
De acordo com a teoria do conhecimento empiriocriticista, a tarefa da física é “descobrir as leis
da ligação entre as sensações”40 e não entre as coisas ou corpos de que são imagem as nossas sensações.
Para Mach, “as sensações não são «símbolos das coisas». A «coisa» é antes um símbolo mental para um
35 V. I. Lénine, ibidem, p. 24.36 idem, ibidem, p. 25.37 Fraser cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 25.38 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 26.39 Hume cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 26.40 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 30.
complexo de sensações que possui relativa estabilidade. Não são as coisas (os corpos), mas sim as cores,
os sons, as pressões, os espaços, os tempos (o que nós chamamos habitualmente sensações), que são os
verdadeiros elementos do mundo”41. Para Mach, as coisas ou corpos são, portanto, complexos de
sensações.
Mach contrapõe explicitamente esta sua posição àquela oposta segundo a qual as sensações são
“símbolos” das coisas, na linguagem de Mach, ou, o problema de outra forma, segundo a qual as
sensações são imagens ou reflexos das coisas: o materialismo filosófico. Para se perscrutar a concepção
materialista, o Anti-Dühring de Engels é elucidativo:
“Mas donde toma o pensamento estes princípios?”, diz Engels referindo-se aos princípios básicos
de todo o conhecimento. “De si mesmo? Não...O pensamento não pode nunca tirar e deduzir as
formas do ser de si mesmo, mas apenas do mundo exterior...Os princípios não são o ponto de
partida da investigação, mas o seu resultado final; estes princípios não se aplicam à natureza e à
história da humanidade, mas são abstraídos delas; não são a natureza e a humanidade que se
conformam com os princípios, mas, pelo contrário, os princípios só são verdadeiros na medida em
que correspondem à natureza e à história”42.
“Partir das coisas para a sensação e o pensamento” é ser-se materialista. O movimento inverso,
executado por Mach, é idealista. “Nenhuns subterfúgios, nenhuns sofismas (dos quais encontraremos
ainda uma multidão)”, continua Lénine, “eliminarão o facto claro e indiscutível de que a doutrina de E.
Mach sobre as coisas como complexos de sensações é idealismo subjectivo, é um simples ruminar do
berkeleyanismo. Se os corpos são «complexos de sensações», como diz Mach, ou «combinações de
sensações», como dizia Berkeley, daqui decorre necessariamente que todo o mundo é apenas
representação minha. Partindo desta premissa, não se pode chegar à existência de outros homens além de
si próprio: isto é o mais puro solipsismo”43.
Ao discutir a questão das sensações na matéria orgânica e inorgânica, Mach embrulha-se quando
se põe o problema de as sensações se verificarem apenas em determinadas formas da matéria mais
desenvolvida. “O materialismo, em pleno acordo com as ciências da natureza, toma a matéria como o
dado primário, considerando a consciência, o pensamento, a sensação, como o secundário, porque numa
forma claramente expressa, a sensação está ligada somente às formas superiores da matéria” 44, diz Lénine.
Contrariamente, Mach defende, nas suas próprias palavras, que “a matéria não é o dado primeiro. Esse
dado primário são antes os elementos (que, num certo sentido determinado, se chamam sensações)”45.
Este ponto de vista idealista conduz imediatamente ao absurdo, nota Lénine, “porque, em 1º lugar, a
sensação é tomada como primária, apesar de estar relacionada apenas com determinados processos de
uma matéria organizada de determinada maneira; e, em 2º lugar, a premissa fundamental de que os corpos
são complexos de sensações é violada pela suposição” - feita por Mach – “da existência de outros seres
41 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 30.42 F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 31.43 V. I. Lénine, ibidem, p. 31-32.44 idem, ibidem, p. 34.45 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 34.
vivos e, em geral, e outros «complexos» além do grande Eu dado”46.
Mach acusava os materialistas, sem os nomear – referindo-se àqueles que subscreviam uma dita
“noção física comum, amplamente difundida” partilhando a convicção de que a matéria representa uma
realidade imediata –, de não resolverem a questão de saber de onde surge a sensação, querendo ignorar
que nenhum outro ponto de vista filosófico resolvera ainda uma questão para cuja solução se não
reuniram dados suficientes. Para os materialistas consequentes – ao contrário dos materialistas “vulgares”
que “erravam ao acreditar que o cérebro segrega o pensamento do mesmo modo que o fígado segrega a
bílis” – , não se trata de deduzir as sensações do movimento da matéria ou em reduzi-la ao movimento da
matéria, mas considerar as sensações como uma das propriedades da matéria em movimento. A palavra
“elemento” introduzida por Mach com pretensões de novidade e descoberta, “apenas embrulha a questão
por meio de um termo que não diz nada e que cria a falsa aparência de uma solução ou de um passo em
frente. Esta aparência é falsa, porque de facto falta ainda investigar de que maneira a matéria que
pretensamente não tem quaisquer sensações se relaciona com a matéria composta dos mesmos átomos (ou
electrões) e que ao mesmo tempo possui a capacidade claramente expressa de sentir. O materialismo
coloca claramente a questão ainda não resolvida, e deste modo incita à sua resolução, incita a novas
investigações experimentais”47.
Avenarius, outro representante do empiriocriticismo, exprime consciente e claramente o seu
idealismo quando, indo por caminhos semelhantes aos de Mach, diz que “só a sensação pode ser
concebida como o existente”48 e quando afirma que a “substância é suprimida”. “Assim”, clarifica Lénine,
“a sensação existe sem a «substância», isto é, o pensamento existe sem o cérebro! Será que existem de
facto filósofos” – pergunta Lénine – “capazes de defender esta filosofia desmiolada? Existem”49. Do
argumento de Avenarius, contra uma posição materialista, resulta então que, uma vez que não
conhecemos ainda todas as condições da ligação por nós observada entre a sensação e a matéria
organizada de determinada maneira, devemos admitir apenas a sensação50.
Finalizando a caracterização das premissas idealistas fundamentais do empiriocriticismo, Lénine
identifica também em Karl Pearson, P. Duhem e Henri Poincaré ideias semelhantes. Para Poincaré as
coisas são “grupos de sensações” e Duhem exprime uma opinião semelhante. Mach e Pearson manifestam
a sua concordância mútua. Pearson, para quem “as coisas reais” são “impressões dos sentidos”, declara, à
semelhança de outros, metafísico todo o reconhecimento das coisas para além dos limites das impressões
dos sentidos. Porém, a este último é alheia a vontade de se disfarçar de materialista – ao contrário dos
machistas russos – e considera as suas concepções e as de Mach “idealistas”. A filosofia de Pearson,
considera Lénine, distingue-se da de Mach por uma muito maior integridade e consistência.
Concluindo: “para o naturalista não desnorteado pela filosofia professoral, bem como para todo o
materialista”, diz Lénine, “a sensação é realmente a ligação directa da consciência com o mundo exterior,
46 V. I. Lénine, ibidem, p. 34.47 idem, ibidem, p. 35.48 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 36.49 V. I. Lénine, ibidem, p. 37.50 Cf. idem, ibidem, p. 39.
é a transformação da energia da excitação exterior em facto da consciência. Cada um já observou esta
transformação milhões de vezes e observa-a realmente a cada passo. O sofisma da filosofia idealista
consiste em considerar a sensação não como uma ligação da consciência com o mundo exterior, mas
como uma divisória, uma parede que separa a consciência do mundo exterior, não como a imagem de um
fenómeno exterior correspondente à sensação, mas como a «única coisa existente»”.
4. Tentativas (falhadas) de conciliação do empiriocriticismo com as ciências da natureza e de “tapar
buracos do solipsismo”
Os elementos de Mach. Avenarius e as séries dependente e independente
Na Mecânica, Mach afirma: “Todas as ciências da natureza podem apenas representar os
complexos daqueles elementos a que chamamos habitualmente sensações”51. A introdução da palavra
“elemento” está incluída numa tentativa de Mach de, depois de reconhecido o carácter idealista das suas
concepções iniciais, procurar disfarçar ou corrigir esse mesmo carácter. Lénine procurará demonstrar que
a concepção de Mach assente na ideia de “elementos” apenas a torna mais confusa e embrulhada, mas não
modifica o seu posicionamento fundamental que é o da defesa do primado da consciência face ao ser.
Para Mach, a ligação entre, digamos, calor e chama pertence à física e a ligação entre o calor e os
nervos pertence à fisiologia. Nem uma nem outra destas ligações existe separadamente, ambas existem
em conjunto. Só temporariamente podemos abstrair-nos de uma ou de outra, diz. “Aparentemente, mesmo
os processos puramente mecânicos são, deste modo, sempre também fisiológicos”. Assim, para Mach, os
“complexos [de elementos] normalmente chamados corpos” numa dada dependência funcional são
chamados de sensações (quando em ligação com o complexo de elementos a que chamamos o nosso
corpo) e noutra dependência funcional são ao mesmo tempo objectos físicos. Com isto, Mach pretende
construir uma teoria isenta daquilo que chama “unilateralidade”: “Os elementos são habitualmente
chamados sensações. Como sob esta denominação se subentende já uma determinada teoria unilateral,
preferimos falar brevemente dos elementos”52.
Mas Lénine contesta:
“Aqui de facto não há unilateralidade, mas há a mais incoerente embrulhada de pontos de vista
filosóficos opostos. Se partis apenas das sensações, não corrigis com a palavrinha “elemento” a
“unilateralidade” do vosso idealismo, mas embrulhais apenas as coisas, escondei-vos
cobardemente da vossa própria teoria. Em palavras eliminais a contradição entre o físico e o
psíquico, entre o materialismo (que considera a natureza, a matéria, como primário) e o idealismo
(que considera o espírito, a consciência, a sensação, como primário), mas na realidade logo
restabeleceis esta contradição, restabelecei-la de maneira sub-reptícia, renunciando à vossa
51 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 40.52 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 41.
premissa fundamental! Porque, se os elementos são sensações, não tendes o direito de admitir por
um só instante sequer a existência de “elementos” independentemente dos meus nervos, da minha
consciência. Mas se admitis objectos físicos independentes dos meus nervos, das minhas
sensações, que só suscitam a sensação pela sua acção sobre a minha retina, abandonais
vergonhosamente o vosso idealismo “unilateral” e passais para o ponto de vista do materialismo
“unilateral”. Se a cor é uma sensação só dependente da retina (como as ciências da natureza vos
obrigam a admitir), quer dizer que os raios de luz, ao atingirem a retina, produzem a sensação de
cor. Quer dizer que fora de nós, independentemente de nós e da nossa consciência, existe
movimento da matéria, digamos, ondas de éter de determinado comprimento e determinada
velocidade, que, agindo sobre a retina, produzem no homem a sensação desta ou daquela cor. É
esta precisamente a maneira de ver das ciências da natureza. Elas explicam as diferentes
sensações desta ou daquela cor pelo diferente comprimento das ondas luminosas que existem fora
da retina humana, fora do homem e independentemente dele. E isto é materialismo: a matéria,
agindo sobre os nossos órgãos dos sentidos, produz a sensação. A sensação depende do cérebro,
dos nervos, da retina, etc., isto é, da matéria organizada de determinada maneira. A existência da
matéria não depende das sensações. […] Mach e Avenarius introduzem sub-repticiamente o
materialismo por meio da palavrinha “elemento”, que pretensamente liberta a sua teoria da
“unilateralidade” do idealismo subjectivo, pretensamente permite admitir a independência do
psíquico relativamente à retina, aos nervos, etc., admitir a independência do físico relativamente
ao organismo humano. De facto, evidentemente, o truque com a palavrinha “elemento” é o mais
lastimável dos sofismas, porque o materialista, ao ler Mach e Avenarius, perguntará
imediatamente: mas o que são os “elementos”? Seria efectivamente pueril pensar que com a
invenção de uma nova palavrinha é possível livrar-se das principais correntes da filosofia. Ou o
“elemento” é uma sensação, como dizem todos os empiriocriticistas, Mach, Avenarius, Petzoldt,
etc., e então a vossa filosofia, meus senhores, é um idealismo que se esforça em vão por encobrir
a nudez do seu solipsismo sob a capa de uma terminologia mais “objectiva”. Ou o “elemento” não
é uma sensação, e então a vossa palavrinha “nova” não contém absolutamente nenhum
pensamento, então pavoneai-vos simplesmente sem ter de quê”53.
Petzoldt, empiriocriticista alemão, depois de definir os elementos como sensações, encontrou um
problema semelhante ao pressentir que se-lhe evaporava o mundo pelo que precisou de fazer a ressalva de
que “na afirmação «as sensações são elementos do mundo» se não devia tomar a palavra «sensação»
como designando algo apenas subjectivo e por isso etéreo, que transformasse numa ilusão o quadro
habitual do mundo”54. Para Lénine, mais uma vez, encontramo-nos perante um sofisma: não se quer tomar
a sensação pela sensação. A dilatação do sentido desta palavra não muda tão-pouco o facto de que as
sensações estão ligadas no homem aos nervos, à retina, ao cérebro, etc.
Também Bogdánov – que afirma que não se reconhece machista em filosofia mas que não deixa
de retirar desta corrente o seu erro principal, isto é, “a noção da neutralidade dos elementos da experiência
relativamente ao «físico» e ao «psíquico», da dependência destas definições apenas na ligação da
53 V. I. Lénine, ibidem, p. 41-42.54 Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 42..
experiência”55 - defende, com Mach, que “como a filosofia positiva moderna esclareceu, os elementos da
experiência psíquica são idênticos aos elementos de toda a experiência em geral, como são idênticos aos
elementos da experiência física”56. Respondendo à negação por Bogdánov de que esta posição possa ser
considerada idealista, Lénine replica que “pode-se e deve-se falar de idealismo quando se reconhece a
identidade das sensações e dos “elementos da experiência física” (isto é, o físico, o mundo exterior, a
matéria), porque isto não é senão berkeleyanismo”. Não há aqui vestígio nem de filosofia moderna, nem
de filosofia positiva […]57.
Uma outra tentativa de introdução sub-reptícia do materialismo no empiriocriticismo traduz-se
na doutrina de Avenarius – e acolhida por Bogdánov – das séries dependente e independente da
experiência: “Na medida em que os dados da experiência surgem na dependência do estado de um dado
sistema nervoso, formam o mundo psíquico de uma dada personalidade; na medida em que os dados da
experiência são tomados fora desta dependência, temos perante nós o mundo físico. Por isso, Avenarius
designa estes dois domínios da experiência como a série dependente e a série independente da
experiência”58, diz Bogdánov. Trata-se de uma tentativa arbitrária, ecléctica e ilegítima do ponto de vista
de uma filosofia que diz que os corpos são complexos de sensações e que as sensações são idênticas aos
elementos do físico, considera Lénine. É uma tentativa que não liberta esta filosofia das suas premissas
idealistas fundamentais.
O eclectismo presente na doutrina do empiriocriticismo é também evidente na última obra de
Mach, Conhecimento e Erro, na qual declara simultaneamente que “não há nenhuma dificuldade em
construir qualquer elemento físico com sensações, isto é, com elementos psíquicos” e que as
dependências fora do limite espacial do nosso corpo são a física no sentido mais amplo e que para que se
obtenha estas dependências numa forma pura é necessário excluir tanto quanto possível a influência do
observador59. Isto é, primeiro constrói-se os elementos físicos com os psíquicos e depois verifica-se que
os elementos físicos se situam fora dos limites dos elementos psíquicos. Ainda na mesma obra, Mach
constata que não existe nenhum gás ideal ou um corpo perfeitamente elástico e que o físico sabe que as
“ficções só aproximadamente correspondem aos factos, simplificando-os arbitrariamente; ele conhece
esta divergência que não pode ser eliminada”60. Para Lénine, o que isto significa é que aqui Mach
“esquece a sua própria teoria e, começando a falar de diversas questões da física, raciocina com
simplicidade, sem floreios idealistas, isto é, de modo materialista. […] A teoria dos físicos revela-se um
reflexo dos corpos, dos líquidos, dos gases existentes fora de nós e independentemente de nós, e este
reflexo é naturalmente aproximativo, mas é incorrecto chamar «arbitrária» a esta aproximação ou
55 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 43.56 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 44.57 V. I. Lénine, ibidem.58 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 45.59 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 48.60 idem, ibidem.
simplificação. Na realidade, a sensação é aqui considerada por Mach precisamente como a consideram
todas as ciências da natureza não «depuradas» pelos discípulos de Berkeley e de Hume, isto é, como uma
imagem do mundo exterior. A teoria própria de Mach é o idealismo subjectivo, mas quando é necessário
um elemento de objectividade, Mach introduz sem cerimónias nos seus raciocínios premissas da teoria do
conhecimento contrária, isto é, materialista”61. Nestes seus raciocínios fragmentários, Mach posiciona-se
do ponto de vista do “realismo ingénuo”, isto é, a teoria materialista do conhecimento inconsciente e
espontaneamente tomada dos naturalistas.
De facto, da mesma forma que o idealismo inicial de Mach e Avenarius é geralmente
reconhecido na literatura filosófica, também é geralmente reconhecido que o empiriocriticismo se
esforçou posteriormente por se virar para o materialismo. Tal é reconhecido pelo escritor francês
Cauwelaert “que vê nos Prolegómenos de Avenarius um «idealismo monista», na Crítica da Experiência
Pura (1888-1890) «realismo absoluto»” (realismo aqui está a significar em oposição a idealismo), “e na
Concepção Humana do Mundo (1891) uma tentativa de explicar esta mudança”62. Cauwelaert tem em
vista o facto de que, na primeira obra, Avenarius toma a sensação como a única coisa existente e elimina a
substância segundo o “princípio da economia do pensamento” e que, na segunda obra, o físico é tomado
como a série independente e o psíquico e, consequentemente, as sensações como a série dependente.
Também Rudolf Willy, discípulo de Avenarius, reconhece que este era integralmente idealista em 1876 e
que posteriormente reconciliou com esta doutrina aquilo que chama “realismo ingénuo”. Oskar Ewald,
por seu turno, considera que a doutrina de Avenarius combina em si aspectos contraditórios idealistas e
“realistas” (deveria dizer-se materialistas). W. Wundt, que à semelhança destes autores, se situa num
ponto de vista idealista, considera uns aspectos do empiriocriticismo como materialismo e outros como
idealismo e a ligação entre eles artificial. (Não foi sem manifestações de repúdio por parte dos defensores
mais ortodoxos de Avenarius que estas acusações de materialismo feitas por Wundt foram recebidas: a
acusação de materialismo a um professor alemão era infame). Portanto, a admissão de uma série
independente por Avenarius, e também por Mach noutras palavras é, segundo a opinião geral de vários
filósofos de diferentes tendências em filosofia, tomada do materialismo. Porém, diz Lénine, “se partis de
que tudo quanto existe é sensação ou de que os corpos são complexos de sensações, não podeis, sem
destruir todas as vossas premissas fundamentais, toda a «vossa» filosofia, chegar à conclusão de que o
físico existe independentemente da nossa consciência e de que a sensação é uma função da matéria
organizada de determinada maneira. Mach e Avenarius reúnem na sua filosofia as premissas idealistas
fundamentais e certas conclusões materialistas precisamente porque a sua teoria é um exemplo das
«eclécticas sopas dos pobres» de que falava Engels com merecido desprezo”63.
61 idem, ibidem, p. 48-49.62 idem, ibidem, p. 45.63 idem, ibidem, p. 47-48.
Avenarius e a coordenação de princípio
Uma outra tentativa, com contornos semelhantes aos das precedentes, para procurar conciliar o
empiriocriticismo com aquilo que chamam “realismo ingénuo” é consumada na doutrina da “coordenação
de princípio” de Avenarius, exposta em O Conceito Humano do Mundo e nas Notas. Com esta doutrina,
pretende Avenarius, com quem Mach se solidariza nesta pretensão, reconhecer e defender o valor “da
concepção comum, não filosófica, ingénua, de todas as pessoas que não se põem a pensar se elas próprias
existem e se o meio, o mundo exterior, existe”, nas palavras de Lénine.
Esta pretensa defesa do “realismo ingénuo” assenta na tese da “indissolúvel coordenação” do
“nosso Eu e do meio”, nas palavras de Avenarius. “Exprimindo-nos filosoficamente” – continua
Avenarius – “pode dizer-se: o Eu e o Não-eu”. “Encontramo-los sempre juntos”. “Nenhuma descrição
completa do que é dado (ou encontrado por nós) pode conter o meio sem um Eu do qual esse meio seja o
meio, pelo menos sem o Eu que descreve o encontrado. O Eu é chamado termo central da coordenação, e
o meio contratermo”64.
Acontece que, tal como é demonstrado por Lénine, esta coordenação de princípio, esta
coordenação indissolúvel entre o meio e o Eu, contém exactamente a mesma essência dos argumentos
apresentados pelos representantes do idealismo subjectivo. Tal fica evidente pela leitura de um diálogo
numa obra de Fichte de 1801, representante clássico desta corrente filosófica, que Lénine transcreve, no
qual o autor, pela boca do “Filósofo”, aconselha o “Leitor” a não sair de si mesmo, a não abarcar mais do
que pode abarcar, a saber: a consciência e a coisa, a coisa e a consciência, ou, mais exactamente, nem
uma coisa nem outra separadamente65. “Na doutrina de Mach e Avenarius”, nota Lénine, “não há nada
além de uma paráfrase do idealismo subjectivo. As suas pretensões a terem-se elevado acima do
materialismo e do idealismo, a terem eliminado a contradição entre o ponto de vista que vai da coisa para
a consciência e o ponto de vista contrário, são uma vã pretensão de um fichteísmo renovado. […] Por
outras palavras, repete-se o argumento de Berkeley: eu só sinto as minhas sensações, não tenho o direito
de supor a existência dos «objectos em si» fora da minha sensação”66. Assumindo diferentes formas, a
tese fundamental é a mesma.
E Lénine acrescenta que a referência ao “realismo ingénuo” pretensamente defendido por esta
doutrina não passa de um “sofisma do tipo mais barato”. “O «realismo ingénuo» de todo o homem são
que não esteve no manicómio nem foi aluno dos filósofos idealistas, consiste em admitir que as coisas, o
meio, o mundo, existem independentemente da nossa sensação, da nossa consciência, do nosso Eu e do
homem em geral. […] A convicção «ingénua» da humanidade é conscientemente colocada pelo
materialismo na base da sua teoria do conhecimento”67.
A opinião de que a coordenação de princípio de Avenarius se trata de idealismo subjectivo é
64 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 51.65 Cf. V. I. Lénine, ibidem.66 idem, ibidem, p. 52.67 idem, ibidem.
partilhada não só por Lénine, como o próprio faz notar, mas também por vários autores de campos bem
distintos do materialismo, quer se tratem de partidários daquela filosofia (cujos termos dos elogios
acabam por clarificar o verdadeiro conteúdo destas posições), quer se encontrem em oposição a ela.
Referindo apenas dois dos casos apontados por Lénine, veja-se Wundt para quem esta teoria de Avenarius
é uma “falsa confusão do conteúdo da experiência real com o raciocínio acerca dela”68. Para Norman
Smith, recordando que “Avenarius argumenta que o pensamento é uma forma da experiência tão
verdadeira como a percepção sensorial, voltando assim ao velho argumento já caduco do idealismo
subjectivo, a saber que o pensamento e a realidade são inseparáveis, porque a realidade só pode ser
percebida pelo pensamento e o pensamento supõe a existência daquele que pensa”, considera que “não é
um restabelecimento original e profundo do realismo, mas simplesmente o restabelecimento do idealismo
subjectivo na sua forma mais crua, o resultado final das especulações positivas de Avenarius” 69.
“A natureza existia antes do homem?”
A questão de saber se a natureza existia antes do homem é, como põe Lénine, “particularmente
venenosa para a filosofia de Mach e Avenarius”70. A contradição específica presente aqui consiste em que,
enquanto as ciências da natureza afirmam que a terra existia antes do homem, que houve um momento em
que não existia matéria dotada de sensibilidade, o empiriocriticismo supõe necessariamente (e na base da
sua filosofia) a existência de um ser sensível para o qual as coisas sejam complexos de sensações e sem o
qual as coisas não são (Mach) ou de um Eu em ligação indissolúvel com o meio (Avenarius). Como diz
Lénine: “As ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu num estado em que nem o
homem nem nenhum ser vivo em geral nela existia ou podia existir. A matéria orgânica é um fenómeno
posterior, fruto de um prolongado desenvolvimento. Quer dizer que não havia matéria dotada de
sensibilidade, não havia nenhuns «complexos de sensações», nenhum Eu que estivesse
«indissoluvelmente» ligado ao meio, segundo a doutrina de Avenarius. A matéria é o primário, o
pensamento, a consciência, a sensação, são produto de um desenvolvimento muito elevado. Tal é a teoria
materialista do conhecimento, espontaneamente adoptada pelas ciências da natureza” 71.
É claro, comenta Lénine, que os empiriocriticistas notaram esta dificuldade e procuraram
ultrapassá-la: “notaram e colocaram abertamente a questão de saber por meio de que raciocínios se deve
eliminar esta contradição”72. Avenarius tenta eliminar esta contradição com as ciências da natureza, diz
Lénine, através da introdução da teoria do termo central “potencial” da coordenação, que consiste,
recordemos, na ligação indissolúvel entre o Eu e o meio. Assim, para, digamos, responder à questão,
relativa ao desenvolvimento do homem, de saber se existe um contratermo (meio) se o termo central é um
68 Wundt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 53.69 Norman Smith cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 54.70 V. I. Lénine, ibidem, p. 56.71 idem, ibidem, p. 56-57.72 idem, ibidem, p. 57.
embrião, Avenarius diz que o sistema embrionário C é o termo central potencial em relação ao meio
individual futuro e que este nunca é igual a zero, mesmo quando ainda não existem pais, mas apenas
partes constituintes do meio, capazes de se tornarem pais73. “Assim, a coordenação é indissolúvel!”,
afirma Lénine com ironia, perguntando com Wundt, se isto não se tratará de um obscurecimento místico,
se não se tratará da antecâmara imediata do fideísmo. E acrescenta: “se é possível pensar num termo
central potencial em relação ao meio futuro, porque não pensar nele em relação ao meio passado, isto é,
após a morte do homem?”74. Esta introdução na teoria de Avenarius, que resulta apenas da necessidade de
se procurar conciliar com os conhecimentos adquiridos pelas ciências “a fim de salvar os fundamentos da
sua filosofia”, não faz mais do que introduzir elementos obscurantistas, místicos e abrir a porta ao
fideísmo. Não será por acaso que, como Lénine chama a atenção, será a ela que Schubert-Soldern se
referirá para tirar conclusões teológicas.
A solução para este problema – o de, nas palavras de Avenarius, parecer que do ponto de vista do
empiriocriticismo as ciências da natureza não têm o direito de pôr a questão dos períodos do nosso meio
actual que precederam no tempo a existência do homem – passa por esclarecer o naturalista que o que ele
faz, na verdade, é simplesmente pensar-se na qualidade de espectador: “quem pergunta”, diz Avenarius,
“não pode evitar acrescentar-se mentalmente a si mesmo”75. O mesmo, exactamente o mesmo, diz Fichte:
“acrescentarmo-nos sempre mentalmente a nós mesmos, como a razão que procura conhecer a coisa” 76.
Mais uma vez, a posição do “positivista moderno” Richard Avenarius e do idealista subjectivo J. G.
Fichte coincidem, ficando assim mais clara a verdadeira natureza da filosofia empiriocriticista. A sofística
desta teoria, diz Lénine, é evidente:
“Se nos «acrescentarmos mentalmente», a nossa presença será imaginária, mas a existência da
Terra antes do homem é real. De facto, o homem não pôde, por exemplo, ser espectador do estado
incandescente da Terra, e «pensar» a sua presença nessa altura é obscurantismo, perfeitamente
como que se eu me pusesse a defender a existência do inferno com o seguinte argumento: se eu
me «acrescentasse mentalmente» como observador, poderia observar o inferno. A «conciliação»
do empiriocriticismo com as ciências da natureza consiste em que Avenarius acede gentilmente a
«acrescentar mentalmente» aquilo cuja admissibilidade as ciências da natureza excluem.”77
Os discípulos de Avenarius, J. Petzoldt e R. Willy, encaram esta questão de forma diferente.
Petzoldt, procura fugir às conclusões absurdas do idealismo subjectivo de Avenarius. Para ele, seria fácil
evitar os “falsos caminhos” trilhados por Avenarius se não se der tão grande importância teórica ao Eu.
“A única coisa que a teoria do conhecimento deve exigir, tendo em conta as diferentes concepções do que
está afastado de nós no espaço e no tempo, é que seja concebível e possa ser univocamente determinado
[...]”78. Petzoldt rebaptizou a lei da causalidade por lei da determinação unívoca e introduziu a
73 Cf. idem, ibidem.74 idem, ibidem.75 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 58.76 Fichte cit. por V. I. Lénine, ibidem.77 V. I. Lénine, ibidem.78 idem, ibidem, p. 60.
aprioridade desta lei, diz Lénine. “Isto significa” – continua – “que Petzoldt se salva do idealismo
subjectivo e do solipsismo de Avenarius” e se aproxima do idealismo kantiano79.
Willy, que também reconheceu a mesma dificuldade na doutrina de Avenarius, concorda
inicialmente com ele (“nós transportamo-nos mentalmente para o passado”), mas acaba por afirmar, numa
dada fase, que não é obrigatório que se entenda a experiência por experiência humana: podemos
“simplesmente encarar o mundo animal – seja o verme mais insignificante – como homens primitivos” 80.
Assim, explicita Lénine, “antes do homem a Terra era a «experiência» do verme, que exercia a função de
«termo central» para salvar a «coordenação» de Avenarius e a filosofia de Avenarius!” 81. Acabaria por
abandonar a ideia do verme uma vez que ela também não resolvia o problema da Terra existir ainda antes
de quaisquer seres vivos, mas deixaria escapar a confissão: ou materialismo, ou o solipsismo ou “agarra o
momento”.
Lénine aborda também a forma como os machistas russos expuseram esta questão. Analisando as
posições de Bazárov e Valentínov, não encontra nelas mais do que “um amontoado incoerente de
palavras”82.
Ludwig Feuerbach, filósofo materialista que influenciou Marx e Engels na sua passagem do
idealismo de Hegel à sua filosofia materialista83, expõe a posição materialista de forma simples e
particularmente elucidativa:
“A natureza, que não é objecto do homem ou da consciência, evidentemente é para a filosofia
especulativa, ou pelo menos para o idealismo, uma coisa em si kantiana, uma abstracção sem
realidade, mas é justamente a natureza que leva ao fracasso do idealismo. As ciências da natureza
conduzem-nos necessariamente, pelo menos no seu estado actual, a um ponto em que ainda não
havia condições para a existência humana, em que a natureza, isto é, a Terra, ainda não era
objecto do olho humano e da consciência do homem, em que a natureza era, consequentemente,
um ser absolutamente não humano. O idealismo pode replicar a isto: mas esta natureza é uma
natureza pensada por ti. Certamente, mas daí não se segue que esta natureza não existia realmente
num determinado período de tempo, precisamente do mesmo modo que da circunstância de
Sócrates e Platão não existirem para mim se eu não pensar neles não decorre que Sócrates e
Platão no seu tempo não existiram na realidade sem mim.”84
“O homem pensa com o cérebro?”
Com outro problema se defronta o empiriocriticismo quando se põe a questão de saber qual a
origem do pensamento. A resposta dada por esta filosofia à pergunta “o homem pensa com o cérebro?” é
79 idem, ibidem.80 R. Willy cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 61.81 V. I. Lénine, ibidem.82 idem, ibidem, p. 65.83 Cf. idem, ibidem, p. 63.84 L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 63-64.
claramente oposta à resposta dada pelas ciências da natureza e pela filosofia materialista. Para Avenarius,
“o nosso cérebro não é a morada, o assento, o criador, não é o instrumento ou o órgão, o portador, o
substracto, etc., do pensamento”, “o pensamento não é […] nem um produto nem mesmo uma função
fisiológica ou mesmo um estado geral do cérebro”, “as representações” “não são funções do cérebro” 85.
Para os materialistas, como Lénine chama a atenção através do Anti-Dühring de Engels, “o pensamento e
a consciência são produtos do cérebro humano”. Avenarius rejeita este ponto de vista que reconhece ser o
das ciências da natureza chamando “fetichismo das ciências da natureza” ao pensamento do cérebro e
declara-se abertamente em divergência absoluta com a psicologia dominante86.
Para procurar justificar a tese de que o homem não pensa com o cérebro, Avenarius adoptará uma
linha de argumentação semelhante à adoptada a propósito do “realismo ingénuo”, denuncia Lénine: “a
sofística é aqui exactamente a mesma que observamos no exemplo da famosa coordenação” 87. Avenarius
afirma que aquilo a que chama introjecção, isto é, a introdução do pensamento no cérebro ou das
sensações em nós, que a psicologia dominante defende (em vez de dizer perante nós) afasta-se do
“conceito natural do mundo” “fazendo da parte integrante do meio (real) parte integrante do pensamento
(ideal), o que é algo “misteriosamente oculto”88. Isto é, clarifica Lénine, Avenarius, “desviando a atenção
do leitor por meio de ataques contra o idealismo”, a propósito de uma pretensa defesa de um “realismo
ingénuo”, batendo-se contra a suposta transformação do mundo exterior em representação, acaba a
defender de facto, “com palavras um pouco diferentes, esse mesmo idealismo: o pensamento não é função
do cérebro, o cérebro não é o órgão do pensamento, as sensações não são função do sistema nervoso, não,
as sensações são «elementos», apenas psíquicos numa ligação, enquanto noutra ligação (se bem que
«idênticos») são físicos”89.
Mais uma vez, perante tal filosofia professoral, nas palavras de Lénine, os machistas russos
morderam o isco. Bogdánov acreditou que Avenarius se dirigia contra o idealismo “sem notar a farpa
dirigida contra o materialismo”. Não repara que, na teoria de Avenarius, o “dualismo” é refutado, mas de
maneira idealista porque, diz Lénine, a sensação e o pensamento não aparecem como o secundário, como
um produto da matéria, mas como o primário. O dualismo é aqui refutado por Avenarius apenas na
medida em que «refuta» a existência do objecto sem sujeito, da matéria sem pensamento, do mundo
exterior independentemente das nossas sensações”90. Uma eliminação materialista do “dualismo do
espírito e do corpo” (isto é, do monismo materialista), contrasta Lénine, “consiste em que o espírito não
existe independentemente do corpo, em que o espírito é o secundário, uma função do cérebro, o reflexo
do mundo exterior. A eliminação idealista do «dualismo do espírito e do corpo» (isto é, monismo
idealista) consiste em que o espírito não é função do corpo, em que o espírito é, por conseguinte, o
primário, em que o «meio» e o «Eu» só existem numa ligação indissolúvel dos mesmos «complexos de
85 R. Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 65.86 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 66.87 idem, ibidem, p. 67.88 Cf. idem, ibidem, p. 66.89 idem, ibidem, p. 67.90 idem, ibidem.
elementos»”91.
Mas os filósofos de ofício não são tão ingénuos e crédulos como os machistas russos, repara
Lénine. Referindo apenas alguns, veja-se o idealista Wundt que, segundo Lénine, arrancou
descortesmente a máscara a Avenarius ao elogiá-lo pela sua tendência antimaterialista. Já para O. Ewald,
esta teoria “não é mais do que uma ficção do empiriocriticismo, que lhe é necessária para encobrir os seus
erros” e que Avenarius se lançara em guerra contra o idealismo e depusera as armas perante o idealismo
antes da luta aberta com ele92.
5. O mundo é cognoscível
Da “coisa em si” incognoscível à “coisa para nós” cognoscível
Lénine, em defesa da teoria materialista do conhecimento, confrontou-se não só com machistas
que confessadamente se colocavam no campo oposto do marxismo, como o caso de Tchernov (que
desenvolve contra Engels, uma campanha por causa da “coisa em si”), mas também com quem, se
dizendo marxista, deturpava (ou “ajeitava”) as posições fundamentais desta corrente filosófica, em nome
do machismo, como é o caso de Bazárov.
Ao desarticular a argumentação de Tchernov e Bazárov, Lénine expõe e clarifica de forma
particularmente profícua o posicionamento de várias correntes filosóficas em relação à origem e
possibilidade do conhecimento do mundo que nos rodeia e afirma e defende a posição materialista tal
como é exposta por Marx e Engels: a origem do nosso conhecimento é o mundo exterior que provoca
impressões nos nossos órgãos dos sentidos e o nosso pensamento é capaz de reflectir verdadeiramente
esse mundo fora de nós.
No início deste trabalho fez-se referência à “grande questão fundamental de toda a filosofia” que
é “a questão da relação do pensamento com o ser, do espírito com a natureza” e que divide os filósofos
em “dois grandes campos” (Engels) e para que aqui Lénine chama a atenção. Mas Engels, no seu Ludwig
Feuerbach, linhas abaixo, afirma também que “há ainda um outro aspecto” da questão fundamental da
filosofia: “que relação existe entre os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia e este próprio
mundo? O nosso pensamento é capaz de conhecer o mundo real? Podemos nós, nas nossas representações
e conceitos sobre o mundo real, formar um reflexo correcto da realidade? A imensa maioria dos filósofos
responde afirmativamente a esta questão”93, incluindo aqui, reafirma Lénine, não só todos os
materialistas, mas também os idealistas mais consequentes, como Hegel. “Mas ao lado destes”, continua
Engels, “existe uma série de outros filósofos que contestam a possibilidade de conhecer o mundo ou, pelo
91 idem, ibidem, p. 68.92 Cf. idem, ibidem.93 F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 75.
menos, de o conhecer completamente. Contam-se ente eles, dos modernos, Hume e Kant, e eles
desempenharam um papel muito importante no desenvolvimento filosófico [...]”94.
Lénine transcreve uma passagem de Engels na qual ele põe de forma clara e resumida a posição
característica do agnosticismo, corrente cujos partidários defendem que são as sensações a fonte do nosso
conhecimento e que não podemos ir para além das sensações: nada podemos saber sobre a
correspondência entre elas e o que as origina, defendem. Engels diz:
“O nosso agnóstico admite que todo o conhecimento se baseia nas informações que nos são
transmitidas pelos sentidos […] Mas, acrescenta (o agnóstico), como sabemos que os nossos
sentidos nos transmitem representações correctas dos objectos que percebemos através deles? E
informa-nos então de que, sempre que fala de objectos ou das suas qualidades, na realidade não se
refere a estes objectos e qualidades, dos quais nada pode saber seguramente, mas apenas às
impressões que eles lhes produziram nos sentidos”95.
Lénine chama a atenção, em primeiro lugar, para as semelhanças, que esta citação evidencia,
entre o agnosticismo e a teoria de Mach. O agnóstico (humista) parte, tal como os machistas, das
sensações e não reconhece nenhuma outra fonte de conhecimentos. O agnóstico é, pois, como Lénine põe,
um “«positivista» puro, diga-se para informação dos partidários do «positivismo moderno»!”96. A
introdução de novas palavras, nota Lénine, não é suficiente para disfarçar o facto de as sensações, ao
serem chamadas de elementos, não deixarem de ser sensações. Acaso não notaram, pergunta Lénine, que
o agnóstico também põe “impressões” em lugar das próprias coisas? E Lénine conclui que “portanto, no
fundo, o agnóstico também distingue as «impressões» físicas e psíquicas”, tal como o fazia Mach. E
acrescenta a seguinte importante observação: “quando Mach diz: os corpos são complexos de sensações,
então Mach é berkeleyano. Quando Mach «se corrige» dizendo: os «elementos» (as sensações) podem ser
físicos numa ligação, e psíquicos noutra, então Mach é agnóstico, humista. Na sua filosofia Mach nunca
sai destas duas linhas […]”97.
Em segundo lugar, Lénine evidencia que, na citação referida, Engels contrapõe duas linhas
filosóficas: uma linha que defende que os sentidos dão origem a representações das coisas, que nós
conhecemos estas próprias coisas, que o mundo exterior actua sobre os nossos órgãos dos sentidos; e
outra linha cuja essência é não ir além das sensações, que se detém “deste lado dos fenómenos”, que se
recusa a ver algo de seguro para além do limite das sensações e que nada podemos saber de seguro sobre
estas próprias coisas. A primeira linha é o materialismo, a segunda o agnosticismo. O materialista afirma
a existência e cognoscibilidade das coisas em si, o agnóstico ou declara incognoscível a coisa em si ou
não admite sequer a sua existência.
Engels colocava tanto Hume como Kant no grupo de filósofos que contestavam a possibilidade
de conhecer o mundo, pelo menos de forma exaustiva: considerava-os agnósticos. No entanto, Lénine
94 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.95 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 81.96 V. I. Lénine, ibidem.97 idem, ibidem, p. 81-82.
porá em destaque – numa resposta a Tchernov quando este protesta com Engels pela forma como,
alegadamente, Engels teria refutado a “coisa em si”– o conteúdo específico daquilo que une estes dois
filósofos, mas também das diferenças que os separam. Lénine esclarece que o que Engels refuta é a coisa
em si inapreensível de Kant (já veremos de que forma). Ora, Engels contesta ao mesmo tempo Hume e
Kant, continua Lénine. Como em Hume não se encontram nenhumas «coisas em si incognoscíveis», o
que há de comum entre estes dois filósofos é o facto de eles separarem por princípio o “«aparecer»
daquilo que aparece, a sensação daquilo que é sentido, a coisa para nós da «coisa em si»”. Assim, como
Lénine esclarece, para Hume, a «coisa em si» é inadmissível em filosofia, «metafísica». Para Kant, pelo
contrário, «coisa em si» existe, mas é «incognoscível», fundamentalmente diferente do fenómeno,
pertencente a um domínio fundamentalmente diferente, inacessível ao saber, mas revelado pela fé98.
Numa outra ocasião, em que responde, desta vez, a Bazárov, Lénine esclarece também que “o idealismo
só começa quando o filósofo diz que as coisas são sensações nossas; o kantismo começa quando o
filósofo diz: a coisa existe, mas é incognoscível. ”99.
A refutação determinante do ponto de vista agnóstico reside na prática. No seu Ludwig
Feuerbach, Engels afirma que “a refutação mais decisiva destas e de todas as outras fantasias (ou
invenções) filosóficas é a prática, designadamente a experiência e a indústria”. E continua:
“Se podemos provar a justeza da nossa concepção de um dado fenómeno da natureza produzindo-
o nós mesmos, criando-o a partir das suas condições, e além disso o fazemos servir os nossos fins,
acaba-se a «coisa em si» inapreensível (ou inconcebível) de Kant. As substâncias químicas
produzidas nos corpos dos animais e das plantas permaneceram «coisas em si» enquanto a
química orgânica não começou a produzi-las uma após outra; desse modo, a «coisa em si» tornou-
se uma «coisa para nós», como, por exemplo, a alizarina, a substância corante da garança, que
obtemos agora não das raízes da garança cultivada no campo, mas muito mais barato e mais
simplesmente de alcatrão da hulha.”100
Mas a Tchernov parece-lhe “estranho e ingénuo” este simples exemplo de Engels, nota Lénine.
“Ele [Tchernov] só considera filosofia as fantasias doutorais, não sabendo distinguir o eclectismo
professoral da teoria materialista consequente do conhecimento”101, diz.
Engels, no prefácio à edição inglesa Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, referindo-
se à linha de raciocínio do agnosticismo, põe a questão da seguinte forma:
“Ora esta linha de raciocínio é, sem dúvida, difícil de rebater pela mera argumentação. Mas antes
de existir a argumentação houve a acção. […] E a acção humana resolvera a dificuldade muito
antes de o engenho humano a inventar. The proof of the pudding is in the eating” (a prova do
pudim está em comê-lo). “A partir do momento em que damos a estes objectos o nosso próprio
uso, de acordo com as qualidades que neles percebemos, submetemos a um teste infalível a
98 Cf. idem, ibidem, p. 77.99 idem, ibidem, p. 83.100F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.76.101V. I. Lénine, ibidem, p. 78.
exactidão ou não das nossas percepções sensoriais. Se estas percepções estiverem erradas, então a
nossa estimativa do uso a dar a um objecto tem também de estar errada, e a nossa tentativa tem de
falhar. Mas se somos bem sucedidos, se descobrimos que o objecto está de acordo com a ideia que
temos dele, e que serve para o fim a que o destinámos, então teremos uma prova positiva de que
as nossas percepções do objecto e das suas qualidades, nesta medida, estão de acordo com a
realidade que existe fora de nós próprios...” […] “E sempre que nos encontramos perante um
fracasso, não levamos, de um modo geral, muito tempo a reconhecer a causa do nosso fracasso;
descobrimos que a percepção sobre a qual agimos ou era incompleta e superficial ou aparecia
combinada com os resultados de outras percepções de uma forma que estas não justificavam...”102.
Afirma Lénine que a teoria materialista, a teoria do reflexo dos objectos pelo pensamento, está
aqui exposta com toda a clareza: “fora de nós existem coisas. As nossas percepções e representações são
imagens delas. A comprovação destas imagens, e distinção entre as verdadeiras e as falsas, é dada pela
prática”103. “Qual a essência da objecção de Engels?” ao ponto de vista agnóstico, pergunta Lénine.
“Ontem não sabíamos que no alcatrão da hulha existia alizarina. Hoje sabemo-lo. Pergunta-se:
ontem existia alizarina no alcatrão da hulha? Claro que sim. Qualquer dúvida a este respeito seria
escarnecer das ciências da natureza contemporâneas. E se assim é, decorrem daqui três
importantes conclusões gnosiológicas:
1) As coisas existem independentemente da nossa consciência, independentemente da nossa
sensação, fora de nós, porque é indubitável que a alizarina existia ontem no alcatrão da hulha, e é
igualmente indubitável que ontem nós não sabíamos nada desta existência, que não recebíamos
nenhumas sensações desta alizarina.
2) Não há nem pode haver absolutamente nenhuma diferença de princípio entre o fenómeno e a
coisa em si. A diferença existe simplesmente entre o que é conhecido e aquilo que não é ainda
conhecido, e as invenções filosóficas acerca da existência de limites especiais entre uma coisa e
outra, acerca de que a coisa em si se encontra «além» dos fenómenos (Kant), ou de que podemos
e devemos separar-nos com uma barreira filosófica da questão do mundo ainda não conhecido
numa ou noutra parte, mas existente fora de nós (Hume) – tudo isto é absurdo, Schrulle, fantasias,
invenções.
3) Na teoria do conhecimento, como em todos os outros domínios da ciência, deve-se raciocinar
dialecticamente, isto é, não supor o nosso conhecimento acabado e imutável, mas analisar de que
modo da ignorância nasce o conhecimento, de que modo o conhecimento incompleto, impreciso,
se torna mais completo e mais preciso.”104
Esta citação, apesar de longa, é da maior pertinência para o presente trabalho: nela se afirma o
conhecimento como processo dialéctico, a inexistência de diferenças de princípio entre o fenómeno e a
coisa em si e se indica a prática como o critério para refutar as teses da incognoscibilidade do mundo. E
Lénine continua:
102F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 82-83.103V. I. Lénine, ibidem.104idem, ibidem, p. 77-78.
“Uma vez adoptado o ponto de vista de que o conhecimento humano se desenvolve a partir da
ignorância, vereis que milhões de exemplos, tão simples como a descoberta da alizarina no
alcatrão da hulha, milhões de observações extraídas não só da história da ciência e da técnica, mas
da vida quotidiana de todos e de cada um, mostram ao homem a transformação das «coisas em si»
em «coisas para nós», o aparecimento dos «fenómenos» quando os nossos órgãos dos sentidos
experimentam um impulso do exterior proveniente de tal ou tal objecto e o desaparecimento dos
«fenómenos» quando tal ou tal obstáculo elimina a possibilidade de acção sobre os nossos órgãos
dos sentidos de um objecto que manifestamente existe. A única e inevitável conclusão daí – que
tiram todos os homens na prática humana viva e que o materialismo põe conscientemente na base
da sua gnosiologia – consiste em que fora de nós e independentemente de nós existem objectos,
coisas, corpos, em que as nossas sensações são imagens do mundo exterior.”105
É precisamente na transformação da “coisa em si” em “coisa para nós” que consiste o processo
do conhecimento.
Lénine toma ainda o exemplo de outros filósofos que, para além de Marx e Engels, contestaram
resolutamente, a partir um ponto de vista materialista, a existência de qualquer linha de demarcação de
princípio entre o fenómeno e a coisa em si: Ludwig Feuerbach e Joseph Dietzgen106.
Feuerbach – para quem o “em si” é directamente contrário ao “em si” kantiano – acusa Kant de,
para ele, a “coisa em si” ser uma “abstracção sem realidade”, enquanto que, para si, Feuerbach, a “coisa
em si” é uma “abstracção com realidade”, nota Lénine. Para Dietzgen, “o «mundo em si» e o mundo tal
como nos aparece, os fenómenos do mundo, não se distinguem um do outro mais do que o todo se
distingue da parte”.
De um ponto de vista materialista, não se pode, portanto, separar por princípio o aparecer
daquilo que aparece, não se pode estabelecer nenhuma linha de demarcação de princípio entre o
fenómeno e a coisa em si. Tal linha é desenhada pelos agnósticos. Bazárov, que afirma colocar-se no
campo marxista, referindo-se a uma “saída para além dos limites do mundo dado pelos sentidos” 107,
afirma que Engels “não manifesta em parte nenhuma o desejo de realizar este «transcensus»”. Ao analisar
esta afirmação, Lénine – constatando em primeiro lugar que ela carece de sentido pois “se tivesse posto a
questão de modo inteligível, veria claramente que o mundo exterior está «para além dos limites das
sensações», das percepções e das representações do homem”108 - esclarece a questão e chama a atenção
para a forma como a palavra transcensus trai Bazárov pois esse transcensus pressupõe tal linha de
demarcação. A sua introdução é própria dos agnósticos (incluindo humistas e kantistas) e dos idealistas,
105idem, ibidem, p. 78.106Joseph Dietzgen foi um operário alemão e filósofo que chegou por si mesmo ao materialismo dialéctico e cujas
ideias, apesar de erros e imprecisões, Marx considerava dignas de admiração. Lénine afirma em Materialismo e Empiricoriticismo, que “a sua maneira de se exprimir é frequentemente imprecisa, que cai frequentemente em confusões, às quais se agarraram pessoas de pouca inteligência [...] e, naturalmente, os nossos machistas. Mas analisar a linha predominante da sua filosofia, separar claramente o materialismo dos elementos alheios, isso eles não se deram ao trabalho ou não souberam fazê-lo.” idem, ibidem, p. 90.
107idem, ibidem, p. 87.108idem, ibidem.
nota Lénine, mas não dos materialistas.
“Passar do fenómeno ou, se se quiser, da nossa sensação, percepção, etc., à coisa existente fora da
percepção é um transcensus, diz Kant, e admitimos esse transcensus não para o conhecimento,
mas para a fé. Não admitimos de modo nenhum o transcensus – replica Hume. E os kantianos, tal
como os humistas, chamam aos materialistas realistas transcendentais, «metafísicos», que
realizam uma passagem (em latim, transcensus) ilícita de um domínio para outro domínio
fundamentalmente diferente”109.
Algumas deturpações (e reposições) da posição materialista
Tchernov, recorrendo a uma má tradução de Plekhánov da segunda tese de Marx sobre
Feuerbach110 e a propósito de uma alegada contradição entre Marx e Engels, sublinha que tal contradição
é eliminada uma vez que ambos teriam afirmado a cognoscibilidade das coisas em si e o carácter além-
terreno do pensamento. Em resposta a Tchernov, Lénine replica que é analfabetismo afirmar que da
versão de Plekhánov resulta que Marx defende o carácter além-terreno do pensamento, “porque só os
humistas e os kantianos detêm o pensamento humano «deste lado dos fenómenos». Para todos os
materialistas, incluindo os materialistas do século XVII […], os «fenómenos» são «coisas para nós» ou
cópias dos «objectos em si»”111. Além disso, “é ignorância […] ou desleixo sem limites, saltar logo por
cima da primeira frase da tese, sem pensar que a «verdade objectiva» do pensamento não significa outra
coisa senão a existência dos objectos (= «coisas em si») reflectidos verdadeiramente pelo pensamento”112.
Quando Bazárov recorre à expressão “imediatamente dado”, tão cara dos machistas, incorre
numa mistificação, nota Lénine, quando atribui a Plekhánov, “como a todos os idealistas” (diz Bazárov) a
opinião de que “tudo o que é dado pelos sentidos, isto é, conhecido, é «subjectivo», que partir apenas do
que é dado de facto significa ser solipsista, que o ser real só pode ser encontrado para além de tudo o que
é imediatamente dado”113. Ora, nesta citação, Bazárov mistura a distinção entre o idealismo, agnosticismo
e materialismo. É que, como explica Lénine, para o materialista, o “dado de facto” é o mundo exterior de
que as nossas sensações são imagem; para o idealista, o “dado de facto” é a sensação e o mundo exterior é
um complexo de sensações; para o agnóstico o “imediatamente dado” é também a sensação, mas não vai
mais além, “nem em direcção ao reconhecimento materialista da realidade do mundo exterior, nem em
direcção ao reconhecimento idealista do mundo como nossa sensação”114.Da mesma forma, não faz
109idem, ibidem.110“A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva – não é uma questão da teoria, mas
uma questão prática. É na prática que o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensamento – que está isolado da prática – é uma questão puramente escolástica”. Marx cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 78.
111 V. I. Lénine, ibidem, p. 79.112 idem, ibidem.113 idem, ibidem, p. 84.114 idem, ibidem.
sentido perguntar “como é que sabemos que os nossos sentidos subjectivos nos fornecem uma
representação correcta das coisas?”, tal como Bazárov imputa aos agnósticos, porque, como diz Lénine,
Engels não atribui aos agnósticos um absurdo como os sentidos subjectivos já que o homem não raciocina
de outro ponto de vista que não o do homem.
Outro momento em que Bazárov confunde as coisas, nota Lénine, é quando diz que: “correcto é
aquilo que é confirmado pela nossa prática; consequentemente, porquanto as nossas percepções sensoriais
são confirmadas pela experiência, não são «subjectivas», isto é, não são arbitrárias ou ilusórias, mas
correctas, reais, como tais...”115. Confunde as coisas porque encobre a questão da existência das coisas
fora das nossas representações com a questão da correcção das nossas representações destas coisas. E,
complementa Lénine, não se pode ser materialista sem reconhecer a existências das coisas fora da nossa
consciência, mas pode-se sê-lo tendo opiniões diferentes acerca do critério da correcção das imagens que
os sentidos nos fornecem116. Além disso, confunde também quando atribui a Engels na discussão com o
agnóstico a fórmula segundo a qual as nossas percepções são confirmadas pela experiência porque
Engels, como nota Lénine, não podia aqui ter empregue a palavra experiência uma vez que sabia que
“tanto o idealista Berkeley como o agnóstico Hume e o materialista Diderot recorrem à experiência”.
Veja-se um outro exemplo assinalado por Lénine em que Bazárov “ajeita” Engels e, com isso, cai
em afirmações de natureza idealista ou agnóstica: “Nos limites em que na prática temos relações com as
coisas, as representações do objecto e das suas qualidades coincidem com a realidade que existe fora de
nós. […] Coincidem significa: nos limites dados, a representação sensorial é (itálico de Bazárov)
precisamente a realidade que existe fora de nós...”117. Isto é, diz Lénine, “exactamente o absurdo
fundamental, a confusão e a falsidade fundamentais do machismo, de que resultou a restante algaraviada
desta filosofia”118. E continua: “dizer «a representação sensorial é precisamente a realidade que existe fora
de nós» - significa voltar ao humismo ou mesmo ao berkeleyanismo escondido no nevoeiro da
«coordenação»”119. Uma posição materialista não se coaduna, portanto, com tal afirmação: para se manter
num ponto de vista materialista deveria ter dito que a representação sensorial é a imagem da realidade que
existe fora de nós. Uma e outra não são idênticas.
