Post on 16-Feb-2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
CENTRO DE CINCIAS AGRRIAS
DEPARTAMENTO DE ECONOMIA AGRCOLA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECONOMIA RURAL
KARLA KAROLLINE DE JESUS ABRANTES
CAMINHOS ESTRATGICOS PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL
SUSTENTVEL:
UMA ANLISE DA DINMICA SOCIOTCNICA DOS QUINTAIS PRODUTIVOS
FORTALEZA
2015
KARLA KAROLLINE DE JESUS ABRANTES
CAMINHOS ESTRATGICOS PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL
SUSTENTVEL:
UMA ANLISE DA DINMICA SOCIOTCNICA DOS QUINTAIS PRODUTIVOS
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Economia
Rural, da Universidade Federal do Cear,
como requisito parcial para obteno do Ttulo
de Mestre em Economia Rural. rea de
Concentrao: Polticas Pblicas e
Desenvolvimento Rural Sustentvel.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antnio Maciel de
Paula
Co-orientadora: Profa. Dra. Gema Galgani
Silveira Leite Esmeraldo
FORTALEZA
2015
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao
Universidade Federal do Cear Biblioteca de Ps-Graduao em Economia Agrcola
_____________________________________________________________________________________
A143c Abrantes, Karla Karolline de Jesus Caminhos estratgicos para o desenvolvimento rural sustentvel: Uma anlise da dinmica sociotcnica dos quintais produtivos ./ Karla Karolline de Jesus Abrantes. 2015. 112 f.: il. color., enc.; 30 cm Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Cear, Centro de Cincias Agrrias, Departamento de Economia Agrcola, Programa de Ps-Graduao em Economia Rural. Fortaleza, 2015. rea de Concentrao: Polticas Pblicas e Desenvolvimento Rural Sustentvel. Orientao: Prof. Dr. Luiz Antnio Maciel de Paula. 1. Tecnologia Social Quintal Produtivo. 2. Agroecologia. 3. Economia Solidria. 4. Segurana Alimentar e Nutricional. I. Ttulo. CDD: 363.7 _____________________________________________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Inicio meus agradecimentos a Deus, j que Ele, alm de ter me dado nimo e controle para
superar as dificuldades, colocou pessoas to especiais a meu lado, sem as quais certamente
no teria dado conta.
Ao Prof. Dr. Luiz Antnio, por sua orientao em todo o processo de trabalho que envolveu
esta dissertao, o apoio e a compreenso da minha dinmica pessoal e da minha viso em
relao ao que estava sendo produzido, bem como as ponderaes e conselhos to acertados,
mesmo que com pouco tempo que lhe coube, devido a sua delicada sade.
Profa. Dra. Gema Galgani, por sua co-orientao e contribuies relevantes ao
desenvolvimento final da pesquisa. Pelo incentivo para cursar o mestrado em Economia
Rural. Ela que acreditara em meu potencial de uma forma que eu desconfiava no ser capaz
de corresponder, sempre disponvel e disposta a ajudar. Fez-me enxergar que existe mais que
pesquisadores e resultados por trs de uma dissertao, mas vidas humanas. A senhora no foi
e no somente minha orientadora na graduao e co-orientadora na ps, mas, em alguns
momentos, conselheira, confidente, me e amiga. A senhora foi e referncia profissional e
pessoal para meu crescimento. Obrigada por estar ao meu lado e acreditar tanto em mim!
Ao Prof. Dr. Jair Andrade e ao Dr. Clesson Monte pelas anlises e sugestes feitas em relao
ao trabalho por ocasio das suas participaes na banca de pr-defesa, assim como, ao Prof.
Dr. Guillermo Gamarra na banca de qualificao, que no pde participar das demais bancas.
Ao Departamento de Economia Agrcola da UFC pelo apoio em todo o perodo do programa e
aos professores que com ensinamentos, orientaes e amizade, me ajudaram a superar as
muitas dificuldades surgidas e a me encantar pela experincia e a desvelar novos horizontes.
Proporcionaram-me mais que a busca de conhecimento tcnico e cientfico, mas uma lio de
vida.
Ao apoio financeiro da CAPES.
Aos/as meus/minhas amigos/as do mestrado, pelos momentos divididos juntos, especialmente
Janana e Malu, que se tornaram verdadeiras amigas e tornaram mais leve meu caminhar
no mestrado. Aos poucos nos tornamos mais que amigas, quase irms. Obrigada por dividir
comigo as angstias e alegrias! Ao Otcio, Andra e Ansu que foram pessoas chaves para a
minha aprovao nas disciplinas. No sei o que seria dos meus rendimentos acadmicos sem a
ajuda de vocs! Agradeo, tambm, aos amigos atenciosos e queridos do mestrado, em
especial, Leozito, Fabi e Mamadu, que me levantaram no momento de muita dor, de
separao entre os cus e a terra. Foi bom poder contar com vocs!
Ao CETRA pelo apoio e suporte operacional no processo da coleta dos dados, especialmente,
Neila Santos pela pacincia e disponibilidade quanto ao meu entendimento da pesquisa.
Aos agricultores e agricultoras das Comunidades Barra do Crrego, Stio Coqueiro, Vieira
dos Carlos, Torm e Jenipapo, que me acolheram, abriram as portas das suas casas,
compartilharam as experincias de seu dia-a-dia, sua viso de mundo e seus sonhos por uma
vida melhor, por quem tenho amizade e admirao. Por causa deles/as esta dissertao se
concretizou. Vocs merecem meu eterno agradecimento!
Dayara Normando, Lorena Oliveira, e Jennifer Faustino, com quem dividi parte das
minhas atividades para que eu pudesse concluir este trabalho. Obrigada de verdade!
Renata Silva por sua presena, companheirismo e disponibilidade constantes em colaborar
com os desafios, expectativas e alegrias da minha vida e em relao ao estudo que desenvolvi.
Obrigada pela amizade! Voc uma pessoa que no mede esforos! Tenho enorme admirao
por voc!
Silvana Freitas, Kaline Maciel e Klia Aires pelo estmulo, pela fora e pela amizade
em todos os momentos da nossa trajetria dentro do mundo. Obrigada por tudo!
minha irm, Kamilla Karla, e minha prima Dani Negreiros meu agradecimento especial,
pois, a seus modos, sempre se orgulharam de mim e confiaram em meu trabalho. Obrigada
pela enorme fora dada na materializao desta dissertao, que mesmo com divergentes e
excessivas atividades em suas vidas encontraram disponibilidade para me apoiar. Nossos
laos vo alm de fraternais!
A meus pais, Carlos e Socorro, meu infinito agradecimento. Sempre acreditam em minha
capacidade. Isso s me fortalece e me faz fazer o melhor de mim. Obrigada pelo amor
incondicional e o cuidado a mim!
Ao pequeno Nicolas, que, no ltimo ano, esteve to prximo de mim, e que muitas vezes
felizmente impossibilitava o desenvolvimento deste trabalho, quando lhe dava ateno s suas
brincadeiras, para os seus cuidados e para at mesmo a titia d um chro no percoo.
Agradeo, tambm, aos meus cunhados, Segundo e Eliandro, minha cunhada Karine,
minha concunhada Paulinha e minha sogra Tia Ceia, pelo afeto, compreenso e apoio.
Obrigada pelo carinho!
Finalmente, gostaria de agradecer ao meu querido esposo, Jair, com quem compartilho
amorosamente a alegria de viver, que com compreenso, pacincia e carinho soube apoiar-me
ao longo de todo o perodo de realizao desse trabalho e em todos os momentos de minha
vida. Obrigada pela propaganda positiva a meu respeito!
Ningum vence sozinho... OBRIGADA A TODOS E TODAS!
Os cheiros da terra molhada, do coentro
colhido e cortado, dos perfumes das flores que
vm no vento do serto e do mar; o som do
crepitar do fogo a lenha, das conversas no
quintal, do piar de pintos e galinhas, a gua
que se derrama nas plantaes, da msica da
feira, dos risos; as cores do cu, das
plantaes, do mel, das variadas frutas,
verduras e legumes; o sabor dos bolos,
tapiocas e doces; as texturas das folhas, das
palhas de milho, das toalhas alvas e bordadas,
esto em cada pgina e nos trazem a
diversidade da agricultura familiar.
(Helena Selma Azevedo)
RESUMO
O presente estudo, inserido na linha de pesquisa Polticas Pblicas e Desenvolvimento Rural
Sustentvel, analisa a dinmica sociotcnica de quintais produtivos, a partir de experincias
de agricultores/as familiares beneficiados/as pelo projeto Quintais para a Vida, coordenado
pela Organizao No Governamental (ONG) Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria
ao Trabalhador (CETRA). A ideia central da abordagem sociotcnica visa desvendar os
requisitos principais do sistema tecnolgico e as possveis influncias destes sobre o
desempenho do sistema social, de modo que a eficcia do sistema produtivo total depender
da adequao do sistema social em atender os requisitos do sistema tcnico. Assim, para o
entendimento desse trabalho, seu objeto de estudo foi considerado como sendo a tecnologia
social quintal produtivo, visto como um instrumento que introduz e resgata valores culturais e
identitrios das famlias rurais inerentes aos espaos do entorno da casa. Por meio de uma
investigao qualitativa, procedida por um estudo de caso, busca-se detectar qual a
importncia e a influncia do projeto no cotidiano dos/as agricultores/as. Na hiptese de
considerar a tecnologia social quintal produtivo como uma estratgia para o desenvolvimento
rural sustentvel, baseada nos princpios da agroecologia, da socioeconomia solidria e da
segurana alimentar, procura-se identificar as mudanas ambientais, socioculturais e
socioeconmicas repercutidas na vida de nove (9) famlias contempladas, localizadas em
cinco comunidades de dois municpios do Territrio da Cidadania do Cear Vales do Curu e
Aracatiau, no Cear. Para a anlise do estudo fundamentou-se em autores como Navarro
(2001), Schneider (2010), Veiga (2001), Altieri (1998), Gliessman (2000), Maluf (2007),
Menezes (2001), Arroyo e Schuch (2006), Singer (2002), Dagnino, Brando e Novaes (2010).
