Post on 05-Nov-2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute
SARAH ROEDER
O CONTRA OS MUacuteSICOS DE SEXTO EMPIacuteRICO INTRODUCcedilAtildeO TRADUCcedilAtildeO E COMENTAacuteRIOS
CURITIBA2014
SARAH ROEDER
O CONTRA OS MUacuteSICOS DE SEXTO EMPIacuteRICO INTRODUCcedilAtildeO TRADUCcedilAtildeO E COMENTAacuteRIOS
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Muacutesica aacuterea de concentraccedilatildeo emMusicologia Histoacuterica Departamento de MuacutesicaSetor de Artes Universidade Federal do Paranaacutecomo requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestreem Muacutesica
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Junior
CURITIBA2014
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeoFernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607
Biblioteca de Ciecircncias Humanas e Educaccedilatildeo - UFPR
Roeder Sarah O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico introduccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios Sarah Roeder ndash Curitiba 2014 132 f
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Muacutesica) ndash Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e
Design da Universidade Federal do Paranaacute
1 Muacutesica - Histoacuteria e criacutetica 2 Muacutesica grega na Antiguidade 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Teoria musical ITiacutetulo CDD 7809
Aos que sustentam firmemente a dicotomia entre o pensar e o fazer artiacutestico
AGRADECIMENTOS
Ao professor Roosevelt Rocha pela orientaccedilatildeo por sua postura (praacutetica e direta) naconduccedilatildeo de nossas reuniotildees pelo incentivo a esse projeto e pela incriacutevel paciecircncia
Ao professor Luiz Eva com quem pude estudar a Filosofia ceacutetica do segundo ano agravemonografia agradeccedilo pelos ldquohieroacuteglifosrdquo de suas correccedilotildees a partir dos quais aprendi aestruturar minhas ideias e esclarececirc-las no papel
Ao professor Bernardo Brandatildeo por encorajar o estudo do grego antigo tratando-ocomo a liacutengua mais simples do mundo e pelo projeto inicial de traduccedilatildeo do Contra osMuacutesicos E ao Professor Pedro Ipiranga pelas primeiras letras gregas
Agrave professora Lia Tomaacutes pela pertinecircncia de seus comentaacuterios pela indicaccedilatildeo debibliografia e pelo empreacutestimo de livros fundamentais para essa pesquisa
Ao professor Roberto Bolzani pela dedicada anaacutelise dessa dissertaccedilatildeoAos amigos professor Paulo Vieira Neto pelos cafeacutes filosoacuteficos ao longo desses
anos professor Benito Maeso pelo estaacutegio em docecircncia com a turma de monstrinhos (nomelhor sentido da palavra) e pelas orientaccedilotildees de botequim Ana Carolina Freire pelasrevisotildees e inuacutemeros conselhos que sempre terminam com um ldquonada temardquo Aos colegasfilosofantes Marcelo Gustavo Raphael Eduardo Bruno Gustavo Paiva e principalmenteao grande amigo Wagner Bitencourt
Agrave turma do mestrado pelo carinho com que todos me receberam Especialmente aoVicente pelo incentivo e pela parceria nos trabalhos de anaacutelise ao Adriano pelas conversasao longo da Rua XV ao Elder pelo seu incansaacutevel espiacuterito criacutetico agrave Renata pelas agradaacuteveistardes no cafeacute agrave Lilian e agrave Flora pelo apoio e preciosos conselhos
Agrave Denise Drechsel e agrave Vera Lucia Barbosa pelo carinho e entusiasmo com queaceitaram o trabalho de revisatildeo dessa dissertaccedilatildeo
Aos colegas do Coro da UFPR pela companhia nas tardes de traduccedilatildeo e revisatildeoAo Maestro Alvaro Nadolny pela dedicaccedilatildeo em ensinar arte muito aleacutem da teacutecnica
pelo incentivo agraves mudanccedilas em meu caminho pelos inuacutemeros conselhos que ele (ldquonatildeordquo) daacutee principalmente por me ensinar (no sentido mais profundo que se possa entender) quemuacutesica eacute para o outro
Ao Hermes (namorado noivo e marido durante esses dois anos de mestrado) por seuamor sua muacutesica e por me mostrar o mundo de outro jeito fazendo de mim algueacutem melhor
Agrave minha matildee Gloacuteria (principalmente pelo seu bom-senso infaliacutevel) e ao meu paiJunior (especialmente por pensar ndash sempre ndash fora da caixinha) por apoiaremincondicionalmente todas as (boas) ideias mirabolantes de seus filhos
Ao meu irmatildeo Matheo pelo carinho pela paciecircncia absurda e pelos trocadilhos ruinsque divertiram meus dias enquanto moramos juntos
Por fim aos professores do PPG - Muacutesica por acreditarem no potencial desse projetoespecialmente agrave professora Silvana Scarinci e ao professor Danilo Ramos
Ao secretaacuterio Gabriel pelo profissionalismo com que exerce sua funccedilatildeo Agrave CAPES pelo suporte financeiro agrave realizaccedilatildeo dessa pesquisa
Por amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar por meio da argumentaccedilatildeo na medida do possiacutevel
o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticos
Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas III 280
RESUMO
O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico eacute uma importante fonte sobre o papel da muacutesica naAntiguidade Nesta obra o filoacutesofo ceacutetico refuta a teoria musical tanto sob a perspectiva eacuteticandash questionando sua utilidade quanto sob a perspectiva teacutecnica ndash apresentando argumentoscontra conceitos fundamentais da ciecircncia musical como o de melodia e o de ritmo Arefutaccedilatildeo da teoria musical compartilha de um objetivo mais amplo da Filosofia ceacutetica asaber o combate ao dogmatismo na Filosofia e nas disciplinas que compunham os EstudosCiacuteclicos O presente trabalho consiste na traduccedilatildeo comentada do Contra os Muacutesicos Emnosso comentaacuterio agrave obra buscamos reunir as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeodessa obra sob a perspectiva filosoacutefica e a perspectiva musicoloacutegica Partimos da divisatildeohieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical e em funccedilatildeo disso apresentamos um panoramageral da teoria musical na Antiguidade segundo duas perspectivas o papel psicagoacutegico damuacutesica e os aspectos teacutecnicos da ciecircncia musical Enfatizamos por um lado a importacircncia dateoria do ethos musical no pensamento filosoacutefico de Platatildeo e de Aristoacuteteles e por outro aconcepccedilatildeo de teoria musical enquanto ciecircncia autocircnoma desenvolvida por Aristoacutexeno Aleacutemdisso devido agrave sua semelhanccedila com o Contra os Muacutesicos apresentamos a criacutetica ao papeleacutetico da muacutesica elaborada pelo filoacutesofo epicurista Filodemo Buscamos em seguida explicara mousike enquanto uma das artes que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos que privilegiando oacircmbito teoacuterico constituiacuteam ainda uma propedecircutica agrave Filosofia Depois disso situamos aobra no acircmbito da Filosofia ceacutetica mostrando que em todos os livros do Contra osProfessores o ceacutetico parte de uma dicotomia entre arte teoacuterica e praacutetica e que sua refutaccedilatildeodiz respeito apenas agrave precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de sustentar teorias sobre cada uma das tekhnaiPor fim analisamos em detalhe os argumentos que compotildeem o Contra os Muacutesicosmostrando que estes refutam somente o acircmbito teoacuterico da muacutesica abrindo espaccedilo para umareflexatildeo a respeito do valor da praacutetica musical na cultura grega antiga
Palavras-chave Muacutesica Grega Antiga Ceticismo Ethos tekhne Sexto Empiacuterico Estudos Ciacuteclicos
ABSTRACT
Sextus Empiricus work called Against the Musicians is an important source about music inthe Ancient Greece In this book the skeptic attempts to refute musical theory of that timeson the ethical way ndash questioning its utility as well as on the technical perspective ndash arguingagainst fundamental concepts of this science such as melody and rhythm The refutation ofmusical theory is part of a broader goal in Sextus work - and on the Skeptical Philosophyproject as a whole to oppose dogmatism in philosophy and in the Cyclical Studies subjectsOur work consists of a translation and a commentary on Against the Musicians Thecommentary aims to present the necessary tools for an interpretation of Against the Musiciansin philosophical and musicolgical terms We followed the hierarchycal division betweenmusical theory and practice as a starting point and present music theory in Ancient times bytwo perspectives musics psychagogic role and technical aspects of music science Weemphasized the importance of the theory of musical ethos in Platos and Aristotlesphilosophy Aristoxenus development of music theory as an autonomous science andPhilodemus critic regarding musics ethical role An effort was made to explain mousike asone of the arts of the Cyclical Studies These favoured the theorical range also constituting apropedeutic to Philosophy After that we put the work into its philosophical context byshowing that the whole Against the Professors assumes a dichotomy between theorical andpractical art and that the refutation concerns only the dogmatic precipitancy to firmly mantaintheories about each one of the tekhnai At last a detailed analysis was made on the argumentsthat make up the Against the Musicians showing that these arguments extends just to thetheorical part of music enabling us to reflect upon the value of musical practice
Keywords Ancient Greek Music Skepticism Ethos Tekhne Sextus Empiricus Cyclical Studies
LISTA DE ABREVIATURAS
Aristides Quintiliano De mus ndash De Musica
AristoacutetelesEN ndash Eacutetica a NicocircmacoMet ndash MetafiacutesicaPol ndash PoliacuteticaProb ndash Problemas Musicais
AristoacutexenoEl Harm ndash Elementa Harmonica
Boeacutecio Inst ndash De Institutione Musica
Filodemo De mus ndash De musica
PlatatildeoRep ndash RepuacuteblicaEuth ndash EutidemoTi ndash Timeu
Plutarco De mus ndash De Musica
QuintilianoInst ndash Institutione Oratoria
Sexto Empiacuterico1
HP ndash Hipotiposes PirronianasM I - VI ndash Contra os Professores (Adversus Mathematicos)M I ndash Contra os GramaacuteticosM II ndash Contra os RetoacutericosM III ndash Contra os GeocircmetrasM IV ndash Contra os AritmeacuteticosM V ndash Contra os AstroacutelogosM VI ndash Contra os MuacutesicosM VII ndash XI ndash Contra os DogmaacuteticosM VII ndash VIII ndash Contra os LoacutegicosM IX ndash X ndash Contra os FiacutesicosM XI ndash Contra os Eacuteticos
1 Os livros agrupados sob o tiacutetulo Contra os Dogmaacuteticos foram numerados erroneamente como umacontinuaccedilatildeo dos seis livros que compotildeem o Contra os Professores Em funccedilatildeo de sua praticidademanteremos essa abreviaccedilatildeo
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
1017
3 MOUSIKE 2031 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO 2032 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA 22321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo 23322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles 2833 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO 3534 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO 414 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS NO CONTRA OS PROFESSORES 4641 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO NA FILOSOFIA E NAS ARTES 4742 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS 5243 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES 59431 O modelo argumentativo da obra 6144 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO 665 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS 6951 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6) 69511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo 69512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica 7152 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37) 7353 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68) 806 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISREFEREcircNCIASGLOSSAacuteRIO
867122126131
10
1 INTRODUCcedilAtildeO
Ateacute o seacuteculo V de nossa era a praacutetica e a teoria musical2 eram duas vertentes
completamente distintas3 A praacutetica musical restringia-se agrave execuccedilatildeo do instrumento
considerava-se que esta natildeo fazia uso do intelecto e por isso era colocada em um niacutevel
inferior em relaccedilatildeo agrave teoria Boeacutecio4 por exemplo afirma que haacute trecircs classes de muacutesicos
uma delas eacute formada por aqueles que executam os instrumentos considerada como
desprovida de reflexatildeo a segunda eacute a dos poetas que compotildeem as canccedilotildees por um certo
instinto natural e a terceira e mais elevada eacute a dos que julgam os ritmos e melodias das
canccedilotildees
A teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmoloacutegico
da ciecircncia musical quanto seu sentido teacutecnico relacionado ao estudo da harmonike da
riacutetmica e da meacutetrica Aleacutem disso os estudiosos da muacutesica estavam preocupados com o papel
eacutetico da muacutesica no que diz respeito agraves suas caracteriacutesticas terapecircuticas e ao seu poder de
formar e determinar o caraacuteter5 e o comportamento do ouvinte Este aspecto da muacutesica estava
estritamente ligado agrave paideia6 grega
No Contra os Muacutesicos uacuteltimo livro da obra intitulada Contra os Professores Sexto
Empiacuterico7 filoacutesofo ceacutetico do seacuteculo II dC dirige sua criacutetica agrave teoria musical que segundo
ele era considerada por muitos mais completa que a praacutetica musical8 Sua refutaccedilatildeo dirige-
se aos acircmbitos eacutetico e epistemoloacutegico da teoria musical Seu meacutetodo consiste em apresentar
algumas definiccedilotildees difundidas sobre a muacutesica e argumentar mostrando que elas natildeo satildeo
necessariamente vaacutelidas Na primeira parte do texto a muacutesica eacute discutida em termos de sua
utilidade para se alcanccedilar a felicidade Se por um lado ela eacute dita uacutetil para a felicidade humana
2 A expressatildeo ldquoteoria musicalrdquo eacute utilizada aqui em sentido amplo ou seja abrangendo os aspectos eacutetico eteacutecnico da muacutesica Ver Tomaacutes (2002 p 18-22)
3 Cf Tomaacutes (2002 p43)4 Cf Boeacutecio Inst (480-524)5 O termo grego traduzido por ldquocaraacuteterrdquo ao longo deste texto eacute ἦθος (ethos) e estaacute ligado agrave virtude moral que
se desenvolve na alma atraveacutes do haacutebito em grego ἔθος (ethos) De acordo com Aristoacuteteles (EN 1103 A) onome dessa virtude moral (ἠθική ndash ethike) surge por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ldquohaacutebitordquo (ethos ndashἔθος) Essa modificaccedilatildeo consiste na utilizaccedilatildeo do ldquoηrdquo (eta) no lugar do ldquoεrdquo (epsilon) Ao longo do textoutilizamos a transliteraccedilatildeo ldquoethosrdquo para ἦθος (caraacuteter)
6 O termo paideia ldquodesigna a experiecircncia cultural e eacutetica grega ele natildeo eacute de nenhum modo limitado agraveeducaccedilatildeo em seu sentido formalrdquo (Anderson 1966 p 2)
7 A obra de Sexto Empiacuterico eacute ainda pouco estudada em relaccedilatildeo agraves suas contribuiccedilotildees ao pensamentofilosoacutefico - sobretudo sua influecircncia na Filosofia moderna Dentre os textos que chegaram ateacute noacutes estatildeo asHipotiposes Pirronianas o Contra os Dogmaacuteticos e o Contra os Professores
8 Os argumentos acerca do valor da muacutesica refutados por Sexto satildeo parecidos com os argumentos queaparecem nas obras de Quintiliano e de Plutarco A refutaccedilatildeo contra o valor eacutetico e filosoacutefico da muacutesica porsua vez estaacute muito proacutexima da obra de Filodemo de Gadara (seacuteculo I aC) A principal fonte da teoriamusical apresentada por Sexto eacute a obra de Aristoacutexeno havendo tambeacutem paralelos com a obra de AristoacutetelesCf Greaves (1986 p 24-36)
11
em funccedilatildeo do poder de mover a alma podendo com isso alterar o caraacuteter do ouvinte por
outro Sexto apresenta diversos argumentos e exemplos que contrariam essa tese mostrando
que sendo as artes consideradas como tal em funccedilatildeo de sua utilidade e se a muacutesica for inuacutetil
ela deixa de ser uma arte Na segunda parte Sexto refuta diretamente os fundamentos da
ciecircncia musical a saber os conceitos de melodia e de ritmo atacando os conceitos de som e
de tempo Ao colocar em duacutevida os seus fundamentos o autor compromete todos os conceitos
teacutecnicos da ciecircncia da muacutesica que dependem deles9
No que diz respeito ao estudo da muacutesica antiga no Contra os Muacutesicos condensam-se
em poucas paacuteginas algumas das principais visotildees acerca da muacutesica na Antiguidade Junto do
Papiro de Hibeh10 e do De Musica de Filodemo11 esta eacute uma das raras obras onde a teoria
musical eacute abordada sob uma perspectiva criacutetica condenando as ideias difundidas entre a
maioria dos pensadores do periacuteodo a respeito do papel da muacutesica sendo por isso uma fonte
importante para os estudos sobre Muacutesica Antiga
Considerando-se a escassez de publicaccedilotildees que faccedilam referecircncia ao Contra os
Muacutesicos a traduccedilatildeo do texto grego apresentada neste trabalho primeira completa em liacutengua
portuguesa eacute acompanhada de um estudo que abrange algumas das principais teorias
musicais da Antiguidade e o contexto filosoacutefico da obra a fim de possibilitar a compreensatildeo
do Contra os Muacutesicos tanto sob a perspectiva filosoacutefica quanto sob a perspectiva
musicoloacutegica As notas agrave traduccedilatildeo aleacutem de esclarecerem questotildees especiacuteficas do texto
pontuam as relaccedilotildees entre os temas discutidos por Sexto Empiacuterico e outros textos importantes
sobre Muacutesica Grega Antiga
Nosso estudo comeccedila pelo modo como o conceito de mousike foi compreendido ao
9 Tal modelo argumentativo pode soar como um contrassenso agravequeles que natildeo estatildeo familiarizados com aFilosofia ceacutetica Em funccedilatildeo disso para se compreender o sentido dessa criacutetica eacute preciso abordar o Contraos Muacutesicos agrave luz dos objetivos do ceticismo pirrocircnico
10 O Papiro de Hibeh critica a ideia de que a muacutesica tem poderes eacuteticos e expressivos Nele haacute um discursoque foi proferido no Egito por um orador ateniense provavelmente na eacutepoca de Platatildeo De acordo comBarker (1989 p 183) o Papiro conteacutem um discurso dirigido contra os muacutesicos estruturado em trecircsargumentos O primeiro diz respeito agrave falta de base dos muacutesicos praacuteticos o segundo questiona a doutrina doethos e o terceiro aborda a falaacutecia existente entre as bases teoacutericas e a performance musical O oradorprocura refutar a noccedilatildeo de que algumas melodias nos fazem ser justos outras razoaacuteveis outras corretosoutras bravos e outras mais covardes Para refutar essa ideia ele afirma que ldquoas pessoas que vivem naaacuterea de Termoacutepilas cuja muacutesica eacute diatocircnica satildeo mais corajosas que os traacutegicos que cantam exclusivamentemelodias enarmocircnicas embora se pretendesse que esse gecircnero produzisse coragem Similarmente eleafirma muacutesica cromaacutetica natildeo produz covardiardquo (Lippman 1975 p 113) Adotando um tom retoacuterico eleataca a qualificaccedilatildeo daqueles que sustentam noccedilotildees sobre a influecircncia musical considerando que eles natildeosatildeo especialistas nem em muacutesica nem em argumentaccedilatildeo O orador os critica por tocarem mal e afirmaremcoisas ridiacuteculas como quando dizem que ldquocertas melodias satildeo relacionadas ao loureiro e outras agrave herardquoSegundo Lippman ldquoa referecircncia aos siacutembolos de Apolo e Dioniacutesio serve aqui para satirizar a descriccedilatildeo dasmelodias como eacuteticas e orgiaacutesticas A oraccedilatildeo expressa uma atitude cientiacutefica do especialista em muacutesica e eacuteaparentemente direcionada contra os filoacutesofosrdquo (Lippman 1975 p 114)
11 Sobre o De Musica de Filodemo ver seccedilatildeo 34
12
longo da Antiguidade tendo em vista evidenciar a dicotomia entre teoria e praacutetica musical e
as perspectivas eacutetica e teacutecnica abarcadas pela teoria Partimos da relaccedilatildeo entre o significado
cosmoloacutegico da teoria musical para os pitagoacutericos e o seu papel na educaccedilatildeo em funccedilatildeo da
teoria do ethos tal como formulada por Daacutemon Iremos nos ater inicialmente agrave exposiccedilatildeo
das ideias sobre a muacutesica apresentadas na Filosofia de Platatildeo e na discussatildeo dessas ideias
na Poliacutetica de Aristoacuteteles Mesmo sendo cronologicamente distantes da eacutepoca de Sexto
Empiacuterico concentramo-nos nessas ideias porque elas estatildeo invariavelmente presentes em
boa parte das obras posteriores
O pensamento musical de Platatildeo permanece ateacute hoje o arqueacutetipo para todas asconsideraccedilotildees acerca da doutrina musical da Antiguidade e deve ter influenciadoqualquer autor que escreveu sobre o tema que viveu depois do seacuteculo IV aC Platatildeofoi um dos primeiros se natildeo realmente o primeiro que escreveu longamente acercada muacutesica (Woodward 2009 p 102)
Enquanto Platatildeo enfatiza as raiacutezes pitagoacutericas de sua teoria musical e ao mesmo
tempo por incorporar as teorias damonianas a respeito do ethos musical manteacutem uma
posiccedilatildeo bastante restritiva no que diz respeito ao papel da muacutesica na sociedade Aristoacuteteles
limita-se a colocar em discussatildeo as diversas opiniotildees a respeito do papel da muacutesica
(dispensando as questotildees metafiacutesicas) voltando-se sobretudo aos efeitos do fenocircmeno
sonoro observaacuteveis no ouvinte O modo como Aristoacuteteles conduz sua investigaccedilatildeo a respeito
da muacutesica abre espaccedilo para que mais tarde seu disciacutepulo Aristoacutexeno mude o paradigma da
teoria musical
Em seguida concentramo-nos no pensamento musical de Aristoacutexeno e de Filodemo
Embora o nosso foco nesses autores se decirc em funccedilatildeo do uso de suas teorias no Contra os
Muacutesicos (ainda que ambos sejam criticados pelo ceacutetico) eacute importante destacar que na
historiografia musical Aristoacutexeno e Filodemo satildeo colocados ao lado de Sexto Empiacuterico no
que diz respeito a questatildeo da autonomia da muacutesica na Antiguidade
Esse conjunto de autores tem em comum o rompimento com as ideias difundidas e
sustentadas por Platatildeo e Aristoacuteteles rejeitando a relevacircncia dos possiacuteveis significados sociais
poliacuteticos ou matemaacuteticos da muacutesica Observa-se que apoacutes seacuteculos de domiacutenio da perspectiva
platocircnico-aristoteacutelica no que concerne agrave heteronomia do significado da muacutesica o pensamento
desses autores converge com uma visatildeo que considera a muacutesica enquanto forma autocircnoma12
12 A respeito da autonomia da muacutesica tal como aparece em Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico Bowmanconsidera que ldquoeles desafiam a ideia de que a muacutesica contribui de maneira significativa para coisas como ocaraacuteter humano mas sem avanccedilar ateacute a afirmaccedilatildeo da autossuficiecircncia musical Natildeo antes do surgimento dachamada muacutesica absoluta seacuteculos depois pode comeccedilar a emergir um verdadeiro formalismordquo(Bowmann 1998 p 136)
13
surgida no debate esteacutetico Iluminista a partir dos seacuteculos XVIII-XIX solidificada em 1854
com a publicaccedilatildeo da obra ldquoDo Belo Musicalrdquo de Eduard Hanslick13
Embora por diferentes razotildees Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico suspeitavamdas tentativas filosoacuteficas de conectar muacutesica ao que eles consideravam questotildeesextramusicais Na realidade fique com o que eacute dado ao ouvido com os fatosmusicais foi o que cada um argumentou Evidentemente nenhum deles visualizouuma gama de valores intrinsecamente musicais mas apenas procurou estreitar oacircmbito da relevacircncia musical para excluir coisas que sob sua perspectiva natildeotinham nada a ver com muacutesica (Bowmann 12112 p 140)
Aristoacutexeno promoveu uma sistematizaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica privilegiando seus
aspectos teacutecnicos que foi tomada como paradigma nos seacuteculos posteriores Enquanto a
harmonike para os pitagoacutericos era o estudo das relaccedilotildees matemaacuteticas ligadas agrave metafiacutesica na
medida em que a muacutesica passa a ser considerada a partir do proacuteprio fenocircmeno sonoro a
ciecircncia harmocircnica muda seu escopo a ponto de ser tomada como objeto de uma ciecircncia
autocircnoma14 Entretanto mesmo desvinculado do acircmbito considerado mais elevado do
conhecimento que eacute a metafiacutesica o estudo teoacuterico do fenocircmeno sonoro manteacutem-se em uma
posiccedilatildeo hieraacuterquica elevada em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical15 Tal sistema dogmaacutetico do ponto
de vista ceacutetico eacute refutado na segunda parte do Contra os Muacutesicos e por isso merece aqui
nossa atenccedilatildeo
Encerramos o primeiro capiacutetulo apresentando a refutaccedilatildeo do filoacutesofo epicurista
Filodemo agrave ideia de que a muacutesica eacute uacutetil em funccedilatildeo de ter por natureza o poder de afetar o
caraacuteter do ouvinte Ele rejeita a teoria do ethos musical afirmando que se a muacutesica tem algum
efeito em nossa alma isso se daacute em funccedilatildeo daquilo que noacutes associamos a ela que por si
mesma natildeo tem poder algum sobre nossa alma a natildeo ser o de distraiacute-la Essa criacutetica ao papel
eacutetico da muacutesica eacute muito parecida com aquela que eacute adotada por Sexto Empiacuterico que
apresenta argumentos semelhantes aos do De Musica em sua argumentaccedilatildeo Entretanto como
veremos nem por isso os epicuristas estatildeo livres de serem considerados dogmaacuteticos pelo
ceacutetico16
13 A perspectiva defendida por Hanslick conhecida como ldquoformalistardquo sustenta ldquoa crenccedila de que acompreensatildeo da natureza da muacutesica e de seu valor natildeo eacute encontrada em seus efeitos nos vislumbres que elapermite nos sentimentos que desperta ou ainda nas conexotildees com qualquer coisa fora dela mesma Seuvalor sob essa visatildeo eacute estritamente seu estritamente intriacutenseco localizado inteiramente dentro de umdomiacutenio puramente musicalrdquo (Bowman 1998 p 133)
14 Nesta pesquisa natildeo nos ateremos agraves diferenccedilas teacutecnicas entre os dois modos de abordar a ciecircncia harmocircnica15 A observaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical eacute fundamental para a compreensatildeo da
refutaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave ciecircncia da muacutesica16 Eles satildeo considerados dogmaacuteticos porque sustentam firmemente a tese de que a muacutesica natildeo eacute uacutetil para a
felicidade A relaccedilatildeo entre as ideias apresentadas por Filodemo no De Musica e a primeira parte do Contraos Muacutesicos seraacute analisada na seccedilatildeo 52
14
Dado o panorama histoacuterico do conceito de mousike apresentado no capiacutetulo inicial que
teve como intuito evidenciar sua amplitude e esclarecer as diversas facetas do conceito que
estaacute em jogo precisamos nos voltar ainda agrave filosofia ceacutetica para compreendermos as razotildees
pelas quais a mousike tal como eacute comumente concebida eacute refutada por Sexto Empiacuterico
A Filosofia tradicionalmente eacute relacionada agrave busca pela verdade e quando falamos
em Filosofia antiga associamos rapidamente essa busca a filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles
Mas ainda na Antiguidade houve quem desconfiasse da possibilidade de se apreender a
verdade sobre as coisas O ceticismo pirrocircnico eacute uma dessas correntes filosoacuteficas que
questionam tal possibilidade Primeiramente deve-se enfatizar que o termo ldquoceticismordquo natildeo
tem a ver com descrenccedila mas com investigaccedilatildeo do grego skepsis17 Tomando uma definiccedilatildeo
apresentada por Brochard (2009 p 20) o verdadeiro ceacutetico ldquoeacute aquele que de propoacutesito
deliberado e por razotildees gerais duvida de tudo exceto dos fenocircmenos e se contenta com a
duacutevidardquo18
De acordo com Sexto Empiacuterico o ceticismo pirrocircnico tem por objetivo o combate agrave
precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de se sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe na
realidade externamente agraves nossas representaccedilotildees O ceacutetico observa que as vaacuterias teorias
desenvolvidas pelos filoacutesofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que natildeo
haacute um criteacuterio que nos permita distinguir qual delas eacute verdadeira Em funccedilatildeo disso para cada
afirmaccedilatildeo dogmaacutetica ele apresenta uma afirmaccedilatildeo oposta e o igual peso das teorias colocadas
em oposiccedilatildeo leva-o a um estado de suspensatildeo do juiacutezo19
Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Ciacuteclicos20 os ceacuteticos
tambeacutem se depararam com uma postura dogmaacutetica Sexto Empiacuterico propotildee um ataque agraves
bases de cada uma das disciplinas (mathemata) ensinadas pelos especialistas O Contra os
17 Para uma introduccedilatildeo geral ao Ceticismo Antigo ver Brochard (2009)18 O ceticismo pirrocircnico eacute assim nomeado ldquoa partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de
forma mais significativa do que seus predecessoresrdquo (HP I 3) Pirro (360 ndash 270 aC) contemporacircneo deAlexandre Magno e de Aristoacuteteles eacute tomado como fundador dessa tradiccedilatildeo ceacutetica natildeo deixou nada escritomas seu modo de vida e seus ensinamentos serviram como base para essa corrente do ceticismo Oceticismo pirrocircnico foi desenvolvido posteriormente sobretudo por meacutedicos a partir do primeiro seacuteculo daEra Cristatilde A obra de Sexto Empiacuterico eacute uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrocircnico Sobre suabiografia pouco se sabe Supotildee-se a partir de seus escritos que ele foi um meacutedico da escola empiacuterica demedicina e que viveu provavelmente por volta da segunda metade do seacuteculo II dC mas natildeo se sabe ondeCf Floridi (2002 p 3-7) Sobre Pirro ver Brochard (2009 p 65-88) sobre a escola ceacutetica ver Brochard(2009 p 235-247)
19 A obra principal de Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas eacute dividida em trecircs livros o primeiro visafazer uma apresentaccedilatildeo geral do que eacute o ceticismo (HP I) e os seguintes procuram ldquofazer objeccedilotildees a cadaparte da assim chamada Filosofiardquo (HP I 6) As partes da Filosofia a que Sexto se refere satildeo a Loacutegica (HPII) a Fiacutesica (HP III 1-167) e a Eacutetica (HP III 168-281) Elas tambeacutem satildeo abordadas no Contra osDogmaacuteticos composto pelos livros Contra os Loacutegicos (M VII-VIII) Contra os Fiacutesicos (M IX-X) e Contraos Eacuteticos (M XI)
20 Os Estudos Ciacuteclicos eram o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educaccedilatildeo propedecircutica para aFilosofia Ver seccedilatildeo 42
15
Professores (M I-VI) destina-se aos professores dessas disciplinas21 que faziam parte dos
Estudos Ciacuteclicos entre elas a muacutesica Mas Sexto natildeo nos daacute indicaccedilotildees muito precisas a
respeito do que satildeo para ele os Estudos Ciacuteclicos porque sua exposiccedilatildeo ldquodirige-se agravequeles
que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nessas questotildeesrdquo (M I 7) Em funccedilatildeo disso exploramos
o significado dessa expressatildeo em outras fontes do periacuteodo mostrando seu papel fundamental
para a compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves tekhnai tendo em vistao que os Estudos
Ciacuteclicos abrangem especificamente o sentido de tekhne que Sexto Empiacuterico potildee em jogo
Para compreendermos os motivos que levam Sexto Empiacuterico a empreender um ataque
(quase fervoroso) agraves disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos teremos de observar o Contra os
Professores sob uma dupla perspectiva Por um lado devemos atentar ao fato de que os
conteuacutedos discutidos natildeo satildeo refutados por si mesmos mas enquanto disciplinas que fazem
parte de um ciclo de Estudos ensinadas de acordo com determinados meacutetodos e crenccedilas Por
outro devemos observar os motivos pelos quais a refutaccedilatildeo a essas disciplinas faz-se
necessaacuteria dentro do ceticismo
Sexto Empiacuterico parece lidar com uma dicotomia entre teoria e praacutetica do conhecimento
teacutecnico na Antiguidade22 Ele parte da definiccedilatildeo23 de tekhne enquanto um conhecimento que
seja uacutetil para a vida Sua refutaccedilatildeo eacute direcionada exclusivamente ao acircmbito teoacuterico porque
este para ele estaacute impregnado de dogmatismo e natildeo parece cumprir os requisitos da
definiccedilatildeo de tekhne aprovada pelo ceacutetico visto que haacute um sentido ligado ao criteacuterio de accedilatildeo
deste em que o conhecimento teacutecnico natildeo eacute considerado dogmaacutetico Buscamos explicar
como o ceacutetico refuta as tekhnai no Contra os Professores como um todo e porque ele faz isso
a fim de resgatar por fim a originalidade do pensamento ceacutetico em relaccedilatildeo agraves tekhnai Ele
considera vaacutelido apenas o acircmbito praacutetico de cada uma das tekhnai justamente aquele que era
colocado em um niacutevel inferior pelos pensadores da Antiguidade
Na terceira seccedilatildeo analisamos de modo detalhado o texto do Contra os Muacutesicos
Partimos da distinccedilatildeo entre os sentidos de muacutesica que Sexto Empiacuterico apresenta Opotildee teoria
e praacutetica musical e restringe sua criacutetica agrave primeira Seu texto abrange dois aspectos da teoria
musical para os quais ele utiliza tambeacutem dois tipos de argumentaccedilatildeo No que diz respeito ao
primeiro a discussatildeo acerca da utilidade da muacutesica investigamos o uso que Sexto Empiacuterico
21 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido por ldquoensinamentordquo ldquoconteuacutedo de aprendizadordquo ldquodisciplinardquo Nestetexto utilizamos tambeacutem os termos ldquociecircncias especializadasrdquo (expressatildeo que aparece tambeacutem na traduccedilatildeode Bury) e ldquoartesrdquo porque mathemata nesse caso satildeo os ensinamentos a respeito de determinadas ciecircnciasou artes
22 Essa hierarquia entre teoria e praacutetica pode ser observada em todas as aacutereas do conhecimento especializado23 A definiccedilatildeo de uma tekhne em funccedilatildeo de sua utilidade eacute bastante comum Sexto Empiacuterico parte
assumidamente da definiccedilatildeo dada pelos filoacutesofos estoicos que eacute muito parecida com a de Aristoacuteteles Ver p54
16
faz de argumentos que satildeo semelhantes aos de Filodemo e sustentamos a tese de que mesmo
ao tratar da utilidade da muacutesica o ceacutetico permanece dentro do escopo da teoria musical No
que concerne agrave segunda parte da obra apresentamos alguns conceitos teacutecnicos da ciecircncia
harmocircnica que satildeo refutados pelo autor e buscamos explicar os argumentos utilizados Por
fim evidenciamos que o interesse ceacutetico natildeo estava de modo algum voltado agraves questotildees
musicais mas ao combate agrave precipitaccedilatildeo dos dogmaacuteticos em afirmar teses sobre a natureza da
muacutesica
Texto grego e traduccedilatildeo
Eacute escasso o nuacutemero de traduccedilotildees modernas do Contra os Professores Temos a
espanhola de J B Cavero a italiana de A Russo a francesa de D Delattre e a inglesa de R
G Bury24 Especificamente do Contra os Muacutesicos haacute uma traduccedilatildeo parcial em liacutengua
portuguesa no artigo de A R Pereira (1996) uma francesa de C Ruelle e uma em liacutengua
inglesa de D D Greaves
A ediccedilatildeo elaborada por Greaves apresenta a traduccedilatildeo comentada da obra e uma
introduccedilatildeo que abrange as principais fontes de Sexto Empiacuterico Aleacutem disso as notas de
rodapeacute da versatildeo relacionam os argumentos do autor com as suas fontes servindo como
referecircncia para o presente trabalho
Para nossa traduccedilatildeo tomamos como base a ediccedilatildeo do texto grego tal como
apresentada por Greaves devido ao seu extenso trabalho de comparaccedilatildeo de manuscritos As
exceccedilotildees satildeo informadas em notas agrave traduccedilatildeo
24 Sobre a transmissatildeo da obra de Sexto Empiacuterico manuscritos e ediccedilotildees latinas ver Floridi (2002)
17
2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
21 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
O Contra os Muacutesicos inicia com a distinccedilatildeo entre os sentidos teoacuterico praacutetico e
metafoacuterico do termo ldquomuacutesicardquo Ele eacute utilizado no sentido teoacuterico enquanto ldquociecircncia que lida
com melodias notas e composiccedilatildeo riacutetmica e coisas semelhantesrdquo (M VI 1) praacutetico em
relaccedilatildeo agrave habilidade na execuccedilatildeo de instrumentos tal como quando chamamos
instrumentistas de ldquomuacutesicosrdquo e por fim no sentido metafoacuterico tomado como adjetivo
quando algo eacute considerado ldquomusicalrdquo Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma
Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute apenas nesse sentido que ele pretende refutar a
muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o mais completordquo (M VI 3)
A refutaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica estrutura-se em dois momentos principais no
primeiro haacute a criacutetica agraves opiniotildees a respeito do papel psicagoacutegico da muacutesica e no segundo a
refutaccedilatildeo de aspectos teacutecnicos da teoria musical25
22 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
No que concerne agrave discussatildeo sobre a utilidade da muacutesica Sexto argumenta contra as
opiniotildees comuns acerca dela concentrando-se sobretudo na refutaccedilatildeo agrave teoria do ethos
musical semelhante agravequela feita pelos epicuristas que a consideravam um conteuacutedo natildeo
necessaacuterio para atingir a felicidade (eudaimonia)
221 As opiniotildees comuns acerca da utilidade da muacutesica (sect 7-18) e sua refutaccedilatildeo (sect 19-28)
a) O autor apresenta exemplos que podem ser encontrados em diversas fontes da
Antiguidade sobre o modo como a muacutesica afeta a alma Esses exemplos estatildeo ligados agrave
teoria do ethos musical e defendem a utilidade da muacutesica para refrear as paixotildees e promover a
virtude
b) Contra isso ele faz uma refutaccedilatildeo geral agrave ideia de que a muacutesica tem uma
25 Cf Greaves (1986 p 19-24)
18
capacidade inerente de afetar a alma e em seguida refuta especificamente cada um dos
exemplos mencionados
222 A utilidade da muacutesica em relaccedilatildeo agrave paideia agrave Filosofia e ao ethos (sect 29-30) e sua
refutaccedilatildeo (sect 31-37)
a) Sexto apresenta argumentos a respeito da importacircncia da muacutesica em sua relaccedilatildeo
com a paideia a Filosofia e novamente o ethos tratando da relaccedilatildeo entre a muacutesica e a
Filosofia do papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes da relaccedilatildeo entre a harmonia e
a ordem do cosmos da necessidade da educaccedilatildeo musical e da inerecircncia das qualidades eacuteticas
na melodia (sect 29-30)
b) Para tais argumentos eacute apresentada uma contra-argumentaccedilatildeo que visa refutar a
necessidade dessas relaccedilotildees (sect31-37)
23 REFUTACcedilAtildeO AOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
Sexto Empiacuterico apresenta alguns dos principais conceitos da teoria musical e
argumenta contra a existecircncia dos seus princiacutepios baacutesicos
231 Os conceitos de som nota intervalo ethos (sect 38-51) e argumentaccedilatildeo contra a existecircncia
do som (sect 52-58)
a) Sexto aborda a melodia (sect 38-51) partindo de uma definiccedilatildeo de muacutesica (sect 38)
muito semelhante agrave de Aristoacutexeno Aquele distingue entre um som musical e um som natildeo
musical Ao conceito de melodia estatildeo ligados os de intervalo e de ethos Sexto considera que
o ldquocaraacuteter eacute um certo gecircnero de melodiardquo (M VI 48) e visto que os intervalos nascem da
uniatildeo das notas o caraacuteter tambeacutem surge delas
b) Visto que natildeo haacute caraacuteter (ethos) musical sem notas e as notas satildeo ldquosom meloacutedicordquo
Sexto para refutar os conceitos da teoria musical argumenta contra a existecircncia do som