Lénine faz ainda referência a outra deturpação feita por Bazárov das posições materialistas
fundamentais. Da reposição por Lénine do verdadeiro sentido das afirmações de Engels que Bazárov
refaz em seu proveito, resulta a colocação da posição materialista a respeito da unidade do mundo. Ora,
Bazárov atribui a Engels a afirmação de que “o «ser» fora do mundo sensível é uma «offene Frage», isto
é, uma questão para cuja solução e até mesmo colocação não temos nenhuns dados” 120. Mas o que Engels
diz no seu Anti-Dühring, e que Bazárov não cita, é que “a unidade do mundo não consiste no seu ser,
115Bazárov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 85.116Cf. V. I. Lénine, ibidem.117Bazárov cit. por V. I. Lénine ibidem.118V. I. Lénine, ibidem.119 idem, ibidem, p. 86.120Bazárov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 87.
embora o seu ser seja uma premissa da sua unidade, pois o mundo tem primeiro que existir antes de poder
ser uno. O ser é, em geral, uma questão em aberto (offene Frage), a partir do ponto em que termina o
nosso campo de visão (Gesichtskreis). A unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta não
se prova com um par de frases de prestidigitação, mas com um longo e difícil desenvolvimento da
filosofia e das ciências da natureza”121. Não é o ser fora do mundo sensível que é uma questão em aberto,
pois para os materialistas não há dúvidas quanto à existência do ser fora da sua percepção. Engels fala
claramente do ser para além do ponto em que acaba o nosso ponto de visão. “Com efeito”, nota Lénine,
“o fideísmo afirma positivamente que existe algo «fora do mundo sensível». Os materialistas, solidários
com as ciências da natureza, negam-no resolutamente. No meio estão os professores, os kantianos, os
humistas (incluindo os machistas) e outros que «encontraram a verdade fora do materialismo e do
idealismo» e que «conciliam»: é uma questão em aberto, dizem”122.
6. A verdade objectiva vs. a verdade como “forma organizadora da experiência humana”. A realidade
objectiva como a fonte das sensações
Para Lénine, o problema da verdade objectiva é uma das questões filosóficas fundamentais123. Ao
tratar esta questão, Lénine comenta a posição de Bogdánov que não se reconhece machista mas que,
como vimos, subscreve as posições fundamentais desta doutrina. Bogdánov nega a verdade objectiva.
Mas tal negação, como sublinha Lénine, não lhe pertence pessoalmente. Decorre, sim, dos fundamentos
da doutrina de Mach e Avenarius124: “a objectividade é definida de tal maneira que esta definição inclui a
doutrina da religião»125”.
A propósito de uma uma afirmação de Bogdánov – na qual declara que, para ele, o marxismo
contém uma negação da objectividade incondicional de qualquer verdade, a negação de todas as verdades
eternas, devendo esta ser entendida como a verdade objectiva no sentido absoluto da palavra – Lénine
evidencia que nela estão duas questões confundidas e coloca a questão nos seus termos correctos:
“1) existe uma verdade objectiva, isto é, pode haver nas representações humanas um conteúdo
que não depende do sujeito?
2) se sim, podem as representações humanas que exprimem a verdade objectiva exprimi-la de
uma vez, integralmente, incondicionalmente, absolutamente, ou apenas de maneira aproximada,
relativa? Esta segunda questão é a questão da relação entre a verdade absoluta e a verdade
relativa”126.
Bogdánov defende a verdade como “uma forma ideológica, uma forma organizadora da
121F. Engels cit por V. I. Lénine, ibidem, p. 87-88.122V. I. Lénine, ibidem, p. 88.123Cf. idem, ibidem, p. 92.124Cf. idem, ibidem, p. 94.125idem, ibidem, p. 93.126idem, ibidem, p. 92.
experiência humana”127. Nesta afirmação está presente a negação da verdade objectiva pois “se a verdade
é somente uma forma ideológica, quer dizer que não pode haver verdade independente do sujeito, da
humanidade [...], se a verdade é uma forma da experiência humana, não pode haver verdade independente
da humanidade, não pode haver verdade objectiva”128, replica Lénine. Aceitar que a verdade é apenas uma
forma organizadora da experiência é aceitar, por exemplo, que a doutrina do catolicismo é uma verdade,
denuncia Lénine, “porque está de fora de qualquer dúvida que o catolicismo é uma «forma organizadora
da experiência humana»”129.
Bogdánov, procurando evitar cair em tais conclusões, remete o fundamento da objectividade para
a esfera da experiência colectiva: “A objectividade dos corpos físicos que encontramos na nossa
experiência é estabelecida, em última análise, na base da verificação mútua e da concordância das
opiniões de diferentes pessoas. Dum modo geral, o mundo físico é a experiência socialmente concertada,
socialmente harmonizada, numa palavra, a experiência socialmente organizada”130. Esta é uma definição
idealista, considera Lénine de forma peremptória. A afirmação das ciências da natureza de que a Terra
existia antes da humanidade é uma verdade objectiva, afirma Lénine131. Ora, “se a verdade é uma forma
organizadora da experiência humana, não pode ser verdadeira a afirmação da existência da Terra fora de
toda a experiência humana”132.
Por mais correcções que Bogdánov faça – como, por exemplo, tentar estabelecer uma diferença
entre a experiência social (na qual inclui crenças mitológicas) e a experiência socialmente organizada
alegando que aquela não se harmoniza com as formas organizadoras da experiência colectiva como a
cadeia da causalidade – não corrige o erro fundamental da sua posição, afirma Lénine.
“A definição feita por Bogdánov da objectividade e do mundo físico cai absolutamente por terra,
porque a doutrina da religião tem «significado universal» num grau mais elevado do que a
doutrina da ciência: a maior parte da humanidade atém-se ainda hoje à primeira doutrina. O
catolicismo está «socialmente organizado, harmonizado, concertado» pelo seu desenvolvimento
secular; «encaixa-se» do modo mais indiscutível «na cadeia da causalidade», porque as religiões
não surgiram sem causas, não é de modo nenhum por acaso que nas condições actuais se mantêm
na massa do povo, e é perfeitamente «lógico» que os professores de filosofia se adaptem a elas.
Se esta experiência social-religiosa, sem dúvida de significado universal e sem dúvida altamente
organizada, «não se harmoniza» com a «experiência» da ciência, quer dizer que existe entre uma
e outra uma diferença essencial, fundamental, que Bogdánov apagou quando rejeitou a verdade
objectiva. E por mais que Bogdánov se «corrija», dizendo que o fideísmo ou o clericalismo não se
harmonizam com a ciência, continua a ser um facto indubitável que a negação da verdade
objectiva por Bogdánov «se harmoniza» completamente com o fideísmo. O fideísmo
contemporâneo não rejeita de forma nenhuma a ciência; rejeita apenas as «pretensões excessivas»
da ciência, a saber, a pretensão à verdade objectiva. Se existe uma verdade objectiva (como
127Bogdánov cit por V. I. Lénine, ibidem, p. 92.128V. I. Lénine, ibidem, p. 92-93.129idem, ibidem, p. 93.130Bogdánov cit por V. I. Lénine, ibidem.131V. I. Lénine, ibidem.132idem, ibidem.
pensam os materialistas), se as ciências da natureza, reflectindo o mundo exterior na
«experiência» humana, são as únicas capazes de nos dar a verdade objectiva, qualquer fideísmo é
absolutamente refutado. Mas, se não há verdade objectiva, se a verdade (incluindo a verdade
científica) é apenas uma forma organizadora da experiência humana, reconhece-se deste modo a
premissa fundamental do clericalismo, abre-se-lhe a porta, arranja-se lugar para as «formas
organizadoras» da experiência religiosa”133.
Lénine mostra assim que a definição de verdade como forma organizadora da experiência
humana – independentemente de se tratar de uma experiência individual ou colectiva – é uma definição
idealista que conduz directamente ao fideísmo e que decorre da negação da verdade objectiva.
Vimos que considerar que no mundo há apenas sensações ou que os corpos são complexos de
sensações, como o fazem, respectivamente, Avenarius e Mach é subjectivismo puro. Ora, esse
subjectivismo conduz inevitavelmente à negação da verdade objectiva, nota Lénine. Quando Mach e
Avenarius reconhecem que as sensações são a fonte do nosso conhecimento, colocam-se
consequentemente do ponto de vista do empirismo (todo o conhecimento deriva da experiência) ou do
sensualismo (todo o conhecimento deriva das sensações), nota Lénine. Mas tanto o idealista subjectivo
como o materialista pode tomar as sensações como a fonte do conhecimento; esta é, aliás, a primeira
premissa da teoria do conhecimento, diz Lénine. A partir daqui, pode seguir-se uma das duas deduções
possíveis das premissas do empirismo e do sensualismo: “partindo das sensações, pode seguir-se a linha
do subjectivismo, que conduz ao solipsismo («os corpos são complexos ou combinações de sensações») e
pode seguir-se a linha do objectivismo, que conduz ao materialismo (as sensações são imagens dos
corpos, do mundo exterior)”134, clarifica Lénine. Para o agnosticismo ou, indo mais longe, diz Lénine,
para o idealismo subjectivo, não pode haver verdade objectiva. Para o materialismo, o reconhecimento da
verdade objectiva é essencial. Mach, reconhecendo a primeira premissa – a de que as sensações são a
fonte do conhecimento –, embrulha a segunda importante premissa – a da realidade objectiva, dada ao
homem nas suas sensações – por meio de malabarismos verbais com a palavra “elemento” diz Lénine.
Assim, a negação da verdade objectiva por Bogdánov é o resultado inevitável do machismo, e não um
desvio dele, conclui Lénine.
Considerar a realidade objectiva como fonte das sensações é tomar uma posição materialista. “Se
não, sois inconsequente e chegareis infalivelmente ao subjectivismo, ao agnosticismo, tanto fazendo que
negueis a cognoscibilidade da coisa em si, a objectividade do tempo, do espaço e da causalidade (como
Kant), ou que não admitais sequer a ideia da coisa em si (como Hume). A inconsequência do vosso
empirismo”, continua Lénine, “da vossa filosofia da experiência, consiste nesse caso em que negais o
conteúdo objectivo da experiência, a verdade objectiva no conhecimento experimental”135. Os
materialistas reconhecem a realidade objectiva que nos é dada pela experiência, reconhecem uma fonte
objectiva, independente do homem, das nossas sensações. Os agnósticos negam a realidade objectiva
133idem, ibidem, p. 94.134idem, ibidem, p. 95.135idem, ibidem, p. 96.
como fonte das nossas sensações. Daqui a negação da verdade objectiva feita pelos agnósticos, nota
Lénine, e a tolerância para com doutrinas religiosas e místicas. Se os machistas, que são subjectivistas e
agnósticos, não vêem nas sensações uma reprodução fiel da realidade objectiva, os materialistas vêem “o
mundo mais rico, mais vivo e mais variado do que parece, porque cada passo do desenvolvimento da
ciência, descobre nele novos aspectos. Para o materialista, as nossas sensações são imagens da única e
última realidade objectiva – última não no sentido de que ela já é conhecida até ao fim, mas no sentido de
que não existe nem pode existir outra senão ela”136, diz Lénine.
7. O conceito de matéria e a questão gnosiológica fundamental
A matéria é definida por Lénine como a categoria filosófica que designa a realidade objectiva
que é dada ao homem nas suas sensações, que é reflectida pelas sensações, e que existe
independentemente delas. Lénine refere que os “machistas encolhem desdenhosamente os ombros a
propósito das ideias «antiquadas» dos «dogmáticos», os materialistas, que se atêm ao conceito de
matéria, pretensamente refutado pela «ciência moderna» e pelo «positivismo moderno»”137. Sucede que é
inadmissível, considera, que os machistas confundam a doutrina sobre determinadas estruturas da matéria
com aquela que é uma categoria gnosiológica: a questão das novas formas e propriedades da matéria
(como, por exemplo, a descoberta dos electrões no átomo) não pode ser confundida “com a velha questão
da teoria do conhecimento, a questão das fontes do nosso conhecimento, da existência da verdade
objectiva, etc.”138. Se a realidade objectiva é dada ao homem, através das sensações, como defendem os
materialistas, então é necessário um conceito filosófico “e este conceito está elaborado desde há muito,
muito tempo, este conceito é o de matéria”139.
Vejamos como essa negação é feita por vários representantes do empiriocriticismo: Avenarius
afirma que o contratermo é inseparável do termo central, que o meio é inseparável do Eu; Mach diz que a
matéria não é mais do que uma certa ligação regular dos elementos; Pearson considera a matéria como
grupos constantes de percepções sensoriais, aproximando-se da definição de Mill da matéria como
possibilidade permanente de sensações, e demarca-se imediatamente daquela consideração da matéria
como uma coisa que se move140. Nestes argumentos, nota Lénine – que giram dentro dos limites da antiga
questão gnosiológica das relações entre o pensamento e o ser, o físico e o psíquico – é substituída a linha
filosófica fundamental do materialismo que vai do ser o pensamento, da matéria à sensação, pela linha
oposta do idealismo141. Lénine, respondendo àqueles que dizem que a definição materialista de matéria
não passa de uma repetição, contesta: “não se pode, no fundo não se pode, dar uma «definição» dos dois
136idem, ibidem, p. 97.137idem, ibidem.138idem, ibidem.139idem, ibidem.140Cf. idem, ibidem, p. 110.141Cf. idem, ibidem.
últimos conceitos gnosiológicos [matéria e espírito] senão indicando qual deles se considera como
primário. O que significa dar uma «definição»? Significa, em primeiro lugar, incluir um dado conceito
noutro, mais amplo. […] Pergunta-se agora: existem conceitos mais amplos com os quais se possa operar
a teoria do conhecimento do que os conceitos de ser e de pensamento, de matéria e de sensação, de físico
e de psíquico? Não. São conceitos inultrapassavelmente amplos, os mais amplos, para além dos quais, de
facto (se não se tiver em vista as sempre possíveis modificações de nomenclatura), a gnosiologia até
agora não foi”142. Em todas aquelas “definições” de matéria, aqueles filósofos vão do psíquico ou do Eu
ao físico ou ao meio, do termo central ao contratermo, da sensação à matéria. Lénine pergunta: Mach e
Pearson podiam, no fundo, dar qualquer outra «definição» dos conceitos fundamentais que não fosse a
indicação da sua orientação filosófica?”143. “O génio de Marx e de Engels”, prossegue, “revelou-se, entre
outras coisas, no facto de terem desprezado o jogo pedante das palavrinhas novas, dos termos eruditos,
dos «ismos» subtis, e de terem dito simples e directamente: há uma linha materialista e uma linha
idealista na filosofia, e entre elas diversos matizes de agnosticismo”144.
A rejeição do conceito de matéria não é uma novidade trazida pelos “positivistas modernos”. Ela
é “a solução, há muito conhecida, das questões da teoria do conhecimento no sentido da negação da fonte
exterior, objectiva, das nossas sensações, da realidade objectiva correspondente às nossas sensações”145.
Por isso, dizer que este conceito pode envelhecer é um balbúcio infantil, diz Lénine. Revelando a
antiguidade desta questão, pergunta: “pôde envelhecer em dois mil anos de desenvolvimento da filosofia
a luta do idealismo e do materialismo? A luta das tendências da linha de Platão e Demócrito em filosofia?
A luta da religião e da ciência? A luta entre a negação e o reconhecimento da verdade objectiva? A luta
dos partidários do conhecimento supra-sensorial contra os seus adversários?”146. Esta questão em torno do
conceito de matéria é, considera Lénine, a da confiança dos homens nos seus órgãos dos sentidos, a
questão das fontes do conhecimento. Esta é uma questão que foi posta desde o próprio início da filosofia,
que pode ser disfarçada de mil maneiras, diz, mas que não pode envelhecer tal como não pode “a questão
de saber se a vista e o tacto, o ouvido e o olfacto, são a fonte do conhecimento humano. Considerar as
nossas sensações como imagens do mundo exterior – admitir a verdade objectiva – manter-se no ponto de
vista da teoria materialista do conhecimento – isto é uma e a mesma coisa”147.
Mas, mais uma vez, a oposição entre matéria e consciência não pode ser correctamente reflectida
se não for posta de forma dialéctica. “Naturalmente”, esclarece Lénine, “também a oposição entre a
matéria e a consciência só tem um significado absoluto dentro dos limites de um domínio muito restrito:
neste caso, exclusivamente dentro dos limites da questão gnosiológica fundamental do que considerar
como primário e do que considerar como secundário. Para além destes limites, a relatividade desta
questão é indubitável”148.
142idem, ibidem, p. 110-111.143idem, ibidem, p. 111.144idem, ibidem.145idem, ibidem, p. 110.146idem, ibidem, p. 97.147idem, ibidem, p. 98.148idem, ibidem, p. 112.
8. A relação entre a verdade absoluta e relativa. Dialéctica vs. relativismo. Verdade e erro.
Ao pôr o problema da verdade, Lénine chamava a atenção para dois aspectos desta questão: em
primeiro lugar, o de saber se existe a verdade objectiva (isto é, saber se existe um conteúdo nas
representações humanas que não depende do sujeito) e, em segundo lugar, o de saber se essa verdade
objectiva é dada ao homem de uma só vez ou apenas de forma aproximada. Esta é a importante questão
da relação entre a verdade absoluta e relativa – que apenas é resolúvel dialecticamente.
Bogdánov acusa Engels de eclectismo por este admitir verdades eternas. Não interessa aqui
apresentar os argumentos de Bogdánov, nem a forma como Lénine mostra que eles não passam de
“declamações” e de um mero “amontoado de palavras”. Interessa, sim, retomar a discussão, a que
Bogdánov se referia, entre Engels e Dühring, materialista dogmático. Este último lançava a torto e a
direito, diz Lénine, as palavras verdade última, eterna, definitiva. Engels refutou e ridicularizou Dühring
que não sabia aplicar a dialéctica à questão da relação entre a verdade relativa e absoluta, diz. Apesar de
tudo, responde Engels, existem certamente verdades eternas, verdades definitivas e sem apelo: Napoleão
morreu a 5 de Maio de 1821, Paris é em França ou um homem privado de alimento morre de fome, por
exemplo. Mas estas, em geral, não são mais do que banalidades, do que lugares-comuns da pior
espécie149. “Ser materialista”, esclarece Lénine, “significa reconhecer a verdade objectiva que nos é
revelada pelos órgãos dos sentidos. Reconhecer a verdade objectiva, isto é, não dependente do homem e
da humanidade, significa reconhecer duma maneira ou doutra, a verdade absoluta. É este «duma maneira
ou doutra» que separa o materialista metafísico Dühring do materialista dialéctico Engels”150, conclui.
Engels põe a questão de saber se os produtos do conhecimento humano, e quais, podem ter uma
validade soberana e um direito incondicional à verdade. Eis, então, a forma como Engels resolve
dialecticamente esta questão da relação entre a verdade absoluta e relativa:
“A soberania do pensamento realiza-se numa série de homens que pensam de modo extremamente
pouco soberano; o conhecimento que tem um direito incondicional à verdade, numa série de erros
relativos; nem um nem outro podem ser realizados completamente senão através de uma duração
infinita da vida da humanidade.
Temos aqui de novo a contradição que já tínhamos encontrado atrás, a contradição entre o carácter
do pensamento humano concebido necessariamente como absoluto, e a sua concretização nos
indivíduos isolados, que pensam apenas de modo limitado. Esta contradição só pode ser resolvida
numa série de gerações humanas sucessivas que, pelo menos para nós, é praticamente infindável.
Neste sentido, o pensamento humano é tão soberano como não soberano, e a sua capacidade de
conhecimento é tão ilimitada como limitada. Soberano e ilimitado pela sua natureza, vocação,
possibilidade e objectivo histórico final; não soberano e limitado pela sua realização individual e
pela realidade dada num ou noutro momento.
O mesmo acontece com as verdade eternas [...]”151
149F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 100.150V. I. Lénine, ibidem.151F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 100-101.
Este raciocínio é extremamente importante, considera Lénine, para a questão do relativismo.
Todos os machistas se afirmam relativistas, nota Lénine, significando com isto a exclusão da mínima
admissão da verdade absoluta. Para Engels, por seu turno, a verdade absoluta compõe-se de verdades
relativas. Esta é a diferença entre o relativismo e a dialéctica. Lénine, mais à frente, desenvolve esta ideia,
considerando que colocar o relativismo na base da teoria do conhecimento significa condenar-se
inevitavelmente ao cepticismo absoluto, ao agnosticismo e à sofística, ou ao subjectivismo. “O
relativismo, como base da teoria do conhecimento”, continua, “é não somente o reconhecimento da
relatividade dos nossos conhecimentos, mas é também a negação de qualquer medida ou modelo
objectivo, existente independentemente da humanidade, da qual se aproxima o nosso conhecimento
relativo”152. A dialéctica, como explicava Hegel, e Lénine aqui sublinha, contém um elemento de
relativismo, de negação, mas não se reduz ao relativismo. Portanto, a dialéctica de Marx e Engels,
“reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade
objectiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos
conhecimentos em relação a esta verdade”153, diz Lénine.
Outro raciocínio importante de Engels, considera Lénine, é o que diz respeito à relação entre
verdade e erro, também ela apenas compreensível num quadro dialéctico:
“A verdade e o erro, como todas as categorias lógicas que se movem em oposições polares, só têm
valor absoluto nos limites de um domínio extraordinariamente limitado, como acabámos de ver e
como o sr. Dühring o saberia também se conhecesse minimamente os primeiros elementos da
dialéctica, as suas primeiras premissas, que tratam precisamente da insuficiência de todas as
oposições polares. Desde que aplicamos a oposição entre a verdade e o erro fora dos limites do
domínio estreito que indicámos atrás, esta oposição torna-se relativa e portanto, imprópria para a
expressão científica exacta. E se tentamos aplicá-la como oposição absoluta, fora dos limites do
domínio indicado, fracassamos completamente: ambos os pólos da oposição se transformam no
seu contrário, isto é, a verdade torna-se erro e o erro verdade.”154
E aqui Lénine faz referência ao exemplo de Engels sobre a lei de Boyle. Engels diz:
“Tomemos como um exemplo a bem conhecida lei de Boyle. De acordo com ela, se a temperatura
permanece constante, o volume do gás varia inversamente com a pressão a que está sujeito.
Regnault descobriu que esta lei não é exacta em certos casos. Tivesse sido ele um filósofo da
realidade [como Dühring], teria de ter dito: a lei de Boyle é mutável, logo não é uma verdade
genuína, logo não é de todo uma verdade, logo é um erro. Mas se tivesse feito isso, teria cometido
um erro muito maior do que o que estava contido na lei de Boyle; o seu grão de verdade teria
desaparecido num monte de erros; ele teria distorcido a sua conclusão originalmente correcta
transformando-a num erro comparado com o qual a lei de Boyle, junto com a pequena partícula
de erro que comporta, teria parecido verdade. Mas Regnault, sendo um homem de ciência, não se
152V. I. Lénine, ibidem, p. 103.153idem, ibidem.154F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 101.
entregou a tais infantilidades, mas continuou as suas investigações e descobriu que, em geral, a lei
de Boyle é apenas aproximadamente verdadeira e que, em particular, perde a sua validade no caso
dos gases que podem ser liquefeitos pela pressão, nomeadamente no momento em que a pressão
se aproxima do ponto em que a liquefacção começa. A lei de Boyle foi provada verdadeira, mas
apenas dentro de determinados limites. Mas, dentro desses limites, ela será verdadeira de um
modo absoluto e definitivo? Nenhum físico o pretenderá. Diria que é válida dentro de certos
limites de pressão e temperatura e para certos gases; e mesmo nestes limites mais restritos, não
excluiria a possibilidade uma limitação ainda mais estreita ou de uma formulação alterada como
resultado de futuras investigações.”155
Assim, conclui Lénine, o “grão de verdade” contido nesta lei só representa uma verdade absoluta
dentro de certos limites, a lei é uma verdade apenas aproximadamente. “Cada degrau no desenvolvimento
da ciência acrescenta novos grãos a esta soma de verdade absoluta, mas os limites de cada tese científica
são relativos, sendo ora alargados, ora restringidos à medida que cresce o conhecimento” 156.
J. Dietzgen põe a questão nos seguintes termos: “É evidente que o quadro não esgota o objecto,
que o pintor fica atrás do seu modelo...Como é que o quadro pode «coincidir» com o modelo?
Aproximadamente, sim”. “Só de maneira relativa podemos conhecer a natureza e as suas partes; porque
cada parte, embora seja somente uma parte relativa da natureza, tem contudo a natureza do absoluto, a
natureza de toda a natureza em si, que o conhecimento não pode esgotar”157.
Lénine evidencia assim que, para o materialismo dialéctico, não existe nenhuma fronteira
intransponível entre a verdade absoluta e relativa.
“Do ponto de vista do materialismo contemporâneo, isto é, do marxismo, são historicamente
condicionais os limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação à verdade
objectiva, absoluta, mas é incondicional que nós nos aproximamos dela. […] Numa palavra, é
historicamente condicional qualquer ideologia, mas é incondicional que a qualquer ideologia
científica (diferentemente, por exemplo, da ideologia religiosa) corresponde uma verdade
objectiva, uma natureza absoluta. Direis: esta distinção entre a verdade absoluta e a verdade
relativa é indefinida. Responder-vos-ei: é suficientemente «indefinida» para impedir a
transformação da ciência num dogma, no mau sentido desta palavra, numa coisa morta,
cristalizada, ossificada, mas é ao mesmo tempo suficientemente «definida» para nos demarcar, da
maneira mais resoluta e irrevogável do fideísmo e do agnosticismo, do idealismo filosófico e da
sofística dos seguidores de Hume e de Kant”158.
155F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 111. p. 84-85.
156V. I. Lénine, ibidem, p. 101.157J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 102.158V. I. Lénine, ibidem.
9. A relação entre a teoria e a prática na teoria do conhecimento
Vimos que Marx e Engels colocam o critério da prática na base da teoria do conhecimento do
materialismo. Lénine, relembrando a segunda tese de Marx sobre Feuerbach, afirma peremptoriamente
que “colocar fora da prática a questão de saber «se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva»
é escolástica”.
Mach, por seu turno, separa a prática e a teoria do conhecimento. Nas suas palavras,
“fisiologicamente permanecemos egoístas e materialistas com a mesma constância com que
constantemente vemos o nascer do Sol. Mas teoricamente não devemos de modo nenhum ater-nos a esta
concepção”159. Como nota Lénine, a prática e a teoria podem ser, de acordo com Mach, colocadas lado a
lado sem que a primeira condicione a segunda. Feuerbach, pelo contrário, colocara a questão nestes
termos: “O erro fundamental do idealismo consiste precisamente em que ele coloca e resolve a questão da
objectividade e da subjectividade, da realidade ou da irrealidade do mundo, somente do ponto de vista
teórico”160.
Mach pode, assim, fazer equivaler as ilusões e a verdade objectiva. Segundo Mach, “mesmo o
sonho mais incoerente é um facto como qualquer outro”161. Mas isto é a mesma coisa que dizer, compara
Lénine, que do ponto de vista científico não tem interesse saber qual de duas teorias diferentes exprime a
verdade objectiva. É precisamente o critério da prática que distingue a ilusão da realidade – assim é de um
ponto de vista materialista.
Mach afirma, noutra obra, que só o êxito pode distinguir o conhecimento do erro162. Esta
afirmação foi utilizada pelos machistas russos como prova da aproximação de Mach ao marxismo. Mas
estas frases, nota Lénine, aparecem lado a lado com a sua teoria idealista do conhecimento. “O
conhecimento”, replica Lénine, “só pode ser biologicamente útil, útil na prática do homem, na
conservação da vida, na conservação da espécie, se reflectir a verdade objectiva, independente do homem.
Para o materialista o «êxito» da prática humana demonstra a correspondência das nossas representações
com a natureza objectiva das coisas que percebemos”163. Lénine estabelece, de seguida, uma distinção
importante sobre a forma de entender a prática na teoria do conhecimento de duas correntes filosóficas
opostas: “Para o solipsista o «êxito» é tudo aquilo de que eu necessito na prática, a qual pode ser
considerada separadamente na teoria do conhecimento. Se incluirmos o critério da prática na base da
159E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 105.160L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem.161“No pensamento habitual e na linguagem usual, costuma opor-se o aparente, o ilusório, à realidade. Segurando
um lápis diante de nós no ar, vemo-lo rectilíneo; mergulhando-o obliquamente dentro de água, vemo-lo curvado. Diz-se neste último caso: «o lápis parece curvado, mas na realidade é rectilíneo». Mas por que razão chamamos a um facto a realidade e rebaixamos outro ao nível de uma ilusão?...Quando cometemos o erro natural de em casos extraordinários esperar mesmo assim fenómenos ordinários, as nossas expectativas são, naturalmente, frustradas. Mas os factos não têm culpa disso. Falar em semelhantes casos de ilusão tem sentido do ponto de vista prático, mas de forma nenhum do ponto de vista científico. Do mesmo modo, não tem qualquer sentido, do ponto de vista científico, a questão frequentemente discutida de se o mundo existirá realmente ou é apenas uma ilusão nossa, nada mais do que um sonho. Mas mesmo o sonho mais incoerente é um facto como qualquer outro.” E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 104.
162idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 105.163V. I. Lénine, ibidem.
teoria do conhecimento, chegamos inevitavelmente ao materialismo – diz o marxista. Que a prática seja
materialista, mas a teoria é outra coisa – diz Mach”164.
Estes “esforços” de eliminar a prática como algo susceptível de exame gnosiológico com o
objectivo de preparar o lugar para o agnosticismo e o idealismo não são novos, nota Lénine que
documenta a sua afirmação com o exemplo de Schulze (céptico) e Fichte (idealista subjectivo), os quais,
tal como Mach, admitem a realidade objectiva das coisas fora de nós na prática, mas negam-na na teoria.
Feuerbach, notando esta separação idealista da teoria e da prática, afirma: [para os idealistas]
este ponto de vista [o do reconhecimento na prática do Eu e do Tu] só é válido para a vida e não para a
especulação. Mas a especulação que está em contradição com a vida e faz do ponto de vista da morte, da
alma separada do corpo, o ponto de vista da verdade, essa especulação é morta, é uma falsa especulação”165.
Para Lénine, o critério da prática deve “deve ser o ponto de vista primeiro e fundamental da
teoria do conhecimento”, deve situar-se na sua base, o que “conduz inevitavelmente materialismo,
afastando desde o princípio as invencionices intermináveis da escolástica professoral”166. No entanto, não
deixa de fazer um esclarecimento importante: o critério da prática, diz Lénine,
“nunca pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma representação humana, qualquer
que seja. Este critério é também suficientemente «indeterminado» para não permitir que os
conhecimentos do homem se transformem num «absoluto», e, ao mesmo tempo, suficientemente
determinado para conduzir uma luta implacável contra todas as variedade de idealismo e
agnosticismo. Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e a última verdade objectiva, daí
decorre que o reconhecimento de que o único caminho para esta verdade é o caminho da ciência
assente no ponto de vista materialista”167.
Lénine dá, então, um exemplo de uma compreensão errada da relação entre teoria e prática,
desmontando uma outra “confusão” de Bogdánov. Este último “consente” que a teoria da circulação
monetária de Marx seja uma verdade objectiva, mas apenas para a “nossa época” e chama “dogmatismo”
à atribuição a esta teoria de uma veracidade “objectiva supra-histórica”. A “confusão” consiste em que,
como sublinha Lénine, “nenhumas circunstâncias futuras podem alterar a correspondência desta teoria
com a prática, pela mesma simples razão que torna eterna a verdade de que Napoleão morreu a 5 de Maio
de 1821”168.
10. Sobre a utilização idealista do conceito de “experiência”
Lénine afirma que o termo “experiência” tem servido desde há muito para encobrir sistemas
164idem, ibidem.165L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine , ibidem, p. 107.166V. I. Lénine, ibidem.167V. I. Lénine, ibidem, p. 107.168idem, ibidem.
idealistas169. Sob esse conceito podem encontrar-se tanto a linha materialista, como a linha idealista ou
agnóstica em filosofia170. “As diferentes «definições» deste conceito exprimem apenas as duas linhas
fundamentais em filosofia que Engels tão claramente revelou”171.
Veja-se o idealista subjectivo Fichte que declara solenemente que a alma da sua filosofia consiste
em que o homem nada possui além da experiência e que chega a tudo o que chega através dela172. Veja-se
o professor W. Jerusalem para quem “a aceitação de um ser original divino não contradiz nenhuma
experiência”173.
O que fazem os empiriocriticistas, que constroem os seus sistemas sobre a palavra “experiência”,
é, diz Lénine, passar de forma ecléctica do materialismo ao idealismo e vice-versa 174. A confusão criada
pelos empiriocriticistas nesta matéria é notada não só por Lénine, mas também por um conjunto de
escritores seus contemporâneos, como o próprio mostra. Tome-se o tomo II da Crítica da Experiência
Pura no qual Avenarius, diz Lénine, “encara a «experiência» como «um caso especial» do psíquico”.
Avenarius “divide a experiência em sachhafte Werte (coisas-valores) e em gedankenhafte Werte
(pensamentos-valores)” considerando que a “«experiência em sentido amplo» inclui estes últimos” e que
“a «experiência completa» identifica-se com a coordenação de princípio. Numa palavra: «o que queres é
o que pedes». A «experiência» abarca tanto a linha materialista como a linha idealista em filosofia,
consagrando a sua confusão”175. Também Mach incorre na mesma confusão. Ele, que parte do ponto de
vista idealista ao considerar os corpos complexos de sensações, afirma, na sua Mecânica, que “não
devemos filosofar de dentro de nós mesmos, mas tomar da experiência”; afirma que “aquilo que
observamos na natureza imprime-se nas nossas representações […] e estas representações […] imitam os
processos da natureza”; afirma que “a experiência gera o pensamento”176. Mach, aqui, está a assumir
espontaneamente um ponto de vista materialista, ao interpretar a experiência como algo objectivo, dado
de fora ao homem, e ao considerar a natureza como o primário. “Se Mach sustentasse de modo
consequente este ponto de vista nas questões fundamentais da gnosiologia”, conclui Lénine, “evitaria à
humanidade muitos e tolos «complexos» idealistas”177.
11. Causalidade e necessidade
A questão da causalidade, considera Lénine, tem uma importância muito particular para a
definição de uma linha filosófica. Lénine expõe a teoria materialista do conhecimento acerca desta
questão e confronta-a com a teoria idealista oposta, perfilhada pela corrente positivista, ilustrando com
169Cf. idem, ibidem, p. 114.170Cf. idem, ibidem, p. 116.171idem, ibidem.172Cf. idem, ibidem, p. 113.173W. Jerusalem cit. por V. I. Lénine, ibidem.174Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 114.175idem, ibidem, p. 112.176E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 114.177V. I. Lénine, ibidem.
diversas posições a forma que essa mesma posição fundamental idealista assume sobre a causalidade.
Os materialistas reconhecem as leis objectivas da natureza, reconhecem a causalidade objectiva
(que indissoluvelmente se liga ao reconhecimento da realidade objectiva do mundo exterior). Isto é, para
esta linha filosófica, a causalidade e a necessidade existem e pertencem à própria natureza e as
representações humanas reflectem-nas com exactidão (apenas) aproximada. Para o mostrar, Lénine
analisará excertos de Feuerbach, Engels e Dietzgen. Contrariamente, para os idealistas, é o pensamento (a
consciência, a razão, a lógica...) que confere ordem à natureza. Observando diferentes autores (Mach,
Avenarius, Kant, Hume, Pearson, Poincaré, entre outros), Lénine faz sobressair diferentes formas dessa
mesma posição: tudo o que experimentamos é que um fenómeno segue o outro, a necessidade como
probabilidade, como associação de factos, a necessidade como pertencente ao mundo dos conceitos, as
leis da natureza como símbolos ou convenções criadas pelo homem por razões de comodidade, etc. Todas
elas têm em comum um aspecto fundamental: a negação da causalidade objectiva.
Para uma exposição da posição materialista sobre a causalidade, Lénine cita Feuerbach. Na sua
Essência da Religião Feuerbach diz que:
“a natureza só pode ser compreendida através da própria natureza, que a sua necessidade não é
humana nem lógica, nem metafísica nem matemática, que só a natureza é o ser ao qual não se
pode aplicar qualquer medida humana, ainda que comparemos os seus fenómenos com fenómenos
humanos análogos e lhe apliquemos, para a tornar compreensível para nós, expressões e conceitos
humanos tais como ordem, objectivo, lei, e sejamos obrigados a aplicar-lhe tais expressões devido
à essência da nossa linguagem”178.
R. Haym, historiador alemão, a propósito desta passagem de Feuerbach, afirma que esta posição
estabelece um profundo abismo entre a natureza e a razão humana. Mas Feuerbach replica e esclarece:
“Que significa isto? Quero com isto dizer que não há na natureza nenhuma espécie de ordem, de
modo que, por exemplo, ao Outono pode suceder o Verão, à Primavera o Inverno, ao Inverno o
Outono? Que não há objectivo, de modo que, por exemplo, não existe qualquer coordenação entre
os pulmões e o ar, entre a luz e o olho, entre o som e o ouvido? Que não há ordem, de modo que,
por exemplo, a Terra se move ora em elipse ora em círculo, girando em volta do Sol ora num ano
ora num quarto de hora? Que absurdo! Mas que queria eu dizer nesta passagem? Nada mais do
que estabelecer uma diferença entre o que pertence à natureza e o que pertence ao homem; não se
diz nesta passagem que às palavras e às representações acerca da ordem, do objectivo, da lei, não
corresponde nada de real na natureza, nela apenas se nega a identidade do pensamento e do ser,
nega-se que a ordem, etc., existam na natureza exactamente do mesmo modo que na cabeça ou
nos sentidos do homem. A ordem, o objectivo, a lei, não são mais do que palavras com as quais o
homem traduz as coisas da natureza para a sua língua, para as compreender; estas palavras não
são privadas de sentido, não são privadas de conteúdo objectivo; mas no entanto é preciso
distinguir o original da tradução. […]
Do carácter fortuito da ordem, da finalidade e da lei da natureza o teísmo infere directamente a
sua origem arbitrária, a existência de um ser diferente da natureza e que traz a ordem, a finalidade
178L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 116-117.
e a lei à natureza, caótica em si mesma, alheia a qualquer determinação. A razão dos teístas...é
uma razão que está em contradição com a natureza, que está absolutamente privada de
compreensão da essência da natureza. A razão dos teístas divide a natureza em dois seres, um
material, outro formal ou espiritual”179.
Nestas afirmações de Feuerbach está o reconhecimento, considera Lénine, das leis objectivas da
natureza, da causalidade objectiva reflectida com exactidão apenas aproximada nas representações
humanas. Qualquer outra linha filosófica na questão da causalidade – a negação das leis, da causalidade,
da necessidade objectivas na natureza – são com razão incluídas por Feuerbach na tendência do fideísmo,
“porque é claro”, continua Lénine, “com efeito, que a linha subjectivista na questão da causalidade, a
dedução da ordem e da necessidade da natureza não do mundo objectivo exterior, mas da consciência, da
razão, da lógica, etc., não só separa a razão humana da natureza, não só opõe a primeira à segunda, como
faz da natureza uma parte da razão, em vez de considerar a razão como uma partícula da natureza. A linha
subjectivista na questão da causalidade é idealismo filosófico (de que as teorias da causalidade tanto de
Hume como de Kant são variedades), isto é, fideísmo mais ou menos atenuado, diluído”180.
Lénine, analisando a posição de Engels sobre a questão da causalidade, repara que este não teve
ocasião de explicitamente opor o seu ponto de vista materialista a outras tendências quanto a esta questão
particular. No entanto, não devem subsistir quaisquer dúvidas sobre a existência da causalidade e
necessidade objectivas da natureza. Para o comprovar, Lénine recorre a algumas passagens do Anti-
Dühring e de Ludwig Feuerbach de Engels. Engels, no Anti-Dühring, ao afirmar que, para se conhecer os
pormenores dos fenómenos da natureza, é preciso desligá-los da sua conexão natural e estudar cada um
deles separadamente, segundo as suas propriedades, as suas causas e efeitos particulares181, está a
reconhecer, em primeiro lugar, a existência objectiva dessa conexão. Engels não deixa de expor também a
concepção dialéctica de causa e efeito: “Causa e efeito são representações que só têm significado, como
tais, aplicadas a um caso particular; mas logo que consideramos este caso particular na sua conexão geral
com todo o mundo, estas representações encontram-se e entrelaçam-se na representação da interacção
universal, na qual causas e efeitos mudam constantemente de lugar; aquilo que aqui ou agora é causa
torna-se efeito ali ou depois, e vice-versa”182.
Engels relaciona a causalidade da natureza com as relações do pensamento, nota Lénine: “Se
verificarmos que as leis do pensamento correspondem às leis da natureza, isto torna-se plenamente
compreensível – diz Engels – se se tomar em atenção que o pensamento e a consciência são «produtos do
cérebro humano e que o próprio homem é um produto da natureza». Compreende-se que «os produtos do
cérebro humano, que em última análise são eles próprios produtos da natureza, não contradizem o resto
da conexão da natureza, mas estão em correspondência com ela»”183. Também no Ludwig Feuerbach,
179L. idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.180V. I. Lénine, ibidem, p. 117-118.181F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 118.182idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.183idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.
Engels se refere a esta relação: “as leis gerais do movimento do mundo exterior e do pensamento humano
são no fundo idênticas, mas diferentes na sua expressão, na medida em que a mente humana pode aplicá-
las conscientemente, enquanto na natureza – e até agora também, em grande parte, na história humana –
abrem caminho inconscientemente, sob a forma de uma necessidade exterior entre uma série infinita de
casualidades aparentes”184.
J. Dietzgen – filósofo materialista que cai, por vezes, em algumas inexactidões e erros que
serviram de pretexto para algumas deturpações do materialismo feitas pelos machistas – também não tem
dúvidas em, materialistamente, situar as causas na própria natureza. Na sua A Essência do Trabalho
Cerebral afirma que “As ciências da natureza buscam as causas não fora dos fenómenos, não para além
deles, mas neles ou através deles”. E, mais à frente que “As causas são produtos da faculdade de pensar.
Mas não são produtos puros, são geradas por ela em união com material fornecido pelos sentidos. O
material fornecido pelos sentidos dá à causa assim gerada uma existência objectiva. Do mesmo modo que
exigimos da verdade que ela seja verdade de um fenómeno objectivo, também exigimos da causa que ela
seja real, que ela seja a causa de um efeito objectivamente dado”185.
Avenarius, por seu turno, em relação à questão da causalidade, considera que “não
experimentando (não conhecendo pela experiência: erfahren) a força como a causa do movimento, não
experimentamos também a necessidade de qualquer movimento...Tudo o que experimentamos (erfahren)
é que um segue o outro”186. Mais à frente: “A necessidade permanece como grau de probabilidade com
que se esperam os efeitos”187. Para Lénine, estas afirmações são humismo na sua forma mais pura na
medida em que “a sensação, a experiência, nada nos dizem acerca de qualquer necessidade” 188; elas
contêm um subjectivismo perfeitamente definido na questão da causalidade. Mas um filósofo que parta do
ponto de vista que afirma que só existe a sensação, que não reconheça a realidade objectiva como fonte
das nossas sensações, não pode chegar a outra conclusão, diz.
Para Mach, que não esconde a sua afinidade com Hume, “além da necessidade lógica, não existe
nenhuma outra necessidade, por exemplo, física”189. E, na Mecânica, Mach afirma que “na natureza não
há nem causa nem efeito”. E continua: “Expus muitas vezes que todas as formas da lei da causalidade
decorrem de impulsos subjectivos; a natureza não tem necessidade de corresponder-lhes”190. Não é que
Mach seja inteiramente consequente, nota Lénine, uma vez que, em certas passagens das suas obras,
como vimos já acima, assume um ponto de vista materialista espontâneo, como quando afirma que “a
natureza ensina-nos a encontrar a uniformidade nos seus fenómenos”191. Porém, não quer isto dizer que
essa uniformidade seja encontrada fora do nosso espírito, no entender de Mach. Acerca desta mesma
184F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem.185J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, p.118.186R. Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.120.187idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.188V. I. Lénine, ibidem.189E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem.190idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.191idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.
questão, Mach faz considerações como “a força que nos incita a completar no pensamento factos apenas
parcialmente observados é a força da associação. Ela fortalece-se com a repetição. Parece-nos então uma
força independente da nossa vontade e dos factos isolados, que dirige os pensamentos e os factos, que os
mantém em conformidade uns com os outros como uma lei de uns e de outros. Que nos consideremos
capazes de fazer predições com a ajuda de tal lei prova apenas a suficiente uniformidade do nosso meio,
mas não prova de modo nenhum a necessidade do êxito das nossas predições”192. Na sua última obra,
Conhecimento e Erro, Mach, como repara Lénine, chega mesmo a definir a lei da natureza como uma
“limitação da expectativa”193. Assim, diz Lénine interpretando as palavras de Mach, “deduz-se que se
pode e deve procurar a necessidade fora da uniformidade do meio, isto é, da natureza! Onde procurar, isso
é um segredo da filosofia idealista, que teme reconhecer a faculdade cognitiva do homem como um
simples reflexo da natureza”194.
Lénine, debruçando-se mais uma vez sobre as posições adoptadas pelos machistas russos, repara
que estes “substituem com uma ingenuidade surpreendente a questão da orientação materialista ou
idealista de todas as considerações sobre a lei da causalidade pela questão de uma ou outra formulação
desta lei. Acreditaram nos professores empiriocriticistas alemães no sentido de que dizer «correlação
funcional» era fazer uma descoberta do «positivismo moderno» e desembaraçar-se do «fetichismo» de
expressões como «necessidade», «lei», etc.”195. Não se trata, pois, de atentar em meras mudanças de
palavras.
“A questão verdadeiramente importante da teoria do conhecimento que divide as correntes
filosóficas não consiste em saber qual o grau de precisão que alcançaram as nossas descrições das
conexões causais e em saber se essas descrições podem ser expressas numa fórmula matemática
precisa196 – mas em saber se a fonte do nosso conhecimento destas conexões são as leis objectivas
da natureza ou as propriedades da nossa mente, a faculdade que lhe é inerente em conhecer
determinadas verdades apriorísticas, etc. Eis o que separa irrevogavelmente os materialistas
Feuerbach, Marx e Engels dos agnósticos (humistas) Avenarius e Mach”197, diz Lénine.
Karl Pearson pertence a esta mesma corrente filosófica. Lénine recolhe um conjunto de citações
deste autor que, pela sua clareza, falam por si e que são características desta mesma corrente no que diz
respeito à causalidade: “as leis da ciência são mais produtos da mente humana do que factos do mundo
exterior”; “tanto os poetas como os materialistas, que vêem na natureza a soberana do homem, esquecem
com muita frequência que a ordem e a complexidade dos fenómenos que admiram são pelo menos tanto
produto da faculdade cognitiva do homem como as suas recordações e pensamentos”; “o homem é criador
192idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 121.193idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 120.194V. I. Lénine, ibidem, p. 121.195idem, ibidem, p. 120.196 Lénine referia-se à expressão “correlação funcional” tendo notado que o próprio Mach fizera a ressalva de que o
conceito de função só pode exprimir mais precisamente a “dependência dos elementos” quando se tiver alcançado a possibilidade de exprimir os resultados em grandezas mensuráveis o que mesmo ciências como a química, nota Lénine, só parcialmente atingiram.
197V. I. Lénine, ibidem, p.121.
da lei da natureza”; “tem mais sentido a afirmação de que o homem dá leis à natureza do que a afirmação
contrária de que a natureza dá leis ao homem”; “a necessidade pertence ao mundo dos conceitos e não ao
mundo das percepções” (isto é, para Pearson, a realidade fora de nós); “na uniformidade com que se
reptem determinadas séries de percepções (a rotina das percepções) não há nenhuma necessidade
inerente, mas é uma condição indispensável da existência de seres pensantes que haja uma rotina das
percepções. A necessidade reside, portanto, na natureza do ser pensante, e não nas próprias percepções;
ela é o produto da faculdade cognitiva”198. Acerca destas afirmações de Pearson, Lénine comenta que a
posição que considera que o homem dita leis à natureza e não a natureza ao homem é puro idealismo
kantiano. Não se trata de repetir o apriorismo de Kant, pois esta é uma formulação particular dessa
posição, mas sim em colocar-se do ponto de vista que coloca a consciência, a razão, como o primário e a
natureza como o secundário. Assim, não é a razão que é uma parte da natureza, mas a natureza uma parte
da razão. Esta é dilatada “convertendo-se de razão humana ordinária, simples, familiar a todos, em razão
«desmedida», como dizia J. Dietzgen, misteriosa, divina”199. Assim, afirma Lénine, “a fórmula kantiano-
machista «o homem dita leis à natureza» é uma fórmula do fideísmo”200.
J. Petzoldt, idealista subjectivo e discípulo de Mach e Avenarius, elaborou a lei da univocidade, a
fim de superar a causalidade que, nas suas palavras, juntamente com a “substancialidade”, paralisa a
coragem do pensamento201. Segundo Petzoldt, não podemos admitir que um corpo se mova de diferentes
maneiras sob impulsos diferentes. “Não podemos admitir tanta indeterminação e arbitrariedade na
natureza; devemos exigir-lhe determinação, leis”202. Assim, é exigido à natureza que o corpo, sob
impulsos idênticos, se mova na mesma direcção, por razões de univocidade. Quaisquer outras direcções
exigiriam soluções multívocas, o que não é possível. Esta lei da univocidade de Petzoldt, mesmo antes de
se tornar lei, diz, “ela é já para nós um princípio com que abordamos a realidade, isto é, um postulado.
Tem validade, por assim dizer, a priori, independente de qualquer experiência isolada. À primeira vista,
não é próprio da filosofia da experiência preconizar verdades apriorísticas, voltando assim à metafísica
mais estéril. Mas o nosso apriorismo é apenas lógico, e não psicológico ou metafísico.” 203. “Pois claro” -
ironiza Lénine com pertinência - “se chamarmos lógico ao apriorismo desaparece todo o reaccionarismo
desta ideia e ela eleva-se ao nível do «positivismo moderno»!”204. Porém, para Petzoldt, nos fenómenos
psíquicos não pode haver determinação unívoca. “Vendo as coisas com atenção, verifica-se a ausência da
univocidade. Não há nenhum acontecimento histórico, nenhum drama no qual não possamos imaginar os
participantes agindo diferentemente nas condições psíquicas dadas”, diz Petzoldt. E continua: “A
univocidade não só não está ausente no domínio psíquico, como temos o direito de exigir que esteja
ausente da realidade. A nossa doutrina eleva-se, assim...à categoria de postulado...isto é, de condição
198K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.122. 199V. I. Lénine, ibidem.200idem, ibidem.201J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.123.202idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.203idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.204V. I. Lénine, ibidem.
necessária de toda a experiência anterior, de a priori lógico”205. Para Lénine, estamos na presença “do
mais puro metafísico, que não tem a menor ideia da relatividade da diferença entre o casual e o
necessário”206; estamos na presença de um “destacado empiriocriticista que caiu imperceptivelmente no
kantismo e prega as doutrinas mais reaccionárias com um molho ligeiramente modificado” o que “não é
um acaso, pois a doutrina da causalidade de Mach e Avenarius é, na sua própria base, uma mentira
idealista, quaisquer que sejam as frases altissonantes sobre o «positivismo» com que se encubra”. Lénine
continua: “A diferença entre as teorias da causalidade de Hume e de Kant é uma diferença de segunda
ordem entre os agnósticos, que estão de acordo no essencial: na negação das leis objectivas da natureza,
condenando-se assim inevitavelmente a umas ou outras conclusões idealistas”207.
Para R. Willy, que Lénine caracteriza como um empiriocriticista um pouco mais «escrupuloso»
do que Petzoldt que se envergonha da sua afinidade com os imanentistas, a necessidade é uma
característica “puramente lógica”, não “transcendental”, uma “característica puramente verbal”. Willy
revela a posição comum dos agnósticos de chamar “transcendental” à concepção materialista da
necessidade segundo a qual, como diz Lénine, “todo o reconhecimento da realidade objectiva é um
«transcensus» ilegítimo”208.
Também Henri Poincaré se desvia constantemente para o caminho do agnosticismo, nota Lénine.
“Para Poincaré […] as leis da natureza são símbolos, convenções que o homem cria por «comodidade»”.
Para Poincaré, a objectividade é definida por aquilo que tem um valor geral, é aquilo que é admitido pela
maioria ou por todos os homens. Isto é, explicita Lénine, Poincaré “elimina de maneira puramente
subjectivista a verdade objectiva, como todos os machistas”209. Assim, quando Poincaré afirma que “a
única verdadeira realidade objectiva é a harmonia interna do mundo” só pode responder “sem dúvida que
não” à questão de saber se essa “harmonia” existe fora de nós210. Mas, se os machistas russos tomam
diferentes variantes de “teorias do simbolismo” por novidades, filósofos competentes, como nota Lénine,
situam esta questão correctamente. Para o kantiano Phillipp Frank, referindo-se ao facto de Poincaré
tomar os princípios mais gerais das ciências da natureza como convenções, repara que, dessa forma, “a
moderna filosofia da natureza renova inesperadamente a ideia fundamental do idealismo crítico, a saber,
que a experiência não faz mais do que preencher um quadro que o homem traz consigo ao mundo”211.
Também o kantiano E. Lucka, que subscreve a opinião de que Mach adere inteiramente a Hume na
questão da causalidade212, caracteriza correctamente o machismo em contraposição às outras linhas
filosóficas, considera Lénine. Lucka observa que P. Volkmann (físico que, segundo Lénine, se inclina,
como a maioria dos naturalistas, para o materialismo, embora de forma inconsequente e tímida) “deduz a
necessidade do pensamento da necessidade dos processos da natureza – ponto de vista que, em
205J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.124.206V. I. Lénine, ibidem.207idem, ibidem.208idem, ibidem, p.125.209idem, ibidem.210Cf.idem, ibidem.211 idem, ibidem.212Cf. idem, ibidem.
contradição com Mach e de acordo com Kant, reconhece o facto da necessidade – mas ele vê a fonte da
necessidade, em contradição com Kant, não no pensamento mas nos processos da natureza” 213.
A essência de todos estes pontos de vista, reitera Lénine, está no reconhecimento do que é
comum a Hume e a Kant (e não na repetição de uma ou outra formulação particular), isto é, “negar as leis
objectivas da natureza e a deduzir tais ou tais «condições da experiência», tais ou tais princípios,
postulados, premissas, do sujeito, da consciência humana, e não da natureza”. Engels, continua Lénine,
“tinha razão quando disse que o essencial não consiste em saber a qual das numerosas escolas do
materialismo ou do idealismo adere tal ou tal filósofo, mas em saber se ele toma como primário a
natureza, o mundo exterior, a matéria em movimento, ou o espírito, a razão, a consciência, etc.” 214.
Lénine reserva uma última palavra acerca destas questões da causalidade para os machistas
russos, tomando o exemplo de P. Iuchkévitch e de A. Bogdánov. Para P. Iuchkévitch, a energia é “tão
pouco uma coisa, uma substância, como o tempo, o espaço, a massa e outros conceitos fundamentais das
ciências da natureza: a energia é uma constância, um empírio-símbolo, como outros empírio-símbolos que
satisfazem durante um certo tempo a necessidade essencial do homem de introduzir a razão, o Logos, na
torrente irracional do dado”215. Para Bogdánov, “as leis não pertencem de modo nenhum à esfera da
ciência , … não são dadas nela, mas criadas pelo pensamento como meio de organizar a experiência, de
coordená-la harmoniosamente numa unidade coerente”216. Estes machistas, diz Lénine, “confiando
cegamente nos professores reaccionários «modernos», repetem os erros do agnosticismo kantiano e
humista na questão da causalidade, sem se aperceberem nem de que estas teorias estão em contradição
absoluta com o marxismo, isto é, com o materialismo, nem de que elas resvalam por um plano inclinado
para o idealismo”217.
12. O espaço e o tempo
Também na questão do espaço e do tempo as duas linhas filosóficas fundamentais divergem de
forma radical.
Para os materialistas, o tempo e o espaço têm uma existência objectiva, o que não podia deixar
de ser quando se parte do reconhecimento da existência da realidade objectiva, isto é, da matéria em
movimento independentemente da nossa consciência, como Lénine faz notar218. “Assim como as coisas
ou corpos não são simples fenómenos, não são complexos de sensações mas realidades objectivas que
actuam sobre os nossos sentidos, também o espaço e o tempo não são simples formas dos fenómenos,
mas formas objectivamente reais do ser. No mundo não há senão matéria em movimento, e a matéria em
213E. Lucka cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.126.214V. I. Lénine, ibidem.215P. Iuchkévitch cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.127.216A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.128.217V. I. Lénine, ibidem.218Cf. idem, ibidem, p.132.
movimento não pode mover-se senão no espaço e no tempo”219. Assim sintetiza Lénine a posição
materialista acerca do espaço e do tempo. Nas palavras de Engels, “um ser fora do tempo é tão absurdo
tão grande como um ser fora do espaço”220.