As trajetrias, sentidos e significados dos sujeitos pesquisados, analisadas a partir das
entrevistas semiestruturadas, revelaram que ocorreram transformaes relevantes na realidade
das famlias beneficiadas. As mudanas foram caracterizadas por inovaes e continuidades,
ou seja, pelo aprimoramento e substituio das prticas convencionais e a reduo do uso de
insumos externos, produzindo, consumindo e comercializando os alimentos de forma
ecologicamente correta, aumentando, com isso, a diversidade da produo antes restrita a
mandioca, milho e feijo e, no caso das hortalias, ao coentro e a cebolinha. Conclui-se ser
possvel construir relaes de convivncia com a natureza tendo por base a sustentabilidade
ambiental e assegurando a qualidade de vida e implementando as atividades econmicas
apropriadas. Considerando a importncia dessa pesquisa na atualidade, por sua pretenso em
suscitar novas reflexes sobre as prticas e dinmicas sociotcnicas para a academia, a
sociedade civil organizada e aos/as agricultores/as, busca-se identificar e analisar as
dimenses de desenvolvimento propostas. Este estudo tambm pode contribuir para a
ressignificao de projetos e polticas sociais voltadas para a agricultura familiar no estado do
Cear e subsidiar seus rgos pblicos e ONGs, no que se refere s reflexes de suas
dimenses ambiental, sociocultural e socioeconmica, aqui trazidas sobre a tecnologia social
quintal produtivo.
Palavras-chave: Tecnologia Social Quintal Produtivo. Agroecologia. Economia Solidria.
Segurana Alimentar e Nutricional.
ABSTRACT
The present study, inserted in the research line "public policies and sustainable Rural
Development", analyzes the dynamics of sociotechnical productive backyards, from
experiences of family farmers benefited by the project "Backyards for life". The project is
coordinated by the non-governmental organization (NGO) "Centre of Labor Studies and
Workers Counseling (CETRA, portuguese acronym). The central idea of sociotechnical
approach aims at uncovering the main requirements of the technological system and the
possible influences of these on the performance of the social system, so that the effectiveness
of the production system will depend on the suitability of the total social system to meet the
requirements of technical system. Thus, for the understanding of this work we will have as
object of study the social productive backyard technology which is seen as an instrument that
introduces and rescue cultural values and identity of the rural families inherent in spaces
around the house. Through a qualitative research, preceded by a case study, we seek to detect
the importance and influence of the project on the daily life of farmers. In the hypothesis of
considering social productive backyard technology as a strategy for sustainable rural
development, based on the principles of Agroecology, the socioeconomics of solidarity and
food safety, seeks to identify the environmental, socio-cultural and socioeconomic changes
that affect the life of nine (9) benefited families, located in five communities of two
municipalities in the Citizenship Territory of Ceara Vale do Curu and Aracatiau in Cear.
For the analysis the study was based on authors such as Navarro (2001), Schneider (2010),
Veiga (2001), Altieri (1998), Gliessman has given (2000), Mackin (2007), Mark (2001),
Arroyo and Schuch (2006), Singer (2002), Dagnino, Barron and Nana (2010). The
trajectories, senses and meanings of the subject researched, parsed from the semi-structured
interviews revealed that relevant transformations occurred in the reality of the benefited
families. The changes were characterized by innovations and continuities, i.e. by the
improvement and replacement of conventional practices and reduction in the use of external
inputs, producing, selling and consuming in an ecologically viable way, thus increasing the
diversity of production once restricted to cassava, corn and beans and, in the case of
vegetables, coriander and chives. It appears to be possible to build relations of coexistence
with nature based on environmental sustainability and life quality assurance implementing
appropriate economic activities. Considering the importance of this research today, for its
purpose of eliciting new reflections on the practices and sociotechnical dynamics to the
Academy, organized civil society and to the farmers, we look forward to identifying and
analyzing the dimensions of the proposed development. This study may also contribute to the
redesign of projects and social policies geared towards family agriculture in the State of Cear
and subsidizing their public bodies and NGOs, with regard to its environmental
socioeconomic and sociocultural dimensions, brought about in this study on social technology
and productive backyards.
Keywords: Social Technology Productive Backyard. Agroecology. Solidarity Economy.
Food and nutritional security.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Representao esquemtica das dimenses para se alcanar o desenvolvimento
sustentvel. ........................................................................................................................ 28
Quadro 1 Quintais produtivos da investigao ...................................................................... 60
Figura 2 rea de atuao da pesquisa no territrio da cidadania vales do curu e aracatiau.
........................................................................................................................................... 64
Figura 3 Organograma da dinmica sociotcnica dos quintais produtivos e seus caminhos
para o desenvolvimento rural sustentvel. ........................................................................ 72
file:///C:/Users/marcosjair/Desktop/Defesa/Dissertao%20ltima%20verso%20para%20a%20defesa.doc%23_Toc410823957file:///C:/Users/marcosjair/Desktop/Defesa/Dissertao%20ltima%20verso%20para%20a%20defesa.doc%23_Toc410823957file:///C:/Users/marcosjair/Desktop/Defesa/Dissertao%20ltima%20verso%20para%20a%20defesa.doc%23_Toc410823959file:///C:/Users/marcosjair/Desktop/Defesa/Dissertao%20ltima%20verso%20para%20a%20defesa.doc%23_Toc410823959
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Frequncia alimentar por famlia. ......................................................................... 85
Grfico 2 Frequncia alimentar do consumo de hortalias, legumes, frutas e sucos naturais.
........................................................................................................................................... 86
Grfico 3 Frequncia alimentar do consumo de caf, refrigerantes, doces e salgado de
pacote. ............................................................................................................................... 86
Grfico 4 Frequncia alimentar do consumo de protena animal. ......................................... 87
Grfico 5 Faturamento mensal da feira agroecolgica de itapipoca. .................................... 90
Grfico 6 Faturamento mensal da feira agroecolgica de trairi. ........................................... 91
file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565356file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565357file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565357file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565358file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565358file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565359file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565360file:///C:/Users/KAROL/Desktop/Dissertao%20ltima%20verso%20-%20Copia.doc%23_Toc409565361
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Populao segundo a zona de moradia (rural e urbana) ......................................... 67
Tabela 2 Tecnologias sociais nas reas de estudo ................................................................. 73
Tabela 3 Origem da mo de obra para as atividades agropecurias nas propriedades .......... 75
Tabela 4 Manuteno dos nutrientes da terra ........................................................................ 79
Tabela 5 Controle de pragas .................................................................................................. 80
Tabela 6 Faturamento mensal da comercializao nas feiras agroecolgicas de itapipoca e
trairi ................................................................................................................................... 91
Tabela 7 Rendimentos dos/as agricultores/as contemplados/as ............................................ 93
Tabela 8 Composio da renda a partir da produo do quintal ........................................... 94
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABAG Associao Brasileira de Agrobusiness
APACT Associao dos Produtores do Assentamento Crrego dos Tanques
ARDEJ Associao dos Agricultores Familiares do Assentamento Vrzea do Munda
ARIMA Associao das Artess do Imvel Macei
ASA Articulao do Semirido Brasileiro
ASCIMA Associao Comunitria do Imvel Macei
ASPIM Associao dos Pescadores do Imvel Macei
ATER Assistncia Tcnica e Extenso Rural
CEB Comunidade Eclesial de Base
CETRA Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador
CETREDI Centro de Treinamento Diocesano de Itapipoca
COGERH Companhia de Gesto de Recursos Hdricos
CONDRAF Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentvel
CONSEA Conselho Nacional de Segurana Alimentar
COPAIM Cooperativa de Produo Agropecuria do Imvel Macei
CPT Comisso Pastoral da Terra
DATER Departamento de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
DHAA Direito Humano Alimentar Adequada
ENA Encontro Nacional de Agroecologia
ETA Encontro Territorial de Agroecologia e Socioeconomia Solidria
FAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (Traduzido)
FBES Frum Brasileiro de Economia Solidria
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDACE Instituto de Desenvolvimento Agrrio do Cear
INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
IPCA ndice Nacional de Preos ao Consumidor
IPEA Instituto de Pesquisa Aplicada
IPECE Instituto de Pesquisa e Estratgia Econmica do Cear
LOSAN Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional
MDA Ministrio do Desenvolvimento Agrrio
MDS Ministrio do Desenvolvimento Social
ONG Organizao No Governamental
ONU Organizao das Naes Unidas
P1 + 2 Programa Uma Terra e Duas guas
P1MC Programa Um Milho de Cisternas
PAIS Produo Agroecolgica Integrada e Sustentvel
PLANAPO Plano Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica
PNAPO Poltica Nacional de Agroecologia e Produo Orgnica
PNSAN Poltica Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional
PNATER Poltica Nacional de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
PNCF Programa Nacional de Crdito Fundirio
PNRA Programa Nacional de Reforma Agrria.
PRA Programa Residncia Agrria
PROCERA Programa de Crdito Especial para a Reforma Agrria
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PTC Programa de Territrios da Cidadania
Rede ATER NE Rede de Assistncia Tcnica Rural das organizaes no governamentais
do Nordeste
SAN Segurana Alimentar e Nutricional
SAF Secretaria da Agricultura Familiar
SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidria
SUDENE Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste.