19
232 A ciecircncia do ritmo e os argumentos contra a existecircncia do tempo (sect 59-68)
a) Apresentaccedilatildeo do conceito de ritmo enquanto quantidade de tempo
b) Para refutar sua existecircncia Sexto apresenta algumas definiccedilotildees que entram em
conflito com aquela apresentada primeiro tendo em vista que o conceito de tempo estaacute
contido na definiccedilatildeo de ritmo26 Se o tempo natildeo pode ser definido deixam de ser vaacutelidos
todos os conceitos de teoria musical que dependem deste conceito
26 No que concerne ao ethos riacutetmico a melodia tal como tratada por Sexto jaacute abrange tambeacutem o ritmo Dessemodo a negaccedilatildeo do ethos na melodia implica a negaccedilatildeo dos ethe riacutetmicos
20
3 MOUSIKE
31 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO
O conceito de mousike estaacute presente nas mais diversas aacutereas do pensamento na
Antiguidade como a medicina astronomia religiatildeo filosofia poesia meacutetrica danccedila e
pedagogia
O termo na verdade deriva da palavra Mousa e para os antigos gregos durantemuito tempo ele designou um complexo de faculdades espirituais e intelectuais quehoje noacutes chamamos de lsquoartesrsquo e que estavam sob o patronato das Musas emespecial a poesia liacuterica que era uma mescla daquilo que noacutes entendemos por muacutesicae poesia (Rocha 2009 p 139)
Inicialmente enquanto fenocircmeno sensiacutevel a mousike abrangia palavra harmonia e
ritmo (Platatildeo Rep 398 C) e natildeo havia uma palavra que designasse exclusivamente a ldquoarte
dos sonsrdquo (o termo soacute passou a ter esse significado no seacuteculo IV aC) Aleacutem disso a mousike
era abordada tambeacutem sob uma perspectiva metafiacutesica
Se consideramos o conceito de mousike como um desses conceitos de grandeamplitude podemos supor sua compreensatildeo em duas instacircncias no acircmbitoparticular quando se referindo agraves especificidades da linguagem musical e geralultrapassando esse niacutevel e se entrelaccedilando aos significados de outros conceitos demesmo patamar como harmonia cosmos e logos (Tomaacutes 2002 p38)
O conceito de mousike deve ser compreendido sob essas duas perspectivas enquanto
fenocircmeno sonoro (palavra harmonia e ritmo e depois especificamente arte dos sons) e
enquanto conceito metafiacutesico ldquodaiacute que ele natildeo enuncie apenas o que soa mas tambeacutem
aquilo que permite o soar ou seja as leis de organizaccedilatildeo um princiacutepio universal que
subsume toda particularidaderdquo (Tomaacutes 2002 p 38)
A teorizaccedilatildeo sobre a mousike comeccedila com a escola pitagoacuterica no seacuteculo VI aC Para
os pitagoacutericos27 a teoria musical em seu sentido lato tem significado cosmoloacutegico abrange
as leis de organizaccedilatildeo o princiacutepio universal que rege o cosmos e natildeo estaacute diretamente ligada
ao fenocircmeno sonoro Em seu sentido estrito trata-se do fenocircmeno sonoro que imita no
27 Eacute importante enfatizar que o termo ldquopitagoacutericosrdquo abrange um conjunto de ideias que natildeo diz respeitoestritamente a Pitaacutegoras e seus seguidores mas nomeia teoacutericos que no que concerne agrave harmonike tinhamldquocertas visotildees e atitudes em comumrdquo Cf Barker (1989 p 5)
21
mundo fenomecircnico a harmonia que rege todo o cosmos28
Nos fragmentos de Filolau de Crotona filoacutesofo da escola pitagoacuterica do seacuteculo V aC
lemos que a ldquoHarmonia vem a ser em todos os sentidos a partir dos opostos pois harmonia eacute
uniatildeo das coisas heterogecircneas e concordacircncia das coisas que estatildeo em desacordordquo29 Teacuteon de
Esmirna apresenta a mesma definiccedilatildeo referindo-se aos ldquoPitagoacutericos os quais foram em
muitas coisas seguidos por Platatildeordquo definindo a mousike com os mesmos conceitos de
harmonia30
Anderson (1966 p 37) chama atenccedilatildeo para um dos excertos de Filolau que segundo
ele mostra ldquoa importacircncia da teoria do Nuacutemero na explicaccedilatildeo da muacutesica e todas outras
atividadesrdquo
O Nuacutemero ajustando todas as coisas dentro da alma atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevelas faz reconheciacuteveis e comparaacuteveis umas com as outras Vocecirc pode ver a naturezado Nuacutemero e seu poder em accedilatildeo natildeo soacute na existecircncia supernatural e divinamastambeacutem em todas as atividades e palavras humanas ambos atraveacutes de todaproduccedilatildeo teacutecnica e tambeacutem na Muacutesica31
As investigaccedilotildees a respeito da muacutesica feitas pelos pitagoacutericos natildeo estavam
diretamente voltadas ao fenocircmeno sonoro As pesquisas acerca da harmonike ligam-se agraves
ideias de que ldquoo universo eacute ordenado que a perfeiccedilatildeo da alma humana depende de sua
apreensatildeo e de assimilar a si proacutepria a essa ordem e que a chave para uma compreensatildeo de
sua natureza reside no Nuacutemerordquo (Barker 1989 p6)
A mousike enquanto fenocircmeno sonoro soacute entra em discussatildeo para os pitagoacutericos
porque as relaccedilotildees intervalares percebidas podem ser expressas tambeacutem em foacutermulas
numeacutericas simples De acordo com Barker
Assim essas relaccedilotildees harmocircnicas fundamentais correspondem a relaccedilotildeesmatemaacuteticas fundamentais e evidentemente elegantes e incentivam a ideia de quetodos os intervalos propriamente harmocircnicos recebem seu status musical por causade suas propriedades matemaacuteticas (hellip) A ordem encontrada na muacutesica eacute umaordem matemaacutetica os princiacutepios da coerecircncia de um sistema harmocircnico coordenadosatildeo princiacutepios matemaacuteticos E visto que esses satildeo princiacutepios que geram uma belezaperceptiacutevel e um sistema de organizaccedilatildeo satisfatoacuterio talvez sejam essas mesmasrelaccedilotildees matemaacuteticas ou alguma extensatildeo delas que subjazem agrave admiraacutevel ordem
28 Cf Tomaacutes (2002 p 17)29 Filolau eacute citado em Nicocircmaco Introductio Arithmetica (II 191 TLG) ldquoἁρμονία δὲ πάντως ἐξ ἐναντίων
γίνεται ἔστι γὰρ ἁρμονία πολυμιγέων ἕνωσις καὶ δίχα φρονεόντων συμφρόνησιςrdquo30 Teacuteon de Esmirna De utilitate mathematicae (p 12 10 TLG) ldquoκαὶ οἱ Πυθαγορικοὶ δέ οἷς πολλαχῆι ἕπεται
Πλάτων τὴν μουσικήν φασιν ἐναντίων συναρμογὴν καὶ τῶν πολλῶν ἕνωσιν καὶ τῶν δίχα φρονούντωνσυμφρόνησινrdquo
31 Fr 44 B 11 (DK) apud Anderson (1966 p 37)
22
do cosmos e agrave ordem agrave qual a alma humana pode aspirar (Barker 1989 p 6)32 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA
Apesar da conexatildeo entre muacutesica e metafiacutesica implicada no conceito de mimesis de
acordo com Lippman (1975 p 88) ldquoo pensamento antigo estaacute focado antes nos valores
poliacuteticos e educacionais da muacutesica sonora do que na sua ontologiardquo Embora ambas estejam
baseadas em uma concepccedilatildeo ampla de mousike enquanto a metafiacutesica da harmonia privilegia
o estudo da harmonike o papel psicagoacutegico32 da muacutesica estaacute estritamente ligado ao fenocircmeno
sensiacutevel e por isso ligado ao conceito de mousike enquanto palavra harmonia e ritmo33
No que diz respeito ao papel da muacutesica na educaccedilatildeo grega muito embora os relatos
apareccedilam na literatura grega desde Homero34 foi com Daacutemon que a teoria sobre o papel
psicagoacutegico da muacutesica ganhou forma De acordo com Anderson
em grande parte a histoacuteria do ethos na Greacutecia eacute ela mesma um enigma masencontramos sugestotildees da teoria em autores do seacuteculo V Daacutemon natildeo inventou ateoria do ethos ele a expandiu e codificou a um grau notaacutevel e talvez incomparaacutevel(Anderson 1966 p 42)
A respeito da teoria atribuiacuteda a ele temos apenas testemunhos posteriores Daacutemon eacute
considerado um sofista do final do seacuteculo V aC para ele ldquomuacutesica e danccedila surgem
necessariamente quando a alma eacute movida de algum modo muacutesicas e danccedilas belas e livres
criam uma alma semelhante e as de tipo contraacuterio criam um tipo contraacuterio de almardquo 35 Cada
tipo de muacutesica variando em suas harmoniai e ritmos tem o poder de representar diferentes
qualidades do caraacuteter virtudes e viacutecios36 Por isso segundo os relatos de Platatildeo e Ateneu
32 Conceito formado a partir dos termos psykhe (alma) e agoge (caminho) psicagogia significa literalmenteldquoconduccedilatildeo da almardquo Em Luciano por exemplo o termo estaacute ligado agrave conduccedilatildeo dos mortos para o HadesEm rituais religiosos significa encantar conduzir as almas dos mortos e dos vivos O conceito de psicagogiano contexto educacional aparece no Fedro de Platatildeo ligado agrave retoacuterica Primeiramente Soacutecrates pergunta sea arte da oratoacuteria natildeo seria uma psicagogia ldquoum modo de conduzir as almas por intermeacutedio do discursordquo(Platatildeo Fedro 261 A) Ao que ele afirma que ldquovisto que a funccedilatildeo proacutepria do discurso eacute a de ser um modode conduzir as almas uma psicagogia aquele que quer ser um dia um orador de talento devenecessariamente saber da alma as formas que tem ()rdquo (Platatildeo Fedro 271 C-D) Do mesmo modotambeacutem a mousike teria o poder de conduzir a alma Segundo Moutsopoulos (1959 p 259) ldquoo mecanismopelo qual a muacutesica se introduz na alma exposto no Timeu ilustra o modo de acordo com o qual Platatildeo soba influecircncia das doutrinas hipocraacuteticas considera o ritmo dos movimentos corporais como provocador deum apaziguamento alegre agrave alma excitada ou em estado de distuacuterbiordquo No que diz respeito agrave muacutesica apsicagogia eacute o ldquoresultado exercido sobre a alma pelo bom ritmo e pela simetriardquo (Moutsopoulos 1959 p261) Ver Platatildeo Timeu (80 A-B) a respeito da muacutesica Goacutergias (82 B) a respeito da poesia Para maisreferecircncias ver Moutsopoulos (1959 p 259-61)
33 Cf Tomaacutes (2002 p 41) Lippman (1975 p 87-90)34 Cf Homero Iliacuteada (I 472 601) Odisseia (VIII 44-45 XXII 344)35 Fr 37 B 6 apud Anderson (1966 p 42)36 Cf Aristoacutefanes Tesmoforiantes (146) Aristides Quintiliano De Mus (8025)
23
para Daacutemon a muacutesica tem poder moral e as mudanccedilas na muacutesica produzem mudanccedilas nas
estruturas sociais e poliacuteticas37
Se a muacutesica eacute considerada resultado de certo movimento da alma eacute a natureza da
alma que determina a natureza dos movimentos que ela cria e daqueles com os quais ela teraacute
afinidade quando forem ouvidos (Cf Barker 1984 p 169)38 Sobre isso Aristides
Quintiliano considera que nas harmoniai transmitidas por Daacutemon as alteraccedilotildees nas
sequecircncias de notas acontecem porque cada harmonia diferente era uacutetil39 de acordo com o
caraacuteter de cada alma particular
Tais ideias sobretudo no que diz respeito ao poder da muacutesica e sua funccedilatildeo na
sociedade satildeo levadas agraves uacuteltimas consequecircncias na Repuacuteblica de Platatildeo40
deve-se ter cuidado com a mudanccedila para um novo gecircnero musical que pode pocircrtudo em risco Eacute que nunca se abalam os gecircneros musicais sem abalar as mais altasleis da cidade como Dacircmon afirma e eu creio (Platatildeo Rep 424 C)
321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo
Na obra de Platatildeo pode-se observar a estreita relaccedilatildeo entre os dois sentidos do
conceito de mousike O filoacutesofo tal como os pitagoacutericos considera a harmonike sob uma
perspectiva matemaacutetica desvinculada do fenocircmeno sonoro Natildeo obstante o conceito
metafiacutesico de harmonia eacute a chave para a compreensatildeo da teoria do ethos em sua relaccedilatildeo com
a educaccedilatildeo A muacutesica teria o poder de recuperar a harmonia da alma porque imita a harmonia
divina do universo nas almas dos mortais A muacutesica por sua relaccedilatildeo com a harmonia eacute a arte
que tem influecircncia direta no caraacuteter (ethos) do ouvinte penetrando no iacutentimo de sua alma
Platatildeo ocupa-se do desenvolvimento de uma paideia que tem o objetivo de harmonizar a
alma Daiacute a importacircncia para Platatildeo de definir na Repuacuteblica e nas Leis qual o ethos de cada
37 Platatildeo Rep (424 C) Ateneu (628 C)38 A explicaccedilatildeo de como essa mudanccedila acontece se baseia na ideia de que harmoniai de diferentes ethe satildeo
produzidas pela mudanccedila de posiccedilatildeo das notas intermediaacuterias do tetracorde de acordo com a finalidade quese classificava como feminina ou masculina
39 O conceito de utilidade eacute central para a compreensatildeo da mousike enquanto uma das disciplinas dos EstudosCiacuteclicos e tambeacutem para a compreensatildeo da refutaccedilatildeo ceacutetica ao papel psicagoacutegico da muacutesica
40 Embora os reflexos da teoria damoniana do ethos sejam evidentes na obra de Platatildeo segundo Anderson(1966 p 40) ldquomostra-se muito difiacutecil infelizmente lidar com a noccedilatildeo de similaridade enquanto um meioefetivo de construir o caraacuteter atraveacutes da melodia Enquanto alguma conexatildeo com a mimesis parece ser certahaacute boas razotildees para se tratar a similaridade (homoiotes) como um princiacutepio originalmente damonianoligeiramente diferente da mimesis platocircnica que o incorporourdquo A delimitaccedilatildeo das particularidades da teoriade Daacutemon que foram absorvidas por Platatildeo foge ao escopo de nossa investigaccedilatildeo
24
harmonia e de cada ritmo41
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta o tipo de educaccedilatildeo que algueacutem deve receber antes de
estudar Filosofia As ciecircncias matemaacuteticas que devem ser ensinadas satildeo aritmeacutetica
geometria astronomia e harmonike42 Essa uacuteltima tem uma relaccedilatildeo estreita com a concepccedilatildeo
pitagoacuterica43 Nesse sentido para Platatildeo qualquer arte quando privada do nuacutemero e da
medida eacute deixada agrave mercecirc dos sentidos e segundo ele a muacutesica eacute um claro exemplo disso 44
Eacute esse para ele o caso dos teoacutericos empiristas que em oposiccedilatildeo aos pitagoacutericos tomavam
somente o fenocircmeno sonoro como base para a ciecircncia musical medindo uns pelos outros os
acordes e os sons que satildeo ouvidos45
Assim como para os pitagoacutericos para Platatildeo a harmonike estaacute ligada agrave astronomia e
soacute diz respeito agrave muacutesica na medida em que os intervalos musicais podem ser descritos como
relaccedilotildees matemaacuteticas
Eacute provaacutevel que assim como os olhos foram moldados para a astronomia os ouvidosforam formados para o movimento harmocircnico e as proacuteprias ciecircncias satildeo irmatildes umada outra tal como afirmam os Pitagoacutericos e noacutes oacute Glaacuteucon concordamos (PlatatildeoRep 530 D)
Mesmo assim segundo Barker o estudo da harmonike eacute fundamental para a
compreensatildeo dos efeitos da muacutesica
O propoacutesito da harmonike na Repuacuteblica Livro VII e no Timeu eacute nos guiar emdireccedilatildeo agrave compreensatildeo dos princiacutepios que governam a estrutura da realidade comoum todo e fornecer uma forma de entendimento que iraacute nos ajudar a restaurarnossas proacuteprias almas distorcidas agrave sua perfeiccedilatildeo original (Barker 2007 p 311)
Embora a ciecircncia harmocircnica seja um estudo abstrato distante do fenocircmeno sonoro e
por isso mais elevado satildeo os efeitos da muacutesica na alma do homem e consequentemente na
sociedade que tambeacutem para Platatildeo importam na vida praacutetica
No Timeu o filoacutesofo relaciona estruturas harmocircnicas agrave constituiccedilatildeo do universo e da
41 A Repuacuteblica e as Leis satildeo as principais fontes sobre o papel psicagoacutegico da muacutesica na Filosofia de PlatatildeoEssas obras tratam de uma sociedade ideal e muitas das coisas condenadas por Platatildeo faziam parte darealidade de sua eacutepoca Assim eacute tanto a partir das teorias discutidas por Platatildeo (o pitagorismo e a teoria doethos musical) quanto em funccedilatildeo de suas criacuteticas agrave muacutesica de seu tempo que podemos compreenderquestotildees importantes sobre o papel da muacutesica e a relevacircncia da teoria do ethos musical
42 Satildeo essas as disciplinas que vieram a compor os Estudos Ciacuteclicos ainda na Antiguidade e posteriormenteo quadrivium das Artes Liberais Ver seccedilatildeo 42
43 Muito embora no livro VII Platatildeo critique os pitagoacutericos por natildeo abstraiacuterem o suficiente do acircmbito sonoro44 Cf Platatildeo Filebo (55 E ndash 56 A)45 Cf Platatildeo Rep (531 A) Aristoacutexeno algum tempo depois estabeleceu uma teoria musical baseada no
fenocircmeno sonoro mas com um rigor cientiacutefico muito maior do que o dos empiricistas criticados por Platatildeo
25
alma humana A muacutesica (enquanto fenocircmeno sonoro) foi dada para noacutes pelas Musas em
funccedilatildeo da harmonia que se move de maneira anaacuteloga agraves nossas almas e natildeo em funccedilatildeo do
prazer irracional tal como de acordo com o autor se considerava em sua eacutepoca A muacutesica
serviria para auxiliar o movimento da alma em direccedilatildeo agrave ordem e agrave concordacircncia quando
essa tivesse perdido sua harmonia46
Se a muacutesica tem essa relaccedilatildeo direta com o movimento da alma uma muacutesica ruim
levaria agrave discordacircncia e confusatildeo na alma Por oposiccedilatildeo quando os sons satildeo executados
harmonicamente eles ldquoproporcionam prazer (hedone) aos brutos e felicidade (euphrosyne)
aos inteligentes porque nos movimentos mortais se produz uma imitaccedilatildeo da harmonia
divinardquo (Platatildeo Ti 80B)47 De acordo com Barker as combinaccedilotildees musicais de sons ldquonatildeo
podem dar prazer [intelectual] agraves pessoas que falham em apreciar a conexatildeo desses padrotildees
sonoros com a harmonia da Alma do Mundordquo (Barker 2007 p 326)
Contudo o prazer irracional ou intelectual natildeo eacute o que define o ethos musical Os
homens tecircm prazer com as muacutesicas a que eles estatildeo acostumados Acontece que a alma eacute
suscetiacutevel agraves melodias sejam ldquoboasrdquo ou ldquoruinsrdquo Para o filoacutesofo a muacutesica que produz prazer
irracional aquela que ldquodesarmonizardquo a alma faz os homens piores Jaacute a muacutesica que
harmoniza a alma produz homens melhores48
Se para Platatildeo ldquoa verdadeira funccedilatildeo de toda educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento da alma e
harmonizaccedilatildeo de seus elementosrdquo (Barker 1984 p 127) ela deve abranger o corpo e a alma
Por isso na Repuacuteblica Platatildeo divide-a em duas partes a saber a ginaacutestica e a mousike
(enquanto veiacuteculo da poesia)
Depois da muacutesica eacute na ginaacutestica que se deve educar os jovens (hellip) A mim natildeo meparece ser o corpo por perfeito que seja que pela sua excelecircncia49 torne a almaboa mas pelo contraacuterio a alma boa pela sua excelecircncia permite ao corpo ser omelhor possiacutevel (Platatildeo Rep 403 C - D)
Platatildeo define a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne) como os objetivos
eacuteticos da educaccedilatildeo50 A educaccedilatildeo pela muacutesica e pela ginaacutestica natildeo tem como finalidade o
corpo mas se daacute em funccedilatildeo da alma A ginaacutestica gera no homem certa rusticidade que
46 Cf Platatildeo Ti (47 C - E) Anderson (1966 p 60)47 Podemos distinguir entre hedone como o prazer irracional e euphrosyne (traduzido aqui por ldquofelicidaderdquo)
enquanto prazer intelectual 48 Cf Platatildeo Leis (802 C - D) Ti (43 A ndash 44 C) Ver tambeacutem Barker (1984 p 124)49 ldquoExcelecircnciardquo traduz ldquoareterdquo comumente traduzido tambeacutem por ldquovirtuderdquo50 O desenvolvimento de tais virtudes na alma por meio da muacutesica seraacute alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica na primeira
parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37)
26
quando bem educada vem a ser bravura e a muacutesica certa brandura que bem educada tem
uma natureza filosoacutefica sendo temperada e ordenada51 Essas qualidades satildeo consideradas
necessaacuterias e devem ser harmonizadas A alma que as potildee em harmonia eacute considerada
temperante e corajosa e a que natildeo as potildee eacute covarde e ruacutestica
No que concerne agrave muacutesica ao discutir a educaccedilatildeo no livro III da Repuacuteblica Platatildeo
apresenta o modo como as harmoniai e os ritmos refletem diferentes disposiccedilotildees da alma e
afirma em funccedilatildeo disso seu poder de afetar o desenvolvimento do caraacuteter Cada harmonia
determina um padratildeo de afinaccedilatildeo para o instrumento e para a voz que traz consigo certos
atributos eacuteticos ldquoimitando disposiccedilotildees psicoloacutegicas desejaacuteveis ou indesejaacuteveis e moldando a
alma do ouvinte de acordo com elasrdquo (Barker 2007 p 309)
Em vista desse poder da muacutesica toda praacutetica musical que pudesse corromper a alma
deveria ser banida Tais restriccedilotildees relacionam-se aos compositores considerados ldquomodernosrdquo
na eacutepoca em que Platatildeo vivia52 Nas Leis o filoacutesofo condena os compositores que misturam
palavras melodias e ritmos de caraacuteteres opostos imitam sons diversos afastam o ritmo da
melodia53 (recitando os textos dentro de uma meacutetrica mas sem um contorno meloacutedico) e
afastam o ritmo e a melodia da palavra (praacutetica de muacutesica instrumental) Em suma eles usam
os instrumentos musicais para outros propoacutesitos aleacutem do acompanhamento da danccedila e do
canto e o uso que fazem dos instrumentos eacute considerado vulgar e inculto
Essas caracteriacutesticas da ldquomuacutesica novardquo satildeo repetidamente condenadas pelos que
escreveram sobre muacutesica ao longo dos seacuteculos seguintes em vista da idealizaccedilatildeo de uma
muacutesica ldquopurardquo que remete ao periacuteodo arcaico Segundo Barker
todas as complexidades sutis e sofisticaccedilotildees agradaacuteveis esteticamente introduzidasna muacutesica pelos compositores ldquomodernosrdquo devem ser rejeitadas em favor de umasimplicidade nobre que supotildee-se que tenha caracterizado a muacutesica de uma era deouro perdida (Barker 2007 p 309)
As criacuteticas de Platatildeo visavam combater a ideia de que a muacutesica estaacute mais ligada ao
prazer individual do que aos valores morais tradicionais uma alusatildeo direta agrave muacutesica de seu
periacuteodo que era considerada hedonista lasciva e virtuosiacutestica Natildeo que o prazer fosse
absolutamente condenado por Platatildeo O prazer eacute considerado um acompanhamento
51 A questatildeo da relaccedilatildeo entre muacutesica e filosofia eacute utilizada por Sexto Empiacuterico para refutar a utilidade damuacutesica Cf M VI 13 36
52 Sexto Empiacuterico retoma essa oposiccedilatildeo entre muacutesica antiga e moderna Cf M VI 14-553 Platatildeo enfatiza a importacircncia da palavra em relaccedilatildeo ao ritmo e agrave melodia advertindo que ldquodevem forccedilar-se
os peacutes e a melodia a seguirem as palavras e natildeo estas agravequelesrdquo (Platatildeo Rep 400 A)
27
importante da muacutesica mas apenas enquanto subordinado agrave finalidade moral54
Eacute por isso que Platatildeo adverte na Repuacuteblica que os cuidadores da cidade devem zelar
para que a educaccedilatildeo natildeo venha a se corromper ldquoque a tenham sob vigilacircncia em todas as
situaccedilotildees para que natildeo haja inovaccedilotildees contra as regras estabelecidas na ginaacutestica nem na
muacutesicardquo (Platatildeo Rep 424 B) Tambeacutem nas Leis o filoacutesofo considera que
visto que ela [a muacutesica] eacute mais estimada do que as outras representaccedilotildees ela requerum tratamento mais cuidadoso entre todas Qualquer um que cometa um engano emrelaccedilatildeo a ela seria muito prejudicado por adotar preferencialmente disposiccedilotildeesruins () (Platatildeo Leis 669 B - C)
O legislador deveraacute distinguir quais satildeo as canccedilotildees adequadas para os homens e para
as mulheres e combinaacute-las aos ritmos e harmoniai adequados ldquoPois seria terriacutevel para o
canto estar errado em toda sua harmonia ou para o ritmo em todo seu ritmo se ele [o
legislador] designasse harmoniai e ritmos que fossem inadequados para as canccedilotildeesrdquo (Platatildeo
Leis 802 E)
Devido agrave estreita relaccedilatildeo entre muacutesica e paideia focada no desenvolvimento moral do
cidadatildeos Platatildeo apresenta especificamente quais harmoniai e ritmos satildeo permitidos e quais
devem ser banidos As harmonias que devem ser evitadas satildeo as ldquochorosasrdquo como ldquoa
mixoliacutedia a sintonoliacutedia e outras que tais (hellip) Portanto essas satildeo as que se deve excluir
visto que satildeo inuacuteteis para as mulheres que conveacutem que sejam honestas para jaacute natildeo falar dos
homensrdquo (Platatildeo Rep 398 E) Aleacutem disso as harmonias lacircnguidas (adequadas aos
banquetes) satildeo as harmonias jocircnia e liacutedia Estas satildeo consideradas efeminadas e tambeacutem
devem ser evitadas
As harmonias que devem ser preservadas na Repuacuteblica em funccedilatildeo de seu poder de
provocar bravura e temperanccedila satildeo a doacuterica pela capacidade de imitar a voz e as inflexotildees
de um homem valente na guerra e em toda a accedilatildeo violenta e a friacutegia que imitaria
aquele que se encontra em atos paciacuteficos natildeo violentos mas voluntaacuterios que usa dorogo e da persuasatildeo (hellip) ou pelo contraacuterio se submete aos outros quando lhepedem o ensinam ou persuadem e tendo assim procedido a seu gosto semsobranceria se comporta com bom senso e moderaccedilatildeo em todas estascircunstacircncias (Platatildeo Rep 399 B - C)
Platatildeo dispensa a fabricaccedilatildeo de instrumentos apropriados para muitas harmonias
ldquologo natildeo teremos de sustentar artiacutefices para fabricarem harpas triacutegonos e toda a espeacutecie de
54 Cf Lippman (1975 p 114) Essa diferenccedila jaacute foi abordada acima (nota 47)
28
instrumentos de muitas cordas e de muitas harmoniasrdquo (Platatildeo Rep 399 C ndash D) Tambeacutem
proiacutebe o uso do aulo por ser aquele que emite o maior nuacutemero de sons De acordo com
Platatildeo satildeo uacuteteis na cidade a lira e a ciacutetara e nos campos a siringe preferindo ldquoApolo e os
instrumentos de Apolo a Maacutersias55 e os seus instrumentosrdquo (Platatildeo Rep 399 E) Fazendo
essas coisas descritas acima afirma Platatildeo ldquopurificamos de novo a cidade que haacute pouco
diziacuteamos estar efeminadardquo (Platatildeo Rep 399 E)
Aleacutem disso Platatildeo determina os ritmos adequados agrave Repuacuteblica buscando observar
ldquoquais satildeo os correspondentes a uma vida ordenada e corajosardquo (Platatildeo Rep 399 E) Para
falar dos ritmos Platatildeo recorre a Daacutemon e os classifica de acordo com suas qualidades eacuteticas
distinguindo aqueles que satildeo ldquoadequados agrave baixeza agrave insolecircncia agrave loucura e aos outros
defeitos e os ritmos que devem deixar-se aos seus contraacuteriosrdquo (Platatildeo Rep 400 B)
Se a muacutesica tem o poder de mover a alma alterando-a em direccedilatildeo ao caos ou agrave ordem
a educaccedilatildeo musical eacute considerada no pensamento Platocircnico fundamental para restaurar a
harmonia na alma movendo o caraacuteter do ouvinte em direccedilatildeo agrave excelecircncia moral
Em suma para Platatildeo ldquoa educaccedilatildeo pela muacutesica eacute capital porque o ritmo e a harmonia
penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente trazendo consigo a perfeiccedilatildeo e
tornando aquela perfeita (hellip)rdquo (Platatildeo Rep 401 D) Por isso
aquele que foi educado nela [na muacutesica] como devia sentiria mais agudamente asomissotildees e imperfeiccedilotildees no trabalho56 ou na conformaccedilatildeo natural e suportando-asmal e com razatildeo honraria as coisas belas e acolhendo-as jubilosamente na suaalma com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito57 (Platatildeo Rep 401E)
322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica Aristoacuteteles discute as definiccedilotildees apresentadas por Platatildeo na Repuacuteblica e
nas Leis Mas enquanto as consideraccedilotildees deste tomam como ponto de partida as teorias
pitagoacutericas a respeito da mousike (focada em princiacutepios matemaacuteticos) para desta teoria
musical extrair as consequecircncias eacuteticas que determinam seu papel na sociedade aquele natildeo se
55 Maacutersias teria sido um auleta friacutegio que desafiou Apolo para uma competiccedilatildeo musical56 O termo traduzido por ldquotrabalhordquo deriva da palavra grega ldquodemiourgeordquo e estaacute ligado neste caso
especificamente agrave praacutetica das artes manuais 57 No texto grego aparece a expressatildeo ldquokalos te kagathosrdquo que significa ldquobelo e bomrdquo O tradutor da ediccedilatildeo de
referecircncia preferiu utilizar o termo ldquoperfeitordquo porque no seacuteculo V aC ldquobelo e bomrdquo traduzia o ideal deperfeiccedilatildeo fiacutesica e moral grego Ver Platatildeo Rep (p 133 n 68 ediccedilatildeo de referecircncia)
29
preocupa na Poliacutetica em determinar as relaccedilotildees entre muacutesica e matemaacutetica ou astronomia
mas como concentra a discussatildeo nos efeitos do fenocircmeno sonoro observados na sociedade
Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo questotildees acuacutesticas a fisiologia da voz e a fisiologia e
psicologia do ouvir Nesse sentido para abordar o papel da muacutesica na educaccedilatildeo o filoacutesofo
observa as experiecircncias humanas ― as opiniotildees os gostos e costumes ― e extrai daiacute um
conhecimento praacutetico distinto da ciecircncia das causas primeiras
Essa cisatildeo entre a visatildeo metafiacutesica do conceito de mousike e sua concepccedilatildeo enquanto
fenocircmeno sonoro aparece nas divergecircncias entre Platatildeo e Aristoacuteteles como resultado de uma
diferenccedila fundamental entre suas concepccedilotildees metafiacutesicas58 Observa-se a partir disso uma
mudanccedila radical no estatuto do conceito de harmonia As verdades a respeito da muacutesica
estavam ligadas ao fato desta ser um reflexo sonoro harmonioso dos nuacutemeros silenciosos que
eram a realidade uacuteltima Por isso para Platatildeo a ciecircncia musical natildeo dizia respeito ao
fenocircmeno musical visto que os proacuteprios fenocircmenos enquanto sujeitos agrave accedilatildeo do tempo satildeo
imperfeitos
No que diz respeito agrave harmonia Aristoacuteteles discorda radicalmente de Platatildeo Ele
rejeita as ideias platocircnicas e a importacircncia do nuacutemero A esse respeito Lippman chama a
atenccedilatildeo para o fato de que a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute
em um grau consideraacutevel uma polecircmica contra as concepccedilotildees pitagoacutericas eplatocircnicas Os Objetos Matemaacuteticos sustenta Aristoacuteteles natildeo podem existirenquanto substacircncias distintas tanto nas coisas sensiacuteveis quanto separados delaseles podem ser separados apenas em pensamento (Lippman 1975 p 116)
Muito embora a harmonia tambeacutem caracterize a concepccedilatildeo de homem na Filosofia de
Aristoacuteteles59 ele ldquonatildeo acredita na harmonia platocircnica do cosmos ou da alma nem acredita
que a presenccedila das mesmas relaccedilotildees matemaacuteticas em dois fenocircmenos tem qualquer
sustentaccedilatildeo real na interconexatildeo ou na natureza desses fenocircmenosrdquo (Lippman 1975 p 118)
A rejeiccedilatildeo da metafiacutesica da harmonia sendo parte vital de uma elaborada rejeiccedilatildeo do
idealismo platocircnico tem como consequecircncia a libertaccedilatildeo da muacutesica da necessidade de uma
ontologia o que faz com que o interesse no proacuteprio fenocircmeno sonoro aumente60 A
58 Enquanto a verdade para Platatildeo eacute algo transcendente para Aristoacuteteles natildeo haacute uma realidade aleacutem doproacuteprio mundo o sensiacutevel deixa de ser engano e passa a ser ponto de partida legiacutetimo para o conhecimento
59 As concepccedilotildees harmocircnicas de Aristoacuteteles satildeo encontradas na fiacutesica na matemaacutetica e nas ciecircncias praacuteticas eprodutivas Cf Lippman (1975 p 117) A harmonia eacute considerada inerente aos oacutergatildeos do sentido enquantoeles correspondem agrave natureza dos objetos sensiacuteveis A beleza fiacutesica e a excelecircncia corporal tambeacutem se datildeodevido agrave harmonia Jaacute a alma nem eacute harmocircnica nem conteacutem harmonia ou nuacutemero Cf Lippman (1975 p120)
60 Cf Lippman (1975 p 115)
30
investigaccedilatildeo especializada e cientiacutefica da muacutesica no pensamento aristoteacutelico faz com que
cada vez mais os atributos do som se tornem importantes
Natildeo obstante no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Aristoacuteteles ainda
reserva a ela um papel importante Todavia sua atuaccedilatildeo na alma deixa de ser um reflexo do
cosmos Para o filoacutesofo a muacutesica surge de uma capacidade humana inata61 Sob essa
perspectiva a mimesis perde seu sentido quase pejorativo de coacutepia imperfeita e passa a ser
considerada uma atitude natural do homem atraveacutes da qual ele aprende Para Aristoacuteteles as
artes mimeacuteticas satildeo as artes ligadas tambeacutem agrave criaccedilatildeo Tal concepccedilatildeo culmina em uma
postura muito menos restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica
Suas observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave muacutesica na Poliacutetica tecircm como ponto de partida as
opiniotildees comuns acerca da muacutesica a praacutetica musical de sua eacutepoca e a educaccedilatildeo musical
comum Tomando a descriccedilatildeo de Barker
A tarefa do filoacutesofo eacute examinar minuciosamente e organizar certa evidecircncia mostrarda maneira mais clara possiacutevel as tensotildees inerentes a ela e se ele puder desativaacute-las mostrando como visotildees opostas podem ser reinterpretadas e relacionadasharmoniosamente enquanto partes diferentes ou aspectos de uma aspiraccedilatildeo comumagrave felicidade e excelecircncia humana (Barker 1984 p 170)62
Das atividades que os homens exercem algumas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo
dignas As atividades necessaacuterias e uacuteteis existem em funccedilatildeo das atividades honrosas
(Aristoacuteteles Pol 1333 A 30) A educaccedilatildeo tem em vista as virtudes que devem ser
desenvolvidas na alma e por isso deve ser uma preocupaccedilatildeo constante do legislador A
questatildeo da educaccedilatildeo dos jovens na eacutepoca de Aristoacuteteles de acordo com o filoacutesofo
tem presentemente gerado controveacutersia na medida em que nem todos estatildeo deacordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos no que se refere agrave virtude eno que diz respeito agrave vida melhor Tambeacutem natildeo eacute evidente se eacute mais adequado que aeducaccedilatildeo vise as capacidades intelectuais ou o caraacuteter da alma (Aristoacuteteles Pol1337 A 30)63
Discute-se diz Aristoacuteteles se a educaccedilatildeo deve visar o que eacute uacutetil para a vida o que eacute
61 Cf Lippman (1975 p 138)62 Note-se que o procedimento de Aristoacuteteles eacute semelhante ao que Sexto Empiacuterico descreve em relaccedilatildeo ao
ceticismo Mas enquanto Aristoacuteteles busca harmonizar as opiniotildees opostas o ceacutetico as toma comoferramenta para gerar a suspensatildeo de juiacutezo que tambeacutem levaria em uacuteltima instacircncia agrave felicidade
63 Aqui por caraacuteter da alma Aristoacuteteles designa as disposiccedilotildees psicoloacutegicas que formam o caraacuteter doindiviacuteduo O termo no original eacute ethos
31
adequado agrave praacutetica da virtude ou ateacute mesmo aquilo que natildeo tem utilidade64 Aleacutem disso
distingue-se entre quais satildeo tarefas adequadas aos homens livres e natildeo-livres Em vista desses
aspectos a educaccedilatildeo eacute discutida na Poliacutetica
Aristoacuteteles (Pol 1337 B 1339 B) considera a muacutesica um dos ramos da educaccedilatildeo
mas questiona sua utilidade O filoacutesofo apresenta duas opiniotildees acerca da utilidade da
muacutesica que ela natildeo eacute necessaacuteria nem uacutetil agrave vida na cidade mas eacute uacutetil enquanto diversatildeo no
tempo de lazer Seu papel na educaccedilatildeo se restringiria a isso ldquodiversatildeo proacutepria aos homens
livresrdquo
Para o filoacutesofo os homens livres podem se ocupar dos Estudos Liberais65 Mas um
estudo demasiado intensivo desses saberes poderia vir a provocar efeitos nocivos pois o
cidadatildeo passaria a enxergar melhor a parte do que o todo Isso porque Aristoacuteteles considera
sobretudo a finalidade em vista da qual se realiza determinada atividade A praacutetica eventual
das atividades ligadas aos Estudos Liberais eacute permitida desde que com finalidade em si
mesma e natildeo em funccedilatildeo de outros
Para Aristoacuteteles os Estudos Liberais satildeo compostos pela Gramaacutetica Ginaacutestica
Muacutesica e Desenho Entre essas disciplinas apenas a muacutesica pode ser questionada em termos
de sua utilidade Tal como Platatildeo Aristoacuteteles tambeacutem tece consideraccedilotildees a respeito da
finalidade hedonista da muacutesica que era cultivada em sua eacutepoca Todavia enquanto Platatildeo em
funccedilatildeo dos princiacutepios filosoacuteficos que estatildeo na base das ideias apresentadas na Repuacuteblica
subsume o prazer da muacutesica agrave sua finalidade eacutetica para Aristoacuteteles o prazer eacute colocado ao
lado dos objetivos morais do ensino da muacutesica ldquoenquanto um efeito musical coordenadordquo
(Lippman 1975 p 114)
Aristoacuteteles considera que a muacutesica participa da educaccedilatildeo da diversatildeo e do
entretenimento Em funccedilatildeo da sua agradabilidade ela leva ao relaxamento que eacute o objetivo da
diversatildeo (poder terapecircutico) aleacutem disso ela serve ao entretenimento visto que esse tem que
ser elevado e apraziacutevel No que diz respeito agrave educaccedilatildeo o filoacutesofo considera que deve-se
orientar bem o oacutecio que eacute mais elevado que o trabalho Eacute nesse sentido que para ele a
muacutesica foi inserida por muitos na educaccedilatildeo
O esquema eacutetico de Aristoacuteteles concebe que a melhor vida eacute a vida de accedilotildeesvirtuosas nessa a natureza do homem enquanto um composto de corpo e alma seexpressa mais completamente Menos valiosos satildeo os jogos o entretenimento e a
64 Para Platatildeo como jaacute foi exposto a educaccedilatildeo deve se concentrar nos conhecimentos matemaacuteticosaritmeacutetica geometria astronomia harmonike
65 Ver seccedilatildeo 42
32
apreciaccedilatildeo da arte pois estes natildeo satildeo despropositados mas servem agrave finalidade derenovaccedilatildeo da habilidade para o trabalho De mais alto valor do que a accedilatildeo virtuosapor outro lado eacute a contemplaccedilatildeo teoreacutetica (Lippman 1975 p 124)
Ao indagar se a muacutesica contribui para a formaccedilatildeo do caraacuteter e da alma Aristoacuteteles
considera que a prova de sua influecircncia eacute revelada nas melodias de Olimpo66 A esse respeito
o filoacutesofo considera que
Todos satildeo unacircnimes em considerar que essas melodias provocam entusiasmo nasalmas ora o entusiasmo eacute uma afecccedilatildeo do caraacuteter da alma Aleacutem do mais e mesmonatildeo contando com os ritmos e as melodias todo o tipo de imitaccedilatildeo provocasentimentos homoacutelogos nos ouvintes Ora sucedendo ser a muacutesica do domiacutenio dascoisas agradaacuteveis (e consistindo a virtude em experimentar com retidatildeo alegriaamor ou oacutedio) eacute evidente que nada eacute mais necessaacuterio aprender e tornar haacutebito doque julgar com retidatildeo e alegrar-se com costumes dignos e belas accedilotildees (AristoacutetelesPol 1340 A 5-15)
A audiccedilatildeo eacute a uacutenica das sensaccedilotildees que se assemelha67 agraves disposiccedilotildees morais Os
ritmos e melodias satildeo imitaccedilotildees da natureza68 de certas disposiccedilotildees morais como a coacutelera e a
mansidatildeo a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne)69 ao que ele acrescenta que ldquoa
praacutetica prova-o bem visto que o nosso estado de espiacuterito se altera consoante a muacutesica que
escutamosrdquo (Aristoacuteteles Pol 1340 A 20)
Para Aristoacuteteles ldquonas proacuteprias melodias haacute imitaccedilatildeo (mimesis) do caraacuteter (ethos)rdquo70 e