Quando se fala do reconhecimento da existência objectiva do espaço e do tempo – como Lénine
e Engels sublinham a propósito dessa confusão recorrente da parte de alguns filósofos – não se trata dos
nossos conceitos de espaço e de tempo cuja modificação constante é utilizada como tentativa de refutação
da sua existência objectiva. A isto Lénine responde: “As noções humanas do espaço e do tempo são
relativas, mas destas noções relativas forma-se a verdade absoluta, estas noções relativas tendem, no seu
desenvolvimento, para a verdade absoluta e aproximam-se dela. A mutabilidade das noções humanas do
espaço e do tempo não refuta mais a realidade objectiva de um e de outro do que a mutabilidade dos
conhecimentos científicos sobre a estrutura e as formas de movimento da matéria refuta a realidade
objectiva do mundo exterior”221. Ou, como põe um pouco mais à frente, “uma coisa é saber como
precisamente, através dos diferentes órgãos dos sentidos, o homem percebe o espaço e como, no decorrer
de um longo desenvolvimento histórico, se formam, a partir destas percepções, os conceitos abstractos de
espaço; e outra coisa completamente diferente é saber se a estas percepções e a estes conceitos da
humanidade corresponde uma realidade objectiva, independente da humanidade”222. Lénine afirma que a
única posição filosófica compatível com a negação de todo o idealismo e fideísmo é a admissão resoluta e
definida de que os nossos conceitos em desenvolvimento de tempo e de espaço reflectem o tempo e o
espaço objectivamente reais e que se aproximam da verdade objectiva223, pois “se o tempo e o espaço são
apenas conceitos, a humanidade, que os criou, tem o direito de sair dos seus limites [...]”224.
Portanto, o problema gnosiológico fundamental que divide as correntes filosóficas
verdadeiramente fundamentais, como coloca Lénine, consiste em saber se o espaço e o tempo são reais ou
ideais, consiste em saber se as nossas noções relativas do espaço e do tempo são aproximações das formas
objectivamente reais do ser ou se serão apenas produtos do pensamento humano225.
Contrariamente ao materialismo, para o positivismo moderno de Mach, “o espaço e o tempo são
sistemas ordenados (ou harmonizados, wholgeordnete) de séries de sensações”226. Isto é, nas palavras de
Lénine, um claro absurdo idealista que decorre inevitavelmente da doutrina segundo a qual os corpos são
complexos de sensações pois, para Mach, não é o homem que existe no espaço e no tempo, mas estes que
existem no homem, dependem do homem e são por ele gerados. É certo que Mach faz um conjunto de
ressalvas, nota Lénine, alegando que tempo e espaço têm origem na experiência (procurando opor-se a
Kant). Porém, se para Mach a experiência não reflecte a realidade objectiva existente fora de nós (como
vimos atrás), então ele não pode nunca ultrapassar o ponto de vista idealista em que assenta a sua
219idem, ibidem, p.133.220F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.134.221V. I. Lénine, ibidem, p.133.222idem, ibidem, p.141.223Cf. idem, ibidem, p.134.224idem, ibidem.225Cf. idem, ibidem, p.133.226E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.135.
doutrina. As objecções feitas por Mach a Kant, diz Lénine, não destroem o agnosticismo nem de Kant,
nem de Mach. De acordo com Lénine, Mach “constrói a teoria gnosiológica do tempo e do espaço sobre o
princípio do relativismo” […] e “esta construção, no fundo, não pode conduzir senão ao idealismo
subjectivo”227.
Mach, misturando uma e outra solução da questão gnosiológica fundamental a este respeito, e
analisando os conceitos de espaço e tempo em vários planos, afirma que, no aspecto fisiológico, estes
conceitos são sensações de orientação que determinam o desencadeamento das reacções de adaptação
biologicamente úteis228. Mas se assim é, repara Lénine, é exclusivamente na condição de estas sensações
de espaço e de tempo reflectirem a realidade objectiva fora do homem.
A concepção de Mach sobre o espaço e o tempo é idealista e abre as portas ao fideísmo, afirma
Lénine. E dá um exemplo: Mach escreveu que “não é obrigatório conceber os elementos químicos num
espaço de três dimensões”. Fazê-lo é “impor-se uma restrição desnecessária. Não há qualquer necessidade
de pensar as coisas puramente mentais espacialmente […]”229. Este argumento é perfeitamente
indiscutível do ponto de vista do machismo franco, analisa Lénine: “se […] os elementos químicos não
podem ser percebidos pelos sentidos quer dizer que são «coisas puramente mentais». E se assim é e se o
espaço e o tempo não têm um significado objectivamente real, é claro que não é de modo nenhum
obrigatório conceber os átomos espacialmente! Que a física e a química «se limitem» a um espaço de três
dimensões em que se move a matéria; no entanto, para explicar a electricidade pode procurar-se os seus
elementos num espaço que não tenha três dimensões!”230. Lénine mostra, através do posicionamento dos
próprios autores, como esta concepção de tempo e espaço “é uma passagem do campo das ciências da
natureza para o campo do fideísmo”231. Veja-se Anton Von Leclair, defensor inequívoco do fideísmo, que
proclamou Mach, por afirmações como aquela supracitada, como um grande filósofo, “um revolucionário
no melhor sentido da palavra”232, denuncia Lénine. Contrariamente a esta posição, as ciências da natureza
procuram e encontram – “pelo menos procuram tacteando” –, diz Lénine, o átomo da electricidade, o
electrão, num espaço de três dimensões. “As ciências da natureza não duvidam de que a substância que
estudam não existe senão num espaço de três dimensões e que, consequentemente, também as partículas
desta substância, ainda que sejam tão pequenas que não as possamos ver, existem «necessariamente» no
mesmo espaço de três dimensões”233.
Mach, repara Lénine, faz uma “defesa perfeitamente justa” dos matemáticos que estudam os
espaços imagináveis de n dimensões das acusações de estes retirarem conclusões monstruosas das suas
investigações. Mach reconhece, diz Lénine, que a matemática moderna colocou a questão
importantíssima e utilíssima do espaço de n dimensões como um espaço imaginável, mas só o espaço de
227V. I. Lénine, ibidem.228Cf. E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem.229idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p 136.230V. I. Lénine, ibidem.231idem, ibidem, p.137.232A. Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem.233V. I. Lénine, ibidem.
três dimensões permanece como “caso real”234. Portanto, teria sido em vão que muitos teólogos, que
quiseram tirar proveito da quarta dimensão, “experimentaram dificuldades no sentido de saber onde
colocar o inferno”235, diz Mach. Porém, a posição gnosiológica que Mach adopta nesta defesa dos
matemáticos e a pretensa demarcação dos teólogos e espiritualistas que faz ao afirmar que só o espaço de
três dimensões é real não se coaduna com o seu não reconhecimento do espaço e do tempo como uma
realidade objectiva.
Lénine conclui que Mach emprega “o método de tacitamente tomar ideias de empréstimo ao
materialismo quando é preciso afastar-se dos espiritistas. Porque os materialistas, reconhecendo o mundo
real, a matéria que percebemos, como a realidade objectiva, têm o direito de concluir daí que quaisquer
fantasias humanas, quaisquer que sejam os seus fins, que saem dos limites do tempo e do espaço são
irreais. Mas vós, senhores machistas”, continua Lénine, “negais a existência objectiva à «realidade» ao
lutar contra o materialismo, e tornais a introduzi-la em segredo quando é preciso combater o idealismo
consequente, resoluto até ao fim e aberto! Se no conceito relativo de tempo e de espaço não há nada além
de relatividade, se não existe nenhuma realidade objectiva ( = não dependente do homem nem da
humanidade) reflectida por estes conceitos relativos, por que é que a maior parte da humanidade não terá
o direito de conceber seres fora do tempo e do espaço? Se Mach tem o direito de procurar os átomos da
electricidade ou os átomos em geral fora do espaço de três dimensões, por que não terá a maior parte da
humanidade o direito de procurar os átomos ou os fundamentos da moral fora do espaço de três
dimensões?”236, pergunta Lénine.
Lénine analisa não só as posições de Mach nesta questão do espaço e do tempo, mas também dos
representantes franceses e ingleses do empiriocriticismo que são, considera, menos pretensiosos do que os
representantes alemães.
Poincaré, concordantemente com as suas posições que analisámos atrás, considera que os
conceitos de espaço e de tempo são relativos e que, por conseguinte, “não é a natureza que no-los dá (ou
impõe, impose)”, “somos nós que os damos à natureza, porque os achamos cómodos”237. Lénine
questiona: “acaso isto não justifica o entusiasmo dos kantianos alemães?”
Karl Pearson, por seu turno, põe a sua opinião de forma plenamente definida. Segundo ele, “não
podemos afirmar que o espaço e o tempo têm existência real; eles não se encontram nas coisas, mas na
nossa maneira de perceber as coisas”238. Para Pearson, o tempo, tal como o espaço, é um dos modos pelos
quais a faculdade cognitiva humana põe em ordem o seu material239. Isto, considera Lénine, é idealismo
franco e declarado. Pearson, com quem Mach frequentemente exprime o seu acordo, relembra Lénine,
nomeia sem quaisquer rodeios os clássicos dos quais retira a sua linha filosófica: Hume e Kant.
234Cf. E. Mach cit. por V. I. Lenine, ibidem.235Cf. idem cit. por V. I. Lenine, ibidem.236V. I. Lénine, ibidem, p.138.237H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.238K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.139.239Cf. K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.138.
Bogdánov escreveu que o tempo, tal como o espaço, “é uma forma de coordenação social da
experiência de diferentes pessoas” e que a sua “objectividade” reside no seu “significado universal”240.
Absolutamente falso, diz Lénine. “Também a religião, que exprime uma coordenação social da
experiência da maior parte da humanidade, tem um significado universal. Mas à doutrina da religião, por
exemplo, sobre o passado da Terra e sobre a criação do mundo, não corresponde nenhuma realidade
objectiva. À doutrina da ciência segundo a qual a Terra existiu antes de qualquer sociedade, antes da
humanidade, antes da matéria orgânica, existiu durante um determinado tempo, num espaço determinado
em relação aos outros planetas – a esta doutrina (embora ela seja tão relativa em cada fase do
desenvolvimento da ciência como é relativo cada estádio do desenvolvimento da religião) corresponde
uma realidade objectiva”241.
Só os machistas russos, que se pretendem marxistas – ao contrário dos próprios machistas, dos
seus adversários no campo dos naturalistas e ao contrário dos filósofos profissionais –, não notaram, sem
sombra de dúvida, o carácter idealista da doutrina de Mach do tempo e do espaço, conclui Lénine.
13. Liberdade e necessidade
Lénine expõe a forma como o materialismo dialéctico resolve a questão da liberdade e da
necessidade. Mostra como essa posição é inseparável dos fundamentos desta linha filosófica, isto é, como
ela é inseparável do reconhecimento da realidade objectiva e das leis objectivas da natureza. Evidencia,
assim, mais uma incoerência dos empiriocriticistas que pensam poder acolher e separar este aspecto da
linha filosófica materialista das bases sobre que assenta sustentando simultaneamente posições idealistas
e agnósticas. Lénine mostra as posições inconsequentes a que se chega caso se pretenda resolver esta
questão sem conhecer ou compreender a dialéctica.
Engels diz que
“Hegel foi o primeiro a apresentar correctamente a relação entre a liberdade e a necessidade. Para
ele, a liberdade é o conhecimento da necessidade. «A necessidade é cega só na medida em que
não é compreendida». A liberdade não consiste numa independência imaginária em relação às leis
da natureza, mas no conhecimento destas leis e na possibilidade, baseada neste conhecimento, de
as fazer actuar metodicamente para fins determinados. Isto diz respeito tanto às leis da natureza
exterior como às que regem a existência corporal e espiritual do próprio homem – duas classes de
leis que podemos separar uma da outra, quando muito, na nossa representação, mas não na
realidade. A liberdade da vontade não significa, portanto, senão a capacidade de decidir, com
conhecimento de causa. Deste modo, quanto mais livre for um juízo de um homem em relação a
uma determinada questão, maior será a necessidade com que é determinado o conteúdo desse
juízo...A liberdade consiste no domínio sobre nós mesmos e sobre a natureza exterior, fundado no
240A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.141.241V. I. Lénine, ibidem, p.142.
conhecimento das necessidades naturais.”242.
Lénine, examina, então, as premissas gnosiológicas em que assenta este raciocínio de Engels.
Em primeiro lugar, o reconhecimento das leis da natureza, a necessidade da natureza (aquilo a que os
empiriocriticistas chamam “metafísica”).
Em segundo lugar, considerando o conhecimento e a vontade do homem por um lado e a
necessidade da natureza por outro, Engels toma a necessidade da natureza como o primário e a vontade e
a consciência como o secundário. Engels, diz Lénine, não se preocupa em inventar “definições” da
liberdade e da necessidade.
Em terceiro lugar, diz Lénine, Engels não duvida da existência da necessidade não conhecida
pelo homem. Este é um ponto de vista que os empiriocriticistas não podem aceitar: “Conhecer a
existência de uma necessidade não conhecida? Não será isto «mística», não será «metafísica», não será
reconhecimento de «fetiches» e de «ídolos», não será a «kantiana coisa em si incognoscível»?” 243,
pergunta Lénine, assim caracterizando o posicionamento daquela linha filosófica em relação ao
materialismo. Lénine, respondendo aos machistas, faz notar a “identidade completa dos raciocínios de
Engels sobre a cognoscibilidade da natureza objectiva das coisas e sobre a transformação da «coisa em
si» em «coisa para nós», por um lado, e dos seus raciocínios sobre a necessidade cega, não conhecida, por
outro”244. São inseparáveis. Gnosiologicamente, diz, não há nenhuma diferença entre a transformação da
“coisa em si” em “coisa para nós” e a transformação da necessidade cega, não conhecida, “necessidade
em si” em “necessidade para nós”, conhecida, porque partem do mesmo ponto de vista fundamental, isto
é, o reconhecimento materialista da realidade objectiva do mundo exterior e das suas leis objectivas,
“sendo tanto este mundo como estas leis plenamente cognoscíveis para o homem, mas sem poderem
nunca ser conhecidos até ao fim”245. Lénine dá um exemplo: não conhecemos a necessidade dos
fenómenos meteorológicos e nessa medida somos escravos do tempo; mas sem conhecer esta necessidade
sabemos que ela existe. E esse conhecimento vem-nos precisamente de onde nos vem o conhecimento de
que as coisas existem fora da nossa consciência e independentemente dela: “do desenvolvimento dos
nossos conhecimentos, que mostra milhões de vezes a cada homem que a ignorância dá lugar ao saber
quando um objecto actua sobre os nossos órgãos dos sentidos, e o contrário: o saber transforma-se em
ignorância quando a possibilidade de tal acção é eliminada”246.
Em quarto lugar, Engels, no seu raciocínio, destaca Lénine, “aplica claramente o método do
«salto vital» em filosofia, isto é, dá um salto da teoria para a prática”247. Isto é contrário ao que fazem os
machistas que separam a teoria da prática: “para eles uma coisa é a teoria do conhecimento, em que é
preciso cozinhar com a maior subtileza verbal as «definições», e outra coisa completamente diferente é a
242F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.143.243V. I. Lénine, ibidem.244idem, ibidem.245idem, ibidem, p.144.246idem, ibidem.247idem, ibidem.
prática”. Lénine continua:
“Em Engels, toda a prática humana viva irrompe na própria teoria do conhecimento, fornecendo
um critério objectivo da verdade: enquanto não conhecemos uma lei da natureza, ela, existindo e
actuando à margem, fora do nosso conhecimento, faz de nós escravos da «necessidade cega».
Depois de tomarmos conhecimento desta lei, que actua (como Marx repetiu milhares de vezes)
independentemente da nossa vontade e da nossa consciência, tornamo-nos senhores da natureza.
O domínio sobre a natureza, que se manifesta na prática da humanidade, é o resultado de um
reflexo objectivamente fiel no espírito do homem dos fenómenos e dos processos da natureza, é a
prova de que este reflexo (nos limites daquilo que a prática nos mostra) é uma verdade objectiva,
absoluta, eterna.”248
Assim, como mostra Lénine, “cada passo do raciocínio de Engels, quase literalmente cada frase,
cada proposição, estão inteira e exclusivamente construídas sobre a gnosiologia do materialismo
dialéctico, sobre premissas que são a refutação contundente de todos os disparates machistas acerca dos
corpos como complexos de sensações […]”249. Os machistas não podem, por isso, sem cair (novamente)
em profunda incoerência, sem deixarem de ser inconsequentes, reter uma das aplicações do materialismo
dialéctico (da liberdade e da necessidade) e defenderem posições agnósticas e idealistas. E podem ainda
menos, no caso dos machistas russos, apresentar esta filosofia retirada “das eclécticas sopas dos pobres”,
indo “buscar a Mach um bocadinho de agnosticismo e um nadinha de idealismo, misturando isto com um
bocadinho de materialismo dialéctico de Marx” e dizer tratar-se do desenvolvimento do marxismo.
14. O empiriocriticismo, o seu desenvolvimento histórico e a sua correlação com outras correntes
filosóficas.
Lénine, até agora, analisou o empiriocriticismo tomado em separado. No entanto, há também que
considerá-lo, diz, “no seu desenvolvimento histórico, na sua ligação e correlação com outras correntes
filosóficas”250. Ao fazê-lo, Lénine porá em relevo a forma como os “os idealistas filosóficos” são
“companheiros de armas e sucessores do empiriocriticismo”.
Nesta análise é importante ter em conta algumas considerações que, embora soltas, atravessam o
raciocínio de Lénine. Registando-se diferenças entre Hume e Kant, os partidários das duas linhas são
igualmente agnósticos. Aquilo que o marxismo rejeita, reitera Lénine, não é o que distingue um agnóstico
de outro, não é o que distingue um positivista251 de outro, mas sim o que entre eles há de comum. Estas
questões devem ser analisadas indo ao seu fundo, isto é, indo à “divergência fundamental entre o
248idem, ibidem.249idem, ibidem.250idem, ibidem, p.147.251J. Petzoldt, discípulo de Mach e Avenarius, inclui directamente o empiriocriticismo no positivismo.
materialismo e toda a ampla corrente do positivismo, dentro da qual se encontram tanto Augusto Comte
como Herbert Spencer, tanto Mikahilóvski como uma série de neokantianos, tanto Mach como Avenarius”252. É possível encontrar diferentes filósofos, como evidencia Lénine, em que a mistura, ecléctica, de Kant
e Hume ou de Hume e Berkeley é feita, em diferentes proporções, sublinhando mais um ou outro aspecto
da mistura. “Vimos atrás”, diz, “por exemplo, que apenas um machista, H. Kleinpeter, se reconhece
abertamente a si e a Mach como solipsistas (isto é, berkeleyanos consequentes). Pelo contrário, o
humismo, nas concepções de Mach e Avenarius é sublinhado por muitos discípulos e partidários seus:
Petzoldt, Willy. Pearson, o empiriocriticista russo Lessévitch, o francês Henri Delacroix e outros”253.
Lénine cita outros exemplos, nomeadamente Huxley, cuja filosofia é tanto uma mistura de humismo e de
berkeleyanismo tal como a filosofia de Mach, mas em quem os “ataques berkeleyanos” são casuais e o
seu agnosticismo acaba por ser a parra do seu materialismo envergonhado254, diz Lénine255.
Duas perspectivas opostas na crítica ao kantismo
Mach reconhece que, embora tenha começado por Kant, seguiu a linha de Berkeley e Hume,
pensadores muito mais consequentes do que Kant, diz Mach. Também Avenarius se demarca de Kant
afirmando uma posição antagónica em relação a ele. O antagonismo expresso de Avenarius em relação a
Kant consiste em que, na opinião de Avenarius, Kant não teria depurado suficientemente a experiência. O
que Avenarius pretende é, em primeiro lugar, eliminar do “conteúdo da experiência” os “conceitos
apriorísticos da razão” e criar uma “experiência pura”256. Com esta eliminação, pretende eliminar o
reconhecimento da necessidade e da causalidade. Pretende, em segundo lugar, depurar o kantismo da
admissão da substância, isto é, da coisa em si, que, segundo Avenarius, é introduzida pelo pensamento no
material da experiência real257.
Na verdade, ao contrário do que Avenarius assume, a depuração do kantismo do apriorismo e da
admissão da coisa em si não é uma novidade da sua linha filosófica, mas sim a continuação da linha de
Hume e de Berkeley. “Na realidade”, diz Lénine, “o desenvolvimento da filosofia clássica alemã suscitou
imediatamente depois de Kant uma crítica do kantismo exactamente na mesma direcção seguida por
Avenarius”258, cujos representantes são Schulze-Aenesidemus, partidário do agnosticismo humista, e J. G.
Fichte, partidário do idealismo subjectivo. O agnóstico humista Schulze, chama Lénine a atenção, “rejeita
a doutrina kantiana da coisa em si como uma concessão inconsequente ao materialismo, isto é, à
252V. I. Lénine, ibidem, p.155-156.253idem, ibidem, p.157.254Diz Huxley: “Quem quer que conheça a história da ciência concordará que o seu progresso significou em todos os
tempos e significa hoje, mais do que nunca, a extensão do domínio daquilo a que chamamos matéria e causalidade, e o correspondente desaparecimento gradual de todos os domínios do pensamento humano de tudo aquilo a que chamamos espírito e espontaneidade”. Huxley cit. por V. I. Lénine, ibidem.
255Cf. V. I. Lénine, ibidem, p.157-158.256Cf. R. Avenarius cit. por V. I. Lénine ibidem, p.148.257Cf. R. Avenarius cit. por V. I. Lénine ibidem.258V. I. Lénine, ibidem.
afirmação «dogmática» de que a realidade objectiva nos é dada na sensação”, rejeita-a como uma
contradição com o agnosticismo. O idealista subjectivo Fichte diz que a admissão da coisa em si,
independente do nosso Eu, é realismo, que a admissão da coisa em si como “base da realidade objectiva”
é uma inconsequência de Kant que cai em contradição com o idealismo crítico259.
Assim, aquilo por que Avenarius pugna é por um “agnosticismo mais puro”, “pela eliminação da
admissão por Kant, contrária ao agnosticismo, de que existe a coisa em si, ainda que incognoscível,
inteligível, pertencente ao além, de que existe a causalidade e a necessidade, ainda que a priori, dadas no
pensamento e não na realidade objectiva. Lutou contra Kant não da esquerda, como lutaram contra Kant
os materialistas, mas da direita, como lutaram contra Kant os cépticos e os idealistas”260.
A acompanhar estas críticas dos empiriocriticistas, de um ponto de vista humista e berkeleyano,
estão, como nota Lénine, também os imanentistas como Leclair e Rehmke que censuram Kant por
“realismo”.
Vejamos como caracteriza Lénine a filosofia de Kant:
“O traço fundamental da filosofia de Kant é a conciliação do materialismo com o idealismo, o
compromisso entre um e outro, a combinação num só sistema de correntes filosóficas
heterogéneas e opostas. Quando Kant admite que às nossas representações corresponde algo fora
de nós, uma certa coisa em si – então Kant é materialista. Quando declara esta coisa em si
incognoscível, transcendente, pertencente ao além, Kant fala como idealista. Reconhecendo a
experiência, as sensações como fonte única dos nossos conhecimentos, Kant orienta a sua
filosofia pela linha do sensualismo, e, através do sensualismo, em certas condições, também do
materialismo. Reconhecendo o apriorismo do espaço, do tempo, da causalidade, etc., Kant orienta
a sua filosofia para o lado do idealismo. Esta indecisão valeu a Kant ser implacavelmente
combatido tanto pelos materialistas consequentes como pelos idealistas consequentes (e também
pelos agnósticos «puros», os humistas).”261
Criticando Kant pela esquerda, os materialistas censuram Kant pelo seu idealismo. Os
materialistas, como afirma Lénine, refutaram os traços idealistas e agnósticos do seu sistema,
demonstraram a cognoscibilidade, a terrenalidade da coisa em si, a sua existência objectiva, a ausência de
uma diferença fundamental entre ela e o fenómeno, que a coisa em si se transforma em fenómeno a cada
passo do desenvolvimento da consciência individual e colectiva, demonstraram a necessidade de deduzir
a causalidade, etc., não das leis apriorísticas do pensamento, mas da realidade objectiva262. Feuerbach, por
exemplo, criticando Kant pelo seu idealismo (Lénine cita aqui uma passagem na qual Kant trata a coisas
em si como coisa mental), identifica as mesmas contradições na filosofia de Kant a que Lénine se referia:
a filosofia de Kant “conduz, com uma necessidade inevitável, ao idealismo fichteano ou ao sensualismo”263, diz Feuerbach (Feuerbach defende o sensualismo objectivo, isto é, o materialismo). Também o
259Cf. Fichte cit. por Lénine, ibidem, p.149.260V. I. Lénine, ibidem, p.149.261idem, ibidem, p.149-150.262Cf. idem, ibidem, p.150.263L. Feuerbach cit. por V. I. Lénine, ibidem.
discípulo de Feuerbach, Albrecht Rau, (juntando-se a outros materialistas que Lénine cita sobre esta
questão particular), sublinha as mesmas contradições e faz notar que Kant não conseguiu livrar-se do
preconceito idealista de que a alma é algo totalmente diferente das coisas sensíveis. “Para o materialista”,
diz Rau, “a distinção entre os conhecimentos a priori e a «coisa em si» é absolutamente supérflua: ele não
interrompe em parte alguma a continuidade da natureza, não considera a matéria e o espírito coisas
fundamentalmente diferentes, mas somente aspectos de uma mesma coisa, e por isso não necessita de
nenhuns artifícios particulares para aproximar o espírito das coisas”264.
Toda a escola de Feuerbach, de Marx e de Engels criticou Kant do ponto de vista materialista
negando qualquer idealismo e agnosticismo. Mach e Avenarius seguiram a linha filosófica que criticou
Kant do ponto de vista humista e berkeleyano, a que se juntaram os machistas russos. Lénine denúncia
mais uma vez a apresentação destas ideias como um desenvolvimento do marxismo. A estes últimos, aos
machistas russo, Lénine responde dizendo que qualquer um “tem o sagrado direito de seguir o
reaccionário ideológico que quiser”, mas que, tendo rompido radicalmente com os próprios fundamentos
do marxismo em filosofia, não se podem reclamar de marxistas que apenas “completaram” Marx um
bocadinho265.
Os imanentistas e os empiriocriticistas
Lénine faz também um exame da atitude mútua entre empiriocriticistas e imanentistas,
mostrando que caminham de braços dados nas suas concepções fundamentais. Tornando explícitas as
premissas gnosiológicas de que partem os imanentistas, Lénine concede a palavra aos principais
representantes desta corrente filosófica: Leclair, Schuppe, Schubert-Soldern, Rehmke. Leclair, antes de
inventar o termo “imanentista” chamava-se a si próprio, aberta e francamente, idealista crítico. Este autor,
que luta contra a inclinação para o materialismo da maior parte dos naturalistas, apela: “voltemos atrás, ao
ponto de vista do idealismo crítico, não atribuamos à natureza no seu conjunto e aos processos da
natureza uma existência transcendente” (isto é, fora da consciência humana, clarifica Lénine); “então,
para o sujeito tanto o conjunto dos corpos como o seu próprio corpo, na medida em que ele o vê e o
percebe, juntamente com todas as suas modificações, será um fenómeno directamente dado de
coexistências espacialmente ligadas e de sucessões no tempo, e toda a explicação da natureza se reduz à
constatação destas coexistências e sucessões”266. Para Leclair, a natureza é um “fenómeno da
consciência”, não de um homem, mas do “género humano”267. Veja-se também Schuppe para quem “a
proposição «o ser é a consciência» significa que a consciência é inconcebível sem o mundo exterior, que,
consequentemente, este último pertence à primeira, isto é, a ligação absoluta entre uma e outro […],
264A. Rau cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.150.265V. I. Lénine, ibidem, p.155.266Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.162.267Cf. V. I. Lénine, ibidem.
ligação em que constituem o todo primordial único do ser”268. Isto é idealismo subjectivo, resume Lénine.
Schubert-Soldern considera que “em nenhum caso se pode opor ao espiritismo o materialismo das
ciências da natureza, porque este materialismo, como vimos, é apenas um aspecto do processo mundial
dentro da ligação espiritual universal”269. O reconhecimento da realidade objectiva, do mundo exterior é o
principal inimigo deste filósofo, afirma Lénine.
Lénine conclui: “O facto é que os imanentistas são rematados reaccionários, pregadores abertos
do fideísmo, de um obscurantismo consumado. Não há um só deles que não tenha consagrado
abertamente os seus trabalhos mais teóricos sobre gnosiologia à defesa da religião e à justificação deste
ou daquele medievalismo”. Veja-se Leclair, que defende a sua filosofia como satisfazendo “todas as
exigências de um espírito religioso”270, ou Schuppe, que afirma que se os imanentistas negam o
transcendente, Deus e a vida futura não se incluem de modo nenhum neste conceito271, diz Lénine, ou
Schubert-Soldern que deduz a pré-existência do nosso Eu antes do nosso corpo e a pós-existência do Eu
(imortalidade da alma)272.
É a estes filósofos imanentistas cujas posições foram delineadas em traços gerais pelas citações
precedentes que os empiriocriticistas manifestam o seu apreço. Esta convergência de posições é
demonstrada por Lénine através de citações como a de Mach na qual este afirma que: “Vejo actualmente
como toda uma série de filósofos – positivistas, empiriocriticistas, partidários da filosofia imanentista – e
também muitos poucos naturalistas, sem nada saberem uns dos outros, começaram a abrir novos
caminhos que, apesar de todas as diferenças individuais, convergem quase para um mesmo ponto” 273.
Lénine analisa: em primeiro lugar, nota a “confissão excepcionalmente verídica” de que muitos poucos
naturalistas são partidários da filosofia humista-berkeleyana, “pretensamente «nova», mas realmente
muito velha”; em segundo lugar, considera extraordinariamente importante a opinião segundo a qual esta
filosofia é uma ampla corrente, na qual os imanentistas estão em pé de igualdade com os
empiriocriticistas e os positivistas, diz Lénine. Confirmando a afinidade de fundo que existe entre estas
linhas filosóficas, também Avenarius afirma que a diferença entre ele e Schuppe “existe, talvez, só
temporariamente”274. Petzoldt coloca sob uma mesma corrente Schuppe, Mach e Avenrius. Apenas Willy
foi, talvez, o único machista destacado que se procurou demarcar de tais conclusões imanentistas, diz
Lénine.
Mas existe também reconhecimento no sentido inverso. O apreço dos imanentistas pelos
empiriocriticistas pode ser verificado na afirmação de Schuppe na qual ele diz que “a minha concepção
do pensamento concorda perfeitamente com a sua [de Avenarius] «experiência pura»”275, ou na
268W. Schuppe cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.163.269Schulbert-Soldern cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.164.270Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.162.271Schuppe cit. por V. I. Lénine, ibidem.272Cf. Schubert-Soldern cit. por V. I. Lénine, ibidem. Contra os sociais-democratas, Schubert-Soldern diz também,
na Questão Social, que estes “ignoram o facto de que, sem o dom divino da infelicidade, não haveria felicidade”. Fica bem patente o seu obscurantismo de que falava Lénine.
273E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.158.274R. Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.158-159.275Schuppe cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.159.
Introdução programática publicada no primeiro número do órgão filosófico especial dos imanentistas
onde se lê: “Mesmo no campo dos próprios naturalistas se elevam já vozes de pensadores isolados para
pregar contra a presunção crescente dos seus colegas e contra o espírito não filosófico que se apossou das
ciências a natureza. Assim, por exemplo, o físico Mach...Forças frescas põem-se em movimento em todo
o lado e trabalham para destruir a fé cega na infabilidade das ciências da natureza e começam a procurar
outros caminhos para as profundezas do misterioso, a procurar uma melhor entrada na morada da
verdade”276. Também do lado dos neocriticistas surge a mesma simpatia. No seu órgão, L'année
philosophique, diziam como “é inútil falar da medida em que, com esta crítica da substância, da coisa, da
coisa em si, a ciência positiva do Sr. Mach concorda com o idealismo neocriticista”277. Contudo, os
machistas russos, não deixaram de procurar escamotear estas relações, envergonhados desta afinidade
com os imanentistas.
Em que direcção cresce o empiriocriticismo?
Lénine analisa a direcção que toma o crescimento do empiriocriticismo que, como qualquer
outra corrente ideológica, se desenvolve. “O seu crescimento numa ou noutra direcção”, diz Lénine,
“ajudará, melhor do que longos raciocínios, a resolver a questão fundamental da verdadeira natureza desta
filosofia”278. Os filósofos devem ser julgados não pelos rótulos que eles próprios se atribuem, mas pela
forma como resolvem as questões fundamentais, pelas pessoas com quem andam de mãos dadas e pelo
que ensinaram aos seus discípulos, considera Lénine. Assim, para obter uma imagem do
empiriocriticismo como corrente filosófica (e não como “colectânea de raridades literárias”, tendo até em
conta o facto de que o eclectismo desta corrente gera inevitavelmente diversas interpretações), Lénine
recorre ao estudo das posições de um conjunto de seguidores (reconhecidos) da corrente de Mach e
Avenarius. Vejamos brevemente algumas citações, a título indicativo, que ficam necessariamente aquém
do quadro mais completo dado por Lénine.
Mach recomenda Hans Cornelius. Este é um seu discípulo que chega à imortalidade e a Deus,
repara Lénine. Para Cornelius, o materialismo transforma o homem num autómato uma vez que mina “a
fé na liberdade das nossas decisões” e, para além disso, “não deixa lugar para a ideia de continuação da
nossa vida após a morte”279, lamenta Cornelius. Lénine confronta esta com a afirmação de Bogdánov que
diz que não há absolutamente lugar para as ideias de Deus, do livre arbítrio e da imortalidade da alma na
filosofia de Mach. Assim se vê quão erradas são as considerações dos machistas russos quanto ao fundo
desta filosofia. Bogdánov ignora que esta corrente vai até ao fideísmo280.
276Revista de Filosofia Imanentista, t.I, Berlim, 1896, p. 6-9 cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.160.277L'année philosophique, t. 15, 1904, p. 179. cit. por V. I. Lénine, ibidem.278V. I. Lénine, ibidem, p.165.279H. Cornelius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 166.
280Lénine mostra ainda como Petzoldt, indignado com as “falsidades” de Cornelius, procura refutá-las. A forma como o faz é uma “verdadeira pérola”, diz Lénine: “Petzoldt apercebeu-se da falsidade de
Hans Kleinpeter é igualmente reconhecido por Mach. Mach diz subscrever no essencial a
exposição sistemática que Kleinpeter faz das suas (Mach) concepções. Veja-se alguns excertos dessa
exposição: “toda a minha experiência […] são me dados [….] como uma parte da minha consciência”;
“aquilo que chamamos físico é uma construção de elementos psíquicos”; “a convicção subjectiva, e não a
certeza objectiva, é o único fim acessível de toda a ciência”; “a suposição da existência de outras
consciências além da nossa é uma suposição que não pode nunca ser confirmada pela experiência”; “que
se podem apresentar muitas teorias sobre um só e mesmo domínio de factos... isto é um facto tão bem
conhecido do físico como incompatível com as premissas de qualquer teoria absoluta do conhecimento. E
este facto está ligado ao carácter volitivo do nosso pensamento; e nele se exprime a independência da
nossa vontade em relação às circunstâncias exteriores”281. E Lénine repete o argumento: “ajuizai agora da
ousadia das declarações de Bogdánov de que na filosofia de Mach «não há absolutamente lugar para o
livre-arbítrio», quando o próprio Mach recomenda um indivíduo como Kleinpeter”282.
Outro filósofo que Mach reconhece seguir vias muito próximas das suas é Theodor Ziehen. Para
Ziehen, só a “turba” é capaz de pensar que “as nossas sensações são suscitadas pelas coisas reais”. Para
ele, “à entrada da teoria do conhecimento não pode haver nenhuma inscrição senão as palavras de
Berkeley: «os objectos exteriores existem não por si, mas nas nossas mentes»”283. Petzoldt também
renegou Ziehen como idealista, constata Lénine. Mas, segundo Petzoldt, trata-se de um “mal-entendido”
na interpretação das “concepções de Mach e Avenarius”284. Não, não se trata de um mal-entendido, mostra
Lénine. A presença do idealismo na corrente empiriocriticista é reconhecida não só pelos seus oponentes
como pelos seus seguidores. Lénine ironiza: “pobres Mach e Avenarius! Não só os inimigos os
caluniaram, acusando-os de idealismo e «até» (como se exprime Bogdánov) de solipsimo – não, também
os amigos, os discípulos, os seguidores, os professores de ofício, compreenderam mal os seus mestres,
num sentido idealista. Se o empiriocriticismo evolui transformando-se em idealismo, isto não prova de
modo nenhum a falsidade das suas confusas premissas fundamentais berkeleyanas. Deus nos livre! Isto é
Cornelius sem ser advertido, mas a sua maneira de combater esta falsidade é uma verdadeira pérola. Escutem: «Afirmar que o mundo é uma representação» (como afirmam os idealistas, não se riam!) «só tem sentido se com isto se quer dizer que o mundo é uma representação daquele que fala ou pelo menos de todos os que falam, isto é, que a sua existência depende exclusivamente do pensamento dessa pessoa ou dessas pessoas: o mundo só existe na medida em que esta pessoa o pensa, e quando ela não o pensa, o mundo não existe. Nós, ao contrário, fazemos depender o mundo não do pensamento de determinada pessoa ou de determinadas pessoas, ou ainda melhor e mais claramente: não do acto do pensamento, não de qualquer pensamento actual (real), mas do pensamento em geral e exclusivamente no sentido lógico. O idealista confunde uma coisa e outra e o resultado é um semi-solipsismo agnóstico, tal como o vemos em Cornelius». Este aniquilamento do idealismo mais se assemelha a um conselho sobre como melhor esconder o idealismo, diz Lénine e ironiza: “Dizer que o mundo depende do pensamento dos homens é uma falsidade idealista. Dizer que o mundo depende do pensamento em geral é positivismo moderno, realismo crítico, numa palavra, perfeito charlatanismo burguês! Se Cornelius é um semi-solipsita agnóstico, Petzoldt é um semi-agnóstico solipsita. Estais a esmagar uma pulga, senhores!”. ibidem, p.167.
281H. Kleinpeter cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.167-168.282V. I. Lénine, ibidem, p.168.283T. Ziehen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.169.284J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem.
apenas um pequeno «mal-entendido» […] Se Petzoldt conhecesse os partidários ingleses de Mach, teria
de alargar muito a lista dos machistas que caíram (por «mal-entendido») no idealismo”285. (Lénine refere-
se a Karl Pearson e a William Clifford, idealistas reconhecidos e apreciados por Mach).
Um último apontamento sobre P. Carus. Este norte-americano dirige uma revista dedicada à
propaganda da religião. A sua redacção afirma que “a ciência é uma revelação divina” e defende “a
opinião de que a ciência pode realizar uma reforma da Igreja que conserve tudo o que a religião tem de
verdadeiro, de são e de bom”. Este filósofo, que perfilha estas opiniões, é um admirador de Mach que
considera que ambos pensam da mesma maneira. A ele Mach também faz referência. A divisa de Carus é,
nota Lénine, “não agnosticismo, mas ciência positiva [...]”. Este exemplo mostra bem quão próxima está a
filosofia empiriocriticista do fideísmo.
O empiriomonismo de A. Bogdánov
Bogdánov afirma peremptoriamente que as suas concepções satisfazem o primado da natureza
sobre o espírito. Lénine, analisando as concepções de Bogdánov, mostra como tal afirmação é falsa. Ao
fazê-lo, está a evidenciar como, sob diferentes formulações, é possível encontrar as mesmas concepções
idealistas, mais ou menos explícitas, mais ou menos assumidas, está a evidenciar que é preciso procurar a
verdadeira natureza de uma corrente filosófica sob a roupagem verbal que utiliza.
Procurando demonstrar o seu pretenso materialismo, Bogdánov afirma que considera “tudo o que
existe como uma cadeia ininterrupta do desenvolvimento, cujos elos inferiores se perdem no caos dos
elementos, enquanto os elos superiores, por nós conhecidos, representam a experiência dos homens, a
experiência psíquica e, mais alto ainda, a experiência física; e esta experiência e o conhecimento que dela
surge corresponde àquilo a que habitualmente se chama espírito”286. Chamar experiência dos homens ao
mundo físico e declarar que a experiência física está mais alto na cadeia do desenvolvimento do que a
experiência psíquica é absurdo, diz Lénine, é o mesmo absurdo idealista287. Este suposto primado da
natureza que Bogdánov diz defender não é, na verdade, nenhum primado, pois a natureza não é tomada
como o imediatamente dado, como ponto de partida da gnosiologia, diz Lénine. E Lénine continua:
“De facto até à natureza há ainda uma longa transição através de abstracções do «psíquico».
Pouco importa como são chamadas estas abstracções: ideia absoluta, Eu universal, vontade do
mundo, etc., etc. Distinguem-se assim as variedades do idealismo, e existe um número infinito
dessas variedades. A essência do idealismo consiste em tomar o psíquico como ponto de partida; a
partir dele deduz-se a natureza e só depois da natureza se deduz a consciência humana comum.
Este «psíquico» primordial revela-se sempre, portanto, uma abstracção morta que esconde uma
teologia diluída. Por exemplo, todos sabem o que é uma ideia humana, mas a ideia sem o homem
e anterior ao homem, a ideia em abstracto, a ideia absoluta, é uma invenção teológica do idealista
285V. I. Lénine, ibidem.286A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.171.287Cf. V. I. Lénine, ibidem, p.172.
Hegel. Todos sabem o que é uma sensação humana, mas a sensação sem o homem, anterior ao
homem, é um absurdo, uma abstracção morta, um artifício idealista.”288
Vejamos um outro exemplo em que o mesmo artifício de Bogdánov se manifesta: “O domínio da
substituição coincide com o domínio dos fenómenos físicos; os fenómenos psíquicos não têm de ser
substituídos por nada, pois são complexos imediatos”289. Isto é precisamente idealismo, denuncia Lénine,
porque o psíquico é tomado como o imediato, enquanto que o físico é deduzido dele, substituído por ele.
E Lénine evidencia a mesma posição fundamental entre diferentes doutrinas idealistas: “O mundo é o
não-Eu criado pelo nosso Eu – dizia Fichte. O mundo é a ideia absoluta – dizia Hegel. O mundo é
vontade – dizia Schoppenhauer. O mundo é conceito e representação – diz o imantista Rehmke. O ser é a
consciência – diz o imanentista Schuppe. O físico é a substituição do psíquico – diz Bogdánov”290.
Bogdánov afirma textualmente que “a própria natureza física é um derivado dos complexos de
carácter imediato (a cujo número pertencem também as coordenações psíquicas), que ela é um reflexo
destes complexos noutros, análogos a eles, mas do tipo mais complexo (na experiência socialmente
organizada dos seres vivos)”291. Ora, conclui Lénine, “uma filosofia que ensina que a própria natureza
física é um derivado é uma pura filosofia do clericalismo. E este seu carácter não é de modo nenhum
alterado pelo facto de Bogdánov renegar energicamente qualquer religião”292. E continua um pouco mais
à frente afirmando que se existe alguma coisa fora da natureza e que, além disso, produz a natureza, a isso
chama-se Deus. “Os filósofos idealistas sempre se esforçaram por modificar esta última designação, por
torná-la mais abstracta, mais nebulosa […]. Ideia absoluta, espírito universal, vontade do mundo,
«substituição geral» do físico pelo psíquico, são a mesma ideia, só que em formulações diferentes”293.
À organização social da experiência que Bogdánov refere, julgando tratar-se de “socialismo
cognitivo”, Lénine responde: disparate – também o catolicismo é uma experiência socialmente organizada
só que ele não reflecte a verdade objectiva. “O materialismo diz que a «experiência socialmente
organizada dos seres vivos» é um derivado da natureza física, o resultado de um longo desenvolvimento
dela, desenvolvimento a partir de um estado da natureza física em que ainda não havia e não podia haver
nem sociedade, nem organização, nem experiência, nem seres vivos. O idealismo diz que a natureza física
é um derivado desta experiência dos seres vivos e, dizendo isto, equipara (se é que não subordina) a
natureza a Deus. Porque Deus é, indubitavelmente, um derivado da experiência socialmente organizada
dos seres vivos”294. Da mesma forma, o idealismo não desaparece, sublinha Lénine, caso se substitua a
consciência de um indivíduo pela consciência da humanidade, ou a experiência de um só homem pela
experiência socialmente organizada.
Assim, conclui Lénine, Bogdánov é apenas “uma das manifestações aquela «experiência
288idem, ibidem.289A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.173.290V. I. Lénine, ibidem.291A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem.292V. I. Lénine, ibidem.293V. I. Lénine, ibidem, p.174.294idem, ibidem.
socialmente organizada» que testemunha o crescimento do machismo, transformando-se em idealismo.
A teoria dos símbolos
Lénine considera importante, no quadro de uma avaliação da relação do empiriocriticismo com
outras correntes filosóficas, observar o carácter da crítica machista a certas teses filosóficas. Aquilo que
está em apreço é a “teoria dos símbolos” (ou hieróglifos) e a crítica a Helmholtz.
Lénine refere-se à “teoria dos símbolos” como aquela “segundo a qual as sensações e as
representações do homem não são uma cópia das coisas e processos reais da natureza, não são imagens
deles, mas sinais convencionais, símbolos, hieróglifos, etc.”295.
Plekhánov, nos comentários que fez à primeira edição russa do livro de Engels, Ludwig
Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, ao expor a teoria materialista do conhecimento, disse
que “as nossas sensações são uma espécie de hieróglifos que nos informam do que se passa na realidade.
Os hieróglifos não se assemelham aos factos que nos transmitem. Mas podem transmitir-nos com perfeita
fidelidade tanto os próprios acontecimentos como – e isto é o principal – as relações que existem entre
eles”. Isto é um erro, considera Lénine. Mais tarde, nas notas para a segunda edição, Plekhánov confessa
que se “exprimiu com certa imprecisão”296. Porém, o machista Bazárov, diz Lénine, em vez de mostrar o
desvio de Plekhánov da formulação do materialismo feita por Engels, utiliza o erro de Plekhánov para
introduzir a sua própria renúncia ao materialismo sob a capa de crítica ao “hieroglifismo”.
Lénine pretende mostrar como Helmholtz, destacado representante da “teoria dos símbolos” (a
substituição da palavra símbolo por hieróglifo não muda a questão, repara Lénine), foi criticado pelos
materialistas e pelos idealistas juntamente com os machistas. Analisando as posições de Helmholtz,
conclui que esta “figura de primeira grandeza nas ciências da natureza”, foi inconsequente em filosofia
tendo misturado, em diferentes medidas, aspectos idealistas e materialistas. Helmholtz diz, por exemplo,
acerca da correspondência dos conceitos com os objectos, que “designei as sensações como símbolos dos
fenómenos exteriores e recusei-lhes qualquer analogia com as coisas que representam”297. Isto é
agnosticismo, diz Lénine. Mas, pouco mais à frente, diz: “Os nossos conceitos e representações são
efeitos que os objectos que vemos ou que imaginamos produzem sobre o nosso sistema nervoso e a nossa
consciência”. Isto, por seu turno, diz Lénine, é materialismo. Helmholtz também não tem uma ideia clara
da relação entre a verdade relativa e a verdade absoluta. Quando Helmholtz diz que “a ideia e o objecto
por ela representado são duas coisas que pertencem, evidentemente, a dois mundos completamente
diferentes...” está a fazer uma afirmação tipicamente kantiana, pois “só os kantianos separam assim a
ideia e a realidade, a natureza e a consciência”298, diz Lénine. Porém, quando diz “no que respeita, antes
295idem, ibidem, p.176.296Cf. Notas dos editores. Nota 75. ibidem.297Helmholtz cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.177.298V. I. Lénine, ibidem.
de mais, às qualidades dos objectos exteriores, basta um pouco de reflexão para ver que todas as
qualidades que lhes podemos atribuir designam exclusivamente a acção dos objectos exteriores, quer
sobre os nossos sentidos quer sobre outros objectos da natureza”299, regressa ao ponto de vista
materialista, expõe Lénine. Assim, conclui Lénine, Helmholtz foi um kantiano inconsequente que ora
reconhecia as leis apriorísticas do pensamento, ora se inclinava para a “realidade transcendente” (isto é,
para a concepção materialista deles); ora deduzia as sensações a partir dos objectos exteriores que actuam
nos nossos órgãos dos sentidos, ora declarava as sensações apenas símbolos, isto é, sinais arbitrários
separados de um mundo “absolutamente diferente” das coisas significadas300. Momentos há em em que o
agnosticismo de Helmholtz se assemelha a um “materialismo envergonhado” com invectivas kantianas301,
diz Lénine.
Por estas posições vacilantes, Helmholtz foi criticado de um ponto de vista materialista e
idealista. Veja-se o conteúdo da crítica da parte dos materialistas, dando a palavra a Albrecht Rau,
seguidor de Feuerbach: “Se Helmholtz se mantivesse fiel à sua concepção realista” – que, segundo Rau, é
a sua concepção básica e segundo a qual conhecemos, através dos nossos sentidos, as propriedades
objectivas das coisas – se sustentasse consequentemente o princípio de que as propriedades dos corpos
exprimem tanto as relações dos corpos entre si como as suas relações connosco, evidentemente não teria
sido necessária toda esta teoria dos símbolos; poderia então, exprimindo-se com concisão e clareza, ter
dito: «as sensações que são provocadas em nós pelas coisas são imagens da essência destas coisas»” 302.
Lénine complementa: “É indiscutível que a imagem jamais pode ser inteiramente igual ao modelo, mas
uma coisa é uma imagem e outra coisa é um símbolo, um sinal convencional. A imagem supõe necessária
e inevitavelmente a realidade objectiva daquilo que «se reflecte». O «sinal convencional», o símbolo, o
hieróglifo, são conceitos que introduzem um elemento completamente desnecessário de agnosticismo”303.
Da parte dos idealistas, veja-se a crítica do imanentista Leclair para quem a teoria dos símbolos é
demasiado materialista. “Helmholtz”, diz Leclair, “supõe que as percepções da nossa consciência
oferecem suficientes pontos de apoio para conhecer a sequência no tempo e a identidade ou não
identidade das causas transcendentes. Isto é suficiente, segundo Helmholtz, para supor uma ordem regida
por leis no domínio do transcendente”304 (isto é, do objectivamente real). Ora, para Leclair, isto é
“preconceito dogmático”.
Veja-se, então, por fim, através de Kleinpeter, qual o conteúdo da crítica dos empiriocriticistas a
Helmholtz. Kleinpeter, fazendo uma identificação das premissas do pensamento de Helmholtz, indigna-se
299Helmholtz cit. por V. I. Lénine, ibidem.300Cf. Victor Heyfelder cit. por V. I. Lénine, ibidem.301Diz Helmholtz, contra sistemas como os do idealismo subjectivo que consideram a vida como um sonho: “Sem
dúvida que a hipótese realista é a mais simples que podemos formular, experimentada e confirmada em domínios de aplicação extremamente vastos, determinada com precisão nas suas diversas partes e por isso útil e fecunda no mais alto grau como base da acção”. Para Helmholtz, a hipótese realista é aquela que “confia no juízo da auto-observação comum”, que “considera tudo o que é confirmado pelas percepções quotidianas, o mundo material fora de nós, como existindo independentemente das nossas observações”. Helmohlt cit. por V. I. Lénine, ibidem.
302A. Rau cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.179.303V. I. Lénine, ibidem.304A. Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.179.
contra elas – falamos de premissas como a existência de objectos do mundo exterior, a impossibilidade de
modificação de um objecto sem ser por via de uma causa considerada como real, a possibilidade da
dedução unívoca dos fenómenos a partir das suas causas, a possibilidade de obtenção da verdade
objectiva, etc305. Para Kleinpeter, “todo o raciocínio de Helmholtz peca pela compreensão errada das
palavras massa, força, etc. Com efeito, isto são apenas conceitos, produtos da nossa fantasia, e de modo
nenhum realidades existentes fora do pensamento. Não estamos absolutamente em condições de conhecer
quaisquer realidades. Da observação dos nossos sentidos não estamos em geral em condições, devido à
sua imperfeição, de tirar uma conclusão unívoca”, diz Kleinpeter. Para ele, “conhecer algo real existente
fora de nós – isso é-nos inteiramente impossível”; “não há ligação lógica entre os factos, mas apenas uma
simples sucessão”; “é impossível alcançar a verdade objectiva”... A teoria dos símbolos, diz Lénine, nem
sequer é destacada especialmente por Kleinpeter, considerada um desvio, talvez acidental, do
materialismo. Estamos, pois, perante uma rejeição da filosofia de Helmholtz do ponto de vista idealista
vinda da parte dos machistas, conclui Lénine.
Sobre a dupla crítica de Dühring
A crítica a Dühring foi feita de duas perspectivas opostas: de um ponto de vista materialista e de
um ponto de vista idealista. Analisar o conteúdo dessas críticas permite conhecer melhor o carácter das
correntes filosóficas de onde elas partem. E permite compreender a deturpação presente num outro traço
característico da crítica machista ao marxismo. Por um lado, diz Lénine, o machista Valentínov quer bater
os marxistas comparando-os com Büchner (que diz ter uma quantidade de semelhanças com Plekhánov).
Mas Engels demarcara-se nitidamente de Büchner. Por outro lado, Bogdánov “parece defender o
«materialismo dos naturalistas», do qual, diz ele, «se costuma falar com um certo desprezo»” 306. Marx e
Engels, diz Lénine, “sempre condenaram o mau materialismo (e, principalmente, o antidialéctico), mas
condenaram-no do ponto de vista de um materialismo mais elevado, mais desenvolvido, do materialismo
dialéctico, e não do ponto de vista do humismo ou do berkeleyanismo”307.
Vejamos, pois, quais os fundamentos e objectivos dessa dupla crítica, conforme evidenciado por
Lénine a propósito da crítica a Dühring. O imanentista Leclair critica Dühring por ser a “extrema-
esquerda” do materialismo que declara sem evasivas a consciência como a flor suprema do organismo
animal; por reconhecer as leis objectivas da natureza reflectidas pela consciência, posição que adjectiva
de “metafísica extremamente grosseira”; por reconhecer a existência do mundo independentemente da
consciência ao que chama “dogma metafísico”. Engels ridicularizava a grandiloquência de Dühring, mas
estava plenamente de acordo quanto a estes aspectos, diz Lénine. O que Engels criticava em Dühring era
as inconsequências do seu materialismo, as suas fantasias idealistas, o seu materialismo insuficientemente
305Cf. H. Kleinpeter cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.180.306V. I. Lénine, ibidem, p.181.307idem, ibidem.
firme, diz Lénine308. “Se Engels tivesse visto de que lado Leclair, de braço dado com Mach, vinha criticar
Dühring, teria aplicado a estes reaccionários filosóficos termos cem vezes mais desdenhosos do que a
Dühring”309, conclui.
O objectivo da crítica de Marx, Engels e Dietzgen aos “maus materialistas” era, porque os
tomavam em consideração, a correcção dos seus erros. Porém, dos humistas e berkeleyanos, de Mach e
Avenarius, nem teriam falado, diz Lénine, mas sim de toda a sua linha filosófica.
Engels, criticando Feuerbach por abandonar por vezes o materialismo devido aos erros de tal ou
tal escola materialista, diz que ele (Feuerbach) “não tinha o direito de confundir a doutrina dos pregadores
ambulantes (Büchner e Cª.) com o materialismo em geral”310. Ora, Engels critica Büchner e Cª., referindo-
se aos materialistas metafísicos, não pelo seu materialismo, mas por “não terem sequer pensado em
desenvolver a teoria” do materialismo. Engels enumera estas limitações do materialismo do século XVIII
(a que já fizemos breve referência na introdução). Relembra Lénine:
“Primeira limitação: a concepção dos antigos materialistas era «mecanicista» no sentido de que
eles «aplicavam exclusivamente os padrões da mecânica aos processos de natureza química e
orgânica. Veremos […] como a incompreensão destas palavras de Engels levou a que certas
pessoas, através da nova física. Fossem parar ao idealismo. Engels não rejeita o materialismo
mecanicista com base naquilo de que o acusam os físicos da corrente idealista (aliás, machista)
«moderna». Segunda limitação: o carácter metafísico das concepções dos antigos materialistas, no
sentido do «carácter anti-dialéctico da sua filosofia» . Esta limitação é inteiramente partilhada
com Büchner e Cª. pelos nossos machistas, que, como vimos, não compreenderam absolutamente
nada da aplicação por Engels da dialéctica à gnosiologia (por exemplo, a verdade absoluta e
relativa). Terceira limitação: a manutenção do idealismo «em cima», no domínio da ciência social,
a incompreensão do materialismo histórico”.311
É preciso ter em conta as condições históricas das obras filosóficas de Engels e Dietzgen. Assim,
compreender-se-á a razão por que “eles se demarcaram mais da vulgarização das verdades elementares
do materialismo do que defenderam estas mesmas verdades”312, diz Lénine. Assim, tendo eles entrado na
carreira filosófica numa fase em que o materialismo era dominante, é perfeitamente natural que “tenham
dedicado a sua atenção não à repetição das velhas ideias, mas ao desenvolvimento teórico sério do
materialismo, à sua aplicação à história, isto é, à construção do edifício da filosofia materialista até ao
cimo. É perfeitamente natural que se tenham limitado, no domínio da gnosiologia, a corrigir os erros de
Feuerbach, a ridicularizar as banalidades do materialista Dühring, a criticar os erros de Büchner (ver J.