UFC Universidade Federal do Cear
UNEP United Nations Environment Programme
WBCSD World Business Council for Sustainable Development
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................................................... 16
2 CONTEXTUALIZAO TERICA ............................................................................... 22
2.1 Desenvolvimento rural no Brasil discusso conceitual .......................................... 22
2.2 Desenvolvimento rural sustentvel uma perspectiva agroecolgica .................... 26
2.3 Tecnologia social voltada para a agroecologia .......................................................... 33
2.3.1 Dinmica sociotcnica dos quintais produtivos ......................................................... 36
2.4 Segurana alimentar e nutricional nas estratgias do desenvolvimento rural
sustentvel ........................................................................................................................... 41
2.5 Socioeconomia solidria alavanca para um desenvolvimento rural sustentvel 50
3 REFERENCIAL TERICO-METODOLGICO .......................................................... 55
3.1 Parmetros metodolgicos do estudo ......................................................................... 55
3.2 Metodologia .................................................................................................................. 59
3.3 Contexto geoeconmico da atuao da pesquisa ....................................................... 62
4 TECNOLOGIA SOCIAL QUINTAL PRODUTIVO - UMA ESTRATGIA PARA O
DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTVEL ........................................................... 70
4.1 Caractersticas gerais dos quintais produtivos investigados.................................... 73
4.2 Cuidar da terra ............................................................................................................ 76
4.3 Alimentar a sade ........................................................................................................ 81
4.4 Cultivar a prosperidade .............................................................................................. 88
4.5 O doce e o amargo dos frutos .................................................................................. 96
5 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................ 100
REFERNCIAS.................................................................................................................... 102
APNDICE A RELAO DOS QUINTAIS PRODUTIVOS ACOMPANHADOS
PELO PROJETO QUINTAIS PARA A VIDA ............................................................. 110
APNDICE B GRAVAES REALIZADAS ............................................................... 111
16
1 INTRODUO
Deve-se afirmar, de partida, que essa dissertao busca analisar a dinmica
sociotcnica de quintais produtivos, na perspectiva do desenvolvimento rural sustentvel a
partir de experincias de agricultores/as familiares beneficiados/as pelo projeto Quintais para
a Vida coordenado pela Organizao No-Governamental (ONG) intitulada Centro de
Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (CETRA), experincia situada no
Territrio da Cidadania do Cear Vales do Curu e Aracatiau.
O Territrio Vales do Curu e Aracatiau encontra-se na mesorregio do norte
cearense, regio conhecida pela disputa da terra, fortemente concentrada em grandes
fazendas. (BRASIL, 2010). Tal situao apresenta-se como resultado de um processo
histrico-cultural relacionado ocupao e formao do Cear Tradicional, caracterizado pelo
predomnio da atividade agropecuria com base no latifndio e na explorao de recursos da
natureza de forma predatria e rudimentar.
O processo de modernizao da agricultura, apesar de chegar tardiamente regio
trouxe impactos ainda mais negativos a j precria situao social e econmica dos/as
agricultores/as familiares, o que contribui para a desestruturao de propriedades agrcolas,
aumento da pobreza e xodo rural. Nesse sentido, as alternativas para o enfrentamento da
situao so buscadas e lutadas pela articulao dos movimentos e organizaes sociais da
regio. (VEIGA, 2001).
Uma possibilidade em termos de alternativa ao modelo agrcola convencional e de
viabilidade agricultura familiar local a produo agroecolgica nos quintais produtivos. A
implantao da tecnologia social quintal produtivo, que integra o projeto Quintais para a
Vida, desenvolvido pelo CETRA, constituiu-se numa estratgia de mobilizao de iniciativas
baseadas na agroecologia, na economia solidria e na segurana alimentar em cinco
municpios da regio, envolvendo pequenos produtores rurais.
Desse modo, este trabalho objetiva analisar a dinmica sociotcnica desenvolvida
e internalizada nas prticas nos processos e nas formas de organizao dos quintais produtivos
dos municpios de Itapipoca e Trairi. Como caminho, procura-se de forma especfica, a partir
da trajetria social, cultural, ambiental e econmica das experincias dos/as agricultores/as:
1) identificar, na dimenso ambiental, as alternativas de produo de base
agroecolgica e de convivncia com o semirido, experimentadas nos quintais
produtivos;
17
2) investigar a dimenso sociocultural nos quintais contemplados visando garantir
a segurana alimentar e nutricional das famlias; e
3) verificar a repercusso socioeconmica da tecnologia social na produo
excedente dos quintais pesquisados.
Com o considervel crescimento do agronegcio, na dcada de 1960, a
industrializao e a mecanizao passam a interferir no modo de produo da agricultura
familiar, afetando seu padro de cultivo, o consumo alimentar, seus costumes e at o acesso s
polticas, sobretudo nos campos do crdito rural, dos preos mnimos e do seguro da produo
(CAPORAL, 2003), passando a receber ateno dos governantes de polticas pblicas, apenas
em 1996, com o surgimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (PRONAF).
No entanto, a criao dessa poltica, que se deu durante o governo do ento
presidente Fernando Henrique Cardoso (primeiro mandato: 1995-1998), com o intuito de
direcionar recursos para os/as agricultores/as familiares (especialmente aqueles com maior
dificuldade de integrao econmica), somente ocorreu, aps contnuas reivindicaes dos
trabalhadores rurais organizados do movimento sindical e de outros grupos sociais rurais que
defendiam a importncia de se estabelecer polticas que propiciassem os meios necessrios ao
fortalecimento da produo agrcola familiar no Brasil. (DELGADO, 2010).
Em 2003, a Poltica Nacional de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
(PNATER), instituda pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), assumiu como
prioridade o fortalecimento da agricultura familiar e a promoo da agroecologia, numa
perspectiva de desenvolvimento rural sustentvel, proposio relativamente nova para a maior
parte das entidades, sejam elas governamentais ou no.
Seguindo as orientaes desta poltica, a Secretaria da Agricultura Familiar (SAF),
por meio do Departamento de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (DATER), estabelece
uma nova misso para a Assistncia Tcnica e Extenso Rural (ATER). Esta consiste em
participar na promoo e animao de processos que possam colaborar para a construo e
execuo de estratgias de desenvolvimento rural sustentvel, voltado expanso e
fortalecimento da agricultura familiar e das suas organizaes, por meio de metodologias
educativas e participativas, integradas s dinmicas locais, no intuito de viabilizar as
condies para o exerccio da cidadania e a melhoria da qualidade de vida da sociedade.
(MDA, 2004).
De modo a tornar mais precisa a orientao na implementao desta misso, a
PNATER estabelece e est baseada em 5 (cinco) princpios que pretendem ser a sntese
18
daquilo que indispensvel para se ter uma nova ATER. Dados os objetivos desta
dissertao, basta citar aqui apenas 3 (trs) desses princpios, como segue:
1) contribuir para a promoo do desenvolvimento rural sustentvel, com nfase
em processos de desenvolvimento endgeno, visando a potencializao do uso
sustentvel dos recursos naturais;
2) adotar uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar, estimulando a
adoo de novos enfoques metodolgicos participativos e de um paradigma
tecnolgico baseado nos princpios da agroecologia; e,
3) desenvolver processos educativos permanentes e continuados, a partir de um
enfoque dialtico, humanista e construtivista, visando a formao de
competncias, mudanas de atitudes e procedimentos dos atores sociais, que
potencializem os objetivos de melhoria da qualidade de vida e de promoo do
desenvolvimento rural sustentvel. (MDA, 2004).
Agora com a assistncia tcnica voltada ao fortalecimento da agricultura familiar,
orientada, sobretudo a essa nova forma de praticar a agricultura, no presente e no futuro,
visando transformar a agroecologia numa alternativa socialmente valorizada perante a lgica
do capital, os agentes sociais, entre eles os movimentos sociais e sindicais, grupos de
pesquisadores, organizaes no governamentais e redes de agricultores/as vm intercedendo
no s por polticas e programas orientados ao crdito e assessoria tcnica e extenso rural,
mas tambm pelo desenvolvimento de tcnicas alternativas de produo dos/as agricultores/as
familiares.
Nesta perspectiva, o CETRA vem implementando tecnologias sociais por meio da
aplicao de tcnicas e metodologias participativas e transformadoras desenvolvidas na
interao com a comunidade na construo conjunta de equipamentos sociais de produo
familiar, como os quintais produtivos; de captao de gua da chuva para consumo humano,
como as cisternas de placa, e para a irrigao da produo nos quintais, como as cisternas
calado. (CETRA, 2014).
Visto que no territrio o clima o tropical quente semirido na regio mais
interiorana e tropical quente semirido brando prximo ao litoral, busca-se conviver com as
adversidades do clima rido e, por conseguinte, com as limitaes hdricas (BRASIL, 2010).
De fato, a insuficincia e irregularidade na distribuio de chuvas, a temperatura elevada e a
forte taxa de evaporao so caractersticas climticas que projeta derivadas radicais para o
mundo das guas, o mundo orgnico das caatingas e o mundo socioeconmico dos viventes
dos sertes. (ABSBER, 2003, p.85).
19
Com efeito, a populao sertaneja, apoiada por foras sociais, passou a buscar
alternativas de convivncia com o clima rido, com o solo pobre em matria orgnica e com a
imprevisibilidade das precipitaes pluviomtricas. Porm, o semirido brasileiro uma
realidade complexa, tanto no que se refere aos aspectos geofsicos, quanto ocupao humana
e explorao dos recursos naturais. O desconhecimento da sua complexidade conduziu
introduo de prticas agropecurias inadequadas, provocando ou agravando desequilbrios
ambientais. (ABSBER, 2003).
Ora, visando enfrentar esse quadro histrico, os agentes sociais desenvolvem
aes tais como a implementao de tecnologias alternativas que permitam s famlias
conviver com o semirido, e no lutar contra a seca, numa perspectiva de sustentao aos
agroecossistemas, de equilbrio dos recursos naturais solo e gua e de reduo das
vulnerabilidades do clima, proporcionando assim a melhoria socioeconmica e ambiental da
agricultura familiar.
A implantao de prticas que possibilitem o aproveitamento das guas de chuvas
de forma racional, remetendo ao uso de modelos de exploraes sustentveis, em consonncia
s propostas estabelecidas na agroecologia, entre as quais se destaca o uso de prticas
mecnicas de construo de terraos de reteno, cordes de pedra, captao da gua de
chuva in situ, adubao verde e correo de solo e, ainda, as prticas de transio
agroecolgicas, baseadas na implantao de sistemas agroflorestais, quintais produtivos, alm
da instalao de viveiro de produo de mudas com essncias nativas, para recomposio da
mata ciliar margem dos rios e crregos locais, e fruteiras regionais, so propostas como
alternativas de convivncia com o semirido.