isso se evidencia pela diferente natureza de cada uma das harmoniai Consequentemente
quem as ouve eacute afetado de maneira diferente de acordo com as suas diversas formas
Com efeito umas [harmoniai] deixam-nos mais melancoacutelicos e graves comoacontece com a mixoliacutedia outras enfraquecem o espiacuterito como as lacircnguidas outrasincutem um estado de espiacuterito intermeacutedio e circunspecto como parece ser apanaacutegioda harmonia doacuterica porquanto jaacute a friacutegia induz o entusiasmo (Aristoacuteteles Pol1340 A 40 ndash B 5)
Isso ocorre tambeacutem em relaccedilatildeo aos ritmos Uns satildeo mais calmos e outros mais
movimentados e entre esses uns satildeo dignos e outros vulgares O filoacutesofo toma como
evidente que a muacutesica pode alterar o caraacuteter e por isso considera que esta deve ser aplicada agrave
educaccedilatildeo dos jovens pois ela se adapta agrave natureza deles que tecircm dificuldade para tolerar
66 Muacutesico friacutegio do seacuteculo VII aC67 Cf Aristoacuteteles Prob (27 29)68 Enquanto para Platatildeo a imitaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo a algo que estaacute fora do nosso mundo para Aristoacuteteles
ela se daacute dentro do mundo69 As mesmas virtudes que aparecem na obra de PlatatildeoVer p 25 2770 A muacutesica instrumental para os peripateacuteticos tambeacutem afeta o caraacuteter Nos Problemas Musicais lemos que
ldquomesmo se uma melodia natildeo tiver palavras tem todavia caraacuteter moralrdquo (Aristoacuteteles Prob 27 37-8)
33
ensinamentos natildeo suavizados pelo prazer71
As melodias satildeo divididas segundo Aristoacuteteles de acordo com o estabelecido por
determinados filoacutesofos em eacuteticas praacuteticas e entusiaacutesticas Natildeo se deve excluir nenhuma
harmonia visto que cada uma delas tem uma funccedilatildeo na sociedade Na Poeacutetica (1447 A 28
1459 B 37) o modo doacuterico corresponde a uma melodia eacutetica que suscita virtude o hipofriacutegio
a uma melodia energeacutetica que incita a atividade praacutetica e o friacutegio a uma melodia exaltada que
suscita um estado emocional freneacutetico
Enquanto as harmoniai eacuteticas destinam-se agrave educaccedilatildeo do homem livre as praacuteticas e as
entusiaacutesticas podem ser ouvidas por eles somente quando executadas por outros Para a
educaccedilatildeo ldquoimporta usar melodias eacuteticas e harmonias da mesma espeacutecierdquo Admitindo a
opiniatildeo de Platatildeo Aristoacuteteles assume que a harmonia doacuterica eacute desse tipo ldquotodos concordam
que eacute o mais sereno de todos e que possui um caraacuteter mais virilrdquo
Aristoacuteteles critica a instruccedilatildeo teacutecnica que se destina aos concursos porque eacute feita com
uma finalidade exterior a ela mesma e por isso natildeo eacute digna de homens livres Entretanto
diferentemente de Platatildeo o filoacutesofo natildeo considera que se deve abolir completamente os
concursos e espetaacuteculos Mas que utilizando as melodias cataacuterticas esses concursos deveriam
ser propiciados aos homens comuns pois ldquoeacute devido agrave corrupccedilatildeo das harmonias
(especialmente as de tom agudo e dissonantes) que as suas almas se encontram desviadas da
iacutendole naturalrdquo (Aristoacuteteles Pol 1342 A 20)
Nesse sentido o filoacutesofo condena a fala de Soacutecrates na Repuacuteblica onde haacute a recusa do
aulo entre os instrumentos considerando que este por ser excitante pode ser usado para se
produzir o efeito cataacutertico Ainda assim Aristoacuteteles rejeita o uso do aulo na educaccedilatildeo visto
que ele impede o uso da palavra (Aristoacuteteles Pol 1341 B) Do mesmo modo ele considera a
harmonia friacutegia vaacutelida visto que esta eacute em relaccedilatildeo agraves harmoniai o que o aulo eacute em relaccedilatildeo
aos instrumentos ldquoambos satildeo de teor orgiaacutestico e incutem a paixatildeordquo sendo utilizados com
frequecircncia juntos
Aleacutem disso Aristoacuteteles critica Soacutecrates por banir as harmoniai lacircnguidas em funccedilatildeo
de elas provocarem fadiga (na Repuacuteblica essas satildeo a jocircnia e a liacutedia) tendo em vista que na
velhice esse gecircnero de melodia deve ser praticado pois em decorrecircncia da idade os idosos
natildeo conseguem alcanccedilar os tons agudos Por fim Aristoacuteteles contrariando Platatildeo conclui
que a harmonia mais adequada aos jovens parece ser a liacutedia
Para Lippman um dos grandes meacuteritos de Aristoacuteteles reside no modo detalhado como
71 Ver M VI 7
34
ele aborda os princiacutepios que regem o uso da muacutesica Haacute uma ampla consideraccedilatildeo dos fatores
variados que influenciam a questatildeo ldquoo que parece errado de um ponto de vista Aristoacuteteles
mostra pode ser vaacutelido de outrordquo (Lippman 1975 p 126)
O ensino da muacutesica deve ser conduzido de maneira cuidadosa devendo ser enfatizado
com relaccedilatildeo agrave escuta e natildeo agrave praacutetica instrumental muito embora seja necessaacuterio que o
aprendiz participe da praacutetica musical A experiecircncia em instrumentos natildeo eacute o objetivo da
educaccedilatildeo musical pois a praacutetica de uma arte eacute uma atividade improacutepria para o homem livre
A praacutetica musical visa gerar uma familiaridade com a muacutesica tendo em vista o
desenvolvimento da capacidade de fazer bons julgamentos acerca dela Assim uma boa
educaccedilatildeo musical na infacircncia tornaria o indiviacuteduo apto a mais tarde avaliar a boa muacutesica e
fruiacute-la corretamente
Seria bom que esta aprendizagem natildeo fizesse penar como os que se preparam paraconcursos de profissionais72 nem se esperasse das obras realizadas o brilho e ovirtuosismo atingidos pelos que se apresentam nesses concursos nomeadamentenos relativos agrave educaccedilatildeo a muacutesica deveria ser estudada na medida suficiente parapossibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum damuacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns animais(Aristoacuteteles Pol 1341 A 10-17)73
Aristoacuteteles eacute muito menos restritivo que Platatildeo a respeito da muacutesica que pode ser
executada na polis A distinccedilatildeo entre o papel educativo e o prazer que a muacutesica proporciona
enquanto aspectos coordenados e natildeo mais dependentes permite que a muacutesica seja em certas
ocasiotildees apreciada por ela mesma
Diferentemente de Platatildeo no entanto Aristoacuteteles natildeo tem uma baixa consideraccedilatildeopela imitaccedilatildeo ele natildeo estaacute preocupado com seu afastamento da realidade masconsidera pelo contraacuterio que ela eacute natural para o homem que ela o ensina e que daacutea ele prazer Assim eacute dada agrave arte uma base na natureza humana e ela eacute consideradacomo eacutetica e prazerosa de maneira inerente nosso prazer nela entretanto natildeo se daacutedevido agraves suas propriedades sensiacuteveis mas em funccedilatildeo de um prazer no aprendizado(Lippman 1975 p 123-4)
O conceito de mimesis embora despido de seu caraacuteter metafiacutesico permanece central
72 O termo grego ldquotekhnikousrdquo traduzido aqui por ldquoprofissionaisrdquo pode significar tambeacutem ldquoespecialistasrdquo ouldquoteacutecnicosrdquo
73 Essa passagem eacute esclarecedora a respeito da relaccedilatildeo entre os projetos pedagoacutegicos aristoteacutelico e platocircnicoAmbos estatildeo preocupados em educar uma elite que saiba apreciar a muacutesica dita de caraacuteter elevado Maistarde Aristoacutexeno seguindo os passos de seu mestre tambeacutem propotildee que o estudo da muacutesica deve prepararpara uma capacidade de julgamento a respeito da praacutetica musical de seu tempo que eacute considerada vulgarEssa visatildeo natildeo sofre muitas alteraccedilotildees nos seacuteculos seguintes (como mostramos na seccedilatildeo 44 a respeito dosEstudos Ciacuteclicos)
35
no pensamento aristoteacutelico no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Ao
considerar a mimesis enquanto fenocircmeno natural da vida humana a arte (e especificamente a
muacutesica) passa a ser por si mesma eacutetica e prazerosa
No que concerne agraves ideias pitagoacutericas e platocircnicas a respeito da relaccedilatildeo da alma
humana com a harmonia Aristoacuteteles limita-se a dizer que ldquoparece que em noacutes existe algo que
se assemelha a harmonia e ritmo e eacute nesse sentido que alguns saacutebios referem que a alma eacute
harmonia outros que tem harmoniardquo (Aristoacuteteles Pol 1340 B 15) Aristoacuteteles todavia
restringe sua abordagem ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo excluindo do escopo da teoria musical a
questatildeo a respeito do seu estatuto ontoloacutegico Nesse sentido
a imitaccedilatildeo eacute tanto mantida quanto alterada Seu modelo permanece sendo a accedilatildeohumana e o caraacuteter incluindo agora ateacute o que eacute feio mas ao inveacutes de se voltar agravescoisas individuais ela procura sua natureza ideal e geral um processo um tantodiferente no entanto da revelaccedilatildeo de uma realidade eterna por traacutes delas (Lippman1975 p 138)
Ao desvincular o conceito de mimesis (que estaacute na base da teoria do ethos musical) de
suas raiacutezes metafiacutesicas Aristoacuteteles abre caminho para que a muacutesica enquanto fenocircmeno
sonoro adquira uma maior autonomia visto que as alteraccedilotildees que ela promove no caraacuteter do
ouvinte natildeo dependem mais da harmonia do cosmos mas do proacuteprio fenocircmeno sonoro em
sua relaccedilatildeo com a alma humana
33 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA
DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO
Eacute a partir do ponto de vista dos filoacutesofos peripateacuteticos que um dos mais renomados
disciacutepulos de Aristoacuteteles Aristoacutexeno74 promove uma sistematizaccedilatildeo da teoria musical
considerando-a enquanto uma ciecircncia autocircnoma desvinculada dos pressupostos metafiacutesicos
que a subjugavam anteriormente A teoria musical de Aristoacutexeno rompe com a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica de modo que a partir dela a ciecircncia da muacutesica natildeo empresta seus princiacutepios
baacutesicos da matemaacutetica e da fiacutesica mas parte de seu proacuteprio objeto de investigaccedilatildeo De acordo
com Aristoacutexeno a harmonike enquanto parte da muacutesica eacute baseada nos dados que satildeo
apreendidos atraveacutes da audiccedilatildeo Segundo Barker
74 As traduccedilotildees dos trechos da obra de Aristoacutexeno foram feitas a partir da comparaccedilatildeo das traduccedilotildees de Barker(1989) e de Roosevelt Rocha (natildeo publicada) com o texto grego dos Elementa Harmonica (TLG)
36
Sua tarefa eacute exibir a ordem interna do fenocircmeno perceptivo analisar os padrotildeessistemaacuteticos dentro dos quais ela eacute organizada mostrar como a exigecircncia de que asnotas devem caber em certo padratildeo de organizaccedilatildeo mdashse elas devem ser apreendidascomo meloacutedicas mdash explica porque algumas sequecircncias possiacuteveis de alturas formamuma melodia enquanto outras natildeo e por uacuteltimo apresentar todas as regras quegovernam a forma meloacutedica enquanto algo que flui de um grupo coordenado deprinciacutepios que descrevem uma uacutenica e determinada essecircncia a do proacuteprioldquomeloacutedicordquo ou do ldquoafinadordquo75 (Barker 1989 p 4)
Nascido em meados do seacuteculo IV aC Aristoacutexeno de Tarento estudou composiccedilatildeo e
performance musical mas focou seus estudos na Filosofia e na teoria musical
Apoacutes ter recebido de seu pai o muacutesico Espiacutentaro suas primeiras liccedilotildees musicaisAristoacutexeno seguiu os ensinamentos de um Pitagoacuterico (hellip) depois disso ele recebeuliccedilotildees de Aristoacuteteles e adquiriu entre os disciacutepulos do mestre uma reputaccedilatildeosuficiente para pretender sucedecirc-lo na direccedilatildeo da escola (Beacutelis 1986 p 10)
Aristoacutexeno passou um tempo consideraacutevel com os Pitagoacutericos antes de entrar para o
Liceu e se tornar aprendiz de Aristoacuteteles por volta de 330 aC o que provocou uma grande
mudanccedila no seu modo de pensar Apesar de ele ter deixado o Liceu depois deste ter sido
assumido por Teofrasto (porque ele proacuteprio almejava substituir Aristoacuteteles) Aristoacutexeno
permaneceu fiel aos ensinamentos aristoteacutelicos declarando-se ldquodecidido a aplicar os
princiacutepios metodoloacutegicos herdados do Estagiritardquo (Beacutelis 1986 p 11)
Seus escritos sobre teoria musical satildeo inspirados na concepccedilatildeo aristoteacutelica de
conhecimento De acordo com Annie Beacutelis Aristoacutexeno busca fundar uma ciecircncia nova e
autecircntica ldquoaquilo que ele chama legitimamente de ciecircncia harmocircnica uma disciplina
rigorosa e que esgota a totalidade dos objetos que dela dependemrdquo (Beacutelis 1986 p 170) Sua
influecircncia pode ser percebida pelo fato de que no periacuteodo Romano ele era citado
simplesmente como ldquoo muacutesicordquo76
Aristoacutexeno apresenta a ldquociecircncia acerca da melodiardquo77 ou seja a ciecircncia musical como
dividida em muitas partes A disciplina harmocircnica eacute entre elas ldquoa primeira e tem funccedilatildeo
elementar De fato ela eacute a primeira das disciplinas teoreacuteticas cuja magnitude eacute tatildeo grande
que se estende ateacute a teoria dos sistemas (systemata) e dos tons (tonos)rdquo (Aristoacutexeno El
75 Essa definiccedilatildeo eacute usada por Sexto Empiacuterico na segunda parte do Contra os Muacutesicos Ver M VI 3876 Sua relevacircncia no periacuteodo romano pode ser indicativa do motivo pelo qual Sexto Empiacuterico o utiliza como
paradigma de muacutesico e sua teoria como paradigma de ciecircncia musical Sexto Empiacuterico pretende combater asvisotildees mais comuns a respeito da teoria musical e Aristoacutexeno eacute por sua vez considerado ldquoo muacutesicordquo no quediz respeito agrave ciecircncia musical Nesse sentido satildeo os aspectos teacutecnicos da teoria musical de acordo com opensamento de Aristoacutexeno que satildeo combatidos
77 ldquoMelodiardquo traduz ldquoto melosrdquo Aqui tem um sentido amplo que inclui melodia ritmo e palavra
37
Harm 11)
As questotildees de tipo mais elevado que satildeo consideradas jaacute quando a muacutesica praacutetica(poietike)78 utiliza os sistemas e os tons natildeo mais pertencem a ela mas agrave ciecircnciaque compreende essa e as outras ciecircncias atraveacutes das quais considera-se tudo quediz respeito agrave muacutesica Eacute isso que diz respeito ao muacutesico (Aristoacutexeno El Harm12)
Diante dessas definiccedilotildees o primeiro recorte que se faz eacute o de que a harmonike natildeo faz
parte do acircmbito praacutetico A harmonike eacute apresentada como parte de uma ciecircncia mais ampla
que envolve o estudo de tudo que tem a ver com muacutesica
A ciecircncia harmocircnica divide-se em sete partes a saber mdash a discussatildeo das notas
intervalos gecircneros sistemas tons modulaccedilatildeo e a uacuteltima estaacute ligada agrave proacutepria composiccedilatildeo
meloacutedica79 As notas satildeo a base para a composiccedilatildeo de melodias
visto que muitas formas de melodias de todos os tipos vecircm a ser em notas que satildeoelas proacuteprias as mesmas e imutaacuteveis eacute evidente que sua variedade depende do usoque eacute dado agraves notas e isto noacutes chamamos composiccedilatildeo meloacutedica Portanto a ciecircncialigada agrave afinaccedilatildeo harmocircnica depois de percorrer as partes que foram mencionadasatinge sua finalidade aqui (Aristoacutexeno El Harm 238 20)80
A composiccedilatildeo de melodias (melopoiia) aparece como finalidade da harmonike
Todavia tal finalidade natildeo parece estar ligada agrave ldquopraacutetica composicionalrdquo (poietike) mas
antes ao conhecimento dos princiacutepios baacutesicos que a norteiam A harmonike natildeo eacute da ordem
da tekhne mas eacute uma teoria Tambeacutem de acordo com Beacutelis eacute evidente que Aristoacutexeno a
distingue tambeacutem da ldquopoeacuteticardquo que cria e da muacutesica ldquopraacuteticardquo que utiliza o material
musical81 Segundo a comentadora Aristoacutexeno
(hellip) definitivamente distingue em todo caso a teoria da poeacutetica a harmonike elediz eacute a primeira disciplina teoreacutetica ela natildeo se estende aleacutem do que concerne oconhecimento dos sistemas de tons (noacutes utilizamos essa expressatildeo como umatalho) mas ela investiga as questotildees mais elevadas que haacute enquanto a poeacuteticautiliza os sistemas e os tons natildeo lhe pertencendo mais (Beacutelis 1986 p 171)
78 O termo ldquopoietikerdquo inclui os aspectos praacuteticos da composiccedilatildeo estaacute ligado ao proacuteprio fazer musical VerBarker (2007 p 139) e Beacutelis (1986 p 171)
79 Discutimos o uso dessa definiccedilatildeo em Sexto Empiacuterico na seccedilotildees 511 e 5380 Para Aristoacutexeno as notas estatildeo na base da ciecircncia dos sons Eacute nesse sentido que Sexto Empiacuterico ataca o
conceito de som contido na definiccedilatildeo de nota Se a nota eacute a ldquoincidecircncia de um som em uma tensatildeordquo se natildeohaacute uma definiccedilatildeo do conceito de som natildeo haacute definiccedilatildeo do conceito de nota Ver M VI 52 Assim se amuacutesica eacute baseada nas notas e as notas no som ao mostrar a inconsistecircncia do conceito de som (mostrando asua ldquoinexistecircnciardquo) destroacutei-se tambeacutem toda a muacutesica
81 Ver Beacutelis (1986 p 187 n 4)
38
Pode-se considerar que cada gecircnero meloacutedico eacute um tipo de composiccedilatildeo Aristoacutexeno
apresenta como escopo de suas exposiccedilotildees o sentido em que cada tipo de composiccedilatildeo tem
um efeito (de acordo com sua proacutepria ressalva isso se a muacutesica tiver esse poder)
No momento importa frisar que Aristoacutexeno define como objeto de seus discursos
cada uma das composiccedilotildees meloacutedicas que segundo a interpretaccedilatildeo de Barker (2007 p 232)
ldquonatildeo satildeo composiccedilotildees individuais mas estilos de composiccedilatildeordquo82 Assim a harmonike teria
como finalidade natildeo a praacutetica composicional mas a compreensatildeo dos estilos de composiccedilatildeo
Tal interpretaccedilatildeo eacute corroborada tambeacutem pela seguinte passagem do segundo livro dos
Elementa Harmonica
Alguns imaginam que essa ciecircncia eacute de grande significacircncia alguns deles supondoateacute mesmo que ouvir a um discurso sobre harmonike iraacute fazecirc-los natildeo apenasmuacutesicos mas tambeacutem melhores quanto ao caraacuteter Essas pessoas ouviram mal osdiscursos nas nossas exposiccedilotildees ldquoo que tentamos fazer eacute mostrar para cada tipo decomposiccedilatildeo meloacutedica (ton melopoiion hekasten) e para a muacutesica em geral que tal etal tipo prejudica o caraacuteter enquanto tal e tal tipo eacute uacutetilrdquo e natildeo tendo ouvido issoeles tambeacutem natildeo ouviram nossa qualificaccedilatildeo ldquona medida em que a muacutesica pode seruacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30)
Acerca desta passagem resta assinalar que no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre os tipos
de composiccedilatildeo meloacutedica e seu efeito no ouvinte de fato Aristoacutexeno eacute bastante reticente ao
tratar da relaccedilatildeo entre muacutesica e virtude
Aristoacutexeno se dedica a corrigir dois excessos alguns imaginam por saberem osrudimentos da harmonike que satildeo muacutesicos por completo mas tambeacutem que setornaram moralmente melhores Outros ao contraacuterio relegaram esta ciecircncia a umaposiccedilatildeo despreziacutevel se contentando em ignoraacute-la Optando pela posiccedilatildeo do meioAristoacutexeno sustenta que a harmonike natildeo eacute mais que uma parte do saber do muacutesicoem si ela natildeo tem efeito moral seus ouvintes aparentemente natildeo apreenderam seupropoacutesito sobre os tipos de melopeia dos quais alguns foram qualificadosprejudiciais e outros uacuteteis (hellip) (Beacutelis 1986 p 97)
Aleacutem disso segundo Beacutelis ldquoAristoacutexeno provavelmente mostrou o valor musical de
uma e outra melopeia quer dizer tal e tal forma de combinaccedilatildeo de sons onde certos ouvintes
acreditaram reconhecer o valor moral das tonalidadesrdquo (Beacutelis 1986 p 172) mas este natildeo
constitui o foco principal de sua teoria
Como apresentamos cabe agravequele que eacute chamado ldquomuacutesicordquo dominar muitas
disciplinas ldquoA harmonike eacute apenas uma parte da habilidade do muacutesico tal como satildeo as
82 Para uma discussatildeo apurada dessa questatildeo ver Barker (2007 cap 9)
39
ciecircncias do ritmo da meacutetrica e dos instrumentosrdquo83 (Aristoacutexeno El Harm 232)
A harmonike eacute designada como ciecircncia mas como uma ciecircncia particular que seraacuteum elo de um conjunto cientiacutefico Esboccedila-se jaacute uma teoria do saber musical porinteiro onde a exigecircncia de rigor pesa sobre todas as partes do saber que o muacutesicodeve dominar para merecer seu tiacutetulo de mousikos (Beacutelis 1986 p 171)
Conhecer os diversos ramos da ciecircncia da muacutesica natildeo significa praticar muacutesica Se
satildeo esses conhecimentos (da harmonike do ritmo da meacutetrica e dos instrumentos) que
Aristoacutexeno atribui ao muacutesico ldquomuacutesicordquo aqui natildeo diz respeito ao muacutesico praacutetico mas agravequele
que estuda a muacutesica como um todo De acordo com Barker
quando usado sem qualificaccedilatildeo e no contexto de uma compreensatildeo que envolvetodos os acircmbitos da muacutesica o termo mousikos eacute mais naturalmente lido em umsentido amplo indicando uma pessoa de uma ampla e sofisticada cultura musicalindependentemente de eles serem tambeacutem especialistas em algum ramo da arte(Barker 2007 p 140)
Assim para Aristoacutexeno o muacutesico natildeo eacute em primeira instacircncia aquele que pratica a
arte da muacutesica mas sim aquele que estudou todas as aacutereas da ciecircncia musical possuindo os
conhecimentos necessaacuterios para compreendecirc-la e com isso emitir juiacutezos criacuteticos a respeito
da muacutesica praacutetica Nesse sentido para fazer um julgamento adequado de uma peccedila musical o
muacutesico deve observar os trecircs elementos baacutesicos que a compotildeem as notas a duraccedilatildeo riacutetmica e
a siacutelaba A percepccedilatildeo e o pensamento (dianoia) devem estar um ao lado do outro na formaccedilatildeo
do julgamento
Eacute evidente que compreender melodias eacute uma questatildeo de seguir as coisas com aaudiccedilatildeo e a razatildeo na medida em que elas vem a ser no que diz respeito a todas assuas distinccedilotildees pois eacute em um processo de vir a ser que consiste a melodia comosatildeo tambeacutem todas as outras partes da muacutesica A compreensatildeo da muacutesica vem deduas coisas percepccedilatildeo e memoacuteria pois noacutes temos que apreender o que estaacute vindo aser e lembrar o que veio a ser (Aristoacutexeno El Harm 238-9)
O objetivo da investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute a compreensatildeo84 (Aristoacutexeno El Harm 41 15-
83 Organike aparece aqui junto agrave episteme Jaacute na introduccedilatildeo do Contra os Muacutesicos episteme eacute oposta agraveempeiria e a organike aparece ligada a essa uacuteltima Ver seccedilatildeo 51
84 Ao explicar que o conceito de harmonike supera a mera notaccedilatildeo Aristoacutexeno argumenta que ldquonotaccedilatildeo natildeo eacutenem mesmo uma parte dela a menos que escrever metros seja tambeacutem uma parte da ciecircncia do metro Masse isso se aplica aqui ndash que aquele que pode escrever o metro jacircmbico natildeo eacute necessariamente aquele quemelhor compreende o que o jacircmbico realmente eacute ndash se aplica tambeacutem agraves melodiasrdquo (Aristoacutexeno El Harm239) Nesse sentido a notaccedilatildeo natildeo participa da investigaccedilatildeo cientiacutefica que compreende apenas o acircmbitoteoacuterico Isso corrobora com a ideia de que a ciecircncia musical natildeo abrange a execuccedilatildeo de instrumentos ou apraacutetica composicional
40
6) Em funccedilatildeo disso ldquoo saber harmocircnico natildeo se reduziraacute mais a mediccedilatildeo de intervalos nem agrave
assimilaccedilatildeo das relaccedilotildees numeacutericasrdquo (Beacutelis 1986 p 172) A compreensatildeo pode e deve ser
usada para instruir aqueles que julgam a muacutesica que eacute executada na praacutetica a fim de garantir
que ela seja executada de maneira correta85 A ideia de que o conhecimento teacutecnico deve ser
adquirido para que se possa julgar as peccedilas que satildeo executadas jaacute aparece tambeacutem em
Platatildeo86 Para o filoacutesofo eacute preciso apreender o que eacute correto acerca da peccedila para se julgar
uma muacutesica de maneira inteligente tendo desenvolvido uma percepccedilatildeo aguccedilada e uma
compreensatildeo dos ritmos e das harmonias
Segundo Beacutelis
os dois autores rejeitam com um mesmo desprezo o leigo que eles opunham aoconhecedor quando trata-se de julgar uma muacutesica ou sentir prazer com ela (hellip) Domesmo modo Aristoacutexeno distingue o leigo do conhecedor uacutenico qualificado parajulgar a beleza de uma aacuteria e acusa certos harmonicistas de lisonjear os leigos aofazer da notaccedilatildeo das canccedilotildees o termo do aprendizado da harmonia (Beacutelis 1986 p99)87
O conhecedor da muacutesica eacute para ambos aquele que tem as habilidades necessaacuterias ao
julgamento de uma peccedila musical sendo a harmonike uma dessas habilidades Tambeacutem na
Poliacutetica a muacutesica eacute situada entre as disciplinas que fazem parte da educaccedilatildeo liberal destinada
agrave formaccedilatildeo de uma elite intelectual Para Aristoacuteteles como apontamos anteriormente o
objetivo da participaccedilatildeo dos jovens na praacutetica musical eacute desenvolvimento da capacidade de
julgar peccedilas musicais Desse modo a muacutesica poderia ser praticada na juventude ndash como
forma de entretenimento e ainda assim sob um controle riacutegido de quais melodias ritmos e
instrumentos podem ser utilizados ndash mas ao atingirem a idade adulta devem abster-se da
praacutetica mantendo como resultado desse aprendizado a capacidade de julgar e fruir das coisas
de maneira correta
como para ajuizar eacute necessaacuterio que se participe da execuccedilatildeo as crianccedilas devempraticar a muacutesica desde tenra idade Chegados agrave idade avanccedilada devem pocirc-la agraveparte pois eacute devido agrave aprendizagem na infacircncia que poderatildeo mais tarde avaliar aboa muacutesica e fruiacute-la corretamente (Aristoacuteteles Pol 1340 B 35)
85 Enquanto para filoacutesofos como Platatildeo a correccedilatildeo tem uma funccedilatildeo moral para Aristoacutexeno diz respeito aestar de acordo com o conhecimento cientiacutefico
86 Platatildeo Leis 670 BndashC Ti 70 A-B87 Contudo haacute uma diferenccedila fundamental entre Platatildeo e Aristoacutexeno no que diz respeito ao efeito da muacutesica na
alma ldquoEacute verdade que ele [Aristoacutexeno] reconhece que a muacutesica afeta a alma que certas melopeias satildeo uacuteteise outras prejudiciais mas natildeo admite que a harmonia possa de qualquer modo incitar a virtuderdquo (Beacutelis1984 p 100)
41
Aristoacuteteles propocircs ainda que as habilidades teacutecnicas musicais deveriam ser estudadas
ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave
parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns
animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A)
Se eacute difiacutecil ligar Aristoacuteteles a esta ou aquela escola de muacutesica - apesar de algunstextos que se mostram bem proacuteximos das ideias pitagoacutericas - natildeo haacute duacutevidas aocontraacuterio que ele toma partido dos tradicionalistas que reprovam as inovaccedilotildeesintroduzidas pelos virtuosos na praacutetica musical (Beacutelis 1986 p 56)
Aristoacutexeno tambeacutem manteacutem o conservadorismo de seus antecessores (Platatildeo e
Aristoacuteteles) no que diz respeito ao ldquocultordquo agrave muacutesica do passado em oposiccedilatildeo ao virtuosismo
de seus contemporacircneos O conhecimento da arte da combinaccedilatildeo das notas a harmonike
seria um dos conhecimentos necessaacuterios agrave Educaccedilatildeo Liberal que se contrapotildee ao gosto do
senso comum
Segundo Barker o texto de Aristoacutexeno revela uma progressiva divisatildeo entre o gosto
popular do periacuteodo (disseminado nas disputas entre muacutesicos profissionais que satildeo
mencionadas por Platatildeo e Aristoacuteteles) e o gosto dos intelectuais do seacuteculo IV aC Para eles
a capacidade de se elevar acima do amor das massas pelo virtuosismo e pelosefeitos melodramaacuteticos e formar julgamentos musicais sobre uma base esteacutetica eintelectualmente sofisticada se tornou um marco de seu status superior Na medidaem que ele representa a teoria harmocircnica como um dos instrumentos essenciais naldquocaixa de ferramentas intelectuaisrdquo daquele que julga Aristoacutexeno estaacute continuandoo projeto de resgataacute-la das matildeos do mero ldquoartesatildeordquo com o qual ela havia comeccediladoe recomendando-a agrave atenccedilatildeo das cultas classes superiores para as quais em temposanteriores ela teria parecido tatildeo irrelevante quanto aprender a cozinhar (Barker2007 p 234)
Se por um lado Aristoacutexeno daacute um passo diferente em relaccedilatildeo aos seus antecessores
circunscrevendo a ciecircncia musical ao acircmbito sonoro por outro em seu conservadorismo ele
manteacutem ainda uma cisatildeo entre teoria e praacutetica musical e uma divisatildeo hieraacuterquica entre aquele
que pratica e aquele que julga a arte musical
34 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO
Se muito se teorizou na Antiguidade a respeito da importacircncia da muacutesica na
sociedade houve por outro lado um filoacutesofo que dedicou-se agrave refutaccedilatildeo das opiniotildees sobre
42
muacutesica difundidas em sua eacutepoca Filodemo de Gadara88 filoacutesofo epicurista do primeiro
seacuteculo aC (c 110 ndash 40) em sua obra intitulada De Musica dedica-se a refutar as
consideraccedilotildees favoraacuteveis do filoacutesofo estoico89 Dioacutegenes da Babilocircnia a respeito do papel da
muacutesica
O meacutetodo de Filodemo consiste em apresentar as afirmaccedilotildees de seu oponente e em
seguida criticar cada uma delas90 A discussatildeo sobre muacutesica apresentada nessa obra natildeo diz
respeito agrave questotildees teacutecnicas musicais tal como podemos observar na obra de Aristoacutexeno
mas somente agraves questotildees relacionadas ao ensino da muacutesica ao seu papel moral e educacional
devido ao modo como esta afetaria a alma tal como Platatildeo e Aristoacuteteles a abordaram91
Dioacutegenes da Babilocircnia92 viveu entre 240 ndash 152 aC Embora natildeo tenhamos acesso aos
seus escritos apenas a fragmentos citados por outros autores considera-se que ele reformulou
as posiccedilotildees de seus antecessores a tal ponto que sua visatildeo veio a ser a ortodoxa de sua escola
nos seacuteculos II e I aC Segundo Woodward (2009 p 13) ldquoo fato de que Dioacutegenes seja o
principal oponente de Filodemo no De Retorica e tambeacutem no De Musica IV pareceria
sustentar essa sugestatildeordquo De acordo com Delattre
certamente se Dioacutegenes por sua vez agindo dessa maneira natildeo fazia nada mais doque se inscrever na jaacute longa tradiccedilatildeo que via na muacutesica uma insubstituiacutevelpropedecircutica para a virtude o que parece contudo ter distinguido claramente nossoEstoico de todos os seus antecessores desde Pitaacutegoras eacute uma vontade bem marcadade fundamentar cientificamente isto eacute com base em uma teoria coerente dasensaccedilatildeo e do conhecimento as crenccedilas e prejulgamentos repetidos aqui e ali depoisdo seacuteculo VI aC (Delattre 2007 p 3)
A preocupaccedilatildeo fundamental do estoico parece ter sido sobretudo a de afirmar a
eficaacutecia eacutetico-psicoloacutegica da muacutesica para o que ele buscou fundar uma ciecircncia ldquo() uma
verdadeira psicologia musical caracterizada por leis imutaacuteveis necessaacuterias e universaisrdquo
(Delattre 2007 p 16)93
88 Para as citaccedilotildees do De Musica nossa traduccedilatildeo parte da versatildeo francesa de Delattre (2007)89 Note-se que os filoacutesofos epicuristas foram tambeacutem o principal alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica em outras questotildees90 Tal como no caso de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos podemos apenas conjecturar a respeito de sua
visatildeo positiva sobre o tema91 Estima-se que a refutaccedilatildeo de Filodemo agraves afirmaccedilotildees de Dioacutegenes sobre a muacutesica seja tambeacutem uma defesa
contra as acusaccedilotildees de ignoracircncia difundidas contra a escola epicurista Essas acusaccedilotildees deram-se sobretudoem funccedilatildeo da criacutetica epicurista aos Estudos Ciacuteclicos Tais acusaccedilotildees satildeo reafirmadas por Sexto Empiacuterico noinicio do Contra os Professores Cf Woodward (2009 p 12 222)
92 Note-se que os filoacutesofos Estoicos figuram entre os principais alvos da refutaccedilatildeo ceacutetica Dioacutegenes foi pupilode Crisipo um dos principais pensadores desta doutrina que figura entre aqueles que tambeacutem satildeo refutadospor Sexto Empiacuterico
93 Tudo se passa como se Dioacutegenes pretendesse reunir em suas teorias a um soacute tempo as preocupaccedilotildeespsicagoacutegicas de Platatildeo e o rigor cientiacutefico de Aristoacutexeno
43
Entre as teses sobre muacutesica apresentadas por Dioacutegenes a sua relaccedilatildeo com a eacutetica eacute
colocada em primeiro plano o estoico defende que a muacutesica estaacute em estreita relaccedilatildeo com o
belo e com o bem considerando assim como Platatildeo que a muacutesica teria o poder de
harmonizar as partes da alma e aleacutem disso que sua utilidade estaacute ligada ao lazer mas que
natildeo se deve exercitaacute-la ao niacutevel profissional94
Dioacutegenes defende a utilidade da muacutesica sob duas perspectivas Por um lado o ensino
da muacutesica eacute importante desde a infacircncia para a aquisiccedilatildeo das virtudes e por outro a muacutesica
ldquomais que o desenho daacute ao ser humano e desenvolve nele o senso de beleza puro e
desinteressadordquo (Filodemo De mus col 27)
A respeito do poder da muacutesica sobre o caraacuteter do ouvinte Dioacutegenes teria afirmado
reiterando aquilo que jaacute era bem estabelecido por todos de sua eacutepoca que ldquoo fato de que as
melodias recebem qualificativos eacuteticos prova que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticasrdquo
(Filodemo De mus col 19)95
As afirmaccedilotildees de Dioacutegenes satildeo a um soacute tempo histoacutericas e demonstrativas Deste
modo para Delattre Dioacutegenes se coloca sem o saber como representante de uma cultura
livresca vasta ldquomas que sobrecarrega o leitor em um acuacutemulo de provas cuja credibilidade e
confianccedila eram geralmente pouco confiaacuteveis e que poderiam de maneira definitiva ocultar a
realidade musical e moral contemporacircnea de Dioacutegenesrdquo (Delattre 2007 p 18) De fato as
autoridades filosoacuteficas e literaacuterias a que ele recorre datam de um outro periacuteodo ao qual a sua
realidade musical jaacute natildeo corresponde
Assim para Dioacutegenes o muacutesico torna-se essencialmente um especialista nos efeitospsicoloacutegicos e eacuteticos que satildeo suscetiacuteveis de produzir as diferentes gamas ritmos emelodias Desse modo o estoico perde totalmente de vista nessa atividade (que oepicurista chama de delirante) a uacutenica noccedilatildeo que vale para um disciacutepulo deEpicuro a do prazer musical (Delattre 2007 p 16)
Ora para Filodemo
todas as tentativas de teorizar a psicologia musical satildeo vatildes Eacute por essa razatildeoprecisamente que o muacutesico em busca de um saber que lhe permita reconhecerdistintamente as disposiccedilotildees nas quais se encontram os oacutergatildeos sensoriais quaissejam elas estaacute em busca de uma ciecircncia do inexistente (Filodemo De Mus col117 3-10)96
94 Ver Filodemo De Mus (col 6-12)95 Essa proposiccedilatildeo exemplifica o tipo de posicionamento estoico que o ceacutetico considera dogmaacutetico pois daacute
ares de verdade a uma mera suposiccedilatildeo O fato de que as melodias recebem qualificativos eacuteticos natildeo provaapenas exemplifica a crenccedila que as pessoas tecircm de que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticas
96 Observa-se aqui uma argumentaccedilatildeo anaacuteloga agravequela que aparece na segunda parte do Contra os Muacutesicos
44
O pensamento estoico eacute refutado por Filodemo porque para os estoicos a sensaccedilatildeo eacute
dotada de inteligibilidade sendo o veiacuteculo do conhecimento imediato da realidade97 Segundo
Woodward (2009 p 18) ldquoa muacutesica portanto requereria alguma qualidade racional para ter
qualquer valor psicoloacutegico para o estoico visto que a alma teria de (a) entender a impressatildeo
racional para poder (b) dar assentimento ou rejeitar a proposiccedilatildeo colocadardquo Entretanto para
Filodemo a ideia estoica de atribuir logos ao sentido da audiccedilatildeo seria absurda visto que de
acordo com a filosofia epicurista o mesmo som atinge qualquer ouvinte de modo anaacutelogo e a
ele satildeo acrescentadas qualidades pelo proacuteprio ouvinte de acordo com suas experiecircncias
particulares
Toda a concepccedilatildeo de que a muacutesica pode afetar a alma diretamente aleacutem dos sinaisde misticismo pitagoacuterico entra em conflito com a concepccedilatildeo epicurista depercepccedilatildeo De acordo com Epicuro todos os sentidos satildeo semelhantes no seumeacutetodo de operaccedilatildeo o som natildeo tem propriedades peculiares Aleacutem disso todasensaccedilatildeo eacute por si mesma desprovida de significado cognitivo (hellip) Portanto elanatildeo tem physei [por natureza] efeito cognitivo pois os sons natildeo adquiremsignificado ateacute que a doxa [opiniatildeo] entre em accedilatildeo e se natildeo haacute efeito cognitivonatildeo haacute efeito eacutetico pois afecccedilotildees e moral soacute podem ser influenciadas por meioscognitivos () (Wilkinson 1938 p 178)
Em funccedilatildeo disso o som natildeo teria a capacidade de mover a alma atraveacutes da imitaccedilatildeo
A melodia sendo irracional nem potildee a alma em movimento quando ela estaacute em repouso
nem leva a alma agrave condiccedilatildeo natural de seu caraacuteter e tambeacutem natildeo a acalma quando ela estaacute
agitada Movendo-se em qualquer direccedilatildeo aleacutem disso tambeacutem natildeo pode transformaacute-la
diminuindo ou intensificando uma disposiccedilatildeo existente
pois a muacutesica natildeo eacute algo capaz de imitar como alguns98 imaginam em sonho nem eacuteverdade que ndash como nosso adversaacuterio ltpretendegt - apresentando semelhanccedilas decaraacuteteres que natildeo tecircm de modo algum o poder de imitar ela faccedila aparecer todas asqualidades de caraacuteteres de modo que haja entre elas a da magnificecircncia e a dabaixeza a da coragem e a da ausecircncia de coragem a da reserva e a da audaacutecia natildeomais do que aquilo que pode a arte da culinaacuteria (Filodemo De Mus col 117)
O proacuteximo passo de Filodemo eacute sustentar que tais qualidades satildeo erroneamente
atribuiacutedas agrave muacutesica porque Dioacutegenes (e consequentemente todos aqueles com quem ele97 A representaccedilatildeo traz nela a sua evidecircncia (que exige que se decirc o assentimento) O assentimento a uma
representaccedilatildeo verdadeira eacute um ato voluntaacuterio da mente isso eacute o que os estoicos chamam ldquoapreensatildeordquo Oassentimento a uma sensaccedilatildeo assim como toda accedilatildeo eacute um ato voluntaacuterio As impressotildees humanas satildeodesde sua ocorrecircncia racionais por isso eacute necessaacuterio o assentimento antes da impressatildeo inicial conduzir agraveaccedilatildeo
98 Referecircncia a Platatildeo (Leis 699 B-E) atribuiacuteda a Dioacutegenes por Filodemo (De Mus col 51) Ver Delattre(2007 p 214 n 5)
45
concorda) confunde muacutesica e poesia Tendo em vista que Dioacutegenes rejeitava a muacutesica
instrumental de seu tempo os poderes atribuiacutedos agrave muacutesica por Dioacutegenes dizem respeito agrave