Dietzgen), a sublinhar aquilo que particularmente faltava aos escritores mais difundidos e mais populares
no meio operário, a saber: a dialéctica”313. Dedicaram-se, diz Lénine, a que o materialismo não fosse
308Cf. idem, ibidem, p.183.309idem, ibidem, p.184.310F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.182.311V. I. Lénine, ibidem. Cf. F. Engels312V. I. Lénine, ibidem, p.184.313idem, ibidem.
vulgarizado, simplificado em excesso, que não levasse a uma estagnação do pensamento e que não
levasse “ao esquecimento do fruto precioso dos sistemas idealistas, a dialéctica hegeliana”314.
Sobre Joseph Dietzgen e o aproveitamento dos seus erros pelos machistas
Joseph Dietzgen foi um operário e filósofo alemão que chegou por si mesmo ao materialismo
dialéctico. Porém, exprime as suas ideias por vezes de forma confusa e contendo imprecisões e erros. No
entanto, diz Lénine “pondo de lado os defeitos da exposição e os erros de pormenor, não é sem êxito que
defende a «teoria materialista do conhecimento», o «materialismo dialéctico»”315. Marx dizia numa carta
a Kugelmann: “Há já muito tempo, Dietzgen enviou-me um fragmento de um manuscrito sobre a
Faculdade de Pensar que, apesar de uma certa confusão nos conceitos e de repetições demasiado
frequentes, contém muitas ideias excelentes e, como produto do pensamento independente de um
operário, dignas de admiração”316.
Sucede que os machistas, em particular os machistas russos, não quiseram compreender onde
residia a “confusão” a que Marx se referia, diz Lénine: se era naquilo que aproximava ou separava
Dietzgen de Mach. O que os machistas não quiseram ver era que aquilo a que Marx chamava confusão
residia não no materialismo de Dietzgen, mas nos seus afastamentos dele, denuncia Lénine.
Lénine analisa alguns dos erros de Dietzgen. Este filósofo, após afirmações plenamente
materialistas em que considera o pensamento como um produto do cérebro, diz que “também a
representação não sensível é sensível, material, isto é, real...O espírito não se distingue mais da mesa, da
luz, dos som, do que estas coisas se distinguem umas das outras”317. Lénine replica que o erro é aqui
evidente: “que tanto o pensamento como a matéria são «reais», isto é, existem é verdade. Mas qualificar o
pensamento de material é dar um passo errado em direcção à confusão do materialismo e do idealismo.
No fundo, isto é antes uma expressão inexacta de Dietzgen”318, considera. Dietzgen repete nas Excursões
que o conceito de matéria deve ser alargado por forma a incluir também o pensamento. Ao responder a
Dietzgen, Lénine acaba esclarecendo os limites da oposição entre matéria e espírito afirmando que a
posição de Dietzgen
“é uma confusão porque com tal inclusão perde o sentido a oposição gnosiológica da matéria e do
espírito, do materialismo e do idealismo, oposição em que o próprio Dietzgen insiste. Que esta
oposição não deve ser «excessiva», exagerada, metafísica, é indiscutível (e o grande mérito do
materialista dialéctico Dietzgen consiste em ter sublinhado isto). Os limites da necessidade
absoluta e da verdade absoluta desta oposição relativa são precisamente os limites que
determinam a orientação das investigações gnosiológicas. Operar para além destes limites com a
antítese da matéria e do espírito, do físico e do psíquico como uma antítese absoluta, seria um erro
314idem, ibidem.315J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.187.316K. Marx cit. por V. I. Lénine, ibidem.317J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.185.318V. I. Lénine, ibidem.
enorme”319.
Dietzgen chega também a reconhecer “o lado positivo do idealismo contemporâneo” e a
“insuficiência do princípio materialista”, o que deve alegrar os machistas, diz Lénine. Porém, no entender
de Lénine, “a ideia incorrectamente expressa de Dietzgen consiste em que também a diferença entre a
matéria e o espírito é relativa, não excessiva320. Isto é justo, mas daqui não decorre a insuficiência do
materialismo, mas a insuficiência do materialismo metafísico, antidialéctico”321.
É sem sombra de dúvida que Dietzgen partilha o reconhecimento da verdade objectiva e a
definição de materialismo feita por Engels. Porém, afirma que “podíamos, com o mesmo direito, chamar-
nos idealistas, porque o nosso sistema assenta no resultado total da filosofia, na investigação científica da
ideia, na compreensão clara da natureza do espírito”322. Lénine clarifica a questão: “Não é difícil agarrar-
se a esta frase, evidentemente errada, para rejeitar o materialismo. Na realidade a formulação de Dietzgen
é mais errada do que a ideia fundamental, que se limita a indicar que o velho materialismo era incapaz de
investigar cientificamente as ideias […]”323.
Concluindo, foi a estes erros de Dietzgen – que é em 9/10 um materialista, que nunca aspirou
nem à originalidade, nem a uma filosofia particular diferente do materialismo324 – que os machistas russos
se agarraram, diz Lénine, para se afastarem do marxismo. Partiram daquilo que nele há de fraco, em vez
daquilo que nele há de grande – “neste operário-filósofo, que descobriu à sua maneira o materialismo
dialéctico, há muito de grande!”325, diz Lénine.
15. A moderna revolução nas ciências da natureza e o idealismo filosófico
A crise da física: “a matéria desapareceu”
No início do século XX enfrentava-se uma “crise na física”. Lénine analisa o carácter desta crise.
Analisa o seu significado à luz do materialismo dialéctico e relaciona determinadas escolas da física com
determinadas correntes filosóficas. Em particular, mostra como uma determinada escola da “nova física”
se relaciona, sem “qualquer dúvida”, com o machismo e outras variedades da filosofia idealista
contemporânea, mostra a forma como essa escola de físicos está ligada ao renascimento do idealismo
filosófico326. Lénine está, evidentemente, longe de pensar em tratar de teorias especiais da física, diz.
Aquilo em que está interessado é exclusivamente nas conclusões gnosiológicas de algumas proposições
319idem, ibidem, p.186.320Cf. J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.185.321V. I. Lénine, ibidem.322J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.186.323V. I. Lénine, ibidem.324idem, ibidem, p.187.325idem, ibidem, p.188.326idem, ibidem, p.191.
determinadas e de descobertas geralmente conhecidas. “A nossa tarefa”, diz Lénine, “limita-se, portanto,
a mostrar claramente em que consiste a essência das divergências destas correntes e a sua relação com as
linhas fundamentais da filosofia”327.
Henri Poincaré fala daquilo que considera serem “indícios de uma crise séria”328: para além da
descoberta do rádio minar o princípio da conservação da energia, “todos os outros princípios estão
igualmente em perigo”. Estamos perante a “derrocada geral dos princípios”, diz. Por exemplo, o princípio
da conservação da massa vê-se minado pela teoria electrónica da matéria329. Daqui, Poincaré retira
conclusões gnosiológicas idealistas (como vimos atrás): a destruição dos princípios mais fundamentais
demonstraria que eles não são imagens de algo exterior em relação à consciência, mas produtos da
consciência, nota Lénine.
Lénine recorre a Abel Rey para uma abordagem filosófica sobre esta questão. Este escritor
francês, adverte Lénine, é ele próprio positivista. “Não se pode confiar em Rey quando se trata de
definição filosófica precisa de conceitos e do materialismo em particular”330, diz Lénine. Mas o resumo
minucioso e, em geral, consciencioso que faz da literatura sobre esta questão, justifica o recurso frequente
ao seu trabalho, considera.
Segundo Rey, há quem, ao discutir os limites e os valores dos conhecimentos científicos, critique
no fundo a legitimidade da ciência positiva, a possibilidade de conhecimento do objecto, se apresse a
retirar conclusões cépticas da crise da física contemporânea. A essência desta crise reside no facto de,
enquanto nos primeiros dois terços do século XIX, os físicos estavam essencialmente de acordo sobre o
essencial, sobre a possibilidade de uma explicação puramente mecânica da natureza (divergindo apenas
nos processos de redução dos fenómenos físicos à mecânica), agora, um extremo desacordo, não só nos
pormenores, mas nas ideias fundamentais, substituiu a anterior unanimidade. “Se seria exagerado dizer
que cada cientista tem as suas tendências particulares, deve no entanto constatar-se que, tal como a arte, a
ciência, particularmente a física, tem numerosas escolas, cujas conclusões frequentemente divergem e por
vezes são directamente hostis...”331, diz Rey. O autor mostra que os físicos contemporâneos estão
divididos em três escolas de acordo com as suas tendências gnosiológicas: a energética ou conceptualista
(da palavra conceito, noção pura), a mecanicista ou neomecanicista (à qual contiuam a pertencer a
maioria dos físicos) e a criticista (intermédia entre as anteriores). À primeira pertencem Mach e Duhem, à
segunda Kirchhoff, Helmholtz, Thomson (Lord Kelvin), Maxwell, Larmor, Lorentz, à terceira Henri
Poincaré. Lénine sublinha que aqui estão presente duas linhas fundamentais, uma vez que a terceira
escola não é independente, mas intermédia.
327idem, ibidem.328H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.329De acordo com a explicação de Lénine baseada no conhecimento da época o problema reside no seguinte: os
electrões estão mergulhados no éter; a sua elevada velocidade obriga a que se tome em consideração a sua dupla massa, correspondendo, em primeiro lugar, à necessidade de vencer a inércia do electrão (designada por massa real ou mecânica) e, em segundo lugar, de vencer a inércia do éter (designada por massa electrodinâmica); no entanto, a primeira massa revela-se igual a zero. A massa desaparece. Cf. V. I. Lénine, ibidem, p.192.
330idem, ibidem.331A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.193.
Vejamos como o autor caracteriza a física anterior à crise: “A física tradicional, até meados do
século XIX, postulava que bastava um simples prolongamento da física para se chegar a uma metafísica
da matéria. Esta física dava às suas teorias um valor ontológico. E estas teorias eram todas mecanicistas.
O mecanicismo tradicional representava assim, acima dos resultados da experiência, para além dos
resultados da experiência, o conhecimento real do universo material”. E Rey conclui: “Isto não era uma
expressão hipotética da experiência; era um dogma”332. Lénine aqui interrompe Rey com a maior
pertinência tendo em vista clarificar os termos, os seus significados e objectivos, notando em primeiro
lugar que “o respeitável «positivista»” descreve a filosofia materialista da física tradicional “sem querer
chamar o diabo (isto é, o materialismo) pelo nome”. Como vimos atrás, a um humista, diz Lénine, “o
materialismo tem de parecer metafísica, dogma, saída dos limites da experiência, etc.”333. Lénine chama
também a atenção para a ignorância de Rey sobre a diferença entre materialismo dialéctico e metafísico
que aqui transparece, bem como da relação entre verdade relativa e absoluta.
A nova situação, de acordo com Rey, caracteriza-se pela negação da “realidade ontológica do
mecanicismo” da qual derivou uma nova concepção filosófica da física segundo a qual a ciência não é
mais do que uma “forma simbólica” que a transforma em técnica utilitária, o que equivale à própria
“negação da possibilidade da ciência”334. O próprio Rey reconhece as forças que se aproveitam desta nova
concepção. Admite que, “se as ciências físico-químicas [...] soçobrarem numa crise que lhes deixe apenas
o valor de receitas tecnicamente úteis, mas lhes retire todo o significado do ponto de vista do
conhecimento da natureza […] é preciso ir por outra via, é preciso devolver à intuição subjectiva, ao
sentido místico da realidade, numa palavra, ao mistério, aquilo que se acreditava ter-lhe sido arrancado
pela ciência”. E, ainda mais explícito: “o movimento fideísta e anti-intelectualista dos últimos anos do
século XIX” pretende “apoiar-se no espírito geral da física contemporânea” 335.
Lénine põe a questão noutros termos, clarificando o conteúdo e significado desta crise: “A nova
corrente da física vê na teoria apenas símbolos, sinais, marcas para a prática, isto é, nega a existência da
realidade objectiva, independente da nossa consciência e reflectida por ela. Se Rey usasse uma
terminologia filosófica correcta, deveria dizer: a teoria materialista do conhecimento, adoptada
332idem cit. por V. I. Lénine, ibidem.333V. I. Lénine, ibidem.
334Tomemos mais longamente o raciocínio de Rey: “As críticas ao mecanicismo tradicional que foram formuladas durante a segunda metade do século XIX invalidaram esta premissa da realidade ontológica do mecanicismo. Na base destas críticas estabeleceu-se uma concepção filosófica da física, que se tornou quase tradicional na filosofia do fim do século XIX. A ciência, segundo esta concepção, não é mais do que uma forma simbólica, um meio de notação (de sinalização, repérage, criação de sinais, de marcas, de símbolos), e como estes meios de notação variavam segundo as escolas, depressa se concluiu que só se notava aquilo que foi previamente criado (façonné) pelo homem para ser sinalizado (para ser simbolizado)”. A ciência tornou-se uma obra de artes para diletantes, uma obra de arte para utilitaristas: atitudes que com legitimidade se poderia traduzir universalmente pela negação da possibilidade da ciência. Uma ciência como puro artifício para agir sobre a natureza, como simples técnica utilitária, não tem o direito de se chamar ciência, a menos que se desfigure o sentido das palavras. Dizer que a ciência não pode ser senão esse artifício é negar a ciência no sentido próprio da palavra”. A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.194.
335A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem.
espontaneamente pela física anterior, foi substituída por uma teoria do conhecimento idealista e agnóstica,
do que o fideísmo se aproveitou, contra o desejo dos idealistas e dos agnósticos”336. Para Lénine “a
essência da crise da física contemporânea consiste da destruição das velhas leis e princípios
fundamentais, na rejeição da realidade objectiva fora da consciência, isto é, na substituição do
materialismo pelo idealismo e pelo agnosticismo. «A matéria desapareceu» - pode exprimir-se assim a
dificuldade fundamental e típica em relação a muitas questões particulares que suscitou esta crise” 337,
conclui Lénine.
Esta expressão, “a matéria desapareceu”, é retirada por Lénine da descrição de um dos físicos
seus contemporâneos, L. Houllevigue, das descobertas científicas mais recentes. Mas Lénine – perante a
confusão dos machistas que utilizam a ideia do desaparecimento da matéria contra os materialistas e que
não compreendem “em que consiste a relação real entre o idealismo filosófico e o «desaparecimento da
matéria»”338 – esclarece que aquilo a que os físicos se referem nada tem a ver com a distinção
gnosiológica entre materialismo e idealismo. E reafirma esta questão com um exemplo. Karl Pearson
toma os corpos por percepções sensoriais. E, já depois, toma a sua composição em átomos, moléculas,
partícula, etc. Ora, isto diz respeito às transformações do modelo do mundo físico, diz Lénine, e de modo
nenhum à questão de saber se os corpos são símbolos de sensações. “O materialismo e o idealismo
diferenciam-se por uma ou outra solução da questão da fonte do nosso conhecimento, das relações entre o
conhecimento (e o «psíquico» em geral) e o mundo físico, enquanto a questão da estrutura da matéria, dos
átomos e dos electrões, é uma questão que diz respeito apenas a este «mundo físico» 339”. O que os físicos
querem dizer quando afirmam “a matéria desapareceu”, diz Lénine, é que, tendo até agora as ciências da
natureza reduzido as suas investigações aos conceitos de matéria, electricidade e éter, restam apenas os
dois últimos uma vez que se poderia reduzir a matéria à electricidade. O que se quer dizer com “a matéria
desaparece” é que, diz Lénine, “desaparece o limite até ao qual conhecemos até agora a matéria e que o
nosso conhecimento vai mais fundo; desaparecem as propriedades da matéria que anteriormente pareciam
absolutas, imutáveis, primárias […] e que agora se revelam relativas, inerentes apenas a certos estados da
matéria. Porque a única «propriedade» da matéria a cujo reconhecimento o materialismo filosófico está
ligado é a propriedade de ser uma realidade objectiva, de existir fora da nossa consciência”340.
A confusão, feita pelos machistas, entre o reconhecimento da matéria como realidade objectiva e
a modificação do nosso conhecimento sobre a estrutura da matéria é também extensível à confusão entre
materialismo metafísico e materialismo dialéctico. A admissão de elementos imutáveis não é
materialismo, mas sim materialismo metafísico, isto é, anti-dialéctico, diz Lénine. Para o materialismo
dialéctico, nas palavras de J. Dietzgen, “o objecto da ciência é infinito”, o mais pequeno átomo não pode
ser conhecido até ao fim, é inesgotável, porque “a natureza, em todas as suas partes, não tem princípio
336V. I. Lénine, ibidem, p.195.337idem, ibidem, p.195-196.338idem, ibidem,, p.196.339idem, ibidem, p.197.340idem, ibidem, p.198.
nem fim”341. O materialismo dialéctico, diz Lénine, “insiste no carácter aproximativo, relativo, de
qualquer proposição científica sobre a estrutura da matéria e as suas propriedades, na ausência de
fronteiras absolutas na natureza, na transformação da matéria em movimento de um estado para outro
que, do nosso ponto de vista, parece incompatível com o anterior, etc.”342.
“A nova física”, diz Lénine, “desviou-se para o idealismo sobretudo precisamente porque os
físicos não conheciam a dialéctica”343. Ao combaterem o materialismo metafísico, abandonaram o
materialismo: ao negar a imutabilidade das propriedades da matéria conhecidas até então, negaram a
matéria; ao negar o carácter absoluto das leis mais importantes, negaram a existência de qualquer lei
objectiva na natureza e tomaram as leis como “necessidades lógicas”; ao insistirem no carácter relativo e
aproximativo do nosso conhecimento, caíram na negação do objecto independente do conhecimento
reflectido de forma relativamente verdadeira pelo nosso conhecimento344.
Lénine dá dois exemplos interessantes em que se verifica a vacilação, inconsciente e espontânea,
da nova física entre o materialismo dialéctico e o “fenomenalismo” (com as suas inevitáveis conclusões
subjectivistas e, mais tarde, directamente fideístas). Vejamos o físico Augusto Righi de forma um pouco
mais extensa. Diz ele:
“O que realmente são os electrões ou átomos eléctricos continua ainda hoje a ser um mistério;
mas, apesar disso, a nova teoria está talvez destinada a adquirir, com o tempo, não pouca
importância filosófica, porquanto está a chegar a premissas completamente novas relativamente à
estrutura da matéria ponderável e se esforça por reduzir todos os fenómenos do mundo exterior a
uma origem comum. Do ponto de vista das tendências positivistas e utilitaristas do nosso tempo,
semelhante vantagem pode não ter importância e uma teoria pode ser considerada antes de mais
como um meio para ordenar e confrontar comodamente os factos, para servir de guia nas
investigações de fenómenos ulteriores. Mas se no passado se tinha uma confiança talvez
demasiado grande nas faculdades do espírito humano e se acreditava que se podia apreender
demasiado facilmente as causas últimas de todas as coisas, hoje existe a tendência para cair no
erro oposto.”345
Perante esta opinião, Lénine considera estarmos perante o exemplo de um físico que, não tendo
aparentemente nenhum ponto de vista filosófico determinado, se atém espontaneamente à realidade do
mundo exterior e à ideia de que a nova teoria não é uma “comodidade”, mas sim um passo no
conhecimento da realidade objectiva. “Se este físico estivesse familiarizado com o materialismo
dialéctico, o seu juízo sobre o erro oposto ao antigo materialismo metafísico talvez tivesse sido o ponto
de partida de uma filosofia correcta. Mas todo o ambiente em que vivem estes homens os afasta de Marx
341J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem.342E Lénine exemplifica esta situação de acordo com o conhecimento da época dizendo que, por muito estranho que
pareça, a transformação do éter imponderável em matéria ponderável e o inverso, a ausência no electrão de outra massa para além da electromagnética ou a limitação das leis mecânicas a um dado domínio de fenómenos e a sua subordinação às leis mais profundas dos fenómenos electromagnéticos tudo isto é apenas mais uma confirmação do materialismo dialéctico. V. I. Lénine, ibidem.
343idem, ibidem. 344Cf. idem, ibidem, p.199. 345A. Righi cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 199-200.
e de Engels, os lança nos braços da trivial filosofia professoral”346.
Rey, analisando a mesma questão, deixa transparecer nas suas palavras que a mecânica era um
“decalque” dos movimentos reais lentos e que a nova física é um “decalque” dos movimentos reais
extremamente rápidos. Este reconhecimento da teoria como cópia aproximada da realidade objectiva é
materialismo, conclui Lénine. Também nas palavras de Rey, que, da mesma forma que Righi, desconhece
a dialéctica, se encontra o reconhecimento de uma luta que se trava e que é, no fundo, o confronto entre as
tendências materialistas e idealistas. Quando Rey diz que entre os físicos modernos existe “uma reacção
contra a escola conceptualista (machista) e a escola energética” e vê os físicos da teoria electrónica
(“mecanicistas”, entenda-se materialistas)347 como representantes desta reacção, é isso que
testemunhamos, considera Lénine.
O movimento sem a matéria. A física energética
Lénine resume a utilização da nova física pelo idealismo filosófico (ou as conclusões idealistas
dela retiradas) a uma tentativa de conceber o movimento sem a matéria. Para os materialistas, não existe o
movimento sem a matéria. Engels afirma peremptoriamente: “o movimento é inconcebível sem a
matéria”348. Lénine irá mostrar que aquela conclusão é idealista pois “a tentativa de conceber o
movimento sem a matéria introduz furtivamente o pensamento separado da matéria, e isto é precisamente
idealismo filosófico”349.
Em A Essência do Trabalho Cerebral, de Dietzgen, podemos ler: “Os idealistas querem o geral
sem o particular, o espírito sem a matéria, a força sem a substância, a ciência sem a experiência ou sem
dados, o absoluto sem o relativo”350. Isto é, em Dietzgen, a concepção da existência da força sem
substância – do movimento sem a matéria – aparece ao mesmo nível da concepção radicalmente idealista
da existência do espírito sem a matéria, do pensamento do cérebro, evidencia Lénine. Os espiritualistas e
idealistas, diz Dietzgen, acreditam numa essência espiritual, isto é, fantástica, inexplicável, da força. Mas
a força sem a substância e a substância sem a força são absurdos, conclui.
Para um idealista consequente, para quem o mundo seja sensação ou representação (minha ou de
ninguém351), a questão de saber o que se move é rejeitada por absurda, muito embora possa, sem dúvidas,
afirmar que o mundo é movimento – movimento do pensamento, da representação, da sensação 352. A
diferença fundamental entre esta posição idealista e a posição materialista consiste em que, de acordo
346V. I. Lénine, ibidem, p. 200.347Cf. idem, ibidem, p. 201.348F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 202.349V. I. Lénine, ibidem, p. 203.350J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 201.351A escolha por uma das opções mudaria apenas a variedade de idealismo filosófico.352A posição de Karl Pearson – o machista mais claro, consequente e hostil aos subterfúgios verbais, caracteriza
Lénine – é esclarecedora. Para Pearson “todas as coisas se movem – mas apenas no conceito” e, “em relação ao domínio das percepções, é ocioso perguntar («it is idle to ask») o que é que se move e por que é que se move”. K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 203-204.
com a última, ao movimento das representações corresponde o movimento da realidade objectiva, o
movimento da matéria. “Por isso, separar o movimento da matéria equivale a separar o pensamento da
realidade objectiva, a separar as minhas sensações do mundo exterior, isto é, a passar para o idealismo”,
diz Lénine. E continua: “O truque que é executado habitualmente ao negar a matéria, ao admitir o
movimento sem a matéria, consiste em calar a relação entre a matéria e o pensamento” 353. Por isso,
quando se diz que a matéria desaparece se deve perguntar se o pensamento também desapareceu. Pois, se
se supõe que o pensamento pode subsistir apesar do desaparecimento da matéria então quer dizer que se
passou sub-repticiamente para o idealismo, diz Lénine.
Lénine sintetiza as diferentes posições da seguinte forma: “o idealista pode considerar o mundo
como o movimento das nossas sensações (ainda que «socialmente organizadas» e «harmonizadas» no
mais alto grau); o materialista metafísico, isto é, antidialéctico, pode aceitar a existência (ainda que
temporária, antes do «primeiro impulso», etc.) da matéria sem movimento. O materialista dialéctico não
só considera o movimento como uma propriedade inseparável da matéria, como rejeita também a
concepção simplificada do movimento.”354.
Lénine procede à análise da ligação entre a teoria “energética” de Ostwald e o idealismo
filosófico. A física energética, diz Lénine, “é fonte de novas tentativas idealistas de conceber o
movimento sem a matéria, devido à decomposição de partículas de matéria que até então se consideravam
indecomponíveis e à descoberta de formas até então desconhecidas do movimento material”355. Ostwald
questionava a necessidade de a energia ter um “veículo” e procurou unir e subordinar sob o conceito de
energia os conceitos de matéria e de espírito356. Mas isto, denuncia Lénine, não se trata da eliminação da
oposição gnosiológica entre matéria e pensamento, mas sim da sua supressão verbal 357. Ostwald atribui
também, de forma puramente idealista, “a circunstância de todos os fenómenos exteriores poderem ser
representados como processos entre energias” ao facto de “os processos da nossa consciência serem eles
próprios energéticos e comunicarem esta sua propriedade a todas as experiências exteriores”. Isto é,
clarifica Lénine, para Ostwald “não é o nosso pensamento que reflecte a transformação da energia no
mundo exterior, mas o mundo exterior que reflecte a «propriedade» da nossa consciência!”358. Mas
Ostwald não mantém uma posição consequente e, em muitos casos (talvez a maior parte as vezes) o
próprio Ostwald, diz Lénine, entende por energia o movimento material, da mesma forma que as ciências
da natureza entendem a transformação da energia: como um processo objectivo, independente da
353V. I. Lénine, ibidem, p. 203.354idem, ibidem, p. 204-205.355idem, ibidem, p. 207.
356Lénine diz que Ostwald não se dá conta de que está a colocar uma questão gnosiológica e não uma questão química. Cf. idem, ibidem, p. 206.
357“Naturalmente, se subordinarmos a este conceito tanto a matéria como o espírito, então a supressão verbal da contradição é indubitável, mas o absurdo da doutrina dos duendes e elfos não desaparece pelo facto de lhe chamarmos «energética»”, diz Lénine. idem, ibidem.
358idem, ibidem, p. 206.
consciência do homem e da experiência da humanidade, ou seja, de maneira materialista 359.
Porém, Bogdánov não criticou Ostwald por não manter uma posição materialista, mas por
admitir a concepção materialista da energia. Diz Bogdánov: “em breve notei, porém, uma importante
contradição da sua filosofia da natureza: embora sublinhando muitas vezes o significado puramente
metodológico do conceito de energia, ele próprio, em grande número de casos, não se atém a ele. De puro
símbolo das correlações entre os factos da experiência, para ele a energia transforma-se frequentemente
em substância da experiência, em matéria do mundo...”360.
As duas correntes da física contemporânea na literatura inglesa, alemã, francesa e russa
Desencadeou-se na literatura contemporânea uma luta filosófica a propósito de uma ou de outras
conclusões extraídas da nova física, repara Lénine. Lénine irá analisar as duas correntes da física
contemporânea e, em particular, o espirirtualismo inglês, o idealismo alemão, o fideísmo francês e o caso
de um idealista russo, dando a palavra aos intervenientes neste debate.
No congresso dos naturalistas ingleses, repara Lénine, o presidente da secção de física, Arthur.
W. Rücker, escolheu como tema a questão do valor da teoria física e das dúvidas sobre a existência dos
átomos e do éter. “A questão em discussão - disse Rücker - consiste em saber se as hipóteses que estão na
base das teorias científicas mais difundidas devem ser consideradas como descrições exactas da estrutura
do mundo que nos rodeia ou apenas como ficções cómodas” e põe a questão de saber se “podemos nós
concluir dos fenómenos revelados pela matéria a estrutura da própria matéria”. Rücker reconhece a
possibilidade de grandes avanços científicos através da táctica da teoria como ficção cómoda, mas “ousa
afirmar que semelhante sistema da táctica não pode ser considerado como a última palavra da ciência na
luta pela verdade”361. Rücker, ao analisar a questão da estrutura da matéria, contesta que as moléculas e os
átomos não possam "ser considerados como realidades", mas apenas como "simples conceitos", pelo facto
de não poderem ser vistos. Diz Rücker que “os que rebaixam o valor das ideias que guiaram até agora o
progresso da teoria científica admitem com demasiada frequência que não há outra alternativa entre duas
asserções opostas: ou o átomo e o éter são simples ficções da imaginação científica, ou a teoria
mecanicista dos átomos e do éter – agora, ela não está acabada, mas se pudesse ser acabada – dar-nos-ia
uma ideia completa e idealmente precisa das realidades.” Para Rücker, “há uma via média” 362. E utiliza
para ilustrar a sua opinião a imagem de uma sala escura na qual, embora de forma difusa, os objectos são
discerníveis. O autor, colocando-se do ponto de vista do materialismo espontâneo, considera que, embora
não tenhamos formado um quadro completo da natureza dos átomos e do éter e apesar do carácter
359Cf. idem, ibidem.360A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 206-207.361A. Rücker cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 208.362idem, ibidem, p. 209.
aproximado das teorias e das dificuldades de pormenor, a teoria dos átomos é verdadeira nas suas grandes
linhas, “que os átomos não são apenas conceitos auxiliares (helps) para os matemáticos (puzzled-
mathematicians), mas realidades físicas. Para Lénine “as imprecisões da filosofia de Rücker decorrem da
defesa, de modo nenhum obrigatória, da teoria «mecanicista» (porque não electromagnética?) dos
movimentos do éter e da incompreensão entre a verdade relativa e a verdade absoluta. Considera que falta
apenas a este físico o conhecimento do materialismo dialéctico, “se não tomarmos em consideração,
naturalmente, as importantíssimas considerações sociais que obrigam os professores ingleses a dizerem-se
«agnósticos»”363.
James Ward, por seu turno, é um espiritualista franco e consequente, diz Lénine. Para Ward, o
naturalismo e a teoria mecanicista da natureza que está na base daquele não são uma ciência. “Mas
embora o naturalismo e as ciências da natureza, a teoria mecanicista do mundo e a mecânica como ciência
sejam logicamente coisas diferentes, à primeira vista são muito semelhantes e historicamente estão
ligadas. Não há perigo de confusão entre as ciências da natureza e a filosofia de tendência idealista ou
espiritualista, porque esta filosofia implica necessariamente a crítica das premissas gnosiológicas que a
ciência admite inconscientemente”364. “É verdade!”, exclama Lénine: “As ciências da natureza aceitam
inconscientemente que a sua doutrina reflecte a realidade objectiva, e só esta filosofia é compatível com
as ciências da natureza!”365. Para Ward, o naturalismo, tal como a ciência, é “inocente” de teoria do
conhecimento. E, tal como o materialismo, não é mais do que física tratada como metafísica, diz Ward
repetindo com os humistas e kantianos o argumento já conhecido de chamar metafísica à realidade
objectiva fora do homem.
Ward contesta a filosofia exposta por Rücker. E fá-lo, considera Lénine, de modo notavelmente
verdadeiro e claro. Ward considera que, “quando surge a questão, no fundo filosófica, de como
sistematizar melhor a experiência no seu conjunto, o naturalista afirma que devemos começar pelo
aspecto físico. Só estes factos são precisos […]. Que afirmações de tal importância filosófica e tal
amplitude sejam deduções legítimas da ciência física (isto é, das ciências da natureza), é coisa que os
físicos contemporâneos não se decidem a afirmar directamente. Mas muitos deles consideram que minam
o significado da ciência aqueles que se esforçam por tornar patente a metafísica dissimulada e denunciar o
realismo físico em que assenta a teoria mecanicista do mundo […] Na realidade, a minha crítica [desta
metafísica] baseia-se inteiramente nas conclusões de uma escola de físicos, se assim se lhe pode chamar,
que cresce em número e alarga a sua influência, escola que recusa este realismo quase medieval [...]”.
Ward nomeia Kirchhoff e Poincaré e, noutros locais, Poynting, Duhem, Pearson e Mach. “Para os
distinguir da velha escola, que temos o direito de chamar realistas físicos, podemos chamar à nova escola
simbolistas físicos. […] Ambas as escolas partem, evidentemente, da mesma experiência sensorial
(perceptual); ambas usam sistemas abstractos de conceitos, que diferem nos pormenores mas são, no
363V. I. Lénine, ibidem, p. 210.364J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 210-211.365V. I. Lénine, ibidem, p. 210.
fundo, idênticos; ambas recorrem aos mesmos processos de verificação de teorias. Mas uma delas crê que
se aproxima cada vez mais da realidade última e deixa atrás de si cada vez mais aparências. A outra crê
que substitui (is substituting) a complexidade dos factos concretos por esquemas descritivos
generalizados, próprios para operações intelectuais...Nem uma nem outra afecta o valor da física como
conhecimento sistemático acerca das coisas; a possibilidade de desenvolvimento futuro da física e das
suas aplicações práticas é a mesma nos dois casos. Mas a diferença filosófica (speculative) entre ambas as
escolas é enorme e neste aspecto adquire importância a questão de saber qual tem razão [...]” 366. Com
estas considerações, Ward, ao contrário das pessoas com tendências filosóficas “intermédias”
(positivistas, humistas, machistas), soube colocar de forma clara a discussão em apreço arrancando todos
os véus, diz Lénine.
Ward, diz Lénine, não deixa de identificar os pontos fracos do materialismo espontâneo das
ciências da natureza – sobretudo a incapacidade deste para explicar a correlação entre a verdade relativa e
absoluta – com o objectivo de atacar as teses do materialismo e de reduzir a pretensão da ciência ao
conhecimento da realidade objectiva. Como a verdade relativa, aproximada, apenas “tacteia” o fundo das
coisas, então, ela não pode reflectir a realidade: assim é o argumento de Ward. O fideísmo
contemporâneo, culto, constata Lénine, “nem sequer pensa em exigir mais do que a declaração de que os
conceitos das ciências da natureza são «hipóteses de trabalho». Nós cedemo-vos a ciência, senhores
naturalistas, cedei-nos a gnosiologia, a filosofia: tal é a condição de coabitação dos teólogos e dos
professores nos países capitalistas «adiantados»”367, conclui.
Também a luta contra a matéria e pelo estabelecimento da concepção do movimento separado da
matéria está presente na gnosiologia de Ward que ele liga à “nova” física. “Troçando da profusão e do
carácter contraditório das hipóteses”, diz Lénine, Ward pergunta: “Que é a matéria? Que é a energia?”
para concluir que “não encontramos nada de definido além do movimento”368.
“O movimento dos corpos transforma-se na natureza em movimento daquilo que não é um corpo
de massa constante, em movimento daquilo que é uma carga desconhecida de uma electricidade
desconhecida, num éter desconhecido”369. Estas transformações das formas de movimento da matéria, esta
“dialéctica das transformações materiais”, servem aos filósofos idealistas não como confirmação da
dialéctica materialista, mas como argumento contra o materialismo, diz Lénine. Para os materialistas o
mundo é matéria em movimento “e as leis do movimento desta matéria são reflectidas pela mecânica
quando se trata de movimentos lentos, e pela teoria electromagnética quando se trata de movimentos
rápidos...”370. Lénine reafirma a concepção materialista dialéctica da progressão do conhecimento quando
Ward pretende atacar o materialismo com a decomposição do átomo 371. Diz Lénine que “a destrutibilidade
366J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 210-211.367V. I. Lénine, ibidem, p. 212.368J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem p. 212-213.369V. I. Lénine, ibidem, p. 213370idem, ibidem.371“O átomo extenso, sólido, indestrutível, foi sempre o apoio da concepção materialista do mundo. Mas,
infelizmente para esta s concepções, o átomo extenso não satisfez (was not equal to the demands) que lhe
do átomo, a sua inesgotabilidade, a mutabilidade de todas as formas as formas da matéria e dos seu
movimento foram sempre o apoio do materialismo dialéctico. Todos os limites na natureza são
convencionais, relativos, móveis, exprimem a aproximação da nossa mente do conhecimento da matéria,
mas isto não demonstra de modo nenhum que a natureza, a própria matéria, seja um símbolo, um sinal
convencional, isto é, um produto da nossa mente”372.
Ward, espiritualista, não esconde, ao contrário dos machistas russos, aquilo que procura alcançar
com defesa destas teses: “Como já tentei demonstrar”, diz Ward, “o progresso da física” (entenda-se da
linha “simbolista” que a “nova” física está a percorrer) “é justamente o meio mais poderoso de luta contra
a fé ignorante na matéria e no movimento, contra o seu reconhecimento como a substância última
(inmost), e não o símbolo mais abstracto da soma da existência...Nunca chegaremos a Deus através de um
mero mecanicismo”373.
Também na Alemanha era possível observar o posicionamento de cientistas e de filósofos em
torno de duas posições fundamentalmente diferentes a propósito das novas descobertas na física. Lénine
contrasta as posições do filósofo e matemático Hermann Cohen e do filósofo Eduard von Hartmann,
idealistas, com as posições dos físicos Hertz e Boltzmann, que se mantêm essencialmente de um ponto de
vista materialista.
O kantiano Hermann Cohen tinha confiança que o idealismo teórico, que começara já a abalar o
materialismo dos naturalistas, diz, o viesse a vencer definitivamente. Afirmava claramente que “o
idealismo impregna a física nova”374. Também Cohen, tal como Ward, assinala Lénine, estabelece com
precisão e clareza “as linha filosóficas fundamentais, sem se perder (como se perdem os nossos
machistas) em diferenças miúdas de um qualquer idealismo energético, simbólico, empiriocriticista,
empiriomonista, etc.”375. Cohen caracteriza, assim, de idealista a tendência filosófica da escola da física
associada aos nomes de Poincaré, Mach e outros, nota Lénine. A linha de argumentação é a mesma e
assenta na negação da matéria (e do movimento separado da matéria) perante a constatação da
modificação do nosso conhecimento sobre ela. A electricidade é declarada por Cohen, diz Lénine,
colaboradora do idealismo porque destruiu a velha teoria da estrutura da matéria de tal forma que “é
possível introduzir fraudulentamente uma interpretação da natureza como movimento imaterial
(espiritual, mental, psíquico, etc.)”376.
Ao contrário do que afirmam Cohen ou Kleinpeter – que se aproveitaram do menor erro de Hertz
ou imprecisão na linguagem377 – Hertz, considera Lénine, defende “o ponto de vista habitual de um
apresentava o conhecimento crescente”. J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem.
372V, I. Lénine, ibidem.373 J. Ward cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 214.374H. Cohen cit. por V. I. Lénine, ibidem.375V. I. Lénine, ibidem.376idem, ibidem.377“Esta curiosa discussão”, diz Lénine, “ acerca da questão de saber a quem pertence Hertz dá-nos um belo
exemplo da maneira como os filósofos idealistas agarraram o menor erro, a menor falta de clareza de expressão de naturalistas famosos para justificarem a sua renovada defesa do fideísmo”. idem, ibidem, p. 215.
naturalista intimidado pela gritaria dos professores contra a «metafísica» do materialismo mas que não
consegue de maneira nenhuma ultrapassar o seu convencimento espontâneo da realidade do mundo
exterior”378. O próprio Kleinpeter o confessa noutros momentos. Hertz, na Mecânica, ao analisar a
energética, afirma que “a física contemporânea gosta de usar na sua argumentação um modo de expressão
energético […] porque esta é a maneira de mais comodamente evitar falar em coisas de que sabemos
muito pouco...Naturalmente, todos nós estamos convencidos de que a matéria ponderável é composta por
átomos” dos quais conhecemos algumas coisas, mas muitas são ainda desconhecidas”379. Vê-se
claramente, conclui Lénine, que nem passa pela cabeça de Hertz uma concepção não materialista da
energia.
Também o idealista alemão Eduard von Hartmann constata os mesmos fenómenos que Rey,
Ward e Cohen constataram, diz Lénine. Hartmann considera, assim, que “ física contemporânea cresceu
num terreno realista e foi só a tendência neokantiana e agnóstica da nossa época que conduziu a que os
últimos resultados da física fossem interpretados num sentido idealista”380. Mas para Hartmann não é
suficiente que os físicos adoptem a posição idealista de tomar os átomos, os electrões, etc. como simples
símbolo ou “hipóteses de trabalho”. Como idealista consequente, Hartmann explica acertadamente aos
físicos as consequências de seguir uma ou outra linha filosófica, diz Lénine. Assim, seria preciso, diz
Hartmann, que eles abandonassem as premissas realistas a que ainda se agarram, apesar do seu idealismo,
e modificassem radicalmente também a doutrina da realidade objectiva do tempo, do espaço, da
causalidade, das leis da natureza381.
O físico alemão Ludwig Boltzmann combateu sistematicamente a corrente machista, destaca
Lénine. “Boltzmann, naturalmente”, diz Lénine, “teme chamar-se a si próprio materialista e declara
mesmo explicitamente que não é de modo nenhum contra a existência de Deus. Mas a sua teoria do
conhecimento é no fundo materialista e exprime – como reconhece A. Günther, historiador das ciências
da natureza do século XIX – a opinião da maioria dos naturalistas” 382. Para Boltzmann, “conhecemos a
existência de todas as coisas pelas impressões que elas produzem nos nossos sentidos” e a teoria é uma
“imagem” da natureza, do mundo exterior383. Contra um “quadro subjectivo do mundo” que diz estar a ser
desenhado, Boltzmann defende um “quadro objectivo, mais simples, do mundo”. Combatendo a física
“fenomenológica” de Mach e Cª., diz Lénine, Boltzmann afirma que “os que pensam eliminar a
atomística por meio de equações diferenciais não vêem a floresta por trás das árvores”384 ou que “é
378idem, ibidem.379Cf. H. Hertz cit. por V. I. Lénine, ibidem.380E. Hartmann cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 216.381Diz Hartmann: “Dos físicos que seguem esta moda, é muito insignificante a parte daqueles que se dão
inteiramente conta de todo o significado e de todas as consequências de tal interpretação. Eles não notaram que a física, com as suas leis particulares, só conservou o seu significado autónomo na medida em que os físicos se ativeram, apesar do seu idealismo, a premissas fundamentais realistas, a saber: a existência das coisas em si, a sua mutabilidade real no tempo, a causalidade real...Só com estas premissas realistas (valor transcendental da causalidade, do tempo e do espaço de três dimensões), isto é, só com a condição de que a natureza, acerca de cujas leis os físicos falam, coincida com o reino das coisas em si...se pode falar de leis da natureza diferentes das leis psicológicas”. E. Hartmann cit. por V. I. Lénine, ibidem.
382V. I. Lénine, ibidem, p. 217-218.383L. Boltzmann cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 218.384idem, cit. por V. I. Lénine, ibidem.
perfeitamente evidente que a física fenomenológica não faz mais do que dissimular-se sob o manto das
equações diferenciais”. Para Boltzmann, “se não tivermos ilusões sobre o significado das equações
diferenciais, não pode haver dúvidas de que o quadro do mundo (formado por meio das equações
diferenciais) continuará necessariamente a ser atomístico, um quadro de como mudarão no tempo,
segundo certas regras, uma quantidade enorme de coisas situadas no espaço de três dimensões. Estas
coisas podem ser, naturalmente, idênticas ou diferentes, imutáveis ou mutáveis”385.
“Em França, a filosofia idealista agarrou-se não menos resolutamente às vacilações da física
machista”386, constata Lénine. É significativo o facto de a “filosofia idealista mais reaccionária” com
conclusões fideístas se ter agarrado imediatamente à teoria de Poincaré. Lénine traduz assim a
argumentação de Le Roy, representante desta corrente: “as verdades da ciência são sinais convencionais,
símbolos; abandonastes as absurdas pretensões «metafísicas» de conhecer a realidade objectiva; sede,
pois, lógico e concordai connosco que a ciência possui apenas um valor prático para um domínio da
actividade humana e que a religião tem um valor não menos real do que a ciência para outro domínio da
actividade; a ciência «simbolista», machista, não tem o direito de negar a teologia”387.
Poincaré não gostou que tais conclusões fossem retiradas da sua filosofia e atacou-as
especialmente no seu livro O Valor da Ciência, diz Lénine. No entanto, é preciso analisar a forma como o
faz. Poincaré procura recorrer ao critério da prática para se demarcar afirmando que se as leis científicas,
que são convenções, têm valor como regra de acção é porque sabemos que elas têm êxito388. Mas este
critério, nota Lénine, pode ser interpretado tanto num sentido objectivo como subjectivo: “Le Roy
também reconhece este critério para a ciência e a indústria; nega somente que este critério prove a
verdade objectiva, pois basta-lhe esta negação para reconhecer a verdade subjectiva da religião ao lado da
verdade subjectiva (inexistente fora da humanidade) da ciência”389. Poincaré não pôde, assim, resolver a
questão. Recorre, então, à questão da objectividade da ciência: afirma que o critério da objectividade é o
mesmo da “nossa crença nos objectos exteriores. Estes objectos são reais porquanto as sensações que
provocam em nós nos aparecem unidas entre si por não sei que cimento indestrutível e não pelo acaso de
um dia”390. Isto é materialismo, diz Lénine. Assim, conclui Lénine “declara-se que o materialismo foi
aniquilado por uma «teoria» que, ao primeiro ataque do fideísmo, se refugia debaixo da asa do
materialismo!”391. Mas Poincaré afirma, poucas páginas depois, que “tudo o que não é pensamento é puro
nada; visto que não podemos pensar senão o pensamento”392. Por estas razões pode haver quem – e é o
caso do filósofo Georges Sorel – considere que Poincaré e Le Roy podem ser reconciliados sob a mesma
opinião de que é uma ilusão o estabelecimento de uma identidade entre a ciência e o mundo; “basta a
385idem, cit. por V. I. Lénine, ibidem.386V. I. Lénine, ibidem, p. 220.387V. I. Lénine, ibidem, p. 221.388Cf. H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.389V. I. Lénine, ibidem.390H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem.391V. I. Lénine, ibidem.392H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 221
correspondência da ciência com os mecanismos por nós criados”393.
O caso de Rey é diferente. Rey está confrontado com um problema diametralmente oposto ao do
espiritualista Ward e dos idealistas Cohen e Hartmann, diz Lénine: Rey não pretende secundar a
inclinação da nova física para o idealismo nem os seus erros filosóficos, mas sim corrigir esses erros e
demonstrar a ilegitimidade das conclusões idealistas dela retiradas.
Rey pretende salvar o conceito de experiência de uma interpretação subjectivista. Rey reconhece
que o empirismo - agora “cada vez mais rico em matizes”, outrora “grande arma na luta do cepticismo
contra as afirmações da metafísica” - “conduz ao fideísmo” e atribui este facto à deturpação do conceito
de experiência394. Acusa os fideístas dessa deturpação, mas não o próprio Mach, nota Lénine. Para Rey, a
experiência deve ser entendida como “um conhecimento do objecto”, como “aquilo que o nosso espírito
não comanda”, como “o objecto em frente ao sujeito”. Ora, isto reduz-se ao materialismo. “Que
perspicácia genial Engels revelou”, exclama Lénine, “ao definir o tipo mais moderno de partidários do
agnosticismo filosófico e do fenomenalismo com a alcunha de «materialistas envergonhados». Positivista
e fenomenalista ardente, Rey é um excelente exemplar deste tipo. […] O fenomenalismo de Rey, o seu
zelo em acentuar que nada existe além das sensações, que o objectivo é aquilo que tem uma significação
geral, etc., tudo isto não é mais do que uma folha de parra, uma oca cobertura verbal do materialismo,
visto que se nos diz: «é objectivo o que nos é dado do exterior, imposto pela experiência, aquilo que não
fazemos mas é feito independentemente de nós e em certa medida nos faz»”395. Evidenciando as
contradições de Rey, Lénine afirma: “Rey defende o «conceptualismo» aniquilando o conceptualismo”.
Vejamos agora alguns aspectos da atitude de Rey para com a doutrina de Mach sobre a
causalidade e a necessidade da natureza. Rey afirma que só à primeira vista Mach se “aproxima do
cepticismo” e do “subjectivismo” e que esse “equívoco” se desfaz se se tomar a doutrina de Mach no seu
conjunto. E cita uma série de passagens. No entanto, não cita a passagem decisiva na qual Mach afirma
que não há necessidade física, mas apenas necessidade lógica, exclama Lénine. O que Rey faz, diz
Lénine, não é interpretar Mach, mas embelezar Mach, é apagar as diferenças entre o “neomecanicismo” e
o machismo. Rey afirma que Mach toma as conclusões de todos os fenomenalistas segundo os quais a
causalidade é apenas um hábito do pensamento (simples consequência da tese fundamental de que não
existem senão sensações), mas que as interpreta de modo objectivo.
A renegação do materialismo por Rey é forçada, nota Lénine. A ilustrá-lo está o entendimento de
Rey do significado teórico das equações diferenciais de Maxwell e Hertz – para os machistas, o facto de
os físicos limitarem a sua teoria a um sistema de equações é uma refutação do materialismo (equações e
nenhuma matéria); Boltzmann refuta esta mesma opinião compreendendo refutar a física fenomenológica;
Rey refuta-a querendo defender o fenomenalismo – bem como a apreciação de Rey sobre o critério da
prática na teoria do conhecimento – “contrariamente às proposições do cepticismo, parece legítimo dizer
que o valor prático da ciência deriva do seu valor teórico” (proposições aquelas aceites por Mach); “dizer
393G. Sorel cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 222.394A. Rey cit. por V. I. Lénine, p. 222.395V. I. Lénine, ibidem, p. 223.
que uma dada lei da natureza tem um valor prático...é, no fundo, o mesmo que dizer que esta lei da
natureza tem objectividade”396.
Em suma, Lénine considera que “Rey defende o machismo contra o «neomecanicismo»
capitulando em toda a linha perante este, mantendo a palavra fenomenalismo mas não a essência desta
corrente”397; “tenta atenuar o idealismo da escola conceptualista, cortando as afirmações mais decididas
dos seus partidários e interpretando as restantes no sentido do materialismo envergonhado”398. Rey
embrulhou-se, conclui Lénine, porque tentou uma tarefa insolúvel, isto é, conciliar a oposição das escolas
materialista e idealista da nova física, sem deixar de compreender que estas duas tendências são “a base
da divisão das duas principais escolas da física contemporânea”399.
Também na Rússia os mesmos fenómenos se manifestam. Lénine considera até “instrutivo”
“observar como tendências filosóficas similares se manifestam em condições completamente diferentes
quanto à cultura e aos costumes”400. Lénine exemplifica a situação com a exposição das opiniões do
“nosso conhecido filósofo ultra-reaccionário Sr. Lopátine” e do físico N. Chíchkine. Lopátine escreve um
artigo elogioso sobre Chíchkine a quem apelida de “físico idealista”. Dele diz que “foi um autêntico
positivista na sua aspiração incansável à crítica mais ampla dos métodos de investigação, das suposições e
factos da ciência, segundo a sua utilidade como meios e materiais para a construção de uma concepção do
mundo integral e acabada. Neste aspecto, Chíchkine era um perfeito antípoda de grande número dos seus
contemporâneos”401. Lopátine acha louvável que Chíchkine não tenha nenhum “dogmatismo
preconcebido”. Isto é, embora Chíchkine fosse partidário da explicação mecanicista dos fenómenos da
natureza, ele não a entendia como se ela revelasse a essência dos fenómenos, mas apenas como “o método
mais cómodo e mais fecundo de os unificar”402. Assim, raciocinando sobre a luz, Chíchkine considera que
as diferentes formas de considerar a luz representam diferentes métodos de “organização da experiência”,
igualmente legítimos de um ou de outro ponto de vista, nota Lénine403.
O idealismo “físico”
Lénine considera estar perante uma corrente ideológica internacional, “que não depende de de
um sistema filosófico dado, mas que decorre de certas causas gerais situadas fora da filosofia” 404. Além
disso, diz, os dados passados em revista mostram que o machismo está ligado à nova física.
396A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 226.397V. I. Lénine, ibidem, p. 224.398idem, ibidem, p. 225.399idem, ibidem, p. 226.400idem, ibidem, p. 227.401Lopátine cit. por V. I. Lénine, ibidem.402idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 228403Cf. V. I. Lénine, ibidem.404idem, ibidem, p. 229.
A ideia de que a filosofia de Mach é a “filosofia das ciências da natureza do século XX”, “a
moderna filosofia das ciências da natureza”, “o moderno positivismo das ciência da natureza” é falsa
porque, em primeiro lugar, diz Lénine, o machismo está ligado a uma só escola de um só ramo das
ciências e, em segundo lugar – e esta é a razão principal – porque “aquilo que no machismo está ligado a
esta escola não é aquilo que o distingue de todas as outras orientações e sistemazinhos da filosofia
idealista, mas aquilo que ele tem de comum com todo o idealismo filosófico em geral”405. Para mostrar a
justeza desta tese, Lénine dá o exemplo do alemão Mach, do francês Poincaré, do belga Duhem e do
inglês Pearson, físicos desta escola: entre eles não há em comum o empiriocriticismo em geral, nem a
doutrina de Mach em particular (os três últimos físicos nem sequer conhecem estas doutrinas, nota
Lénine); mas têm em comum a mesma base, a mesma orientação, como cada um deles reconhece com
plena razão. “Têm de comum entre si «apenas» uma coisa: o idealismo filosófico, para o qual todos eles,
sem excepção, se inclinam mais ou menos conscientemente, mais ou menos decididamente”406. E Lénine
faz notar que entre os filósofos que se apoiam nesta escola da nova física, esforçando-se por a
fundamentar gnosiologicamente e desenvolver, estão os imanentistas, os neocriticistas, os discípulos de
Mach, os espiritualistas, etc.
“A ideia fundamental da escola da nova física que analisamos”, resume Lénine, “é a negação da
realidade objectiva, que nos é dada na sensação e é reflectida pelas nossas teorias, ou a dúvida
relativamente à existência desta realidade. Esta escola afasta-se aqui do materialismo (inexactamente
chamado realismo, neomecanicismo, hilocinética, e que os próprios físicos não desenvolveram de modo
minimamente consciente) imperante, como é geralmente reconhecido entre os físicos, afasta-se dele como
escola do idealismo «físico»”407.
Lénine explica a utilização deste termo – idealismo físico – recorrendo a um episódio em que
Feuerbach denunciava o idealismo presente na interpretação de descobertas no ramo da fisiologia,
classificando Johannes Müller entre os “idealistas fisiológicos”408. Que uma série de grandes fisiologistas
tendia naquela altura para o idealismo e o kantismo é tão indiscutível como o facto de que uma série de
grandes físicos tende actualmente para o idealismo filosófico, afirma Lénine. Este idealismo físico, isto é,
o idealismo de uma certa escola de físicos dos fins do século XIX e início do século XX, “que se
manifestou num e noutro caso de uma escola de naturalistas num ramo das ciências da natureza, é”,
considera Lénine, “um ziguezague temporário, um passageiro período doloroso da história da ciência,
405idem, ibidem.406idem, ibidem.407idem, ibidem, p. 230.408“Em 1886 L. Feuerbach atacava Johannes Müller, o célebre fundador da fisiologia moderna, e classificou-o entre
os «idealistas fisiológicos». O idealismo deste fisiologista consistia em que, ao analisar o significado do mecanismo dos nossos órgãos dos sentidos na sua relação com as sensações, assinalando, por exemplo, que a sensação de luz se obtém com diferentes tipos de impressões nos olhos, se inclinava a concluir daqui a negação de que as nossas sensações sejam imagem da realidade objectiva. Esta tendência de uma escola de naturalistas para o «idealismo fisiológico», isto é, para a interpretação idealista de certos resultados da fisiologia, foi captada por L. Feuerbach de modo extraordinariamente acertado. A «ligação» entre a fisiologia e o idealismo filosófico, principalmente do género kantiano, foi depois explorada durante muito tempo pela filosofia reaccionária. F. A. Lange especulou com a fisiologia em defesa do idealismo kantiano e, em refutação do materialismo; e, entre os imanentistas […], J. Rehmke insurgiu-se especialmente em 1882 contra a pretensa confirmação do kantismo pela fisiologia”.idem, ibidem.
uma doença de crescimento, devida sobretudo ao brusco desmoronamento dos velhos conceitos
estabelecidos”409.