Essas estratgias harmonizadoras das necessidades bsicas dos/as agricultores/as
familiares com as capacidades limitadas dos recursos naturais expressam a emergncia de um
novo paradigma, uma mudana profunda no pensamento, percepes e valores que formam
uma determinada viso da realidade. (CAPRA, 1999, p. 29). Essas mudanas esto
relacionadas aos novos conceitos cientficos que apontam a agricultura familiar como um
novo caminho na construo de agriculturas de base ecolgica ou sustentvel no semirido
nordestino. No entanto, o Brasil ainda no reconheceu as vantagens da agricultura familiar
como sendo uma estratgia ao desenvolvimento rural.
As discusses sobre a importncia e o papel da agricultura familiar vm ganhando
fora, impulsionadas em debates embasados no desenvolvimento sustentvel e tambm na
gerao de emprego, renda e segurana alimentar. Por outro lado, premente a necessidade de
resgatar a dvida social com a agricultura familiar em decorrncia da agricultura moderna.
20
Ademais, ela vem se mostrando como uma das melhores formas de ocupao do espao rural,
podendo favorecer o cumprimento de exigncias sociais, como a gerao de emprego e renda,
e ambientais, como a conservao da biodiversidade.
Nessa perspectiva, considerando a justificativa exposta neste trabalho, a saber, a
precarizao social, econmica e ambiental dos/as agricultores/as familiares, as repercusses
negativas do problema de abastecimento de gua para a populao sertaneja produzir e
consumir e o fato das estratgias do desenvolvimento rural sustentvel originrias de
instituies no governamentais, a partir da tecnologia social quintal produtivo, consistir
numa experincia que visa o enfrentamento do quadro existente, realizou-se o estudo referido
sobre o tema, com o intuito de desvendar as seguintes questes:
Como os/as agricultores/as beneficiados/as do projeto Quintais para a Vida
produzem alimentos para o autoconsumo e para a gerao de renda diante das dificuldades
climticas do semirido nordestino? De que forma as relaes intrnsecas entre meio ambiente
e desenvolvimento estariam se configurando dentro do contexto criado pela prtica da
agricultura agroecolgica pelas famlias contempladas? Quais as motivaes das famlias em
transitar da agricultura convencional a agricultura agroecolgica? Teriam ocorrido alteraes
nas prticas de cultivo e criao? Houve mudanas nos hbitos alimentares das famlias, aps
a implantao da tecnologia social na sua unidade produtiva, dentro da concepo da
agroecologia? Quais teriam sido? Tais mudanas contriburam para a melhoria da situao de
segurana alimentar e nutricional das famlias agroecolgicas? Existiriam diversidades de
culturas e produo excedente suficiente para transformar as condies socioeconmicas das
famlias? Quais as relaes existentes nos espaos de escoamento da produo excedente?
A hiptese construda em relao aos questionamentos levantados a de que a
tecnologia social quintal produtivo, alm de um instrumento que introduz e resgata valores
culturais e identitrios das famlias rurais inerentes aos espaos do entorno da casa, uma
estratgia ao desenvolvimento rural sustentvel, baseada nos princpios da agroecologia, da
segurana alimentar e da socioeconomia solidria.
Considerando a importncia e atualidade dessa pesquisa, por sua pretenso em
suscitar novas reflexes sobre as prticas e dinmicas sociotcnicas para a academia, a
sociedade civil organizada e aos/as agricultores/as, busca-se identificar e analisar as
dimenses de desenvolvimento que tm sido propostas e que orientam o significado
ambiental, cultural, social e econmico da tecnologia social quintal produtivo.
Como se pode notar, a ideia central da abordagem sociotcnica visa desvendar os
requisitos principais do sistema tecnolgico e as possveis influncias destes sobre o
21
desempenho do sistema social, de modo que a eficcia do sistema produtivo total depender
da adequao do sistema social em atender os requisitos do sistema tcnico. Assim, para o
entendimento desse trabalho seu objeto de estudo foi considerado como sendo a tecnologia
social quintal produtivo, que integra o projeto Quintais para a Vida, desenvolvido pela
ONG CETRA.
Este estudo tambm pode contribuir na ressignificao de projetos e polticas
sociais voltadas agricultura familiar no estado do Cear e subsidiar seus rgos pblicos e
ONGs, no que se refere s reflexes de suas dimenses ambiental, cultural, social e
econmica, aqui trazidas, sobre a tecnologia social quintal produtivo.
A dissertao est estruturada como segue: aps esta introduo, na segunda seo
traz-se a contextualizao terica, discutindo acerca do Desenvolvimento Rural,
Desenvolvimento Rural Sustentvel, Agroecologia, Tecnologias Sociais, Quintais Produtivos,
Segurana Alimentar e Nutricional e Socioeconomia Solidria; na terceira seo expe-se o
percurso metodolgico utilizado; na seo seguinte, apresentam-se, de forma analtica, os
resultados do estudo de caso sobre o processo da dinmica sociotcnica dos quintais
produtivos. Por fim, conclumos o trabalho com as consideraes finais na quinta seo.
Consequentemente, o texto tem incio pela contextualizao terica trazendo
aportes de estudiosos sobre as categorias analticas consideradas fundantes para a
compreenso e o dilogo com o objeto de estudo.
22
2 CONTEXTUALIZAO TERICA
Neste captulo sero abordados conceitos e trajetrias do desenvolvimento rural
no Brasil de modo a incorporar o debate sobre a agroecologia e seus caminhos para a
segurana alimentar e a economia solidria na agricultura familiar. Pretende-se com isso,
fundamentar teoricamente as escolhas temticas levantadas para a realizao da anlise da
tecnologia social quintal produtivo, a partir do projeto Quintais para a Vida, inserindo esse
debate como fundamental para a posterior abordagem sobre o referido projeto.
2.1 Desenvolvimento rural no Brasil discusso conceitual
Ao se fazer uma reflexo sobre as principais tendncias e temas recentes que esto
animando o debate brasileiro sobre o desenvolvimento rural, achou-se relevante descrever e
caracterizar o contexto histrico em que o debate corrente emergiu no Brasil, indicando
alguns elementos das mudanas polticas, sociais e econmicas que esto na sua origem.
Alm disso, busca-se situar as principais perspectivas analticas que vm orientando os
estudiosos e pesquisadores na interpretao dos processos de mudana social que esto
ocorrendo no espao rural. (SCHNEIDER, 2010, p. 511-512).
importante definir, primeiramente, o que rural, para em seguida conceituar
desenvolvimento rural, embora, nos tempos atuais, a discusso sobre tal definio seja
inesgotvel. Existe, no entanto, certo consenso entre estudiosos e pesquisadores sobre os
seguintes pontos levantados por Kageyama (2004):
a) rural no sinnimo de agrcola e nem tem exclusividade sobre este;
b) rural multissetorial (pluriatividade) e multifuncional (funes produtiva,
ambiental, ecolgica, social), ou seja, envolve todo o territrio numa teia
diferenciada de atividades e de fluxos econmicos;
c) as reas rurais tm densidade populacional relativamente baixa;
d) no h um isolamento absoluto entre os espaos rurais e as reas urbanas.
Partindo para o debate sobre desenvolvimento, Navarro (2001) o divide em dois
momentos na histria. O primeiro nasceria aps a Segunda Guerra Mundial e duraria at os
anos 1970, cuja denominao seria possibilidade do desenvolvimento. O segundo
momento, sob o qual o tema ressurge, foi demarcado nos anos 1990, denominado de
impossibilidade do desenvolvimento.
23
A noo de desenvolvimento rural, no primeiro momento, necessariamente nos
anos 1970, foi moldada pela Revoluo Verde, um amplo programa estratgico para aumentar
a produo agrcola e a produtividade em pases menos desenvolvidos sob um padro
tecnolgico e, por fim, elevar a renda dos produtores. Nesse contexto, a agricultura passa
atualmente por um processo de mudana produtiva. Ela entra no circuito da modernizao
agrcola por meio de melhorias genticas em sementes, uso intensivo de insumos industriais,
mecanizao e reduo do custo de manejo (NAVARRO, 2001).
Esse processo, apesar de promover nveis crescentes na produtividade agrcola,
pelo uso de fertilizantes qumicos, agrotxicos e mquinas, provocou graves problemas
sociais, ambientais e econmicos, em particular nos pases de terceiro mundo: concentrao
de terra e de renda; xodo rural; desestruturao de comunidades rurais; eroso, salinizao e
perda de fertilidade dos solos; desmatamento e perda da biodiversidade; contaminao dos
solos, de mananciais e do lenol fretico, animais, seres humanos, alimentos causada pelo uso
de fertilizantes, pesticidas e herbicidas; desequilbrio ecolgico e a proliferao de pragas;
aumento das despesas com o cultivo e o endividamento dos agricultores; crescimento da
dependncia tecnolgica dos agricultores em relao a grandes empresas (de produtos
qumicos, insumos agrcolas, de sementes, etc.). (SILIPRANDI, 2009; CAPORAL, 2003).
Os custos de quaisquer problemas ambientais, chamados de externalidades,
provocam impactos que comprometem os recursos da natureza. No entanto, muitos sistemas
agrcolas esto sofrendo agora porque os recursos naturais fundamentais que necessitam ser
abundantes esto sendo prejudicados ou diminudos. (PRETTY, 2008).
Os problemas ambientais consequentes da interveno direta do homem nos
diferentes ecossistemas da terra causam desequilbrios no meio ambiente, degradam os
habitats e comprometem a qualidade de vida. Com isso, o tema desenvolvimento reavivado
e fortalecido pelas lutas sociais, na dcada de 1990, quando as aes dos movimentos e das
organizaes sociais deixaram de ser apenas reivindicativas e contestatrias, passando
tambm a ser proativas e propositivas. (SCHNEIDER, 2010).