mousike no sentido antigo do termo ou seja a uniatildeo entre melodia ritmo e texto poeacutetico
Muito embora de acordo com o sistema estoico o proacuteprio som tenha logos por conseguinte
um significado e o poder de mover a alma do ouvinte
Jaacute para Filodemo os compositores de muacutesica instrumental assim nomeados natildeo soacute
por ele mas no uso comum de seu tempo e tambeacutem por Aristoacutexeno emitem sons desprovidos
de significaccedilatildeo tanto quando tocam peccedilas instrumentais quanto acompanhando o canto
A discordacircncia fundamental aqui eacute entre o conceito de mousike enquanto melodia
ritmo e palavra e o de mousike enquanto ldquoarte dos sonsrdquo Filodemo toma isso como ponto de
partida sustentando que os efeitos que a muacutesica exerce na alma do ouvinte se datildeo em funccedilatildeo
do significado das palavras e que o som por si mesmo natildeo tem significado algum sendo
desprovido de razatildeo (logos) Nesse sentido ele considera que
se Simonides e Piacutendaro foram muacutesicos eles foram tambeacutem poetas que enquantomuacutesicos compuseram melodias desprovidas de significaccedilatildeo e por outro ladoenquanto poetas compuseram as palavras e que se satildeo uacuteteis (talvez natildeo sejammesmo a partir deste ponto de vista ou muito pouco) elas natildeo satildeo uacuteteis apenas paraos muacutesicos ou mais uacuteteis para os muacutesicos mas satildeo igualmente uacuteteis para todas aspessoas educadas (Filodemo De Mus col 143 20-40)99
Assim de acordo com Wilkinson (1938 p 175-6) ldquoenquanto um muacutesico no sentido
antigo pode ter um efeito moral nomeadamente atraveacutes de suas palavras no novo e restrito
sentido ele natildeo pode ter nenhum Ele natildeo pode excitar ou acalmar nenhuma sensaccedilatildeo em
particularrdquo
Segundo Filodemo a muacutesica natildeo tem nenhum ethos intriacutenseco As qualidades dos
modos musicais natildeo se datildeo a partir da sensaccedilatildeo mas da opiniatildeo ldquoNessas condiccedilotildees no que
diz respeito agraves muacutesicas enarmocircnica e cromaacutetica natildeo eacute pela sua percepccedilatildeo qualitativa da qual
a razatildeo natildeo participa mas pelas opiniotildees formadas a partir dela que as pessoas entram em
desacordordquo (Filodemo De Mus col 116 10-20) Para o filoacutesofo epicurista se as pessoas
reagem de maneiras diferentes ao mesmo tipo de muacutesica isso se daacute em funccedilatildeo de sua
experiecircncia de vida e cultura Nesse sentido a muacutesica natildeo teria nenhum papel educacional
poderia ser prazerosa e a sua valoraccedilatildeo dependeria apenas do contexto e das associaccedilotildees de
ideias feitas pelos seus ouvintes
99 A relaccedilatildeo entre muacutesica e poesia eacute retomada por Sexto Empiacuterico em M VI 28 e a questatildeo da utilidade em MVI 33
46
4 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
NO CONTRA OS PROFESSORES
O Contra os Muacutesicos sexto livro do Contra os Professores insere-se em uma
proposta maior de Sexto Empiacuterico que tem como objetivo refutar os ensinamentos
(mathemata) que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos (enkyklios paideia) Na introduccedilatildeo do
Contra os Professores Sexto Empiacuterico explica que a refutaccedilatildeo agraves disciplinas dos Estudos
Ciacuteclicos se daacute porque os ceacuteticos100
a respeito das disciplinas (mathemata) tiveram a mesma experiecircncia que tiveram noque diz respeito agrave Filosofia como um todo Pois tal como eles se aproximaram daFilosofia com o desejo de alcanccedilar a verdade mas quando se depararam com oconflito da igual forccedila das opiniotildees e com a anomalia das coisas suspenderam ojuiacutezo - assim tambeacutem no caso das disciplinas [dos Estudos Ciacuteclicos] quando elespuseram-se a dominaacute-las visando tambeacutem aqui aprender a verdade elesencontraram dificuldades natildeo menos seacuterias que eles natildeo omitiram Do mesmomodo noacutes tambeacutem seguiremos o mesmo meacutetodo que eles e buscaremos natildeo emespiacuterito de controveacutersia selecionar e apresentar os argumentos fundamentais contraos professores (M I 6-7)
Infelizmente o autor natildeo daacute indicaccedilotildees precisas do que sejam as enkyklia mathemata
porque sua refutaccedilatildeo dirige-se agravequeles que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nelas Apesar da
breve menccedilatildeo de Sexto consideramos tal como fundamental para se compreender o sentido
em que cada uma das disciplinas - entre elas a muacutesica - eacute refutada
Entretanto em algumas traduccedilotildees e comentaacuterios ao Contra os Professores a expressatildeo
enkyklia mathemata eacute ou simplesmente igualada a ldquoArtes Liberaisrdquo ou traduzida como
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo101 Por sua imprecisatildeo e brevidade tais definiccedilotildees comprometem a
compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo do Contra os Professores e consequentemente
obscurecem o papel dessa refutaccedilatildeo na filosofia ceacutetica pirrocircnica
Em funccedilatildeo disso antes de analisarmos o Contra os Muacutesicos cabem ainda algumas
etapas Primeiramente eacute preciso compreender em que consiste o ceticismo pirrocircnico seus
meacutetodos e seus objetivos A partir disso poderemos observar a relaccedilatildeo entre o objeto
100 Para as citaccedilotildees do Contra os Professores (exceto M VI) utilizamos as traduccedilotildees de Bury (1933) e Cavero(1997) como referecircncia adaptando-as de acordo com o texto grego quando julgamos necessaacuterio
101 Observe-se as seguintes ediccedilotildees Cavero (1997 p 7-8) simplesmente iguala as expressotildees grega e latinaGreaves (1986 p 18) limita-se a apresentar os livros do Adversus Mathematikous descrevendo-os comouma ldquorefutaccedilatildeo dos mathematikoi (ou professores) das seis disciplinas conhecidas como Estudos Ciacuteclicos eque constituiacuteam o curriacuteculo baacutesico da educaccedilatildeo antigardquo Bury (1933 p 6-7) explica em uma nota agrave suatraduccedilatildeo que as enkyklia mathemata satildeo ldquoos conteuacutedos da educaccedilatildeo geral preacute-profissional que inclui aastronomia geometria muacutesica gramaacutetica e retoacutericardquo Dentre as ediccedilotildees que utilizamos como referecircncia aediccedilatildeo de Pellegrin (2002) eacute a uacutenica que em sua introduccedilatildeo aprofunda o tema
47
principal da refutaccedilatildeo ceacutetica a Filosofia e o tipo de conhecimento refutado no Contra os
Professores as artes (tekhnai) Para isso aprofundaremos o sentido da Enkyklios Paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico chamando atenccedilatildeo para a presenccedila constante da mousike enquanto
uma das disciplinas que a compotildeem
Tendo claro o objeto ao qual a refutaccedilatildeo se dirige poderemos nos ater agraves
peculiaridades do estilo argumentativo utilizado por Sexto Empiacuterico para a refutaccedilatildeo das
mathemata Com isso por fim teremos as ferramentas necessaacuterias para no uacuteltimo capiacutetulo
compreendermos o sentido dos argumentos que Sexto Empiacuterico utiliza para refutar a mousike
no Contra os Muacutesicos
41 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO
NA FILOSOFIA E NAS ARTES
ldquoPor amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar atraveacutes da argumentaccedilatildeo na medida do
possiacutevel o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticosrdquo (HP III 280)102 Nas Hipotiposes
Pirronianas o ceticismo pirrocircnico eacute apresentado por Sexto Empiacuterico como uma habilidade
de opor phenomena e noumena (objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel e objetos do pensamento)103 O
igual peso (isostheneia) das coisas e afirmaccedilotildees colocadas em oposiccedilatildeo gera segundo Sexto
um estado de suspensatildeo do juiacutezo (epokhe) - ldquoum estado mental por meio do qual nem
afirmamos nem negamosrdquo (HP I 10) Isso no que diz respeito ao que se relaciona agrave opiniatildeo
(doxa) leva agrave tranquilidade da alma (ataraxia) Visto que haacute acontecimentos inevitaacuteveis
tendo observado as perturbaccedilotildees adicionais geradas pela crenccedila de que algo eacute bom ou mau
por natureza essa praacutetica visa eliminar tal crenccedila adicional promovendo assim afecccedilotildees
moderadas (metriopatheia) (HP I 30)
O princiacutepio (arkhe) causal do ceticismo eacute a busca pela tranquilidade da alma Como
explica Sexto
ldquoHomens de talentordquo perturbados com as anomalias nas coisas e confusos acercade quais mereciam assentimento esforccedilaram-se em descobrir o que eacute verdadeiro e o
102 Para as citaccedilotildees das Hipotiposes Pirronianas de Sexto Empiacuterico traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir daediccedilatildeo de Mates (1996)
103 Note-se que neste momento ldquota phainomenardquo e ldquota noumenardquo devem ser compreendidos de modo estritoos primeiros satildeo objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel enquanto os segundos satildeo objetos do pensamento Maisadiante ldquoto phainomenonrdquo ou seja aquilo que aparece incluiraacute tanto os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevelquanto os objetos do pensamento
48
que eacute falso nelas esperando que ao esclarecer isso atingiriam a tranquilidade daalma (HP I 12)
Todavia para o ceacutetico durante cada investigaccedilatildeo sobre as coisas encontra-se
afirmaccedilotildees inconsistentes entre si Segundo Sexto para esses ldquohomens de talentordquo nenhuma
das afirmaccedilotildees eacute mais passiacutevel de credibilidade do que a outra e na falta de um criteacuterio que
permita o assentimento a uma das afirmaccedilotildees seria uma atitude precipitada assumir uma
delas como verdadeira Essa impossibilidade de decidir leva agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca
daquilo que se estava investigando Desse modo embora pretendesse atingir a tranquilidade
da alma por meio da busca pela verdade o ceacutetico acaba por obtecirc-la ao suspender o juiacutezo
acerca dela
Segundo Sexto acontece ao ceacutetico o mesmo que aconteceu ao pintor Apeles
Conta-se que certa vez quando ele estava pintando um cavalo e desejavarepresentar a espuma do cavalo ele falhou de tal modo que desistiu e jogou suaesponja na pintura - a esponja na qual ele limpava as tintas do pincel ndash e ao atingira pintura a esponja produziu o efeito desejado (HP I 28)
Do mesmo modo o surgimento do ceticismo se daacute como que por acaso e a
tranquilidade da alma segue a suspensatildeo do juiacutezo ldquoassim como a sombra segue o corpordquo (HP
I 29)
O ainda futuro ceacutetico quer evitar a precipitaccedilatildeo de dizer-se conhecedor da verdade ao
assentir de modo arbitraacuterio com algo que natildeo seja evidente Quando o ceacutetico descobre que a
praacutetica de opor a cada sentenccedila outra de igual forccedila leva agrave suspensatildeo de juiacutezo toma essa
praacutetica como princiacutepio do ceticismo visto que ela parece acabar com o dogmatismo104
Quanto ao dogmatismo eacute importante salientar que no pirronismo natildeo haacute diferenccedila
entre ldquodogmatizarrdquo e ldquoacreditarrdquo Quando o ceacutetico diz que natildeo dogmatiza ele estaacute dizendo
em outras palavras que natildeo sustenta crenccedila
O predicado ldquoverdadeirordquo aplica-se primeiramente a proposiccedilotildees que se pretendeque descrevam objetos externos (to ektos hypokeimenon) e estados de coisas eldquocrenccedilardquo refere-se a uma atitude afirmativa forte e estaacutevel em relaccedilatildeo a essasproposiccedilotildees (Mates 1996 p 6)
Nesse sentido mais estreito105 do termo ldquodogmardquo estaacute ligado a questotildees investigaacuteveis
104 ldquoAqueles que acreditam terem encontrado a verdade satildeo os Dogmaacuteticos ndash por exemplo os seguidores deAristoacuteteles e Epicuro os Estoicos e outrosrdquo (HP I 3)
105 O sentido mais amplo de dogma diz respeito a ldquoalgo com que algueacutem meramente concordardquo - como umasentenccedila que descreve uma afecccedilatildeo determinada ndash e nesse sentido segundo o autor pode-se dizer que o
49
sobre a ldquoexistecircncia e natureza daquilo que se supotildee ser independente das nossas impressotildees
subjetivas pensamentos e sensaccedilotildeesrdquo106 (Mates 1996 p 7) Eacute sobre isso que por meio da
argumentaccedilatildeo o ceacutetico suspende o juiacutezo
Para o ceacutetico dogmaacutetico eacute aquele que pretende demonstrar que aquilo que lhe aparece
eacute o modo como de fato as coisas realmente satildeo e que busca formular teorias sobre o
fenocircmeno teorias que teriam apreendido a verdade a realidade das coisas Desse modo a
suspensatildeo de juiacutezo estaacute voltada agraves asserccedilotildees dogmaacuteticas e natildeo agraves coisas dizendo respeito agrave
afirmaccedilatildeo da conformidade entre o ser e o aparecer De acordo com Porchat
A Filosofia claacutessica distinguira como se sabe entre o ser e o aparecer transpondometafisicamente a distinccedilatildeo corriqueira entre as aparecircncias enganosas das coisas esua manifestaccedilatildeo correta e ordinaacuteria Ela privilegiou o ser como necessaacuterio eestaacutevel desqualificando o aparecer porque instaacutevel e contingente Por vezesentendeu o aparecer como manifestaccedilatildeo do ser ainda que superficial mas commaior frequecircncia o pensou como aparecircncia enganosa que dissimulava o ser e oocultava (Porchat 1993 p 179)
Portanto nas Hipotiposes Pirronianas a argumentaccedilatildeo ceacutetica visa produzir a
suspensatildeo de juiacutezo ao mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e sua
precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente107 crenccedilas a respeito daquilo que existe na realidade
externamente agraves nossas representaccedilotildees
Se por um lado o ceacutetico critica os discursos dogmaacuteticos por outro ele pretende que
seu proacuteprio discurso expresse apenas a admissatildeo de uma afecccedilatildeo (pathos) involuntaacuteria o
estado presente de sua alma em relaccedilatildeo ao fenocircmeno Por isso as sentenccedilas proferidas pelo
ceacutetico satildeo ditas ldquonatildeo investigaacuteveisrdquo (azetetos) ldquoA questatildeo sobre sua veracidade ou falsidade
natildeo se colocardquo (Mates 1996 p 6)108 visto que dizem respeito apenas ao fenocircmeno
Mesmo assim os filoacutesofos ditos dogmaacuteticos consideram que uma vez
suspendido o juiacutezo interrompe-se tambeacutem a possibilidade de accedilatildeo no mundo e por isso
ceacutetico emite doxai sem se comprometer com um criteacuterio de verdade106 Satildeo essas as caracteriacutesticas que Sexto observa no conceito de mousike refutado no Contra os Muacutesicos
Veremos que ele constata que atribui-se poderes agrave muacutesica por natureza A refutaccedilatildeo de Sexto tende amostrar que os poderes que se considera inerentes a ela dependem natildeo de sua natureza mas de nossasrepresentaccedilotildees
107 Atenccedilatildeo ao uso do termo grego ldquodiabebaiomairdquo que significa ldquoassegurarrdquo ldquoafirmar energicamenterdquo juntoao sentido dogmaacutetico de crenccedila Cf Mates (1996 p 60)
108 Para que o discurso do ceacutetico seja coerente com a sua finalidade ndash a de promover a suspensatildeo de juiacutezovisando obter a tranquilidade da alma - as sentenccedilas que o constituem ldquonatildeo devem ser tomadas comoverdadeirasrdquo (Mates 1996 p 255) Por isso o discurso ceacutetico seraacute considerado natildeo-assertivo ldquoAsserccedilatildeordquoem sentido amplo abrange qualquer ldquoexpressatildeo indicando afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e em sentido estrito dizrespeito apenas a expressotildees afirmativas A ldquonatildeo-asserccedilatildeordquo eacute uma afecccedilatildeo em vista da qual o ceacutetico diraacute quenatildeo afirma ou nega qualquer coisa no que diz respeito agraves ldquodeclaraccedilotildees dogmaacuteticas acerca daquilo que eacute natildeo-evidenterdquo (HP I 193)
50
acusam o ceacutetico de que sua postura levaria agrave inaccedilatildeo (apraxia)109 A resposta dos ceacuteticos
pirrocircnicos ao contra-argumento da inaccedilatildeo eacute dada com a proposiccedilatildeo de um criteacuterio de accedilatildeo
desvinculado do criteacuterio que o ceticismo ataca Nesse sentido o pirrocircnico distingue entre dois
tipos de criteacuterio aquele ligado agrave ldquocrenccedila sobre a existecircncia e a natildeo existecircnciardquo ou seja aquilo
que chamamos ldquocriteacuterio de verdaderdquo ao qual estatildeo voltadas as suas objeccedilotildees e por outro
lado o criteacuterio de accedilatildeo a partir do qual ldquona conduccedilatildeo da vida diaacuteria noacutes fazemos algumas
coisas e natildeo outrasrdquo (HP I 21)
Isso significa que o ceacutetico natildeo soacute limita seu discurso agravequilo que lhe aparece mas toma
o proacuteprio aparecer como criteacuterio de suas accedilotildees O fenocircmeno por se basear em uma afecccedilatildeo
involuntaacuteria nunca eacute posto em duacutevida pelo ceacutetico para ele natildeo eacute preciso ultrapassar o
acircmbito do fenocircmeno dizendo o que as coisas realmente satildeo para se viver no mundo Afinal
nas palavras de Sexto ldquoimagino que ningueacutem dispute sobre se o objeto externo aparece desse
modo ou daquele mas antes sobre se ele eacute tal como parece serrdquo (HP I 22) ou seja a duacutevida
se daacute a respeito da conformidade entre o ser e o aparecer Basear-se no fenocircmeno eacute
excetuando essa duacutevida sustentar suas decisotildees naquilo que estaacute aleacutem do escopo da
suspensatildeo do juiacutezo e natildeo eacute passiacutevel de duacutevida
Isso que natildeo podemos rejeitar que se oferece irrecusavelmente agrave nossasensibilidade e entendimento ndash se nos permitimos lanccedilar matildeo de uma terminologiafilosoacutefica consagrada ndash eacute o que os ceacuteticos chamamos de fenocircmeno (tophainomenon o que aparece) O que nos aparece se nos impotildee com necessidade aele natildeo podemos senatildeo assentir eacute absolutamente inquestionaacutevel em seu aparecerQue as coisas nos apareccedilam como aparecem independe de nossa deliberaccedilatildeo ouescolha natildeo se prende a uma decisatildeo de nossa vontade O que nos aparece natildeo eacuteenquanto tal objeto de investigaccedilatildeo precisamente porque natildeo pode ser objeto deduacutevida Natildeo haacute sentido em argumentar contra o aparecer do que aparece talargumentaccedilatildeo seria ineficaz e absurda (Porchat 1993 p 176)
Sexto Empiacuterico apresenta os desdobramentos do criteacuterio praacutetico baseado em quatro
aspectos principais
no que concerne agravequilo que aparece entatildeo noacutes [ceacuteticos] vivemos sem crenccedilas masde acordo com a vida comum visto que natildeo podemos ser totalmente inativos Eesse regime da vida comum parece ser quaacutedruplo uma parte tem a ver com aorientaccedilatildeo da natureza outra com a compulsatildeo das afecccedilotildees outra com aquilo quenos eacute apresentado pelas leis e pelos costumes e a quarta com a instruccedilatildeo nas artes[tekhnai] (HP I 23)
109 Tal questionamento se daacute porque a epistemologia estoica implica que se decirc assentimento voluntaacuterio agravesrepresentaccedilotildees para que se possa tomar decisotildees a respeito delas
51
Segundo a proacutepria explicaccedilatildeo de Sexto a parte do criteacuterio de accedilatildeo que diz repeito agrave
orientaccedilatildeo da natureza eacute aquela pela qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo epensamento a compulsatildeo das afecccedilotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva agrave comidae a sede nos faz beber o seguir os costumes e leis eacute aquela pela qual noacutes aceitamosque ser piedoso na conduccedilatildeo da vida eacute bom e ser impiedoso eacute ruim e a instruccedilatildeo nasartes eacute aquela pela qual noacutes natildeo somos inativos em qualquer funccedilatildeo adquirida (HP I24)
Ao que ele acrescenta ainda ao final ldquoe dizemos todas essas coisas sem crenccedilardquo (HP
I 24) reforccedilando que tal criteacuterio eacute tomado de maneira independente da existecircncia ou natildeo
existecircncia daquilo que estaacute por traacutes dele
A pergunta que o contra-argumento da inaccedilatildeo nos coloca eacute como vive o ceacutetico a
partir disso A adoccedilatildeo do criteacuterio praacutetico poderia ser um indiacutecio de que ele pretende retornar
ao senso comum e viver ldquosem Filosofiardquo muito embora como afirma Brochard esse retorno
seja ldquoum retorno muito pouco ingecircnuo agrave ingenuidade primitivardquo (Brochard 2009 p 362)
Mas o que seria esse retorno agrave vida comum Seria simplesmente viver seguindo a multidatildeo
A esse respeito Sexto diz que ldquoqualquer um que diga que noacutes devemos dar assentimento agrave
maioria estaacute fazendo uma proposta infantilrdquo (HP I 89)110 Segundo Porchat ldquoa visatildeo de
mundo de um ceacutetico se conforma obviamente como a visatildeo do mundo de qualquer homem agrave
sua experiecircncia passada e agrave sua formaccedilatildeo cultural ela se constroacutei a partir de sua vivecircncia do
fenocircmeno e lhe estaacute intimamente associadardquo (Porchat 1993 p 198)
Tal como um filoacutesofo dogmaacutetico que para fazer uso de seus sentidos e de sua
inteligecircncia natildeo precisa dar a prova ontoloacutegica de sua existecircncia tambeacutem para o ceacutetico natildeo
haacute porque deixar de agir por natildeo assumir uma posiccedilatildeo a respeito das questotildees acerca da
existecircncia ou natildeo das coisas Natildeo eacute preciso sustentar a verdade de conceitos filosoacuteficos para
ao se sentir fome ir em busca de alimento Aleacutem disso assim como um filoacutesofo que nos
apresenta uma Filosofia moral baseada em princiacutepios racionais natildeo vive necessariamente de
acordo com a Filosofia que formula mas muitas vezes simplesmente obedece agraves leis e aos
costumes de seu paiacutes sem verificar sua validade ou veracidade o ceacutetico segue as leis e
costumes enquanto aquilo que lhe aparece como sendo o caso
Desse modo natildeo soacute o ceacutetico mas tambeacutem o filoacutesofo dogmaacutetico no que concerne agrave
vida praacutetica simplesmente vivem de acordo com aquilo que lhes aparece sem precisar
ultrapassar a esfera fenomecircnica e dizer o que as coisas realmente satildeo Eacute sob essa perspectiva
110 No Contra os Muacutesicos Sexto dedica-se a refutar as opiniotildees sobre muacutesica ldquorepetidas costumeiramente pelamaioriardquo (M VI 7)
52
que o ceacutetico pretende natildeo precisar sustentar crenccedilas a respeito das coisas para poder viver no
mundo Em suma eacute tendo em vista a conduccedilatildeo da vida que o ceacutetico adota o criteacuterio praacutetico
Visto que a instruccedilatildeo nas artes faz parte do criteacuterio praacutetico o combate ao dogmatismo
tambeacutem nessa aacuterea eacute essencial ao funcionamento do ceticismo Eacute nesse sentido que o Contra
os Professores parece ter uma funccedilatildeo peculiar dentre as obras de Sexto Natildeo obstante os
livros que o compotildeem satildeo destinados natildeo a qualquer tipo de ensino teacutecnico mas apenas
agravequeles das disciplinas dos chamados Estudos Ciacuteclicos Como veremos a delimitaccedilatildeo do
escopo dessa criacutetica se daacute em funccedilatildeo do dogmatismo observado nos conteuacutedos e meacutetodos
relacionados a esse sistema de ensino
42 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
A expressatildeo Enkyklios Paideia tem uma origem antiga na histoacuteria da educaccedilatildeo na
Greacutecia mas eacute importante frisar que ela muda de significado entre o periacuteodo claacutessico e o
imperial Os chamados Estudos Ciacuteclicos na Greacutecia arcaica tinham uma conotaccedilatildeo praacutetica
inicialmente centrada na mousike Kyklios nesse caso parece remeter agrave danccedila circular
realizada pelo coro Todavia essa educaccedilatildeo musical (naquele sentido amplo de mousike) foi
perdendo espaccedilo para a retoacuterica e para a Filosofia Em Platatildeo (Teeteto 172 C - 177 C) por
exemplo observa-se a rejeiccedilatildeo das ocupaccedilotildees praacuteticas (consideradas servis) Tambeacutem em
Aristoacuteteles observamos as recomendaccedilotildees e as reservas em relaccedilatildeo agrave praacutetica das atividades
que deveriam fazer parte da educaccedilatildeo do homem livre A enkyklios paideia deixa a muacutesica
praticamente de lado e permanece centrada na retoacuterica dialeacutetica e gramaacutetica111 De acordo
com Lippman ldquoesse processo comeccedila durante o curso do seacuteculo V aC a desintegraccedilatildeo da
composta arte da muacutesica acompanhada pela efervescecircncia poliacutetica e o crescimento de uma
cultura com uma mentalidade retoacuterica provoca a desmusicalizaccedilatildeo da educaccedilatildeordquo (Lippman
1966 552)
A partir disso a chamada Enkyklios Paideia expande seu escopo incorporando um
significado mais geral Na obra de Aristoacuteteles112 aparecem tambeacutem as expressotildees ldquoenkyklia
philosophematardquo e ldquota enkykliardquo que provavelmente equivalem agrave expressatildeo ldquoexoterikoi
logoirdquo designando ldquoum desenvolvimento ou uma obra que natildeo tem um caraacuteter
111 Disciplinas que vieram a compor o trivium das chamadas Artes Liberais na Idade Meacutedia112 Ver Aristoacuteteles De Caelo (279 A) EN (1096 A)
53
especificamente filosoacutefico mas se situa em um niacutevel inferior e preparatoacuteriordquo (Hadot 1984 p
264) Reforccedilamos que essas expressotildees que remetem agrave Enkyklios Paideia no periacuteodo
heleniacutestico natildeo tecircm o mesmo significado que teratildeo no periacuteodo imperial
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta as disciplinas matemaacuteticas que tinham funccedilatildeo
preparatoacuteria para se atingir a Filosofia A lista das disciplinas inclui aritmeacutetica geometria
astronomia e muacutesica113 Platatildeo eacute herdeiro de uma tradiccedilatildeo pitagoacuterica segundo a qual ldquoas
ciecircncias matemaacuteticas estatildeo relacionadas porque lidam com as duas formas primaacuterias do ser
(que podemos tomar como a multiplicidade e a extensatildeo)rdquo (Lippman 1966 p 545) O
filoacutesofo ressalta o papel eacutetico das mathemata e sublinha o caraacuteter abstrato e ideal de cada
uma O pitagoacuterico Arquitas de Tarento tambeacutem coloca a muacutesica no uacuteltimo lugar da lista o
que indica seu status mais elevado
Enquanto uma das mathemata a muacutesica era estudada em seu aspecto mais abstrato a
ciecircncia harmocircnica em funccedilatildeo de sua conexatildeo direta com a astronomia Como jaacute foi
enfatizado as mathemata ldquonatildeo dizem respeito ao uso praacutetico nem a objetos da experiecircnciardquo
(Lippman 1966 p 547) Por isso em seu tratado pedagoacutegico destinado a preparar o
estudante para a leitura de Platatildeo Teon de Smirna afirma que natildeo haacute necessidade da muacutesica
instrumental mas que o interesse estaacute voltado agrave compreensatildeo da harmonia e da muacutesica
celestial
Na obra de Aristoacuteteles a muacutesica aparece em uma lista bastante semelhante114 remetida
agraves eleutherai tekhnai (artes liberais) ou seja agraves artes destinadas agrave educaccedilatildeo do homem livre
A mousike enquanto disciplina do ensino eacute denominada com diversas outras disciplinas
pelo termo tekhne (arte ou teacutecnica) De acordo com Pellegrin
depois do seacuteculo V aC desenvolveu-se uma literatura ldquoteacutecnicardquo constituiacuteda detratados codificando a praacutetica de numerosos domiacutenios desde a equitaccedilatildeo e aculinaacuteria ateacute a estrateacutegia e a arte poliacutetica Aleacutem disso as disciplinas que noacutesconsiderariacuteamos cientiacuteficas como a geometria a aritmeacutetica ou teacutecnico-cientiacuteficascomo a medicina eram comumente chamadas tekhnai Este haacutebito de transmitir umsavoir-faire racionalmente exposto eacute com certeza uma reaproximaccedilatildeo do tipo deracionalidade que foi aplicada agrave aacuterea cultural grega com o estabelecimento dascidades No domiacutenio das artes como em outras aacutereas a praacutetica rotineira e atransmissatildeo tradicional no interior das linhagens deram lugar a uma abordagemuniversal normatizada e tirando sua forccedila da constriccedilatildeo do raciociacutenio (Pellegrin2002 p 14)115
113 Essas disciplinas compotildeem o conjunto que veio a ser o quadrivium das Artes Liberais na Idade Meacutedia114 Ver seccedilatildeo 322 p 31115 Deve-se destacar o papel dos Sofistas no desenvolvimento desse tipo de literatura teacutecnica Os Sofistas num
certo sentido foram aqueles que profissionalizaram o ensino Hiacutepias um dos Sofistas que aparece nosdiaacutelogos de Platatildeo defendia um ensino que permitisse que se fosse ldquocapaz de falar sobre qualquer coisa e dearrostar quem quer que seja em qualquer assuntordquo (Marrou 1966 p 94) Segundo Platatildeo (Protaacutegoras 218
54
Para fins de nosso estudo tomamos como paradigma do que seja uma tekhne a
definiccedilatildeo atribuiacuteda aos estoicos apresentada e refutada pelo proacuteprio Sexto Empiacuterico no
Contra os Professores ldquotoda tekhne eacute um sistema composto de apreensotildees exercidas
conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10)116
Cabe pontuar que tanto para Aristoacuteteles quanto para os Estoicos tanto a ciecircncia
quanto a teacutecnica partem dos sentidos A diferenccedila de acordo com essas duas correntes
filosoacuteficas natildeo estaacute no modo como o conhecimento se daacute mas nos objetos aos quais a
ciecircncia e a teacutecnica se dirigem117 Aristoacuteteles daacute agrave tekhne um sentido e um papel bastante
precisos Na Metafiacutesica o filoacutesofo distingue os homens dos animais dizendo que os homens
ldquose elevam agrave arte (tekhne) e ao raciociacutenio (logismos) a arte e a ciecircncia (episteme) procedem
natildeo do acaso (tykhe) mas da experiecircncia (empeiria)rdquo (Aristoacuteteles Met 980 B 25)
Experiecircncia que eacute constituiacuteda pela uniatildeo da sensaccedilatildeo ndash nosso primeiro contato com o mundo
ndash com a memoacuteria de repetidas sensaccedilotildees
Natildeo obstante para Aristoacuteteles soacute haacute arte e ciecircncia quando haacute algum juiacutezo sobre algo
universal ldquoa arte se gera quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia nasce uma noccedilatildeo
uacutenica concernente aos casos semelhantesrdquo (Aristoacuteteles Met A 1 981 A 5) Eacute nesse sentido
que na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a tekhne como ldquohaacutebito produtivo acompanhado
pelo logos verdadeirordquo (Aristoacuteteles EN 1140 A 10)
Na Filosofia aristoteacutelica o conhecimento teacutecnico aproxima-se da ciecircncia porque
ambos estatildeo preocupados com o logos e nesse sentido com aquilo que haacute de universal nas
relaccedilotildees de causa e efeito A diferenccedila sob essa perspectiva eacute apenas a de que a ciecircncia diz
respeito agrave busca do conhecimento das ldquocausas primeirasrdquo (que existem necessariamente na
natureza) e a teacutecnica tem por objeto a forma de um produto contingente
Aristoacuteteles apresenta a tekhne como uma forma de saber verdadeiro constituiacuteda por
E) Hiacutepias exigia de seus alunos um estudo soacutelido das quatro ciecircncias elaboradas desde os pitagoacutericos116 Essa definiccedilatildeo estoica de tekhne enquanto ldquosistema composto de apreensotildeesrdquo pode ser encontrada em vaacuterios
trechos da obra de Sexto Empiacuterico Em um trecho das Hipotiposes que trata da possibilidade do aprendizadolemos que ldquoEles [os estoicos] dizem que uma arte eacute um sistema de apreensotildees exercidas conjuntamente naparte superior da almardquo (HP III 188) e tambeacutem que ldquoa arte eacute um sistema de apreensotildees e que umaapreensatildeo eacute um assentimento a uma representaccedilatildeo apreensivardquo (HP III 240) Essa noccedilatildeo eacute tomada na obrade Sexto Empiacuterico como paradigma daquilo que eacute assumido pelos filoacutesofos chamados dogmaacuteticos Arelaccedilatildeo entre o conceito de tekhne e a noccedilatildeo de utilidade eacute fundamental para a compreensatildeo da criacutetica deSexto Empiacuterico agrave mousike enquanto uma das enkyklia mathemata
117 A sensaccedilatildeo eacute algo bastante diferente para um e para outro No pensamento de Aristoacuteteles ainda natildeo haacute aquestatildeo da correspondecircncia entre a representaccedilatildeo e o objeto representado questatildeo que na Filosofia estoicafaz com que o problema da verdade seja colocado jaacute nesse momento Para um estoico se natildeo haacute um criteacuteriode verdade que valide as suas representaccedilotildees natildeo eacute possiacutevel o raciociacutenio
55
juiacutezos universais e suscetiacutevel de ser transmitida por um ensinamento racional118 Por isso de
acordo com Pellegrin
sob essa perspectiva aristoteacutelica as tekhnai natildeo tecircm nenhuma razatildeo para sair dodegrau teoacuterico da Filosofia entendida como sistema total de saber mesmo seevidentemente nem todos os teacutecnicos satildeo filoacutesofos e nem todos os filoacutesofos satildeoteacutecnicos (Pellegrin 2002 p 15)
O uso dessas artes baseadas no raciociacutenio (logikai ou enkyklioi tekhnai) como
propedecircutica para a Filosofia tornou-se de maneiras diferentes lugar comum nas escolas
filosoacuteficas estoica peripateacutetica e platocircnica (Hadot 1984 p 273) Essa subordinaccedilatildeo da
tekhne agrave Filosofia constitui uma das caracteriacutesticas do que veio a ser a Enkyklios Paideia no
periacuteodo imperial
Em Arts Libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Ilsetraut Hadot apresenta as
ocorrecircncias da expressatildeo ldquoenkyklios paideiardquo em autores importantes do periacuteodo imperial
Tal pesquisa eacute referecircncia para a compreensatildeo do que satildeo as enkyklia mathemata refutadas por
Sexto Empiacuterico
Na eacutepoca de Sexto Empiacuterico o adjetivo enkyklios (ciacuteclico) construiacutedo a partir de
kyklos (ciacuterculo) deixa de significar um ldquolargo ciacuterculordquo de estudos ligado agrave vulgarizaccedilatildeo do
conhecimento e aparece nas expressotildees ldquoencyclios disciplinardquo e ldquoenkyklios paideiardquo do
periacuteodo imperial designando
um curriacuteculo de estudos unificado pelo meacutetodo e pela estrutura que se devepercorrer e concluir para se ter uma educaccedilatildeo completa eacute uma espeacutecie de ldquociclordquopelo qual as ciecircncias que o constituem podem por sua vez ser chamadas ldquociacuteclicasrdquoMas este ldquociclordquo natildeo se refere a um nuacutemero limitado tal como o das ldquosete artesrdquopor exemplo mas corresponde agrave ideia de unidade interior e de completude119 (Hadot1984 p 268)
Esclarecedor a esse respeito eacute o texto de Vitruacutevio autor latino do seacuteculo I aC De
acordo com Vitruacutevio ldquoarquitetura eacute uma ciecircncia composta de muitas disciplinas e adornada
com tipos variados de aprendizado ()rdquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1) Para ele ldquoos
objetos de todas as ciecircncias (disciplinas) satildeo conectados por uma estreita comunidade pois a
encyclios disciplina eacute formada por todas as suas partes como um corpo uacutenicordquo (Hadot 1984
118 Sobre a relaccedilatildeo entre ciecircncia e arte em Aristoacuteteles ver Met (1028 B) e EN (1141 A)119 Nesse sentido a traduccedilatildeo da expressatildeo ldquota enkyklia mathematardquo a que Sexto se refere por ldquoArtes Liberaisrdquo
(da Idade Meacutedia) eacute uma aproximaccedilatildeo muito pouco precisa Sexto de fato menciona as eleutherai tekhnaiuma vez todavia essa expressatildeo possivelmente remete mais ao sentido em que Aristoacuteteles a emprega doque agraves Artes Liberais da Idade Meacutedia
56
p 265) O autor descreve sua proacutepria instruccedilatildeo do seguinte modo
agradeccedilo aos meus pais pela sua aprovaccedilatildeo a essa lei Ateniense e por terem cuidadopara que eu fosse instruiacutedo em uma arte e uma arte de tal natureza que natildeo possaser levada agrave perfeiccedilatildeo sem literatura e uma educaccedilatildeo ciacuteclica em todas asdisciplinas Portanto graccedilas agrave atenccedilatildeo dos meus pais e agrave instruccedilatildeo que me foi dadapor meus professores eu obtive uma variada gama de conhecimentos (hellip)(Vitruacutevio VI pref 4 grifo nosso)120
O caraacuteter teoacuterico do estudo das enkyklia mathemata eacute enfatizado na seguinte
passagem do De Architetura onde o autor exemplifica a ideia de que todas as artes satildeo
compostas de teoria e praacutetica121
Uma dessas a realizaccedilatildeo do trabalho eacute proacutepria aos homens treinados no conteuacutedoindividual enquanto a outra a teoria eacute comum a todos os estudiosos por exemplopara meacutedicos e muacutesicos a batida riacutetmica do pulso e seu movimento meacutetrico Masse haacute uma ferida a ser curada ou um homem doente a ser salvo do perigo o muacutesiconatildeo seraacute chamado pois a ocupaccedilatildeo seraacute apropriada para o meacutedico Assim tambeacutemno caso de um instrumento musical natildeo seraacute o meacutedico mas o muacutesico que iraacute afinaro instrumento de modo que os ouvidos possam encontrar o devido prazer em suascordas Os astrocircnomos do mesmo modo tecircm um acircmbito comum de discussatildeo comos muacutesicos no que diz respeito agrave harmonia das estrelas e agrave concordacircncia musical nasteacutetrades e triacuteades [dos intervalos] de quarta e de quinta e com os geocircmetras noconteuacutedo da visatildeo (em grego logos optikos) e em todas as outras ciecircncias muitospontos talvez todos satildeo comuns no que diz respeito agrave sua discussatildeo (Vitruacutevio DeArchitetura I 1 15-6)
Enkyklios parece exprimir a ideia de que se deve estudar todas as disciplinas para
praticar uma porque elas implicam-se mutuamente Daiacute que Vitruacutevio apresente no primeiro
livro do De Architetura todos os saberes necessaacuterios a um bom arquiteto Entre esses saberes
estatildeo as disciplinas listadas com frequecircncia como a muacutesica a geometria e a astronomia
A descriccedilatildeo de Ciacutecero dessa relaccedilatildeo ldquociacuteclicardquo entre as ciecircncias remete ao
pensamento platocircnico em que ldquotodos os conteuacutedos doutrinais das artes liberais e humanas
satildeo mantidos unidos por um tipo de conexatildeo uacutenicardquo (Hadot 1984 p 265) onde se pode
observar um ldquotipo de concordacircncia e harmonia admiraacuteveis entre todas as ciecircnciasrdquo (idem)
Quintiliano que viveu entre I aC e I dC em seu Instituitione Oratoria tambeacutem
recomenda o estudo daquilo que ldquoos Gregos chamaram Enkyklios Paideiardquo (Quintiliano
Inst I X 1) O autor apresenta vaacuterios argumentos a favor das mathemata platocircnicas120 Para as citaccedilotildees de Vitruacutevio utilizamos a traduccedilatildeo em liacutengua inglesa de Morgan (1914) com algumas
adaptaccedilotildees baseadas no texto latino121 De acordo com Vitruacutevio na arquitetura ldquoa praacutetica eacute o exerciacutecio contiacutenuo e regular do emprego onde o
trabalho manual eacute executado com qualquer material necessaacuterio de acordo com o design de um desenhoTeoria por outro lado eacute a habilidade de demonstrar e explicar os resultados da destreza nos princiacutepios daproporccedilatildeordquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1)
57
sobretudo no que diz respeito agrave importacircncia do estudo da muacutesica122 ao que ele conclui que a
muacutesica eacute ldquoum elemento necessaacuterio agrave educaccedilatildeo do oradorrdquo (Quintiliano Inst I X 33)
Suas observaccedilotildees fazem referecircncia principalmente agrave autoridade de Pitaacutegoras e agrave de
Platatildeo Quintiliano recomenda esses estudos ldquonatildeo apenas por sua habilidade de afiar o
espiacuterito mas tambeacutem por seu valor filosoacuteficordquo (Hadot 1984 p 267) Nesse sentido nota-se
aqui uma retomada do papel propedecircutico das disciplinas matemaacuteticas platocircnicas agora
agrupadas dentro do conjunto da Enkyklios Paideia
Sobre esse caraacuteter ciacuteclico das artes fundadas na razatildeo Hadot tambeacutem chama atenccedilatildeo
para um comentaacuterio de Quintiliano a Dioniacutesio o Traacutecio (gramaacutetico do seacuteculo II aC)
enkyklioi satildeo as artes que alguns chamam de logikai [fundadas na razatildeo] como aastronomia a geometria a muacutesica a filosofia a medicina a gramaacutetica a retoacutericaChamam-nas enkuklioi porque o especialista (ho tekhnites) deve ao percorrer todasintroduzir em sua arte o que ele encontrou de uacutetil em cada uma delas (QuintilianoInst 1 X 6-7)