A. Rey punha a questão nos seguintes termos:
estas as divergências de opiniões “nada provam contra a objectividade da física”. “Na história da
física, como em toda a história, podem distinguir-se grandes períodos que se diferenciam pela
forma e pelo aspecto geral das teorias... Mas logo que é feita uma dessas descobertas que se
repercutem sobre todas as partes da física, porque estabelecem um facto capital até aí
desconhecido ou incompletamente percebido, todo o aspecto da física se modifica; um novo
período começa […] O historiador que observe posteriormente os acontecimentos com o recuo
necessário verá sem dificuldade uma evolução contínua onde os contemporâneos só vêem
conflitos, contradições, cisões em escolas diferentes. Parece que a crise que a física atravessou
nestes últimos anos (apesar das conclusões tiradas desta crise pela crítica filosófica) não é outra
coisa. É uma típica crise de crescimento (crise de croissance) provocada pelas grandes novas
descobertas. É indiscutível que a crise conduzirá à transformação da física – sem isto não haveria
evolução e progresso – mas não modificará o espírito científico.”410
Rey tenta, com boas intenções, unir as escolas da física contemporânea contra o fideísmo, diz
Lénine. Mas conclui: “é uma falsidade bem-intencionada mas mesmo assim uma falsidade, pois o desvio
da escola de Mach-Poincaré-Pearson para o idealismo (isto é, para o fideísmo refinado) é incontestável. E
a objectividade da física que está ligada às bases do «espírito científico», diferentemente do espírito
fideísta, e que Rey defende com tanto ardor, não é senão uma formulação «envergonhada» do
materialismo”411. Mas Lénine acrescenta: “O espírito materialista fundamental da física, como de todas as
ciências da natureza contemporâneas, vencerá todas as crises, mas apenas com a condição de que o
materialismo metafísico seja obrigatoriamente substituído pelo materialismo dialéctico.”412. Conforme
Lénine reafirma, a crise da física contemporânea consiste em que ela deixou de reconhecer decididamente
o valor objectivo das suas teorias: e isto Rey procura frequentemente dissimular. Mas é o próprio que
chega a falar em “hesitação do pensamento” relativamente à objectividade da física.
A. Rey identifica o esquecimento da matéria pelos matemáticos como estando na origem da crise
da física. Afirma: “A crise da física consiste na conquista da física pelo espírito matemático” 413. O que
pretende Rey dizer com isto? “As ficções abstractas da matemática parecem ter interposto uma cortina
entre a realidade física e a maneira como os matemáticos compreendem a ciência desta realidade. […] Os
matemáticos fizeram tudo para salvar a objectividade da física, pois sem objectividade eles compreendem
muito bem que não se pode falar de física... Mas as complicações ou os rodeios das suas teorias deixam
um sentimento de mal-estar […] um experimentador não encontra aqui a confiança espontânea que lhe
proporciona o contacto contínuo com a realidade física...” A fusão entre a física e a matemática, tornou a
409idem, ibidem, p. 231.410A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem.411V. I. Lénine, ibidem, p. 231.412idem, ibidem.413A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 232.
física matemática, não um ramo da física, mas um ramo da matemática. Os matemáticos, habituados aos
elementos puramente lógicos, não puderam deixar de tender para conceber os elementos da física de
forma abstracta, de maneira totalmente imaterial. Assim, “os elementos, enquanto dados reais, objectivos,
isto é, enquanto elementos físicos, desapareceram completamente. Mantiveram-se apenas relações
formais representadas pelas equações diferenciais”. Mas Rey reconhece: “Se o matemático não é
enganado por este trabalho construtivo do seu espírito...saberá encontrar a ligação entre a física teórica e a
experiência, mas à primeira vista, e para uma pessoa não prevenida, parece estar-se em face de uma
construção arbitrária da teoria”414.
Lénine conclui: “tal é a causa primeira do idealismo «físico». As veleidades reaccionárias são
geradas pelo próprio progresso da ciência. Os grandes progressos das ciências da natureza, a aproximação
de elementos da matéria tão homogéneos e simples que as leis do seu movimento permitem um
tratamento matemático geram o esquecimento da matéria pelos matemáticos. «A matéria desaparece»,
restam apenas as equações”415. E acrescenta: “Num novo estádio de desenvolvimento, e pretensamente de
modo novo, temos a velha ideia kantiana: a razão dita leis à natureza”416.
Uma segunda causa do idealismo “físico” apontada por Lénine é o princípio do “relativismo”,
isto é, da relatividade do nosso conhecimento. Este é um princípio “que se impõe aos físicos com
particular força num período de brusco desmoronamento das velhas teorias” e que, sublinha Lénine,
“quando não se conhece a dialéctica”, leva inevitavelmente ao idealismo417. Lénine destaca, com toda a
pertinência, a importância questão da correlação do relativismo e da dialéctica e dá o exemplo de Rey
que, desconhecendo efectivamente a dialéctica de Marx, e sentindo que a nova física se desencaminhara
na questão do relativismo, debate-se tentando distinguir o relativismo moderado do imoderado. A
dialéctica materialista é a única que pode resolver correctamente esta correlação, “a única que oferece
uma formulação teoricamente correcta da questão do relativismo”. A incompreensão da dialéctica conduz
ao seguinte raciocínio: porque “todas as velhas verdades da física, incluindo aquelas que eram
consideradas indiscutíveis e inabaláveis, se revelam, afinal, “verdades relativas” então não pode haver
nenhuma verdade objectiva, independente da humanidade. Assim é o raciocínio de todo o machismo e de
todo o idealismo “físico” em geral, diz Lénine. Os materialistas dialécticos, por seu turno, reconhecem
que “da soma das verdades relativas no seu desenvolvimento forma-se a verdade absoluta”; que “as
verdades relativas representam reflexos relativamente fiéis de um objecto independente da humanidade”,
reflexos que se tornam “cada vez mais exactos”; que “em cada verdade científica, apesar da sua
relatividade”, existe “um elemento de verdade absoluta”418. Se, por um lado, o erro do velho materialismo
– a incompreensão da relatividade de todas as teorias científicas, a ignorância da dialéctica, o exagero do
ponto de vista mecanicista – é indubitável, por outro, é preciso não cair no relativismo, que conduz ao
subjectivismo. Engels, diz Lénine, “renunciou ao velho materialismo, metafísico, em favor do
414A. Rey cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 232-233.415V. I. Lénine, ibidem, p. 233.416idem, ibidem.417Cf. idem, ibidem.418idem, ibidem, p. 234.
materialismo dialéctico, e não em favor do relativismo, que cai no subjectivismo”419. Lénine dá o
exemplo de Duhem, de Mach e de Poincaré: de como, não sabendo eles dar uma formulação correcta do
relativismo, deslizaram deste para o idealismo. “Com enormes esforços”, diz Lénine de Duhem, “com
uma série de interessantes e preciosos exemplos de história da física, tais como se podem encontrar
frequentemente em Mach, ele prova que «qualquer lei da física é provisória e relativa, porque é
aproximada»”. Perante isto, Lénine exclama, com razão: “O homem está a arrombar uma porta
aberta!”420. A infelicidade deles, continua Lénine, “é precisamente que eles não vêem a porta aberta pelo
materialismo dialéctico”421. E Duhem “vacila simplesmente, como Mach, sem saber em que apoiar o eu
relativismo”, desde o kantismo até a algumas aproximações ao materialismo dialéctico.
Lénine resume: “numa palavra, o idealismo «físico» de hoje, exactamente como o idealismo
«fisiológico» de ontem, significa apenas que uma escola de naturalistas de um ramo das ciências da
natureza caiu numa filosofia reaccionária, por não ter sabido elevar-se directa e imediatamente do
materialismo metafísico ao materialismo dialéctico”422.
16. O empiriocriticismo e o materialismo histórico
Lénine também se detém sobre as posições dos machistas no que concerne à história, ou, de
outra maneira, no que concerne à aplicação do materialismo dialéctico aos processos históricos: o
materialismo histórico. Assinalaremos apenas alguns aspectos abordados por Lénine acerca desta questão.
Após analisar “as excursões dos empiriocriticistas alemães ao domínio das ciências sociais”,
Lénine conclui que nelas não se encontra nada mais do que as mesma velhas ideias sob uma terminologia
nova e sistematização empiriocriticista: “trajo pretensioso de subterfúgios verbais, alambicados artifícios
silogísticos, escolástica refinada – numa palavra, tanto em sociologia como em gnosiologia, o mesmo
conteúdo reaccionário sob o mesmo rótulo berrante”423.
Os machistas russos, relembra Lénine, dividem-se em dois grandes grupos: os que “são
completos e consequentes adversários do materialismo dialéctico, tanto em filosofia como em história”, e
os que pretendem ser marxistas e se esforçam por asseverar que o machismo é compatível com o
materialismo histórico de Marx e de Engels424.
Bogdánov, que se insere neste último grupo, afirma que “a socialidade é inseparável da
consciência. O ser social e a consciência social são, no sentido exacto destas palavras, idênticos”.
Lénine responde: esta proposição é falsa. Trata-se de uma deturpação do materialismo no espírito do
idealismo. “O ser social e a consciência social”, esclarece Lénine, “não são idênticos, exactamente como
419idem, ibidem, p. 235.420idem, ibidem.421idem, ibidem.422idem, ibidem, p. 236.423idem, ibidem, p. 244.424idem, ibidem, p. 238.
não são idênticos o ser em geral e a consciência em geral”425. Se pretendesse ser materialista, Bogdánov
deveria dizer que a consciência reflecte o ser – esta é uma tese geral de todo o materialismo, sublinha
Lénine. “O reflexo pode ser a cópia aproximadamente fiel do reflectido, mas é absurdo falar aqui de
identidade”426 e “é impossível não ver a sua ligação imediata e indissolúvel com a tese do materialismo
histórico: a consciência social reflecte o ser social”427. A afirmação da identidade do ser e da consciência é
idealismo expresso.
Lénine sublinha a importância da descoberta das leis das modificações que se dão no ser social
pela produção e pela trocas de produtos, da descoberta, “nas suas grandes linhas”, da “lógica objectiva
destas modificações e do seus desenvolvimento histórico – objectiva não no sentido de que uma
sociedade de seres conscientes, de pessoas, pudesse existir e desenvolver-se independentemente da
existência dos seres conscientes […], mas no sentido de que o ser social é independente da consciência
social das pessoas”428. E continua:
“O facto de que viveis e exerceis uma actividade económica, de que procriais e fabricais produtos,
de que os trocais, dá origem a uma cadeia objectivamente necessária de acontecimentos, uma
cadeia de desenvolvimento, independente da vossa consciência social, nunca apreendida por esta
na totalidade, A tarefa mais elevada da humanidade é apreender esta lógica objectiva da evolução
económica (da evolução do ser social) nos seus traços gerais e essenciais, a fim de adaptar a ela,
tão nítida, clara e criticamente quanto possível, a sua consciência social e a consciência de todas
as classes avançadas de todos os países capitalistas.”429
Lénine dá ainda um outro exemplo acerca de Bogdánov no qual ele, a pretexto de uma
investigação marxista, reveste os resultados anteriormente obtidos com uma terminologia biológica e
energética, sem acrescentar nada de novo. No livro III do Empiriomonismo, Bogdánov afirma: “Podemos
formular da seguinte maneira a ligação fundamental da energética e da selecção social: Todo o acto de
selecção social representa um aumento ou uma diminuição da energia do corpo social a que se refere. No
primeiro caso, temos uma 'selecção positiva', no segundo uma 'selecção negativa'”430. Isto, para Lénine,
são disparates que se fazem passar por marxismo, são algo “estéril, morto, escolástico”, uma “enfiada de
termos biológicos e energéticos que não dão nem podem dar absolutamente nada no campo das ciências
sociais”. “Nem uma sombra de investigação económica concreta, nem uma alusão ao método de Marx, ao
método dialéctica e à concepção materialista do mundo, mera invenção de definições, tentativas de as
ajustar às conclusões acabadas do marxismo”431. Bogdánov continua: “O rápido desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade capitalista é indubitavelmente um aumento da energia do todo social...”,
“mas o carácter desarmónico deste processo leva a que ele culmine numa 'crise', num gasto enorme de
425idem, ibidem, p. 244-245.426idem, ibidem, p. 245.427idem, ibidem.428idem, ibidem, p. 246.429idem, ibidem.430idem, ibidem, p. 247-248.431idem, ibidem, p. 248.
forças produtivas, numa brusca diminuição da energia: a selecção positiva é substituída pela selecção
negativa”.
Lénine comenta que isto não é mais do que pregar uma “etiqueta biológico-energética em
conclusões já prontas acerca das crises, sem acrescentar nenhum material concreto, sem esclarecer a
natureza das crises. Tudo isto com a melhor das intenções, porque o autor quer confirmar e aprofundar as
conclusões de Marx, mas de facto dilui-as com uma escolástica morta e insuportavelmente aborrecida. De
«marxista» só há aqui a repetição de uma conclusão já conhecida, e toda a sua «nova» fundamentação ,
toda esta «energética social» e «selecção social» não são mais do que um amontoado de palavras” ou,
usando outra expressão de Lénine, de “termos falhos de conteúdo”432. Lénine continua constatando a
inutilidade desta tentativa de Bogdánov porque a aplicação dos conceitos de “selecção”, de “energia”,
“balanço energético”, “assimilação” e “desassimilação”, etc., às ciências sociais “não passa de uma frase
vazia”. “Na realidade”, diz Lénine, “não é possível fazer nenhuma investigação dos fenómenos sociais,
nenhum esclarecimento do método das ciências sociais por meio destes conceitos. Nada mais fácil do que
colar uma etiqueta «energética» ou «biológico-sociológica» a fenómenos como crises, revoluções, luta de
classes, etc., mas também nada mais estéril, escolástico, morto, do que esta ocupação”433.
Marx também critica Lange, não sem uma ponta de sarcasmo, por empreender um movimento
semelhante ao que observamos em Bogdánov. Escreve Marx a Kugelmann: “O Sr. Lange faz-me grandes
elogios...com o fim de se apresentar a si como um grande homem. É que o Sr. Lange fez uma grande
descoberta. Toda a história pode ser subordinada a uma única grande lei natural. Esta lei natural resume-
se na frase 'Struggle for life', luta pela vida (a expressão de Darwin assim empregada torna-se uma frase
oca), e o conteúdo desta frase é a lei malthusiana da população, ou melhor, da superpopulação. Portanto,
em vez de analisar esta 'Struggle for life' tal como se manifesta historicamente nas diferentes formas
sociais, basta transformar cada luta concreta na frase 'Struggle for life' , e esta frase na fantasia
malthusiana acerca da população. Convenhamos que é um método muito convincente – para a ignorância
empolada, pretensamente científica e bombástica e para a preguiça mental”434. Lénine clarifica que a base
desta crítica não é a introdução específica do malhusianismo na sociologia, “mas em que a transferência
dos conceitos biológicos em geral para as ciências sociais é uma frase”435, independentemente de ser feita
com “boas” intenções ou com o objectivo de apoiar conclusões sociológicas falsas.
Ao contrário de Feuerbach, que foi “materialista em baixo e idealista em cima”, Bogdánov foi
idealista em baixo e materialista em cima, diz Lénine. Marx e Engels, que cresceram a partir de
Feuerbach, esforçaram-se por levar a construção da filosofia materialista até cima, isto é, diz Lénine, não
à gnosiologia materialista, mas à concepção materialista da história. “Por isso, nas suas obras Marx e
Engels acentuaram mais o materialismo dialéctico do que o materialismo dialéctico, insistiram mais no
materialismo histórico do que no materialismo histórico”436. Acontece que os machistas russos que
432idem, ibidem.433idem, ibidem.434K. Marx cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 248.435V. I. Lénine, ibidem, p. 249.436idem, ibidem.
pretendem ser marxistas, tal como Bogdánov, abordaram a questão num período histórico diferente: a
filosofia burguesa especializava-se particularmente na gnosiologia, prestava uma maior atenção à
reconstituição do idealismo em baixo e não do idealismo em cima, conclui Lénine, pelo que, pelo menos
o positivismo em geral e o machismo em particular dedicaram pouca atenção à filosofia da história. “Os
nossos machistas”, diz Lénine referindo-se assim aos machistas russos, “não compreenderam o marxismo,
porque lhes aconteceu abordá-lo, por assim dizer, do outro lado, e eles assimilaram – e por vezes não
tanto assimilaram como aprenderam de cor – a teoria económica e histórica de Marx, sem terem
compreendido os seus fundamentos, isto é, o materialismo filosófico”437. Assim, “gostariam de ser
materialistas em cima, mas não sabem desembaraçar-se de um idealismo confuso em baixo!”438.
Também em Suvórov – que escreve, com outros autores os Ensaios sobre a Filosofia do
Marxismo, mas que são, na verdade, contra, como mostra Lénine – se encontram raciocínios semelhantes
aos de Bogdánov. “O artigo de Suvórov”, a que Lénine se refere, “é tanto mais interessante nestas
condições”, diz, “quanto o autor não é empiriomonista” (como Bogdánov), “nem empiriocriticista, mas
simplesmente «realista»”439. Assim, releva o que há, não de diferente, mas de comum entre eles contra o
materialismo dialéctico. “A comparação dos argumentos sociológicos deste «realista» com os argumentos
de um empiriomonista”, diz Lénine, “ajudar-nos-á a descrever a sua tendência comum”440.
Vejamos as afirmações de Suvórov:
“Na gradação das leis que regulam o processo mundial, as leis particulares e complexas reduzem-
se às leis gerais e simples e todas elas se subordinam à lei universal do desenvolvimento, a lei da
economia das forças. A essência desta lei consiste em que qualquer sistema de forças é tanto
mais capaz de conservação e desenvolvimento quanto menor for o gasto, quanto maior for a
acumulação e quanto melhor o gasto servir a acumulação. As forças do equilíbrio móvel, que há
muito tempo fizeram nascer a ideia de uma racionalidade objectiva (sistema solar, ciclo dos
fenómenos terrestres, processo da vida), formam-se e desenvolvem-se precisamente devido à
conservação e acumulação da energia que lhes é inerente, devido à sua economia interna. A lei da
economia das forças é o princípio unificador e regulador de todo o desenvolvimento – inorgânico,
biológico e social”441.
Lénine comenta a enorme facilidade com que os “positivistas” e “realistas” russos fabricam leis
“universais”: “Só é pena que estas leis não sejam nada melhores do que as que Eugen Dühring fabricava
com a mesma rapidez e facilidade. A «lei universal» de Suvórov é uma frase tão empolada e vazia de
sentido como as leis universais de Dühring”. Lénine explica: “Tentai aplicar esta lei ao primeiro dos três
domínios indicados pelo autor: o desenvolvimento inorgânico. Vereis que não conseguireis aplicar aqui
nenhuma «economia de forças» além da lei da conservação e da transformação da energia, quanto mais
aplicar «universalmente». E Lénine pergunta o que é que ficou, além desta lei, no domínio do
437idem, ibidem, p. 250.438idem, ibidem.439idem, ibidem, p. 251.440idem, ibidem.441Suvórov cit. por V. I. Lénine, ibidem.
desenvolvimento inorgânico; pergunta onde estão os complementos ou as novas descobertas que
permitiram a Suvórov “aperfeiçoar” a lei da conservação e transformação da energia em lei da “economia
das forças”. E conclui que tais novos factos ou descobertas não existem. Ele simplesmente, para fazer
efeito, diz Lénine, “pegou na pena e lançou no papel uma nova «lei universal» da «filosofia real-monista”442.
O mesmo em relação ao segundo domínio do desenvolvimento mencionado por Suvórov, o
biológico. Pergunta Lénine: “Aqui, em que o desenvolvimento dos organismos tem lugar através da luta
pela existência e da selecção, é a lei da economia das forças ou a «lei» da dilapidação das forças que é
universal? Que importa! A «filosofia real-monista» pode entender de uma maneira o «sentido» da lei
universal num domínio e doutra maneira noutro, por exemplo, como desenvolvimento dos organismos
superiores a partir dos inferiores. Pouco importa que devido a isto a lei universal se torne uma frase vazia;
em contrapartida, o princípio do monismo é respeitado”443.
O mesmo em relação ao terceiro domínio – o social. Aqui já se pode entender a “lei universal”
num terceiro sentido, “como desenvolvimento das forças produtivas”, continua Lénine. “É por isso que é
uma «lei universal», para que se possa aplicar a tudo o que se queira”444, ironiza.
Citemos ainda um último exemplo. Segundo Suvórov, “o desenvolvimento das forças produtivas
corresponde ao crescimento da produtividade do trabalho, à diminuição relativa dos gastos e à elevação
da acumulação da energia”... “isto é um princípio económico. Deste modo, Marx pôs na base da teoria
social o princípio da economia das forças...”445. Lénine não pôde deixar de ironizar e, ao fazê-lo, mostrar
o conteúdo vazio de tais afirmações, mostrar que estamos perante artifícios verbais: “vejam como é
fecunda a «filosofia real-monista»: dá uma fundamentação energética do marxismo […] Como Marx tem
uma economia política, ruminemos a este propósito a palavra «economia» e chamemos ao produto da
ruminação «filosofia real-monista»!446”
Note-se a diferença para o método de Marx que se baseia no estudo dos processos concretos. Diz
Lénine: “Não, Marx não pôs na base da sua teoria nenhum princípio da economia das forças […] Marx
deu uma definição perfeitamente exacta do crescimento das forças produtivas e estudo o processo
concreto deste crescimento. Mas Suvórov inventou uma palavra nova para designar o conceito analisado
por Marx e inventou uma muito infeliz, apenas confundindo as coisas. Porque Suvórov não explicou o
que significa a «economia das forças», como medi-la, como aplicar este conceito, que factos precisos e
determinados abrange, e não se pode explicar porque é uma embrulhada”447.
442V. I. Lénine, ibidem, p. 252.443idem, ibidem.444idem, ibidem.445Suvórov cit. por V. I. Lénine, ibidem.446V. I. Lénine, ibidem.447idem, ibidem, p. 252-253.
17. Os partidos em filosofia e o não-partidarismo
Como sublinha o próprio Lénine, em cada questão gnosiológica, em cada questão posta pela
nova física, observámos a luta entre o materialismo e o idealismo448. “Por detrás do amontoado de novas
subtilezas terminológicas, por detrás do lixo de uma escolástica erudita, encontrámos sempre sem
excepção duas linhas fundamentais”449, diz. Tomar a matéria como primário e o espírito com secundário,
ou o inverso, continua a ser a questão fundamental que “de facto” continua a dividir os filósofos em dois
grandes campos. Lénine, analisa, assim, a questão de saber se existem partidos em filosofia e a
importância do não-partidarismo.
“A fonte de milhares e milhares de erros e de confusões neste domínio”, afirma Lénine, “consiste
precisamente em que, por trás da aparência dos termos, da definições, dos subterfúgios escolásticos, dos
artifícios verbais, não se vê estas duas tendências fundamentais”450. E foi exactamente isto – o
obscurecimento da questão por meio de artifícios verbais, o jogo escolástico de novos “ismos” - que Marx
e Engels combateram, nota Lénine. “A recusa de ter em conta os projectos híbridos de conciliação do
materialismo e do idealismo” constitui o seu grande mérito. Caminharam “para a frente por um caminho
filosófico nitidamente definido”; “desenvolveram o materialismo, fizeram avançar uma corrente
fundamental da filosofia, não se contentaram em repetir questões gnosiológicas já resolvidas, mas
aplicaram consequentemente, e mostraram como se deve aplicar este mesmo materialismo no domínio das
ciências sociais[...]”; “sem nunca tomar a sério […] as infindáveis tentativas de «ultrapassar» a
«unilateralidade» do materialismo e do idealismo, de proclamar uma nova linha, quer seja o
«positivismo», o «realismo» ou o charlatanismo professoral”451. Tal “positivismo”, tal “realismo”, “que
seduziram e seduzem um número infindável de confusionistas”, eram, diria Engels, “no melhor dos casos
um processo filisteu de introduzir sub-repticiamente o materialismo, criticando-o e refutando-o
publicamente”452.
“Marx e Engels foram, em filosofia, partidaristas do princípio ao fim, souberam descobrir os
desvios do materialismo e as condescendências para com o idealismo e o fideísmo em todas e quaisquer
correntes «modernas»”453, resume Lénine. Também J. Dietzgen. Dietzgen exigia decisão e clareza.
Considerava que “o clericalismo científico esforça-se muito seriamente por ajudar o clericalismo
religioso”454, nota Lénine. E que a teoria do conhecimento materialista constituía uma “arma universal
contra a fé religiosa”, não só contra a “religião conhecida de todos, formal e comum”, mas também contra
a “refinada e elevada religião professoral dos idealistas inebriados”455.
Lénine, tomando em consideração a escola de Mach e de Avenarius do ponto de vista dos
448Cf. idem, ibidem, p. 254.449idem, ibidem.450idem, ibidem.451idem, ibidem, p. 254-255.452Cf. idem, ibidem, p. 256.453idem, ibidem.454J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 257.455Cf. idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 257-258.
partidos em filosofia, observa que “estes senhores gabam-se do seu não-partidarismo”456, que pretendem
colocar-se acima do materialismo e do idealismo, “ultrapassar esta oposição «antiquada»”. “Mas de
facto”, continua Lénine, “toda esta confraria cai a cada o instante no idealismo, travando contra o
materialismo uma luta incessante e tenaz”. “De facto”, sublinha Lénine “nas condições gerais da luta das
ideias e das tendências da sociedade contemporânea, o papel objectivo destes artifícios gnosiológicos é
um e só um: abrir caminho ao idealismo e ao fideísmo, servi-los fielmente. De facto, não é por acaso que
à pequena escola dos empiriocriticistas se agarram tanto os espiritualistas ingleses do género de Ward
como os neo-criticistas franceses que elogiam Mach pela sua luta contra o materialismo, e os imanentistas
alemães”457.
Lénine tem em grande conta o trabalho destes “professores” que considera capazes dos mais
valiosos contributos nos domínios especiais da química, da história, da física, afirmado aqui e mostrado
ao longo da presente obra. Mas não se pode crer nas suas considerações no domínio da filosofia458, diz. A
razão é a mesma pela qual “não se pode acreditar numa só palavra de nenhum professor de economia
política, capaz de realizar os trabalhos mais valiosos no domínio das investigações factuais e
especializadas, quando se trata da teoria geral da economia política. Porque esta última é na sociedade
contemporânea uma ciência tão partidarista como a gnosiologia”459.
O exame da ligação do empiriocriticismo com a religião é importante e insere-se na questão mais
vasta do partidarismo em filosofia. Assim, conclui Lénine, “a atitude para com a religião e a atitude para
com as ciências da natureza ilustra excelentemente esta real utilização de classe do empiriocriticismo pela
reacção burguesa”460. Tomando Petzoldt, discípulo de Mach e Avenarius, ouvimo-lo dizer que o
empiriocriticismo “não está em contradição nem com o teísmo nem com o ateísmo”461. Para Mach, “as
opiniões religiosas são um assunto privado”462. Cornelius (que elogia Mach e que Mach elogia) é fideísta
aberto e ultra-reaccionário, diz Lénine.
“A neutralidade de um filósofo nesta questão é já servilismo em relação ao fideísmo, e Mach e
Avenarius não se elevam nem se podem elevar acima da neutralidade, devido aos pontos de partida da sua
gnosiologia”, diz Lénine, e explica: “uma vez que negais a realidade objectiva, que nos é dada na
sensação, já perdestes todas as armas contra o fideísmo, porque já caístes no agnosticismo ou no
subjectivismo, e o fideísmo não precisa de mais”. Por outro lado, “se o mundo sensível é uma realidade
objectiva, a porta está fechada a qualquer outra «realidade» ou pseudo-realidade (recordai-vos que
Bazárov acreditou no «realismo» dos imanentistas, os quais declaram que Deus é um «conceito real»)” 463.
Assim como a atitude do empiriocriticismo para com a religião, Lénine examina também a
atitude do machismo como corrente filosófica para com as ciências da natureza. Como vimos, “o
456V. I. Lénine, ibidem, p. 258.457idem, ibidem.458Cf. idem, ibidem, p. 259.459idem, ibidem.460idem, ibidem, p. 260.461J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem.462E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem.463V. I. Lénine, ibidem.
machismo combate do princípio ao fim a «metafísica» das ciências da natureza, designando com este
nome o materialismo das ciências da natureza, isto é, a convicção espontânea, involuntária, informe,
filosoficamente inconsciente, que a imensa maioria dos naturalistas tem da realidade objectiva do mundo
exterior reflectida pela nossa consciência. E os nossos machistas calam hipocritamente este facto,
obscurecendo ou confundindo a ligação indissolúvel do materialismo espontâneo dos naturalistas com o
materialismo filosófico como corrente há muito conhecida e confirmada centenas de vezes por Marx e
Engels”464.
Avenarius, como chama Lénine a atenção, combate a metafísica das ciências da natureza do
ponto de vista do idealismo gnosiológico; Mach, ao combater igualmente a metafísica das ciências da
natureza, confessa que o seguem “uma série de filósofos”, “mas muito poucos naturalistas” e que “a
maioria dos naturalistas se atém ao materialismo”; Petzoldt afirma que “as ciências da natureza estão
inteiramente impregnadas de metafísica” e que “a sua experiência tem ainda de ser depurada” (com isto
querendo significar, como vimos, a eliminação do reconhecimento da realidade objectiva); Willy
considera que “as ciências da natureza, no fim de contas, representam em muitos aspectos uma autoridade
da qual nos devemos livrar”465. Isto, como bem diz Lénine, é “completo obscurantismo” e os imanentistas,
“muito legitimamente, tiravam desta ideia machista sobre o «carácter metafísico» do materialismo
histórico-natural conclusões directa e abertamente fideístas”. Se as ciências não nos dão nas suas teorias a
realidade objectiva, então é indiscutível que a humanidade tem o direito de criar noutro campo
“conceitos” não menos “reais” como o de Deus, afirma Lénine.
Lénine faz referência a uma obra de Ernst Haeckel, Enigmas do Universo, que, segundo ele,
provocara uma tempestade que evidenciou com singular relevo o partidarismo da filosofia da sociedade
contemporânea, bem como o verdadeiro significado social da luta do materialismo contra o idealismo e o
agnosticismo. Haeckel é um naturalista que “exprime indubitavelmente”, diz Lénine, “as opiniões,
sentimentos e tendências mais firmemente implantados, embora mal definidos, da esmagadora maioria
dos naturalistas de fins do século XIX e começos do século XX”466. Aquilo que Heackel expõe, sem
querer “romper com os filisteus”, é absolutamente inconciliável com quaisquer matizes do idealismo
filosófico dominante, considera Lénine. Assim, foi desencadeada contra Heackel uma verdadeira guerra
da parte dos teólogos, dos “professores oficiais de filosofia”, dos imanentistas, kantistas. “dos sacerdotes
da ciência pura e da teoria aparentemente mais abstracta” que “soltam verdadeiros gritos de raiva”. Ouve-
se nitidamente um motivo fundamental, diz Lénine: “contra a «metafísica» das ciências da natureza,
contra o «dogmatismo», contra o «exagero do valor e da importância das ciências da natureza», contra o
«materialismo histórico-natural»”467.
É especialmente característico desta “tragicomédia”, diz Lénine, o facto de Haeckel não se
declarar francamente materialista, renunciar ao materialismo e rejeitar esta designação; nele estão
464idem, ibidem, p. 262.465idem, ibidem.466idem, ibidem, p. 265.467idem, ibidem, p. 264.
ausentes objectivos partidaristas definidos e deseja mesmo respeitar o preconceito dominante contra o
materialismo. Mas o que este naturalista – que não entra na análise das questões filosóficas, que não sabe
contrapor as teorias materialista e idealista do conhecimento – faz é troçar de todos os “artifícios
idealistas, ou, mais ainda, de todos os artifícios especialmente filosóficos, do ponto de vista das ciências
da natureza, não admitido sequer a ideia de que seja possível outra teoria do conhecimento que não seja o
materialismo histórico-natural. Troça dos filósofos do ponto de vista do materialista, sem ver que se situa
no ponto de vista de um materialista!”468. Lénine, concluindo, afirma que “a «guerra» contra Haeckel
provou que este nosso ponto de vista corresponde à realidade objectiva, isto é, à natureza de classe da
sociedade contemporânea e às suas tendências ideológicas de classe”469.
Lénine dá ainda outro exemplo em que se manifesta o partidarismo em filosofia. Karl Snyder,
americano, escreveu um livro sobre uma série de descobertas em vários ramos da ciência. O machista
Kleinpeter, que traduz a obra de inglês para alemão, acrescenta-lhe um prefácio em que declara
insatisfatória a gnosiologia Snyder porque, diz Lénine, o autor nem por um momento admite dúvidas que
o quadro do mundo é um quadro de como a matéria se move. No seu livro seguinte, Snyder dedica o seu
livro a Demócrito, dizendo que, embora a sua escola filosófica esteja um pouco fora de moda, “é digno de
nota que praticamente todo o progresso moderno das nossas ideias acerca do mundo se baseou nos
princípios do materialismo. A bem dizer, os princípios do materialismo são simplesmente inelutáveis nas
investigações científicas”470. Snyder troça do idealismo:
“Evidentemente, se quiser, pode sonhar juntamente com o bom bispo Berkeley que é tudo um
sonho. Mas por mais agradáveis que sejam as prestidigitações de um idealismo idealizado, não
haverá muitas pessoas que, pensem o que pensarem acerca do problema do mundo exterior,
duvidem que elas próprias existem. Não é preciso correr muito atrás dos fogos-fátuos dos Eus e
Não-Eus para se convencer de que, admitindo a nossa própria existência, abrimos as seis portas
dos nossos sentidos a uma série de aparências. A hipótese das nebulosas, a teoria da luz como
movimento do éter, a teoria dos átomos e de todas as doutrinas semelhantes, podem ser tomadas
simplesmente como cómodas 'hipóteses de trabalho', mas é preciso lembrar que, enquanto estas
doutrinas não forem refutadas, elas assentam mais ou menos na mesma base que a hipótese de que
um ser a que tu, indulgente leitor, chamas 'tu', percorre neste momento estas linhas”471.
Assim, pergunta Lénine, “será de admirar que Rudolf Willy, em 1905, combata Demócrito como
se fosse um inimigo vivo, ilustrando deste modo admiravelmente o partidarismo da filosofia e revelando
uma e outra vez a sua verdadeira posição nesta luta de partidos?”472. Willy dizia de Demócrito não ser este
“suficientemente livre” para para compreender que os átomos eram conceitos fictícios, auxiliares; da
mesma forma, “os nossos naturalistas contemporâneos, com poucas excepções também não o são”. Mas
os naturalistas troçam deste berkeleyanismo e seguem Haeckel, nota Lénine.
468idem, ibidem, p. 266.469idem, ibidem, p. 267.470K. Snyder cit. por V. I. Lénine, ibidem.471K. Snyder cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 267-268.472V. I. Lénine, ibidem, p. 268.
II – O que há de idealismo na interpretação bohriana da mecânica quântica
Neste capítulo analisam-se os textos de Bohr. O quadro de análise terá como contornos e
suportes principais (mas não exclusivos) as ideias e o debate filosóficos expostos por Lénine na sua obra
Materialismo e Empiriocriticismo. Os textos de Bohr a estudar serão textos nos quais ele trata os
problemas colocados pela nova física de um ponto de vista filosófico e epistemológico. A partir deles
pretende-se caracterizar a atitude e as posições filosóficas de Bohr. São elas que estarão sob análise e não
os resultados científicos. Tomo estas posições como características da escola de Copenhaga e da chamada
interpretação ortodoxa da mecânica quântica, muito embora possam efectivamente ser encontradas
diferenças entre as posições filosóficas dos seus diferentes elementos, mas que não cabe aqui distinguir.
1. Algumas notas sobre as origens da mecânica quântica
É conveniente começar por uma breve abordagem histórica da situação que, na ciência, conduziu
à actual teoria quântica, com o objectivo enquadrar e tornar mais compreensíveis as interpretações e
soluções adoptadas.
Sobre o percurso científico
De acordo com J. D. Bernal, o autor de Science in History, a descoberta inicial do electrão
levantara dificuldades na teoria da radiação luminosa. “Se a luz era produzida por electrões que giravam
ou vibravam, devia estar a mudar continuamente de cor conforme os electrões fossem perdendo energia
por radiação; mas o testemunho directo do comprimento de onda constante do espectro óptico provava
que assim não era”473. Uma outra contradição manifestava-se na teoria electromagnética clássica segundo
a qual a energia de um corpo quente devia pertencer à região azul do espectro, mas verificava-se que,
afinal, emitia no vermelho.
David Cassidy, co-editor dos trabalhos de Einstein474, refere estas mesmas contradições
experimentais relativas à chamada radiação do corpo negro (idealização de um corpo quente como uma
peça de carvão incandescente ou da radiação emitida através de um pequeno orifício numa caixa preta
contendo radiação electromagnética a elevadas temperaturas)475. Para além disso, chama a atenção para a
relação que este problema tinha com as necessidades económicas da época. Sucede que os cientistas do
gabinete de padrões (bureau of standards) alemão em Berlim estavam interessados em estabelecer os
473J. D. Bernal, Ciência na História, Lisboa, Livros Horizonte, 1976, p. 740-741.474Collected Papers of Albert Einstein, Princeton University Press475David Cassidy, Einstein on the Photoelectric effect (adaptado do livro David Cassidy, Einstein and Our World,
Humanities Press, 1995, reissued Amherst, NY: Humanity Books, 1998), American Institute of Physics Center for History of Physics, 13-07-2012, 11:55. Disponível em http://www.aip.org/history/einstein/essay-photoelectric.htm
padrões para a emergente indústria eléctrica de iluminação. Mediram a distribuição total da energia
electromagnética emitida por uma caixa preta, o que se pode aplicar a uma lâmpada incandescente.
Partindo da teoria da radiação de Maxwell-Lorenz, Planck esperava derivar a fórmula da radiação do
corpo negro da segunda lei da termodinâmica. Mas, foi só com a introdução, feita relutantemente, de uma
nova assunção radical que Max Planck pôde chegar à fórmula correcta.
Max Planck, em 1900, vem, então, propor, como hipótese, que a energia dos átomos não era
emitida de forma contínua, mas, sim, por fracções; a energia da radiação electromagnética não seria
emitida continuamente, como seria de esperar para as ondas, mas, sim, de forma quantizada. A constante
h, introduzida por Planck, seria o quantum constante de acção que controlava a quantidade de todas as
trocas de energia dos sistemas atómicos. Segundo Bernal, Planck, ao eliminar uma dificuldade
experimental, estaria a criar uma dificuldade teórica. Planck, em essência, diz Cassidy, descobrira a
estrutura quântica da radiação electromagnética; contudo, ele próprio não o via dessa maneira, mas sim
como um truque matemático para obter a resposta correcta. Foi Einstein quem, num dos seus artigos de
1905, partindo da hipótese dos quanta de luz, não só derivou a fórmula de Planck, como explicou
fenómenos até então inexplicáveis como o efeito fotoeléctrico. Neste artigo de Einstein, à semelhança de
outros artigos seus, a hipótese dos quanta surge, como nota Cassidy, de um “puzzle experimental”, de
uma assimetria ou dualidade nas teorias físicas: neste caso, entre, diz Einstein, “as concepções teóricas
que os físicos formaram acerca dos gases e outros corpos ponderáveis e a teoria de Maxwell dos
processos electromagnéticos no chamado espaço vazio”476. Em 1907, nota Cassidy, Einstein descobre
também que o movimento dos átomos exibe uma estrutura quântica, resolvendo outro problema
experimental – do arrefecimento dos corpos sólidos – que não podia ser explicado sem ser com base nas
energias específicas de vibração dos átomos na rede sólida.
Temos, assim, a radiação electromagnética – as ondas contínuas das equações de Maxwell,
confirmadas experimentalmente – a exibir um comportamento “atómico”, quantizado. Só esta assunção
permitia explicar um conjunto de fenómenos até então inexplicados.
“A teoria dos quanta, originalmente aplicada ao átomo por Bohr, devia ter explicado, em
princípio, a estrutura de todos os átomos e moléculas”, diz Bernal. A estrutura do átomo avançada por
Bohr permitia interpretar os espectros complexos e encontrar os níveis de energia – o que é já um
conceito quântico – dos electrões nos diferentes átomos; implicava que cada estrutura atómica ou
molecular podia existir num grande número de estados com diferentes características de vibração e que as
diferenças de energia entre esses estados se podiam achar medindo as frequências da luz emitida ou
absorvida477. No entanto, verificaram-se dificuldades estranhas, como adjectiva Bernal, que se prendiam
com os níveis quânticos das moléculas diatómicas. As tentativas para resolver várias anomalias surgidas
estavam a transformar a teoria quântica numa “álgebra formal”, “onde era sempre possível encontrar um
476Albert Einstein, “On a Heuristic Point of View about the Creation and Conversion of Light” (1905), traduzido por D. Ter Haar, in D. Ter Haar, The Old Quantum Theory, Pergamon Press, 1967, p. 91-107. Disponível em: http://www.physik.fu-berlin.de/~kleinert/files/eins_lq.pdf
477Cf. J. D. Bernal, op. cit., p. 744.
conjunto de números para explicar a maioria das coisas, mas não era possível encontrar qualquer
justificação, para além da conveniência, para escolher esses números”478.
O esforço para ultrapassar tais dificuldades levou a uma revisão geral e profunda da teoria
quântica que Bernal situa em torno de 1925, destacando como principais intervenientes de Broglie em
França, Schrödinger e Heisenberg na Alemanha e Dirac em Inglaterra.
Louis de Broglie, perante aquilo que parecia ser uma correspondência geral entre ondas e
partículas, põe a hipótese de os electrões serem ondas, assim como as ondas luminosas serem
partículas479. De acordo com esta hipótese, “podia considerar-se que cada partícula seria acompanhada de
uma onda e que cada onda consistisse de partículas alinhadas numa frente ondulatória”480, explica Bernal.
E, de facto, veio, passado pouco tempo, a comprovar-se experimentalmente o comportamento ondulatório
da matéria pela observação da difracção dos electrões (observação de padrões interferenciais, típicos das
ondas, quando os electrões passam num alvo com duas fendas). Temos agora não só as ondas
electromagnéticas a apresentar comportamento de partículas, como temos as partículas a exibirem
comportamento ondulatório.
Com base nestas ideias, Schrödinger explica os diferentes modos característicos de vibração dos
electrões no átomo, que se moviam, não em ondas progressivas, mas em ondas estacionárias (o que é
formalmente semelhante aos modos de vibração das cordas de um instrumento musical). Assim, a
mecânica ondulatória tinha a vantagem de explicar as anomalias da velha teoria quântica de uma maneira
que podia ser fisicamente apreendida assim como matematicamente expressa, diz Bernal.
Heisenberg e Dirac seguiram outro caminho, desprezando mesmo esse grau de representação
física. Heisenberg, por meio de matrizes, e Dirac, através de uma álgebra de operadores não comutativos,
ofereceram soluções formais igualmente boas para os problemas da física quântica.
Bernal é da opinião que as novas teorias quânticas continuavam a representar um “híbrido
incómodo entre a física corpuscular de Newton, adequadamente ajustada ou fragmentada por postulados
quânticos, e uma matemática de tipo inteiramente novo”. Estas teorias, embora capazes de explicar os
fenómenos que lhes tinham dado origem, passaram a adoptar artifícios e variações ad-hoc, sem grande
êxito, para novos fenómenos cada vez mais difíceis de explicar. Considera também que “as dificuldades
filosóficas que levantavam eram ainda mais sérias”481. Mas a este aspecto voltaremos mais tarde.
Sobre o percurso das ideias
A mecânica quântica, usando as palavras de Rui Moreira, pretendeu conciliar a mecânica clássica
de Newton e o electromagnetismo de Maxwell482. Mas o autor chama a atenção para o contraste entre
478idem, ibidem, p. 753.479Esta hipótese é posta por de Broglie na sua tese de doutoramento, Recherches sur la Théorie des Quanta.480idem, ibidem, p. 754.481idem, ibidem, p. 755.482Cf. R. N. Moreira, «Instrumentalismo Versus Realismo, a Crise na Física do Século XX», in Olga Pombo, Ángel
estas duas teorias: por um lado, “a mecânica de Newton descrevia o movimento de corpúsculos num
espaço iminentemente vazio” e, por outro lado, “o electromagnetismo de Maxwell descrevia ondas que se
propagavam num espaço inevitavelmente cheio para para suportar essas mesmas ondas”.
Moreira retoma o percurso percorrido até à interpretação bohriana da mecânica quântica e a
formulação do princípio da complementaridade e põe em destaque os dois caminhos distintos seguidos
para a tentativa de resolução daqueles problemas físicos. Na universidade de Göttingen, na Alemanha,
Max Born, Heisenberg, Jordan e outros pretenderam criar uma mecânica formalmente decalcada da
mecânica de Newton, diz. Para tal, substituíram as grandezas clássica por matrizes. Para esta mecânica
das matrizes existiriam apenas corpúsculos dos quais, diferentemente já da mecânica clássica, não seria
possível determinar simultaneamente uma posição e uma velocidade bem definidas. “Foi neste contexto
que Heisenberg chegou às suas célebres relações de indeterminação” 483, destaca Rui Moreira.
Em Fevereiro de 1927, Heisenberg vai a Copenhaga mostrar a Niels Bohr os seus resultados.
Segundo o autor “este respondeu-lhe que o que ele tinha feito não passava de um truque matemático e que
tudo aquilo tinha de ser interpretado em termos físicos! Heisenberg saiu de lá um pouco combalido. Niels
Bohr já era prémio Nobel (por causa do seu modelo atómico de 1913) e isto constituiu um rude golpe no
jovem Heisenberg”484. Moreira afirma que tal acontecera devido ao facto de Bohr já ter tomado contacto
com um outro percurso que Schrödinger, a trabalhar na Suíça, estava a seguir. Schrödinger, tendo em
mente a similitude entre a equação de Hamilton-Jacobi (formalismo alternativo para a mecânica de
Newton, que descreve trajectórias de corpúsculos) e a equação a óptica geométrica (a chamada equação
do eikonal, que é uma simplificação da equação de onda da radiação electromagnética quando o
comprimento de onda tende para zero), postula a sua célebre equação, a chamada equação de
Schrödinger:
−ℏ2m ∂2
∂ x 2 ∂2∂ y 2
∂2∂ z2 V x , y , z=i ℏ
∂x , y , z ∂ t
Schrödinger estava à procura, destaca Moreira, de uma mecânica quântica ondulatória onde só
existiriam ondas. Schrödinger, em 1926, mostra então, numa série de artigos, que o seu formalismo é
equivalente ao desenvolvido em Göttingen. Ora, Bohr, quando Heisenberg o visita, já tinha tomado
conhecimento do formalismo de Schrödinger e da demonstração da equivalência entre este e a mecânica
das matrizes.
Teria sido, então, diz Moreira, a necessidade de integrar estas duas concepções seguidas por duas
vias distintas e aparentemente independentes num só quadro conceptual que teria levado Bohr a, entre
Fevereiro de 1927 (visita de Heisenberg) e o Verão desse mesmo ano, chegar à sua interpretação, dita
ortodoxa, de Copenhaga ou bohriana, do formalismo quântico. Bohr apresenta pela primeira vez a sua
Nepomuceno (eds.), Lógica e Filosofia da Ciência, Lisboa, Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, 2009, p.127.
483idem, ibidem, p.128.484idem, ibidem.
interpretação do formalismo quântico nesse ano de 1927 no Congresso Volta, no Lago Como, em Itália.
Seria mais tarde publicada em Abril de 1928, na revista Nature, sob o título «The Quantum Postulate and
the Recent Development in Atomic Theory».
Sobre o percurso filosófico
No pensamento filosófico de Bohr, Harald Høffding teve uma importância preponderante. Assim
o considera Rui Moreira, a partir do seu estudo sobre as influências filosóficas de Bohr e a importância
que estas tiveram para a elaboração do princípio da complementaridade. O princípio da
complementaridade em mecânica quântica seria a transposição para a física do mesmo princípio de
complementaridade (embora não fosse ainda assim designado) que Høffding, professor de filosofia de
Bohr, teria já introduzido em psicologia e filosofia. De facto, acrescento eu, como podemos ler em
inúmeros artigos seus, é o próprio Bohr quem faz questão de relacionar estas áreas no que diz respeito à
presença de relações de complementaridade procurando, assim, evidenciar que não seria um princípio
circunscrito à física, mas comum a outras áreas do conhecimento, procurando atribuir-lhe um grau de
generalidade elevado, procurando elevá-lo a um princípio epistemológico.
Segundo Høffding, existiria uma relação de complementaridade entre as funções psicológicas de
ver e compreender. Estas seriam duas “necessidades inconciliáveis” do espírito humano as quais nunca
seria capaz de ultrapassar. É interessante notar que Høffding está aqui a citar Poincaré. “Daí a estabelecer
uma relação de complementaridade entre as formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e as formas
a priori do entendimento de Kant (categorias – das quais é inevitável destacar a causalidade) foi um
pequenino passo”, diz Moreira, estabelecendo, assim, uma ligação entre as ideias de Høffding e o
kantismo. Høffding teria, desta forma, transposto as relações de complementaridade da psicologia para a
filosofia e Bohr, por seu turno, para a física, atribuindo-lhe o nome de princípio de complementaridade. É
por essa razão, diz Moreira, que Bohr, na primeira exposição que faz da sua interpretação do formalismo
quântico, afirma que não é possível atingir simultaneamente uma descrição espácio-temporal e uma
descrição causal dos fenómenos quânticos485. De facto, procurando as palavras de Bohr, este diz-nos, na
sua comunicação de 1927 no Congresso Volta, que “a própria natureza da teoria quântica força-nos, então,
a olhar a coordenação espácio-temporal e a pretensão à causalidade […] como características
complementares mas exclusivas da descrição, simbolizando a idealização da observação e definição
respectivamente”486.
Rui Moreira sintetiza, da seguinte forma, a questão essencial relativa à origem filosófica do
princípio da complementaridade: o “resíduo irracional” irredutível de Høffding está agora expresso, pelas
485Cf. idem, ibidem, p.131-132.486N. Bohr, «The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory», in Nature (Supplement), Vol.
121 (Apr., 1928), Issue 3050, p. 580.
mãos de Bohr, de uma “forma matematicamente lúcida” [Bohr]487.
Algumas notas a respeito do progresso da ciência
Ao analisarmos a história da edificação da teoria quântica, identificamos algumas características
respeitantes às causas e ao processo de desenvolvimento da ciência e das suas teorias. Por essa razão,
procurarei enunciar as linhas gerais do problema para, então, poder observar, ainda que de passagem, o
caso específico em apreço, a mecânica quântica. Tal análise traz para o primeiro plano, como o motor de
desenvolvimento, o papel das contradições dialécticas.
A causa decisiva para o desenvolvimento da ciência é a sua relação com a produção material,
cujo carácter é determinado pelo sistema social, e com a qual se encontra em contradição dialéctica 488. As
necessidades sociais de produção acabam por determinar o avanço científico. Era para este aspecto que
Engels chamava a atenção quando relacionava a revolução industrial do século XVIII e XIX e o grande
desenvolvimento científico que lhe estava associado; quando relacionava o desenvolvimento da
astronomia (e, consequentemente, da matemática) com a necessidade da determinação das estações do
ano para os povos pastores e agricultores; quando relacionava o desenvolvimento da mecânica com a
necessidade de construção de edifícios na fase de nascimento das grandes cidades, com a necessidade de
elevação de águas, de navegação e da guerra – o que obrigava outra vez ao desenvolvimento da
matemática. “Por conseguinte, a origem e desenvolvimento das ciências estão desde o início determinadas
pela produção”489, conclui Engels.
Quando David Cassidy faz referência à necessidade de desenvolvimento da indústria eléctrica de
iluminação relacionando-o com a investigação em torno da radiação do corpo negro que conduziria à
introdução do quantum na teoria física, acaba por ser para este mesmo aspecto que está a chamar a
atenção.
Por outro lado, as contradições internas à própria ciência, ao próprio corpo de conhecimentos,
também determinam o seu desenvolvimento. Como os autores de Philosophical Problems in Physical
Science490 fazem notar, “uma causa importante para o desenvolvimento da física é a contradição entre as
diferentes teorias físicas ou entre a teoria e as experiências”. Não são contradições no seio da própria
realidade objectiva, isto é, dos objectos físicos, mas sim contradições do domínio do próprio
conhecimento e que são expressão do seu carácter histórico. Estas contradições, constatam os autores, são
frequentemente formuladas como problemas ou paradoxos que não podem ser resolvidos no quadro das
teorias existentes. Não devem ser entendidas como erros ou defeitos491. Elas estão, sim, necessariamente
487Cf. R. N. Moreira, op. cit., p.130.488Esta sistematização é feita por Herbert Hörz, et al., Philosophical Problems in Physical Science, Minneapolis,
Marxist Educational Press, 1980, p. 67 et. seq.489F. Engels, Dialectics of Nature, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International
Publishers, v.25, 1987, p. 465.490Herbert Hörz, Hans-Dieter Pöltz, Heinrich Parthey, Ulrich Röseberg, Karl-Friederich Wessel, Philosophical
Problems in Physical Science, Minneapolis, Marxist Educational Press, 1980.491A este respeito, é de particular interesse relembrar o exemplo que Engels dá da lei de Boyle já aqui trazido a
propósito da relação entre a verdade absoluta e a verdade relativa. Engels, combatendo pretensões às verdades últimas e definitivas, defendendo a inesgotabilidade do conhecimento, aborda dialecticamente o problema da verdade e do erro. “Verdade e erro, como todos as categorias lógicas que se movem em oposições polares, têm validade absoluta apenas num domínio extremamente limitado”, diz. E mostra como, fora desse domínio, os pólos se podem transformar nos seus opostos. Mostrou, portanto, porque as contradições não devem ser
ligadas ao desenvolvimento do conhecimento que faz o seu caminho através do reconhecimento e
resolução destas contradições492. O novo conhecimento, notam os autores, não se desenvolve em
separação absoluta do velho, mas com base nele. O novo conhecimento supera o velho dialecticamente,
constituindo um exemplo de negação da negação e revelando a unidade dialéctica entre continuidade e
descontinuidade no processo de construção do conhecimento. E é um processo, é um movimento
inesgotável. Como diz Lénine, apresentando o processo de conhecimento como um processo dialéctico:
“O conhecimento é a eterna, infindável aproximação do pensar ao objecto. O reflexo da Natureza
no pensar do homem deve ser compreendido não «de modo morto», não «abstractamente», não
sem movimento, não sem contradições, mas de num processo eterno de movimento, de
surgimento de contradições e de solução delas”493.
Ora, foi deste tipo de contradições que a teoria quântica emergiu e se desenvolveu. Como vimos
acima, emergiu com ligação a necessidades colocadas pela indústria. Emergiu da contradição entre o
previsto pela teoria clássica e os valores obtidos para o espectro da radiação emitida pelo corpo negro;
emergiu da contradição entre o previsto pela teoria – a perda de energia e o consequente colapso do
electrão no núcleo – e a experiência – a relativa estabilidade do átomo. Descobriu-se, no final, que as
ondas apresentavam comportamento corpuscular (demonstrado no efeito fotoeléctrico) e que os
corpúsculos apresentavam comportamento ondulatório (demonstrado nos padrões interferenciais).
Procurou-se, então, conciliar duas teorias clássicas: a mecânica de Newton (corpúsculos) com o
electromagnetismo de Maxwell (ondas). Ora, penso que é, precisamente, na forma de lidar com esta
contradição – objectiva e subjectiva – que reside o nosso problema e que abordaremos mais à frente.