Essa postura proativa e propositiva pode ser caracterizada por Veiga (2001) como
empurro. O autor afirma que um empurro inicial indispensvel para fazer surgir
iniciativas dos governos federais e estaduais, e poder facilitar as articulaes intermunicipais
a diagnosticar os principais problemas rurais de suas respectivas microrregies, planejar aes
de desenvolvimento integrado, e captar os recursos necessrios sua execuo. (VEIGA,
2001, p. 82).
24
Logo, a estratgia de desenvolvimento rural, proposta por Veiga (2001), prope
reverter esse quadro se as articulaes intermunicipais servirem de estmulo e dissuaso para
legitimar, institucionalizar e consolidar o crescimento das atividades que conservam e
recuperam a natureza. Para o autor, a promoo da diversidade biolgica poder ser um fator
crucial na dinamizao das regies rurais. Neste caso, as restries ambientais podero
alavancar o dinamismo econmico em vez de prejudic-lo.
Assim, o contexto em que ressurgem as discusses sobre o desenvolvimento rural
no Brasil, na dcada de 1990, levantado por Schneider (2010), se relaciona com a insero da
sustentabilidade e do meio ambiente no discurso corrente. Tal incluso remete importncia
da realizao de uma agricultura alternativa capaz de incrementar a qualidade de vida das
populaes rurais, ao tempo que mantm intacta a base dos recursos naturais renovveis, ou
no renovveis. (LEMOS, 2012).
A construo de uma nova viso sobre o significado do desenvolvimento rural,
elencado por Veiga (2001), refere-se s duas alternativas estratgicas, caracterizadas em dois
projetos antagnicos para o campo. Estes foram denominados de agronegcio, tambm
chamado de agribusiness, e agricultura familiar, denominada por alguns autores de agricultura
alternativa). O primeiro, de carter setorial, visa maximizar a competitividade da
relao comercial e industrial envolvendo a cadeia produtiva agrcola ou pecuria e minimizar
os custos da produo. Tal exigncia impe o uso de tecnologias e defensivos, o que provoca
grandes impactos ao meio ambiente. Portanto, o discurso de reduo de custos pelos
empresrios do agronegcio no se sustenta quando a anlise dos custos ambientais
realizada. Esses efeitos fazem com que tanto os ativistas polticos ecologistas como os
estudiosos do desenvolvimento sustentvel defendam o outro projeto, aquele que visa
maximizar as oportunidades de desenvolvimento humano, diversificando as economias locais
do imenso territrio brasileiro.
O projeto de agricultura familiar valoriza a dinmica criada por famlias que vo
se tornando tanto mais pluriativas quanto mais aumenta a produtividade do trabalho
agropecurio. (VEIGA, 2001). As famlias pluriativas, que so aquelas que combinam
atividades agrcolas e no agrcolas e promovem a integrao intersetorial (agricultura com
comrcio e servios) e interespacial (rural com urbano), o semblante do novo rural (ou o
processo de rurbanizao) a que se refere Schneider (2010).
Para alguns autores, como revela Wanderley (2003), a pluriatividade corresponde
a um processo gradual, cujo desfecho o abandono das atividades agrcolas ou a perda
http://pt.wikipedia.org/wiki/Com%C3%A9rciohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Cadeia_produtivahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Agriculturahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Pecu%C3%A1ria
25
relativa de sua importncia para a reproduo das famlias, assim como uma passagem,
tambm gradual, do meio rural ao meio urbano.
Porm, do ponto de vista da autora supracitada, este desfecho no inflexvel e o
processo pode ser compreendido de forma contrria, em que a pluriatividade seria, neste caso,
uma estratgia da famlia com o objetivo de assegurar a reproduo desse e sua permanncia
como ponto de referncia central e de convergncia a todos os componentes da famlia.
Assim, as alternativas estratgicas so opostas quanto produo: uma possui
mo de obra familiar e a outra patronal-empresarial; distintas quanto ao destino dos produtos,
pois uma destina sua produo excedente ao consumo local ou mercado interno e a outra
produz commodities, sobretudo para exportao. Enfim, esse dualismo entre agronegcio e
agricultura familiar se traduz em acirrada disputa poltica e ideolgica. A prpria discusso
sobre desenvolvimento rural sustentvel ergue-se como alternativa e uma oposio noo de
agribusiness e agronegcio, estes ancorados no capitalismo, para reduzir gradativamente as
desigualdades sociais e econmicas, respeitando as heterogeneidades, os ritmos e a natureza
diferenciada das regies.
Veiga (2001) conclui que a atitude mais construtiva para o fim dessa ambivalncia
estratgica, promover um eficaz entendimento racional e sistemtico entre as lideranas dos
dois projetos no campo de ao do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentvel
(CONDRAF), que tem como objetivo propor diretrizes para a implementao e formulao de
polticas pblicas em torno de trs pilares: desenvolvimento rural sustentvel, reforma agrria
e agricultura familiar. (IPEA, 2014).
Enquanto no se concretiza o acordo, os estudos sobre desenvolvimento rural no
Brasil apresenta o desafio de ir alm da anlise e interpretao das transformaes que
ocorrem nas formas de produo, nas tecnologias, nas instituies e na crescente interao
com os mercados. Este esforo importante, mas ser parcial e incompleto se os estudos e
pesquisas no forem capazes de mostrar em que medida estas dimenses afetam as relaes
com o espao e o meio ambiente, se contribuem ou no para melhoria das condies de vida
da populao rural fazendo, enfim, com que o desenvolvimento seja efetivamente um
processo de mudana social.
Com efeito, o prximo item procura relacionar o surgimento da crise ambiental no
mundo, sua problematizao e a possibilidade de um modelo de um desenvolvimento rural
baseado na sustentabilidade, em suas diversas dimenses. Traz ainda para o debate a
agroecologia como caminho para agricultura sustentvel.
26
2.2 Desenvolvimento rural sustentvel uma perspectiva agroecolgica
Segundo Weid (2009), vivenciam-se cinco crises interconectadas que se
estimulam mutuamente. A mais grave delas a crise energtica originada pelo esgotamento
das reservas de petrleo, gs e carvo, que fornecem quase 80% da energia consumida no
mundo. A segunda crise est relacionada ao aquecimento global, cujos efeitos ainda
imprevisveis podem tornar a vida na terra muito penosa. A terceira vem da destruio dos
recursos naturais renovveis, especialmente solo, gua e biodiversidade. A quarta o
esgotamento das reservas de fsforo, elemento essencial para os sistemas agrcolas
convencionais. Por fim, a quinta se refere ao esvaziamento das zonas rurais e a urbanizao
desenfreada que vem destruindo culturas rurais preciosas para o futuro da humanidade e
engrossando a marginalizao social nas grandes e, sobretudo, nas megacidades.
vista disso, tem-se o dever como seres racionais de proteger a vida humana e
encontrar formas de equilbrio entre o meio ambiente e as aes do homem. Um passo dado
foi inserir o componente sustentvel no debate atual sobre desenvolvimento rural, apesar de
muitas vezes o termo ser confundido com conceitos mercadolgicos e miditicos.
O real sentido do componente sustentvel refere-se exclusivamente ao plano
ambiental, indicando a necessidade das estratgias de desenvolvimento rural - visto como uma
poltica pblica governamental - incorporarem uma apropriada compreenso das chamadas
dimenses ambientais, que no momento, sofriam com a acelerao do padro civilizatrio
aps a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e com os crescentes impactos ambientais
evidenciados a partir da dcada de 1970 com a Revoluo Verde. (NAVARRO, 2001).
Portanto, a ideia de sustentabilidade nasceu da crescente percepo acerca dos efeitos
provocados na flora e na fauna.
Especificamente, o marco mundial da questo ambiental foi o livro de Rachel
Carson1, publicado em 1962, Primavera Silenciosa, que denunciou o uso abusivo de
produtos qumicos utilizados no controle de pragas na agricultura e, indiretamente, sublinhou
a fragilidade natureza e sua resilincia pode ser alterada facilmente pela interveno
antrpica. Essa publicao, alm de quebrar paradigmas, suscitou preocupaes sem
precedentes e impulsionou, na poca, alteraes na legislao sobre pesticidas dos Estados
Unidos, e fez surgir vrios movimentos ambientalistas, a princpio de modo pontual, em
vrias partes do mundo.
1 Primavera Silenciosa, de Rachel Carson, foi considerado em 2000, pela Escola de Jornalismo de Nova York,
uma das maiores reportagens investigativas do sculo XX.
27
Em resposta s presses sociais, em 1972, foi realizada em Estocolmo, a I
Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente, que considerou a necessidade de um
ponto de vista e de princpios comuns para inspirar e guiar os povos do mundo na preservao
e melhoria do ambiente humano. (UNEP, 1972).
Desde ento o debate sobre a questo ambiental se realizou em diferentes eventos,
avanando na II Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
conhecida como Eco-92, realizada no ano de 1992 na cidade do Rio de Janeiro e que
construiu a Agenda 21. Aps 20 anos, realizou-se a Conferncia das Naes Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentvel, a Rio +20, em 2012, tambm na cidade do Rio de Janeiro, que
visava renovar os compromissos polticos sobre desenvolvimento sustentvel.
Resultados das mobilizaes polticas dos ambientalistas e agroecologistas, a
presidente da Repblica, Dilma Rousseff, institui em agosto de 2012 a Poltica Nacional de
Agroecologia e Produo Orgnica (PNAPO) e em outubro de 2013 o Plano Nacional de
Agroecologia e Produo Orgnica (PLANAPO). Vale ressaltar, que na primeira conferncia
foram geradas demandas que resultaram, em 1987, num documento conhecido como Nosso
Futuro Comum ou Relatrio Brundtland, produzido pela Comisso Mundial sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento2, onde o termo desenvolvimento sustentvel surgiu com a
definio de que o seu desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da gerao atual,
sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras geraes, ou seja, o
desenvolvimento que no esgota os recursos para o futuro. (UNITED NATIONS, 1987).