Na distinccedilatildeo entre as logikai tekhnai por oposiccedilatildeo as praktikai tekhnai Dioniacutesio
coloca a muacutesica entre as disciplinas fundadas na razatildeo Tambeacutem Galeno meacutedico grego do
seacuteculo II dC apresenta o mesmo tipo de oposiccedilatildeo e coloca entre as artes fundadas na razatildeo a
medicina a retoacuterica a muacutesica a geometria a aritmeacutetica o caacutelculo a astronomia a gramaacutetica
e o direito Galeno opotildee essas disciplinas agraves artes praacuteticas ou artes manuais (keironaktikai ou
banausoi tekhnai)123
Em diversos autores encontra-se as disciplinas fundadas na razatildeo sendo consideradas
como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes (tekhnai) De acordo com Hadot nesse
vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar as ldquoartes
fundadas na razatildeordquo124 em oposiccedilatildeo agraves artes manuais ou praacuteticas
Entre todos esses pensadores Filo de Alexandria no seacuteculo I dC talvez seja quem
melhor resume as caracteriacutesticas das enkyklia mathemata tal como Sexto parece compreendecirc-
la Seu pensamento reuacutene ldquointerpretaccedilotildees alegoacutericas do antigo testamento da Filosofia grega
e especialmente da Filosofia platocircnica contemporacircnea que havia sido enriquecida de
numerosos elementos doutrinais de proveniecircncia estoica e peripateacuteticardquo (Hadot 1984 p
282) No tratado De Congressu Filo introduz a Enkyklios Paideia personificada na figura de
122 Ver Quintiliano Inst (I X 9-33)123 Ver Galeno Protreptique aux arts (5 7)124 Tal distinccedilatildeo eacute encontrada no Contra os Muacutesicos na apresentaccedilatildeo dos sentidos do termo muacutesica (M VI 1)
O sentido de muacutesica refutado por Sexto eacute intitulado episteme por oposiccedilatildeo agrave chamada organiken empeiriaque designa a praacutetica musical
58
Agar125 como o caminho para a virtude
devemos compreender que grandes temas requerem grandes introduccedilotildees e o maiorde todos os temas eacute a virtude pois ela lida com o maior dos conteuacutedos que eacute atotalidade da vida humana Naturalmente a virtude implica uma introduccedilatildeo que natildeoseja menor que o estudo da gramaacutetica da geometria da astronomia da retoacuterica damuacutesica e de todos os outros estudos fundados no raciociacutenio (Filo De Congressu11)
Em Filo reencontramos a ideia de que as artes fundadas no raciociacutenio recebem seus
princiacutepios da Filosofia que eacute considerada por sua vez uma ciecircncia natildeo-hipoteacutetica e
inabalaacutevel Ao mesmo tempo tal panorama apresenta as enkyklia mathemata novamente
como um caminho enquanto ensino propedecircutico para se alcanccedilar a Filosofia Aqui destaca-
se a relaccedilatildeo hieraacuterquica entre esses conhecimentos os Estudos Ciacuteclicos como caminho para a
Filosofia e esta como caminho para a Sabedoria
Filo tambeacutem retoma outra expressatildeo cara ao nosso estudo ele iguala a Enkyklios
Paideia e a Enkyklios Mousike ou seja o ciacuterculo de atividades dedicadas agraves Musas Nesse
caso reencontramos aquele significado amplo do termo mousike ligado agrave cultura126
Haacute homens grosseiros e homens cultos aqueles que satildeo dedicados agrave harmonia dalira e das Musas e aqueles que danccedilam no coro do ciacuterculo de atividades dedicadasagraves Musas [hoi lteggtkekhoreukotes tei egkuklioi mousikei] os segundos tecircm maisrecursos para se desenvolver que os primeiros pois por assim dizer quase desdesua infacircncia eles satildeo inundados por discursos que defendem a firmeza oautocontrole e todas as virtudes (Filo De Mutatione Nominus 229 apud Hadot1984 p 286)
Eacute importante lembrar que sob a perspectiva do platonismo ldquoenkyklia mathematardquo
natildeo significa educaccedilatildeo usual tal como aparecia em Aristoacuteteles Nesse sentido embora os
termos eleutherai tekhnai e enkyklios paideia natildeo tenham o mesmo escopo o que haacute de
comum entre a enkyklios paideia do periacuteodo imperial as eleutherai tekhnai aristoteacutelicas e a
educaccedilatildeo matemaacutetica platocircnica eacute o seu caraacuteter que poderiacuteamos chamar elitizado Em funccedilatildeo
disso
natildeo eacute possiacutevel traduzir por ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteria habitualrdquo a expressatildeo enkuklios
125 Agar eacute o escravo egiacutepcio de Sarah mulher de Abraatildeo Abraatildeo simboliza o ldquointelecto amante doconhecimento e da virtuderdquo e Sarah representa a proacutepria virtude a Filosofia a ciecircncia e a sabedoria No DeCongressu para poder se unir a Sarah (ou seja para atingir a sabedoria) Abraatildeo deve primeiro unir-se aAgar
126 Esse significado estaacute relacionado agravequele modo considerado por Sexto Empiacuterico como menos apropriado emque os homens usam o termo muacutesica (M VI 2)
59
paideia empregada a toda hora no texto citado [de Vitruacutevio] mesmo se lembrarmosque tal educaccedilatildeo ordinaacuteria era reservada apenas a uma minoria eacute preferiacutevel traduzira expressatildeo por cultura completa (Hadot 1984 p 267)
Enquanto o conceito de artes liberais (eleutherai tekhnai) no periacuteodo imperial diz
respeito a todas as artes dignas de serem praticadas pelos homens livres abrangendo
atividades intelectuais ou de cunho mais praacutetico (tal como a caccedila e a ginaacutestica por exemplo)
o conceito de Enkyklios Paideia abrange as artes fundadas no raciociacutenio (logikai tekhnai)
enquanto um conjunto de ciecircncias que compotildeem um sistema teoacuterico unificado A
compreensatildeo dessa diferenccedila eacute fundamental para esclarecer o caraacuteter teoacuterico das disciplinas
dos Estudos Ciacuteclicos que Sexto propotildee refutar
Eacute dentro desse contexto que a muacutesica enquanto uma das mathemata que compotildeem a
enkyklios paideia aparece em todas as listas do periacuteodo imperial reunidas por Hadot
Aristides Quintiliano ilustra muito bem o caraacuteter teoacuterico e propedecircutico das mathemata
especificamente na relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia ao final de seu tratado sobre a muacutesica
Logo na medida em que eacute a principal companheira e colaboradora desta ndash me refiroagrave Filosofia ndash deve-se praticar e ensinar a muacutesica de modo completo e considerandoa relaccedilatildeo que existe entre ambas como a que existe entre os pequenos misteacuterios emrelaccedilatildeo aos misteacuterios maiores deve-se atribuir a cada uma a dignidade e a honraoportunas e deve-se estreitar sua uniatildeo por ser a mais conveniente e legiacutetima Comefeito a Filosofia eacute a culminaccedilatildeo de todo o conhecimento e a muacutesica eacute educaccedilatildeopreliminar (Aristides Quintiliano De Mus III 27)
Assim eacute enquanto parte de um sistema de conhecimento voltado ao acircmbito teoacuterico
que a muacutesica eacute listada como uma das mathemata refutadas no Contra os Professores A
muacutesica enquanto logikon tekhne permanece como uma propedecircutica para a Filosofia
43 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES
A lista das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos apresentada por Sexto Empiacuterico eacute
surpreendentemente parecida com a lista canocircnica das sete Artes Liberais estabelecida por
Santo Agostinho constituiacuteda pelo trivium (gramaacutetica retoacuterica dialeacutetica) e pelo quadrivium
(geometria aritmeacutetica astronomia muacutesica) Aleacutem disso o autor refere-se a essas disciplinas
como eleutherai tekhnai uma vez em sua obra (M II 57) Contudo tal referecircncia natildeo eacute razatildeo
suficiente para se supor que Sexto Empiacuterico considera as enkyklia mathemata e as eleutherai
tekhnai exatamente a mesma coisa ou que as compreenda segundo o seu significado a partir
60
de Santo Agostinho127 Tais interpretaccedilotildees mostram-se anacrocircnicas sob duas perspectivas
tanto quando se iguala as enkyklia mathemata ao seu sentido no periacuteodo claacutessico (de
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo tal como aparece em Aristoacuteteles) quanto ao se atribuir agrave lista de Sexto
um sentido posterior a ela
Apesar da inegaacutevel proximidade da lista de Sexto Empiacuterico com o trivium e o
quadrivium parece-nos muito mais razoaacutevel pensar tal como Pellegrin que ldquoSexto ataca um
modo de proceder que eacute dominante em sua eacutepoca ou pelo menos que ele considera como
mais completo que os outrosrdquo (Pellegrin 2002 p 30 grifo nosso) A lista das enkyklia
mathemata apresentada por Sexto Empiacuterico aproxima-se ndash muito ndash da lista de disciplinas de
Filo de Alexandria (gramaacutetica geometria ndash abrangendo possivelmente a aritmeacutetica ndash
astronomia retoacuterica e muacutesica) que estatildeo entre aquelas fundadas no raciociacutenio Nesse sentido
Sexto adotou como ldquomateacuteriardquo sobre a qual exercer sua criacutetica certa imagem das tekhnai daenkyklios paideia como ldquoservasrdquo da Filosofia natildeo porque seja sua convicccedilatildeo pessoal masporque essa seria a posiccedilatildeo dominante dos pensadores dogmaacuteticos de seu tempo (Pellegrin2002 p 32)
Se por um lado Sexto ataca tal perspectiva por ela ser predominante em seu periacuteodo
por outro tal ataque pauta-se em uma possiacutevel autonomia da tekhne em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Apesar do predomiacutenio da ideia de subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia houve ao mesmo
tempo no periacuteodo heleniacutestico uma espeacutecie de divoacutercio entre tekhne e Filosofia Alguns
ramos do conhecimento teacutecnico buscaram desenvolver um princiacutepio de funcionamento
autocircnomo em relaccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas ldquoA partir do momento em que Alexandria
destrona Atenas enquanto centro da vida intelectual grega as ciecircncias e as teacutecnicas ao
menos em seu niacutevel mais elevado natildeo satildeo mais praticadas nas escolas filosoacuteficasrdquo (Pellegrin
2002 p 15)
Observa-se que ao mesmo tempo em que a tekhne passa a ser ldquoestudada por ela
mesmardquo haacute o desenvolvimento de uma reflexatildeo que poderia ser chamada de epistemoloacutegica a
respeito das tekhnai128 O Contra os Professores parece lidar com essas duas posiccedilotildees em
127 Muito embora alguns comentadores o faccedilam Barnes considera a lista de Sexto Empiacuterico como um dosprimeiros aparecimentos da lista das Artes Liberais no sentido medieval Richard Bett (2005 p X)considera a lista das disciplinas apresentada por Sexto Empiacuterico como ldquocorrespondenterdquo agrave lista das seteArtes Liberais do curriacuteculo medieval Conforme apontamos acima (ver nota 101) essa equiparaccedilatildeo parece-nos leviana
128 Esse movimento havia comeccedilado pela medicina Pode-se observar na obra de Hipoacutecrates um esforccedilo de sedefinir o estatuto a aacuterea de atuaccedilatildeo e os meacutetodos da arte meacutedica Hipoacutecrates eacute considerado como aquele queldquolibertou a medicina de sua dependecircncia teoacuterica em relaccedilatildeo agrave Filosofiardquo (Pellegrin 2002 p 16) A relaccedilatildeocom a medicina eacute elucidativa a respeito do conceito de tekhne (aprovado pelo ceacutetico) que toma como base aexperiecircncia desvinculado do conceito de episteme Note-se que os principais representantes do ceticismo no
61
relaccedilatildeo agraves tekhnai ou seja as tekhnai teoacutericas dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e as
tekhnai enquanto praacuteticas autocircnomas dogmaacuteticas ou natildeo129
No Contra os Professores Sexto explicita que a investigaccedilatildeo sobre as mathemata se
daacute depois da investigaccedilatildeo da Filosofia visando ali tambeacutem (tal como na Filosofia) encontrar
a verdade deparando-se contudo com o dogmatismo Com isso o ceacutetico automaticamente
abre espaccedilo para a consideraccedilatildeo de que as tekhnai poderiam deter algum tipo de verdade
independentemente da Filosofia De acordo com Pellegrin ao fazer isso Sexto ldquonega agrave
Filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdaderdquo (Pellegrin 2002 p 32)
A refutaccedilatildeo ceacutetica dirige-se a um certo tipo de tekhne uma concepccedilatildeo especiacutefica
aquela dos professores das mathemata Em contrapartida haacute um sentido natildeo dogmaacutetico em
que as tekhnai natildeo satildeo refutadas130 Essa dicotomia como veremos aparece em relaccedilatildeo a
cada uma das disciplinas discutidas no Contra os Professores
431 O modelo argumentativo da obra
O Contra os Professores apresenta diferenccedilas de estilo argumentativo e de objeto em
relaccedilatildeo aos outros textos de Sexto Empiacuterico No restante de sua obra a Filosofia eacute o objeto da
refutaccedilatildeo ceacutetica e a argumentaccedilatildeo dirigida contra as partes desta culmina na suspensatildeo de
juiacutezo
Pellegrin chama atenccedilatildeo para o fato de que ldquoa situaccedilatildeo da Filosofia e das disciplinas eacute
seacuteculo II dC entre eles o proacuteprio Sexto Empirico eram tambeacutem os principais representantes da escolaempirista de Medicina Essa corrente toma como base o pensamento de Galeno De acordo com Allen oldquoempirismo meacutedico que surgiu no meio do terceiro seacuteculo aC define-se em oposiccedilatildeo a uma disseminadatendecircncia racionalista que seus fundadores detectaram na medicina do seu tempordquo (Allen 2010 p 234) Amedicina empiacuterica partia da observaccedilatildeo do fenocircmeno tendo como meacutetodo natildeo no raciociacutenio mas asistematizaccedilatildeo da experiecircncia Sobre a estreita relaccedilatildeo entre pirronismo e medicina ver Brochard (2009) eAllen (2010)
129 Os fundadores da escola empirista de medicina a compreendiam enquanto praacutetica autocircnoma (desvinculadada episteme mas ainda assim considerada dogmaacutetica pelo ceticismo) Haacute ainda a Escola Metoacutedica demedicina que surge em I aC Tal como os empiristas os metoacutedicos baseavam-se apenas no fenocircmenoTodavia diferentemente daqueles os Metoacutedicos segundo Porchat ldquoaceitaram explicitamente certo uso darazatildeo mas natildeo como fonte de conhecimentos teoacutericos natildeo como propiciadora de uma pretensa passagem doobservaacutevel ao inobservaacutevel que nos poria em condiccedilotildees de explicar os fenocircmenos observadosReconheceram por assim dizer uma razatildeo embutida na proacutepria experiecircnciardquo (Porchat 2007 p 24) EmboraEmpiristas e Metoacutedicos tivessem em comum o fenocircmeno enquanto ponto de partida os Empiristas eramcriticados ldquoporque estes afirmavam dogmaticamente que as entidades ocultas dos racionalistas eraminexistentes ou absolutamente incognosciacuteveisrdquo (Porchat 2005 p 33) E eacute esta a diferenccedila que faz com queSexto Empiacuterico mesmo sendo um meacutedico da escola empirista afirme que o ceticismo estaacute mais proacuteximo daescola metodista de medicina (ver HP I 236)
130 Tal como se observa no criteacuterio praacutetico do ceticismo pirrocircnico Ver acima p 50-1
62
comparaacutevel mas natildeo idecircntica Em relaccedilatildeo agraves disciplinas do aprendizado a questatildeo natildeo eacute
mais a suspensatildeo do assentimento mas a apresentaccedilatildeo de argumentos eficazes contra essas
disciplinasrdquo (Pellegrin 2002 p 11)
As diferenccedilas entre o modelo argumentativo presente no Contra os Professores e o
das outras obras e o desaparecimento da suspensatildeo de juiacutezo (ao menos explicitamente)
levaram alguns comentadores agrave conclusatildeo de que Sexto Empiacuterico teria abandonado o
ceticismo131 Outros consideram que se partimos daquilo que eacute apresentado por Sexto em
outros textos o Contra os Professores cai em contradiccedilatildeo e natildeo escapa ao dogmatismo132
No que diz respeito ao estilo do texto muito embora natildeo haja menccedilatildeo direta agrave
suspensatildeo de juiacutezo eacute impossiacutevel negar a presenccedila massiva dos procedimentos da
argumentaccedilatildeo ceacutetica O discurso ceacutetico eacute pautado em uma seacuterie de argumentos que foram
desenvolvidos pelos ceacuteticos anteriores a Sexto Empiacuterico Nas Hipotiposes Pirronianas (HP I
36-163) Sexto apresenta os argumentos ceacuteticos utilizados para minar as bases teoacutericas dos
especialistas os chamados Modos de Enesidemo e os Modos de Agripa Os Modos ou Tropos
(tropous) como satildeo chamados levam agrave suspensatildeo de juiacutezo ao mostrarem a equipolecircncia das
afirmaccedilotildees acerca das coisas Satildeo consideraccedilotildees baseadas (1) naquele que julga (2) naquilo
que eacute julgado e (3) em ambos133 Os Modos desenvolvidos pelo filoacutesofo Enesidemo (I aC)
segundo a tradiccedilatildeo dos antigos ceacuteticos seriam dez134 Jaacute os Modos de Agripa satildeo um conjunto
de argumentos baseados nos problemas loacutegicos em que incorreriam os argumentos dos
dogmaacuteticos contra os ceacuteticos que satildeo (1) conflito de opiniotildees (2) regresso ao infinito (3)
relatividade (4) hipoacutetese (5) ciacuterculo Estes posteriores aos de Enesidemo visam
131 O principal comentador a defender essa tese eacute Janaacuteček em Sextus Empiricus skeptical methods (1972) Suatese eacute refutada em diversos artigos Ver por exemplo Pellegrin (2002 p 11 ss) Desbordes (1990 p 167ss)
132 Richard Bett em seu artigo La double schizophreacutenie de M I-VI et ses origines historiques (2006)apresenta uma outra explicaccedilatildeo para as diferenccedilas detectadas entre as obras de Sexto Empiacuterico Em sumasegundo ele ldquomuitas pesquisas tentam mostrar que Sexto natildeo se contradiz Entretanto um exame detalhadodo texto mostra claramente que tais tentativas estatildeo fadadas ao fracassordquo Baseado em uma pesquisahistoacuterica Bett considera que a argumentaccedilatildeo do Contra os Professores eacute ldquoresultado de uma falta deadaptaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave sua proacutepria forma posterior do pirronismo dos argumentos que estavamoriginalmente em seu lugar em um periacuteodo anterior e distintordquo (Bett 2006 p 17) O artigo de Pellegrin(2006) retomando sua leitura apresentada na introduccedilatildeo agrave sua ediccedilatildeo do Contra os Professores (2002) eacuteuma resposta a essa visatildeo sustentada por Bett Entretanto em um artigo posterior especificamente sobre oContra os Muacutesicos Bett teria revisto algumas de suas conclusotildees a esse respeito afirmando que ldquopodehaver algumas singularidades no modo como ele [Sexto] apresenta seu material neste livro e em sua obracomo um todo mas as preocupaccedilotildees que muitos (incluindo eu mesmo) expressaram sobre isso natildeo satildeofundamentaisrdquo (Bett 2013 p 168)
133 Tomemos como exemplo o primeiro Modo de Enesidemo acerca da variedade dos animais identificado noseguinte argumento do Contra os Muacutesicos ldquoa mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute demodo algum para os homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitantemas perturbadorardquo (M VI 20)
134 Sobre os Modos de Enesidemo ver Annas amp Barnes (1985)
63
complementaacute-los Para Spinelli (2010 p 259) ldquotodo objeto de investigaccedilatildeo pode ser referido
a esses Modosrdquo
Jaacute no iniacutecio do primeiro livro do Contra os Professores Sexto faz uma refutaccedilatildeo geral
com a pretensatildeo de mostrar que natildeo existem tais ensinamentos Sua argumentaccedilatildeo aborda a
impossibilidade do aprendizado devido agrave inexistecircncia das partes necessaacuterias ao aprendizado
das disciplinas a saber o conteuacutedo ensinado o professor o aprendiz e o meacutetodo de
aprendizado (M I 40)135
Em tal exposiccedilatildeo observa-se a forma dicotocircmica e ldquoem ondasrdquo da argumentaccedilatildeo
ceacutetica ldquotudo eacute A ou B (por exemplo sensiacutevel e inteligiacutevel) poreacutem X (por exemplo os
corpos) natildeo eacute A nem B por conseguinte X natildeo existe e natildeo pode ter a propriedade Y (por
exemplo ser ensinado) e mesmo se supusermos que X eacute A ele natildeo estaacute menos privado de
Yrdquo (Pellegrin 2002 p 11-2)
A argumentaccedilatildeo ceacutetica parte de conceitos considerados dogmaacuteticos (tambeacutem
abordados em outras obras de Sexto136) privilegiando com frequecircncia os conceitos
estoicos137 Quando Sexto argumenta para mostrar a impossibilidade de existecircncia de uma
arte ele parte das noccedilotildees de ldquoconhecimentordquo ldquoverdaderdquo e ldquoexistecircnciardquo daqueles que ele
pretende refutar Em sua contra-argumentaccedilatildeo Sexto assume opiniotildees tatildeo dogmaacuteticas quanto
essas que ele visa refutar Todavia ao contraacuterio daqueles que emitiram essas opiniotildees ele natildeo
pretende assumi-las como verdadeiras mas as utiliza para mostrar o conflito entre as opiniotildees
dos dogmaacuteticos
Assim em todos os livros do Contra os Professores observa-se que o autor
utiliza o arsenal dos tropos particularmente os cinco de Agripa (diaphonia regressoao infinito relatividade hipoacutetese ciacuterculo) e os mesmo dispositivos de ataque aosfundamentos mais abstratos (inexistecircncia da prova aporia dos raciociacutenios sobre otodo e a parte) e frequentemente o equiliacutebrio das opiniotildees a equipolecircnciarealiza-se de fato mesmo se Sexto persiste menos que em outros lugares emrelacionar este resultado agrave realizaccedilatildeo de uma das foacutermulas que ele cuidadosamentecomentou no livro I das Hipotiposes (Desbordes 1990 p 168)
No Contra os Professores satildeo utilizados dois tipos de argumentaccedilatildeo explicitados pelo
proacuteprio ceacutetico De acordo com Sexto Empiacuterico ldquoo caso contra os professores foi exposto
135 O mesmo tema eacute abordado em HP III 238-279136 Cf PH II 37 PH III 38 102 M IX 359 M X 39137 Cf M I 17 20 Exemplo disso eacute o uso da noccedilatildeo estoica de tekhne como paradigma para sua refutaccedilatildeo (ver
p 54) Aleacutem disso especificamente no Contra os Muacutesicos os argumentos a respeito da utilidade da muacutesicasatildeo muito semelhantes aos de Filodemo sendo que muitas das afirmaccedilotildees a favor de sua utilidade satildeoatribuiacutedas diretamente aos estoicos Ver seccedilotildees 34 e 52
64
tanto por Epicuro quanto pelos disciacutepulos de Pirro embora de maneiras diferentesrdquo (M I
1)138 Ao compor sua argumentaccedilatildeo Sexto Empiacuterico
sente-se livre para se apropriar das opiniotildees e conclusotildees dos outros sendodogmaacuteticas ou ceacuteticas sem por essa razatildeo ter que defendecirc-las por si mesmo Issojustifica a presenccedila em M I-VI de diversas vozes entre as quais aleacutem da pirrocircnicae de outras escolas e movimentos filosoacuteficos os epicuristas como jaacute foi notado sesobressaem Isto natildeo eacute de modo algum se usado para propoacutesitos polecircmicos e emfunccedilatildeo da argumentaccedilatildeo incompatiacutevel com o pirronismo (Spinelli 2010 p 256)
De acordo com Desbordes o autor utiliza com propriedade a antilogia retoacuterica em sua
exposiccedilatildeo sobre a utilidade de certas disciplinas Para o comentador no Contra os Muacutesicos
(M VI 4-6)
Sexto assinala a diferenccedila entre essa tradiccedilatildeo [epicurista] e o meacutetodo que ele julgacomo mais propriamente ceacutetico e observando-se de perto essa oposiccedilatildeo eacuteinstrutiva Trata-se com efeito de uma dupla oposiccedilatildeo por um lado a proposta eacutedogmaacutetica visando agrave negaccedilatildeo por outro eacute mais aporeacutetica (aporetikoteron)visando a princiacutepio agrave suspensatildeo de juiacutezo aleacutem disso por um lado examina-se osargumentos do adversaacuterio de outro ataca-se diretamente os fundamentos de suaopiniatildeo (Desbordes 1990 p 168-9)
Sexto Empiacuterico toma o conceito estoico de arte como ldquosistema composto de
apreensotildees exercidas conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10 grifo
nosso) como paradigma do que seja uma tekhne Consequentemente uma parte da refutaccedilatildeo
ceacutetica estaacute voltada agrave utilidade das mathemata Todavia Sexto considera dogmaacuteticos os
argumentos que ele mesmo apresenta para a refutaccedilatildeo da utilidade Embora Sexto critique
sob certa perspectiva tais argumentos ele tambeacutem os toma como parte vaacutelida de sua
argumentaccedilatildeo visto que ele natildeo pretende ocultar qualquer parte da refutaccedilatildeo (ver M VI 6)
No que concerne a essa argumentaccedilatildeo contra a utilidade das tekhnai para Pellegrin
tudo parece indicar que Sexto fala de dois tipos distintos de inutilidade R Bett fazuma boa observaccedilatildeo quando nota que sendo as artes definidas pela sua utilidade osargumentos que atacam sua utilidade satildeo ldquouma variaccedilatildeordquo dos argumentos a favor dasua natildeo existecircncia visto que se ela eacute inuacutetil uma arte deixa de ser uma arte(Pellegrin 2006 p 41)
Mesmo utilizando argumentos semelhantes aos dos epicuristas Sexto Empiacuterico
apresenta no iniacutecio do Contra os Professores uma criacutetica agrave tese dogmaacutetica sustentada por
eles de que os Estudos Ciacuteclicos satildeo ineficazes para se chegar agrave sabedoria Tambeacutem de acordo
138 Sexto Empiacuterico considera que a refutaccedilatildeo agraves artes feita por Epicuro eacute dogmaacutetica por sustentar firmementeque as artes satildeo inuacuteteis aleacutem disso ele sugere que a atitude de Epicuro eacute motivada pela ignoracircncia
65
com Pellegrin apesar dessa ldquorepreensatildeordquo ao meacutetodo epicurista
nas outras passagens ao contraacuterio parece que no que concerne agraves disciplinasteacutecnicas as evidecircncias de sua inutilidade valem pela criacutetica de sua proacutepriaexistecircncia e os argumentos apresentados por certos dogmaacuteticos (os Epicuristas osCirenaicos os Ciacutenicos e outros) satildeo utilizaacuteveis pelo ceacutetico pirrocircnico Os pirrocircnicose certos dogmaacuteticos que tinham posiccedilotildees inconciliaacuteveis sobre a Filosofiaencontram-se adotando uma estrateacutegia comum no que diz respeito agraves disciplinasteacutecnicas a saber arruinar um elemento fundamental neste caso a utilidade A parteldquomais aporeacuteticardquo natildeo faz mais que continuar o trabalho de aniquilaccedilatildeo (Pellegrin2006 p 41)
O segundo tipo de refutaccedilatildeo a argumentaccedilatildeo ldquomais aporeacuteticardquo que aparece no Contra
os Professores conclui pela inexistecircncia dos princiacutepios baacutesicos ou da proacutepria arte em
questatildeo Mas como vimos o ceacutetico visa desestabilizar as teorias daqueles que pretendem ter
apreendido a verdade natildeo provar sua inexistecircncia Segundo Pellegrin os termos utilizados
por Sexto Empiacuterico tal como ldquoanyparktos anypostatos ou asystasos indicam natildeo uma
inexistecircncia no sentido ontoloacutegico mas uma inconsistecircncia ou uma ausecircncia de
fundamentordquo139 (Pellegrin 2006 p42) Eacute nesse sentido que no Contra os Muacutesicos Sexto
afirma por exemplo que ldquoo som natildeo existerdquo
Em vista disso a argumentaccedilatildeo que conclui pela ldquonatildeo-existecircnciardquo dos conceitos
apresentados no Contra os Professores tambeacutem natildeo precisa ser considerada um sinal de
dogmatismo negativo da parte do ceacutetico Se ele utiliza uma argumentaccedilatildeo de caraacuteter
destrutivo eacute antes de tudo para atacar as bases dogmaacuteticas dos conteuacutedos discutidos Nesse
caso o princiacutepio seguido pelo pirrocircnico eacute o de que ele ldquodeve concentrar os disparos de sua
polecircmica contra as bases do edifiacutecio dogmaacutetico visto que somente derrubando-as totalmente
o colapso de todos os outros aspectos teoacutericos que dependem destas bases seraacute tambeacutem
garantidordquo (Spinelli 2010 p 257)
No que diz respeito ao estilo argumentativo parece-nos plausiacutevel assumir que a visatildeo
ceacutetica permanece atuante no Contra os Professores Tal como Pellegrin (2002 p 13)
relacionamos ldquoas diferenccedilas que existem entre o Contra os Professores e os outros tratados agrave
diferenccedila entre seus objetosrdquo Consideramos que tal diferenccedila se daacute ainda em funccedilatildeo dos
proacuteprios interlocutores (os professores) aos quais os livros satildeo destinados Em suma
Sexto fala de outro modo que em suas outras obras porque ele estaacute falando de outracoisa Em M I-VI encontramo-nos com efeito fora do programa da Filosofia ceacutetica
139 Tal distinccedilatildeo eacute fundamental para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo que aparece na segunda parte do Contraos Muacutesicos
66
que Sexto expotildee no iniacutecio das Hipotiposes (I 5-6)140 (hellip) Em M I-VI comeccedila algoque eacute comparaacutevel ao tratamento da Filosofia (hellip) com as intenccedilotildees e a metodologiaceacutetica Sexto aborda um domiacutenio que natildeo eacute mais a Filosofia propriamente dita ()mas que aproxima-se em muitos aspectos da simples experiecircncia da vida cotidiana(Desbordes 1990 p 170)
44 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA
DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO
A refutaccedilatildeo das disciplinas tal como a compreendemos ateacute aqui implica na ideia de
que o dogmatismo natildeo estaacute simplesmente ligado aos juiacutezos filosoacuteficos mas sim e sobretudo
a uma atitude em relaccedilatildeo a uma crenccedila mdash a atitude de sustentar firmemente essa crenccedila141
Sob essa perspectiva o ceacutetico natildeo estaacute preocupado em refutar apenas teses estritamente
filosoacuteficas Ele quer combater toda e qualquer precipitaccedilatildeo dogmaacutetica mostrando que esta
acontece tambeacutem em outras aacutereas do conhecimento tanto em uma dimensatildeo praacutetica da
Filosofia142 quanto no que diz respeito agraves bases do conhecimento teacutecnico
De acordo com Desbordes o que acontece no Contra os Professores eacute uma ldquoreaccedilatildeo de
defesa contra as invasotildees excessivas da especulaccedilatildeordquo (Desbordes 1990 p 171) Segundo o
comentador ldquoo ceticismo aplica-se apenas agraves proposiccedilotildees dogmaacuteticas sobre aquilo que natildeo eacute
evidente Mas encontra-se tambeacutem proposiccedilotildees dogmaacuteticas incompatiacuteveis com as evidecircncias
do senso comum e sobre elas a posiccedilatildeo de Sexto variardquo (idem) Todavia para Desbordes a
oposiccedilatildeo entre uma posiccedilatildeo dogmaacutetica e a afirmaccedilatildeo de uma evidecircncia pode constituir uma
diaphonia que conduziria agrave suspensatildeo de juiacutezo
No Contra os Professores enfatiza-se a diferenccedila entre a vida cotidiana e a
especulaccedilatildeo intelectual Tal diferenccedila foi sublinhada tambeacutem no Contra os Moralistas (M XI
165) ldquoo ceacutetico natildeo conduz sua vida de acordo com o discurso filosoacutefico (ele eacute inativo sob
essa perspectiva) mas de acordo com a observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica ele eacute capaz de escolher isso
e rejeitar aquilordquo
Sob essa perspectiva a da observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica determinar o sentido em que um
conceito seraacute discutido eacute procedimento comum na obra de Sexto Empiacuterico Em todos os
livros do Contra os Professores aparecem definiccedilotildees dos sentidos em que cada uma das Artes
eacute atacada em oposiccedilatildeo agravequilo que eacute preservado de cada uma delas Se por um lado as Artes140 Sexto pontua a conclusatildeo do relato acerca da refutaccedilatildeo ceacutetica agrave Filosofia em M XI 257141 Tendo em vista a interpretaccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico que apresentamos acima Ver seccedilatildeo 41
(especificamente p 48-9)142 Na questatildeo acerca da Arte de Viver abordada em HP III
67
devem ser refutadas em funccedilatildeo de seus aspectos dogmaacuteticos por outro elas devem ser
preservadas na medida em que satildeo uacuteteis natildeo segundo a definiccedilatildeo dogmaacutetica dos estoicos
mas de acordo com o criteacuterio praacutetico do ceacutetico segundo o qual ldquoalgumas artes foram
introduzidas principalmente com o objetivo de evitar coisas prejudiciais outras com o de
descobrir coisas beneacuteficas medicina eacute um exemplo do primeiro tipo sendo uma arte curativa
que alivia a dor e navegaccedilatildeo do segundo tipo pois todos os homens precisam muito da
assitecircncia de outras naccedilotildeesrdquo (M I 51)
Ao longo do Contra os Professores Sexto apresenta o sentido em que cada uma das
artes natildeo eacute refutada
noacutes temos a gramaacutetica baacutesica ou grammatistike (M I 44 49 ss e talvez II 13) mastambeacutem poesia (M I 278 299) ldquoastrometeorologiardquo baseada na observaccedilatildeo dofenocircmeno (M V 1-2) tal como agricultura (M V 2) ou a arte da pilotagem (M I51 II 13 V 2 ver tambeacutem M VIII 203) e tambeacutem talvez escultura e pintura (MI 182) muacutesica enquanto a simples execuccedilatildeo de instrumentos (M VI 1) eobviamente a medicina (M I 51 II 13) e talvez finalmente a Filosofia secompreendida em um sentido genuinamente pirrocircnico (novamente M II 13 mastambeacutem I 280 296 e II 25) (Spinelli 2010 p 258 grifo nosso)
Enquanto parte do criteacuterio praacutetico as artes natildeo podem ser simplesmente eliminadas
por isso a distinccedilatildeo entre arte dogmaacutetica e arte relacionada agrave vida comum eacute essencial para o
ceacutetico De acordo com Spinelli
Sexto parece se dirigir agraves artes ou tekhnai ao inveacutes dos aspectos especiacuteficos doraciociacutenio filosoacutefico e essas tecircm caracteriacutesticas diferentes Embora tambeacutempretenda-se que estejam ancoradas a uma estrutura teoacuterica que visa uma verdadedita incontroversiacutevel a qual eacute objeto das criacuteticas destrutivas de Sexto em vaacuterioslivros de M I-VI parece que elas satildeo para aleacutem disso e especialmente perigosas em outra direccedilatildeo Tais tekhnai de modos diferentes e em diferentes graussatildeo de fato natildeo apenas uma fonte de precipitaccedilatildeo dogmaacutetica no niacutevel do argumentoabstrato mas representam uma ameaccedila agrave uacutenica estrutura de referecircncia moral ecomportamental que o ceacutetico aceita as aparecircncias relacionadas agrave vida comum oukoinos bios (PH I 17) Aqui entatildeo estaacute a explicaccedilatildeo para a dicotomia deaproximaccedilotildees notada anteriormente tal como a estrateacutegica alianccedila temporaacuteria comalgumas criacuteticas Epicuristas acerca da falta de utilidade das Artes LiberaisParticularmente entretanto torna-se mais faacutecil entender as tantas ressalvas feitaspor Sexto em defesa da legitimidade de algumas tekhnai e da possibilidade depraticaacute-las agraves vezes em contraste expliacutecito com as Artes Liberais (Spinelli 2010p 258 grifo nosso)
Em funccedilatildeo disso a diferenccedila entre o meacutetodo utilizado contra a Filosofia e este
utilizado no caso das tekhnai se daacute natildeo soacute porque os objetos refutados satildeo diferentes mas
porque essa diferenccedila eacute fundamental para a coerecircncia interna do ceticismo O Contra os
68
Professores inicia-se com a justificativa de que a refutaccedilatildeo agraves mathemata acontece porque em
relaccedilatildeo a elas o ceacutetico encontrou as mesmas dificuldades que havia encontrado em relaccedilatildeo agrave
Filosofia Dificuldades essas ele explicita ligadas agrave pretensatildeo de verdade dessas disciplinas
ou em outras palavras ao dogmatismo impliacutecito (e muitas vezes expliacutecito) nas afirmaccedilotildees
dos professores das mathemata
Faz-se necessaacuterio para o ceacutetico mostrar a vaidade destes discursos dogmaacuteticos queas artes sustentam sobre elas mesmas e natildeo mostrar que haacute teses opostas de forccedilaigual enunciadas pelos teoacutericos de cada uma dessas artes entre as quais o ceacuteticonatildeo pode escolher (hellip) portanto as ldquodificuldades iguaisrdquo agravequelas encontradas naFilosofia que satildeo aquelas com as quais o ceacutetico se confrontou no que concerne agravesdisciplinas teacutecnicas natildeo satildeo ou pelo menos natildeo principalmente a igualdade dasteses contraditoacuterias e a irregularidade do real Incumbe-se ao ceacutetico mostrar ainconsistecircncia teoacuterica das descriccedilotildees que as artes datildeo a si mesmas (Pellegrin2006 p 43 grifo nosso)
Se o Contra os Professores aparece como uma reaccedilatildeo quase pessoal de Sexto
Empiacuterico ao dogmatismo dos professores das mathemata isso se daacute porque estes dogmatizam
a respeito de uma aacuterea decisiva para a coerecircncia interna da praacutetica ceacutetica O ceacutetico recusa as
teorias a respeito das artes natildeo soacute porque elas partem de premissas natildeo evidentes mas
tambeacutem porque a determinaccedilatildeo da natureza de certos aspectos de uma arte eacute algo
completamente inuacutetil para a sua execuccedilatildeo A possibilidade de execuccedilatildeo de uma arte eacute por sua
vez algo essencial agrave legitimidade do criteacuterio praacutetico e consequentemente para a
legitimidade do proacuteprio ceticismo pirrocircnico
Nesse sentido a suspensatildeo de juiacutezo nunca mencionada no Contra os Professores natildeo
estaacute diretamente em questatildeo Eacute tendo em vista as ldquopretensotildees de uma arte de possuir uma
estrutura teoacuterica e principalmente princiacutepios que Sexto pretende anairein derrubar anular
as disciplinas teacutecnicasrdquo (Pellegrin 2006 p 44)
Se o ceacutetico faz uma distinccedilatildeo entre as tekhnai que ele considera dogmaacuteticas (aquelas
que compunham os Estudos Ciacuteclicos) e as tekhnai de acordo com o criteacuterio praacutetico eacute porque
ele ldquopressente a possiacutevel autonomia de um pensamento teacutecnico (hellip) apenas as tekhnai que
satildeo pode-se dizer servas de primeira ordem da Filosofia teriam o meacuterito de ser atacadas
pelo ceacutetico (Pellegrin 2002 p 34) Por isso podemos concluir junto com Pellegrin que
ldquomesmo quando ele pretende combater outra coisa que a Filosofia Sexto ainda estava
combatendo a sombra da Filosofiardquo (idem)
69
5 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS
O Contra os Muacutesicos comeccedila com a distinccedilatildeo entre alguns sentidos do termo
ldquomuacutesicardquo para definir o escopo da refutaccedilatildeo Tendo definido em que sentido o termo seraacute
refutado Sexto apresenta os dois tipos de argumentaccedilatildeo que seratildeo utilizados O primeiro
conjunto de argumentos sobre a utilidade da muacutesica eacute carregado de exemplos que dialogam
com diversas fontes da Antiguidade o segundo conjunto sobre a teoria musical apresenta os
principais conceitos desta teoria e os refuta Agora que jaacute compreendemos o conceito de
mousike e seu sentido enquanto uma das disciplinas que faziam parte da enkyklios paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico e tendo aleacutem disso apreendido o sentido da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves
tekhnai como um todo cabe ainda tecer algumas consideraccedilotildees diretamente sobre o conteuacutedo
do Contra os Muacutesicos
51 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo
Sexto Empiacuterico distingue trecircs sentidos em que o termo ldquomuacutesicardquo eacute utilizado enquanto
ldquociecircncia acerca das melodias [episteme tis peri melodias] sons e composiccedilatildeo de ritmosrdquo
ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo [he peri organiken empeiria] e ldquosucesso na realizaccedilatildeo de
alguma coisardquo (M VI 1-2) Esse uacuteltimo considerado por Sexto Empiacuterico como menos
apropriado eacute derivado de um sentido amplo de ldquomousikerdquo que inclui todas as artes e ciecircncias
presididas pelas Musas Por isso ldquomusicalrdquo (mousikos) pode ser atribuiacutedo agravequele que eacute
ldquodotado pelas Musas culto refinado eleganterdquo (Tomaacutes 2002 p 40-1)
Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute
apenas nesse sentido que ele pretende refutar a muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o
mais completordquo (M VI 3)
A definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico apresenta pode de fato ser encontrada na obra de
Aristoacutexeno mas como definiccedilatildeo da ciecircncia harmocircnica que eacute uma das partes da muacutesica Para
Aristoacutexeno a muacutesica eacute dividida em quatro partes143 entre elas a harmonike eacute a principal e
143 ldquo() ciecircncia harmocircnica eacute uma parte da competecircncia do muacutesico assim como a riacutetmica a meacutetrica e a