2. A complementaridade de Bohr
Como forma de resolver os problemas colocados pelas novas descobertas da física, Bohr defende
a ideia da complementaridade, que apresenta como um resultado necessário que emana directamente dos
dados da experiência. Apresenta-a fundamentada numa determinada consideração sobre a relação objecto
e instrumento de medida. Como Bohr recorda, no Internacional Physical Congress, em homenagem a
Volta, em Como, Itália, em Setembro de 1927, onde apresentou pela primeira vez o ponto de vista da
complementaridade: “eu defendi o ponto de vista convenientemente designado «complementaridade»,
adequado para incluir os traços característicos da individualidade dos fenómenos quânticos e, ao mesmo
tempo, para clarificar os aspectos peculiares do problema observacional neste campo da experiência” 494. A
entendidas como erro. A lei de Boyle diz que, a temperatura constante, o volume de um gás é inversamente proporcional à pressão. Regnault descobriu que esta lei não é válida em certos casos. Se Regnault tivesse adoptado a posição anti-dialéctica de Dühring, diz Engels, teria afirmado que a lei de Boyle é mutável, logo não é uma verdade genuína, logo não é verdade, logo é erro. Mas se o tivesse feito, teria cometido um erro bem maior do que aquele que está contido na lei de Boyle, que é aproximadamente verdadeira, isto é, que é verdadeira dentro de certos limites, que Regnault descobriu com as suas experiências. Cf. F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 84-85.
492Cf. H. Hörtz, et al., op. cit., p. 71.493V.I. Lénine, Obras Escolhidas em 6 tomos, t.6 (Cadernos Filosóficos), Lisboa, Moscovo, Edições Avante-
Edições Progresso, 1989, p. 178.494N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics
isto liga-se intimamente a convicção de Bohr de que os fenómenos, incluindo os fenómenos quânticos, só
podem ser descritos em termos clássicos. A complementaridade traduz a ideia de que os resultados
obtidos sob condições experimentais diferentes não podem ser compreendidos, reunidos, numa única
imagem. Os fenómenos seriam complementares no sentido de que “apenas a totalidade dos fenómenos
esgota a informação possível acerca dos objectos”495. Assim, as implicações epistemológicas da devida
consideração da nossa posição em relação à observação – para que o desenvolvimento da física teria
chamado a atenção – obrigariam, diz Bohr, à renúncia das formas habituais de explicação. Em troca, a
complementaridade ofereceria “meios lógicos” para a compreensão de novos campos da experiência 496.
As novas descobertas na física conduziram à impossibilidade da sua explicação em termos das
ideias clássicas da mecânica e do electromagnetismo, reconhece Bohr. A existência do quantum de acção
é bastante estranha às leis clássicas da mecânica e do electromagnetismo e limita a sua validade
essencialmente àqueles fenómenos que envolvem acções grandes quando comparadas com o valor de um
único quantum, dado pela constante de Planck, diz. É o quantum de acção que impede a fusão dos
electrões e núcleo do átomo numa massa neutra de extensão praticamente infinitesimal, o que deveria
suceder de acordo com uma explicação clássica. A existência do quantum expressaria, então, de facto,
uma nova característica de individualidade dos processos físicos497, diz Bohr. Foi o reconhecimento
daquela situação que sugeriu a descrição da ligação de cada electrão no campo à volta do núcleo como
uma sucessão de processos individuais através dos quais o átomo é transferido de um estado estacionário
para outro, emitindo radiação na forma de um único quantum, explica.
A descoberta do quantum de acção obrigaria a uma revisão do problema da observação. Se
problemas da mesma natureza tinham já sido levantados noutras áreas do conhecimento, diz Bohr, esta
situação não tinha precedentes na história da física a qual se teria baseado até então na assunção, bem
adaptada para o domínio em questão, de que é possível discriminar entre o comportamento dos objectos e
a sua observação498. Porém, “o ponto crítico é aqui o reconhecimento de que qualquer tentativa de
analisar, na forma habitual da física clássica, a «individualidade» dos processos atómicos, condicionada
pelo quantum de acção, será frustrada pela inevitável interacção entre os objectos atómicos em causa e os
instrumentos de medição indispensáveis para esse fim”499. Tal interacção coloca um “limite absoluto à
possibilidade de falar de um comportamento dos objectos atómicos que seja independente dos meios de
observação”500. Em mecânica quântica, diz Bohr, “não estamos a lidar com uma renúncia arbitrária de
uma análise mais detalhada dos fenómenos atómicos, mas com o reconhecimento que tal análise é em
princípio [sublinhado de Bohr] excluída”501.
and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 39.
495idem, ibidem, p. 40.496idem, «Unity of Knowledge» (1967), in ibidem., p. 78.497Cf. idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in ibidem, p. 17. 498Cf. idem, ibidem, p. 19. 499idem, ibidem.500Cf. idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 25.501idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in ibidem, p. 62.
Em casos em que a acção envolvida é grande comparada com o quantum de acção, é possível
uma subdivisão do fenómeno. Porém, de acordo com Bohr, se esta condição não se verifica, a acção dos
instrumentos de medida no objecto sob investigação não pode ser ignorada e conduz à exclusão mútua
dos vários tipos de informação necessários a uma “completa descrição mecânica”. Esta “aparente
incompletude” da análise mecânica dos fenómenos atómicos é originada, em última análise, pela
ignorância da reacção entre objecto e instrumento de medida, inerente a qualquer medição. Assim, na
região em que o quantum de acção não pode ser desprezado, não é mais possível distinguir claramente
entre o comportamento autónomo do objecto físico e a sua interacção inevitável com os outros corpos que
servem de instrumentos de medida502. “Na física quântica, esta interacção forma, então, uma parte
inseparável do fenómeno”503. Esta situação é distinta daquela que se verifica na física clássica, em que a
escala de observação permite uma distinção entre o comportamento do objecto e do instrumento de
medida, ou melhor, permite ignorar, a determinado nível, ou compensar, essa interacção entre objecto e
instrumento de medida. A noção de complementaridade, diz Bohr, “serve para simbolizar a limitação
fundamental, que encontramos na física atómica, da existência objectiva do fenómeno independente dos
meios da sua observação”504.
O que a nova física nos obriga a fazer é, pois, notar as assunções inicialmente despercebidas.
Mas esta situação não é restrita ao domínio da física. Para Bohr, o que a nova situação na mecânica
quântica nos indica é de ordem mais geral, é a clarificação filosófica das pressuposições subjacentes a
todo o conhecimento humano. Estamos perante a necessária adopção de toda uma nova atitude
epistemológica, considera Bohr. As conclusões que Bohr retira do domínio experimental eleva-as, pois, a
princípio epistemológico. O reconhecimento de tais assunções, a sua consideração explícita, seria,
segundo Bohr, um passo na direcção da clareza, da eliminação das “arbitrariedades” e “ambiguidades” no
uso dos conceitos505.
Assim, por não ser possível, no domínio quântico, estabelecer tal distinção entre objecto e
instrumento de medida, continua Bohr, “os aparentemente incompatíveis tipos de informação acerca do
comportamento do objecto sob exame que obtemos através de diferentes arranjos experimentais não
podem claramente ser postos em conexão uns com os outros da maneira usual, mas podem, de forma
igualmente essencial para uma consideração exaustiva de toda a experiência, serem vistos como
«complementares» uns com os outros”506. Desta forma, dar conta de forma “não ambígua” dos fenómenos
quânticos obriga a incluir uma descrição de todas as características relevantes do arranjo experimental507.
502Cf. idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 290.503idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum
physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.504idem, «Light and Life» (1933), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc,
2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 7.
505idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 290.506idem, ibidem, p. 291.507Cf. idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of
quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.
Cada resultado deve ser interpretado, não como uma informação acerca de propriedades independentes do
objecto, mas como estando inerentemente ligado a uma dada situação experimental508. Assim, na
mecânica quântica é excluída a possibilidade de uma divisibilidade ilimitada dos fenómenos pela
exigência de especificar as condições experimentais. Existe, pois, uma característica de totalidade, diz
Bohr, típica dos fenómenos quânticos que encontra “a sua expressão lógica na circunstância de que
qualquer tentativa de uma subdivisão bem definida obrigaria a uma mudança no arranjo experimental
incompatível com a definição do fenómeno sob investigação”509. Será, pois, a exclusão mútua de
quaisquer dois procedimentos experimentais que permitirá a definição não ambígua das quantidades
físicas complementares510. Pondo ao contrário, só é possível evitar ambiguidades, contradições, se se
excluir mutuamente quaisquer dois procedimentos experimentais.
Em mecânica quântica, estamos perante uma renúncia, em cada arranjo experimental, de um ou
do outro dos dois aspectos da descrição dos fenómenos físicos (a posição ou o momento, o tempo ou a
energia...), a combinação dos quais caracteriza o método da física clássica e que, consequentemente, neste
sentido, podem ser considerados como complementares entre si. Isto deve-se essencialmente, continua
Bohr, à impossibilidade de, no domínio quântico, se controlar com precisão a reacção do objecto nos
instrumentos de medida, isto é, a transferência de momento no caso das medições de posição e o
deslocamento, no caso de medições do momento511. Não está em causa, de acordo com Bohr, a ignorância
do valor de certas quantidades físicas, mas sim a impossibilidade definir estas quantidades de forma não
ambígua. A mecânica quântica é completa, argumenta Bohr, porque é uma “utilização racional de todas as
possibilidades de uma interpretação não ambígua das medidas compatível com a interacção finita e
incontrolável entre os objectos e os instrumentos de medição no domínio da teoria quântica. De facto, é
apenas a exclusão mútua de quaisquer dois procedimentos experimentais, permitindo a definição não
ambígua de quantidades físicas complementares, que fornece espaço para novas leis físicas, a
coexistência das quais pode parecer, à primeira vista, irreconciliável com os princípios básicos da ciência.
É precisamente esta situação inteiramente nova respeitante à descrição dos fenómenos físicos que a noção
de complementaridade pretende caracterizar”512.
Esta situação é contrária àquela que se nos apresenta na física clássica em que todas as
propriedades características de um objecto podem ser, em princípio, determinadas por um único arranjo
experimental, embora diferentes experiências sejam convenientes para o estudo de diferentes aspectos do
fenómeno. Dados assim obtidos podem ser combinados numa imagem consistente do comportamento do
objecto. Na mecânica quântica isto não é possível. “As evidências sobre os objectos atómicos obtidas por
diferentes arranjos experimentais exibem um novo tipo de relação complementar. De facto, deve ser
508Cf. idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 26.
509idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.
510Cf. idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical Review, Vol. 48 (Oct. 1935), p. 700.
511Cf. idem, ibidem, p. 699.512idem, ibidem, p. 700.
reconhecido que tais evidências, que aparecem contraditórias quando a combinação numa única imagem é
tentada, esgotam todo o conhecimento possível acerca do objecto”513. Isto é, as contradições só surgem
quando se tenta combinar numa única imagem acerca do objecto os resultados obtidos em diferentes
arranjos experimentais. Tais resultados representam “aspectos igualmente essenciais de qualquer
conhecimento acerca do objecto em questão[...]”514, mas “não podem ser combinados numa única
imagem[...]”515. Das palavras de Bohr retiramos que, na mecânica quântica, não é possível uma imagem
consistente do objecto.
Pelo facto de, na mecânica quântica, a interacção entre objecto e instrumento de medida não
poder ser desprezável, Bohr traça aqui uma distinção fundamental entre a descrição clássica e quântica
dos fenómenos. Esta circunstância conduz a que, na mecânica quântica, sejamos obrigados a discriminar
o que deve ser tratado como objecto ou como instrumento de medida: “Esta necessidade de discriminar,
em cada arranjo experimental, entre aquelas partes do sistema físico considerado que devem ser tratadas
como instrumentos de medida e aquelas que constituem os objectos sob investigação pode dizer-se
constituir uma distinção principal entre a descrição clássica e quântica dos fenómenos físicos”516.
As informações acerca do objecto assim obtidas, isto é, através de diferentes arranjos
experimentais, podem ser caracterizadas de “complementares”. É a introdução do ponto de vista da
complementaridade que permite compatibilizar, “logicamente”, resultados aparentemente contraditórios
obtidos por diferentes arranjos experimentais517. A complementaridade aparece como uma forma, ou a
forma, de resolver contradições; segundo Bohr, como forma de evitar “contradições aparentes” com que o
conhecimento humano se depara. O ponto de vista da complementaridade seria aquele através do qual a
mecânica quântica poderia aparecer como uma descrição completamente racional dos fenómenos físicos
com que nos deparamos nos processos atómicos518. No entanto, segundo Bohr, a complementaridade não
restringe os nossos esforços de pôr perguntas à natureza na forma de experiências; apenas caracteriza as
respostas que podemos receber de tal inquirição.
Espaço e tempo vs momento e energia
De acordo com Bohr, a “coordenação” espácio-temporal de um acontecimento e os teoremas
gerais de conservação da dinâmica são complementares. Ou, de forma mais concreta, a coordenada e o
513idem,«Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.
514idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 26.
515idem, ibidem, p. 26.516idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical
Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 701.517Cf. idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 291.518Cf. idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical
Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 696.
momento de uma partícula encontram-se numa relação complementar, assim como o tempo e a energia.
“Qualquer procedimento imaginável com vista à coordenação no espaço e no tempo dos electrões no
átomo irá envolver inevitavelmente uma essencialmente incontrolável troca de momento e energia entre o
átomo e as agências de medição […]. Inversamente, qualquer investigação de tais regularidades, a
descrição das quais implica as leis de conservação de energia e momento, irá, em princípio, impor uma
renúncia no que diz respeito à coordenação espácio-temporal dos electrões individuais no átomo”519. Tal
combinação é possível e característica da mecânica clássica onde é possível determinar, por exemplo, a
posição e a energia de uma partícula. Mas deixa de o ser ao nível quântico.
Consideremos as medições destinadas a obter uma descrição do curso espácio-temporal de um
acontecimento físico. Tal consiste “em última análise, no estabelecimento de uma série de conexões não
ambíguas entre o comportamento do objecto e as hastes e os relógios que definem o sistema de
referência”, diz Bohr. Só se pode falar de um comportamento espácio-temporal do objecto autónomo das
condições de observação, considera, se se puder ignorar completamente as interacções entre o objecto e
os instrumentos de medida, as quais inevitavelmente acompanham o estabelecimento daquelas conexões.
Como no domínio quântico essa interacção desempenha um papel fundamental no aparecimento dos
próprios fenómenos, ela não pode, ao contrário do que acontece na mecânica clássica, ser ignorada, pelo
que deixamos de poder combinar grandezas que, a este nível de investigação vêm, afinal, revelar-se
complementares. Assim – Bohr concretiza – o uso de hastes e relógios para fixar o sistema de referência
torna impossível, “por definição”, ter em conta a energia e momento transferidos para eles.
Inversamente, as leis quânticas cuja formulação assenta essencialmente na aplicação dos
conceitos de momento e energia apenas podem aparecer sob condições de investigação nas quais uma
descrição detalhada do comportamento espácio-temporal do objecto é excluída520.
Tomemos uma situação experimental concebida para prever a posição de uma partícula. O
arranjo consiste num diafragma com uma fenda e num alvo (como, por exemplo, uma placa fotográfica),
ambos fixos num suporte que define o sistema de referência521. (Medir a posição da partícula significa
estabelecer uma correlação entre o seu comportamento e o instrumento rigidamente fixo no suporte que
define o sistema de referência. Aqui, a largura da fenda corresponde à incerteza na posição da partícula).
Quando a partícula passa pela fenda, a partícula transfere momento para o diafragma – objecto e
instrumento de medição interagem. Sucede que a transferência de momento entre partícula e diafragma é,
diz Bohr, por princípio, incontrolável. Bohr explica: o momento trocado entre a partícula e o diafragma
(bem como com outras partes do arranjo) passa também para o suporte comum – desta forma, eliminamos
voluntariamente qualquer possibilidade de ter em conta estas reacções separadamente para previsões que
519Cf. idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), pp19.
520Cf. idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 291.521Ver idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical
Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 697.
digam respeito ao resultado final da experiência522. Assim, mesmo que o momento da partícula seja
totalmente conhecido antes da passagem, a difracção da partícula pela fenda (ou melhor, de acordo com
Bohr, a difracção pela fenda da onda plana que simbolicamente representa o estado da partícula) implica
uma incerteza no momento da partícula após a sua passagem pelo diafragma. E essa incerteza no
momento é tanto maior quanto menor for a fenda (o que equivale a dizer: quanto menor for a incerteza na
sua posição). Os mesmos problemas são descritos por Bohr para a situação experimental inversa
concebida para medição do momento, na qual o diafragma não está rigidamente fixado no suporte.
Os argumentos decisivos quanto às medições do tempo em mecânica quântica são, diz Bohr,
completamente análogos aos que dizem respeito à medição das posições. Da mesma forma que a
transferência de momento do objecto a partes distintas do arranjo experimental é completamente
incontrolável, também é a transferência de energia: “é excluído, por princípio, controlar a energia que é
transferida para os relógios sem interferir essencialmente com o seu uso como indicadores do tempo”523.
Tempo e energia encontram-se, tal como a posição e o momento, numa relação de complementaridade.
“Tal como na questão acima discutida do carácter mutuamente exclusivo de qualquer uso não ambíguo na
teoria quântica dos conceitos de posição e momento, é, em último caso, esta a circunstância que implica a
relação de complementaridade entre qualquer descrição temporal detalhada dos fenómenos atómicos por
um lado e as características não clássicas da estabilidade intrínseca dos átomos, desvendadas pelo estudo
das transferências de energia nas reacções atómicas, por outro lado” 524.
O uso do microscópio envolveria os mesmos problemas observacionais. Esta é outra situação
experimental em que se manifestaria esta mesma relação complementar entre as grandezas espácio-
temporais (coordenadas e tempo) e dinâmicas (momento e energia). A medição da posição de um electrão
através do uso de radiação electromagnética de elevada frequência, de acordo com as relações E=hν e
p=hk , irá estar ligado a uma troca de momento entre o electrão e as componentes do microscópio,
tanto maior quanto maior a precisão pretendida para a medição da posição525. Assim, quanto maior a
precisão pretendida para a medição da posição, maior a energia da radiação incidente necessária, logo
maior a troca de momento com a partícula, o que obrigaria a uma maior a incerteza na previsão da
posição da partícula.
José Croca e Rui Moreira, no seu artigo Indeterminism vs Causalism526 chamam a atenção
522Bohr acrescenta que “A impossibilidade de uma análise mais próxima das reacções entre a partícula e o instrumento de medida não é, de facto, uma peculiaridade do procedimento experimental descrito, mas é, antes, uma propriedade essencial de qualquer arranjo adaptado para o estudo dos fenómenos do tipo em causa onde nos deparamos com uma característica de individualidade completamente estranha à física clássica”. idem, ibidem.
523idem, ibidem, p. 701.524idem, ibidem.525Cf. idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics
and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 39.
526José Croca, Rui N. Moreira, «Indeterminsm vs Causalism», pre-print disponível em: http://cfcul.fc.ul.pt/equipa/3_cfcul_elegiveis/croca/indet-causalism.doc. (versão final em Grazer Philosophische
precisamente para que a questão da resolução óptica dos microscópios está relacionada o princípio da
complementaridade de Bohr. Os microscópios apresentam limites que estão relacionados, por um lado,
com a natural deterioração da imagem por sucessivas amplificações e, por outro lado, um motivo mais
fundamental, com a própria natureza ondulatória da luz. Este último limite, chamado resolução, é uma
característica básica de qualquer sistema imagético que impõe um limite teórico ao poder de
amplificação. De acordo com a descoberta de Abbe no final do século XIX, existe uma distância entre
dois pontos abaixo da qual não é possível distingui-los e que corresponde a metade do comprimento de
onda da radiação incidente. Isto sucede porque se verifica uma sobreposição das ondas incidentes, isto é,
porque os máximos de intensidade correspondentes a cada um dos pontos aparecem indiscerníveis um do
outro. Esta situação é matematicamente descrita pelo formalismo não-local de Fourier, que está base da
teoria quântica. Assim, concluem os autores, “podemos agora perceber porque aqueles resultados
teóricos, com profundas consequências tecnológicas, são um resultado directo do formalismo não-local de
Fourier e, consequentemente, profundamente ligados ao princípio da complementaridade de Bohr”,
podemos perceber como “o limite teórico máximo de resolução de meio comprimento de onda para um
sistema óptico está relacionado com os próprios fundamentos da mecânica quântica”.
A questão está em saber se este facto – a existência objectiva de um limite de resolução para
aqueles sistema ópticos, cuja determinação assenta num determinado quadro teórico – deve ser entendido
como um limite definitivo, absoluto, eterno, que decorresse de uma qualquer característica objectiva da
natureza que impediria o homem de a conhecer, de a reflectir nas suas teorias, para além de um dado
limite. A prática demonstra o contrário.
Onda vs corpúsculo
Da mesma forma, o dilema entre o carácter ondulatório e corpuscular da luz e da matéria é
resolvido – e só desta forma é evitável – por via do ponto de vista da complementaridade, considera Bohr527. Esta questão, o chamado dualismo onda-corpúsculo, é, segundo Rui Moreira, o “maior problema
herdado da física do século XX”528 e está, segundo Croca, na base do surgimento do princípio da
complementaridade de Bohr529.
O estudo da luz revela que a radiação electromagnética apresenta padrões interferenciais. As
interferências são uma prova do carácter ondulatório da propagação da luz – não são apenas uma
hipótese, mas sim uma descrição (account) adequada do fenómeno530, de acordo com Bohr. Por outro
Studien, Vol. 56 (1999), p. 151-182.)527Cf. N. Bohr, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 294.528R. N. Moreira, «Instrumentalismo Versus Realismo, a Crise na Física do Século XX», in Olga Pombo, Ángel
Nepomuceno (eds.), Lógica e Filosofia da Ciência, Lisboa, Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, 2009, p.137.
529Cf. J. Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003, p. 18.
530N. Bohr, «Light and Life» (1933), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961),
lado, verificou-se que a luz apresentava também características de atomicidade não inteligíveis do ponto
de vista da teoria electromagnética. Segundo Bohr, este “óbvio contraste” apresenta-nos um dilema de um
“carácter até então desconhecido em física”531. De facto, diz Bohr, “a continuidade espacial da nossa
imagem da propagação da luz e a atomicidade dos efeitos luminosos são aspectos complementares no
sentido em que eles dão conta de características igualmente importantes do fenómeno da luz que não
podem nunca ser postos em contradição directa um com o outro, uma vez que a sua análise em termos
mecânicos exige arranjos experimentais mutuamente exclusivos”532.
Assim, diz Bohr, o uso não ambíguo do conceito de estados estacionários está numa relação de
complementaridade com uma análise mecânica dos movimentos intra-atómicos, assim como os quanta de
luz são complementares em relação à teoria electromagnética da radiação533. Ou, pondo de outra forma, a
teoria quântica e a teoria clássica são complementares, assim como os corpúsculos (os quanta) e as ondas
(radiação).
O dilema com que os físicos se tiveram de defrontar é bem ilustrado pela experiência da dupla
fenda, que, apesar de bem conhecida, é indispensável referir pela importância que tem para os
fundamentos conceptuais da mecânica quântica, bem como analisar a sua explicação no quadro da
interpretação ortodoxa. A solução bohriana para o problema e a forma como lida com a contradição que
surgira é bem evidenciada pela explicação de José Croca, que seguiremos534:
Considere-se o arranjo experimental em que uma fonte S emite uma partícula quântica de cada
vez. Suponhamos que, neste caso particular, emite um electrão de cada vez. O raciocínio é o mesmo para
qualquer outra partícula quântica. De facto, diz Croca, a experiência da dupla fenda foi já feita com
átomos, neutrões, protões, electrões e fotões apresentando sempre os mesmos resultados. O electrão
encontra, então, um ecrã com duas fendas.
Se for colocado um detector imediatamente atrás de cada uma das fendas, que poderemos nós
esperar?
O que acontece é que, umas vezes, é accionado um detector e, outras vezes, o segundo. Em
p. 4.531idem, ibidem, p. 5.532idem, ibidem.533Cf. idem, ibidem, p. 6.534Cf. J. Croca, op. cit., p. 18-23.
qualquer caso, e isto é importante, os dois detectores nunca são activados ao mesmo tempo.
Naturalmente, esta situação não pode ocorrer uma vez que estamos a lidar com um único electrão de cada
vez. Em todo o arranjo experimental, para cada evento, só existe uma única partícula quântica. Se este
requisito conceptual e prático básico não se verifica, então a experiência não tem significado. Por outro
lado, uma detecção simultânea nos dois detectores significaria que a partícula quântica ter-se-ia dividido
em duas e que, consequentemente, cada metade do electrão teria passado por cada fenda. Esta seria uma
situação impossível pois não se conhecem meios electrões, meios fotões, etc. Portanto, somos levados a
concluir que o electrão passa por uma ou outra fenda.
Que resultado podemos esperar se agora os detectores forem removidos da frente das fendas e
for colocado um ecrã detector suficientemente longe? Se supomos que o electrão passa por uma das duas
fendas, seria de esperar uma contínua distribuição gaussiana dos impactos no detector. Esta distribuição
seria o resultado da contribuição dos electrões que passam por uma fenda mais a contribuição dos que
passam pela outra fenda.
Porém, o resultado mostra, em vez de uma distribuição gaussiana contínua, um padrão
interferencial.
Para explicar o padrão interferencial observado, temos de assumir que a partícula quântica, neste
caso o electrão, de alguma forma passou por ambas as fendas. Um padrão interferencial é sempre o
resultado da sobreposição de mais do que uma onda. Isto significa que a entidade quântica a que
chamamos electrão passou simultaneamente por ambas as fendas. Sob estas condições, somos levados a
concluir que o electrão é uma onda.
Estamos, assim, perante um problema: a primeira experiência com os detectores colocados
imediatamente à frente de cada uma das fendas indica-nos que o electrão é uma partícula e que passou por
uma ou outra fenda; a segunda experiência com o ecrã de detectores leva-nos a concluir que o electrão é
uma onda porque passou por ambas as fendas dando origem a um padrão de interferências.
Sumariamente, na experiência da dupla fenda, a partícula quântica deve passar por
uma ou outra fenda
e
por uma e pela outra fenda.
Foi precisamente para enfrentar esta dificuldade, diz Croca, que Bohr desenvolveu o seu
princípio de complementaridade que estabelece que a partícula tem uma natureza dual, umas vezes
exibindo o seu carácter corpuscular e outras vezes o seu carácter ondulatório, mas nunca
simultaneamente.
Abordemos o problema da medição nesta experiência. De acordo com a interpretação ortodoxa
da mecânica quântica, continua Croca, a partícula quântica é descrita por uma onda de probabilidade Ψ
que contém toda a informação sobre o sistema quântico. Esta onda vai em direcção ao ecrã com as duas
fendas. Aí, a onda inicial Ψ separa-se em duas ondas de probabilidades Ψ 1 e Ψ2 tal que Ψ = Ψ1 + Ψ2.
Estas duas ondas, vindas das fendas, propagam-se em direcção à região de detecção onde se sobrepõem.
O ecrã de detecção exibe, então, um padrão interferencial que demonstra a existência simultânea de
ambas as ondas.
Consideremos o problema de forma mais geral. Para se fazer uma medição quântica real é
necessário conhecer o estado do sistema, isto é, a função de onda Ψ e decompô-la como uma soma de
funções próprias do operador correspondente à propriedade física que pretendemos medir:
=c11c22...cnn...
Esta função Ψ que, de acordo com a interpretação ortodoxa, contém toda a informação sobre o
sistema, ao incidir num analizador como, por exemplo, um cristal ou um campo electromagnético (papel
desempenhado pelo ecrã com duas fendas), separa esta onda de probabilidade em muitas ondas de
probabilidade φn que são precisamente as funções próprias do operador. O número de ondas de
probabilidade φn depende do número de possíveis resultados da medição. A acção do analizador no
sistema quântico é descrita, no formalismo quântico, pelo operador aplicado à função de estado
decompondo-a em funções próprias.
Suponhamos que o nosso sistema quântico é um electrão e que a grandeza que pretendemos
medir é o seu momento. Neste caso, o operador a aplicar à função de estado do electrão é o operador
momento. Quando um dos muitos detectores do ecrã colocado em frente ao analizador é accionado,
obtemos um valor para o momento, digamos p3. Isto significa, de acordo com a interpretação ortodoxa,
que a onda de probabilidade φ3 se materializou naquela posição. Sob tais condições, todas as ondas de
probabilidade (φ1, φ2, φ3, …, φn, …) colapsaram instantaneamente em φ3. Por outras palavras, explica
Croca, antes da interacção com o detector, todas as funções φ n existem de facto e, no preciso momento em
que a medição é realizada, todas as ondas de probabilidade colapsam instantaneamente numa só. É o
chamado colapso ou redução instantânea do trem de ondas. Podia pensar-se que se trata de uma mera
forma de expressão: que o que efectivamente acontece é que o analizador teria transformado a função de
estado em φ3 cuja existência foi posta em evidência pelo clique no detector do ecrã. Nestas circunstâncias,
o colapso da função de onda não passaria de uma forma de expressão sem significado físico. Porém, se
este fosse o caso, seria impossível explicar os fenómenos interferenciais na experiência da dupla fenda
com apenas uma partícula, pelo que a existência simultânea de todas as ondas de probabilidade é
requerida pela interpretação ortodoxa. Assim, conclui Croca, qualquer medição quântica, na concepção
bohriana, implica a redução instantânea do pacote de ondas.
As relações de incerteza de Heisenberg como expressão matemática da complementaridade e o
formalismo quântico
Uma ferramenta adequada para uma forma de descrição complementar é oferecida, diz Bohr,
pelo formalismo quântico. Este formalismo, de acordo com Bohr, não permite uma interpretação
imagética, devido ao carácter das suas abstracções matemáticas, mas aponta directamente ao
estabelecimento de relações entre observações. Além disso, o formalismo “representa um esquema
puramente simbólico permitindo apenas previsões, na linha do princípio da correspondência, quanto a
resultados passíveis de serem obtidos sob condições especificadas por meio dos conceitos clássicos”535.
É de notar que, de acordo com a interpretação ortodoxa, uma vez que no domínio quântico não é
possível uma distinção exacta entre o comportamento do objecto e instrumento de medição, o sistema a
que o formalismo quântico deverá ser aplicado é a todo o conjunto constituído pelos instrumentos de
medição e partículas. É fundamental que todo o arranjo experimental seja tido em conta. Qualquer outra
peça introduzida na montagem experimental influenciaria de forma essencial o fenómeno em causa. O
que isto significa, de acordo com esta perspectiva, é a impossibilidade de subdivisão de um mesmo
fenómeno536.
No formalismo introduzido na mecânica quântica, as variáveis cinemáticas e dinâmicas da
mecânica clássica são substituídas por símbolos sujeitos a uma álgebra não comutativa que envolve a
constante de Planck em que
qp− pq=−1 h2
(p representa o momento e q uma coordenada de posição).
535N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 40.
536Cf. idem, ibidem, p. 50.
Através da representação dos símbolos por matrizes com elementos referentes às transições entre
estados estacionários, foi possível pela primeira vez uma formulação quantitativa do princípio da
correspondência537. Heisenberg, ao comparar as considerações relativas aos problemas observacionais
com as exigências do formalismo quântico, chamou a atenção para que aquela regra de comutação
impunha um limite recíproco para a fixação de duas variáveis conjugáveis, p e q , expresso pela relação
q p≈h
(em que ∆q e ∆q representam incertezas nas determinações destas quantidades).
Estas relações de incerteza propostas por Heisenberg pretendem, assim, constituir a expressão
matemática da complementaridade. “Estas circunstâncias”, dizia Bohr referindo-se à impossibilidade de
simultaneamente aplicar as leis de conservação do momento e energia aos processos atómicos e obter
uma detalhada coordenação espácio-temporal das partículas, “encontram expressão quantitativa nas
relações de indeterminação de Heisenberg as quais especificam a latitude recíproca para a fixação, em
mecânica quântica, das variáveis cinemáticas e dinâmicas requeridas para a definição do estado de um
sistema em mecânica clássica. De facto, a comutabilidade limitada dos símbolos através dos quais tais
variáveis são representadas no formalismo quântico corresponde à exclusão mútua dos arranjos
experimentais requeridos para a sua definição não ambígua”538. De acordo com Heisenberg, nota Bohr539,
o conhecimento passível de ser obtido acerca do estado de um sistema atómico irá envolver sempre uma
“indeterminação” peculiar.
Croca faz um esclarecimento importante acerca do significado das relações de incerteza cuja
incompreensão pode conduzir a mal-entendidos. Há, de facto, violações das relações de incerteza de
Heisenberg, mas que são, porém, irrelevantes do ponto de vista da teoria e desprovidas de significado
físico. As relações de incerteza, afirma Croca, “apenas proíbem a previsão de incertezas tais que o seu
produto é inferior a h após a medição”540. As relações de incerteza estão essencialmente ligadas ao
problema da medição. A possibilidade de fazer medições que, no passado, violaram as relações de
incerteza não afecta o seu significado. O que é exigido é que após a medição, após a interacção entre o
objecto quântico e o instrumento de medida, o produto das incertezas do espaço e do momento (ou
qualquer outro par de observáveis conjugados) verifiquem as relações, isto é, x ph .
Para que se perceba melhor, considere-se a seguinte experiência baseada num trabalho de
Andrade e Silva e que Croca apresenta541:
537Cf. idem, ibidem, p. 38.538idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum
physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p . 312. 539Cf. idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics
and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 39.
540J. Croca, op. cit. p. 37.541idem, ibidem, p. 36.
Uma fonte de electrões emite um electrão de cada vez em direcção a um monocromador. À saída
do monocromador a incerteza no momento é Δp. De acordo com as relações de incerteza de Heisenberg, a
incerteza na posição é Δx tal que x ph . O electrão está dirigido a um ecrã com um orifício e,
atrás dele, está um detector de transferência de electrões, isto é, um detector que detecta a passagem do
electrão através de uma pequena transferência aleatória de momento entre o electrão e o detector, mas que
não o aniquila. O detector e o orifício estão montados de tal forma que a incerteza na posição do electrão
será Δx'. Esta incerteza Δx' na posição é, como se pode ver, independente da incerteza no momento Δp
pois esta depende apenas do cromador (quanto melhor, menor a incerteza) e aquela depende do
dispositivo de detecção (orifício e detector). Desta forma, todo o arranjo experimental pode ser montado
de tal forma que, antes da interacção do electrão com o dispositivo de detecção, x ' p≪h , isto é,
que o produto entre as duas incertezas na posição e momento seja muito inferior ao limite imposto pelas
relações de Heisenberg. Porém, durante a interacção entre o electrão e o dispositivo detector em que
consiste a medição, a incerteza do momento do electrão dispersa de tal forma que quanto menor a
incerteza na posição, Δx', maior a incerteza Δp' no momento. Assim, no final, após a medição, o produto
das incertezas obedece à relação x ' p 'h .
Princípio da correspondência
O formalismo quântico, como vimos acima, apenas permite previsões de resultados passíveis de
serem obtidos sob condições especificadas por meios de conceitos clássicos. Os fenómenos, incluindo os
fenómenos quânticos, diz Bohr, só podem ser descritos em termos clássicos. Esta é a essência do
chamado princípio da correspondência.
A sua formulação, de acordo com Bohr, emergiu do objectivo de tomar a mecânica quântica
como uma generalização racional das teorias clássicas542. Assim, os resultados obtidos de acordo com a
teoria quântica no limite em que o quantum de acção é desprezável devem corresponder aos resultados
obtidos de acordo com a teoria clássica. Consideremos a transição entre estados estacionários no átomo.
Tudo o que a teoria nos pode informar é a probabilidade relativa da transição do electrão para cada um
dos estados estacionários e o único guia que permite estimá-las é o princípio da correspondência, “o qual
teve origem na procura da mais próxima conexão possível entre a descrição estatística dos processos
atómicos e as consequências esperadas a partir teoria clássica, as quais devem ser válidas no limite em
que as acções envolvidas em todos os estádios da análise do fenómeno são grandes comparadas com o
quantum universal”543.
Segundo Bohr, “é decisivo reconhecer que, por mais que o fenómeno transcenda o âmbito da
explicação física clássica, a descrição de todas as evidências deve ser expressa em termos clássicos” 544. O
motivo está relacionado com a questão central do problema da observação. “O argumento”, diz Bohr, “é
simplesmente que pela palavra «experiência» [experimento, “experiment”] referimo-nos a uma situação
em que podemos dizer aos outros o que fizemos e o que aprendemos e em que, portanto, a descrição do
arranjo experimental e dos resultados das observações deve ser expressa numa linguagem não ambígua
com uma aplicação adequada da terminologia da física clássica”545. Com este argumento, Bohr põe em
evidência a sua convicção de que uma comunicação não ambígua só é possível utilizando conceitos
clássicos.
Como vimos, as características corpusculares e ondulatórias da luz são complementares no
sentido de que ambas dão conta de atributos da radiação, mas que não podem ser postos em contradição
directa, diz Bohr, requerendo arranjos experimentais mutuamente exclusivos. Ao mesmo tempo, continua
Bohr, esta situação obriga-nos à renúncia de uma descrição causal e a ficar satisfeitos com leis
probabilísticas baseadas no facto de que a descrição electromagnética da transferência de energia se
mantém válida de um ponto de vista estatístico546. “Esta constitui uma aplicação típica do chamado
argumento da correspondência que expressa o empenho de utilizar com o maior alcance possível os
conceitos das teorias clássicas da mecânica e da electrodinâmica, apesar do contraste entre estas teorias e
o quantum de acção”547.
542Cf. N. Bohr, «The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory», in Nature (Supplement), Vol. 121 (Apr., 1928), Issue 3050, p. 584.
543idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 37.
544idem, ibidem, p. 39.545idem, ibidem.546Cf. idem, «Light and Life» (1933), in ibidem, p. 5. 547idem, ibidem, p. 5.
A complementaridade fora da física
Abordámos o ponto de vista da complementaridade aplicado ao domínio da física, que surge ao
nível quântico. Neste domínio, discutimos as experiências concebidas para a previsão do momento e da
posição de uma partícula em que estas duas grandezas se revelariam complementares (ou, mais
geralmente, em que uma descrição no espaço e no tempo se revelaria complementar a uma descrição em
termos dinâmicos) e discutimos a experiência da dupla fenda onde se evidencia a dualidade onda-
corpúsculo (isto é, a relação que se revela complementar, entre as propriedades ondulatórias e
corpusculares dos entes físicos).
Mas como o próprio Bohr afirma, o ponto de vista da complementaridade é bem mais geral, é
uma faceta comum a todo o conhecimento humano e que o estudo dos fenómenos atómicos teria posto em
evidência. Por esta razão, Bohr, pretendendo comprovar o nível de generalidade que atribui à
complementaridade, identifica outros domínios, para além da física, em que ela se revelaria – tanto em
domínios naturais como no domínio do pensamento.
Na biologia, um exemplo pode ser encontrado no estudo da vida. O estudo, a partir de um
determinado limite, de um organismo vivo implicaria acabar com a vida desse mesmo organismo:
“qualquer arranjo experimental com o qual pudéssemos estudar o comportamento dos átomos
constituintes de um organismo ao ponto de isto poder ser feito para átomos singulares […] excluirá a
possibilidade de manter o organismo vivo”548. Assim, o estudo da vida revelaria, segundo Bohr,
características de complementaridade: por um lado, a preservação da vida e, por outro, a subdivisão
necessária a qualquer análise física.
Apesar da profunda compreensão alcançada dos aspectos químicos e físicos de muitas reacções
biológicas, diz Bohr, a maravilhosa estrutura dos organismos está tão para além qualquer experiência
acerca da natureza inanimada que “nos sentimos mais longe do que nunca de uma explicação da vida
propriamente dita de acordo com aquelas linhas”549. As leis da biologia e as leis dos corpos inanimados
são complementares550. Isto colocar-nos-ia num dilema, considera Bohr. Daqui, e sob o ponto de vista da
complementaridade, Bohr conclui que a existência da vida em biologia deve ser considerada um “facto
elementar”, “não susceptível a análise ulterior”, da mesma forma que o quantum de acção em física, que
não pode ser derivado da mecânica. “A não possibilidade de análise da estabilidade atómica em termos
mecânicos apresenta uma próxima analogia com a impossibilidade de uma explicação química ou física
das funções peculiares características da vida”551. Assim, esta complementaridade revelada no estudo da
vida, leva Bohr a concluir que os organismos vivos manteriam escondido de nós o seu “último segredo”,
condu-lo à “renúncia da explicação da vida”552.
Na psicologia, também se verificam aspectos que Bohr caracteriza como complementares e que
548idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in ibidem, p. 20. 549idem, ibidem, pp15. 550Cf. idem, ibidem, p. 20. 551idem, «Light and Life» (1933), in ibidem, p. 9.552Cf. idem, ibidem, p. 9-11.
se relacionam igualmente com o problema da observação. Na introspecção, “é claramente impossível
distinguir exactamente entre os fenómenos propriamente ditos e a sua percepção consciente [...]”553.
Estamos a lidar com situações que, sob uma análise cuidada, se revelariam mutuamente exclusivas,
considera. Assim, a relação complementar que existe entre os resultados obtidos por diferentes arranjos
experimentais em física atómica é análoga, de um ponto de vista epistemológico, àquela que existe entre
“pensamento” e “sentimento”, diz Bohr.
Bohr, ao debruçar-se sobre as culturas humanas, também encontra pares complementares. Ao
comparar diferentes culturas humanas é possível encontrar a “relação tipicamente complementar” entre
instinto e razão, considera. “No que diz respeito à razão comparada com o instinto é preciso, acima de
tudo, perceber que nenhum pensamento humano adequado é imaginável sem o uso de conceitos […]. Este
uso de conceitos, de facto, não só está, em grande medida, a suprimir a vida instintiva, mas está, ainda
mais, numa relação exclusiva de complementaridade com a exibição de instintos herdados”554. Bohr
encontra, assim, no facto de não ser detectado nos animais inferiores pensamento consciente (no nosso
sentido da palavra) uma razão para aquilo que considera ser a sua surpreendente superioridade em relação
ao homem no que diz respeito à preservação e propagação da vida. Também a grande capacidade de
orientação na floresta ou deserto (e aparente desorientação nas sociedades mais civilizadas) dos povos
primitivos se deveria ao não recurso por parte destes povos ao pensamento conceptual.
O estudo das culturas humanas, tal como na física ou na psicologia, também se depara com o
problema da observação onde a interacção entre objecto e instrumento de medida ou “a inseparabilidade
do conteúdo objectivo e o sujeito de observação”555 não deve ser ignorada. Não se tratando, é certo, de um
tipo de complementaridade como o verificado na física em que as relações são absolutamente exclusivas
– pois as diferentes culturas não são autónomas, relacionam-se entre si – as diferentes culturas humanas
são, considera Bohr, complementares entre si.
Ao nível do pensamento, mais concretamente do processo de construção do conhecimento,
outras relações complementares surgiriam entre a análise e a síntese, entre a observação e a definição.
Bohr refere, por exemplo, aquilo que diz ser a “relação mutuamente exclusiva que existirá sempre entre o
uso prático de qualquer palavra e a tentativa de uma sua definição estrita”556.
3.Crítica à complementaridade
O princípio da complementaridade introduzido por Bohr emerge de uma dificuldade encontrada
pelos cientistas em resolver um “dilema” com que se depararam. A complementaridade foi a solução
encontrada por Bohr para lidar com uma contradição surgida, posta a descoberto pelo avanço da ciência.
553idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 27.554idem, ibidem, p. 28.555idem, ibidem p. 30.556idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in ibidem, p. 52.
A história do conhecimento científico fornece-nos inúmeros exemplos de contradições desta natureza. Um
breve tratamento do papel das contradições no progresso científico foi o que procurei fazer no primeiro
ponto deste capítulo: a resolução das contradições entre a ciência e o desenvolvimento das forças
produtivas e das contradições internas ao próprio corpo de conhecimentos (seja na teoria, seja entre a
teoria e a experiência) são o motor para a progressão do conhecimento.
A contradição entre o carácter ondulatório e corpuscular da matéria parece-me ser o foco, a raíz,
do problema em questão. Se a ciência demonstrava que a radiação electromagnética eram ondas e as
partículas atómicas eram corpúsculos, tínhamos agora a radiação a manifestar um comportamento
corpuscular e as partículas a demonstrar um comportamento ondulatório. A matéria era, ao mesmo tempo,
onda e corpúsculo. Mas, para dificultar, as experiências não evidenciam nunca esse carácter
simultaneamente: um dado arranjo ora evidencia o carácter ondulatório, ora o carácter corpuscular. Esta
contradição objectivamente existente, manifestava-se agora na teoria (isto é, aquela que é uma
contradição material, reflectia-se agora idealmente).
A forma como Bohr lidou com essa contradição não está, nem podia estar, desligada das suas
ideias mais gerais, do ambiente cultural em que se inseria, das suas influências filosóficas. Procurei trazer
para este trabalho, sobretudo através das investigações de Rui Moreira, o carácter dessas influências. A
este propósito, Engels diz que “os cientistas da natureza podem adoptar a atitude que quiserem, que estão
ainda sob o domínio da filosofia”557. Não há conhecimento desprovido de filosofia, consciente ou
inconscientemente. Ou, de forma mais geral, não há conhecimento sem subjectividade, na medida em
que, como põe Barata-Moura, ao reflectir o mundo, a consciência estabelece-se necessariamente numa
esfera que, por intermédio das mais variadas formas ideológicas, se expressa e determina idealmente.
Assim, diz o autor, “toda a actividade cognoscitiva humana não pode deixar de ser encarada no horizonte
desta sua imersão e emersão do plano ideológico em geral”; não está dissociada de um qualquer sistema
de representações da consciência. É, porém, importante neste momento dissipar eventuais dúvidas: o
reconhecimento de que toda a produção da consciência é necessariamente subjectiva, não anula a
realidade objectiva como seu fundamento primordial, não afecta o conteúdo material do conhecimento, o
carácter objectivo da verdade nem o seu fundamento material558.
A questão está, no entanto, em saber, como dizia Engels, se os cientistas “querem ser dominados
por uma má filosofia da moda ou por uma forma de pensamento teórico que assenta no conhecimento da
história do pensamento e das suas realizações”559. Os cientistas não podem, continua Engels, progredir
sem pensamento e para isso precisam de categorias lógicas [“thought determinations”, determinações do
pensamento], mas tomam estas categorias irreflectidamente da consciência comum. São, por isso, muitas
vezes escravos de filosofias obsoletas, de leituras fragmentárias, acríticas e não sistemáticas de todo o
557F. Engels, Dialectics of Nature, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 491.
558Cf. J. Barata-Moura, Ideologia e Prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978, p. 74-76.559F. Engels, op. cit., p. 491.
tipo. Mesmo os que injuriam a filosofia, não deixam de estar sob o seu jugo; mas, infelizmente, na
maioria dos casos, sob o jugo das piores relíquias vulgarizadas das piores filosofias560. A obra de Lénine
Materialismo e Empiriocriticismo, que trato vastamente neste trabalho, é toda ela uma exposição das
razões por que deve a ciência avançar pondo conscientemente na sua base o reconhecimento da
existência, e do primado, da realidade objectiva e da possibilidade de esta ser adequadamente reflectida
pela consciência dos homens; uma demonstração das limitações de uma visão mecanicista, da
importância do conhecimento da dialéctica e dos prejuízos para a ciência que traz a sua incompreensão.
Ora, sou precisamente levada a concluir que a ideia da complementaridade assenta fundamentalmente
numa não consideração (ou numa consideração incorrecta) da dialéctica.
Bohr diz que a complementaridade é a única forma de tornar logicamente compatíveis resultados
aparentemente contraditórios. As evidências ter-nos-iam levado a concluir da existência de fenómenos
impossíveis de compatibilizar numa única “imagem”. Só a complementaridade tornaria possível uma
descrição racional desses fenómenos. Assim, as características ondulatórias e corpusculares da matéria
seriam complementares, bem como as grandezas cinemáticas e dinâmicas. Essa complementaridade,
exibida na física e em outros domínios do conhecimento, a existência dessas características que se
revelavam mutuamente exclusivas, obrigariam a assumir como elementares, como não sujeitos a
ulteriores análises, factos como a existência do quantum ou a existência da vida. O que Bohr faz aqui é
traçar limites para o conhecimento. No entanto, Bohr ressalva que podemos sempre construir novas
experiências que revelariam novos fenómenos, razão pela qual isto não imporia restrições ao
conhecimento. Mas isto tem que ver precisamente com o valor que Bohr atribui à teoria científica, àquilo
que ele entende ser a tarefa da ciência, àquilo ele põe como requisitos de cientificidade e ao seu
entendimento sobre a possibilidade de um adequado reflexo da realidade objectiva. Parte considerável da
resposta a esta questão situa-se na relação entre fenómeno e essência. Esta questão do valor da teoria será
tratada mais à frente. Para já, trataremos um outro aspecto.
Tomemos o chamado dualismo onda-corpúsculo. Bohr – muito importante – reconhece e
identifica a contradição como tal. No entanto, não a resolve. Fixa-a. Bohr absolutiza a contradição
existente entre onda e corpúsculo, lidando com ela de forma metafísica, impedindo, assim, a sua negação
dialéctica, a sua superação561.
560Cf. idem, ibidem.561 Engels destaca a importância da lei da negação da negação e, face a incompreensões e objecções de pendor
metafísico, esclarece o seu significado e conteúdo. Segundo Engels, esta lei é extremamente geral e, por essa razão, com um grande alcance. É uma lei do desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento. O cálculo integral e a germinação de um fruto a partir de uma semente são exemplos de negação da negação. Mas não digo nada acerca de cada processo particular, não acrescento nada, se apenas afirmar isso, diz Engels, ridicularizando tal perspectiva. “Isso, no entanto, é o que os metafísicos estão constantemente a imputar à dialéctica. Quando eu digo que todos esses processos são uma negação da negação, eu reuno-os sob esta lei do movimento e, por esta mesma razão, deixo de fora as peculiaridades específicas de cada processo individual”. A dialéctica, contudo, “não é nada mais do que a ciência das leis gerais do movimento e desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento”.Engels presta um outro esclarecimento importante que nos interessa particularmente para a compreensão do caso específico que estamos a tratar: negação, na dialéctica, não significa apenas dizer não. Os metafísicos objectam contra a dialéctica que aquelas não são verdadeiras negações pois também nego um grão de cevada ou um insecto
A descoberta de que as ondas apresentavam comportamento corpuscular e de que os corpúsculos
apresentavam comportamento ondulatório é o desmoronar de uma daquelas linhas rígidas e fixas na
natureza de que falava Engels. A este respeito dizia Engels: “O reconhecimento de que estes
antagonismos e distinções, contudo encontrados na natureza, têm apenas uma validade relativa e que, por
outro lado, a sua rigidez imaginada e validade absoluta foram introduzidos na natureza apenas pelas
nossas mentes reflexivas [reflexive minds] – este reconhecimento é o cerne da concepção dialéctica da
natureza”562. Perante o desmoronar dessa linha rígida na natureza, Bohr manteve-a fixa na teoria. Ou
melhor, perante o avanço da ciência que demonstrava que a validade da distinção entre onda e corpúsculo
era apenas relativa, Bohr, que não se muniu das leis da dialéctica, estabeleceu uma linha rígida entre onda
e corpúsculo: ou onda ou corpúsculo. Isto é característico do pensamento metafísico. Como diz Engels,
“são, contudo, precisamente os antagonismos polares apresentados como irreconciliáveis e insolúveis, as
linhas de demarcação e distinções de classe forçosamente fixadas, que têm dado à moderna ciência da
natureza teórica o seu carácter restrito e metafísico”563. Engels introduz aqui um significativo comentário
quanto ao papel da presença de uma filosofia materialista dialéctica: é possível chegar ao reconhecimento
da validade relativa daquelas distinções “porque a acumulação de factos das ciências naturais a isso nos
compele; mas chegamos mais facilmente se abordarmos o carácter dialéctico destes factos equipados com
a compreensão das leis do pensamento dialéctico”564.
Portanto, o dualismo onda-corpúsculo da forma como Bohr o apresenta, bem como a todos os
outros pares complementares que mutuamente se excluem, é característico do pensamento metafísico.
Tratam-se de “antíteses absolutamente irreconciliáveis”. Porque o pensamento de Bohr não foi guiado por
uma abordagem dialéctica, caiu numa análise restrita, limitada, caiu em contradições insolúveis e, além
do mais, fixadas para todo o sempre, na medida em que as apresenta como uma questão de “princípio”.
Engels dá o exemplo das distintas concepções acerca da fronteira entra a vida e a morte, da
diferença entre a abordagem dialéctica e metafísica. É de particular interesse referirmo-lo, não só pela
lição que o exemplo comporta, mas porque, além disso, esta questão e também directamente tratada por
Bohr. Mas peguemos na citação um pouco mais atrás porque o que aqui Engels diz é extraordinariamente
instrutivo para o caso em apreço:
“Para o metafísico, as coisas e os seus reflexos mentais, ideias, são isoladas, são consideradas
uma após a outra e separadamente uma da outra, são objectos de investigação fixos, rígidos,
dados de uma vez por todas. Ele pensa em antíteses absolutamente irreconciliáveis. […]. Para ele,
uma coisa existe ou não existe; uma coisa não pode ser ao mesmo tempo ela própria e outra
quando o piso ou quando nego a frase “uma rosa é uma rosa” dizendo que “uma rosa não é uma rosa”. Mas, esclarece Engels, não devo apenas negar, mas também superar a negação. Devo constituir a primeira negação de forma a tornar possível a segunda. Se triturei um grão de cevada, levei a cabo a primeira parte da acção, mas tornei impossível a segunda. “Cada tipo de coisas tem, portanto, uma forma particular de ser negado de tal forma que dê origem a um desenvolvimento e sucede o mesmo com cada concepção ou ideia”. Cf. F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 131-132.
562idem, ibidem, p. 14. 563idem, ibidem. 564idem, ibidem.
diferente. Positivo e negativo excluem-se absolutamente um ao outro; causa e efeito estão em
rígida antítese um para com o outro.
À primeira vista, este modo de pensamento parece-nos muito luminoso porque é o do chamado
senso-comum. […]. E o modo de pensamento metafísico, justificável e até necessário como é
num número de domínios cuja extensão varia de acordo com a natureza do objecto particular sob
investigação, mais cedo ou mais tarde atinge um limite, para além do qual se torna unilateral,
restrito, abstracto, perdido em contradições insolúveis. Na contemplação das coisas individuais,
esquece a ligação entre elas; na contemplação da sua existência, esquece o início e o fim da sua
existência; do seu repouso, esquece o seu movimento. Vê as árvores, mas não vê a floresta.
Para os objectivos do dia a dia, nós sabemos e podemos dizer, por exemplo, se um animal está
vivo ou não. Mas, após investigação mais próxima, descobrimos que isto é, em muitos casos, uma
questão muito complexa, tal como os juristas sabem muito bem [Engels desenvolve aqui acerca
do problema do aborto]. É simplesmente impossível determinar absolutamente o momento da
morte, já que a fisiologia prova que a morte não é um fenómeno momentaneamente instantâneo,
mas um processo muito prolongado.
Da mesma forma, todo o ser orgânico é em todos os momentos o mesmo e não o mesmo; em todo
o momento assimila matéria fornecida de fora e vê-se livre de outra matéria; em todo o momento,
algumas células do seu corpo morrem e outras se reconstroem de novo […].
Para além disso, descobrimos após investigação mais profunda que os dois pólos de uma antítese,
positivo e negativo, por exemplo, são tão inseparáveis como são opostos e que, apesar da sua
oposição, se interpenetram mutuamente […].
Nenhum destes processos e modos de pensamento entra no quadro do raciocínio metafísico [...]”565.
A complementaridade de Bohr é o resultado da negação da possibilidade de compreensão da
contradição. Esta posição (a da negação da possibilidade de compreensão da contradição), como diz
Barata-Moura, caracteriza grande parte das posições teóricas não dialécticas. A contradição não é, no
quadro do pensamento metafísico, compreensível e/ou deve ser removida como exigência de
racionalidade. Como Bohr não consegue resolver a contradição com que se deparou, ela própria reflexo
da relação objectiva entre onda e corpúsculo, introduz, com o objectivo de lidar com ela no quadro das
suas exigências de “racionalidade”, a figura da complementaridade com o objectivo de alcançar uma
descrição onde os pólos contraditórios não sejam colocados em conflito, onde não se interpenetrem.