O conceito de desenvolvimento rural sustentvel definido por Lemos (2012)
como um conjunto de aes sinrgicas capazes de promover uma melhoria no padro de vida
da populao rural, por meio do acesso terra de qualidade e em quantidade; da preservao
dos recursos naturais, renovveis e no renovveis; da participao dos envolvidos; do
empoderamento da populao; da solidariedade para com as geraes futuras; do trabalho
estvel com remunerao digna; da radicalizao na educao; e da satisfao das
necessidades bsicas da populao rural.
Mas, realmente existe uma definio coerente e definitiva a esse respeito? Uma
vez que o desenvolvimento se constitui num cenrio capitalista e globalizante, por outro lado,
sua sustentao precisa ser entendida a partir de outras lgicas, como a holstica. Para Boechat
e Lauriano (2012), o desenvolvimento sustentvel interpretado como um trip que alia trs
grandes dimenses: econmica, social e ambiental e cujas intersees so exemplificadas
2 Criada pelas Naes Unidas para discutir e propor meios de harmonizar o desenvolvimento econmico e a
conservao ambiental.
28
como insero socioeconmica, presente entre as dimenses econmica e social; justia
socioambiental, presente entre as dimenses social e ambiental; e por fim, a ecoeficincia,
representada entre a dimenso ambiental e econmica; como mostra a Figura 1.
Figura 1 Representao esquemtica das dimenses para se alcanar o desenvolvimento
sustentvel.
A sustentabilidade econmica, segundo Daly (1992), indica que a teoria
econmica deve atender a trs objetivos: alocao, distribuio e escala, ou seja, alocao e
distribuio eficiente dos recursos naturais dentro de uma escala apropriada, deixando clara a
necessidade de suplantar os modelos tradicionais, que medem crescimento e desempenho da
economia, por incorporar a dimenso ambiental. A expanso do modelo de mensurao pode
emitir sinais de alarme imprescindveis para reorientar a direo econmica rumo ao
crescimento sustentvel.
A sustentabilidade social refere-se a um processo de desenvolvimento que leve a
um crescimento estvel, com distribuio equitativa de renda, gerando com isso, a diminuio
das atuais diferenas entre os diversos nveis na sociedade e a melhoria das condies de vida
das populaes. (SACHS, 1997).
Fonte: Adaptado de BOECHAT e LAURIANO (2012).
Desenvolvimento
Sustentvel
Justia
Ambiental
Ecoeficincia
Insero
Socioeconmica
29
Quanto sustentabilidade ambiental, Rutherford (1997) revela que a principal
preocupao so os impactos das atividades humanas sobre o meio ambiente, indicando a
reduo na utilizao de combustveis fsseis, a diminuio das emisses de substncias de
poluentes, adoo de polticas de conservao de energia e de recursos, substituindo recursos
no renovveis por renovveis, aumentando eficincia em relao aos recursos utilizados.
Sachs (1997) considera a sustentabilidade como conceito dinmico que engloba
um processo de mudana para alm da rea econmica, social e ambiental. A autora
complementa o entendimento interdisciplinar da sustentabilidade, acrescentando ento as
dimenses geogrfica e cultural, que relacionam o caminho da modernizao sem o
rompimento da identidade cultural dentro de contextos espaciais especficos, incentivando
uma distribuio dos espaos adequadamente, sem desenvolver desequilbrios, preservando os
valores locais e alcanando o progresso em direo sustentabilidade, sendo esta uma escolha
da sociedade, das organizaes, das comunidades e dos indivduos. Para a autora supracitada,
a dimenso cultural talvez seja a mais difcil de ser alcanada.
Alm dessas pilastras, o Projeto ridas (1995) ainda constitui duas outras
dimenses para o desenvolvimento sustentvel: a dimenso tcnico-cientfica, na importncia
de gerar conhecimentos cientficos viabilizando o avano da sociedade; e a dimenso poltico-
institucional, em que acontece o empoderamento da populao, ganhando liberdade de decidir
seus caminhos e suas decises.
Quanto s intersees, no ponto de vista socioeconmico, os autores Masera,
Astier e Lpez-Ridaura (2000) revelam que h vrios mecanismos bsicos para promover
agricultura sustentvel, quais sejam:
a) enfatizar os processos de produo por sua vantagem entre as diferentes
atividades econmicas;
b) reforar os mecanismos de cooperao e de solidariedade local e a participao
efetiva dos envolvidos na gerao, implementao e avaliao de diferentes
alternativas para a gesto de recursos naturais;
c) fortalecer as capacidades e competncias locais, incentivando processos de
formao de autogesto e educao participativa;
d) manter respeito pelas diferentes tradies culturais e da promoo da
diversidade cultural e tnica.
Na interseo justia sociambiental, Boechat e Lauriano (2012) retratam a
respeitabilidade e a materializao dos direitos sociais e ambientais dos cidados que tendem
a possibilitar a coexistncia harmnica entre a coletividade e o meio natural. Defende-se que
30
sem justia no h sociedade, que a justia social fundamenta a justia ambiental, tornando-a
um requisito indispensvel para a sustentabilidade das necessidades bsicas das populaes
humanas e da manuteno do equilbrio entre sociedade e ambiente.
E por fim, a combinao econmica e ambiental revela a ecoeficincia como uma
prtica de uso mais eficiente e racional de matrias-primas e energia, a fim de reduzir os
custos econmicos e os impactos ambientais. De acordo com o conceito elaborado pelo World
Business Council for Sustainable Development (WBCSD), em 1992, a ecoeficincia atingida
por meio da oferta de bens e servios a preos competitivos, que, por um lado, satisfaam as
necessidades humanas e contribuam para a qualidade de vida e, por outro, reduzam
progressivamente o impacto ecolgico e a intensidade de utilizao de recursos ao longo do
ciclo de vida, at atingirem um nvel que respeite a capacidade de sustentao estimada para o
planeta terra. (WBCSD, 2000). Este conceito sugere uma significativa ligao entre eficincia
dos recursos (que leva produtividade e lucratividade) e responsabilidade ambiental.
Nesse sentido, aps a caracterizao esquemtica das dimenses para se alcanar
o desenvolvimento sustentvel, possvel revelar que a agricultura ecologicamente saudvel,
como se refere Roling e Jiggins (1998), no apenas uma questo de mudana das prticas
agrcolas ou uma questo de afirmaes cientficas slidas com relao a sua adequao e
viabilidade. Tambm requer uma transformao de um sistema coerente de aprendizagem, de
facilitao, apoio institucional e de polticas favorveis.
O fato que a transio da agricultura convencional para a agricultura
ecologicamente saudvel no fcil e nem simples. O sistema bastante complexo! No s
no sentido de complexas interaes entre solos, plantas, animais e prticas agrcolas, mas
tambm em termos de conhecimento humano e aprendizagem, instituies e polticas.
Esse modelo alternativo de agricultura, que lida com os recursos naturais diferente
do modelo convencional, se baseia na capacidade do usurio da terra e suas redes de apoio em
tomar decises e medidas adequadas a partir da observao, enfatizando o desenvolvimento
de recursos. Aqui o meio ambiente no mais e apenas um fator de produo. Esta transio
requer uma gesto que haja interao entre as partes interessadas; as estratgias devem estar
compartilhadas tornando visvel o estado do ambiente; e a tomada de deciso deve ser
coletiva. Alm disso, vale ressaltar que o profissionalismo continua sendo a credencial que
garante a entrada e a permanncia para esses novos tempos.
Esse processo de transio para sistemas sustentveis bem sintetizado por
Gliessman (2000), que o fundamenta em trs nveis. O primeiro diz respeito ao aumento da
eficincia das prticas convencionais para reduzir o uso e consumo de fatores de produo
31
externos, dispendiosos, escassos e prejudiciais ao ambiente. O segundo refere-se
substituio de prticas convencionais por prticas alternativas. O terceiro representado pelo
redesenho dos sistemas, baseados num novo conjunto de processos ecolgicos.
Nesta perspectiva, o autor supracitado revela que um agroecossistema sustentvel
se mantm base de recursos naturais-locais, com um uso mnimo de insumos artificiais
vindos de fora do sistema de produo agrcola capaz de se recuperar de perturbaes
causadas pelo manejo por meio de mecanismos reguladores internos. Alm de que, nesse
sistema as relaes entre organismos vivos e seu ambiente so complementares, as quais no
tempo e nos espaos parecem manter um equilbrio dinmico.
O equilbrio dinmico entre as espcies e a sustentabilidade da produo agrcola
vista como o resultado da coevoluo socioambiental, e no como algo que decorre da
aplicao da racionalidade economicista s relaes entre a sociedade e a natureza. Nesse
sentido, a cincia agroecolgica tem um papel importante, pelo fato de ser uma cincia
aplicada aos sistemas de produo e ter por princpio trabalhar com a biodiversidade dos
agroecossistemas.
Vale ressaltar que o termo coevoluo, segundo Ridley (2006), pode significar
uma evoluo simultnea entre duas ou mais espcies que tm um relacionamento ecolgico
prximo. Por meio de presses seletivas, existe uma influncia recproca, onde as mudanas
evolutivas de uma espcie influenciam as mudanas evolutivas da outra espcie. Ento por
exemplo, quando uma planta e inseto se interagem e com o passar do tempo ocorre uma
mudana evolutiva na morfologia da planta, consequentemente afeta a morfologia do inseto
que come essa planta, que por sua vez pode afetar a evoluo da planta, que pode afetar a do
inseto e assim sucessivamente. Portanto, na coevoluo, a evoluo de uma espcie torna-se
parcialmente dependente da evoluo da outra.