70
por sua vez eacute dividida em sete partes notas intervalos escalas gecircneros sistemas
modulaccedilatildeo e melopeia (Aristoacutexeno El Harm 4410-48) Pela sua definiccedilatildeo de mousike a
partir de uma de suas partes ‒ que eacute a harmonike ‒ nota-se que Sexto Empiacuterico apresenta uma
definiccedilatildeo pouco exata de mousike De acordo com Reyes essa aproximaccedilatildeo entre mousike e
harmonike pode natildeo ser tatildeo imediata ldquotonos eacute um elemento da harmonike enquanto a
rythmopoiia eacute um elemento da mousike melodia pode ser referida por Sexto agrave melopoiia (que
pertence agrave harmonike embora pareccedila ser utilizada aqui para designar o termo geneacuterico
melos)rdquo (Reyes 2004 p 99) A princiacutepio algueacutem poderia simplesmente supor que Sexto
Empiacuterico natildeo domina o assunto Natildeo obstante essa primeira definiccedilatildeo aparece acompanhada
da expressatildeo ldquoe coisas desse tipordquo (kai ta paraplesia katagignomene pragmata) o que abre
espaccedilo para se considerar que a intenccedilatildeo de Sexto Empiacuterico eacute dar uma definiccedilatildeo bastante
geral sobre a muacutesica
O objetivo de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos implica uma refutaccedilatildeo que natildeo
tem uma teoria especiacutefica enquanto alvo mas antes uma perspectiva comum sobre a muacutesica
Nesse sentido a definiccedilatildeo de Aristoacutexeno (enquanto o representante do grupo de teoacutericos
chamados ldquomuacutesicosrdquo) tem caraacuteter paradigmaacutetico a respeito daquilo que se quer discutir visto
que ela eacute tida como a ldquomais completardquo (M VI 3)
Se a muacutesica eacute objeto da refutaccedilatildeo ceacutetica enquanto uma das disciplinas da enkyklios
paideia sua definiccedilatildeo enquanto episteme coloca-a no grupo das ldquoartes baseadas na razatildeordquo144
as logiken tekhnai A mousike enquanto episteme definida por elementos da harmonike eacute
oposta por Sexto Empiacuterico a outro conceito que aparece tambeacutem em Aristoacutetexo a organike
Embora a organike apareccedila como uma das partes da mousike ao lado da harmonike os
autores da tratadiacutestica musical desconsideram a parte praacutetica da muacutesica considerando-a
alogos (irracional)145 A organike enquanto arte praacutetica (pratike tekhne) aparece junto do
termo ldquoempeiriardquo (experiecircncia) destacando o seu caraacuteter praacutetico
Reyes aponta que ldquona eacutepoca de Sexto o oposto agrave harmonike eacute jaacute claramente a
organike (hellip) Os organikoi isto eacute a organike de Sexto nem sequer participa da discussatildeo
dos kriteria em muacutesica tatildeo relevante nessa eacutepocardquo (Reyes 2004 p 100) Tal recorte de
acordo com a cisatildeo entre teoria e praacutetica musical na Antiguidade evidencia que Sexto estaacute
preocupado em refutar a muacutesica enquanto teoria e natildeo como uma arte praacutetica
orgacircnicardquo (Aristoacutexeno El Harm 419-12 traduccedilatildeo Roosevelt Rocha)144 Ver seccedilatildeo 42 (p 57)145 Aristides Quintiliano De Mus (419-20) Cleonides Harm (1793-4 Jan) Anon Bellerm (12)
71
512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica
A argumentaccedilatildeo presente no Contra os Muacutesicos segue o modelo argumentativo
apresentado no capiacutetulo anterior146 e foi dividida explicitamente pelo autor em dois conjuntos
de argumentos e contra-argumentos Tendo definido o objeto a ser refutado a teoria musical
(no sentido amplo do termo147) Sexto Empiacuterico ldquoalinhou sucessivamente argumentos mais
dogmaacuteticos [dogmatikoteron] e em seguida argumentos mais aporeacuteticos [aporetikoteron]rdquo
(Pellegrin 2002 p 46) atribuindo-os inicialmente a ldquounsrdquo e ldquooutrosrdquo Para o ceacutetico
Uns de modo mais dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute umensinamento necessaacuterio para a felicidade mas muito prejudicial e eles seesforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo que eacute dito pelos muacutesicos esustentando que seus argumentos principais eram dignos de negaccedilatildeo Outros de ummodo mais aporeacutetico evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo ao desestabilizar asprincipais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem destruir toda a muacutesica (M VI4-5 grifo nosso)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37) a discussatildeo se daacute a respeito da
utilidade da muacutesica se ela eacute ou natildeo necessaacuteria para a felicidade Isso porque desde Platatildeo
as questotildees esteacuteticas satildeo apresentadas tipicamente em contextos inextricaacuteveis dequestotildees eacuteticas e poliacuteticas mais amplas a beleza estaacute mais intimamente ligada como bem do que noacutes tenderiacuteamos a assumir e as artes satildeo amplamente consideradasem termos de seus efeitos eacuteticos e pedagoacutegicos de seu papel na sociedade etc EPlatatildeo dita o tom a respeito disso para a Filosofia Grega bastante posterior a eleComo veremos os Estoicos parecem tecirc-lo seguido nisso enquanto os Epicuristasque argumentaram contra o poder eticamente transformativo da muacutesica claramentese consideram como desafiando uma visatildeo amplamente sustentada (Bett 2013 p156-7)
Se a discussatildeo das artes estaacute ligada a seu papel pedagoacutegico e poliacutetico a questatildeo da
utilidade da muacutesica eacute um problema eacutetico e natildeo esteacutetico De acordo com Bett os argumentos
eacuteticos apresentados pelo ceacutetico em geral abrangem duas questotildees centrais ldquose algo eacute bom
ou ruim por natureza (hellip) e quais satildeo as consequecircncias praacuteticas de uma resposta afirmativa a
essa questatildeordquo (Bett 2013 p 157) e se existe (tal como afirmavam os Estoicos) ou natildeo uma
Arte de Viver
Enquanto os filoacutesofos e a maioria das pessoas acreditam que a muacutesica pode ser boa
por natureza os filoacutesofos Epicuristas148 satildeo aqueles ldquounsrdquo que ldquode modo mais dogmaacutetico
146 Ver seccedilotildees 43 e 431147 Ver Introduccedilatildeo (p 10) e seccedilatildeo 31148 Mostraremos adiante a relaccedilatildeo estreita entre os argumentos do filoacutesofo epicurista Filodemo e os de Sexto
72
tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute um ensinamento necessaacuterio para a felicidaderdquo (M VI 4)
Ainda que Sexto Empiacuterico atribua explicitamente alguns dos contra-argumentos aos
epicuristas (ver M VI 1927) ele continua considerando que eles satildeo dogmaacuteticos149 visto que
sustentam firmemente a crenccedila150 de que determinadas teses satildeo falsas (HP I 1-10) Nesse
sentido seus argumentos satildeo usados pelo ceacutetico para apresentar um ponto de vista contraacuterio
ao da maioria
Embora os argumentos contra a utilidade da muacutesica recebam mais atenccedilatildeo do ceacutetico
do que os a favor (ateacute porque estes jaacute eram bastante conhecidos por aqueles aos quais o
Contra os Muacutesicos se dirige) consideramos tal como Bett (2013 p 162) que ldquonatildeo eacute difiacutecil
observar isso como um exemplo do procedimento padratildeo de Sexto de justapor argumentos
para conclusotildees opostas visando induzir a suspensatildeo do juiacutezo a respeito de ambos os ladosrdquo
apesar da suspensatildeo do juiacutezo natildeo ser diretamente mencionada ao longo do Contra os
Professores151
Na segunda parte da obra (M VI 38-68) Sexto apresenta brevemente alguns
conceitos da teoria musical (em sentido estrito) especificamente os da ciecircncia harmocircnica de
Aristoacutexeno e contra isso sustenta argumentos contra os princiacutepios baacutesicos da teoria musical
visando mostrar a inexistecircncia dos conceitos a partir dos quais a ciecircncia harmocircnica se
constroacutei152 Nesse ponto natildeo haacute propriamente uma oposiccedilatildeo de argumentos mas basicamente
a apresentaccedilatildeo de alguns conceitos e argumentos destinados a minar a sua possibilidade de
existecircncia153 e com isso a coerecircncia interna de toda a teoria musical
Essa argumentaccedilatildeo inicialmente atribuiacuteda a ldquooutrosrdquo (M VI 6) considerada pelo
ceacutetico como de caraacuteter ldquomais aporeacuteticordquo (aporetikoteron) ou ldquomais em um espiacuterito de
impasserdquo (como Bett traduz) eacute apresentada por Sexto Empiacuterico em primeira pessoa ldquose
mostrarmos que nem as melodias existem e nem os ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos
mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existerdquo (M VI 38 grifo nosso) De acordo com Bett
na habitual terminologia pirrocircnica utilizada por Sexto os propagadores doldquoimpasserdquo (aporia) satildeo os proacuteprios ceacuteticos e aporetikos eacute um dos roacutetulos
Empiacuterico Ver seccedilatildeo 52 (p 74-8)149 A relaccedilatildeo entre ceticismo e epicurismo no Contra os Professores foi abordada na seccedilatildeo 431 (p 64-6)150 Ver p 49151 De fato tal como foi discutido na seccedilatildeo 431 a suspensatildeo de juiacutezo natildeo parece ser o que estaacute em jogo nesta
parte do Contra os Muacutesicos embora os recursos argumentativos sejam os mesmos da argumentaccedilatildeo quevisa levar agrave suspensatildeo
152 Tambeacutem nessa segunda parte pode-se identificar os Modos de Enesidemo e Agripa que estatildeo de acordo como meacutetodo ceacutetico Ver por exemplo M VI 55 67
153 Jaacute explicitamos anteriormente (ver p 65) em que sentido a argumentaccedilatildeo a respeito da natildeo existecircncia podeser compreendida nos escritos pirrocircnicos
73
alternativos para ldquoceacuteticordquo listados no iniacutecio das Hipotiposes Pirronianas (HP I 7)contrariamente ldquodogmaacuteticosrdquo eacute o termo padratildeo de Sexto para aqueles filoacutesofosnatildeo-ceacuteticos dos quais ele anseia se afastar (Bett 2013 p 162)
Visto que o ceticismo pirrocircnico se aproxima da argumentaccedilatildeo chamada ldquoaporeacuteticardquo e
busca combater o dogmatismo torna-se inevitaacutevel questionarmos por que Sexto Empiacuterico
utiliza esses dois tipos de argumentaccedilatildeo se ele claramente daacute preferecircncia ao segundo tipo
Ora apesar de termos apresentado uma explicaccedilatildeo bastante plausiacutevel para o modelo
argumentativo presente em todo o Contra os Professores154 no caso do Contra os Muacutesicos
podemos arriscar ainda uma razatildeo a mais para isso Se como sugerimos155 Sexto Empiacuterico
utiliza argumentos de estilos diferentes tendo em vista o puacuteblico ao qual seus escritos se
dirigem ‒ os Professores das disciplinas das enkyklia mathemata ‒ no caso da muacutesica apesar
de o autor parecer confiar mais no segundo os dois tipos de argumentaccedilatildeo abordam aspectos
diferentes da teoria musical Por um lado temos a discussatildeo a respeito do papel eacutetico
atribuiacutedo agrave muacutesica centrada na questatildeo de sua utilidade para se chegar agrave felicidade e por
outro a discussatildeo epistemoloacutegica que aborda a muacutesica enquanto uma ciecircncia centrada na
coerecircncia das teses defendidas Se a muacutesica foi de fato abordada sob essas duas perspectivas
na Greacutecia Antiga156 natildeo eacute estranho supor que Sexto utilize dois tipos de refutaccedilatildeo
especificamente contra estes dois acircmbitos da teoria musical a fim de abarcar a mousike em
sua totalidade
52 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida
a utilidade da muacutesica compreendida em um sentido amplo ligada agrave possibilidade de produzir
felicidade (eudaimonia) Tal questatildeo estaacute relacionada agrave ideia de que a muacutesica trazia em si o
poder de afetar a alma e o caraacuteter do ouvinte e por isso seria uacutetil
Como destacamos no primeiro capiacutetulo diversas satildeo as questotildees discutidas pelos
filoacutesofos a respeito da muacutesica (como a muacutesica deve ser ensinada o quanto ela deve ou natildeo
ser praticada quais modos satildeo bons e quais natildeo devem ser executados o papel da muacutesica
instrumental o poder da muacutesica de afetar a alma do ouvinte a ponto de alterar o seu caraacuteter
etc) mas a questatildeo em uacuteltima instacircncia eacute a sua utilidade para a vida Platatildeo atribuiu agrave
154 Ver seccedilatildeo 431155 Ver seccedilatildeo 431 (especialmente p 63 65)156 Tal como observamos ao longo da seccedilatildeo 3 a diferenccedila entre as abordagens de Platatildeo e Aristoacuteteles por um
lado e Aristoacutexeno por outro
74
muacutesica um grande valor eacutetico e um papel fundamental na educaccedilatildeo e a maioria dos
pensadores posteriores seguiu esse caminho Sua utilidade para a vida em funccedilatildeo de seu
papel psicagoacutegico foi tomada como ponto de comum acordo entre a maioria dos teoacutericos e
pessoas comuns
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto se propotildee a apresentar ldquoas coisas
sobre a muacutesica repetidas costumeiramente pela maioriardquo (M VI 7) e para refutaacute-las o ceacutetico
utiliza contra-argumentos muito parecidos com os que satildeo encontrados no De Musica de
Filodemo (seccedilatildeo 132) Os argumentos a favor da muacutesica satildeo apresentados de maneira breve
(M VI 7-18) e respondidos na mesma ordem (M VI 19-28) Em seguida Sexto apresenta a
discussatildeo que ele considera ldquoprincipalrdquo aquela que de acordo com ele diz respeito
explicitamente agrave utilidade da muacutesica (M VI 29-37)
De acordo com Bett (2013 p 170) ldquohaacute boas razotildees para crer que a duacutevida de Sexto
Empiacuterico nesta parte do livro vai aleacutem das duas menccedilotildees expliacutecitas aos epicuristas (M VI 19
27)rdquo Isso se deve natildeo soacute agraves semelhanccedilas entre as estruturas do texto ceacutetico e do epicurista
mas tambeacutem porque muitos dos exemplos que observamos no Contra os Muacutesicos aparecem
tambeacutem no De Musica
Dentre os exemplos e argumentos que aparecem em ambos os textos temos a anedota
de Pitaacutegoras (M VI 8 23 e De mus col 39-44) a histoacuteria dos Espartanos guerrearem ao
som do aulo e da lira (M VI 9 24 e De Mus col 72 43-73) Clitemnestra sendo deixada aos
cuidados de um muacutesico (M VI 11-2 26 e De mus col 49 23-7) e Soacutecrates aprendendo a
tocar lira (M VI 13 e De mus col 139 39-40) Aleacutem da semelhanccedila entre os exemplos
mencionados haacute uma seacuterie de afirmaccedilotildees e argumentos a respeito da muacutesica que podem ser
encontrados em ambos os autores
O primeiro argumento a favor da muacutesica apresentado por Sexto Empiacuterico diz respeito
agrave crenccedila de que esta ldquoregula a vida humana e refreia as afecccedilotildees da almardquo (M VI 7) Contra
isso Sexto argumenta que ldquonatildeo eacute prontamente concebiacutevel que por natureza algumas
melodias excitam a alma e outras tranquilizamrdquo (M VI 19) elencando dois argumentos para
isso
O primeiro argumento parte de um exemplo atribuiacutedo nominalmente aos epicuristas
para mostrar que ldquoalgumas melodias musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de
outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada por noacutesrdquo (M VI 20) Natildeo obstante esse exemplo
antecede um raciociacutenio baseado no primeiro Modo de Enesidemo157 Aqui observamos a
157 Sobre os Modos ver p 62 Especificamente sobre essa passagem ver M VI 20 nota 245 agrave nossa traduccedilatildeo
75
ideia de que a influecircncia que alguma melodia possa por ventura ter depende natildeo de sua
natureza mas do modo como aquilo aparece ao ouvinte (ideia compartilhada entre epicuristas
e ceacuteticos) A isso Sexto acrescenta que ldquonatildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica
refreia o pensamento mas porque tem o poder de distrairrdquo (M VI 21 e De Mus col 78 32-
7)
Em seguida tomando os Espartanos e a ira de Aquiles como exemplo Sexto diz que
ldquotal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a ser corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempetordquo (M VI 10) Contra isso o
argumento apresentado eacute novamente o de que a muacutesica faz isso porque distrai a mente (M VI
24 e De mus Col 68 33-40 e tambeacutem col 122 10-1)158
Embora apareccedilam mesclados a tantos outros argumentos tais argumentos abrangem
questotildees muito debatidas ateacute o presente159 merecendo alguma atenccedilatildeo A ideia de que o efeito
natildeo estaacute na muacutesica mas em nossa opiniatildeo eacute absolutamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo a tudo
que era comumente dito sobre muacutesica Enquanto os pitagoacutericos e em seu rastro Platatildeo e
tambeacutem os Estoicos atribuiacuteam um valor objetivo agrave muacutesica considerando seus efeitos fruto de
sua natureza Filodemo e Sexto Empiacuterico datildeo talvez pela primeira vez um tratamento que
poderiacuteamos chamar ldquosubjetivordquo160 agrave muacutesica161 Para o ceticismo isso se daacute porque natildeo temos
acesso aos objetos externos agrave nossa mente e consequentemente natildeo temos acesso agrave natureza
das coisas que por natureza natildeo satildeo boas nem maacutes essa opiniatildeo sendo acrescentada por
noacutes162 Do mesmo modo o efeito da muacutesica na mente humana eacute desvinculado de sua natureza
e o papel atribuiacutedo agrave muacutesica varia de acordo com a situaccedilatildeo e o contexto do ouvinte
dependendo natildeo da natureza da muacutesica mas da nossa opiniatildeo163
O uacuteltimo grupo de argumentos (M VI 29-37) aparece como uma compilaccedilatildeo das
principais alegaccedilotildees a respeito da utilidade da muacutesica seguida da refutaccedilatildeo sextiana164 O
(p 99)158 Para mais paralelos entre as duas obras ver Bett (2013 p 170 - 1)159 Referimo-nos aqui ao debate a respeito da autonomia da muacutesica Ver Introduccedilatildeo (p 12-3)160 O termo ldquosubjetivordquo eacute aqui utilizado com aspas por estar ligado diretamente agrave Filosofia moderna sendo
neste caso anacrocircnico Natildeo obstante o modo como o ceacutetico aborda certos conceitos aproxima-se muitodaquilo que posteriormente foi ligado ao conceito de ldquosubjetividaderdquo
161 Sobre a oposiccedilatildeo entre objetividade e subjetividade no pensamento esteacutetico da Antiguidade verTatarkiewicz (1963)
162 Ver o iniacutecio da seccedilatildeo 41163 Tais conjecturas satildeo reencontradas nas especulaccedilotildees sobre muacutesica apenas no seacuteculo XIX Eduard Hanslick
em O belo musical (1854) defende que a muacutesica natildeo exprime nenhum sentimento sendo completamenteassemacircntica
164 Para Bett (2013 p 174) aqui haacute uma mudanccedila de foco que explicaria o fato desses argumentos natildeo teremparalelos com passagens em Filodemo Entretanto tambeacutem aqui podemos encontrar muitas aproximaccedilotildeescom o texto de Filodemo as quais pontuamos a seguir
76
primeiro apresenta a ideia de que ldquoos que cultivaram o gosto pela muacutesicardquo (M VI 29) tecircm
mais prazer com ela do que as pessoas comuns ao que Sexto Empiacuterico responde que este natildeo
eacute um prazer necessaacuterio (M VI 31)165 e que mesmo que o fosse a experiecircncia musical natildeo eacute
fundamental para isso visto que tambeacutem aqueles que satildeo considerados desprovidos de
experiecircncia ou compreensatildeo musical (os animais e as crianccedilas) parecem ter prazer com a
muacutesica e por fim acrescenta-se que assim como aquele que natildeo eacute instruiacutedo na arte da
culinaacuteria obteacutem o mesmo prazer ao saborear a comida o especialista tem com a muacutesica o
mesmo prazer que o homem comum166 (M VI 33-4 e De Mus col 143 6-12)
Sobre essa discussatildeo Bett (2013 p 174) insinua que Sexto Empiacuterico se contradiz por
discutir a necessidade de ldquoexperiecircncia musicalrdquo visto que ldquoexperiecircncia musicalrdquo era aquilo
que tinha ficado fora do escopo da discussatildeo (ver M VI 1 3) Todavia o que estaacute em jogo
aqui eacute a teoria de que a educaccedilatildeo musical (que inclui a praacutetica musical) deveria acontecer tal
como considera Aristoacuteteles ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas
melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos
escravos crianccedilas e alguns animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A ver tambeacutem Platatildeo Leis 812
B-C)167 A questatildeo aqui eacute que Aristoacuteteles diferencia a fruiccedilatildeo obtida por aquele que eacute educado
musicalmente daquela obtida por seres ldquodesprovidos de razatildeordquo como tipos diferentes de
prazer e defende a utilidade do ensino da muacutesica para que se obtenha o prazer que acompanha
apenas a boa muacutesica A discussatildeo em Sexto restringe-se agrave necessidade da praacutetica musical para
que se obtenha prazer (qualquer que seja168) nas muacutesicas ouvidas ao que se responde que a
praacutetica natildeo eacute necessaacuteria visto que aqueles que natildeo satildeo educados musicalmente tambeacutem
obtecircm prazer nela Contrariamente ao que Bett insinua a questatildeo em pauta eacute novamente a
utilidade do ensino da muacutesica do qual a praacutetica participaria apenas em certa medida
O segundo argumento sobre a utilidade da muacutesica sustenta que ldquonatildeo acontece de os
homens virem a ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicosrdquo (M VI 29) A
discussatildeo aqui diz respeito ao papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes Se a
finalidade da educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento das virtudes e estas satildeo necessaacuterias para a
felicidade visto que a muacutesica eacute considerada por muitos como parte fundamental da165 Tal posiccedilatildeo eacute defendida pelos epicuristas (Filodemo De Mus col 151 29-31)166 Essa analogia com a arte de cozinhar pode ser encontrada tambeacutem na Poliacutetica de Aristoacuteteles (Pol 1039 A)
onde o filoacutesofo questiona a necessidade do aprofundamento na praacutetica musical para que as pessoas possamfruiacute-la corretamente e afirma que concluir essa necessidade seria o mesmo que dizer que para se apreciarboa comida eacute necessaacuterio aprender a cozinhar Tal constataccedilatildeo antecede a proacutexima discussatildeo a respeito nanecessidade da praacutetica musical para sua fruiccedilatildeo
167 Ver p 34 40-1168 Conforme salientamos na primeira seccedilatildeo (p 25) Platatildeo e Aristoacuteteles fazem uma diferenciaccedilatildeo entre tipos de
prazer
77
educaccedilatildeo a muacutesica seria fundamental para o desenvolvimento das virtudes e
consequentemente para se alcanccedilar a felicidade169 Esse eacute um dos aspectos principais da
discussatildeo eacutetica sobre a muacutesica tomado como certo pela maioria dos autores (como
observamos no primeiro capiacutetulo) consequentemente essa eacute tambeacutem uma das principais
teses combatidas por Filodemo
Contra esse segundo argumento Sexto considera que a muacutesica pode conduzir os
jovens agrave intemperanccedila e agrave luxuacuteria (M VI 34-5) tal como tambeacutem aponta Filodemo (De Mus
col 127 28-30) Utilizando um recurso tipicamente ceacutetico Sexto simplesmente aponta que
se ldquoeacute fatordquo que ela leva agrave virtude tambeacutem ldquoeacute fatordquo que ela leva igualmente ao viacutecio
apresentando um exemplo que contraria a tese de que a muacutesica deveria ser valorizada porque
leva agrave virtude
O terceiro argumento que Sexto apresenta consiste na afirmaccedilatildeo de que ldquoacontece de
os elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofiardquo (M
VI 30 e De Mus col 136 10-137170) Contra isso Sexto argumenta que de acordo com
essas ideias tambeacutem natildeo se pode dizer que a utilidade da muacutesica se deve ao fato de esta e a
Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos (M VI 36) Para refutar a tese de que a
Filosofia e a muacutesica tecircm elementos em comum Sexto apenas reporta-se agrave sua refutaccedilatildeo ao
argumento anterior
Em sua anaacutelise Bett limita-se a afirmar que ldquoeacute difiacutecil perceber como essa ideia [a
refutaccedilatildeo apresentada anteriormente] deveria ser transferida para a questatildeo dos elementos
comuns entre muacutesica e Filosofia e que se poderia muito bem suspeitar de alguma ediccedilatildeo
inadequada da parte de Sextordquo (Bett 2013 p 174) De nossa parte suspeitamos da
inadequaccedilatildeo dessa leitura Jaacute em M VI 7 Sexto apresenta a teoria de que a muacutesica produz os
mesmos efeitos que a Filosofia especificamente regular a alma humana e refrear suas
afecccedilotildees mas que o faz com certa ldquopersuasividade encantatoacuteriardquo Ora o problema do
segundo argumento discutido por Sexto eacute justamente o do papel da muacutesica no
desenvolvimento das virtudes que neste caso satildeo as mesmas virtudes que a Filosofia se
propotildee a desenvolver na alma humana Eacute nesse sentido que a refutaccedilatildeo ao argumento
anterior se aplica tambeacutem a este171
Por fim Sexto aponta que a muacutesica eacute considerada uacutetil ldquoporque o cosmos eacute governado
169 Cf Aristoacuteteles Pol (1340 A) e EN (1102 A)170 Filodemo (De Mus col 82-5) tambeacutem apresenta a discussatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre Muacutesica e Filosofia
e seu papel na educaccedilatildeo Para ele eacute a Filosofia que educa natildeo a muacutesica visto que esta sendo (para ele)irracional natildeo pode produzir disposiccedilotildees racionais agrave virtude ou ao viacutecio
171 Sobre isso ver M VI 7 notas 215 217 e 218 agrave nossa traduccedilatildeo (p 91)
78
de acordo com a harmoniardquo (M VI 30)172 e tambeacutem ldquoporque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da almardquo (M VI 30)173 Ao que Sexto Empiacuterico responde que esse uacuteltimo
argumento ldquojaacute foi desconsiderado como natildeo sendo verdadeiro174 e que o cosmos eacute ordenado
segundo a harmonia mostra-se falso de vaacuterios modosrdquo (M VI 36-7) aleacutem disso de acordo
com Sexto mesmo se essa tese fosse verdadeira ldquotal coisa natildeo tem poder sobre a bem-
aventuranccedila tal como a harmonia natildeo tem poder sobre os instrumentos musicaisrdquo visto que a
harmonia do cosmos eacute inaudiacutevel175 (M VI 37 e De Mus col 80)
A proximidade entre os argumentos de Sexto Empiacuterico e os de Filodemo deixa claro
que haacute alguma relaccedilatildeo forte entre os dois textos Contudo se Filodemo serviu de fonte direta
para Sexto Empiacuterico ou se eles usaram fontes em comum eacute uma questatildeo difiacutecil de ser
respondida Embora Sexto e Filodemo tenham estilos bastante diferentes para Bett se
partimos da ediccedilatildeo de Delattre (2007) do De Musica
noacutes temos um texto com um formato notavelmente similar ao modo habitual deSexto proceder e particularmente agravequilo que ele faz nesta parte do Contra osMuacutesicos A exposiccedilatildeo dos argumentos positivos a respeito da utilidade da muacutesicaseguida pelos argumentos negativos que correspondem a eles precisamente namesma ordem (hellip) estaacute muito proacutexima do modo como (se Delattre estaacute certo)Filodemo conduziu seu tratamento deste toacutepico (Bett 2013 p 172-3)
Ainda assim embora os argumentos sejam muito semelhantes Filodemo abordou o
assunto de maneira muito mais ampla e se Sexto utilizou sua obra como fonte direta ele
ldquoresumiu aquilo que pegou de Filodemo e reorganizou para seu proacuteprio usordquo (Bett 2013 p
172) Por fim a diferenccedila fundamental entre os argumentos eacute sua finalidade visto que para o
ceacutetico o epicurista eacute ainda um dogmaacutetico que espera que tomemos suas teses como
verdadeiras enquanto o ceacutetico visa neste caso combater o dogmatismo dos professores de
muacutesica enquanto uma das mathemata176
A respeito da natureza dos argumentos apresentados nesta primeira parte e do objeto
ao qual tais argumentos satildeo dirigidos resta-nos algumas observaccedilotildees Richard Bett sustenta
que Sexto Empiacuterico se contradiz por ter afirmado que soacute iria abordar a teoria musical mas
172 Filodemo (De Mus col 145 17) tambeacutem menciona essa teoria atribuindo-a a alguns neopitagoacutericos173 Essa eacute uma das principais teses atribuiacutedas por Filodemo ao estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (ver Filodemo
De Mus col 23 1-19) contra a qual como foi mostrado anteriormente ele sustenta que se a muacutesica temalgum poder de alterar a alma isso se deve ao seu poder de distrair e agraves opiniotildees que o ouvinte associaposteriormente a esta Ver acima (p 74-5) a discussatildeo dos argumentos de M VI 7 e 19
174 De fato Sexto aborda essa questatildeo inuacutemeras vezes nos paraacutegrafos anteriores Ver especialmente M VI 19-22
175 Ver M VI 37 nota 280 agrave nossa traduccedilatildeo (p 109)176 Ver seccedilatildeo 2
79
que a discussatildeo desta primeira parte do texto gira em torno da praacutetica musical177 Aqui
precisamos ter certa cautela Eacute certo que a definiccedilatildeo inicial de teoria musical natildeo parece
prontamente incluir as questotildees eacuteticas discutidas Todavia do mesmo modo a discussatildeo a
respeito da utilidade da muacutesica natildeo pode ser simplesmente subsumida ao conceito de muacutesica
enquanto ldquoempeiriardquo (experiecircncia) Se o conceito de muacutesica discutido parece estar restrito aos
aspectos teacutecnicos da teoria musical haja vista sua delimitaccedilatildeo ldquoenquanto ciecircncia das
melodias sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipordquo (M VI 1) a definiccedilatildeo de muacutesica
enquanto empeiria restringe-se (de acordo com Sexto) aos ldquomuacutesicos praacuteticosrdquo aqueles que
ldquousam aulos e salteacuteriosrdquo (M VI 1) Assim se a discussatildeo a respeito da utilidade da muacutesica
natildeo pode ser conectada agrave primeira definiccedilatildeo ela tambeacutem natildeo pode ser simplesmente
subsumida agrave segunda
O conceito de empeiria no ceticismo estaacute ligado em geral agraves artes que satildeo
aprovadas pelo ceacutetico Nesse sentido a simples execuccedilatildeo de uma peccedila em um instrumento
natildeo eacute questionada pelo ceacutetico Agora a discussatildeo da primeira parte natildeo diz respeito agrave praacutetica
do instrumentista ser ou natildeo abolida do mundo mas especificamente aborda a utilidade da
muacutesica que enquanto disciplina deveraacute ou natildeo ser ensinada178 em funccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo
para a felicidade
Em suma se o objetivo do Contra os Professores eacute o combate ao dogmatismo em
cada uma das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos embora a discussatildeo sobre a utilidade da
muacutesica natildeo pareccedila cair sob o escopo da definiccedilatildeo de teoria musical inicialmente apresentada
por Sexto ela permanece dentro do acircmbito teoacuterico abrangendo o papel eacutetico pelo qual
muitos autores consideraram a muacutesica uacutetil Se a discussatildeo sobre a utilidade de cada uma das
tekhnai eacute fundamental visto que uma tekhne soacute pode ser considerada como tal em funccedilatildeo de
sua utilidade179 o debate a respeito da utilidade da muacutesica natildeo diz respeito agrave praacutetica musical
(tal como Bett insinua) mas estaacute de acordo com o escopo da discussatildeo e com a finalidade do
Contra os Muacutesicos
53 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
177 Para corroborar com sua afirmaccedilatildeo Bett enfatiza a ligaccedilatildeo entre a discussatildeo sobre a ldquoexperiecircncia musicalrdquo(mousikes empeirias) em M VI 32 e a expressatildeo que parafraseando Bett Sexto originalmente usou paradesignar experiecircncia em instrumentos (organiken empeirian) Cf Bett (2013 p 174)
178 A medida que o ensino abrange praacutetica musical conhecimento teacutecnico ou ainda ldquotreinamento auditivordquo eacutebastante discutiacutevel haja vista as restriccedilotildees agrave praacutetica musical feitas por Platatildeo Aristoacuteteles e Aristoacutexeno
179 Sobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54) e 44
80
A uacuteltima parte do Contra os Muacutesicos diz respeito aos aspectos teacutecnicos da ciecircncia
musical que satildeo refutados por Sexto Empiacuterico Tendo isso em vista apresentamos os
argumentos acompanhados da explicaccedilatildeo de alguns conceitos baacutesicos da harmonike que satildeo
apresentados na segunda parte do Contra os Muacutesicos
Como vimos esse segundo tipo de argumentaccedilatildeo que aparece no Contra os Muacutesicos
(M VI 38-68) ldquoatacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais
pragmaacuteticardquo (pragmatikoteros) (M VI 38) A abordagem da muacutesica sob uma perspectiva
teacutecnica relaciona-se especificamente agrave parte da ciecircncia musical conhecida como harmonike
As definiccedilotildees dos elementos que compotildeem a harmonike apresentadas no Contra os Muacutesicos
reportam-se natildeo a um autor especiacutefico mas a diversas fontes haja vista que Sexto Empiacuterico
parece fazer um ataque geral agrave teoria da muacutesica Natildeo obstante as definiccedilotildees dos conceitos
aproximam-se em diversos momentos das definiccedilotildees apresentadas por Aristoacutexeno
A partir de Aristoacutexeno a harmonike divide-se como exposto acima180 em sete partes
notas intervalos escalas gecircneros sistemas modulaccedilatildeo e composiccedilatildeo de melodias
(Aristoacutexeno El Harm 235-8) Essas partes natildeo satildeo apresentadas ao acaso mas seguem uma
ordem em que a composiccedilatildeo de melodias eacute apresentada como finalidade (telos) e a nota como
elemento baacutesico do qual todas as outras partes dependem
A argumentaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico visa invalidar a teoria da muacutesica a partir da
refutaccedilatildeo de seus princiacutepios baacutesicos A definiccedilatildeo de muacutesica dada nessa etapa eacute a de que ldquoa
muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico181 e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e do que
natildeo eacute riacutetmicordquo (M VI 38)182 Dada esta definiccedilatildeo Sexto parte do pressuposto loacutegico de que se
a melodia e o ritmo natildeo existirem a muacutesica tambeacutem natildeo existe Ora a melodia eacute constituiacuteda
de notas e as notas satildeo constituiacutedas de sons Entatildeo o ceacutetico ataca o conceito de som visto
que eacute a partir deste que se constitui a nota
Segundo Tomaacutes (2002 p 48) para os gregos ldquoo som em sua forma bruta eacute de fato
um existente no tempo e no espaccedilo reais ele eacute um elemento do mundo e natildeo um elemento
moldado na inteligecircnciardquo E eacute em vista dessa concepccedilatildeo de som que compreendemos os
argumentos a respeito da natildeo existecircncia do som183
A definiccedilatildeo de som enquanto ldquoobjeto da percepccedilatildeo sensiacutevel do ouvirrdquo (M VI 39)
180 Ver seccedilotildees 33 e 511181 Emmeles eacute em geral a qualidade daquilo que respeita as leis proacuteprias do melos ou seja diz respeito aos
sons estarem dispostos musicalmente de maneira adequada Cf Reyes (2004 p 101)182 A mesma definiccedilatildeo aparece tambeacutem no Contra os Eacuteticos (M XI 186)183 O sentido da argumentaccedilatildeo contra a existecircncia jaacute foi apresentado na seccedilatildeo 431 (p 65)
81
apresenta o som enquanto objeto sensiacutevel mas ainda natildeo relacionado agrave muacutesica Tal definiccedilatildeo
eacute desenvolvida pelo estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (que compreende o som como ar
percutido)184
A definiccedilatildeo de nota eacute dada a partir da definiccedilatildeo de som uma nota eacute um som emitido
de certa maneira (M VI 41-2) Segundo Sexto Empiacuterico a definiccedilatildeo dada pelos muacutesicos de
maneira geral eacute de que ldquonota eacute a incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo Uma
definiccedilatildeo muito semelhante eacute encontrada em Aristoacutexeno ldquouma nota eacute a incidecircncia do som em
uma tensatildeordquo (Aristoacutexeno El Harm 115)185
Essa definiccedilatildeo de nota eacute seguida por outras definiccedilotildees relacionadas a ela (homofonia e
natildeo homofonia agudo e grave consonacircncia e dissonacircncia) que abrem o caminho para a
definiccedilatildeo de intervalo e a seguir de gecircnero (apresentado no Contra os Muacutesicos diretamente
ligado ao conceito de ethos) Todas essas definiccedilotildees evidenciam a variedade de conceitos da
ciecircncia musical que dependem do conceito de nota e consequentemente do conceito de som
No que diz respeito agrave classificaccedilatildeo dos intervalos segundo o criteacuterio da consonacircncia
essa divisatildeo dos intervalos em consonantes e dissonantes tambeacutem eacute apresentada por
Aristoacutexeno que considera que ldquoa segunda distinccedilatildeo que deve ser feita eacute que alguns intervalos
satildeo consonantes e outros dissonantesrdquo (Aristoacutexeno El Harm 44)186
Visto que a definiccedilatildeo dos gecircneros se daacute a partir de uma relaccedilatildeo intervalar187 Sexto
aborda em seguida os gecircneros de melodias ldquoDesse modo natildeo apenas todo intervalo em
muacutesica tem sua existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de
melodiardquo (M VI 48) Observa-se que a passagem se daacute a partir da relaccedilatildeo dos ethe humanos
com os ethe musicais Segundo Sexto Empiacuterico ldquouma melodia de tal tipo eacute chamada pelos
muacutesicos caraacuteter por ser capaz de produzir caraacuteterrdquo (M VI 49)
Os gecircneros satildeo apresentados por Sexto de acordo com a divisatildeo de Aristoacutexeno Isso
corrobora com a tese de que de acordo com Reyes (2004 p 105) ldquodesde o princiacutepio da era
cristatilde a classificaccedilatildeo aristoxecircnica havia se tornado canocircnica nos escritos teoacutericos devido agrave
enorme influecircncia desse autorrdquo Para Reyes o uso dos gecircneros de acordo com a classificaccedilatildeo
184 Ver Dioacutegenes Laeacutercio Testemonia (VII 55) Para a discussatildeo a respeito das fontes de Sexto Empiacuterico verReyes (2004 p 102)
185 A definiccedilatildeo de nota dada por Aristoacutexeno eacute a base para as definiccedilotildees encontradas tambeacutem em outros autoresda Antiguidade tardia aleacutem de Sexto Empiacuterico Segundo Reyes (2004 p 103) a definiccedilatildeo apresentada porSexto Empiacuterico evidencia que a fonte utilizada por ele natildeo eacute diretamente a obra de Aristoacutexeno pois Sextoacrescenta o adjetivo emmeles que pode ser encontrado em outros autores como Cleoniacutedes Cf Cleoniacutedes(1799-10) Bacchius (14 ou 29215-17 jan) Gaudencius (3297-8 jan) Anon Bellerm (39 48-9)
186 Para as outras definiccedilotildees ver Aristoacutexeno El Harm (44-46)187 A diferenccedila de gecircnero se daacute de acordo com as relaccedilotildees intervalares entre as notas que compotildeem o
tetracorde Ver traduccedilatildeo M VI 42 nota 288 (p 111)
82
de Aristoacutexeno tem duas vertentes ldquopor um lado segue a tendecircncia da eacutepoca (hellip) de adotar a
doutrina aristoxecircnica por outro facilita a intenccedilatildeo de Sexto de tratar os elementos da ciecircncia
musical de um modo nuclear sem entrar em distinccedilotildees sutisrdquo (idem)
Sexto Empiacuterico utiliza inclusive os mesmos termos que Aristoacutexeno para definir os
gecircneros188 Aristoacutexeno define os gecircneros em que a melodia evidentemente se distingue em
trecircs considerando que toda melodia no que diz respeito agrave harmonizaccedilatildeo ou eacute diatocircnica
(diatonon) ou cromaacutetica (khroma) ou enarmocircnica (harmonia)
Muito embora os termos utilizados por Sexto Empiacuterico sejam os mesmo de
Aristoacutexeno aqui se observa um descompasso em relaccedilatildeo ao autor Sexto Empiacuterico apresenta
os mesmos gecircneros que Aristoacutexeno mas atribui a cada um deles um ethos Entretanto
Aristoacutexeno parece ter evitado todo tipo de especulaccedilatildeo sobre os efeitos emocionaisintriacutensecos dos vaacuterios tipos de muacutesica em contraste agrave tradiccedilatildeo vinda de Damon ePlatatildeo Sexto parece aqui se separar da tradiccedilatildeo de Aristoacutexeno e retomar o tipo dequestatildeo apresentada na primeira parte do livro (Bett 2013 p 176)189
Embora Aristoacutexeno tenha restriccedilotildees agraves teorias acerca do poder da muacutesica sobre o
caraacuteter defendidas por Daacutemon Platatildeo e Aristoacuteteles diversos autores ldquooferecem uma
caracterizaccedilatildeo eacutetica dos gecircneros e nesse aspecto Sexto natildeo se diferencia delasrdquo (Reyes
2004 p 106) Tal caracterizaccedilatildeo reforccedila a ideia de que Sexto natildeo estaacute refutando uma tese
especiacutefica mas estaacute preocupado em refutar as principais opiniotildees que faziam parte do ensino