Barata-Moura caracteriza aquelas posições não dialécticas a que alude: “Poderiam alguns pensar,
porventura, que a contradição se nos apresenta como inimiga declarada da compreensão e da
inteligibilidade. Se há contradição – procurariam eventualmente argumentar – é porque ainda se não
encontra verdadeiramente estabelecida a inequívoca luminosidade do pensamento, a única que é capaz em
termos de coerência e de encadeamento, traçar as linhas mestras da explicação”566. Com esta forma de
raciocínio, diz, que povoa grande parte do lugar que à dialéctica é concedido por alguns pensadores
565idem, ibidem, p. 22-23.566J. Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 167.
idealistas, procura-se atentar contra o carácter objectivo das contradições. Um dos artifícios, diz, é a
redução das contradições reais (objectivas) à não contrariedade (lógica) do pensamento. Sucede, porém,
que contradição dialéctica e contradição lógica não são a mesma coisa. Como explica Barata-Moura a
primeira existe, antes de mais na realidade objectiva e, mesmo quando se manifesta ao nível da
consciência, guarda esse fundamento material objectivo. A segunda constitui-se ao nível do pensamento
sem que lhe corresponda uma contradição material e, entre estas, estão as contradições lógicas formais
que se estabelecem ao nível do raciocínio falso567.
Portanto, se a realidade objectiva é ela própria contraditória, essas contradições transportam-se
para a teoria que pretenda ser um reflexo adequado da realidade objectiva. Mais uma vez, a questão volta
inevitavelmente a incidir num aspecto que, como dissemos, será tratado mais adiante que é a posição de
Bohr quanto ao conteúdo objectivo das teorias científicas: Bohr não perguntou pelo fundamento real
objectivo a que correspondia a contradição onda-corpúsculo.
Deter-nos-emos agora num outro argumento que Bohr retira directamente da ideia da
complementaridade que importa explorar um pouco melhor. De acordo com Bohr, o quantum de acção
não pode ser explicado em termos mecânicos, da mesma forma que, por exemplo, a vida não pode ser
explicada em termos químicos ou físicos. Isto dever-se-ia ao facto de as leis que regem cada um daqueles
domínios serem complementares entre si: assim, o quantum de acção e a vida teriam de ser considerados
como factos elementares não sujeitos a ulterior análise, escondendo de nós o seu último segredo.
Ora, de uma observação correcta, Bohr retira uma conclusão errada. E, mais uma vez, é levado a
essa conclusão por não considerar devidamente a dialéctica, por, em última instância, absolutizar os
pólos.
Vejamos, de passagem e a título de curiosidade, uma passagem do Anti-Dühring que acaba por
não ser totalmente desligada do problema que tratamos. Bohr diz, como vimos, que não é possível
compreender a vida ou o quantum porque eles não podem ser explicados em termos mecânicos ou
químicos. Dühring diz que não há ponte na mecânica racional entre o estático e o dinâmico. De facto,
responde Engels, “a mente que pensa metafisicamente é absolutamente incapaz de passar da ideia de
repouso para a ideia de movimento porque a contradição apontada em cima [Engels explicara porque é
que o movimento é uma contradição] bloqueia o seu caminho. Para ela, o movimento é simplesmente
incompreensível porque é uma contradição”568.
Retomando: quando Bohr afirma que o quantum não pode ser explicado em termos mecânicos e
a vida em termos físicos ou químicos está a ter em devida conta o carácter específico de cada uma das
formas de movimento (entendido como a mudança em geral e não apenas como a mudança de lugar)
presentes na natureza. Está, justamente, a não reduzir umas formas de movimento às outras, está a não
reduzir diferenças qualitativas (que existem) a diferenças quantitativas. Foi o que precisamente se passou
567Cf. idem, ibidem, p. 169-170.568F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers,
v.25, 1987, p. 111.
com o mecanicismo do século XVIII que procurou explicar todas as formas de movimento – biológico,
social, etc. – através do movimento mecânico, através da simples mudança de lugar. Procurou reduzir as
formas superiores às formas inferiores de movimento. Não sendo possível reduzir formas de movimento
qualitativamente diferentes umas às outras, é certo que elas estão interligadas. E Bohr, em vários
momentos, também reconhece isto, em certa medida. Estão interligadas e emergem umas das outras. Na
existência de formas de movimento qualitativamente diferentes reside, aliás, a razão para a existência das
diferentes ciências, cada uma estudando uma forma de movimento (ou formas interligadas)569. Engels, ao
pôr aquela questão, acrescenta:
“isto não é dizer que cada uma das formas superiores de movimento não está sempre necessariamente
ligada a qualquer movimento mecânico (externo ou molecular) real, tal como as formas superiores de
movimento simultaneamente produzem outras formas e tal como a acção química não é possível sem a
mudança de temperatura e mudanças eléctricas, a vida orgânica sem mudanças mecânicas, moleculares,
químicas, térmicas, eléctricas, etc. Mas a presença destas formas subsidiárias não esgota a essência da
forma principal em cada caso. Um dia poderemos certamente “reduzir” experimentalmente o pensamento
ao movimento molecular e químico no cérebro; mas isso esgota a essência do pensamento?”570
Contudo, uma coisa é o reconhecimento de que cada domínio da natureza, de que cada forma de
movimento, tem as suas próprias leis, que a qualidade não pode ser reduzida à quantidade; uma coisa é o
reconhecimento de que todas essas formas de movimento estão interligadas e que isso não esgota a
essência (e especificidade) de cada uma delas, de que a presença de formas acessórias não esgota a
essência da forma principal. Outra coisa é extrapolar a partir daí para a conclusão de que existe um limite
definitivo para a compreensão dessas formas de movimento. O que Bohr faz é, reconhecendo essa
especificidade e essa interligação, por causa da primeira, impor limites ao conhecimento da essência da
forma principal em causa. Isto é, porque a vida não é redutível às leis da física ou da química – mesmo
que as leis da física nos ajudem a estudar o fenómeno da vida – há um limite a partir do qual não
conhecemos a vida.
Ao fazê-lo, Bohr não está a colocar e resolver dialecticamente a questão da relação entre essas
formas de movimento e a do conhecimento que temos delas. Engels dizia que “uma vez que a conexão
evolucionária geral da natureza foi já demonstrada, um arranjo externo de elementos postos lado a lado é
tão inadequado como as transições dialécticas artificialmente construídas de Hegel. As transições devem
fazer-se por si mesmas, devem ser naturais. Tal como uma forma de movimento se desenvolve de outra,
assim os seus reflexos, as várias ciências, devem emergir necessariamente umas das outras” 571. Bohr traça
um limite artificial. Além disso, mais do que interligadas, as diferentes formas de movimento
desenvolvem-se umas a partir das outras.
Bohr, não está também a colocar e resolver dialecticamente a questão da correlação entre a
verdade absoluta e relativa, questão para a qual vimos acima Lénine chamar a atenção. Isto é, não está a
569Cf. idem, Dialectics of Nature, in ibidem, p. 528. 570idem, ibidem, p. 527. 571idem, ibidem, p. 529.
ter em conta que, sendo “historicamente condicionais os limites da aproximação dos nossos
conhecimentos em relação à verdade objectiva, absoluta”, “é incondicional a existência desta verdade, é
incondicional que nós nos aproximamos dela”572. Nem a matéria se esgota, nem há últimos segredos como
aqueles que Bohr diz existir.
Um terceiro aspecto a analisar, que Bohr põe em ligação directa com a complementaridade,
colocando-o, aliás, na sua base é a questão da observação que é uma questão que estabelece pontes com a
questão da relação sujeito-objecto. Segundo Bohr, o facto de, em mecânica quântica, a interacção entre o
objecto e instrumento de medida ser, por princípio, incontrolável, impõe que não se possa falar de um
comportamento independente do objecto em relação ao instrumento de medição. Cria-se, assim, uma
união inseparável, uma unidade indivisível e indiferenciada, para além da qual não é possível ir. Trata-se
de um “limite absoluto” (palavras de Bohr). Para lidar com esta nova situação na física, seriam
necessários novos meios lógicos, o que seria oferecido pela complementaridade. Como vimos, a
complementaridade traduziria, assim, o facto de que “apenas a totalidade dos fenómenos esgota a
informação possível acerca dos objectos” [palavras de Bohr]. A palavra fenómeno, diz Bohr, passaria
então a designar “exclusivamente […] as observações obtidas sob circunstâncias específicas, incluindo
uma descrição de todo o arranjo experimental”573.
Daqui não se pode concluir que Bohr esteja a preconizar a criação dos fenómenos pela
consciência do observador: quando se fala da interacção entre objecto e instrumento de medida, está-se a
falar de interacções materiais entre sistemas materiais, que existem objectivamente. Bohr, em rigor,
também não está a negar explícita e imediatamente a realidade objectiva, isto é, a existência de entes
quânticos independente da interacção com o instrumento de medida. O que Bohr afirma é que não se pode
falar dela, isto é, estabelece o limite para além do qual não é possível conhecê-la: não se pode conhecer
nada sobre os entes quânticos para além do que é dado positivamente na sua interacção com os
instrumentos. O que podemos conhecer é o fenómeno e nada para além dele. (Mais à frente trataremos
das implicações epistemológicas deste entendimento).
No entanto, e para além disso, o fenómeno, de acordo com Bohr, só o é quando é interacção com
o instrumento de medida, isto é, carece, para que o seja, de intervenção humana. Os fenómenos só são
quando são fenómenos para os sujeitos. Temos assim, a realização da experiência, a prática, como
instituidora do fenómeno. Na medida em que o fenómeno é sempre relativo a um dado arranjo
experimental, ele é fenómeno sempre e só num quadro correlacional que passa a constituir a instância
primária e instituinte. Portanto, num plano ontológico, isto significa que Bohr toma as determinações do
objecto como fundamentalmente dependentes da posição destas pela prática do sujeito. As determinações
do ente quântico – o objecto – supõem a realização da experiência – a prática – como condição de
572V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 102.
573N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 64.
possibilidade. Isto torna-se particularmente evidente na questão do colapso instantâneo do trem de ondas.
Conforme vimos acima a partir da exposição de José Croca da experiência da dupla fenda, segundo a
interpretação ortodoxa da mecânica quântica, antes da realização da experiência existem muitas ondas de
probabilidade que interferem entre si (tantas quanto os resultados possíveis da medição); quando a
partícula é detectada, todas as ondas de probabilidade colapsam, materializam-se, numa só que
corresponde ao resultado da medição. Por aqui vemos que, no quadro da interpretação ortodoxa, é a
realização da experiência que determina o ente quântico que existe fundamentalmente indeterminado.
Em Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Barata-Moura trata aquilo que identifica como uma
“matriz de solução”, que designa por “ontologias da prática”, com a qual procurei confrontar os textos de
Bohr. Penso ter identificado muitos elementos dessa matriz na interpretação bohriana da mecânica
quântica como se poderá constatar tendo em conta o que acima foi dito. As “ontologias da prática”
partilham um suposto fundamental que é o de “atribuírem uma função constitutiva (em termos finalmente
ontológicos, se bem que nem sempre desde logo claramente expressos e admitidos) à actividade humana”574. Estas ontologias da prática, como o autor mostra, encontram-se bem mais enredadas em supostos
idealistas do que as suas formulações deixam transparecer. Assim, chama a atenção, é preciso procurar os
supostos idealistas não só nas concepções que tradicionalmente repousam na base do primado da
consciência, da teoria ou da representação, mas também, eventualmente, nas que assentam na prática575.
Há um idealismo da prática. Há idealismo quando se procura antepor ao real uma condição subjectiva
(mesmo que em correlação) de possibilidade576. Ora, “essa subjectivação do real pode revestir a forma da
aberta proclamação da anterioridade (ontológica) do sujeito, mas pode também procurar acobertar-se –
como contemporaneamente é mais frequente – por detrás das mais diversas modalidades e variantes de
correlacionalidade, sem que o seu estatuto de condição possibilitadora da materialidade em geral se veja
posto em causa”577. E essa “nova síntese” pode até nem ser apresentada como uma operação do
pensamento, mas sim – e é o que nos interessa para o caso de Bohr em apreço – material. No entanto, a
materialidade, do ponto de vista ontológico, diz Barata-Moura, não é como tal dependente de uma prática
que se lhe anteponha como condição de possibilidade578.
A interpretação de Bohr, em geral, e a forma como Bohr trata o problema da observação, em
particular, insere-se nessa tendência de “atenuar a radicalidade ontológica da materialidade – existência
objectiva – do real na sua concreção, colocando-o na dependência ou órbita de uma instância mais
originária, de natureza mais acentuadamente teórica ou prática […] que se assume declaradamente ou não
como sua condição ontológica de possibilidade”579. No caso de Bohr, é a experiência que, de interacção
material entre objecto e instrumento de medida, se vê convertida em condição de possibilidade. Recorde-
se, por exemplo, a definição de fenómeno dada por Bohr: a existência de fenómenos quânticos pressupõe
574J. Barata-Moura, Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, p. 112.575Cf. idem, ibidem, p. 16.576Cf. idem, ibidem, p. 148.577idem, ibidem, p.169.578Cf. idem, ibidem, p. 176. 579idem, ibidem, p. 163.
necessariamente a interacção com o instrumento de medida.
É preciso clarificar: não há dúvida de que a medição exige uma interacção de algum tipo entre o
objecto e o instrumento de medida. Mas, como põe Barata-Moura, uma coisa é o reconhecimento
(correcto) da existência da intervenção de actividade humana no conhecimento (quer em termos
estritamente gnosiológicos quer em termos ideológicos). Outra coisa é, a partir daí, pretender
(incorrectamente) sugerir que, então, também a própria objectividade, também a própria materialidade,
como tais, são objectivo-dependentes, são subjectivamente instituídas580.
Vimos também que Lénine, em Materialismo e Empiriocriticismo, aborda a chamada
“coordenação de princípio” de Avenarius581, segundo a qual haveria uma coordenação indissolúvel entre o
Eu e o não-Eu. Está aqui um exemplo de um tipo de tal correlação que se pretende originária visando
constituir uma tentativa de dissolução da materialidade. Para isto chamou Barata-Moura também a
atenção582. Recordemos Avenarius: “Nenhuma descrição completa do que é dado (ou encontrado por nós)
pode conter o meio sem um Eu do qual esse meio seja o meio, pelo menos sem o Eu que descreve o
encontrado. O Eu é chamado termo central da coordenação, e o meio contratermo”583. Destas teses disse
Lénine, como também vimos, conterem exactamente a mesma essência dos argumentos do idealismo
subjectivo e chamou precisamente a atenção para que o conceito de experiência pode ser utilizado de
forma idealista. Será, interessante comparar com os argumentos de Bohr: o fenómeno deve ser entendido
como o conjunto constituído pelo objecto e instrumento de medida, o fenómeno é indivisível e fechado,
não se pode penetrar a realidade para além desta união. É certo que os intentos de Avenarius acabam por
ser mais claros, mas a essência é a mesma. E também é certo que o Eu de Avenarius pode ser entendido
como a consciência do sujeito, enquanto que no caso de Bohr aquela união se dá entre sistemas materiais.
Mas, como vimos também, antepor uma correlacionalidade mesmo que ela seja estabelecida com uma
prática, material, isso não deixa de conter uma exigência de uma intervenção subjectiva como condição.
Como diz Barata-Moura, aquelas “figuras de uma pseudo-superação do idealismo” conservam “o real na
dependência ontológica de uma estrutura subjectiva instituinte, pouco importando para o essencial se ela é
declarada prática e intersubjectiva, se teórica e privada”584.
O idealismo destas concepções, como bem nota Barata-Moura, “começa por consistir na
colocação dessa instância correlacional como o terreno inultrapassável, não apenas do conhecimento, em
geral, mas fundamentalmente do ser, o qual se vê, desta maneira oblíqua, liminarmente «des-
materializado» e, nos termos da ontologia para o efeito aceite e praticada, identificado como o domínio
aparecente da mera «objectualidade» experimentada”585. Colocar, como Bohr faz, aquela “instância
correlacional” de partícula e instrumento de medida como “terreno inultrapassável”, como limite absoluto
580Cf. idem, ibidem, p. 167. 581V.I. Lénine, op. cit., p.50-56.582Cf. J. Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com
Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 90.583R. Avenarius cit. por V.I. Lénine, op. cit. , p. 51.584J. Barata-Moura, Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, p. 176, p. 109.585idem, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com Projecto,
Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 91.
a partir do qual não se pode inquirir mais, tem implicações não só epistemológicas, mas também
ontológicas.
Um quarto aspecto sobre o qual a crítica à interpretação bohriana da mecânica quântica não pode
fugir (e que Bohr coloca na base da ideia de complementaridade) incide no mesmo problema
observacional e experimental, mas sob um outro ângulo. É difícil não reconhecer na posição de Bohr
tendências operacionalistas quando diz que “qualquer fenómeno atómico é fechado no sentido em que a
sua observação é baseada em registos obtidos por meio de aparelhos de amplificação adequados com um
funcionamento irreversível tal como, por exemplo, marcas permanentes numa placa fotográfica causadas
pela penetração dos electrões na emulsão. A este respeito, é importante compreender que o formalismo
quântico permite aplicações bem definidas referentes apenas a tais fenómenos fechados” 586. Ou quando
insiste, repetindo que “a informação respeitante a objectos atómicos consiste apenas nas marcas que eles
fazem nos instrumentos de medida, como por exemplo, um ponto produzido pelo impacto de um electrão
numa placa fotográfica colocada no arranjo experimental. A circunstância de tais marcas serem devidas a
efeitos de amplificação irreversíveis confere aos fenómenos um carácter peculiarmente fechado[...]”587.
Ou quando refere que “a descrição não ambígua dos próprios fenómenos quânticos deve, em princípio,
incluir uma descrição da todas as características relevantes do arranjo experimental”588. Ou “todo o uso
não ambíguo de conceitos espácio-temporais na descrição dos fenómenos atómicos está confinado ao
registo das observações que se referem a marcas numa placa fotográfica ou a similares efeitos de
amplificação praticamente irreversíveis [...]”589. E ainda: “a descrição [account] consiste, em ultima
análise, no estabelecimento de séries não ambíguas de conexões entre o comportamento do objecto e as
hastes e relógios de medição que definem o sistema de referência envolvido na descrição espácio-
temporal”590.
O operacionalismo chega inelutavelmente a conclusões idealistas subjectivas: se nos conceitos
não conhecemos outra coisa que não sejam as operações de medida, o reconhecimento da existência dos
próprios objectos, independentemente dos procedimentos da medição, perde o seu sentido591. Para Bohr,
isto pode não ter uma validade em todos os casos, na medida em que não faz esta exigência no domínio
de estudos da mecânica clássica, mas tem certamente na mecânica quântica (“a informação respeitante a
objectos atómicos consiste apenas nas marcas que eles fazem nos instrumentos de medida”). E, não
esqueçamos, para Bohr, a mecânica quântica apenas teria deixado a descoberto características presentes,
586N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 73.
587idem, «Physical Science and the Problem of Life» (1949), in ibidem, p. 98.588idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum
physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 311.589idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and
Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 51.
590idem, «Causality and Complementarity», in Philosophy of Science, Vol. 4, no. 3 (Jul., 1937), p. 291.591Cf. Dictionnaire Philosophique, dir. I. Frolov, Edition du Progrès, Moscovo, 1985.
apesar de desprezáveis, noutros domínios do conhecimento.
Aquela indivisibilidade, aquele enclausuramento do fenómeno, tem uma consequência: “Aqui
[na mecânica quântica] a aproximação lógica não pode ir para além da dedução de probabilidades
relativas para o aparecimento de fenómenos individuais sob dadas condições experimentais”592. Não
podemos saber o que se passa até algo se transformar em fenómeno, isto é, interagir com o instrumento de
medida. Há todo um domínio que não é possível conhecer por causa de tal indivisibilidade. Trata-se do
estabelecimento, por via da proclamação dessa indivisibilidade, de limites ao conhecimento.
4.A causalidade fica de fora
Como Lénine chamou a atenção no seu Materialismo e Empiriocriticismo, a questão da
causalidade tem uma importância muito particular para a definição de uma linha filosófica. Esta mesma
questão assume grande centralidade no confronto entre as interpretações das linhas ortodoxa e brogliana
da mecânica quântica.
De acordo com Bohr, aquela situação observacional revelada na mecânica quântica imporia a
renúncia da causalidade. Em rigor, Bohr coloca a questão imediatamente num plano epistemológico (sem
deixar, no entanto, de estabelecer pontes para um plano ontológico). Portanto, o que Bohr diz é que somos
obrigados a prescindir de uma descrição causal. Ou, de outra forma, não negando nem afirmando
directamente a existência objectiva da causalidade, podemos concluir que Bohr considera que a teoria, o
conhecimento humano, não a pode reflectir.
A complementaridade, aliás, aparece como a figura “lógica” que viria preencher o vazio deixado
pelo despedimento da causalidade da teoria. “Em troca pela renúncia das formas habituais de explicação,
ela [a complementaridade] oferece meios lógicos de compreender campos da experiência mais vastos”593
e constitui “uma generalização consistente do ideal de causalidade”594.
A descrição causal só seria possível no domínio da mecânica clássica porque a acção do
instrumento de medida sobre o objecto pode ser desprezada, controlada, permitindo, por isso, a
divisibilidade do fenómeno. Pelo contrário, em mecânica quântica, “a assunção básica da individualidade
dos processos atómicos envolveu ao mesmo tempo uma renúncia essencial da detalhada ligação causal
entre acontecimentos físicos”595.
Portanto, da indivisibilidade do fenómeno decorre o carácter inerentemente estatístico das leis:
como não podemos “dividir”, não podemos conhecer o curso do fenómeno e assim, como vimos, a
“aproximação lógica não pode ir para além da dedução de probabilidades” (por princípio). Nas palavras
592N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 73.
593idem, idem, p. 78.594idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 27.595idem, «Biology and Atomic Physics» (1937), in ibidem, p. 18.
de Bohr: “A indivisibilidade dos fenómenos quânticos encontra a sua expressão consequente na
circunstância de que toda a subdivisão definível iria requerer uma mudança do arranjo experimental com
o aparecimento de novos fenómenos individuais. Assim, a própria base de uma descrição determinística
desapareceu e o carácter estatístico das previsões é evidenciado pelo facto de que em um e no mesmo
arranjo experimental irão, em geral, aparecer observações correspondentes a diferentes processos
individuais”596.
Num outro local Bohr afirma: “Apesar, claro, de a descrição clássica do arranjo experimental e a
irreversibilidade dos registos relativos aos objectos atómicos assegure uma sequência de causa e efeito
conforme com as exigências elementares da causalidade, o abandono irrevogável do ideal de
determinismo encontra expressão notável na relação complementar que governa o uso não ambíguo dos
conceitos fundamentais em cuja combinação irrestrita a física clássica assenta” 597.
Bohr reconhece o desconforto dos físicos quanto ao abandono do habitual modo de descrição
levando-os julgar, nomeadamente, que o modo estatístico de descrição era apenas um expediente
temporário a ser substituído por uma descrição determinística598. Mas a nossa posição observacional
obrigar-nos-ia a aceitar o contrário, a aceitar que “o princípio da causalidade […] provou ser um quadro
demasiado estreito para abarcar as peculiaridades que governam os processos atómicos individuais” 599.
Podemos questionar se Bohr, ao concluir justamente pela estreiteza da forma da causalidade
característica do domínio clássico – a partir do conhecimento da posição e do momento inicial de uma
partícula, poder prever a posição e o momento finais – na sua aplicação ao domínio quântico, mantém a
defesa da existência da causalidade numa outra forma (apesar de as suas palavras dizerem o contrário).
Acho que não.
Vemos Bohr, a respeito desta questão da causalidade, a fazer aquele movimento a que Lénine
tanto aludiu em Materialismo e Empiriocriticismo: porque o materialismo mecanicista se revela
insuficiente, limitado, nega-se o materialismo. Neste caso, porque a causalidade mecanicista se revela
limitada na sua aplicação à mecânica quântica, nega-se a causalidade. Bohr identifica a causalidade em
geral com a causalidade mecanicista600. No entanto, de um ponto de vista dialéctico, não há porque
estranhar que as leis que reflectem relações de uma dada forma de movimento da natureza
(nomeadamente as relações causais) sejam diferentes das válidas para outras formas de movimento
qualitativamente diferentes. O que se mantém é, no entanto, a existência objectiva dessas relações causais
(isto é, existem na própria natureza, não são conferidas pelo homem ordenador de uma natureza
ontologicamente caótica) e a possibilidade de o homem reflectir (aproximadamente) nas suas
representações, nas suas teorias científicas, essas relações causais objectivamente existentes.
596idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in ibidem, p. 90.597idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum
physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 312.598Cf. idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover
Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 88.
599idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 25. 600Ver, por exemplo, N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in ibidem p. 69.
Como vimos, Lénine, observando diferentes autores, faz sobressair diferentes formas de uma
mesma posição essencialmente idealista: tudo o que experimentamos é que um fenómeno segue o outro, a
necessidade como probabilidade, como associação de factos, a necessidade como pertencente ao mundo
dos conceitos, as leis da natureza como símbolos ou convenções criadas pelo homem por razões de
comodidade, etc. Todas elas têm em comum um aspecto fundamental: a negação da causalidade objectiva.
Quando Bohr fala de leis inerentemente probabilísticas, está a pensar em leis que não reflectem
processos que possamos conhecer como necessários. No domínio da mecânica quântica, os fenómenos
revelar-se-iam apenas na sua contingência. Desses fenómenos não poderíamos conhecer o que neles há de
necessário. São apresentados isoladamente, separados da conexão em que verdadeiramente se encontram,
mas da qual a teoria, a julgar pela posição de Bohr, não poderia dar conta. Assim, as leis inerentemente
probabilísticas de Bohr são leis que ordenam fenómenos que aparecem contingentes; logo essas leis
excluem a necessidade. Dizia Avenarius, cuja posição Lénine classificou de idealista subjectiva, que “a
necessidade permanece como grau de probabilidade com que se esperam os efeitos”. Bohr só teria agora
de acrescentar que essa probabilidade é encontrada de acordo com o princípio da correspondência.
Vejamos a seguinte citação de Bohr:
“Estas ideias […] sobre a excitação do espectro pelo impacto dos electrões nos átomos, envolveu
uma nova renúncia do modo causal de descrição, uma vez que, evidentemente, a interpretação das
leis espectrais implica que um átomo num estado excitado terá, em geral, a possibilidade de
transição com a emissão de um fotão para um ou outro estado de mais baixa energia. De facto, a
própria ideia de estados estacionários é incompatível com qualquer directiva para a escolha entre
tais transições e deixa apenas espaço para a noção de probabilidade relativa dos processos
individuais de transição. O único guia para estimar essas probabilidades era o chamado princípio
da correspondência [...]”601.
Bohr está a confundir a ausência de causa com o desconhecimento dessas causas. Esquece que,
como diz Engels, “onde, à superfície, o acaso conduz o seu jogo, ele está sempre dominado por leis
internas ocultas, e trata-se apenas de descobrir essas leis”602. Bohr está a colocar a probabilidade em
oposição a causalidade achando que esta não tem lugar para a contingência e, portanto, a colocar a
contingência em oposição absoluta com a necessidade não considerando a sua relação dialéctica. Está
reduzir a forma da causalidade à forma que ela adquire na dinâmica e na mecânica clássica em geral. Por
tudo isto, cai no erro de finalmente preservar um certo grau de indeterminismo para os acontecimentos
quânticos, negando à causalidade a sua universalidade.
5.O valor da teoria
601idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in ibidem, p. 35.602F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três
tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. III, 1985, p. 410.
Bohr coloca como a tarefa da ciência a coordenação de regularidades, a descoberta de
uniformidades. Ele, em geral, não aborda o problema directamente, mas em vários momentos das suas
exposições deixa transparecer esse seu posicionamento subjacente, esse suposto. A preocupação de Bohr é
o estabelecimento de “regularidades”, é “recuperar a ordem lógica”603. O objectivo do formalismo
quântico, “que não permite uma interpretação pictorial” é “estabelecer relações entre as observações”604.
Para Bohr, a mecânica quântica, “tem como objectivo a formulação de regularidades estatísticas
pertencentes a resultados [evidences] obtidos sob condições experimentais bem definidas”605, é “como um
meio de ordenar uma imensa quantidade de evidências”606. Bohr entende a sua tarefa como a tarefa de
“trazer ordem a um campo da experiência inteiramente novo”607. Para ele, o seu interesse principal é
“restaurar a ordem lógica neste campo da experiência”608, evitar as “inconsistências lógicas” para o que o
formalismo matemático da mecânica quântica satisfaz todos os requisitos609. De facto, o próprio põe aqui
claramente a questão: “quando falamos de quadro conceptual, referimo-nos meramente à representação
lógica não ambígua de relações entre experiências”610. Mas exigir que a teoria não contenha
possibilidades de interpretações ambíguas dos resultados das medições não é mais do que uma exigência
de coerência interna. A complementaridade seria, assim, o expediente que permitiria uma “descrição
completamente racional dos fenómenos físicos”611. Põe-se, no entanto, a questão do que significa para
Bohr esta “racionalidade”.
Bohr manifesta várias vezes a preocupação de garantir “objectividade”, de garantir “não
ambiguidade na comunicação”. Ora, Bohr, identifica objectividade com comunicação não ambígua:
“Qualquer cientista, contudo, está constantemente confrontado com o problema da descrição objectiva da
experiência com a qual queremos significar comunicação não ambígua”612. Não há dúvida que a
objectividade, para Bohr, se funda, ao nível da linguagem. Dado que Bohr entende a ciência como uma
forma de coordenar regularidades é de facto natural que isso tenha implicações necessárias ao nível do
que Bohr entende como objectividade. O próprio estabelece essa relação consequente: “Uma vez que o
objectivo da ciência é aumentar e ordenar a nossa experiência, toda a análise das condições do
conhecimento humano deve assentar em considerações do carácter e âmbito dos nossos meios de
603N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 74.
604idem, ibidem.605idem, «Physical Science and the Problem of Life» (1949), in ibidem, p. 99.606idem, «Quantum Physics and Philosophy» (1958), in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7, Foundations of quantum
physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland, Amsterdam, 1996, p. 390.607idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and
Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 56.
608idem, ibidem, p. 61.609Cf. idem, ibidem, p. 56.610idem, «Unity of Knowledge» (1967), in ibidem, p. 68.611 idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical
Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 696.612idem, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications
Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 67.
comunicação”613. O próprio motor para o progresso da ciência funda-se ao nível do discurso, da
linguagem: “a lição que recebemos de todo o crescimento das ciências físicas é que o germe de um
desenvolvimento frutuoso frequentemente repousa na adequada escolha de definições […], “vemos o
avanço que pode assentar em tais refinamentos formais”614. Mais do que, muito justamente, reconhecer a
importância da aferição rigorosa e do desenvolvimento dos conceitos, Bohr parece querer fundar aí a
razão para o desenvolvimento da ciência. Para ele, a ciência funda-se e é interna à linguagem. Em suma,
para Bohr, a objectividade é, na verdade, intersubjectividade, é o subjectivo colectivamente aceite.
Portanto, quando Bohr responde à conclusão de Einstein, Podolski, Rosen de que a descrição da
mecânica quântica é essencialmente incompleta dizendo “Pelo contrário, esta descrição […] pode ser
caracterizada por uma utilização racional de todas as possibilidades de uma interpretação não ambígua
das medições, compatível com a interacção finita e incontrolável entre os objectos e os instrumentos de
medida no domínio da teoria quântica”615 está a dizer que aquela descrição é a que permite uma
coordenação dos fenómenos livre de contradições lógicas, na medida em que “tudo o que podemos exigir
num novo campo da experiência é a remoção de qualquer aparente contradição” 616; está a dizer que aquela
é a que permite, como diziam os antigos, salvar os fenómenos. Para o fazer, como vimos, precisa de
recorrer à complementaridade, garantindo assim a exclusão mútua de quaisquer dois procedimentos
experimentais. Para o fazer, o preço que tem a pagar é elevado: é despedir da teoria a própria realidade
objectiva, isto é, é negar a possibilidade de as teorias reflectirem a realidade objectiva (nomeadamente
como uma realidade una), é, em última instância, negar a própria ciência como tal pois, usando as
palavras de Barata-Moura, “a inteligibilidade não pode, de modo algum, fundar-se exclusivamente na
coerência interna de esquemas formais […] É a realidade objectiva que tem de ser correctamente
reflectida pela consciência para que nós possamos falar verdadeiramente da existência de um
conhecimento, tanto empírico como racional”617. Vejamos porquê.
Tendo em conta que, como diz Barata-Moura, “o saber tem um objecto que é o ser, que é a
realidade objectiva”, “é esse objecto que ele, precisamente, procura reflectir em termos de adequação. Daí
que, mesmo quando tem de processar-se ao nível das mais abstractas mediações – que por certo têm o seu
lugar e a sua indispensável função epistemológica [e de que, direi eu, tendo em conta o caso em apreço, o
formalismo quântico é um exemplo] – ele não possa nunca ser separado dessa experiência concreta do
real em cujo horizonte se determina e elabora”618.
Sucede que o ser não pode ser reduzido à sua manifestação fenoménica. Ele não é a simples
soma das suas determinações postas lado a lado. Mas é desta forma que Bohr o nos apresenta. A
613idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in ibidem , p. 88.614idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p. 29.615idem, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical
Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 700.616idem, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover
Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 90.
617J. Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 168.618idem, Ideologia e Prática, Lisboa, Editorial Caminho, 1978, p. 177.
formulação do princípio da complementaridade é disso expressão directa. Quando Bohr afirma, por
exemplo, que os fenómenos são complementares no sentido em que “apenas a totalidade dos fenómenos
esgota a informação possível acerca dos objectos”619, está precisamente a apresentar o ser como uma mera
soma de determinações, como uma soma de elementos isolados retirados da totalidade em que se inserem,
do sistema de relações e de condicionamentos mútuos. Este isolamento (abstracto porque absolutizado,
parcelar, unilateral), é reforçado pela exigência expressa de mútua exclusividade dos fenómenos e,
consequentemente, das leis/teorias que procuram dar conta deles. Daí a complementaridade da descrição
espácio-temporal e descrição dinâmica, entre as leis da mecânica e as do electromagnetismo, entre
corpúsculo e onda. Mas a realidade objectiva é só uma, é una, na sua diversidade. O ser é, sim, uma
unidade totalizada de determinações – determinações que não perdem a sua individualidade,
especificidade, diferença, mas que se integram numa organização dinâmica, com leis de estrutura, às
quais pertencem o poder determinante fundamental620, que lhe são próprias – passível de ser apreendido
pela teoria. E por isso, se é da realidade objectiva que o conhecimento científico quer dar conta, é como
tal que a tem de considerar.
Não o fazer tem consequências e é interessante observar, através do exemplo de Bohr, como elas
são necessárias. “Reduzir o saber a uma identificação das «formas fenoménicas» de manifestação da
positividade, mesmo que alargada ao registo «irresolvido» das suas incongruências, tem como corolário
aceitar como intransponível essa instância da imediatez e, simultaneamente privar-se de qualquer
possibilidade de penetração inteligível na dinâmica una que a funda e para além dela conduz” 621, afirma
Barata-Moura. Ora, é precisamente este o caminho que Bohr segue até ao fim: por tomar o ser por aquilo
que é imediatamente dado ou por achar que não pode tomar do ser mais do que a sua manifestação
fenoménica (a identificação tipicamente positivista e a cisão idealista de fenómeno e essência estão aqui
postas lado a lado, o que para o caso acaba por ser indiferente pois ambas desaguam na mesma
consequência) estabelece limites definitivos para o conhecimento no domínio quântico. Mesmo que,
reafirmamos, a manifestação dessa positividade, mesmo que os “factos” sejam “considerados ou
apresentados na sua relação conflitual”622. É o que Bohr faz ao reconhecer a dualidade onda-corpúsculo
como contradição. Bohr não deixa de apresentar os dados da experiência nessa relação conflitual, como
opostos. Mas fá-lo fora da sua unidade. E por isso não a pôde resolver: fixou-a, tornou-a intransponível
(desenvolverei esta questão mais adiante).
Quando Bohr faz aquela afirmação de que “apenas a totalidade dos fenómenos esgota a
informação possível acerca dos objectos” está também, ao mesmo tempo, a pretender negar que essa
perspectiva ponha limites à ciência. Não, diria Bohr, há sempre um novo arranjo experimental que ponha
em evidência uma nova determinação ainda não descoberta a qual podemos somar ao conjunto de todas
619N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 40.
620Cf.J. Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 127.621idem, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997, p. 91. 622idem, ibidem, p. 116.
as outras determinações. Mas isso tem precisamente que ver com aquele que, na decorrência das suas
posições, acaba por ser o seu entendimento sobre o que é o conhecimento científico, sobre qual é o valor
da teoria – o estabelecimento de regularidades entre os fenómenos que se dão na experiência – com
consequências ontológicas – ficamos com um ente quântico que é tomado pela soma das suas
determinações cuja eventual unidade não é possível apreender. “Por maiores que sejam os contrastes
exibidos por fenómenos atómicos sob diferentes condições experimentais”, diz Bohr, “tais fenómenos
devem ser designados complementares no sentido de que cada um é bem definido e que juntos esgotam
todo o conhecimento definível acerca dos objectos em questão”623. Bohr exclui, assim, a possibilidade de
a consciência ser capaz de reflectir a realidade objectiva tal como ela é: una.
Mas a ciência, diz Marx, “seria supérflua se a forma de aparecimento e a essência das coisas
imediatamente coincidissem”624. (O fenómeno sendo aquilo que se nos manifesta na representação ou
experiência imediata e a essência aquilo que fundamentalmente caracteriza um processo determinado
como sua entidade ou «razão», esclarece Barata-Moura). A mera inspecção do “fenómeno” não é
suficiente, diz Barata-Moura, “porque a sua forma de manifestação, porque a sua condição fenoménica de
existente positivo ou fáctico, apenas corresponde, em geral, a uma etapa ou estação de um processo, que
se determina e vale como globalidade, como concreção, como totalidade [...]625”.
Por isso, a ciência deve procurar, como uma condição de cientificidade, a “conexão interna”626
dos fenómenos, o seu “vínculo interior”627. Como mostra Barata-Moura, é para este aspecto que Marx
chama a atenção em oposição a uma representação da forma imediata de aparecimento. Nas palavras de
Barata-Moura, analisando Marx, a cientificidade manifesta-se “como requerendo, a título de condição
epistemológica basilar, uma adequada penetração na conexão interna dos fenómenos, e não apenas uma
sua descrição ou recensão ao nível da mera imediatez empírica da sua revelação/manifestação” 628. É a
essa condição epistemológica basilar que Bohr não atende. Isto não exclui, clarifica o autor, a existência
ou o conteúdo de momentos imediatamente referenciáveis. Pelo contrário, tem-nos em conta e assume-os
como expressões materiais particulares igualmente reais. Mas exclui a transformação dos fenómenos
como uma instância abstracta e absolutamente isolada de um sistema de relações629.
Para além disso, a ciência, dando conta dessa “conexão interna” e “para poder dar razão da
totalidade que os processos em apreço constituem”, tem “de incluir no seu seio a própria contradição, isto
é, algo que desafiadoramente confronta e perturba os paradigmas lógicos dominantes assentes,
623N. Bohr, «Atoms and Human Knowledge» (1955), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 90.
624“toda a ciência seria supérflua [überflüssig] se a forma de aparecimento [Erscheinungsform, forma fenoménica ou fenomenal] e a essência [Wesen] das coisas imediatamente coincidissem”. K. Marx cit. por J. Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997. p. 74 (a partir de K. Marx, Das Capital, III, 7, 48; MEW, vol. 25, p. 825.)
625J. Barata-Moura, ibidem, p. 83.626Cf. idem, ibidem, p. 91 (a partir de Marx, Das Kapital, III, 7, 48, II; MEW, vol.25, p. 825).627Cf. idem, ibidem, p. 83-85(a partir de Marx, Das Kapital, MEW, vol. 23, p. 27).628J. Barata-Moura, ibidem, p. 98.629Cf. idem, ibidem, p. 92.
precisamente, na sua liminar exclusão como figura inaceitável e índice de procedimento erróneo”630. É
precisamente com um Bohr perturbado pela contradição que nos deparamos.
É preciso reforçar um outro aspecto: essa conexão a que a ciência deve proceder não é imposta
do exterior a uma multidão de elementos a que o pensamento confere sentido; “a determinação da
«conexão interna» não é apenas a da sequência das representações na consciência, mas a dos próprios
processos objectivos, materiais”631. Trata-se, pois, de exigir que a ciência reflicta, nos termos que lhe são
próprios, “o movimento real e a conexão real das coisas e dos processos”. É a própria realidade objectiva
que é dialéctica, concreta e se dá em termos de totalidade. E por isto é que a “conexão interna dos
fenómenos” só pode ser verdadeiramente alcançada numa base materialista.
Como vimos acima, para Bohr, o que está principalmente em causa, ao nível do estabelecimento
do conhecimento, e aquela que é a sua preocupação, é que a teoria seja uma descrição objectiva da
experiência entendida esta como comunicação não ambígua. Mas isto nada garante quanto à objectividade
da teoria, entendida como o reflexo da realidade objectiva (realidade essa que é mais do que o fenómeno e
muito mais ainda do que um fenómeno que só o é quando é interacção com instrumentos de medida). Para
Bohr, objectividade é essencialmente um problema de comunicação. Racionalidade é não contradição
lógica, é não ambiguidade. À teoria nada mais é exigido. Temos, assim, uma “objectividade” que, para
Bohr, é interna à própria teoria e uma racionalidade esvaziada do seu conteúdo objectivo. Essa
objectividade da descrição, em vez de se fundar numa correcta correspondência entre essas ideias e as
relações objectivas que a descrição (a teoria científica) procura reflectir, funda-se no interior do próprio
plano ideal pois diz respeito a uma avaliação da “boa definição” de ideias. Em rigor, é a realidade
objectiva, aquela que existe independentemente da consciência, que não encontra aqui lugar. Não se trata,
de um ponto de vista materialista, de negar o papel e a importância do correcto e rigoroso apuramento e
desenvolvimento dos conceitos e da linguagem para o próprio desenvolvimento da ciência. Trata-se, sim,
de negar que a ciência se estabelece e é interior à linguagem.
Quando se entende a objectividade desta forma, quando se considera que a teoria científica não
pode fazer mais do que descrever os fenómenos na sua imediatez, quando se entende a ciência como
forma de ordenar a experiência humana, como Bohr o faz, entra-se, quer-se queira quer não, no caminho
sem saída do fideísmo. A demonstrá-lo dedicou Lénine várias páginas da sua crítica e que aqui foi trazida.
Se objectividade é definida daquela forma, então, entre religião e ciência não haveria diferença
fundamental. Ambas seriam formas de organização da experiência humana. É interessante ver como Bohr
se enreda, como consequência dos seus supostos, ao falar da religião e de ciência. Nas exactas palavras de
Bohr, a ciência tem o objectivo de “desenvolver métodos para ordenar a experiência humana comum632”.
A religião desenvolve “esforços para maior harmonia de perspectivas e comportamentos dentro das
630Cf. idem, ibidem, p. 83-85.631Idem, ibidem, p. 106.632N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover
Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 80.
comunidades” – o que é “essencialmente diferente”, diz! Uma ordena, a outra harmoniza. Uma ocupa-se
da experiência humana, a outra ocupa-se dos comportamentos humanos. Esta é a consequência de se
negar (directa ou indirectamente) a possibilidade de a teoria científica reflectir adequadamente a realidade
objectiva. Este é o problema da verdade objectiva.
Recorde-se Bogdánov: para ele, a verdade é “uma forma ideológica, uma forma organizadora da
experiência humana”633. Compare-se com Bohr, para quem a ciência deve “ordenar a experiência
humana”. É essencialmente a mesma posição. E com as mesmas consequências. Lénine, criticando a
filosofia machista, dizia que nela “a objectividade é definida de tal maneira que esta definição inclui a
doutrina da religião»634”. De facto, “se a verdade é apenas uma forma organizadora da experiência, quer
dizer que também é uma verdade a doutrina, digamos, do catolicismo. Porque está fora de qualquer
dúvida que o catolicismo é uma «forma organizadora da experiência humana»”635, diz Lénine. A negação
da verdade objectiva por Bogdánov, diz, é agnosticismo e subjectivismo. E da mesma forma que vemos
Bogdánov, para evitar cair em conclusões directamente fideístas, que não pretendia, retirar o problema da
esfera da experiência individual remetendo-o para a colectiva, vemos Bohr a pretender segurar a
objectividade na esfera de uma comunicação totalmente livre de ambiguidades (comunicativas) para o
que a utilização de símbolos matemáticos ofereceria, de acordo com Bohr, essa garantia, tornando
possível a remoção das referências ao sujeito consciente636 que infiltra a descrição com a linguagem
diária637. Mas a dificuldade manter-se-á sempre que não se considere, em primeiro lugar, a realidade
objectiva, sempre que não se considere a teoria científica um reflexo da matéria, sempre inesgotável, mas
da qual o homem se aproxima cada vez mais.
Vimos atrás que Bohr antepõe, como a instância inaugural em que o conhecimento ao nível da
633A. Bodánov cit. por V.I. Lénine, op. cit. p. 92.634V. I. Lénine, ibidem, p. 93.635idem, ibidem.636Chegados a este ponto, vale a pena um esclarecimento. A crítica à apresentação de uma pretensa objectividade
como intersubjectividade não pode ser confundida com o desprezo pela presença, necessária, do sujeito e da subjectividade do conhecer. Pelo contrário. O conhecimento não pode deixar de pressupor o sujeito cognoscente (incluindo até, como vimos, a sua necessária imersão num dado contexto ideológico). Não cabe aqui desenvolver esta questão. Reafirmamos apenas que, de um ponto de vista materialista, a exigência de objectividade no conhecer, a convicção de que ao conhecimento científico cabe a verdade objectiva – um conteúdo do conhecimento que não depende do homem nem da humanidade – não pode ser confundida com a negação ou tentativa de remoção da subjectividade no conhecer. É aliás o próprio Bohr que, ao procurar a objectividade, mas, ao tomá-la como não mais do que coerência lógica interna, acaba por cair no erro oposto de procurar remover a presença do sujeito e de entendê-lo como contaminador. A descrição seria tanto mais objectiva quanto mais conseguida fosse a remoção da subjectividade: “a introdução de […] abstracções matemáticas bem definidas [Bohr refere-se ao formalismo quântico] de forma nenhuma implica ambiguidade, oferecendo, ao invés, uma elucidação instrutiva de como o alargamento do quadro conceptual possibilita os meios apropriados para eliminar os elementos subjectivos e alargar o âmbito da descrição objectiva”. (N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 70). Assim, o problema que se põe, para Bohr, na busca da “objectividade” é saber como passar do subjectivismo individual para o subjectivismo universal, colectivamente aceite. É, portanto, neste quadro que devem ser entendidas as várias referências de Bohr quanto à importância de se prestar a devida atenção à separação entre objecto e sujeito (“distinção entre sujeito e objecto necessária para uma descrição não ambígua” (p. 101), “separação entre observador e conteúdo das comunicações” (p. 91), p. 80, etc.).
637Cf. N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 68.
mecânica quântica se funda, uma correlação entre objecto e instrumento de medida, para além da qual não
se pode ir. Recordando as suas palavras: “a interacção inevitável entre os objectos e os instrumentos de
medida coloca um limite absoluto à possibilidade de falar de um comportamento dos objectos atómicos
que seja independente dos meios de observação”638. Bohr situa justamente a questão no problema de saber
“que tipo de conhecimento pode ser obtido respeitante aos objectos”639.
Portanto, isto levantaria, diz, um problema epistemológico novo em filosofia natural. Mas, na
sua essência, este problema não é tão novo assim em filosofia. É ainda o mesmo problema da verdade
objectiva que vimos Lénine debater. Para Bohr, não é possível conhecer o objecto quântico fora da
relação deste com o homem (na medida em que é este quem o experimenta com os instrumentos). Assim,
no domínio quântico, deixaria de ser possível a verdade objectiva, isto é, nas palavras de Lénine, “deixa
de poder haver nas representações humanas um conteúdo que não depende do sujeito, que não depende
nem do homem nem da humanidade”640. É certo que Bohr ainda parece consentir esse conteúdo objectivo
a outros domínios do conhecimento, como a mecânica clássica. Mas tal seria apenas possível apenas por
uma questão de escala – essa impossibilidade fundamental estaria simplesmente velada. A afirmação das
ciências da natureza de que a Terra existia antes da humanidade é uma verdade objectiva, diz Lénine. Ora,
esta afirmação é incompatível com a definição da verdade como forma de organização da experiência
humana. Se a verdade é assim entendida, diz Lénine, então não pode ser verdadeira a afirmação da
existência da Terra fora de toda a experiência humana. Lénine criticava aqui a posição de uma
dependência do mundo exterior em relação à consciência. Esta é a linha agnóstica e subjectivista da
filosofia machista. Se a ciência só é possível estabelecer no quadro dessa dependência, então as ciências
não poderiam declarar nem falsa nem verdadeira a existência da Terra antes do homem. Em Bohr, não se
trata directamente de fazer depender o objecto da consciência, como no caso dos machistas (que, quando
falam de experiência, é da experiência sensível que tratam). A diferença está em que, em vez de se
estabelecer uma dependência de uma instância ideal (a consciência), se faz depender de uma instância
material, a prática humana (a experiência científica, o experimento). Em todo o caso, como vimos acima a
propósito das “ontologias da práxis”, a questão fundamental é a mesma: Bohr não deixa de negar a
independência da realidade objectiva e da possibilidade das representações humanas a reflectirem na sua
independência. Em suma, a linha, em Bohr, é a da negação da verdade objectiva, de um conteúdo nas
representações humanas que não depende do homem.
O princípio da correspondência, com o significado que Bohr lhe atribui, acaba, assim, por ser
uma expressão das limitações que Bohr coloca quanto à possibilidade de as teorias poderem dar conta dos
fenómenos quânticos, de as teorias poderem reflectir a realidade objectiva com um grau cada vez maior
de aproximação, das limitações que Bohr coloca à progressão do conhecimento. Quando Bohr afirma que
uma comunicação não ambígua só é possível utilizando conceitos clássicos, está a dizer que o
638idem, «Natural Philosophy and Human Cultures» (1939), in ibidem, p.25.639idem, ibidem.640V.I. Lénine, op. cit., p. 92.
conhecimento humano não poderá adaptar ou criar conceitos que constituam um reflexo adequado dos
fenómenos quânticos.
Bohr reconhece correctamente que os nossos conceitos, com o avançar do conhecimento, se irão
revelar limitados. Neste caso, os conceitos clássicos revelam-se limitados, inadequados, para a explicação
dos fenómenos quânticos – o que sempre sucede quando o conhecimento progride. É com esse problema
que Bohr se confrontou. Na base do princípio da correspondência está também o justo reconhecimento de
que, se uma dada teoria contém um conteúdo objectivo, isto é, se é verdadeira (aproximadamente), é
natural que uma nova teoria que a supere conterá a primeira como um caso particular641. Assim, a teoria
quântica conteria a mecânica clássica como caso particular válido para determinado domínio, para
determinadas aproximações. Aqui estão postos o problema da verdade relativa e absoluta e a relatividade
do erro e da verdade que foram abordados em Materialismo e Empiriocriticismo. Como dizia Lénine,
“cada degrau no desenvolvimento da ciência acrescenta novos grãos a esta soma de verdade absoluta, mas
os limites de verdade de cada tese científica são relativos, ora alargados, ora restringidos à medida que
cresce o conhecimento”642.
Mas a consequência daquilo que Bohr defende é a assumpção de que o conhecimento humano
não pode criar os conceitos, as representações adequadas para um reflexo adequado dos fenómenos
quânticos. A descrição daqueles acontecimentos só pode ser feita em termos clássicos (através dos
operadores quânticos). Por um lado, de acordo com Bohr, estaríamos defrontados com a “ambiguidade de
atribuir características físicas habituais [clássicas] aos objectos atómicos”643; por outro lado, só podemos
exprimir aos outros os resultados de uma experiência (marcas numa placa fotográfica, por exemplo), em
termos clássicos. Por um lado, a insuficiência da mecânica clássica, por outro, a impossibilidade de um
reflexo adequado do domínio quântico nas representações humanas dessa realidade. No balanço entre
uma e outra, sobra um “resíduo irracional irredutível”. O princípio da correspondência seria, assim, uma
consequência da não inteligibilidade da essência da realidade objectiva ao nível quântico, obrigando a
teoria a ficar pelos fenómenos (pela sua ordenação, coordenação – “coordenação da experiência”)
descritos classicamente.
Bohr diz que, em particular, “deve compreender-se que – para além da descrição da colocação e
medição do tempo dos instrumentos que formam o arranjo experimental – todo o uso não ambíguo de
conceitos espácio-temporais na descrição dos fenómenos atómicos está confinado ao registo das
observações que se referem a marcas numa placa fotográfica ou a similares efeitos de amplificação
praticamente irreversíveis [...]”644. Significa isto que, no domínio quântico, embora até se possa pôr a
hipótese de as partículas existirem no tempo e no espaço, as nossas teorias não podem dar conta disso.
Bohr refere várias vezes a dificuldade ou impossibilidade do uso de “imagens”. A isto contrapõe a
641Fica também aqui patente a dialecticidade do processo do conhecimento.642Idem, ibidem, p. 101.643N. Bohr, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics
and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 51.
644idem, ibidem.
necessidade do uso de abstracções cada vez mais complexas. A complementaridade teria, assim, resolvido
os paradoxos respeitantes à representação pictorial do comportamento das partículas materiais645. Teria
sido necessário renunciar à representação pictorial dos estados dos objectos atómicos, diz, mas, no
entanto, “a fundação da descrição das condições experimentais, bem como a nossa liberdade de as
escolher, é totalmente mantida”646.
A ciência precisa recorrer, de facto, a abstracções cada vez mais complexas. O que isto não
implica é que essas abstracções não tenham correspondência com a realidade objectiva. Portanto, o
problema que Bohr coloca em relação às imagens não é a questão, justa, de serem necessárias abstracções
cada vez mais complexas para um adequado reflexo da realidade objectiva. Para Bohr, a impossibilidade
de uma representação pictorial decorre, sim, da impossibilidade de uma descrição que tenha em conta a
unidade do real. No entanto, as coisas e os processos não deixam de decorrer num espaço a três
dimensões e num dado tempo, apesar de Bohr determinar impossível tal representação.
O que o problema por trás do princípio da correspondência põe em evidência é que os conceitos
clássicos, sendo verdadeiros dentro de determinados limites, já não são adequados para descrever a
realidade no domínio quântico. Para que a ciência possa progredir é necessário, ao invés de fixar os
mesmos conceitos que se revelam limitados, como Bohr faz, desenvolver as representações no sentido de
elas poderem dar conta – como condição da própria cientificidade – dessa realidade objectiva, na sua
materialidade, o que inclui dar conta da sua unidade e das suas contradições.
***
Ao estudarmos a mecânica quântica observamos um conjunto de contradições de que emergiu e
que levaram ao seu desenvolvimento. Como vimos acima, é no reconhecimento e resolução destes
problemas que o conhecimento faz o seu caminho de progresso, de elaboração de um reflexo cada vez
mais adequado da realidade objectiva. Os físicos foram levados a lidar com formas de movimento da
matéria qualitativamente diferentes que a teoria clássica já não podia explicar. Foram levados a lidar com
o problema da matéria manifestar tanto um comportamento corpuscular como ondulatório, quer se
tratasse de partículas, quer se tratasse de radiação electromagnética.
Esta contradição entre o carácter simultaneamente ondulatório e corpuscular da matéria, o
chamado dualismo onda-corpúsculo, desempenha um papel central na mecânica quântica. Na forma de
lidar com esta contradição, que existe objectivamente na natureza e que, a partir de determinado nível de
desenvolvimento da ciência, se passou a manifestar no conhecer, reside a principal dificuldade da
interpretação bohriana da mecânica quântica.
Bohr depara-se com essas contradições surgidas na ciência, reconhece-as como tal, e é nesse
mesmo plano – ideal, teórico, epistemológico – que as aborda. Uma vez que se revelou difícil, naquela
645idem «Atoms and Human Knowledge» (1955), in ibidem, p. 90. 646idem, ibidem.
fase de desenvolvimento, encontrar, pela ciência, pelo estudo da própria matéria, a resolução dessas
contradições, uma vez que Bohr não concebe a sua solução, vai, então, procurar lidar com essas
contradições não as resolvendo, mas, precisamente, arrumando-as como tal, fixando-as. E, para isso,
precisa introduzir uma nova figura, a complementaridade, que permite lidar com a contradição – que, para
Bohr, é equivalente a erro, é inconcebível, e deve ser removida – garantido que os termos em luta, em
confronto, não se encontram (ao nível do conhecer, no plano ideal). Se não se encontraram, evitámos,
assim, a contradição. É por esta razão que Bohr diz que não podemos combinar numa única “imagem” as
propriedades dos objectos obtidas em diferentes arranjos experimentais. Bohr acabou, assim,
absolutizando a diferença entre onda e corpúsculo, fixando-os como pares opostos, não os encarando
como pertencentes a uma mesma totalidade e, consequentemente, não podendo pôr a questão das suas
inter-relações.