Dessa forma, de acordo com Gamarra-Rojas (em fase de elaborao)3, a natureza
dos ecossistemas oferece oportunidades para as atividades agrcolas, mas tambm impe
limites. As formas de uso do espao adotadas pelos agricultores adaptam-se diversidade
destes ecossistemas, buscando explorar da melhor forma os seus potenciais ou minimizar os
obstculos que apresentam.
Isto posto, para o autor mencionado acima, considerando a sua estrutura e funo,
possvel descrever o agroecossistema como composto pelos limites dos sistemas, pelos
componentes, pelas interaes entre componentes e pelas entradas e sadas. Para tanto, os
3 GAMARRA-ROJAS, Guillermo. Coevoluo de Agroecossistemas no Semirido
Pernambucano, a ser aprovado.
32
componentes podem ser fsicos, biolgicos e socioeconmicos, sendo suas interaes diversas
e que caracterizam a estrutura do sistema. As entradas e sadas so os fluxos de produtos
materiais, energia e informao que se d para o interior ou para o exterior do sistema. Os
limites do sistema determinam o universo de estudo ou de ao e se definem de acordo com
os objetivos da investigao ou interveno.
Apesar da complexidade dos agroecossistemas, em termos dos seus efeitos
dinmicos, a sustentabilidade pode ser apreendida e compreendida por propriedades do
sistema que, em conjunto, descrevem o essencial do comportamento dos agroecossistemas.
(CONWAY, 1986). Produtividade, equidade, sustentabilidade, estabilidade e resilincia so
algumas dessas propriedades sistmicas e vm sendo utilizadas por aqueles que realizam
esforos sistemticos para tornar operativos os princpios gerais da sustentabilidade na
agricultura. (MASERA; ASTIER; LPEZ-RIDAURA, 2000).
Pretty (2008) alude que os princpios-chave que norteiam a sustentabilidade so:
a) integrao dos processos biolgicos e ecolgicos como ciclagem de nutrientes,
fixao biolgica de nitrognio, regenerao do solo, alelopatia, competio,
predao e parasitismo em processos de produo de alimentos;
b) diminuio da utilizao dessas entradas no renovveis que danificam o meio
ambiente ou sade de agricultores e consumidores;
c) uso produtivo do conhecimento e das habilidades dos agricultores para
melhorar sua auto-suficincia; e
d) uso produtivo das capacidades coletivas dos indivduos de trabalhar em
conjunto para resolver os problemas da agricultura e dos recursos naturais
comuns (controle de pragas, bacias hidrogrficas, irrigao, floresta e gesto
de crdito).
Contudo, ao se avaliar a sustentabilidade de um agroecossistema deve-se
considerar a natureza hierrquica de tais sistemas. Conway (1987) afirmou que um
agroecossistema pode ser um campo de colheita ou um pasto, a hierarquia dos
agroecossistemas inclui uma planta ou animal individualmente, o micro ambiente imediato, as
pessoas que cuidam dos animais e da colheita. Gamarra-Rojas apresenta os sistemas de
cultivo e de criao de animais, tais como os quintais produtivos, como subsistemas de um
sistema hierarquicamente superior, o agroecossistema.
A natureza complexa dos agroecossistemas impe a busca de uma compreenso
que abrange processos biolgicos e tecnolgicos fundamentalmente durante a produo ao
nvel da propriedade e socioeconmicos e polticos basicamente durante a circulao dos
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bens produzidos at o consumidor - em escalas geogrficas crescentes, da comunidade ao
territrio e a nao. (SEVILLA GUZMN, 2002).
Assim, pode-se deduzir que o caminho mais adequado para ser seguido, na
promoo de um desenvolvimento rural de carter sustentvel, seria incentivar o movimento
contra hegemnico, dando um sentido de baixo para cima, da sociedade para a esfera da
poltica, do local para o nacional e o global, pois as organizaes alternativas viabilizam a
participao cidad nesses processos por meio de tcnicas e metodologias participativas,
atribuindo-lhes significados novos, de transformao social e de construo de novos
paradigmas de desenvolvimento, impostos pelas condies materiais e ideolgicas da
realidade concreta.
Nesse caso, apresenta-se nos prximos itens como uma estratgia dos principais
agentes de fortalecimento da democracia e da cidadania, a tecnologia social quintal produtivo,
que a partir de um estmulo revalorizao do espao do quintal das casas das famlias rurais,
busca favorecer a segurana alimentar, auxiliar a convivncia com o semirido, viabilizar a
participao em espaos polticos e possibilitar um aumento na renda familiar.
2.3 Tecnologia social voltada para a agroecologia
O perodo da histria em que vivemos identificado por Santos (2000) como a
vontade de evoluo dos homens, comandada pelo capital financeiro e pelas grandes
corporaes transnacionais, em que tudo se transforma em mercadorias, impondo a lgica do
mercado como a lgica de organizao da sociedade e das relaes sociais, e enaltecendo a
competio, o individualismo, a lei do mais forte.
Esse poder hegemnico dos agentes do mercado utiliza tcnicas e metodologias
perversas da acelerao do processo de acumulao de capital com o aumento do desemprego,
da pobreza, da desigualdade, da excluso social, com a explorao e a degradao sem limites
dos recursos ambientais. (SANTOS, 2000).
No entanto, apesar desse modelo de desenvolvimento impor seus valores sobre o
conjunto das sociedades, ele no absoluto. Ele tambm causa seu contrrio, quando as
prticas de resistncia dos atores coletivos, dos movimentos sociais e polticos, das
associaes e entidades tm por referncia outra vontade de evoluo dos homens e buscam
reverter o quadro pondo a economia a servio da sociedade e construindo alternativas de
desenvolvimento e de organizao social fundadas na solidariedade, na incluso social, na
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busca da equidade, no respeito aos direitos humanos, na preservao ecolgica, na justia
social. (SANTOS, 2000).
Nessa perspectiva, as experincias inovadoras podem ser avaliadas e valorizadas
tanto pela sua dimenso de processos de transformao social, que permita a superao da
sociabilidade capitalista, como pelos resultados que proporcionam atender s necessidades
humanas ou ainda melhorar da qualidade de vida dos pobres. (JESUS, 2010).
Tais expresses vo ao encontro da proposta das tecnologias sociais, que remete a
um projeto particular de desenvolvimento tecnolgico, cuja funo fomentar o processo de
desenvolvimento econmico, poltico e cultural, enfim, um processo particular de
desenvolvimento social (DAGNINO; BRANDO; NOVAES, 2010). Em primeiro lugar,
como ressalta Dagnino, Brando e Novaes (2010), a tecnologia social no deve e nem
precisa ser entendida como um conceito. Para Jesus (2010), uma parcela significativa dos
grupos que reivindicam fomento tecnologia social a compreendem como um instrumento
para amenizar os efeitos deletrios do capitalismo. Enfatiza-se que os diferentes grupos que se
somam ao movimento pelas tecnologias sociais possuem um espectro extremamente
variado de interesses e vises ideolgicas, nem sempre corroborando com a transformao
social aqui proposta.
Deste modo, cabe retornar brevemente prpria concepo de tecnologia, que
para Almeida (2001), amplamente entendida pela aplicao sistemtica de conhecimentos
cientficos e tcnicos para a soluo de tarefas prticas, em grande medida para realizao da
produo de mercadorias. No entanto, toda tecnologia est intrinsecamente ligada ao processo
histrico, poltico, cultural e econmico no qual se insere. Em outras palavras, toda a
tecnologia socialmente concebida e desenvolvida. Portanto, a tecnologia no neutra, isto ,
ela incorpora conjuntos de valores e interesses que a justificam e fundamentam. Como
colocam os autores acima, no capitalismo, enquanto fator de produo e sob a propriedade de
determinada classe social, a tecnologia cumpre, entre outras funes, um papel fundamental
de dominao social.
Se toda tecnologia socialmente construda, o que significa ento tecnologia
social? A expresso tecnologia social visa satisfao das necessidades mais bsicas dos
povos tradicionais, seja por meio do prprio bem produzido, como por exemplo, as
tecnologias voltadas segurana alimentar, seja pela venda da mercadoria produzida. Em
geral, as duas opes ocorrem conjuntamente, como o caso dos quintais produtivos.
(DAGNINO; BRANDO; NOVAES, 2010).
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A primeira opo a menos mercantilizada, j que o processo produtivo final a
prpria utilizao ou consumo do produto pelo seu produtor, o que no caracteriza o bem
como mercadoria. Entretanto, dada impossibilidade de se produzir tudo o que se necessita
no capitalismo, as famlias que adotam a tecnologia social comercializam seus produtos para
adquirirem outras mercadorias que satisfaam suas necessidades. Dessa forma, a segunda
opo, a venda da mercadoria produzida por meio da tecnologia social, configura-se como
necessidade imediata. (DAGNINO; BRANDO; NOVAES, 2010).
Entretanto, para ser caracterizada como social, a tecnologia deve exaltar seu
valor de uso, qual seja, de ser o meio para a produo de bens cujo objetivo satisfazer as
necessidades mais bsicas da classe trabalhadora. Nesse sentido, para Otterloo (2009) um dos
aspectos centrais o controle social da tecnologia, tanto no que se refere sua produo como
apropriao e possibilidades de recriao. A socializao das tecnologias sociais entre
movimentos populares e de classe pode ser considerada, portanto, como pressuposto para sua
prpria constituio.
Nesse sentido, a tecnologia social no um fim em si, mas uma ferramenta
para construir outra sociedade (DAGNINO, BRANDO e NOVAES, 2010), contribuindo
para a diminuio de desigualdades socioeconmicas e a promoo da segurana alimentar e
nutricional. Assim, uma das caractersticas das tecnologias sociais, de acordo com Leonel
(2010) a valorizao dos saberes e da cultura local, cujo objetivo o de divulgar as
potencialidades locais e abrir oportunidades de melhoria nas condies de vida e de trabalho
para um significativo nmero de trabalhadores e trabalhadoras rurais que se encontram em
processo de organizao socioprodutiva e revendo seus valores e seu jeito de trabalhar a terra
e os recursos naturais disponveis.