da muacutesica enquanto disciplina da Enkyklios Paideia
No que diz respeito aos ldquogecircneros meloacutedicosrdquo segundo Sexto Empiacuterico das melodias
ldquoa enarmocircnica eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um caraacuteter
claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseirordquo (M VI 50) Tais definiccedilotildees
satildeo segundo Reyes (2004 p 106-9) semelhantes agraves utilizadas por outros autores de tratados
musicais190
188 Reyes (2004 p 105) chama atenccedilatildeo para o fato de que a escrita de Aristoacutexeno emprega a forma antiga deabordar os gecircneros enquanto os escritores contemporacircneos a Sexto Empiacuterico utilizavam os adjetivosdiatonikon khromatikon e enarmonion
189 Note-se que no que diz respeito agrave teoria do ethos musical Aristoacutexeno critica aqueles que acreditam que amuacutesica tem efeito direto sobre o caraacuteter das pessoas dizendo que as pessoas afirmam que um tipo de muacutesicaprejudica o caraacuteter e outro o melhora sem prestarem atenccedilatildeo agrave seguinte qualificaccedilatildeo ldquona medida em que amuacutesica pode ser uacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30) De acordo com Beacutelis essa qualificaccedilatildeo ldquomostrao ceticismo de Aristoacutexeno no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a muacutesica e a moralrdquo (Beacutelis 1986 p 97) Ver p38
190 Eacute interessante notar que as definiccedilotildees do enarmocircnico e do diatocircnico aparecem invertidas em relaccedilatildeo agravequiloque Platatildeo defendia O enarmocircnico eacute classificado por Aristoacutexeno como o mais recente e que exige haacutebitopara ser cantado Ao enarmocircnico satildeo atribuiacutedas as caracteriacutesticas nobres que Platatildeo atribuiacutea ao diatocircnicoObserva-se tambeacutem que enquanto Filodemo omite a definiccedilatildeo do gecircnero diatocircnico muitos autores daAntiguidade tardia atribuem caracteriacutesticas semelhantes ao enarmocircnico e ao diatocircnico Reyes (2004 p 107)
83
As mesmas definiccedilotildees (austeros ou semnos) do ethos do gecircnero enarmocircnico podem
ser encontradas nas obras de Filodemo e de Pseudo-Plutarco191 No que diz respeito ao
cromaacutetico encontra-se definiccedilotildees semelhantes em Dioniacutesio de Helicarnaso e Adrasto Em
ambos os casos Sexto natildeo parece se afastar das definiccedilotildees comumente encontradas na
tradiccedilatildeo No caso do gecircnero diatocircnico Reyes chama atenccedilatildeo para o fato de que Sexto se
limita a uma contraposiccedilatildeo esteacutetica com o gecircnero enarmocircnico O comentador aponta a
caracterizaccedilatildeo esteacutetica do gecircnero diatocircnico como um indiacutecio de que este seria mais recente
que o enarmocircnico o que iria contra a opiniatildeo de Aristoacutexeno
Depois de apresentar os principais conceitos da teoria musical que dependem do
conceito de nota Sexto conclui que ldquoeacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos sobre a melodia
natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notasrdquo (M VI 52) Sexto Empiacuterico busca
desestabilizar a teoria musical apresentando a diaphonia ndash o conflito de opiniotildees ndash nos
discursos filosoacuteficos Visto que as notas existem ldquoconforme o gecircnero do somrdquo (M VI 52) o
autor discute o conceito de som enquanto afecccedilatildeo (pathos) e em seguida discute se o som
existe enquanto algo corpoacutereo ou incorpoacutereo192
O argumento parte da oposiccedilatildeo entre o conceito de som enquanto afecccedilatildeo ou enquanto
produtor de uma afecccedilatildeo e opotildee duas teses filosoacuteficas que consideram como criteacuterio de
verdade respectivamente os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (ou as afecccedilotildees) e os objetos
inteligiacuteveis Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida a tese dos filoacutesofos Cirenaicos de
que soacute existem as afecccedilotildees De acordo com o autor (M VII 191) para os Cirenaicos as
afecccedilotildees (pathe) satildeo o uacutenico criteacuterio de verdade Por outro lado Platatildeo e Demoacutecrito193 tomam
como criteacuterio de verdade natildeo as afecccedilotildees mas apenas as coisas inteligiacuteveis (o som enquanto
existente por si mesmo) A afecccedilatildeo eacute para eles algo distinto do proacuteprio som e nesse sentido
o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo mas produz uma afecccedilatildeo ou seja o som aparece para noacutes enquanto
objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel Platatildeo e Demoacutecrito ao rejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel
(enquanto criteacuterio de verdade) rejeitariam tambeacutem o som tal como eacute compreendido pelos
Cirenaicos194 Com isso Sexto mostra o conflito das opiniotildees acerca das quais natildeo seria
possiacutevel decidir a qual dar assentimento
compreende que esta mudanccedila se deve ao desaparecimento do enarmocircnico enquanto gecircnero praacutetico (talcomo atestam Pseudo-Plutarco e Ptolomeu)
191 Filodemo De Mus (64222) Ps-Plutarco De Mus (1145 A)192 Ver por exemplo Aristides Quintiliano De Mus (520-2) e Ptolomeu Harm (32)193 Ver traduccedilatildeo M VI 53 nota 303 (p 115)194 A explicaccedilatildeo de Reyes (2004 p 103) a respeito deste argumento natildeo eacute muito clara dando a entender que os
Cirenaicos consideravam que o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo Para uma explicaccedilatildeo elucidativa sobre o tema verBett (2013 p 178)
84
O argumento seguinte (M VI 55) apresenta a aporia de que o som natildeo eacute corpoacutereo nem
incorpoacutereo Os Peripateacuteticos satildeo citados como defensores da primeira tese e os Estoicos da
segunda Sexto argumenta que se natildeo existe alma natildeo existe som A partir disso tambeacutem os
sentidos enquanto partes da alma natildeo existem195 e consequentemente tambeacutem natildeo existem
os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (entre eles o som) De acordo com Bett
essa inferecircncia final pode parecer completamente ilegiacutetima se natildeo haacute sentidosentatildeo certamente nenhum objeto eacute percebido pelos sentidos mas disso natildeo se segueque os objetos que noacutes normalmente tomamos como percebidos pelos sentidos natildeoexistam (embora natildeo sejam percebidos) (Bett 2013 p 178)
Mas especificamente no caso do som Aristoacuteteles compreende que o som real (em
oposiccedilatildeo ao som em potecircncia) e a audiccedilatildeo satildeo a mesma coisa Partindo disso Bett considera
que seria possiacutevel (com uma dose de boa vontade) considerar que Sexto parte desse conceito
compreendendo o ldquosomrdquo (phone) como uma ldquoqualidade audiacutevel dos objetosrdquo
Aleacutem disso ldquoo som nem eacute concebido como um efeito nem como substacircncia mas
como algo que vem a ser e que se estende no tempordquo (M VI 57) Assim se natildeo conseguimos
chegar a uma definiccedilatildeo do conceito de tempo o conceito de som enquanto existente no
tempo eacute automaticamente destruiacutedo
Visto que Sexto partiu da definiccedilatildeo de mousike como ciecircncia do que eacute meloacutedico e do
que eacute riacutetmico resta ainda a refutaccedilatildeo da muacutesica enquanto ciecircncia do ritmo Tambeacutem nesse
caso sua refutaccedilatildeo se daacute a partir do conceito mais fundamental presente na definiccedilatildeo de
ritmo Se ldquoritmo eacute um sistema composto de peacutes e o peacute eacute composto de arsis (levantamento) e
thesis (abaixamento)rdquo e ldquoarsis e thesis satildeo considerados uma quantidade de tempordquo (M VI
60) entatildeo o conceito que precisa ser refutado para desestabilizar toda a teoria da muacutesica eacute o
conceito de tempo Para isso Sexto Empiacuterico retoma alguns de seus argumentos contra o
tempo apresentados no Contra os Fiacutesicos196 Em seguida o Contra os Muacutesicos simplesmente
encerra a investigaccedilatildeo ceacutetica a respeito das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos ldquoTendo dito
tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica noacutes encerramos nossa
discussatildeo contra as disciplinasrdquo (M VI 68)
Se observamos o que estaacute em jogo nessa segunda parte do texto composta pelos
argumentos que o proacuteprio autor considera que estatildeo mais de acordo com a corrente ceacutetica197
mais uma vez confirmamos que o ceacutetico natildeo estaacute de modo algum preocupado com o
195 Ver Aristoacuteteles De Anima (425 B 26-8)196 Para referecircncias ver nossa traduccedilatildeo M VI 60-7 notas 311-6 (p 117-120)197 Ver M VI 4-5 e seccedilatildeo 512
85
conceito de muacutesica especificamente mas sim com a criacutetica agrave postura dogmaacutetica da parte dos
professores de muacutesica que sustentam teses contraditoacuterias entre si a respeito dessa arte
86
6 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)
ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ
[61] Ἡ μουσικὴ λέγεται τριχῶς καθ ἕνα μὲν τρόπον ἐπιστήμη τις περὶ μελῳδίας καὶ
φθόγγους καὶ ῥυθμοποιίας καὶ τὰ παραπλήσια καταγινομένη πράγματα καθὸ καὶ
Ἀριστόξενον τὸν Σπινθάρου λέγομεν εἶναι μουσικόν καθ ἕτερον δὲ ἡ περὶ ὀργανικὴν
ἐμπειρίαν ὡς ὅταν τοὺς μὲν αὐλοῖς καὶ ψαλτηρίοις χρωμένους μουσικοὺς ὀνομάζομεν τὰς
δὲ ψαλτρίας μουσικάς ἀλλὰ κυρίως καταὐτὰ τὰ σημαινόμενα καὶ παρὰ πολλοῖς λέγεται
μουσική [62] καταχρηστικώτερον δὲ ἐνίοτε προσαγορεύειν εἰώθαμεν τῷ αὐτῷ ὀνόματι καὶ
τὴν ἔν τινι πράγματι κατόρθωσιν οὕτω γοῦν μεμουσωμένον τι ἔργον φαμέν κἂν ζωγραφίας
μέρος ὑπάρχῃ καὶ μεμουσῶσθαι τὸν ἐν τούτῳ κατορθώσαντα ζωγράφον [63] ἀλλὰ δὴ κατὰ
τοσούτους τρόπους νοουμένης τῆς μουσικῆς πρόκειται νῦν ποιεῖσθαι τὴν ἀντίρρησιν οὐ μὰ
Δία πρὸς ἄλλην τινὰ ἢ πρὸς τὴν κατὰ τὸ πρῶτον νοουμένην σημαινόμενον αὕτη γὰρ καὶ
ἐντελεστάτη παρὰ τὰς ἄλλας μουσικὰς δοκεῖ καθεστηκέναι
87
CONTRA OS MUacuteSICOS
[61] A muacutesica eacute dita de trecircs maneiras Na primeira enquanto ciecircncia198 das melodias
sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipo sentido em que dizemos que Aristoacutexeno199
filho de Espiacutentaro eacute muacutesico Na segunda ela diz respeito agrave experiecircncia200 em instrumentos201
tal como quando nomeamos ldquomuacutesicosrdquo aqueles que usam aulos202 e salteacuterios203 e ldquomusicistasrdquo
aquelas que tocam salteacuterio De maneira apropriada a muacutesica eacute dita de acordo com esses
significados por muitas pessoas [62] De modo menos apropriado agraves vezes costumamos
chamar com o mesmo nome a realizaccedilatildeo bem sucedida de algo Desse modo tambeacutem
dizemos que algo eacute musical204 mesmo sendo parte de uma pintura e que o pintor eacute
ldquomusicalrdquo205 por ter sido bem sucedido nisso [63] Mas sendo a muacutesica concebida dessas
maneiras propotildee-se agora que se faccedila uma refutaccedilatildeo ndash por Zeus ndash natildeo contra qualquer outra
muacutesica senatildeo contra aquela concebida de acordo com o primeiro significado pois essa em
comparaccedilatildeo com os outros significados de muacutesica parece ter se estabelecido como a mais
completa206
198 Encontra-se frequentemente as disciplinas consideradas como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes(tekhnai) Nesse vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar asldquoartes baseadas na razatildeordquo (logiken tekhnai) Ver seccedilatildeo 42
199 Aristoacutexeno disciacutepulo de Aristoacuteteles viveu no seacuteculo IV aC Sua obra teve grande repercussatildeo durante todaa Antiguidade Ele eacute tomado como exemplo de muacutesico na medida em que trata da muacutesica sob umaperspectiva teoacuterica Na parte do texto em que Sexto Empiacuterico refuta conceitos teacutecnicos da muacutesica muitasdas definiccedilotildees satildeo semelhantes agraves do muacutesico Sobre o pensamento musical de Aristoacutexeno ver seccedilatildeo 33
200 O conceito de empeiria eacute comumente utilizado no pirronismo ligado agraves artes que estatildeo de acordo com ocriteacuterio praacutetico e que por isso natildeo satildeo refutadas pelo ceacutetico Ver seccedilotildees 41 e 44
201 A organike enquanto parte da praacutetica musical era frequentemente oposta agrave harmonike que eacute a parte teoacutericada muacutesica e considerada como a mais completa Ver seccedilatildeo 511
202 O mais importante instrumento da famiacutelia dos aerofones De origem oriental o aulo eacute um instrumento desopro ldquocomposto de um tubo (bombyx) feito de junco madeira marfim chifre osso de cervo ou bronzecortado em secccedilotildees ciliacutendricas inseridas umas nas outras com quatro ou cinco furos ( trypemata) sendo queo segundo estava na parte de baixo do tubo O aulo tinha ainda uma ou duas palhetas (glossai ou glottides)no bocal e isso eacute que produzia seu som penetrante e estrondosordquo (Rocha 2009 p 159) Muitas vezes seencontra a traduccedilatildeo de ldquoaulosrdquo por ldquoflautardquo mas essa traduccedilatildeo eacute improacutepria porque a flauta tem um somsuave muito diferente do som do aulo
203 Nome geneacuterico para designar a famiacutelia das harpas (cordas obliacutequas e de comprimento desigual) Osinstrumentos desse gecircnero de origem natildeo grega eram pinccedilados com os dedos nus sem plectro
204 Em grego ldquomemousomenonrdquo O termo remete ao sentido mais amplo de mousike estaacute relacionado agraves artes eciecircncias presididas pelas Musas
205 Nesse sentido amplo de mousike musical (mousikos) eacute o homem bem educado culto206 Eacute a teoria musical natildeo a praacutetica musical considerada pelos pensadores como a mais completa Cf Platatildeo
Rep (530 D-531 C) De acordo com Aristides Quintiliano De Mus (1110) para os antigos filoacutesofos amuacutesica (a teoria musical) ldquonatildeo soacute era apreciada por si mesma mas era tambeacutem extraordinariamenteadmirada por ser uacutetil agraves demais ciecircncias Sob influecircncia pitagoacuterica e platocircnica ele considera que a muacutesicaconteacutem as relaccedilotildees harmocircnicas que compreendem todo o universo por isso ela seria uacutetil para todas as outrasciecircncias
88
[64] τῆς δὲ ἀντιρρήσεως καθάπερ καὶ ἐπὶ γραμματικῆς διττόν ἐστι τὸ εἶδος οἱ μὲν οὖν
δογματικώτερον ἐπεχείρησαν διδάσκειν ὅτι οὐκ ἀναγκαῖόν ἐστι μάθημα πρὸς εὐδαιμονίαν
μουσική ἀλλὰ βλαπτικὸν μᾶλλον καὶ τοῦτο δείκνυσθαι ἔκ τε τοῦ διαβάλλεσθαι τὰ πρὸς τῶν
μουσικῶν λεγόμενα καὶ ἐκ τοῦ τοὺς προηγουμένους λόγους ἀνασκευῆς ἀξιοῦσθαι [65] οἱ δὲ
ἀπορητικώτερον πάσης ἀποστάντες τῆς τοιαύτης ἀντιρρήσεως ἐν τῷ σαλεύειν τὰς ἀρχικὰς
ὑποθέσεις τῶν μουσικῶν ᾠήθησαν καὶ τὴν ὅλην ἀνῃρῆσθαι μουσικήν [66] Ὃθεν καὶ ἡμεῖς
ὑπὲρ τοῦ μὴ δοκεῖν τι τῆς διδασκαλίας χρεωκοπεῖν τὸν ἑκατέρου δόγματος ἢ ἀπορήματος207
χαρακτῆρα κεφαλαιωδέστερον ἐφοδεύσομεν μήτε ἐν τοῖς παρέλκουσιν ὑπερεκπίπτοντες εἰς
μακρὰς διεξόδους μήτε ἐν τοῖς ἀναγκαιοτέροις ὑστεροῦντες πρὸς τὴν τῶν ἐπειγόντων
ἔκθεσιν ἀλλὰ μέσην καὶ μεμετρημένην κατὰ τὸ δυνατὸν ποιούμενοι τὴν διδασκαλίαν
207 Embora Greaves (1986 p 127) opte pelo termo ldquopragmatosrdquo em sua anaacutelise dos manuscritos optamos aquipor manter o termo ldquoaporematosrdquo tal como Delattre (2002 p 415) visto que deste modo a sentenccedila dizrespeito aos tipos de refutaccedilatildeo apresentados anteriormente o dogmaacutetico e o aporeacutetico
89
[64] A refutaccedilatildeo tal como aquela da gramaacutetica se daacute de dois modos208 Uns de modo mais
dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute uma disciplina209 necessaacuteria para a
felicidade210 mas muito prejudicial e eles se esforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo
que eacute dito pelos muacutesicos e sustentando que seus argumentos principais eram dignos de serem
destruiacutedos211 [65] Outros de um modo mais aporeacutetico212 evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo
pensaram que ao desestabilizar as principais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem ter-se
destruiacutedo213 toda a muacutesica [66] Portanto tambeacutem noacutes para que natildeo pareccedilamos minimizar
qualquer coisa da explicaccedilatildeo214 examinaremos metodicamente o caraacuteter principal de cada
uma dessas atitudes ndash a dogmaacutetica e a aporeacutetica Nem de maneira redundante excedendo-nos
em longas descriccedilotildees nem falhando na exposiccedilatildeo daquilo que eacute mais indispensaacutevel mas
criando uma explicaccedilatildeo tatildeo moderada e calculada quanto possiacutevel
208 Tambeacutem no Contra os Gramaacuteticos Sexto Empiacuterico empreende dois tipos de refutaccedilatildeo ele apresentaargumentos mostrando a inutilidade da gramaacutetica e argumenta contra a existecircncia dos princiacutepios queconstituem a ciecircncia das letras
209 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido como ldquodisciplinardquo ldquoconteuacutedordquo ldquoensinamentordquo Ta mathemata satildeoos ensinamentos adquiridos atraveacutes do ensino transmitido pelos mathematikos ou seja pelosprofessoresVer seccedilatildeo 42
210 O termo grego ldquoeudaimoniardquo traduz-se comumente por ldquofelicidaderdquo entretanto essa traduccedilatildeo eacute limitadavisto que identificamos o termo com um certo estado de espiacuterito Eudaimonia na verdade refere-se agraveobtenccedilatildeo daquilo que eacute mais desejaacutevel o sumo bem Para Aristoacuteteles a felicidade eacute uma atividade da almade acordo com a virtude Epicuro considerou o prazer acompanhado da prudecircncia enquanto a principalvirtude como sumo bem tendo definido o prazer como ldquoausecircncia de sofrimentos fiacutesicos e perturbaccedilotildees naalmardquo (Epicuro Carta Sobre a Felicidade p 43) De modo geral o termo eudaimonia remete ao resultadode uma vida virtuosa que regida por determinados princiacutepios de acordo com cada escola filosoacutefica Aeudaimonia (muitas vezes associada agrave tranquilidade da alma) era o principal objetivo das escolas filosoacuteficasdo periacuteodo heleniacutestico combatidas pelos ceacuteticos tal como a epicurista e a estoica Cf Hadot (2008 cap 7)
211 Sexto Empiacuterico refere-se explicitamente aos filoacutesofos epicuristas Segundo Dellatre (2002 p 415 n 1) issose estende tambeacutem aos cirenaicos
212 O termo aporia aparece frequentemente associado ao ceticismo De acordo com Sexto Empiacuterico opensamento ceacutetico eacute chamado tambeacutem de ldquoaporeacuteticordquo Cf HP I 3 210 Ver seccedilotildees 431 (p 62-3) e 512 (p72-3)
213 Sexto Empiacuterico parece se referir aqui agrave proacutepria escola ceacutetica Anairesis indica no ceticismo pirrocircnico asupressatildeo ou destruiccedilatildeo de algum conceito dada enquanto resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica Esse tipo desupressatildeo aparece na segunda parte do texto (sect 38 ndash 68) quando Sexto conclui pela inexistecircncia dosconceitos apresentados Ver seccedilotildees 431 e 512 (p 72-3)
214 ldquoDidaskaliardquo para Sexto Empiacuterico pode designar um ldquoensinamento por demonstraccedilatildeordquo
90
[67] Τάξει δὲ ἀρχέτω πρῶτον τὰ ὑπὲρ μουσικῆς παρὰ τοῖς πολλοῖς εἰωθότα
θρυλεῖσθαι εἴπερ τοίνυν φασί φιλοσοφίαν ἀποδεχόμεθα σωφρονίζουσαν τὸν ἀνθρώπινον
βίον καὶ τὰ ψυχικὰ πάθη καταστέλλουσαν πολλῷ μᾶλλον ἀποδεχόμεθα τὴν μουσικήν ὅτι οὐ
βιαστικώτερον ἐπιτάττουσα ἡμῖν ἀλλὰ μετὰ θελγούσης τινὸς πειθοῦς τῶν αὐτῶν
ἀποτελεσμάτων περιγίνεται ὧνπερ καὶ ἡ φιλοσοφία [68] Ὁ γοῦν Πυθαγόρας μειράκια ὑπὸ
μέθης ἐκβεβακχευμένα ποτὲ θεασάμενος ὡς μηδὲν τῶν μεμηνότων διαφέρειν παρῄνεσε τῷ
συνεπικωμάζοντι τούτοις αὐλητῇ τὸ σπονδεῖον αὐτοῖς ἐπαυλῆσαι μέλος τοῦ δὲ τὸ
προσταχθὲν ποιήσαντος οὕτως αἰφνίδιον μεταβαλεῖν σωφρονισθέντας ὡς εἰ καὶ τὴν ἀρχὴν
ἔνηφον
91
[67] Pela ordem comecemos primeiro com as coisas sobre a muacutesica repetidas
costumeiramente pela maioria Ora se eles dizem admitimos que a Filosofia regula215 a vida
humana e refreia as afecccedilotildees da alma216 mais ainda admitimos que a muacutesica faz isso porque
ela natildeo se impotildee a noacutes de modo violento mas com certa persuasividade encantatoacuteria217 ela
produz os mesmos efeitos que a Filosofia218 [68] Pitaacutegoras certa vez tendo observado que
os jovens em estado de frenesi baacutequico causado pela embriaguez de modo algum diferiam
dos enlouquecidos aconselhou o auleta que estava junto deles na folia a tocar no aulo a
melodia espondaica219 Depois que o auleta fez o que foi ordenado os jovens repentinamente
mudaram e se mostraram temperantes como se tivessem estado soacutebrios desde o iniacutecio220
215 O termo ldquosophronizordquo eacute traduzido ao longo do texto por ldquotemperarrdquo ldquoregularrdquo e ldquomoderarrdquo O verbo estaacuteligado agrave virtude da temperanccedila ou moderaccedilatildeo (sophrosyne) uma das quatro virtudes principais apresentadaspor Platatildeo na Repuacuteblica (427 E) Eacute interessante notar que quando Platatildeo apresenta a virtude da temperanccedilaele a aproxima dos conceitos musicais da consonacircncia (symphonia) e da harmonia apresentando atemperanccedila como ldquouma espeacutecie de ordenaccedilatildeordquo e como ldquoo domiacutenio de certos prazeres e desejosrdquo Cf PlatatildeoRep (430 E)
216 No Fedro Platatildeo aborda a relaccedilatildeo entre as partes da alma fazendo uma analogia da parte racional da almacom a figura de um cocheiro que tenta controlar dois cavalos que representam as partes irracionais da almaDaiacute o papel da Filosofia (atividade da parte racional) de refrear as afecccedilotildees da parte irracional da alma CfPlatatildeo Fedro (253 C ndash 257 B)
217 Na Repuacuteblica (600 E ndash 601 B) Platatildeo afirma que os elementos que compotildeem a muacutesica como a meacutetrica oritmo e o modo tecircm um encantamento que faz um discurso ou qualquer conteuacutedo teacutecnico parecer excelenteembora o poeta natildeo saiba nada mais do que representar aparecircncias Por isso para Platatildeo a execuccedilatildeomusical deve ser muito bem administrada Quando bem utilizada a muacutesica tem o poder de alterar o caraacuteterdo ouvinte e levaacute-lo agrave excelecircncia moral Eacute nesse sentido que ela realizaria o mesmo papel da Filosofia soacuteque de um modo mais agradaacutevel
218 Essa relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia eacute encontrada em diversos textos da Antiguidade Aristides Quintiliano(De mus 2320) apresenta a Filosofia como um objeto de aprendizado (mathesis) que ldquomanteacutem a parteracional [da alma] em sua liberdade natural tornando-a soacutebria e mantendo-a pura atraveacutes da prudecircncia(phronesis)rdquo Jaacute a muacutesica eacute encarregada da parte irracional curando-a e domesticando-a atraveacutes do haacutebitoldquonatildeo permitindo que ela [a alma] cometa excessos nem que seja completamente subjugadardquo ldquoDesde ainfacircncia [a muacutesica] molda o caraacuteter com suas harmoniai e torna o corpo mais melodioso com seus ritmosrdquoIsso poderia se dar de acordo com Aristides Quintiliano porque ldquoa doccedilura dessa atividade encanta suasmentes ou talvez suas almasrdquo Sobre o papel da muacutesica enquanto ensino preliminar para a Filosofia verAristides Quintiliano De mus (32720)Plutarco (De virtute morali 441 E) apresenta essa mesma relaccedilatildeo atribuindo esse conhecimento a Pitaacutegorasque segundo o filoacutesofo teria introduzido o estudo da muacutesica ldquopara encantar e acalmar a almardquo por ternotado que nem todas as partes da alma se submetem agrave razatildeo ldquomas que algumas partes precisam de algumoutro tipo de persuasatildeo para cooperar com elas para moldaacute-las e domesticaacute-las se elas natildeo satildeo para sertotalmente intrataacuteveis e obstinadas ao ensino da Filosofiardquo Ver tambeacutem Platatildeo Euth (290 A)
219 Indica uma melodia apropriada para ocasiotildees religiosas de caraacuteter solene e dominada ritmicamente portempos longos Essas melodias eram compostas no modo doacuterico e consideradas calmantes Cf Platatildeo Ti(47 D) Plutarco De Mus (1135 A)
220 Essa anedota sobre Pitaacutegoras aparece em vaacuterios textos da Antiguidade Cf Filodemo De Mus (col 42 39 ndash44) Quintiliano Inst (110 32) Boeacutecio Inst (11) Plutarco De mus (1146 F)
92
[69] Οἵ τε τῆς Ἑλλάδος ἡγούμενοι καὶ ἐπ ἀνδρείᾳ διαβόητοι Σπαρτιᾶται μουσικῆς ἀεί ποτε
στρατηγούσης αὐτῶν ἐπολέμουν καὶ οἱ ταῖς Σόλωνος χρώμενοι παραινέσεσι πρὸς αὐλὸν καὶ
λύραν παρετάσσοντο ἔνρυθμον ποιούμενοι τὴν ἐνόπλιον κίνησιν [610] Kαὶ μὴν ὥσπερ
σωφρονίζει μὲν τοὺς ἄφρονας ἡ μουσική εἰς ἀνδρείαν δὲ προτρέπει τοὺς δειλοτέρους οὕτω
καὶ παρηγορεῖ τοὺς ὑπ ὀργῆς ἐκκαιομένους ὁρῶμεν γοῦν ὡς καὶ ὁ παρὰ τῷ ποιητῇ μηνίων
Ἀχιλλεὺς καταλαμβάνεται ὑπὸ τῶν ἐξαποσταλέντων πρεσβευτῶν
φρένα τερπόμενος φόρμιγγι λιγείῃ
καλῇ δαιδαλέῃ ἐπὶ δ ἀργύρεον ζυγὸν ἦεν
τὴν ἕλετ ἐξ ἐνάρων πόλιν Ἠετίωνος ὀλέσσας
τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν
ὡς ἂν σαφῶς γινώσκων τὴν μουσικὴν πραγματείαν μάλιστα δυναμένην περιγίνεσθαι τῆς περὶ
αὐτὸν διαθέσεως [611] Kαὶ μὴν διἔθους ἦν καὶ τοῖς ἄλλοις ἥρωσιν εἴ ποτε ἀποδημοῖεν καὶ
μακρὸν πλοῦν στέλλοιντο ὡς πιστοτάτους φύλακας καὶ σωφρονιστῆρας τῶν γυναικῶν
αὑτῶν ἀπολείπειν τοὺς μουσικούς Κλυταιμνήστρᾳ γέ τοι παρῆν ἀοιδός ᾧ πολλὰ ἐπέτελλεν
Ἀγαμέμνων περὶ τῆς κατὰ ταύτην σωφροσύνης [612] ἀλλ ὁ Αἴγισθος πανοῦργος ὢν αὐτίκα
τὸν ἀοιδὸν τοῦτον
ἄγων εἰς νῆσον ἐρήμην
κάλλιπεν οἰωνοῖσιν ἕλωρ καὶ κῦρμα γενέσθαι
εἶθ οὕτως ἀφύλακτον λαβὼν τὴν Κλυταιμνήστραν διέφθειρε προτρεψάμενος αὐτὴν
ἐπιθέσθαι τῇ ἀρχῇ τοῦ Ἀγαμέμνονος
93
[69] Os Espartanos liacutederes da Heacutelade e famosos por sua bravura221 guerreavam sempre sob
o comando da muacutesica222 E aqueles que utilizavam as exortaccedilotildees de Soacutelon223 se colocavam em
ordem de batalha ao som do aulo e da lira fazendo o movimento marcial riacutetmico224 [610]
Tal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a serem corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempeto Vejamos de acordo com o poeta
como Aquiles em sua ira eacute encontrado pelos embaixadores que foram enviados ateacute ele
deleitando seu espiacuterito com a melodiosa foacuterminge
bela obra de arte em cima havia argecircnteo jugo
Escolheu-a dentre os espoacutelios a cidade de Etion tendo destruiacutedo
Com ela ele deleitava seu coraccedilatildeo225
como se ele soubesse claramente que a praacutetica musical eacute sobretudo capaz de prevalecer
sobre sua disposiccedilatildeo [611] Aleacutem disso era haacutebito tambeacutem para outros heroacuteis quando eles
deixavam seus lares e partiam em uma longa navegaccedilatildeo deixar muacutesicos como os mais
confiaacuteveis guardiotildees e responsaacuteveis pela conduta226 de suas mulheres Assim um aedo
acompanhava Clitemnestra ao qual Agamecircnon ordenou muitas coisas a respeito da
temperanccedila dela [612] Mas Egisto sendo perverso rapidamente
conduzindo o aedo para uma ilha deserta o abandonou
para se tornar presa e espoacutelio para os abutres227
entatildeo pegou Clitemnestra jaacute sem vigilacircncia e seduziu-a incitando-a a tomar o poder de
Agamecircnon228
221 ldquoAndreiardquo - traduzido comumente por ldquofortalezardquo ldquocoragemrdquo ldquobravurardquo - denomina tambeacutem uma dasvirtudes a ser cultivada na Repuacuteblica de Platatildeo Quando Platatildeo se refere ao poder da muacutesica de alterar ocaraacuteter do ouvinte esse poder estaacute ligado agraves virtudes da temperanccedila (sophrosyne) e da bravura (andreia)
222 Esse argumento a favor da muacutesica aparece tambeacutem em Quintiliano Inst (I X 14)223 Soacutelon (638 ndash 558 aC) foi um legislador jurista e poeta grego Filodemo tambeacutem apresenta Soacutelon dando
conselhos atraveacutes de elegias morais (poesias monoacutedicas que eram classificadas de acordo com o seuconteuacutedo)
224 As canccedilotildees para a guerra normalmente eram em ritmo creacutetico ou peocircnico ( ndash ᴗ ndash ndash ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ndash ) (Naescansatildeo dos versos as siacutelabas longas satildeo representadas por ldquondashrdquo e as breves por ldquo ᴗ rdquo) Cf West (1992 p15-6) Mathiesen (1999 p 40)
225 Homero Iliacuteada (IX 186-9) A mesma citaccedilatildeo aparece em Plutarco De Mus (1145 E) As traduccedilotildees dostrechos de obras da literatura claacutessica que aparecem neste texto satildeo de nossa autoria em parceria com o profRoosevelt Rocha
226 Utilizamos essa expressatildeo para traduzir o termo ldquosophronisterasrdquo O termo ligado agrave virtude da temperanccedilaassociado agrave conduta das mulheres neste caso diz respeito ao controle do desejo sexual delas
227 Homero Odisseia (III 270-1)228 Cf Filodemo De Mus (col 49 23-7)
94
[613] Oἵ τε μέγα δυνηθέντες ἐν φιλοσοφίᾳ καθάπερ καὶ Πλάτων τὸν σοφὸν ὅμοιόν φασιν
εἶναι τῷ μουσικῷ τὴν ψυχὴν ἡρμοσμένην ἔχοντα καθὸ καὶ Σωκράτης καίπερ βαθυγήρως
ἤδη γεγονὼς οὐκ ᾐδεῖτο πρὸς Λάμπωνα τὸν κιθαριστὴν φοιτῶν καὶ πρὸς τὸν ἐπὶ τούτῳ
ὀνειδίσαντα λέγειν ὅτι κρεῖττόν ἐστιν ὀψιμαθῆ μᾶλλον ἢ ἀμαθῆ διαβάλλεσθαι [614] Oὐ χρὴ
μέντοι φασίν ἀπὸ τῆς νῦν ἐπιτρίπτου καὶ κατεαγυίας μουσικῆς τὴν παλαιὰν διασύρειν ὅτε
καὶ Ἀθηναῖοι πολλὴν πρόνοιαν σωφροσύνης ποιούμενοι καὶ τὴν σεμνότητα τῆς τε μουσικῆς
κατειληφότες ὡς ἀναγκαιότατον αὐτὴν μάθημα τοῖς ἐκγόνοις παρεδίδοσαν [615] καὶ τούτου
μάρτυς ὁ τῆς ἀρχαίας κωμῳδίας ποιητής λέγων
λέξω τοίνυν βίον ὃν ἐξ ἀρχῆς ἐγὼ θνητοῖσι παρεῖχον
πρότερον γὰρ ἔδει παιδὸς φωνὴν γρύσαντος μηδέν ἀκοῦσαι
εἶτα βαδίζειν ἐν ταῖσιν ὁδοῖς εὐτάκτως ἐς κιθαριστοῦ
ὅθεν εἰ καὶ κεκλασμένοις τισὶ μέλεσι νῦν καὶ γυναικώδεσι ῥυθμοῖς θηλύνει τὸν νοῦν ἡ
μουσική οὐδὲν τοῦτο πρὸς τὴν ἀρχαίαν καὶ ἔπανδρον μουσικήν [616] Εἴπερ τε ἡ ποιητικὴ
βιωφελής ἐστι ταύτην δὲ φαίνεται κοσμεῖν ἡ μουσικὴ μερίζουσα καὶ ἐπῳδὸν παρέχουσα
χρειώδης γενήσεται ἡ μουσική ἀμέλει γέ τοι καὶ οἱ ποιηταὶ μελοποιοὶ λέγονται καὶ τὰ
Ὁμήρου ἔπη τὸ πάλαι πρὸς λύραν ᾔδετο
95
[613] Aleacutem disso aqueles muito capazes em Filosofia tal como Platatildeo dizem que o saacutebio eacute
semelhante ao muacutesico pois tem a sua alma harmonizada229 Assim do mesmo modo
Soacutecrates embora jaacute estivesse muito velho natildeo se envergonhava de recorrer a Laacutempon230 o
citarista e para algueacutem que o repreendeu ele disse que eacute melhor ser acusado de aprendiz
tardio do que de ignorante231 [614] Natildeo se deve tambeacutem dizem desprezar a muacutesica antiga
tomando como base a atual232 que eacute vergonhosa e efeminada quando tambeacutem os Atenienses
que devotaram grande atenccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo da conduta compreendendo a dignidade da
muacutesica transmitiram-na para seus descendentes como o ensinamento mais necessaacuterio [615]
Testemunha disso eacute o poeta da Antiga Comeacutedia que diz
Agora contarei da vida a qual em princiacutepio eu dei aos mortais233
Pois primeiramente que natildeo se ouvisse o som de uma crianccedila murmurando
Em seguida que as crianccedilas fossem pelas ruas de maneira ordenada ao encontro do
citarista234
Por essa razatildeo se a muacutesica atual enfraquece a mente com certas melodias fragmentadas e
ritmos efeminados235 isso natildeo tem nada a ver com a muacutesica antiga e viril [616] Aleacutem disso
se a arte poeacutetica eacute uacutetil para a vida e se a muacutesica parece adornaacute-la dividindo-a e produzindo o
canto a muacutesica seraacute necessaacuteria Sem duacutevida tambeacutem os poetas satildeo chamados compositores
de melodia236 e antigamente os versos de Homero eram cantados ao som da lira
229 Cf Platatildeo Rep(410 E 443 D-E 554 E) Timeu (43 A)230 Greaves (1986 p 135 n 35) chama atenccedilatildeo para o fato de que se desconhece a existecircncia de qualquer
muacutesico chamado ldquoLaacutemponrdquo mas que houve um sacerdote do oraacuteculo chamado ldquoLaacutemponrdquo contemporacircneo aSoacutecrates Nos diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates aborda o fato de ser um aprendiz tardio da ciacutetara tendo como seuprofessor de ciacutetara o muacutesico Cono Cf Platatildeo Euth (272 B-C 295 D) No Menexeno (235 E - 236 A) Conotambeacutem eacute mencionado junto do nome ldquoLamprusrdquo professor de muacutesica de Soacutefocles Cf tambeacutem Vida deSoacutefocles (III 19-20)
231 Cf Filodemo De mus (col 139 39-40) Quintiliano Inst (I X 13)232 Platatildeo e Aristoacutefanes criticaram os muacutesicos de seu tempo exaltando os poderes da muacutesica arcaica
Aristoacutefanes sobretudo na comeacutedia As Ratildes faz um apelo agrave tradiccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo gregasatirizando uma disputa entre Euriacutepides enquanto a personificaccedilatildeo do novo muacutesico aberto a todas asinovaccedilotildees e elaboraccedilotildees da chamada nova muacutesica e Eacutesquilo enquanto representante da muacutesica antiga Talsaacutetira ldquonatildeo soacute eacute um apelo agrave tradiccedilatildeo como tambeacutem o testemunho duma profunda ruptura que haviacomeccedilado a produzir-se dentro do acircmbito da cultura musical grega (hellip)rdquo (Pereira 2001 p 259)
233 Telecleides (fr 1) citado em Ateneu Deipnosofistas (VI 268 B) 234 Aristoacutefanes Nuvens (963-4) Na comeacutedia de Aristoacutefanes essa citaccedilatildeo descreve o comportamento
considerado adequado para as crianccedilas de acordo com a antiga educaccedilatildeo ldquoquando a dececircncia era umcostume aceitordquo
235 Ver seccedilatildeo 321 (p 25-6)236 Melopoios
96
[617] ὡσαύτως δὲ καὶ τὰ παρὰ τοῖς τραγικοῖς μέλη καὶ στάσιμα φυσικόν τινα ἐπέχοντα
λόγον ὁποῖά ἐστι τὰ οὕτω λεγόμενα
γαῖα μεγίστη καὶ Διὸς αἰθήρ
ὁ μὲν ἀνθρώπων καὶ θεῶν γενέτωρ
ἡ δ ὑγροβόλους σταγόνας νοτίας
παραδεξαμένη τίκτει θνατούς
τίκτει δὲ βορὰν φῦλά τε θηρῶν
ὅθεν οὐκ ἀδίκως
μήτηρ πάντων νενόμισται
[618] Kαθόλου γὰρ οὐ μόνον χαιρόντων ἐστὶν ἄκουσμα ἀλλ ἐν ὕμνοις καὶ εὐωχίαις καὶ
θεῶν θυσίαις ἡ μουσική διὰ δὲ τοῦτο καὶ ἐπὶ τὸν τῶν ἀγαθῶν ζῆλον τὴν διάνοιαν
προτρέπεται ἀλλὰ καὶ λυπουμένων παρηγόρημα ὅθεν καὶ τοῖς πενθοῦσιν αὐλοὶ μελῳδοῦσιν
οἱ τὴν λύπην αὐτῶν ἐπικουφίζοντες
[619] Τοιαῦτα μὲν ὑπὲρ μουσικῆς λέγεται δὲ πρὸς ταῦτα τὸ μὲν πρῶτον ὅτι οὐκ
ἔστιν ἐκ προχείρου διδόμενον τὸ φύσει τῶν μελῶν τὰ μὲν εἶναι διεγερτικὰ τῆς ψυχῆς τὰ δὲ
κατασταλτικά παρὰ γὰρ τὴν ἡμετέραν δόξαν τὸ τοιοῦτο γίνεται ὥσπερ γὰρ ὁ τῆς βροντῆς
κτύπος καθά φασιν Ἐπικουρείων παῖδες οὐ θεοῦ τινος ἐπιφάνειαν σημαίνει ἀλλὰ τοῖς
ἰδιώταις καὶ δεισιδαίμοσι τοιοῦτος εἶναι δοξάζεται [620] ἐπεὶ καὶ ἄλλων σωμάτων ἐπ ἴσης
ἀλλήλοις προσκρουσάντων ὅμοιως ἀποτελεῖται κτύπος ὥσπερ καὶ μύλου περιαγομένου ἢ
χειρῶν συμπαταγουσῶν τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῶν κατὰ μουσικὴν μελῶν οὐ φύσει τὰ μὲν
τοῖά ἐστι τὰ δὲ τοῖα ἀλλ ὑφ ἡμῶν προσδοξάζεται
97
[617] Tambeacutem eram desse modo as melodias e cantos corais237 dos poetas traacutegicos
mantendo certa relaccedilatildeo natural tal como os ditos assim
Terra Maacutexima e eacuteter de Zeus
que eacute genitor dos homens e dos deuses
e ela que recebendo uacutemidas gotas pluviais
engendra os mortais
e gera o alimento e as raccedilas das feras
Por isso natildeo sem razatildeo
ela eacute considerada matildee de todos238
[618] Pois em geral a muacutesica natildeo eacute apenas um som ouvido em situaccedilotildees alegres mas
tambeacutem eacute ouvida em hinos oraccedilotildees e sacrifiacutecios aos deuses por isso tambeacutem o
pensamento239 eacute incitado ao zelo pelas coisas boas Daiacute tambeacutem eacute um consolo aos
entristecidos por essa razatildeo aos aflitos satildeo tocadas melodias no aulo aliviando a tristeza
deles
[619] Tais satildeo os argumentos a favor da muacutesica Mas diz-se contra essas ideias
primeiro que natildeo eacute prontamente concedido que por natureza240 algumas melodias excitam a
alma e outras tranquilizam241 Com efeito tal coisa eacute contraacuteria agrave nossa opiniatildeo Pois tal como
o estrondo do trovatildeo ndash segundo dizem os aprendizes242 de Epicuro243 ndash natildeo significa a epifania
de algum deus (embora isso seja suposto pelas pessoas comuns e supersticiosas) [620] visto
que outros corpos colidindo uns nos outros igualmente produzem um estrondo similar (como
quando um moinho gira ou quando matildeos batem palmas) do mesmo modo algumas melodias
musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada
por noacutes244
237 Em grego ldquostasimonrdquo Cf Aristoacuteteles Poeacutetica (1452 B) ldquoo estaacutesimo eacute um coral desprovido de anapestos etroqueusrdquo O anapesto eacute usado na entrada do coro composto de duas siacutelabas breves e uma longa ᴗ ᴗ ndash e otroqueu tem a forma ndash ᴗ ndash ᴗ ou ndash ᴗ ndash x e eacute mais adequado para danccedila
238 Euriacutepides (fr 839 Nauck)239 Em grego ldquodianoiardquo eacute um dos termos usados para se referir agrave atividade do intelecto240 Aquilo que eacute dito ldquopor naturezardquo diz respeito ao que existe independentemente de nossas representaccedilotildees
Todavia de acordo com o ceticismo pirrocircnico temos acesso apenas agravequilo que nos aparece por isso natildeopodemos afirmar ou negar algo sobre como as coisas satildeo por elas mesmas ou seja por natureza Ver seccedilatildeo41
241 Cf Filodemo De Mus(col 120)242 Parece haver uma certa ironia no modo como Sexto se refere aos disciacutepulos de Epicuro utilizando o termo
ldquopaidesrdquo (que traduzimos por ldquoaprendizesrdquo) que em grego significa ldquoescravosrdquo ldquoservosrdquo ldquocrianccedilasrdquo243 Tal afirmaccedilatildeo parece se referir a Lucreacutecio De rerum natura (VI 96 ss)244 Para Platatildeo e Aristoacuteteles as melodias tecircm certos caracteres (ethe) por natureza Essa visatildeo foi criticada
tambeacutem por Filodemo (De Mus col 88 e 96) A definiccedilatildeo das melodias pelo termo ldquoethosrdquo se daacute a partir daideia de que as melodias teriam por natureza a capacidade de influenciar na formaccedilatildeo do caraacuteter humanoincitando a alma a accedilotildees boas ou maacutes
98
τὸ αὐτὸ γοῦν μέλος τῶν μὲν ἵππων διεγερτικόν ἐστι τῶν δὲ ἀνθρώπων ἐν θεάτροις
ἀκουόντων οὐδαμῶς καὶ τῶν ἵππων δὲ τάχα οὐ διεγερτικόν ἐστιν ἀλλὰ ταρακτικόν [621]
Eἶτα κἂν τοιαῦτα ᾖ τὰ τῆς μουσικῆς μέλη οὐ διὰ τοῦτο καὶ ἡ μουσικὴ βιωφελὴς καθέστηκεν
οὐ γὰρ ὅτι δύναμιν ἔχει σωφρονιστικήν καταστέλλει τὴν διάνοιαν ἀλλὰ ᾗ περισπαστικήν
παρὸ καὶ ἡσυχασθέντων πως τῶν τοιούτων μελῶν πάλιν ὁ νοῦς ὡς ἂν μὴ θεραπευθεὶς ὑπ
αὐτῶν ἐπὶ τὴν ἀρχῆθεν ἀνακάμπτει διάνοιαν [622] ὅνπερ οὖν τρόπον ὁ ὕπνος ἢ ὁ οἶνος οὐ
λύει τὴν λύπην ἀλλ ὑπερτίθεται κάρον ἐμποιῶν καὶ ἔκλυσιν καὶ λήθην οὕτω τὸ ποιὸν μέλος
οὐ καταστέλλει λυπουμένην ψυχὴν ἢ περὶ ὀργὴν σεσοβημένην τὴν διάνοιαν ἀλλ εἴπερ
περισπᾷ
99
Portanto a mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute de modo algum para os
homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitante mas
perturbadora245 [621] Em segundo lugar ainda que a melodia da muacutesica seja desse modo
tambeacutem natildeo foi devido a isso que a muacutesica se estabeleceu como uacutetil para a vida246 Com
efeito natildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica refreia o pensamento mas porque
tem o poder de distrair Por conseguinte tais melodias tendo sido silenciadas novamente a
mente como se natildeo tivesse sido tratada pela melodia volta imediatamente ao estado de
pensamento inicial [622] Entatildeo do mesmo modo que o sono ou o vinho natildeo dissolve a
tristeza mas a sobrepassa o torpor produzindo enfraquecimento e esquecimento a melodia
desse tipo natildeo tranquiliza a alma entristecida ou o pensamento agitado pela raiva mas se faz
algo os distrai247
245 Esse argumento eacute baseado no primeiro Modo de Enesidemo sobre a variedade dos animais Nele mostra-seque a partir das mesmas coisas natildeo recebemos as mesmas representaccedilotildees por causa das diferenccedilas entre osanimais Segundo Sexto Empiacuterico isso se daacute devido agraves (1) diferenccedilas no modo como os animais satildeoproduzidos (HP I 41-43) agraves (2) diferenccedilas nas estruturas corporais (44-54) e agraves (3) diferenccedilas naspreferecircncias e aversotildees dos animais (55-58) Ao abordar essas diferenccedilas Sexto nunca daacute um exemploconcreto de como as coisas aparecem para os animais pois segundo Annas amp Barnes (1985 p 41) ldquoseuapelo agraves experiecircncias dos animais natildeo supotildee que noacutes humanos podemos saber como eacute ser natildeo-humanordquo Noque diz respeito agrave diferenccedila nas estruturas corporais Sexto argumenta por exemplo que as diferenccedilas nocanal auditivo e na constituiccedilatildeo das orelhas podem afetar o modo como o mesmo som eacute percebido (HP I50) Aleacutem disso no que diz respeito agraves diferentes preferecircncias aquilo que eacute agradaacutevel ao homem pode serdesagradaacutevel ou ateacute mortiacutefero para outro animal Apoacutes apresentar vaacuterios exemplos especiacuteficos acerca dessasdiferenccedilas Sexto conclui que ldquose as mesmas coisas satildeo desagradaacuteveis para alguns mas agradaacuteveis paraoutros e se prazer e desagradabilidade repousam nas representaccedilotildees entatildeo animais diferentes recebemdiferentes representaccedilotildees dos objetos externosrdquo (HP I 58) No caso de uma melodia o mesmo conjunto desons pode ser percebido de maneira diferente pelos homens e pelos animais Mas se os mesmos objetosaparecem de maneiras diferentes em funccedilatildeo das diferenccedilas entre os animais ldquoentatildeo noacutes devemos sercapazes de dizer como um objeto existente parece quando observado por noacutes mas sobre como ele eacute em suanatureza noacutes devemos suspender o juiacutezo Pois noacutes natildeo podemos decidir entre nossas percepccedilotildees e as dosoutros animais sendo noacutes mesmos uma parte da disputardquo (HP I 59) Assim no que diz respeito agrave melodiapara o ceacutetico podemos dizer como ela aparece para noacutes e como ela parece (para noacutes) afetar o cavalo masnatildeo podemos dizer se ela eacute excitante ou natildeo por natureza Ver seccedilotildees 41 e 431 (p 62)