Mas, se Bohr faz isto, é porque não está a ter em conta algo que se verifica em relação ao ser, é
porque está a remover da epistemologia o seu devido fundamento ontológico. No entanto, como diz
Barata-Moura referindo-se à perspectiva marxista sobre o conhecer, “ele [o ser] nunca é um mero
apêndice «metafísico» […]: representa sempre uma dimensão constitutiva do carácter concreto e
objectivo do saber científico, em geral”647. Bohr, em particular, não está a ter em conta a unidade do
mundo. Não a negando directamente, nega a possibilidade de ela ser verdadeiramente apreendida pela
teoria. Colocando-se numa posição não materialista, nega, assim, em geral, a possibilidade de as teorias
científicas reflectirem a realidade objectiva como ela é, na sua unidade, na qual não deixam de se
encontrar, objectivamente, a diferença e a contradição. Engels chamava, como vimos, agnósticos aos
filósofos que adoptavam esta posição de negação da possibilidade de conhecer o mundo, ou, pelo menos,
conhecê-lo completamente. Entre as suas diferenças, dizia Lénine, têm em comum o facto de separarem
por princípio o aparecer daquilo que aparece.
As representações humanas são um reflexo desse mundo na consciência, podem apreendê-lo e
reflecti-lo tal como ele é. Assim, as teorias poderão ser capazes de dar conta dessa realidade objectiva na
sua unidade (unidade essa que, como diz Engels, consiste na sua materialidade)648, pelo que não haveria
necessidade da negação dessa unidade imposta por Bohr ao nível teórico. Mas Bohr nega efectivamente
essa unidade do real na teoria, através do princípio da complementaridade.
Bohr, tal como fizeram outros no passado, separa o fenómeno da essência, da “coisa em si”.
Como consequência, ficamos com uma teoria que se fica pelos fenómenos imediatamente dados – apenas
podemos conhecer os fenómenos – e que, por isso, não lhe resta outro papel que não seja o de ordenar
dados, coordenar experiências. É a condição elementar de cientificidade enquanto procura da conexão
interna dos fenómenos que não é atendida. Como consequência, temos um ser que é tratado teoricamente
como não mais do que a soma das suas determinações, impedidas de se verem apreendidas na totalidade
647J. Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997, p. 103.
648“A unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta não se prova com um par de frases de prestidigitador, mas com um longo e moroso desenvolvimento da filosofia e das ciências da natureza”. F. Engels, Anti-Dühring, cit. por V. I. Lénine, op. cit., p. 131.
em que se inserem. Podemos levar a busca e o estudo até à exaustão de cada uma das determinações – e é
neste sentido que Bohr diz que a introdução da complementaridade não cerceia o avanço do
conhecimento. Mas não passaria do acrescento de mais uma. Porém, aquilo que Bohr não faz é procurar a
tal conexão interna dos fenómenos. Nega a função da ciência como tal.
Mas é precisamente porque Bohr acaba separando a teoria do seu fundamento ontológico (sem o
atendimento do qual a cientificidade não se vê garantida) que pode separar, como faz, onda e corpúsculo
– propriedades de uma mesma matéria que existe simultaneamente no tempo e no espaço. É por isso que
pode desunir em cima (na teoria) aquilo que em baixo (na realidade objectiva) é uno. Fá-lo com o
objectivo de evitar contradições, que são entendidas como um erro, que surgem quando esses dois
aspectos da realidade são postos em contacto (na teoria). É por isso que pode desistir da procura do
fundamento real objectivo a que corresponde a contradição onda-corpúsculo.
Por essa mesma razão, por se separar da teoria do seu fundamento ontológico, por se estabelecer
uma objectividade que é interna à linguagem, que se pode constituir um formalismo que não pretende ser
mais do que um “esquema puramente simbólico” que estabelece relações entre as observações no qual as
quantidades físicas (cinéticas e dinâmicas) são substituídas por símbolos que pouco ou nada pretendem
ter a ver com a realidade física. Ou dito de outra maneira, a teoria deixa de pretender ser reflexo da
realidade material, para ser exclusivamente forma de manipulação puramente simbólica, forma de
coordenação das regularidades, coordenação da experiência e em que esta é entendida como
estabelecimento de conexões “não ambíguas” entre dados das medições. Mais uma vez, não se trata aqui
de negar a necessidade de abstracções no processo do conhecimento – pelo contrário, este é um momento
necessário desse processo – mas trata-se de rejeitar, a partir de um ponto de vista materialista, uma
posição que nega a realidade objectiva como o ponto de partida e referente último do conhecimento
científico.
Lénine, em Materialismo e Empiriocriticismo, nota que muitas das posições dos machistas têm a
pretensão de se elevar acima das duas correntes fundamentais em filosofia, o materialismo e o idealismo.
É interessante notar como também Bohr se insere nesta mesma linha, pensando ser possível colocar-se
acima de um posicionamento face à atribuição do primado ao ser ou à consciência. Bohr julga conseguir
ultrapassar essa oposição fundamental. Quando Bohr afirma que “concepções como realismo e idealismo
não encontram lugar na descrição objectiva tal como a definimos”649 é isso que pretende exprimir.
Pretende consegui-lo através de uma via assente numa espécie de operacionalismo que removeria
ambiguidades na comunicação rumo a uma objectividade que se revela, afinal, uma intersubjectividade.
No entanto, como vimos, as suas posições filosóficas contrariam directa ou indirectamente a atribuição do
primado ao ser face à consciência no que diz respeito às questões gnosiológicas. Como Engels afirma, a
questão da relação entre os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia e este próprio mundo, a
questão de saber se o nosso pensamento é capaz de conhecer o mundo, é um outro aspecto dessa mesma
649N. Bohr, «Unity of Knowledge» (1967), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 79.
questão fundamental. Bohr, como procurei demonstrar, quando aborda os problemas filosóficos do
conhecer, acaba inserindo-se nesta linha de pessoas que negam total ou parcialmente essa possibilidade.
E porque o agnosticismo não é uma linha independente, Bohr, por assumir uma posição não
materialista ao negar a possibilidade da existência de um conteúdo de verdade independente do sujeito, da
humanidade, acaba caindo num idealismo subjectivista. Isso fica visível quando, por exemplo, estabelece
que os fenómenos só são fenómenos para um sujeito, isto é, quando antepõe o sujeito como condição de
possibilidade do fenómeno. Isto é tomar partido quanto à questão fundamental da filosofia. É tomar a
realidade objectiva como dependente do sujeito, é tomá-la como o secundário e o sujeito como primário.
É idealismo.
A este respeito é também particularmente elucidativa a questão da redução instantânea do trem
de ondas para que Croca chamava a atenção650. O posicionamento filosófico de Bohr condu-lo, perante as
efectivas dificuldades teóricas num domínio de investigação em desenvolvimento, a adoptar
interpretações (bizarras) segundo as quais ondas de probabilidade interagiriam fisicamente e que o ente
quântico possuiria simultaneamente todas as propriedades antes do acto da medição (que reuniria em si
todo o conjunto das determinações possíveis) e que seria a medição a conferir atributos determinados ao
objecto.
Marx dizia que “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não
é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a
verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou
não- -realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica”651. É,
portanto, através da prática que os limites definitivos que Bohr diz existirem no conhecimento têm de ser
mostrados (eles sim) limitados, passageiros e passíveis de serem ultrapassados. A este respeito, é
fundamental uma referência aos microscópios por efeito de túnel. Em Towards a Nonlinear Quantum
Physics, José Croca dá um exemplo de uma medida concreta que vai para além das relações de incerteza
de Heisenberg652. Experiências com os microscópios de super-resolução, que funcionam com base no
efeito de túnel, obtiveram resoluções da ordem de Δx=λ/50 ou melhor. Mantendo a mesma incerteza no
momento, Δp, verificada para os microscópios comuns, os produtos das incertezas ficam
x p= 125
h
o que está em clara discrepância, nota Croca, com as relações de incerteza do formalismo ortodoxo por
650Bohr não aborda esta questão directamente nos seus escritos de pendor filosófico, pelo que não tive oportunidade de estudar o tratamento que Bohr, nas suas próprias palavras, dá a este problema do significado da função de onda.
651K. Marx, Teses sobre Feuerbach (1845), in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. I, 1982, p. 1.
652J. Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003, p. 120-128.
um significativo factor de 1/25. O que este resultado evidencia é que as relações de incerteza de
Heisenberg apresentam limites de aplicabilidade e que não são limites definitivos.
III - Conclusões e notas finais
Chegados a este ponto, espero estar respondida uma questão que com elevada probabilidade (e
denunciando estranheza) terá assolado a mente de alguns que, por uma razão ou por outra tomaram
contacto com o tema da presente dissertação: Lénine e mecânica quântica, o que tem Lénine a ver com a
mecânica quântica?
Espero que se tenha tornado evidente que as questões que Lénine levanta e desenvolve em
Materialismo e Empiriocriticismo têm uma relação profunda e actual com os problemas filosóficos da
mecânica quântica e da ciência dos nossos dias. Não só pelas linhas gerais que traça de uma teoria do
conhecimento materialista dialéctica, que se expõe e desenvolve em oposição ao idealismo, mas também
pelo próprio debate de ideias específico que nessa obra decorre: é um debate historicamente localizado, é
certo, mas o que lá se diz acaba por revelar correspondências muito interessantes (e reveladoras) com as
questões presentes no debate filosófico actual em torno da mecânica quântica. É de particular interesse,
tendo em conta a hipótese de que parte a presente dissertação, a análise a que Lénine procede sobre o
“idealismo físico”, isto é, a interpretação e utilização idealistas dos resultados das ciências da natureza do
século passado.
Lénine é defrontado com uma linha filosófica, o empiriocriticismo, uma corrente positivista,
cujos partidários apresentavam contra o materialismo um conjunto de argumentos dados como novos e
modernos. Lénine mostra, então, como aquelas mesmas concepções surgem precisamente em filósofos
consequentemente idealistas, os quais, juntamente com os materialistas, concorrem na definição das
correntes fundamentais em filosofia. Argumentos contra a existência de uma realidade objectiva
independentemente da consciência – como se encontram nos empiriocriticistas, nos “positivistas
modernos” – estão presentes, como mostra Lénine, naqueles mesmos que pretendem defender a
religiosidade e a fé. A corrente agnosticista, cujos argumentos serão também utilizados pelos machistas,
procura situar-se acima da resposta à questão (dando o problema por irresolúvel) da origem das nossas
sensações: se é a consciência (idealismo) ou se é o mundo exterior independente da consciência
(materialismo).
No que diz respeito ao problema da constituição do saber, para o materialismo filosófico, é a
matéria o que se encontra na origem das nossas sensações. A mesma posição adoptam, de uma forma
geral e espontânea, os cientistas, ao considerarem que as suas sensações são originadas pelo meio
exterior.
O empiriocriticismo, por seu turno, assume, nos seus fundamentos, a posição idealista de
considerar que a única coisa que podemos tomar por real são as sensações: estas são o dado primário.
Para Mach e Avenarius, o mundo é a sensação. Ir para além das sensações, é metafísica. Esta posição
conduz ao solipsismo, isto é, à conclusão de que todo o mundo é apenas representação minha. Entre os
filósofos que partilham esta posição, há os que se assumem idealistas e os que se pretendem fazer passar
por materialistas.
Fundando-se em premissas idealistas, o empiriocriticismo não deixará mais tarde de tentar
conciliar-se com as ciências da natureza para o que necessitará de incluir algumas conclusões de cunho
materialista. Essas tentativas traduzem-se, nomeadamente, na introdução da expressão “elementos”
(Mach), nas chamadas séries dependente e independente da experiência ou na coordenação de princípio
(Avenarius). Tanto o idealismo inicial desta doutrina, como o esforço posterior de introduzir elementos
materialistas é reconhecido, como mostra Lénine, por vários autores seus contemporâneos. No entanto,
como evidencia Lénine, trata-se de tentar conciliar o inconciliável (porque ou se assume o ponto de vista
que vai da matéria para a consciência ou que vai da consciência para a matéria).
A sua introdução consiste numa tentativa de resolver alguns dos problemas que decorrem do
facto daquela filosofia apresentar conclusões solipsistas decorrentes das premissas idealistas sobre que
assenta (os corpos são complexos de sensações) e que entram em contradição com as ciências da natureza
que se erigem sobre um materialismo espontâneo, isto é, sobre a assumpção espontânea de que o mundo
existe primária e independentemente de quem o pensa, de que o objecto existe sem o sujeito, de que a
sensação é o resultado da acção da matéria sobre os nossos órgãos dos sentidos (e que a filosofia
materialista coloca conscientemente na sua base).
Um dos momentos em que estas contradições se verificam é quando esta filosofia se defronta
com o facto da existência da natureza antes do homem. Para resolver este problema, Avenarius criará a
solução do “termo central potencial ” para salvar a coordenação indissolúvel entre o Eu e o meio. Esta
solução, segundo Lénine, é de tal forma mística e obscura que deixa as portas abertas ao fideísmo.
Da mesma forma, quando se põe a questão de saber qual a origem do pensamento, a filosofia
empiriocriticista dá uma resposta oposta à das ciências da natureza e da filosofia materialista. O
empiriocriticismo, por via dos seus principais representantes, nega que o cérebro seja o órgão do
pensamento, que o pensamento seja uma função do cérebro. O dualismo entre espírito e corpo é
eliminado (defende-se a ligação indissolúvel entre o Eu e o meio), não de maneira materialista, mas da
maneira idealista, isto é, concedendo a precedência ao pensamento (o objecto não existe sem o sujeito).
Na defesa desta posição, feita também por Avenarius, para além de uma linguagem confusa, professoral e
escolástica, que resulta numa forma de ocultar erros e inconsistências, reencontramos a mesma estratégia
de argumentação: combatendo supostamente o idealismo em defesa de um “realismo ingénuo”, cai-se
novamente no idealismo, facto reconhecido, como Lénine indica, por um conjunto vasto de filósofos de
diferentes tendências.
Mas, como Lénine mostra, estas tentativas, pretendendo colocar-se acima do materialismo e do
idealismo, têm apenas como resultado uma filosofia ecléctica e incoerente que não se liberta do idealismo
subjectivo de que parte e o solipsismo, isto é, o reconhecimento apenas do indivíduo que pensa, é a
consequência inevitável.
A propósito da réplica a Tchernov e a Bazárov, Lénine expõe um conjunto de aspectos
fundamentais da teoria do conhecimento materialista dialéctica, nomeadamente no que concerne a relação
existente entre as nossas representações do mundo e esse mesmo mundo.
Lénine, em acordo com Marx e Engels, afirma a cognoscibilidade do mundo e a prática como o
critério que comprova essa mesma possibilidade. Nega, portanto, quaisquer diferenças de princípio entre
o fenómeno e a “coisa em si” e chama “invenções filosóficas” à imposição de barreiras ou limites
especiais entre um e outro. Afirma o conhecimento como um processo dialéctico, como um processo no
qual da ignorância nasce o conhecimento.
Além disso, esclarece que a verdade objectiva significa a existência dos objectos (isto é,
existência independente da nossa consciência) reflectidos verdadeiramente pelo pensamento. Sublinha
que tomar por idênticos o objecto e as nossas representações desse objecto, isto é, afirmar que “a
representação sensorial é precisamente a realidade que existe fora de nós” é uma posição característica do
idealismo e do agnosticismo. Para os materialistas, as nossas representações são imagens da realidade
existente fora de nós.
Lénine define a verdade objectiva como o conteúdo das representações humanas que não
depende do sujeito. A questão de saber se existe a verdade objectiva não deve ser confundida, por um
lado, com a questão do critério da verdade objectiva – a prática –, nem com a questão de saber se a
verdade objectiva pode ser expressa integralmente ou apenas de forma aproximada – esta é a importante
questão da relação entre a verdade absoluta (expressão da verdade objectiva que é absoluta, integral,
incondicional) e da verdade relativa (expressão da verdade objectiva que é apenas relativa, aproximada).
Lénine mostra que a definição da verdade como forma organizadora da experiência humana
corresponde à negação de um conteúdo de verdade independente do sujeito e, consequentemente, à
negação da verdade objectiva. A negação da verdade objectiva conduz, por sua vez, ao fideísmo, isto é,
abre as portas a todas as formas místicas e religiosas como “verdadeiras” pois também elas são
experiências sociais organizadas.
As sensações são a fonte do nosso conhecimento. Para os materialistas, é a realidade objectiva a
fonte das nossas sensações. As nossas representações são o reflexo da realidade objectiva impressa nos
nossos órgãos dos sentidos. Os agnósticos declaram impossível saber se existe uma realidade objectiva
como fonte das nossas sensações ou declaram-na incognoscível: negam, assim, a verdade objectiva.
Os fundamentos do empiriocriticismo, que é uma mistura ecléctica de subjectivismo e de
agnosticismo, conduzem àquele tipo de conclusões de espírito clericalista: a definição dos corpos como
complexos de sensações (subjectivismo puro) exclui a realidade objectiva (a realidade existente
independentemente do sujeito sensível) e, consequentemente, a verdade objectiva.
Lénine define o conceito de matéria como uma categoria filosófica que designa a realidade
objectiva que existe independentemente do sujeito e que é dada ao homem através das suas sensações.
Esta categoria filosófica não deve ser confundida, como fazem os machistas, com a modificação do nosso
conhecimento acerca de uma ou outra propriedade da matéria. A discussão em torno da aceitação ou
rejeição do conceito de matéria remonta ao início da filosofia e não pode envelhecer, diz Lénine, pois esta
é a questão das fontes do nosso conhecimento. A aceitação do conceito de matéria significa a aceitação da
realidade objectiva. Considerar as nossas sensações como imagens dessa realidade objectiva significa a
aceitação da verdade objectiva. E isto é situar-se no ponto de vista da teoria materialista do conhecimento.
Os representantes do empiriocriticismo, do positivismo moderno, negam o conceito de matéria
como a realidade objectiva independente do sujeito e por ele reflectida nas suas sensações. Partem
precisamente da linha oposta ao materialismo definindo a matéria em função das sensações, do Eu, do
“termo central”. Ou seja, não a tomam como o dado primário, mas sim secundário, revelando assim a sua
tendência idealista.
O problema da verdade é uma das questões filosóficas mais importantes. Vimos que Lénine
sublinha que o materialismo reconhece a verdade objectiva, isto é, um conteúdo nas representações
humanas que não depende do sujeito. A questão subsequente de saber se o pensamento humano é capaz
de exprimir essa verdade objectiva de forma absoluta ou relativa só é resolúvel dialecticamente, tal como
o é, consequentemente, a relação entre a verdade e o erro.
De um ponto de vista materialista dialéctico, o pensamento humano é ilimitado pela sua natureza
e limitado pela sua realização individual e pela realidade num dado momento. Esta contradição é apenas
resolúvel numa série de gerações humanas praticamente infindável (Engels). O conhecimento humano
nunca esgota o objecto, da mesma forma que apenas de forma aproximada o quadro “coincide” com o
modelo. (Dietzgen). Mas, para os materialistas dialécticos, a verdade absoluta existe e compõe-se da
soma de verdades relativas e é indiscutível que nos aproximamos dela. Aqui se traça a diferença entre a
dialéctica e o relativismo o qual defende que todos os nossos conhecimentos são relativos e nega a
existência de um modelo objectivo do qual os nossos conhecimentos relativos são reflexo. Reconhecer a
verdade objectiva implica reconhecer a verdade absoluta. Esta é uma posição materialista. Não o fazer,
adoptando uma posição relativista, implica cair no agnosticismo ou no subjectivismo.
O materialismo coloca a prática na base da teoria do conhecimento. Para isto chama Lénine a
atenção. É o critério da prática que permite distinguir as ilusões da verdade objectiva. Lénine recorda as
palavras de Marx segundo as quais “colocar fora da prática a questão de saber «se ao pensamento humano
pertence a verdade objectiva» é escolástica”. Mas a prática, acrescenta Lénine, não pode confirmar nem
refutar completamente uma representação: este critério é suficientemente indeterminado para impedir a
transformação do conhecimento num dogma e suficientemente determinado para refutar as posições
idealistas e agnósticas.
O idealismo e o agnosticismo – que são obrigados a admitir que, na sua prática, os homens
assumem uma posição materialista – procuram, então, separar e remover a prática da teoria do
conhecimento. (Mas tal filosofia assim construída, separada da prática, é uma “especulação morta”,
“falsa”). Com esta separação, abre-se, consequentemente, caminho à identificação (tal como Mach faz) da
verdade objectiva com as ilusões.
Da mesma forma, a questão da “utilidade” ou do “êxito” dos nossos conhecimentos não pode ser
separada da verdade objectiva – como o fazem as correntes não materialistas – pois o conhecimento só é
efectivamente útil na medida em que reflecte essa mesma verdade objectiva.
A questão da causalidade e da necessidade é reconhecida por Lénine como uma questão
fundamental, importante para a definição de uma linha filosófica.
Para os materialistas, a causalidade é objectiva, isto é, existe e pertence ao domínio dos próprios
processos da natureza e que a consciência humana – como parte (ínfima) da natureza que é – é capaz de
apreender e reflectir com exactidão aproximada. O reconhecimento da causalidade objectiva está, para os
materialistas, intimamente ligado ao reconhecimento da realidade objectiva.
Em sentido oposto, para os idealistas não existe causalidade objectiva, isto é, não é na própria
natureza que podem ser encontradas as conexões causais, mas é o pensamento humano, a consciência,
que confere ordem à torrente dos fenómenos, caóticos em si mesmos. Esta posição decorre da atribuição
idealista do primado, na relação entre ser e consciência, a esta última. Tal linha filosófica subjectivista
que deduz a ordem da natureza da razão acaba por conduzir ao fideísmo, mais ou menos atenuado.
Os empiriocriticistas Mach e Avenarius (entre outros filósofos) adoptam esta linha filosófica na
questão da causalidade considerando a necessidade como grau de probabilidade com que se esperam os
efeitos (Avenarius) ou considerando que a única necessidade existente é lógica (Mach), para dar alguns
exemplos. Entre os filósofos que perseguem esta mesma linha na questão da causalidade encontram-se
Pearson (para quem a necessidade se encontra no mundo dos conceitos), Petzoldt (com a exigência
apriorítica de univocidade), Willy (que defende a necessidade como característica puramente lógica,
verbal), Poincaré (para quem as leis da natureza são convenções criadas pelo homem por comodidade),
etc. Em todas estas posições é possível encontrar afinidades com a linha de Hume e de Kant, umas vezes
expressamente admitidas pelos próprios autores, outras pelos partidários daquelas mesmas linhas. Mas
independentemente das diferentes variantes e afinidades de cada uma destas posições, o que é importante,
considera Lénine, é o estabelecimento daquilo que elas têm em comum entre si e que é a negação da
causalidade objectiva.
De um ponto de vista materialista não metafísico, isto é, dialéctico, é importante considerar a
relação, dialéctica, entre causa e efeito que Engels aborda no Anti-Dühring: causa e efeito são
representações que só têm significado como tais se aplicados a um caso particular; quando considerada a
conexão geral estas representações mudam constantemente de posição.
Lénine também se debruça sobre a problemática associada ao tempo e ao espaço. Para os
materialistas, o tempo e o espaço existem objectivamente, isto é, a sua existência não depende da
humanidade, não depende da consciência. Não são apenas conceitos. É claro que a humanidade formula
os seus conceitos de espaço e de tempo e que estes, tal como o conhecimento em geral, estão em
permanente modificação e progressão e reflectem uma realidade objectiva. Ora, o facto dos conceitos de
espaço e de tempo se modificarem com o avanço do conhecimento não refuta de forma alguma a sua
existência objectiva. Essa modificação nos conceitos não autoriza, do ponto de vista do materialismo,
nenhuma perspectiva relativista sobre o tempo e o espaço.
Opinião contrária têm correntes idealistas e agnósticas que se caracterizam por posições como
tomarem o tempo e o espaço como sistemas ordenados de séries de sensações (Mach); por considerarem
que o tempo e o espaço são dados pelo homem à natureza por razões de comodidade (Poincaré); que estes
não têm existência real, que não se encontram nas coisas, mas na maneira de os homens as perceberem
(Pearson); que são formas de coordenação social da experiência de várias pessoas (Bogdánov).
Assim, como resume Lénine, o problema gnosiológico fundamental consiste em saber se o
espaço e o tempo são reais ou ideais.
Mach procura bater-se contra o idealismo franco e aberto quando este retira conclusões
explicitamente fideístas (veja-se se o exemplo da tentativa de exploração fideísta do espaço de quatro
dimensões). Mas quando o espaço e o tempo não são entendidos materialistamente, isto é, como
objectivamente existentes, deixa-se, inevitavelmente, a porta aberta a tais conclusões.
Lénine, perante empiriocriticistas que procuraram acolher a solução materialista dialéctica da
liberdade e da necessidade, mostra como esta solução desta questão é inseparável das premissas
materialistas dialécticas sobre que assenta, pelo que, acolhê-la e fazê-la conviver com teses agnósticas e
idealistas é mais um sinal do eclectismo e incoerência dos machistas.
Ao fazê-lo, traz à luz a relação dialéctica entre a liberdade e a necessidade, a concepção da
liberdade como conhecimento da necessidade (em que a necessidade é colocada como o primário e a
vontade como o secundário), a existência da “necessidade cega” que se transforma em necessidade
conhecida tal como a “coisa em si” se transforma em “coisa para nós”, e a concepção de uma teoria do
conhecimento na qual a prática humana irrompe e é critério objectivo de verdade.
Lénine analisa também o empiriocriticismo em relação com as outras correntes filosóficas.
Mais do que explorar as diferenças entre diferentes agnósticos, entre diferentes positivistas, interessa
perceber o que entre eles há de comum, perceber a divergência fundamental com o materialismo.
Na crítica ao kantismo, observar de que lado os empiriocriticistas se posicionaram é revelador.
Enquanto os materialistas criticam Kant pelo seu idealismo, pelo estabelecimento de uma diferença
fundamental ente o fenómeno e a coisa em si, pela dedução da causalidade das leis apriorísticas do
pensamento, os empiriocriticistas criticam Kant pelas suas concessões ao materialismo, isto é, por não ter
depurado a experiência suficientemente (Avenarius), no fundo, por ter ainda admitido a substância. Mach
e Avenarius seguiram a linha filosófica que criticou Kant do ponto de vista humista e berkeleyano.
Lénine revela também o apreço mútuo demonstrado entre empiriocriticistas e imanentistas e a
convergência de posições. Mostra como Mach e Avenarius apreciam e são apreciados por filósofos que
defendem a imortalidade da alma e que combatem a “fé cega na infabilidade das ciências da natureza”
pugnando por uma “melhor entrada para a morada da verdade”.
A observação do sentido do desenvolvimento da corrente empiriocriticista, mais do que longos
raciocínios, ajudará a resolver a questão fundamental da natureza desta filosofia, dizia Lénine. Lénine
mostra, então, como os discípulos desta corrente, tomando as suas premissas fundamentais, desembarcam
em posições reconhecidamente idealistas, facto que os machistas russos como Bogdánov têm dificuldade
em reconhecer. Bogdánov é o exemplo de como é possível ocultar posições idealistas sob roupagens e
pretensões materialistas. Lénine mostra como a “experiência socialmente organizada” de Bogdánov é
uma porta aberta ao clericalismo.
Lénine critica, de um ponto de vista materialista, a teoria dos símbolos de Helmholtz. E mostra,
mais uma vez, como os empiriocriticista fizeram a crítica a Helmholtz – que vacilava entre uma postura
materialista e idealista – pelo lado oposto e de mãos dadas com os imanentistas. Mostra como a teoria dos
símbolos introduz um elemento desnecessário de agnosticismo: enquanto que a imagem, não sendo igual
ao modelo, pressupõe a realidade objectiva daquilo que se reflecte, o símbolo é tão-só um sinal
convencional. O empiriocriticista Kleinpeter, por seu turno, protestava com Helmholtz por este pressupor
a existência de objectos do mundo exterior, por ter, diz, uma “compreensão errada das palavras massa,
força, etc.” pois “isto são apenas conceitos, produtos da nossa fantasia, e de modo nenhum realidades
existentes fora do pensamento”.
A crítica a Dühring e a Dietzgen revela, não só os mesmos dois lados opostos dessa mesma
crítica, mas também a deturpação do marxismo feita por alguns machistas. A este respeito, Lénine
sublinha que Marx e Engels “sempre condenaram o mau materialismo (e, principalmente, o
antidialéctico), mas condenaram-no do ponto de vista de um materialismo mais elevado, mais
desenvolvido, do materialismo dialéctico, e não do ponto de vista do humismo ou do berkeleyanismo”653.
Lénine analisa a essência da “crise na física” que se enfrentava no início do século XX. Tal crise decorria
de novas descobertas científicas que abalavam os princípios fundamentais da física. As leis da mecânica já não se
podiam aplicar a todos os fenómenos da física agora conhecidos. Dessas novas descobertas e do abalo das leis
fundamentais foram retiradas conclusões gnosiológicas. As tendências idealistas em filosofia aproveitaram esta
situação para rejeitar a ciência como a via para o conhecimento da realidade objectiva defendendo o seu carácter
653V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p.181.
meramente instrumental, meramente simbólico. Lénine estabelece a ligação entre uma determinada escola da nova
física e o renascimento do idealismo filosófico. Os físicos organizaram-se em diferentes escolas de acordo com as
suas tendências gnosiológicas (traduzindo duas linhas filosóficas fundamentais opostas). Lénine mostra como, de um
lado, se encontravam cientistas que se procuravam ater ao reconhecimento da existência da realidade objectiva e à
possibilidade de as suas teorias científicas constituírem uma aproximação a um conhecimento cada vez mais
profundo dessa realidade (isto é, que se mantinham num ponto de vista materialista espontâneo) e, de outro lado, se
encontravam cientistas que, perante a impossibilidade de as teorias reflectirem, de forma definitiva, o nosso
conhecimento sobre a realidade objectiva, negavam a possibilidade de alcançar qualquer conhecimento sobre essa
realidade objectiva. Sobre tais conclusões idealistas retiradas da nova física apoiou-se o fideísmo.
Sob a ideia do “desaparecimento da matéria” - que significa apenas que desapareceu o limite até
ao qual a estrutura da matéria era conhecida – as tendências idealistas atacaram o materialismo fazendo
uso da confusão entre a existência da matéria – a realidade objectiva independente da consciência – e o
nosso conhecimento sobre ela.
Muitos cientistas retiraram conclusões idealistas porque não conheciam a dialéctica e, em particular, a
relação entre a verdade absoluta e a verdade relativa; abandonaram uma postura materialista (ainda que pudesse ser
espontânea) porque identificavam o materialismo com o materialismo metafísico, não dialéctico, cujas limitações se
lhes tornaram evidentes. Ao combaterem o materialismo metafísico, abandonaram o materialismo; ao negar a
imutabilidade das propriedades da matéria conhecidas até então, negaram a matéria; ao negar o carácter absoluto das
leis mais importantes, negaram a existência de qualquer lei objectiva na natureza e na afirmação das leis como
“necessidades lógicas”; ao insistirem no carácter relativo e aproximativo do nosso conhecimento, caíram na negação
do objecto independente do conhecimento reflectido de forma relativamente verdadeira pelo nosso conhecimento.
Lénine resume da seguinte forma: “A essência da crise da física contemporânea consiste na destruição das velhas leis
e princípios fundamentais, na rejeição da realidade objectiva fora da consciência, isto é, na substituição do
materialismo pelo idealismo e pelo agnosticismo”654.
Essa crise da física traduz-se, no concreto, explicita Lénine, numa tentativa de conceber o
movimento sem a matéria: nega-se a matéria sem se negar o movimento. Separar o movimento da matéria
equivale a separar o pensamento da matéria: se se admite o movimento sem a matéria, admite-se o
movimento das representações, das sensações, etc. sem a matéria, logo admite-se o pensamento sem
matéria, o que é uma conclusão idealista. Para os materialistas, o mundo é matéria em movimento e o
movimento das nossas representações corresponde ao movimento da realidade objectiva, da matéria.
Lénine dá a teoria energética de Ostwald como um exemplo de uma concepção com a qual se
procura fazer esta separação do movimento da matéria: procura-se conceber a energia – entendida como
movimento – sem um “veículo”. Ostwald manteve muitas vezes um ponto de vista materialista
entendendo a energia como movimento material. Mas foi-o de forma inconsequente, procurando até unir
os conceitos de matéria e espírito sob o conceito de energia sem se dar conta que tal supressão verbal não
eliminaria a verdadeira contradição gnosiológica entre matéria e espírito, nem as correntes e questões
filosóficas fundamentais. O machista Bogdánov critica Ostwald por não manter sempre a concepção de
654idem, ibidem, p. 196.
energia com carácter “puramente metodológico” desviando-se para concepção da energia como “matéria
do mundo”, ou noutras palavras, por se desviar do idealismo para o materialismo. Bogdánov é, assim, o
próprio exemplo de como a inconsequência de Ostwald pôde ser aproveitada pelas tendências idealistas
que consideram a energia (e a ciência) “puro símbolo”.
Lénine estuda, então, a expressão que as duas correntes da física contemporânea têm na literatura de
diversos países, dando a palavra a cientistas e filósofos ingleses, franceses, alemães e russos. Dessa análise é possível
concluir que o debate filosófico se faz, independentemente de nuances próprias, sobre os mesmos problemas
fundamentais e que, efectivamente, se dá em torno de duas posições gnosiológicas fundamentais, facto que os
interventores no debate – para além de questões terminológicas – reconhecem.
De um lado, estão aqueles que, perante as novas descobertas e as novas teorias, entendem a
teoria como um conhecimento sobre o objecto, como uma aproximação à realidade objectiva. Estes
assumem, em geral e não sem algumas imprecisões, uma posição materialista, mais ou menos espontânea,
mais ou menos “envergonhada”. O inglês Rücker, por exemplo, considera que a teoria como ficção
cómoda não pode ser a última palavra da ciência na luta pela verdade e que dos fenómenos podemos tirar
conclusões sobre a estrutura da própria matéria. O alemão Hertz considera o modo de expressão
energético uma forma de falar sobre uma matéria que é ponderável e que conhecemos mas ainda de forma
insuficiente e o alemão Boltzmann considera a teoria uma imagem da natureza e combate as tentativas de
desenhar um quadro subjectivo do mundo. Em França, deparamo-nos com o positivista Rey a procurar, de
forma forçada, defender conclusões que são materialistas (experiência como conhecimento do objecto,
por exemplo) a partir da doutrina machista: mas o resultado de conciliar o inconciliável é uma
“embrulhada”, diz Lénine.
De outro lado, estão os que, perante a modificação do conhecimento sobre a estrutura da matéria, negam a
matéria, introduzem o movimento separado da matéria; perante a impossibilidade da existência de teorias científicas
definitivas e acabadas, negam a possibilidade de as teorias científicas serem um reflexo da realidade objectiva e
procuram edificar uma ciência que não é conhecimento da natureza, mas apenas um sistema cómodo, simbólico de
ordenar os fenómenos sem necessária correspondência com a realidade objectiva. Como Lénine mostra, tais posições
gnosiológicas que procuram fazer caminho através da nova física, são o espaço fértil para conclusões fideístas: a
ciência, já que não pode corresponder a um conhecimento da realidade objectiva, tem, então, o mesmo valor que
outros conhecimentos, como, digamos, o religioso. Como exemplo, Lénine cita o espiritualista inglês Ward que
arranca todos os véus à questão em debate, que claramente afirma que não se chega a Deus através de um mero
mecanicismo e que valoriza a “nova física” como o meio mais poderoso contra a fé ignorante na matéria. Na
Alemanha, Cohen reconhece que o idealismo já impregna a nova física esperando que venha a derrotar
definitivamente o materialismo dos naturalistas e Hartmann explica acertadamente aos físicos que – tendo eles
tomado os electrões como hipótese de trabalho – é então necessário que, consequentemente, abandonem também o
entendimento da existência do tempo, do espaço, da causalidade e das leis da natureza como realidades existentes
objectivamente. Em França, observamos Poincaré, para quem as verdades da ciência são convenções, símbolos, a
recorrer a posições materialistas para se defender das conclusões fideístas que Le Roy pôde retirar daquelas
premissas. Lénine evidencia, assim, que só o materialismo franco e consequente pode dar combate a tais conclusões.
Também na Rússia podemos encontrar o filósofo idealista Lopátine a elogiar o físico Chíchkine por se demarcar dos
seus contemporâneos ao tomar as diferentes formas de considerar a luz simplesmente como diferentes métodos de
organização da experiência.
Lénine usou a expressão idealismo “físico” para designar o idealismo presente nas interpretações de certos
resultados da ciência feitas por uma determinada escola de físicos.
Como causas para o surgimento de tal idealismo, Lénine aponta: 1) O “desaparecimento da
matéria”, isto é, uma tentativa de conceber o movimento sem a matéria, de retirar a matéria, os
“elementos físicos” (nas palavras de Rey), das equações subsistindo estas apenas enquanto relações
formais. Esta é uma ideia que conduz à velha ideia kantiana segundo a qual a razão dita leis à natureza. 2)
O relativismo, isto é, o princípio da relatividade do nosso conhecimento, que conduz inevitavelmente ao
idealismo quando não se conhece a dialéctica. A incompreensão da dialéctica e, no concreto, da relação
entre a verdade relativa e absoluta, leva a que, do reconhecimento da relatividade dos nossos
conhecimentos, se conclua a inexistência de verdade objectiva.
A crise da física contemporânea consiste, portanto, em que ela deixou de reconhecer
decididamente o valor objectivo das suas teorias.
Lénine mostra que se está presente uma corrente ideológica internacional. É falsa a pretensão de
alguns em considerar o machismo como a moderna filosofia das ciências da natureza porque ela está
ligada a apenas a um ramo das ciências e, sobretudo, porque aquilo que no machismo está ligado a esta
escola da física não é o que ele tem de específico, mas o que tem de comum com todo o idealismo
filosófico. Assim, a ideia fundamental desta escola da física é a negação ou dúvida da existência da
realidade objectiva que nos é dada nas sensações e reflectida pela teoria. É significativo notar que são os
imanentistas, os neocriticistas, os espiritualistas, etc., que se esforçam por a fundamentar
gnosiologicamente e desenvolver.
O idealismo físico (tal, como no passado, o idealismo fisiológico), diz Lénine, é o resultado de
uma escola de naturalistas de um ramo das ciências não ter sabido elevar-se directamente do materialismo
metafísico ao materialismo dialéctico.
***
Ao analisar os textos de Bohr em que este grande físico – uma das principais, se não a principal
figura da mecânica quântica – expõe as suas posições epistemológicas, procurei situá-las quanto à questão
fundamental da filosofia. Isto é, procurei compreender qual a posição de Bohr quanto à relação entre o ser
e o pensar. A obra de Lénine Materialismo e Empiriocriticismo é uma demonstração de como não é
possível ser-se neutro em relação a esta questão: ou se considera o primado da natureza e a consciência
como o secundário, como uma propriedade da matéria altamente organizada, ou se considera o primado
da consciência e se deduz dela a natureza. Lénine mostra nesta obra como é possível assumir posições
idealistas expressas e consequentes, mas também como é possível dissimular o idealismo fundamental
sob novas terminologias e até sob intentos declarados de materialismo. Vimos igualmente como a questão
de saber qual a relação entre os nossos pensamentos sobre o mundo que nos rodeia e este mesmo mundo –
enfim, a questão da cognoscibilidade do mundo, da verdade objectiva – é um outro aspecto daquela
mesma questão fundamental da relação entre o ser e o pensar. A obra de Lénine é por isso muito
importante para analisar as posições de Bohr quanto a esta questão.
Assim, no que diz respeito ao problema da constituição do saber, a posição de Bohr leva a que
não considere a matéria como o dado primário. Institui, em vez disso, uma correlação entre objecto
quântico e instrumento de medida para além da qual não se pode ir. Diferentemente dos empiriocriticistas,
não se trata directamente de estabelecer essa correlação ao nível da sensação, da experiência subjectiva,
na medida em que a interacção entre o ente quântico e o instrumento de medida é uma interacção
material. No entanto, não deixa inegavelmente de estabelecer como instância originária do conhecer uma
correlação que, em última análise, depende do sujeito. Na verdade, na mecânica quântica, de acordo com
a interpretação bohriana, não se poderia falar da (não se pode conhecer a) existência de entes quânticos
para além da sua interacção com os instrumentos de medida. Esta é uma posição agnóstica. Posto de
forma mais sofisticada, é o mesmo problema a que Lénine aludia do conhecimento sobre a natureza antes
da existência do homem.
Lénine mostra como as posições de Mach e Avenarius conduzem ao solipsismo. No caso de
Bohr, o mesmo subjectivismo não deixa de estar presente pelo facto de se transformar num inter-
subjectivismo. Consequentemente, Bohr, que assume não estabelecer irrevogavelmente a matéria, a
realidade objectiva que não depende do sujeito, como o dado primário do conhecer, é, então, conduzido a
definir a “objectividade” no seio da própria linguagem, reduzindo-a a um problema de comunicação. A
objectividade é garantida pela não ambiguidade na comunicação. Aqui entra o problema da verdade. Bohr
nega, assim, a verdade objectiva. Se a objectividade é interior à linguagem, então nela não tem lugar a
realidade objectiva que não se vê reflectida nas representações humanas.
Ora, Bohr, tendo aceite aquelas premissas, desemboca exactamente nas conclusões partilhadas
pelos empiriocriticistas. Assim, Bohr acaba definindo a ciência como o desenvolvimento de “métodos
para ordenar a experiência comum” (tal como Bogdánov). E, como mostrou Lénine, se a verdade
objectiva não tem lugar nas teorias científicas, quer dizer que também são uma verdade as doutrinas
religiosas pois não há dúvida de que estas também são formas de organização da experiência humana
comum. As premissas de Bohr resultam, quer ele queira quer não, no mais profundo idealismo.
Em Bohr, tal como nas tendências agnósticas que Lénine combatia, verifica-se uma separação de
princípio entre o fenómeno e a essência. Bohr introduz essa separação quando, por exemplo, diz que só
podemos conhecer as marcas deixadas numa placa fotográfica. Estabelece, assim, limites ao
conhecimento, razão pela qual afirma a indivisibilidade dos fenómenos quânticos. Defende que só
podemos conhecer em termos clássicos e que o quantum de acção e a vida teriam de ser considerados
como factos elementares. Contra estas pretensões ao estabelecimento de limites últimos para o
conhecimento, os materialistas apresentam o critério da prática como refutação. A prática demonstra
também no domínio da física quântica que tais limites definitivos não existem.
Também na questão da causalidade Bohr se coloca de um ponto de vista oposto ao materialista.
Rejeitando a aplicação da causalidade válida no domínio da mecânica clássica ao domínio quântico,
rejeita a possibilidade de o conhecimento dar conta de qualquer tipo de causalidade. De acordo com Bohr,
há apenas espaço para a noção de probabilidade. Ora, este tese de Bohr equivale a estabelecer limites
definitivos ao conhecimento, a dizer que as teorias não podem, a partir de determinado limite, dar conta
das relações causais objectivas sobre cuja existência ou inexistência Bohr não se pronuncia directamente.
Ela equivale a dizer que, a partir de determinado limite, não podemos conhecer a necessidade: será
sempre uma “necessidade cega”.
O entendimento de Bohr sobre o formalismo quântico, como “esquema puramente simbólico”
encontra linhas de correspondência com a “teoria dos símbolos” criticada por Lénine: padece do mesmo
convencionalismo. E enquanto o empiriocriticista Kleinpeter acha que as palavras massa, força, etc. são
apenas conceitos, produtos da nossa fantasia, e de modo nenhum realidades existentes fora do
pensamento, Bohr, de forma semelhante, considera que a interacção incontrolável entre objecto quântico
e instrumento de medida conduz a uma “revisão radical da nossa atitude em relação ao problema da
realidade física”655 e que “uma frase como «não podemos conhecer o momento e a posição de um objecto
atómico» levanta questões quanto à realidade física de tais dois atributos do objecto as quais podem
apenas ser respondidas por referência às condições para um uso não ambíguo dos conceitos espácio-
temporais, por um lado, e às leis de conservação dinâmicas, por outro”656. O agnosticismo de Bohr leva-o
a duvidar da existência da realidade objectiva.
Vimos, assim, que as posições epistemológicas de Bohr não se separam de posições ontológicas.
Marcadas num primeiro momento por um agnosticismo, elas derivam para posições idealistas.
Lénine reconhecia de que modo o desconhecimento da dialéctica podia conduzir à negação da
verdade objectiva. E, de facto, em Bohr, a não devida consideração da dialéctica têm o seu enfoque no
tratamento incorrecto (não materialista dialéctico) que dá à contradição. Esta é, considero, uma questão
central no problema da interpretação idealista da mecânica quântica. Questão que, como vimos, levou
Bohr a absolutizar e a fixar (sem a resolver) a contradição entre onda e corpúsculo. Tendo despedido a
realidade objectiva da teoria, não considerou o mundo na sua unidade nem o carácter objectivo da
contradição que se lhe deparava. Não considerou o objecto quântico como parte de uma totalidade e, por
isso, a posição da questão das relações entre onda e corpúsculo ficou-lhe muito mais distante ou mesmo
ausente. Essas relações apareceram-lhe como insondáveis.
Lénine referiu como uma causa para o idealismo físico o “desaparecimento da matéria”, uma
tentativa de conceber o movimento sem a matéria, de retirar a matéria das equações subsistindo estas
655Niels Bohr, «Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be Considered Complete?», in Physical Review, Vol. 48 (Oct.1935), p. 697.
656idem, «Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics» (1949), in Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Dover Publications Inc, 2010 (republicação integral de Atomic Physics and Human Knowledge, New York, Science Editions Inc., 1961), p. 40.
apenas enquanto relações formais. Salvaguardando as devidas distâncias e sem querer estabelecer
comparações forçadas, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo uma reedição das mesmas soluções,
reconhecendo a mesma linha, o mesmo traço fundamental comum, julgo poder dizer que a interpretação
bohriana da mecânica quântica também procede a essa desmaterialização. As ondas de probabilidade são
uma forma de conceber o movimento sem a matéria. O formalismo quântico, entendido como esquema
puramente simbólico, faz com que restem apenas as relações formais (Lénine dizia que esta é uma ideia
que conduz à velha ideia kantiana segundo a qual a razão dita leis à natureza). A teoria científica passa a
ser uma forma de ordenar a experiência humana, de ordenar fenómenos que têm o sujeito como condição
de possibilidade. A realidade objectiva deixa de se ver reflectida pelas teorias. A conexão interna dos
fenómenos deixa de ser procurada. A verdade objectiva é negada quando a “objectividade” é interna à
linguagem. São, finalmente, as próprias condições de cientificidade que não são atendidas.
***
Lénine mostrou como, também na ciência e, em particular, na física do seu tempo, as duas linhas
fundamentais em filosofia se opõem. Na mecânica quântica assistimos hoje a interpretações em
confronto. Por um lado, a interpretação bohriana (ou da escola de Copenhaga) com os traços agnósticos e
idealistas que foram agora analisados. Esta interpretação é a actualmente aceite (e ensinada nas escolas),
pelo menos de um ponto de vista operacional, muito embora os seus supostos não sejam sempre
assumidos, partilhados ou revelados. Por outro lado, há outros programas de investigação, nomeadamente
o programa de investigação de De Broglie, na linha do qual se encontram os desenvolvimentos propostos
por José Croca, Rui Moreira e outros investigadores. Não cabe aqui estudar o programa de De Broglie
nem os seus desenvolvimentos actuais. Porém, na medida em que parti da hipótese de que na mecânica
quântica se assiste ao confronto fundamental a que Lénine se referia, à luta mais fundamental entre o
materialismo e o idealismo na ciência, uns últimos breves apontamentos são devidos sobre esta linha de
investigação (a cuja crítica materialista também tem vantagem proceder) com o objectivo de indicar os
seus principais intentos e fundamentos.
Esta linha de investigação assume-se directa e explicitamente em oposição à interpretação de
Copenhaga. Pretende desenvolver-se na base do reconhecimento (mais do que espontâneo:
conscientemente assumido) da realidade objectiva e da possibilidade de as teorias científicas a reflectirem
combatendo directamente o estabelecimento de limites definitivos para o conhecimento, combatendo o
entendimento da ciência num sentido instrumentalista e defendendo uma teoria que seja causal.
Este ponto de partida, conduziu a uma proposta que parte da hipótese de que o ente quântico é
constituído por uma parte ondulatória extensa e por uma parte corpuscular (uma singularidade designada
ácron)657. Põe a hipótese de o ente quântico exibir uma estrutura complexa.
657Ver, por exemplo, J. Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003.
Muito brevemente, abordemos os principais argumentos desta proposta. Na base da estrutura
conceptual e formal da mecânica quântica ortodoxa está a análise de Fourier. A análise de Fourier assenta
em ondas que se estendem infinitamente por todo o tempo e espaço e é dela que decorrem as relações de
incerteza de Heisenberg. Como J. Araújo e J. Cordovil chamam a atenção, “uma crítica severa que
pretenda clarificar alguns dos paradoxos da Teoria Quântica Ortodoxa, e até propor uma superação dos
limites por ela impostos, deve ter como alvo essas edificações, deve ter como foco principal o paradigma
Bohr-Fourier”658. A interpretação bohriana das relações de incerteza como expressão matemática da
complementaridade, como a prova da existência de limites definitivos para o conhecimento, é o caso a
que Lénine aludia de termos a razão a ditar leis à natureza. As propostas actuais inseridas no programa de
investigação de De Broglie assentam na análise de onduletas que não têm uma existência infinita, são
localizadas. A partir daqui, foi possível deduzir relações de incerteza mais gerais, que incluem as relações
de Heisenberg como um caso particular.
Com aquele modelo mais complexo de partícula quântica é possível explicar de outra forma a
experiência da dupla fenda659: quando a partícula quântica atinge o ecrã com as duas fendas
1) a onda extensa (que é maior do que a distância entre as duas fendas) atravessa ambas as
fendas ao mesmo tempo dando origem a duas ondas coerentes e
2) a singularidade passa por uma ou por outra fenda.
Em tais condições, só um dos dois detectores colocados em frente de cada fenda será accionado
de cada vez. Nunca ambos ao mesmo tempo. Esta é uma consequência da natureza da partícula quântica:
apenas a singularidade tem energia suficiente para dar origem ao processo quadrático comum de detecção
e as duas pequenas ondas que entram nos detectores ao mesmo tempo não têm energia suficiente para os
accionar. Se os detectores são removidos da frente das fendas, as duas ondas progridem interferindo e
dando origem a uma onda composta na região de detecção onde um array de detectores está colocado. A
658João Araújo, João Luís Cordovil, «Uma crítica à Teoria Quântica Ortodoxa a partir da Análise de Onduletas», in Razão Activa, Boletim da Fundação Internacional Racionalista, Out. 2009, p. 59-67.
659Cf. José Croca, Towards a Nonlinear Quantum Physics, New Jersey/London/Singapore/HongKong, World Scientific, 2003, p. 133-135.
singularidade segue uma ou outra onda (seguindo preferencialmente os pontos de maior energia). Após
um número suficiente de chegadas de partículas individuais um padrão de interferência começa a aparecer
no array de detectores.
De acordo com a interpretação ortodoxa, e nas palavras de Croca, “a partícula quântica potencial,
não tendo existência real, atravessa potencialmente ambas as fendas” e “as duas ondas potenciais no seu
caminho potencial misturam-se e interferem também potencialmente na região de sobreposição”. No caso
de dois detectores serem colocados em frente a cada uma das fendas, então uma das potenciais
possibilidades ou probabilidades materializa-se num dos detectores, sendo as outras probabilidades
reduzidas a zero.
Por outro lado, com este modelo de partícula complexa,
a singularidade, sendo indivisível, passa por uma fenda ou por outra
e
a onda, sendo extensa, passa ao mesmo tempo por uma e pela outra fenda
Croca mostra assim como é possível uma outra explicação que não precisa “de ajuda
sobrenatural” ou de “negar a realidade objectiva”.
Esta proposta não obriga, assim, a impor pela teoria a “desunião” de uma realidade que é una.
Ela tem em conta, simultaneamente, a unidade da realidade e a complexidade da matéria. A matéria é
inesgotável.
Tem em conta a totalidade que constitui o ente quântico. Segundo Croca e Moreira, para dar
conta dos fenómenos quânticos, será necessário desenvolver uma teoria não-linear. Esta não-linearidade
expressa o facto de o todo ser diferente da soma das partes. A linearidade dos métodos matemáticos da
física revelou-se adequada a uma determinada fase de investigação de certos domínios da natureza. No
entanto, começa a revelar-se insuficiente. Ora, de um ponto de vista materialista dialéctico, é bem
reconhecida a necessidade de delimitar o objecto de estudo, de traçar limites relativos, de abstrair, de
retirá-lo, provisoriamente, da totalidade mais vasta em que se insere para poder estudá-lo e conhecê-lo. O
método cartesiano tem validade dentro de certos limites (limites no que diz respeito às formas de
movimento que pode descrever e limites históricos), da mesma forma que o mecanicismo e da mesma
forma que a acumulação de dados nas ciências biológicas, por exemplo. Correspondem a momentos
necessários da abstracção. Mas o avanço da ciência revelará os limites desses métodos.
Ao propor o desenvolvimento e a aplicação dos métodos não-lineares ao domínio quântico, o que
a linha de investigação não ortodoxa faz é reconhecer que o ente quântico precisa de ser entendido como
uma totalidade e, portanto, possui uma estrutura própria e leis de estrutura próprias que têm de ser
apreendidas como tal. Como diz Barata-Moura, quando se absolutiza o parcelar, rompe-se com o processo
real objectivo e assim é também uma determinada lei de totalização ou de estruturação que se perde de
vista. “Não basta reunir”, continua, “em série ou em monte, elementos diversificados e até contraditórios;
é indispensável mostrá-los na sua organização dinâmica, na sua dialéctica real, na totalidade objectiva em
que primordialmente e finalmente consistem. O imediato e o parcelar têm, por conseguinte, de ser
necessariamente integrados na totalidade a que pertencem”660. Bohr absolutizou a diferença entre onda e
corpúsculo. Estes investigadores da linha de investigação de De Broglie pretendem mostrar a onda e o
corpúsculo “na sua organização dinâmica, na sua dialéctica real”.
Uma palavra final – ainda que muito breve - sobre o problema da relação entre ciência e
filosofia. Ciência e filosofia estão ligadas de forma indissolúvel. Por outras palavras, está fora de questão
a ideia de que os cientistas não estão imersos num dado sistema de representações. Como dizia Engels, a
questão está em saber se os cientistas “querem ser dominados por uma má filosofia da moda ou por uma
forma de pensamento teórico que assenta no conhecimento da história do pensamento e das suas
realizações”661.
A ciência é tributária de uma filosofia materialista dialéctica. Como diz Engels: “uma exacta
representação do universo, da sua evolução, do desenvolvimento da humanidade e do reflexo desta
evolução nas mentes dos homens pode, portanto, apenas ser obtido pelos métodos da dialéctica […]662”. E
acrescentaria eu, no espírito das ideias de Engels: numa base materialista. Vimos, a respeito das duas
interpretações da mecânica quântica, que não é indiferente a adopção de uma ou outra linha filosófica.
Filosofia e ciência interpenetram-se. Mas nem a filosofia substitui a ciência, nem a ciência
substitui a filosofia. As “oposições na ciência resolvem-se, porém, através da própria ciência” 663, diz Marx
em Para a Questão Judaica. E serão os desenvolvimentos da ciência (para os quais contribui de forma
decisiva um pensamento guiado por uma base materialista e dialéctica), será a prática a via para a
refutação da existência de limites definitivos no conhecimento, tanto no domínio quântico, quanto no
conhecimento científico em geral.
660Cf. José Barata-Moura, Totalidade e Contradição, Acerca da Dialéctica, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, pp. 128-130.
661F. Engels, Dialectics of Nature, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 491.
662idem, Anti-Dühring, in ibidem, p. 24.663J. Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade, Estudos em Torno de Marx, Lisboa, Edições Avante!, 1997, pp.
95, citando Marx, Zur Judenfrage (Para a Questão Judaica), I, MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. IML, Berlin, Dietz, 1981), vol. I/2, p. 143.
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