Nesse caso, o conceito Tecnologia Social utilizado quando processos de
experimentao e de inovao tecnolgicas e sociais para atividades agrcolas vm sendo
inventadas e reinventadas pelos prprios agricultores, e vm conquistando espaos como
uma alternativa de convivncia com o semirido. Portanto, importante situar e valorizar o
sentido transformador atribudo ao conceito de tecnologia social adotado pela ONG CETRA,
em que so as experimentaes tecnolgicas, baseadas na combinao de critrios sociais,
ambientais e culturais suplementares aos critrios tcnicos e aos interesses econmicos. Estas
visam atender a demandas sociais e so selecionadas pela sua adaptao ao contexto e s
capacidades locais, assim como sua apropriao pelas famlias envolvidas. (LEONEL, 2010).
Tambm, as tecnologias sociais, mais do que a capacidade de implementar
solues para determinados problemas, podem ser vistas como mtodos e tcnicas que
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permitam impulsionar processos de empoderamento das representaes coletivas da cidadania
para habilit-las a disputar, nos espaos pblicos, as alternativas de desenvolvimento que se
originam das experincias inovadoras e que se orientem pela defesa dos interesses das
maiorias e pela distribuio de renda. (OTTERLOO, 2009).
nesse registro que no subitem a seguir identifica e valoriza o sentido maior
atribudo ao quintal agroecolgico na pesquisa, compreendendo-o como tecnologia social de
acesso e manejo produtivos da terra, das guas, das sementes, da diversidade produtiva dos
sistemas agrcolas e do saber-fazer das comunidades do Territrio Vales do Curu e Aracatiau
no estado do Cear.
2.3.1 Dinmica sociotcnica dos quintais produtivos
A tecnologia social quintal produtivo um mecanismo fundamental para
promover a sustentabilidade da agricultura familiar, pois se tem a proposta de:
[...] (i) reduzir os riscos econmicos e sociais que ocorrem em razo de fatores
internos e externos e da prpria instabilidade climtica do semirido; (ii)
incrementar a produtividade global da propriedade; (iii) garantir a segurana
alimentar e nutricional das famlias; (iv) proporcionar incremento de renda (v)
promover o resgate das culturas tradicionais locais; (vi) estimular a experimentao
e autogesto pelos grupos envolvidos; e (vii) promover a incluso de gnero e
juventude com a participao efetiva desses segmentos. (LEONEL, 2010, p.11).
Esses propsitos da tecnologia social quintal produtivo que buscam o
desenvolvimento sustentvel ope-se ao modelo insustentvel de desenvolvimento
dominante, que usa a biodiversidade como negcio e o campo enquanto forma de produo,
degradando do meio ambiente com o uso crescente e alarmante consumo de agroqumicos
que contaminam plantaes, solos e gua.
No modelo onde o quintal compreendido como um agroecossistema complexo
de interaes de seus componentes, visto como um espao no entorno da casa de produo
diversificada com pomares, hortas, plantas medicinais, gua, pequenos animais, tem como
referencial a temtica da agroecologia para contribuir na construo de um desenvolvimento
rural que carregue em si a busca permanente da sustentabilidade em suas mltiplas dimenses
ambiental, social, econmica, cultural, poltica e de incluso de gnero e gerao.
(LEONEL, 2010).
A tecnologia social quintal produtivo se configura por meio da integrao entre
processos e artefatos. Tem como principal componente tecnolgico um mix de tecnologias
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voltadas ao processo produtivo de pequenas e mdias propriedades rurais. Tais tecnologias
buscam manejar os recursos da propriedade de forma sustentvel e integrada, segundo os
preceitos da agroecologia. Nesse sentido, o mix de tecnologias composto por plantio
diversificado, sistema de irrigao eficiente, adubao orgnica, criao de abelhas e animais
de pequeno porte.
Para processar esse mix necessrio alguns equipamentos, como o kit de materiais
para a implantao do projeto, composto por: esterco; tela para cercar o galinheiro; arame,
estaca e mouro para segurar a tela; sementes; canos de mangueira para irrigar; estruturas de
captao de gua, como poo, cisternas calado ou de placa. importante advertir que esse
kit no era padronizado. Os elementos recebidos variavam de acordo com a especificidade de
cada quintal.
Para que uma propriedade rural receba esse mix de tecnologias preciso que
cumpra alguns requisitos. O primeiro se refere ao interesse demonstrado pelo/a agricultor/a
em fortalecer a tecnologia social quintal produtivo, preferencialmente, j ter um processo de
experimentao agroecolgica nos quintais e se encontrar participando nas Redes de
Agricultores/as Agroecolgicos/as e Solidrios/as e/ou Apicultores/as Agroecolgicos/as do
Territrio Vales do Curu e Aracatiau4. J para a seleo de quintais em reas de implantao
de cisternas calado, o critrio prioritrio refere-se escassez de gua para a produo e o
interesse da famlia em desenvolver projetos produtivos integrados dinmica dos quintais
(LEONEL, 2010, p.16).
O processo de implementao do projeto Quintais para a Vida passa por sete
momentos relacionados /ao: identificao dos quintais das pessoas/famlias que iro
participar do projeto; diagnstico dos quintais para identificar as potencialidades e as
necessidades; criao de ambiente para instalao da tecnologia social quintal produtivo;
implementao da tecnologia em cada rea; processo de formao que visam aprimorar e
intercambiar iniciativas de transio agroecolgica e alternativas de convivncia com o
semirido; visitas de tcnicos sociais para acompanhar as dificuldades e melhorar a situao
apresentada no quintal produtivo; e, por fim, construo e fortalecimento das Feiras
Agroecolgicas e Solidrias e os Encontros Territoriais de Agroecologia e Socioeconomia
Solidria. (LEONEL, 2010).
A identificao dos quintais ocorre por meio da percepo da ONG CETRA nas
comunidades de atuao. Em seguida, faz uma apresentao sobre o projeto na Associao
4 Embora esse seja o perfil desejado pela ONG, as propriedades visitadas apontaram outros elementos, como, por
exemplo, a relao e integrao da segurana alimentar e nutricional com a comercializao solidria.
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Comunitria, e a partir da seja possvel identificar o interesse das famlias em fazer parte
desse plano. No entanto, essa estratgia de sensibilizao, mobilizao e organizao dos
interessados possibilita uma reflexo conjunta de situaes problemas e solues apropriadas
melhoria da qualidade de vida. Alm desse meio, a identificao e definio dos quintais
produtivos tambm se deu em estreita articulao com a Rede de Agricultores/as
Agroecolgicos/as e Solidrios/as com o CETRA.
Com isso, o perfil do/a beneficirio/a traado na articulao poltica, pois fazem
parte de associaes comunitrias (alguns so at presidentes); da Rede; e alguns tm acesso
ao crdito do PRONAF A e B5. So atuantes no movimento sindical, movimento de mulheres
e/ou frum dos assentados/as da reforma agrria, entre outros.
J o diagnstico dos quintais, realizado por tcnicos da instituio, se refere ao
olhar tcnico social para medir o nvel das potencialidades de cada rea, refletindo a troca de
conhecimentos e as mudanas desejadas pelas famlias agricultoras. Esse exerccio identificou
a diversificao de culturas, o processo de construo e a irradiao do conhecimento
agroecolgico. Para uma melhor anlise desse espao domstico foram desenhados pelas
famlias, com a colaborao dos tcnicos, os mapas das propriedades, registrando a realidade
da rea de cada uma e como as condies de vida poderiam ser melhoradas com a experincia
do projeto Quintais para a Vida. (LEONEL, 2010).
Outro processo a criao de ambiente para instalao das tecnologias, que se
refere ao estudo da viabilidade de implementao e do planejamento metodolgico. Realizado
pela assistncia tcnica, conta com a participao do/a agricultor/a durante todo o processo,
tendo a oportunidade de exercitar seu prprio planejamento, a partir das discusses e
experincias compartilhadas.
Segundo Leonel (2010, p. 28-29), uma ao construda de forma dialogada
com as famlias para realizar intervenes que respondam s suas necessidades sentidas.
percebido, portanto, atravs das observaes sobre suas prprias reas; procurando identificar
indicadores ecolgicos e de saberes culturais com o intuito de ampliar a percepo sobre a
realidade local, a dinmica do ecossistema e como conviver com essa complexidade; uma
5 A poltica de crdito PRONAF organizou os beneficirios discriminados pelo Programa a partir de categorias,
segundo o nvel de Renda Bruta anual. Referenciam-se os Grupos A e B, em que o GRUPO A contempla os
agricultores familiares assentados pelo Programa Nacional de Reforma Agrria (PNRA) ou beneficirios do
Programa Nacional de Crdito Fundirio (PNCF) que no foram contemplados com operao de investimento
sob a gide do Programa de Crdito Especial para a Reforma Agrria (Procera) ou que ainda no foram
contemplados com o limite do crdito de investimento para estruturao no mbito do Pronaf. J o GRUPO B
pertence classe de agricultores familiares com renda bruta familiar de at R$4.000,00 (quatro mil reais),
excluindo os benefcios sociais e os proventos previdencirios decorrentes de atividades rurais. Fonte: Manual do
Crdito Rural Plano de Safra da Agricultura Familiar 2004/2005.
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forte participao dos agricultores/as na implementao da tecnologia e assim tambm na
apropriao desta.
Para a instalao da tecnologia social quintal produtivo foram realizadas
formaes junto s famlias do Territrio Vales do Curu e Aracatiau que contou com a
combinao de vrias metodologias participativas. Como parte da capacitao, destaca-se o
momento do Encontro dos Quintais, realizado em 16 de setembro de 2009, em Itapipoca,
com 24 horas de formao. O evento teve como objetivos: proporcionar interao e apresentar
os mapas dos quintais desenhados pelas prprias famlias envolvidas, realizar anlise coletiva
sobre a realidade diversificada expressa nos mesmos e socializar a proposta dos registros nos
Cadernos de Campo6, utilizados para anotar os dad