246 A argumentaccedilatildeo a favor da muacutesica pauta-se em sua utilidade para a vida visto que eacute a partir de sua utilidadeque os filoacutesofos abordam a necessidade do ensino da muacutesica A criacutetica de Sexto Empiacuterico tal como a deFilodemo (De Mus col 137-144 e 149) contesta essa utilidade
247 Ver Filodemo De Mus (col 129 1-7)
100
[623] Ὃ τε Πυθαγόρας τὸ μὲν πρῶτον μάταιος ἦν τοὺς μεθύοντας ἀκαίρως σωφρονίζειν
βουλόμενος ἀλλὰ μὴ ἐκκλίνων εἶτα καὶ τούτῳ τῷ τρόπῳ ἐπανορθούμενος αὐτοὺς ὁμολογεῖ
πλεῖόν τι δύνασθαι τῶν φιλοσόφων πρὸς ἐπανόρθωσιν ἠθῶν τοὺς αὐλητάς [624] Tό τε τοὺς
Σπαρτιάτας πρὸς αὐλὸν καὶ λύραν πολεμεῖν τοῦ μικρῷ πρότερον εἰρημένου τεκμήριόν ἐστιν
ἀλλ οὐχὶ τοῦ βιωφελῆ τυγχάνειν τὴν μουσικήν καθάπερ δ οἱ ἀχθοφοροῦντες ἢ ἐρέσσοντες ἢ
ἄλλο τι τῶν ἐπιπόνων δρῶντες ἔργων κελεύουσιν εἰς τὸ ἀνθέλκειν τὸν νοῦν ἀπὸ τῆς κατὰ τὸ
ἔργον βασάνου οὕτω καὶ αὐλοῖς ἢ σάλπιγξιν ἐν πολέμοις χρώμενοι οὐ διὰ τὸ ἔχειν τι τῆς
διανοίας ἐπεγερτικὸν τὸ μέλος καὶ ἀνδρικοῦ λήματος αἴτιον ὑπάρχειν τοῦτο ἐμηχανήσαντο
ἀλλἀπὸ τῆς ἀγωνίας καὶ ταραχῆς ἀνθέλκειν ἑαυτοὺς σπουδάσαντες εἴγε καὶ στρόμβοις τινὲς
τῶν βαρβάρων βουκινίζουσι καὶ τυμπάνοις κτυποῦντες πολεμοῦσιν ἀλλ οὐδὲν τούτων ἐπ
ἀνδρείαν προτρέπεται
101
[623] E Pitaacutegoras primeiramente era um tolo desejando regular aqueles inapropriadamente
embriagados em vez de evitaacute-los aleacutem disso recorrendo a esse modo de correccedilatildeo ele aceita
que os auletas tecircm mais poder do que os filoacutesofos248 no que concerne agrave correccedilatildeo dos
caraacuteteres249 [624] E que os Espartanos fazem guerra ao som do aulo e da lira 250 eacute prova do
que foi dito um pouco antes mas natildeo de que a muacutesica eacute uacutetil251 para a vida Do mesmo modo
que os que carregam fardos ou remam ou cumprem tarefas ldquocantam lamentosrdquo252 para afastar
a mente da agonia do trabalho253 tambeacutem aqueles que usam aulos e saacutelpinges254 em batalhas
inventaram isso natildeo por terem alguma melodia estimulante do pensamento como causa de
coragem viril mas porque ansiavam afastar a si mesmos da agonia e da perturbaccedilatildeo255 ainda
que alguns baacuterbaros256 guerreiem assoprando257 conchas e ressoando tambores258 Entretanto
nada disso incita algueacutem agrave coragem
248 Os auletas sendo muacutesicos praacuteticos seriam inferiores em relaccedilatildeo aos filoacutesofos Na Poliacutetica (1339 B 1341B) Aristoacuteteles afirma que o muacutesico profissional pode ser considerado vulgar e que a praacutetica musical natildeo eacuteproacutepria para o homem livre visto que esta natildeo tem um fim em si mesma Filodemo utiliza o mesmo tipo deargumento contra Dioacutegenes da Babilocircnia cf Filodemo De Mus (IV col 126 35-40 136 10-21)
249 Ethos (ἦθος) diz respeito ao caraacuteter da alma Na Eacutetica a Nicocircmaco (1103A) Aristoacuteteles apresenta duasespeacutecies de virtudes a intelectual e a moral A virtude moral surge do haacutebito ldquodonde forma-se seu nome(ethike) [ἠθική] por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ethos [ἔθος] (haacutebito)rdquo Todos os elementos damuacutesica conteacutem um caraacuteter proacuteprio que eacute transmitido para a alma atraveacutes de um processo de imitaccedilatildeo CfAristides Quintiliano De Mus (218) e Filodemo De Mus (col 99-100)
250 Ver Filodemo De Mus (col 72 43-732 ) 251 A utilidade para a vida eacute o criteacuterio de acordo com o qual o ceacutetico condena algumas artes e natildeo outras Ver
seccedilotildees 41 (p 51-2) e 54252 ldquoKeleuosirdquo comumente significa ldquoincitarrdquo ou ldquodar ordensrdquo De acordo com Delattre (2002 p 425 n 6) agraves
vezes com acompanhamento musical Na Repuacuteblica (390 B) de Platatildeo aparece com o sentido teacutecnico deldquodar a cadecircnciardquo Delattre opta por traduzir o termo pela expressatildeo ldquocadencent leurs mouvementsrdquo
253 Um argumento a favor da muacutesica nesse contexto aparece em Quintiliano Inst (I X 16)254 Em grego ldquosalpinxrdquo instrumento de origem Etrusca parecido com um trompete consistindo de um tubo
reto de bronze ou latatildeo Era utilizado em contextos militares255 Ver Filodemo De Mus (col 69 7-12)256 De acordo com Greaves (1986 p 145 n 65) ldquoisso reflete uma crenccedila da parte de muitos Gregos de que
muitos baacuterbaros ou natildeo-Helenos eram naturalmente inferiores agravequeles de nacionalidade Grega Oargumento aqui eacute de que os baacuterbaros natildeo teriam a capacidade para o espiacuterito viril uma das virtudesrdquo NaPoliacutetica por exemplo Aristoacuteteles afirma que os ldquoHelenos satildeo senhores naturais de baacuterbarosrdquo (AristoacutetelesPol 1252 B)
257 Segundo Beacutelis (apud Delattre 2002 p 427 n 2) ldquoo verbo boukinizein remete agrave bucina trompa de guerrados romanosrdquo
258 Aristides Quintiliano (De mus 26) tambeacutem aborda as questotildees dos baacuterbaros serem civilizados atraveacutes damuacutesica e do uso da saacutelpinge para dar os comandos nas batalhas
102
[625] Tὰ δὲ αὐτὰ λεκτέον καὶ ἐπὶ τοῦ μηνίοντος Ἀχιλλέως καίτοι ἐρωτικοῦ ὄντος καὶ
ἀκρατοῦς οὐ παράδοξον τὴν μουσικὴν σπουδάζεσθαι [626] Nὴ Δί ἀλλὰ καὶ οἱ ἥρωες τὰς
ἑαυτῶν γυναῖκας ᾠδοῖς τισὶν ὡς σώφροσι φύλαξι παρακατετίθεντο καθάπερ ὁ Ἀγαμέμνων
τὴν Κλυταιμνήστραν ταῦτα δὲ ἤδη μυθολογούντων ἐστὶν ἀνδρῶν εἶτα καὶ παρὰ πόδας
αὑτοὺς διελεγχόντων πῶς γάρ εἴπερ μουσικὴ περὶ τῆς τῶν παθῶν ἐπανορθώσεως
ἐπιστεύετο τὸν μὲν Ἀγαμέμνονα ἡ Κλυταιμνήστρα ἐπὶ τῆς ἰδίας ἑστίας κατέκτανεν ὥσπερ
ldquoβοῦν ἐπὶ φάτνῃrdquo εἰς δὲ τοὺς Ὀδυσσέως οἴκους ἡ Πηνελόπη ὄχλον ἄσωτον ἐπιδέχεται
μειρακίων ἀεὶ δὲ τὰς ἐπιθυμίας αὐτῶν ἐλπιδοκοποῦσα καὶ παραύξουσα μοχθηρότερον καὶ
χαλεπώτερον τῆς ἐπὶ Ἴλιον στρατείας τὸν ἐν Ἰθάκῃ πόλεμον ἤγειρε τῷ γήμαντι [627] Kαὶ
μὴν εἰ οὔτε οἱ περὶ τὸν Πλάτωνα μουσικὴν ἀπεδέξαντο ῥητέον οὐ πρὸς εὐδαιμονίαν αὐτὴν
συντείνειν ἐπεὶ καὶ ἄλλοι μὴ λειπόμενοι τῆς τούτων ἀξιοπιστίας καθάπερ οἱ περὶ τὸν
Ἐπίκουρον ἠρνήσαντο ταύτην τὴν ἀντιποίησιν λέγομεν τοὐναντίον αὐτὴν ἀσύμφορον εἶναι
καὶ ἀργήν φίλοινον χρημάτων ἀτημελῆ
103
[625] Isso tambeacutem deve ser dito sobre a ira de Aquiles259 embora seja passional e
incontinente260 natildeo eacute contraacuterio agrave expectativa ele ser ansioso a respeito da muacutesica [626] Mas
por Zeus tambeacutem os heroacuteis confiavam suas mulheres a alguns cantores como guardiotildees da
temperanccedila delas tal como Agamecircnon fez com Clitemnestra Mas essas coisas satildeo mitos
contados pelos homens que imediatamente em seguida contradizem a si mesmos Com
efeito se realmente se acreditava que a muacutesica teria influecircncia na correccedilatildeo dos afetos como
Clitemnestra mataria Agamecircnon em sua proacutepria lareira como se fosse um ldquoboi na
manjedourardquo261 E como Peneacutelope admitiria na casa de Odisseu uma multidatildeo desesperada de
jovens e conduzindo-os a falsas esperanccedilas e aumentando o desejo deles provocaria para seu
marido a guerra em Iacutetaca que foi mais horriacutevel e mais difiacutecil do que a campanha de Troia
[627] Aleacutem disso mesmo se os seguidores de Platatildeo admitiram a muacutesica natildeo se deve dizer
que ela leva agrave felicidade visto que tambeacutem outros que natildeo satildeo inferiores em credibilidade
nessas coisas tal como os seguidores de Epicuro se negaram a assumir essas afirmaccedilotildees262
dizendo pelo contraacuterio que a muacutesica eacute prejudicial e ociosa amante do vinho e
desnecessaacuteria263
259 Cf Homero Iliacuteada (IX 186-9) Segundo Aristides Quintiliano (De Mus 210) o papel da muacutesica naeducaccedilatildeo eacute suficientemente confirmado por Homero ldquoAssim quando Aquiles na Iliacuteada quer se livrar dapaixatildeo por Briseida ele natildeo aparece cantando algo amoroso mas convida sua alma a se tornar virilrelembrando com a ciacutetara as faccedilanhas guerreiras dos antigosrdquo
260 Em grego ldquoacrasiardquo traduz-se por ldquoincontinecircnciardquo ldquofalta de autocontrolerdquo Cf Aristoacuteteles EN (1095 A)261 Homero Odisseia (XI 411)262 Pode-se compreender esse argumento agrave luz de um dos conceitos baacutesicos do ceticismo apresentado no
primeiro Modo de Agripa o conflito das opiniotildees (diaphonia) ldquode acordo com o qual noacutes descobrimos quetanto na vida comum quanto entre os filoacutesofos no que diz respeito a uma determinada questatildeo foialcanccedilado um impasse natildeo resolvido acerca do qual noacutes somos incapazes de alcanccedilar um veredito ()rdquo (HPI 165) Aleacutem disso esse argumento pode ser reportado ao segundo Modo de Enesidemo que aborda asdiferenccedilas entre os seres humanos (em funccedilatildeo das diferenccedilas do corpo e da alma) A esse respeito lemos queldquoa grande indicaccedilatildeo da vasta e ilimitada diferenccedila no intelecto dos seres humanos eacute a inconsistecircncia dasvaacuterias afirmaccedilotildees dos Dogmaacuteticos no que diz respeito agravequilo que pode ser apropriadamente escolhido o quepode ser evitado etcrdquo (HP I 85-6) Sexto Empiacuterico aponta que aquilo que escolhemos e evitamos estaacuteconectado agravequilo que eacute agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos e ldquoquando as mesmas coisas satildeo escolhidaspor algumas pessoas e evitadas por outras eacute loacutegico para noacutes inferir que essas pessoas natildeo satildeo afetadas damesma maneira pelas mesmas coisas visto que se fossem elas iriam do mesmo modo ter escolhido eevitado as mesmas coisasrdquo (HP I 87) O ceacutetico ainda acrescenta que ldquoenquanto os Dogmaacuteticos de maneiraegoiacutesta pretendem que a decisatildeo acerca dos fato deve ser dada a eles acima de todos os outros sereshumanos noacutes sabemos que essa pretensatildeo eacute absurda visto que eles proacuteprios fazem parte da disputa ()rdquo (HPI 89) Assim para o ceacutetico se a mesma coisa neste caso a muacutesica produz um determinado efeito para umou um grupo de seres humanos e natildeo para outros eacute impossiacutevel decidir quem estaacute certo a respeito de comoela eacute por natureza Sobre os Modos ver p 62
263 Euriacutepides Antiacuteope (fr 184 Nauck) Delattre (2002 p 229 n 1) chama atenccedilatildeo para uma relaccedilatildeo comDioacutegenes da Babilocircnia
104
[628] Eὐήθεις δέ εἰσι καὶ οἱ τὴν ἀπὸ ποιητικῆς χρείαν συμπλέκοντες αὐτῇ πρὸς εὐχρηστίαν
ἐπείπερ δύναται μέν τις ὡς καὶ ἐν τῷ πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ἐλέγομεν ἀνωφελῆ διδάσκειν
τὴν ποιητικήν οὐδὲν δὲ ἔλαττον κἀκεῖνο δεικνύναι ὅτι ἡ μὲν μουσικὴ περὶ μέλος
καταγινομένη μόνον τέρπειν πέφυκεν ἡ δὲ ποιητικὴ καὶ περὶ διάνοιαν καταγινομένη δύναται
συνωφελεῖν τε καὶ σωφρονίζειν
[629] Ἀλλ ὁ μὲν πρὸς τὰ ἐγκεχειρημένα λόγος ἐστὶ τοιοῦτος προηγουμένως δὲ
λέγεται καὶ κατὰ μουσικῆς ὡς εἴπερ ἐστὶ χρειώδης καὶ κατὰ τοῦτο λέγεται χρειοῦν παρόσον
μουσικευσάμενος πλεῖον παρὰ τοὺς ἰδιώτας τέρπεται πρὸς μουσικῶν ἀκροαμάτων ἢ
παρόσον οὐκ ἔστιν ἀγαθοὺς γενέσθαι μὴ προπαιδευθέντας ὑπ αὐτῶν [630] ἢ τῷ τὰ αὐτὰ
στοιχεῖα τυγχάνειν τῆς μουσικῆς καὶ τῶν κατὰ φιλοσοφίαν πραγμάτων εἰδήσεως ὁποῖόν τι
καὶ περὶ γραμματικῆς ἀνώτερον ἐλέγομεν ἢ τῷ κατὰ ἁρμονίαν διοικεῖσθαι τὸν κόσμον
καθὼς φάσκουσι Πυθαγορικῶν παῖδες δέεσθαί τε ἡμᾶς τῶν μουσικῶν θεωρημάτων πρὸς
τὴν τῶν ὅλων εἴδησιν ἢ τῷ τὰ ποιὰ μέλη ἠθοποιεῖν τὴν ψυχήν [631] Oὔτε δὲ τῷ τοὺς
μουσικοὺς πλέον τέρπεσθαι παρὰ τοὺς ἰδιώτας ἀπὸ τῶν ἀκροαμάτων λέγοιτ ἂν χρειοῦν ἡ
μουσική πρῶτον μὲν γὰρ οὐκ ἀναγκαία ἰδιώταις ἡ τέρψις καθάπερ αἱ ἐπὶ λιμῷ ἢ δίψει ἢ
κρύει γινόμεναι ὑπὸ πόματος ἢ ἀλέας
105
[628] E tolos satildeo tambeacutem os que ligam a muacutesica aos benefiacutecios do uso da poeacutetica em funccedilatildeo
de sua utilidade visto que - tal como diziacuteamos no Contra os Gramaacuteticos - algueacutem pode
ensinar que a poeacutetica eacute inuacutetil264 e igualmente pode-se mostrar que a muacutesica dizendo
respeito somente agrave melodia produz por natureza somente prazer enquanto a poeacutetica dizendo
respeito ao pensamento pode tanto ser beneacutefica quanto levar agrave temperanccedila265
[629] Esses satildeo os argumentos contra as ideias que foram discutidas Mas a primeira
e principal discussatildeo sobre a muacutesica eacute se de fato ela eacute uacutetil e ela eacute dita uacutetil na medida em que
aqueles que cultivaram o gosto pela muacutesica em comparaccedilatildeo agraves pessoas comuns tecircm mais
prazer com concertos musicais266 ou na medida em que natildeo acontece de os homens virem a
ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicos [630] ou porque acontece dos
elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofia267 (tal
como aquilo que dissemos acima sobre a gramaacutetica268) ou porque o cosmos eacute governado de
acordo com a harmonia - segundo afirmam os aprendizes de Pitaacutegoras269 ndash e noacutes necessitamos
dos teoremas musicais para a conhecimento do todo ou porque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da alma270 [631] Nem a muacutesica deveria ser dita uacutetil porque os muacutesicos tecircm
mais prazer com os concertos do que as pessoas comuns271 Primeiro porque certamente esse
prazer natildeo eacute necessaacuterio272 para as pessoas comuns tal como o prazer que surge da bebida ou
do calor quando se tem fome sede ou frio
264 Cf M I 277-80 onde o mesmo tipo de argumento eacute apresentado contra a utilidade da Gramaacutetica Vertambeacutem M I 296-8
265 Uma das criacuteticas principais de Filodemo a Dioacutegenes da Babilocircnia eacute que ele atribui agraves melodias consideradasdesprovidas de razatildeo os efeitos das poesias que elas acompanham
266 Em nota agrave traduccedilatildeo de Delattre Beacutelis (apud Delattre 2002 p 429 n 4) chama atenccedilatildeo para a traduccedilatildeo dotermo akroama que significa literalmente ldquocoisa ouvidardquo como ldquoconcertordquo ou ldquorecitalrdquo
267 Filodemo tambeacutem aborda a relaccedilatildeo da muacutesica com outras artes e com a Filosofia Ver Filodemo De Mus(col 136-7)
268 No Contra os Gramaacuteticos (M I 72) Sexto aponta que para Ptolomeu a Gramaacutetica natildeo eacute uma arteconjectural (sujeita a acidentes como a navegaccedilatildeo e a medicina) mas eacute semelhante agrave muacutesica e agrave FilosofiaSobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54-5)
269 Filodemo menciona alguns neopitagoacutericos no que diz respeito a esta concepccedilatildeo Ver De Mus (col 145 17)270 Cf Filodemo De Mus (col 38 1-19 e 117 2-42)271 Filodemo De Mus (col 42-3)272 A ideia de que a muacutesica proporciona um prazer natildeo necessaacuterio eacute defendida pelos Epicuristas ver Filodemo
De Mus (col 151 29-31)
106
[632] εἶτα κἂν τῶν ἀναγκαίων ὑπάρχωσι δυνάμεθα χωρὶς μουσικῆς ἐμπειρίας αὐτῶν
ἀπολαύειν νήπια γοῦν ἐμμελοῦς μινυρίσματος κατακούοντα κοιμίζεται καὶ τὰ ἄλογα τῶν
ζῴων ὑπὸ αὐλοῦ καὶ σύριγγος κηλεῖται οἵ τε δελφῖνες ὡς λόγος αὐλῶν μελῳδίαις
τερπόμενοι προσνήχονται τοῖς ἐρεσσομένοις σκάφεσιν ὧν οὐδὲ ὁπότερον ἔοικε μουσικῆς
ἔχειν ἐμπειρίαν ἢ ἔννοιαν [633] Kαὶ διὰ τοῦτο μή ποτε ὃν τρόπον χωρὶς ὀψαρτυτικῆς καὶ
οἰνογευστικῆς ἡδόμεθα ὄψου ἢ οἴνου γευσάμενοι ὧδε καὶ χωρὶς μουσικῆς ἡσθείημεν ἂν
τερπνοῦ μέλους ἀκούσαντες τοῦ μὲν ὅτι τεχνικῶς γίνεται μᾶλλον παρὰ τὸν ἰδιώτην
ἀντιλαμβανoacuteμενοι τοῦ δὲ ἡστικοῦ πάθους μηδὲν πλείω κερδαίνοντες [634] Ὥστε οὐχ
αἱρετὸν μουσικὴ παρόσον τοὺς εἰδήμονας αὐτῆς ἐπὶ πλεῖον τέρπεσθαι συμβέβηκεν καὶ μὴν
οὐδὲ τῷ προοδοποιεῖν τὴν ψυχὴν εἰς σοφίαν ἀνάπαλιν γὰρ ἀντικόπτει καὶ ἀντιβαίνει πρὸς τὸ
τῆς ἀρετῆς ἐφίεσθαι εὐαγώγους εἰς ἀκολασίαν καὶ λαγνείαν παρασκευάζουσα τοὺς νέους
[635] ἐπείπερ ὁ μουσικευσάμενος
μολπαῖσιν ἡσθεὶς τοῦτ ἀεὶ θηρεύεται
ἀργὸς μὲν οἴκοις καὶ πόλει γενήσεται
φίλοισι τ οὐθείς ἀλλ ἄφαντος οἴχεται
ὅταν γλυκείας ἡδονῆς ἥσσων τις ᾖ
[636] Kατὰ ταὐτὰ δὲ οὐδὲ ἀπὸ τῶν αὐτῶν στοιχείων ὁρμᾶσθαι ταύτην τε καὶ φιλοσοφίαν
εἰσακτέον τὸ καταὐτὴν χρειῶδες ὡς αὐτόθεν ἐστὶ συμφανές λείπεται ἄρα τῷ καθ ἁρμονίαν
τὸν κόσμον διοικεῖσθαι ἢ τῷ ἠθοποιοῖς μέλεσι κεχρῆσθαι χρειώδη πρὸς εὐδαιμονίαν λέγειν
αὐτὴν τυγχάνειν
107
[632] E mesmo que estes venham a ser prazeres necessaacuterios noacutes podemos aproveitaacute-los sem
experiecircncia musical273 Crianccedilas satildeo colocadas para dormir ouvindo um gorjear meloacutedico274 e
os animais irracionais satildeo encantados pelo aulo e pela siacuteringe275 Assim os golfinhos segundo
o relato276 por terem prazer com as melodias dos aulos nadam ao redor dos cascos dos navios
que estatildeo sendo remados mas nenhum deles parece ter experiecircncia ou compreensatildeo musical
[633] E por causa de tais coisas do mesmo modo que sem a arte da culinaacuteria e a arte da
degustaccedilatildeo de vinhos noacutes temos prazer em saborear a comida e o vinho tambeacutem sem a arte
da muacutesica noacutes temos prazer ouvindo melodias prazerosas Embora por um lado os artistas
profissionais no que concerne agraves regras da arte apreendam mais do que as pessoas comuns
por outro eles natildeo recebem nada mais no que diz respeito agrave afecccedilatildeo prazerosa [634] Entatildeo
a muacutesica natildeo eacute escolhida porque os especialistas tecircm mais prazer nela Tambeacutem natildeo eacute
escolhida por preparar a alma de antematildeo para a sabedoria277 Inversamente ela resiste e vai
contra o desejo pela virtude tornando os jovens facilmente conduzidos agrave intemperanccedila e agrave
luxuacuteria278 [635] porque aquele que cultivou o gosto pela muacutesica
ter prazer nas danccedilas ele sempre busca
ele seraacute ocioso em casa e na cidade
natildeo sendo ningueacutem para os amigos invisiacutevel ele vai embora
a qualquer hora quando for vencido pelo doce prazer279
[636] A partir dessas mesmas ideias a utilidade da muacutesica natildeo deve ser introduzida pelo fato
de ambas a muacutesica e a Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos como eacute
imediatamente evidente Resta entatildeo dizer que acontece dela ser uacutetil para a felicidade
porque o cosmos eacute ordenado segundo a harmonia ou porque se usa melodias para a formaccedilatildeo
do caraacuteter
273 Ver seccedilatildeo 52 (p 75-6)274 Platatildeo nas Leis (790 D - E) fala de como as matildees potildeem os bebecircs para dormir cantando para eles Beacutelis
(apud Delattre 2002 p 431 n 4) aponta que essa pode ser uma criacutetica agrave afirmaccedilatildeo de Platatildeo visto que ascrianccedilas natildeo seriam colocadas para dormir soacute pela melodia mas pela sua combinaccedilatildeo com o balanccedilo
275 Em grego ldquosyrinxrdquo Instrumento da famiacutelia dos aerofones semelhante agrave ldquoflauta de Patilderdquo na sua forma maiscomum
276 Esse relato aparece em vaacuterias fontes Ver Euriacutepedes Electra (435) Plutarco Banquete dos Sete Saacutebios (160E-162 B) Heroacutedoto (1 24)
277 Ver seccedilatildeo 52 (p 76-7)278 Ver Filodemo De Mus (col 127 28-30)279 Euriacutepides Antiacuteope (fr 187 Nauck)
108
ὧν τὸ μὲν τελευταῖον ἤδη διαβέβληται ὡς οὐχ ὑπάρχον ἀληθές [637] τὸ δὲ κατὰ ἁρμονίαν
διοικεῖσθαι τὸν κόσμον ποικίλως δείκνυται ψεῦδος εἶτα καὶ ἂν ἀληθὲς ὑπάρχῃ οὐδὲν
τοιοῦτο δύναται πρὸς μακαριότητα καθάπερ οὐδὲ ἡ ἐν τοῖς ὀργάνοις ἁρμονία
Ἀλλὰ τὸ μὲν πρῶτον εἶδος τῆς πρὸς τοὺς μουσικοὺς ἀντιρρήσεως τοιουτότροπόν
ἐστιν [638] τὸ δὲ δεύτερον καὶ τῶν τῆς μουσικῆς ἀρχῶν καθαπτόμενον πραγματικωτέρας
μᾶλλον ἔχεται ζητήσεως οἷον ἐπεὶ ἡ μουσικὴ ἐπιστήμη τίς ἐστιν ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
ἐνρύθμων τε καὶ ἐκρύθμων πάντως ἐὰν δείξωμεν ὅτι οὔτε τὰ μέλη ὑποστατά ἐστιν οὔτε οἱ
ῥυθμοὶ τῶν ὑπαρκτῶν πραγμάτων τυγχάνουσιν ἐσόμεθα παρεστακότες καὶ τὴν μουσικὴν
ἀνυπόστατον λέγωμεν δὲ πρῶτον περὶ μελῶν καὶ τῆς τούτων ὑποστάσεως μικρὸν ἄνωθεν
καταρξάμενοι
[639] Φωνὴ τοίνυν ἐστίν ὡς ἄν τις ἀναμφισβητήτως ἀποδοίη τὸ ἴδιον αἰσθητὸν
ἀκοῆς καθάπερ γὰρ μόνης ὁράσεως ἔργον ἐστὶ τὸ χρωμάτων ἀντιλαμβάνεσθαι καὶ μόνης
ὀσφρήσεως τὸ εὐωδῶν καὶ δυσωδῶν ἀντιποιεῖσθαι καὶ ἤδη γεύσεως τὸ γλυκέων ἢ πικρῶν
αἰσθάνεσθαι οὕτω γένοιτ ἂν ἴδιον αἰσθητὸν ἀκοῆς ἡ φωνή [640] Tῆς δὲ φωνῆς ἡ μέν τίς
ἐστιν ὀξεῖα ἡ δὲ βαρεῖα μεταφορικώτερον ἀπὸ τῶν περὶ τὴν ἁφὴν αἰσθητῶν ἑκατέρου
τούτων λαμβάνοντος τὴν προσηγορίαν καθάπερ γὰρ τὸ κεντοῦν καὶ τέμνον τὴν ἁφὴν ὀξὺ
προσηγόρευσεν ὁ βίος καὶ τὸ θλάσιν ἐμποιοῦν καὶ πιέζον βαρύ τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῆς
φωνῆς τὴν μὲν οἱονεὶ τέμνουσαν τὴν ἀκοὴν ὀξεῖαν τὴν δὲ ὥσπερ θλῶσαν βαρεῖαν [641] καὶ
οὐ ξένον ὥσπερ φαιάν τινα καὶ μέλαιναν καὶ λευκὴν φωνὴν ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ὅρασιν
αἰσθητῶν κεκλήκαμεν ὧδε καὶ ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ἁφὴν ἐχρησάμεθά τισι μεταφοραῖς Ὅταν
μὲν οὖν ἐπἴσης ἐκφέρηται ἡ φωνὴ καὶ ὑπὸ μίαν τάσιν ὡς μηδένα περισπασμὸν γίνεσθαι τῆς
αἰσθήσεως ἤτοι ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἢ τὸ ὀξύτερον τότε ὁ τοιοῦτος ἦχος φθόγγος καλεῖται
παρὸ καὶ οἱ μουσικοὶ ὑπογράφοντές φασι ldquoφθόγγος ἐστὶν ἐμμελοῦς φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν
τάσινrdquo
109
Desses o uacuteltimo jaacute foi desconsiderado como natildeo verdadeiro [637] e que o cosmos eacute
ordenado segundo a harmonia mostra-se falso de varios modos E ainda que porventura isso
fosse verdadeiro tal coisa natildeo tem poder sobre a bem aventuranccedila tal como a harmonia natildeo
tem poder sobre os instrumentos musicais280
De tal tipo eacute o primeiro modo de refutaccedilatildeo contra os muacutesicos [638] jaacute o segundo
atacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais pragmaacutetica281 Por exemplo
visto que a muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e
do que natildeo eacute riacutetmico282 se mostrarmos plenamente que nem as melodias existem283 e nem os
ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existe Falemos
primeiro sobre a melodia e sua existecircncia comeccedilando com algumas questotildees preliminares
[639] Ora o som eacute como algueacutem poderia indisputavelmente definir o sensiacutevel
proacuteprio da audiccedilatildeo284 Pois tal como a tarefa somente da visatildeo eacute apreender as cores e a do
olfato opor as fragracircncias boas e ruins e igualmente a do paladar eacute perceber o doce e o
amargo do mesmo modo o som seria o sensiacutevel proacuteprio do ouvir [640] Dos sons um tipo
eacute grave e outro agudo ambos utilizando metaforicamente nomes com base nos sensiacuteveis
proacuteprios do tato pois assim como as pessoas chamaram o que pica e corta o tato ldquoagudordquo e o
que esmaga e pressiona ldquograverdquo do mesmo modo tambeacutem o som na medida em que o que
corta o ouvir eacute ldquoagudordquo e na medida em que o que esmaga - como se o fizesse - eacute ldquograverdquo
[641] Tambeacutem natildeo eacute estranho que tal como chamamos algum som de cinza preto ou branco
por causa dos objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel da visatildeo assim tambeacutem usamos os objetos do
tato para as metaacuteforas Entatildeo sempre que o som eacute emitido igualmente e na mesma tensatildeo
quando natildeo haacute distraccedilatildeo da percepccedilatildeo tanto em direccedilatildeo ao grave quanto ao agudo entatildeo tal
som eacute chamado ldquonotardquo Para o que tambeacutem os muacutesicos285 definem de maneira geral ldquonota eacute a
incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo286
280 Isso porque a harmonia do cosmos seria inaudiacutevel e o efeito produzido pelos instrumentos eacute audiacutevelAristoacuteteles no De Caelo (290 B - 291 A) apresenta uma refutaccedilatildeo agrave teoria pitagoacuterica da harmonia dasesferas rejeitando a ideia de que a harmonia do cosmos produziria algum tipo de som Sobre a harmoniados instrumentos ver Aristides Quintiliano De Mus (217-9)
281 O termo que deriva de ldquopragmatikosrdquo nesta passagem eacute comumente traduzido ou por ldquopraacuteticordquo ou porldquoteacutecnicordquo O mesmo termo aparece no uacuteltimo paraacutegrafo do texto
282 Definiccedilatildeo proacutexima agrave de Dioacutegenes da Babilocircnia apresentada por Filodemo De Mus (col 34 31-33 e 11234-36)
283 Aquilo que existe substancialmente de maneira independente das nossas representaccedilotildees284 Definiccedilatildeo do som dada por Dioacutegenes da Babilocircnia seguindo a de Aristoacuteteles285 Ou seja os teoacutericos da muacutesica286 Definiccedilatildeo dada por Aristoacutexeno El Harm (115 14-15)
110
[642] Tῶν δὲ φθόγγων οἱ μέν εἰσιν ὁμόφωνοι οἱ δὲ οὐχ ὁμόφωνοι καὶ ὁμόφωνοι μὲν οἱ μὴ
διαφέροντες ἀλλήλων κατὀξύτητα καὶ βαρύτητα οὐχ ὁμόφωνοι δὲ οἱ μὴ οὕτως ἔχοντες
[643] τῶν δὲ ὁμοφώνων ὡς καὶ τῶν οὐχ ὁμοφώνων τινὲς μὲν ὀξεῖς τινὲς δὲ βαρεῖς
καλοῦνται καὶ πάλιν τῶν οὐχ ὁμοφώνων οἱ μὲν διάφωνοι προσαγορεύονται οἱ δὲ σύμφωνοι
καὶ διάφωνοι μὲν οἱ ἀνωμάλως καὶ διεσπασμένως τὴν ἀκοὴν κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ
ὁμαλώτερον καὶ ἀμερίστως [644] Σαφέστερον δὲ μᾶλλον ἔσται τὸ ἑκατέρου γένους ἰδίωμα
τῇ ἀπὸ τῶν πρὸς γεῦσιν ποιοτήτων μεταβάσει χρησαμένων ἡμῶν ὥσπερ τοίνυν τῶν γευστῶν
τὰ μὲν τοιαύτην ἔχει κρᾶσιν ὥστε μονοειδῶς καὶ λείως κινεῖν τὴν αἴσθησιν ὁποῖον τὸ
οἰνόμελι καὶ ὑδρόμελι τὰ δὲ οὐχ ὡσαύτως οὐδὲ ὁμοίως καθάπερ τὸ ὀξύμελι (ἑκάτερον γὰρ
τούτων τῶν μιγμάτων τὴν ἴδιον ἐντυποῖ ποιότητα τῇ γεύσει) οὕτω τῶν φθόγγων διάφωνοι
μέν εἰσιν οἱ ἀνωμάλως τὴν ἀκοὴν καὶ διεσπασμένως κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ ὁμαλώτεροι
ἀλλὰ γὰρ ἡ μὲν διαφορὰ τῶν φθόγγων τοιαύτη τίς ἐστι παρὰ μουσικοῖς [645] περιγράφεται
δέ τινα πρὸς τούτων διαστήματα καθ ἃ καὶ ἡ φωνὴ κινεῖται ἤτοι ἐπὶ τὸ ὀξύτερον
ἀναβαίνουσα ἢ ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἀνιεμένη παρ ἣν αἰτίαν κατὰ τὸ ἀνάλογον τῶν
διαστημάτων τούτων τὰ μὲν σύμφωνα τὰ δὲ διάφωνα προσηγόρευται
111
[642] Mas das notas algumas satildeo homofocircnicas e outras natildeo homofocircnicas287 Homofocircnicas
satildeo as que natildeo diferem umas das outras segundo ldquoagudezardquo e ldquogravidaderdquo e natildeo homofocircnicas
satildeo aquelas que natildeo satildeo desse modo288 [643] Das homofocircnicas como tambeacutem das natildeo
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquoagudasrdquo outras ldquogravesrdquo e novamente das natildeo-
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquodissonantesrdquo e outras ldquoconsonantesrdquo As dissonantes
sendo aquelas que movem a audiccedilatildeo anocircmala e desordenadamente e as consonantes regulada
e continuamente [644] Mas as propriedades de cada gecircnero estaratildeo mais claras quando
tivermos feito a analogia289 com as qualidades do paladar Ora assim como das coisas que
podem ser saboreadas algumas tecircm uma mistura de tal modo que movem a sensaccedilatildeo
uniforme e suavemente tal como o vinho de mel e o hidromel e outras natildeo sendo assim natildeo
a movem similarmente tal como o oximel290 (pois cada uma dessas coisas misturadas
imprime sua proacutepria qualidade ao paladar) do mesmo modo das notas dissonantes satildeo as
que movem o ouvido anocircmala e desordenadamente consonantes as que o movem de maneira
regulada De acordo com os muacutesicos essa eacute entatildeo a diferenccedila entre as notas [645] Aleacutem
disso satildeo definidos por eles alguns intervalos de acordo com os quais o som se move
subindo em direccedilatildeo ao agudo ou descendo em direccedilatildeo ao grave Por isso de modo anaacutelogo
dos intervalos alguns satildeo chamados consonantes e outros dissonantes
287 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 437 n 3) Sexto Empiacuterico deveria ter utilizado o adjetivoldquohomotocircnicasrdquo e natildeo ldquohomofocircnicasrdquo Isso porque os muacutesicos antigos distinguiam entre as notashomofocircnicas (enquanto aquelas que se encontram em oitavas diferentes) e as notas homotocircnicas (as mesmasnotas na mesma oitava)
288 A muacutesica grega antiga tem como elemento primaacuterio de sua constituiccedilatildeo o tetracorde que eacute um conjunto dequatro notas separadas por trecircs graus As notas que formam a quarta justa do tetracorde satildeo ditas sons fixosHavia duas maneiras de se agrupar os tetracordes para se constituir uma escala (sistema) por conjunccedilatildeoformando um heptacorde ou por disjunccedilatildeo formando um octacorde Ambos abrangem um intervalo deoitava a consonacircncia (symphonia)
289 Metabasis eacute um termo relacionado agrave escola empiacuterica de medicina com a qual o ceticismo pirrocircnicoapresenta afinidades e da qual Sexto Empiacuterico foi um dos representantes A medicina empiacuterica funda-se naexperiecircncia e esta se daacute atraveacutes da observaccedilatildeo direta (autopsia ou teresis) pela atenccedilatildeo agrave histoacuteria mdash ou sejaagraves observaccedilotildees anteriormente feitas e registradas por outros mdash e finalmente pela passagem do semelhanteao semelhante (he tou homoiou metabasis) tambeacutem chamada ldquoinduccedilatildeordquo ldquoanalogiardquo ou ldquotransferecircnciardquo CfAllen (2010 p 232)
290 Mistura de mel e vinagre utilizada na medicina na qual cada um dos elementos manteacutem seu saborparticular natildeo gerando um sabor proacuteprio da mistura Cf Delattre (2002 p 439 n 1) A comparaccedilatildeoaparece tambeacutem em contexto musical nos Problemas de Aristoacuteteles ldquo() o composto eacute mais agradaacutevel queo natildeo composto se se adquirir a percepccedilatildeo de ambos os elementos simultaneamente Por conseguinte ovinho eacute mais agradaacutevel que o oximel pelo fato de se combinarem melhor entre si as cousas misturadas pelanatureza do que por noacutesrdquo (Aristoacuteteles Prob 922 A)
112
[646] καὶ σύμφωνα μὲν ὁπόσα ὑπὸ συμφώνων φθόγγων περιέχεται διάφωνα δὲ ὁπόσα ὑπὸ
διαφώνων τῶν δὲ συμφώνων διαστημάτων τὸ μὲν πρῶτον καὶ ἐλάχιστον διὰ τεσσάρων οἱ
μουσικοὶ προσαγορεύουσι τὸ δὲ μετὰ τοῦτο μεῖζον διὰ πέντε καὶ τοῦ διὰ πέντε μεῖζον τὸ διὰ
πασῶν [647] πάλιν τε τῶν διαφώνων διαστημάτων ἐλάχιστον μέν ἐστι καὶ πρῶτον παρ
αὐτοῖς ἡ καλουμένη δίεσις δεύτερον δὲ τὸ ἡμιτόνιον ὅ ἐστι διπλοῦν τῆς διέσεως τρίτον ὁ
τόνος ὅς ἐστι διπλασίων τοῦ ἡμιτονίου [648] Oὐ μὴν ἀλλ ὃν τρόπον ἅπαν διάστημα κατὰ
μουσικὴν ἐν φθόγγοις ἔχει τὴν ὑπόστασι οὕτω καὶ πᾶν ἦθος τὸ δἔστι τι γένος μελῳδίας
καθὰ γὰρ τῶν ἀνθρωπίνων ἠθῶν τινὰ μέν ἐστι σκυθρωπὰ καὶ στιβαρώτερα ὁποῖα τὰ τῶν
ἀρχαίων ἱστοροῦσιν τὰ δὲ εὐένδοτα πρὸς ἔρωτας καὶ οἰνοφλυγίας καὶ ὀδυρμοὺς καὶ
οἰμωγάς οὕτω τὶς μὲν μελῳδία σεμνά τινα καὶ ἀστεῖα ἐμποιεῖ τῇ ψυχῇ κινήματα τὶς δὲ
ταπεινότερα καὶ ἀγεννῆ [649] καλεῖται δὲ κατὰ κοινὸν ἡ τοιουτότροπος μελῳδία τοῖς
μουσικοῖς ἦθος ἀπὸ τοῦ ἤθους εἶναι ποιητική καθάπερ καὶ τὸ χλωρὸν δέος τὸ χλωροποιόν
καὶ τὸ ldquoνότοι βαρυήκοοι ἀχλυώδεις καρηβαρικοὶ νωθροὶ διαλυτικοίrdquo ἀντὶ τοῦ τούτων
δραστικοί [650] Tῆς δὲ κοινῆς μελῳδίας ταύτης τὸ μέν τι χρῶμα λέγεται τὸ δὲ ἁρμονία τὸ
δὲ διάτονον ὧν ἡ μὲν ἁρμονία αὐστηροῦ τινος ἤθους καὶ σεμνότητος κατασκευαστική πως
ὑπῆρχεν τὸ δὲ χρῶμα λιγυρόν τί ἐστι καὶ θρηνῶδες τὸ δὲ διάτονον ἔντραχυ καὶ ὑπάγροικον
113
[646] Os consonantes satildeo todos aqueles contidos pelas notas consonantes e os dissonantes os
contidos pelas notas dissonantes Dos intervalos consonantes os muacutesicos chamam o primeiro
e menor de quarta o maior depois desse de quinta e o maior que o de quinta eles chamam de
oitava [647] Novamente dos intervalos dissonantes o primeiro e menor eacute chamado entre os
muacutesicos de diacuteese291 o segundo eacute o semitom que eacute o dobro da diesis o terceiro eacute o tom o qual
eacute o dobro do semitom [648] Contudo natildeo apenas todo intervalo em muacutesica tem sua
existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de melodia Pois
tal como dos caracteres humanos alguns satildeo mais graves e mais fortes (como contam que
eram os caracteres dos antigos) outros satildeo facilmente suscetiacuteveis ao erotismo e agrave embriaguez
agraves lamentaccedilotildees e agraves reclamaccedilotildees Do mesmo modo uma melodia produz movimentos nobres
e refinados na alma outra produz movimentos mais baixos e soacuterdidos292 [649] Uma melodia
de tal tipo eacute comumente chamada caraacuteter pelos muacutesicos por ser capaz de produzir caraacuteter
como tambeacutem o medo eacute chamado de paacutelido293 por sua capacidade de empalidecer e tambeacutem
considera-se ldquoos ventos do sul difiacuteceis de se ouvir enevoados causadores de dor de cabeccedila
indolentes e relaxantesrdquo294 em vez de consideraacute-los causas desses efeitos [650] Dessa
melodia comum295 uma eacute dita ldquocromaacuteticardquo296 outra ldquoharmoniardquo297 e outra ldquodiatocircnicardquo298
Destas a harmonia eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um
caraacuteter claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseiro299
291 O menor intervalo da escala de acordo com o gecircnero Assim na escala diatocircnica a diesis corresponde a umsemitom e na enarmocircnica a um quarto de tom Cf Aristoacutexeno El Harm (21)
292 Filodemo De Mus (col 116 21-36)293 Cf Homero Iliacuteada (VII 479)294 Hipoacutecrates Aforismos (III 5) A citaccedilatildeo de Hipoacutecrates eacute literal Entretanto no contexto do aforismo na obra
de Hipoacutecrates natildeo haacute espaccedilo para a confusatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito apontada por Sexto EmpiacutericoClaramente os ventos do sul satildeo apresentados como causa dos efeitos citados
295 Nos dois sons intermediaacuterios (sons moacuteveis) do tetracorde as entonaccedilotildees diferem segundo o ldquogecircnerordquo doacorde A variaccedilatildeo das entonaccedilotildees dos sons moacuteveis caracteriza os trecircs gecircneros de progressatildeo meloacutedica damuacutesica grega o diatocircnico (tom ndash tom - semitom) o cromaacutetico (terccedila menor ndash semitom - semitom) e oenarmocircnico (terccedila maior ndash frac14 de tom ndash frac14 de tom)
296 Sexto Empiacuterico utiliza o termo ldquokhromardquo (que significa primeiramente ldquocorrdquo) para se referir agravequilo quedesde o seacuteculo IV aC era comumente chamado ldquoto khromatikonrdquo referindo-se ao gecircnero cromaacutetico
297 O termo ldquoharmoniardquo designa tambeacutem um dos gecircneros meloacutedicos mais conhecido como enarmocircnico298 Beacutelis (apud Delattre 2002 p 441 n 6) chama atenccedilatildeo para o fato de que desde a eacutepoca de Aristoacutexeno as
escalas eram listadas da menor para a maior (enarmocircnica cromaacutetica e diatocircnica) no entanto essa ordemaparece curiosamente deturpada por Sexto Empiacuterico tanto que a explicaccedilatildeo que se segue eacute apresentada naordem tradicional e natildeo na ordem que foi anunciada Sobre os gecircneros ver Aristoacutexeno El Harm (246-52)
299 Cf Euclides Introduccedilatildeo harmocircnica (3 7)
114
[651] ἀλλὰ δὴ πάλιν τὸ μὲν ἁρμονικὸν μέλος τῶν μελῳδουμένων ἀδιαίρετόν ἐστι τὸ δὲ
διάτονον καὶ τὸ χρῶμα ἰδικωτέρας τινὰς εἶχε διαφοράς δύο μὲν τὸ διάτονον τήν τε τοῦ
μαλακοῦ διατόνου καλουμένην καὶ τὴν τοῦ συντόνου τρεῖς δὲ τὸ χρῶμα τὸ μὲν γάρ τι αὐτοῦ
τονικὸν καλεῖται τὸ δὲ ἡμιτόνιον τὸ δὲ μαλακόν
[652] Πλὴν ἐκ τούτων συμφανὲς ὅτι πᾶσα ἡ κατὰ μελῳδίας θεωρία παρὰ τοῖς
μουσικοῖς οὐκ ἐν ἄλλῳ τινὶ τὴν ὑπόστασιν εἶχεν εἰ μὴ τοῖς φθόγγοις καὶ διὰ τοῦτο
ἀναιρουμένων αὐτῶν τὸ μηδὲν ἔσται ἡ μουσική πῶς οὖν καὶ ἐρεῖ τις ὅτι οὐκ εἰσὶ φθόγγοι ἐκ
τοῦ φωνὴν αὐτοὺς κατὰ γένος ὑπάρχειν φήσομεν καὶ τὴν φωνὴν ἀνύπαρκτον ἡμῖν ἐν τοῖς
σκεπτικοῖς ὑπομνήμασι δεδεῖχθαι ἀπὸ τῆς τῶν δογματικῶν μαρτυρίας [653] Oἵ τε γὰρ ἀπὸ
τῆς Κυρήνης φιλόσοφοι μόνα φασὶν ὑπάρχειν τὰ πάθη ἄλλο δὲ οὐδέν ὅθεν καὶ τὴν φωνὴν
μὴ οὖσαν πάθος ἀλλὰ πάθους ποιητικήν μὴ γίγνεσθαι τῶν ὑπαρκτῶν οἵ γέ τοι περὶ τὸν
Δημόκριτον καὶ Πλάτωνα πᾶν αἰσθητὸν ἀναιροῦντες συναναιροῦσι καὶ τὴν φωνήν αἰσθητόν
τι δοκοῦσαν πρᾶγμα ὑπάρχειν [654] καὶ γὰρ ἄλλως εἰ ἔστι φωνή ἤτοι σῶμά ἐστιν ἢ
ἀσώματον οὔτε δὲ σῶμά ἐστιν ὡς οἱ Περιπατητικοὶ διὰ πολλῶν διδάσκουσιν οὔτε
ἀσώματος ὡς οἱ ἀπὸ τῆς Στοᾶς οὐκ ἄρα ἔστι φωνή
115
[651] Novamente das melodias que satildeo cantadas a enarmocircnica eacute invariaacutevel jaacute a diatocircnica e
a cromaacutetica comportam algumas variaccedilotildees especiacuteficas A diatocircnica tem duas a chamada
diatocircnica suave e a intensa A cromaacutetica tem trecircs delas uma eacute chamada tocircnica outra
semitocircnica e outra suave300
[652] Aleacutem disso a partir dessas coisas eacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos
sobre a melodia natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notas Por isso destruindo
as notas a muacutesica seraacute nada Como entatildeo algueacutem declararaacute que as notas natildeo existem Noacutes
diremos a partir do fato das notas existirem conforme o gecircnero do som e noacutes mostramos em
nossas observaccedilotildees ceacuteticas301 a partir dos testemunhos dos dogmaacuteticos que o som natildeo existe
[653] Com efeito os filoacutesofos Cirenaicos302 dizem que apenas existem as afecccedilotildees mais
nada por essa razatildeo o som natildeo sendo uma afecccedilatildeo mas produtor de afecccedilatildeo natildeo vem a ser
algo existente Os disciacutepulos de Demoacutecrito e Platatildeo destruindo todos os objetos sensiacuteveis
destruiacuteram ao mesmo tempo o som303 que se supotildee ser um objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel304
[654] Aleacutem disso se o som existe ou ele eacute corpoacutereo ou incorpoacutereo nem eacute corpoacutereo tal
como os Peripateacuteticos tanto ensinam nem incorpoacutereo tal como ensinam os Estoicos305 Logo
natildeo existe som
300 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 443 n 1) trata-se aqui de uma maacute compreensatildeo de SextoEmpiacuterico em relaccedilatildeo a uma passagem de Aristoacutexeno A afirmaccedilatildeo diz respeito agrave distribuiccedilatildeo e ao tamanhodos intervalos em cada escala Enquanto na enarmocircnica haacute apenas uma possibilidade de construccedilatildeo deintervalos na cromaacutetica e na diatocircnica haacute vaacuterias
301 Para Richard Bett (2013 p 177) esse parece ser o modo que Sexto faz referecircncia agraves obras hoje conhecidascomo Contra os Loacutegicos Contra os Fiacutesicos e Contra os Eacuteticos isso pode ser observado a partir de outrasreferecircncias (ver M I 26 29) Essa passagem especificamente parece fazer referecircncia ao Contra os Loacutegicosonde Sexto tambeacutem argumenta contra a existecircncia do som Cf M VIII 131
302 Muito embora os Cirenaicos assim como os ceacuteticos considerem que apenas as afecccedilotildees satildeo apreensiacuteveisenquanto os ceacuteticos consideram a tranquilidade da alma como objetivo de sua escola os Cirenaicosconsideram o prazer da percepccedilatildeo sensiacutevel Aleacutem disso eles satildeo dogmaacuteticos por sustentarem firmemente acrenccedila de que os objetos externos agrave percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo inapreensiacuteveis Cf HP I 215 Ver seccedilatildeo 41
303 A mesma questatildeo aparece no Contra os Loacutegicos (M VIII 56) onde Sexto acusa Demoacutecrito e Platatildeo derejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel e com isso confundirem natildeo soacute a verdade sobre as coisas que satildeo mastambeacutem os conceitos sobre elas Isso porque de acordo com Sexto (M VIII 6) Platatildeo e Demoacutecritosupunham que ldquoapenas as coisas inteligiacuteveis satildeo verdadeirasrdquo Demoacutecrito por considerar que nadaperceptiacutevel existe por natureza e Platatildeo por considerar que as coisas perceptiacuteveis estatildeo sempre vindo a sermas nunca satildeo efetivamente
304 Sobre os Cirenaicos no Contra os Loacutegicos (Cf M VII 191) o mesmo tipo de argumento aparecerelacionado ao paladar
305 No Contra os Gramaacuteticos (M I 155) Sexto Empiacuterico aponta uma distinccedilatildeo feita por alguns gramaacuteticos arespeito das partes corpoacuterea e incorpoacuterea do discurso O som de uma palavra seria a parte corpoacutereaenquanto o significado seria incorpoacutereo
116
[655] Ἀλλὧδέ τις κὰκείνως ἐπιχειρήσειε λέγειν ὡς εἰ μὴ ἔστι ψυχή οὐδὲ αἰσθήσεις μέρη
γὰρ ταύτης ὑπῆρχον εἰ δὲ μή εἰσιν αἱ αἰσθήσεις οὐδὲ τὰ αἰσθητά πρὸς αἰσθήσεις γὰρ ἡ
τούτων ὑπόστασις νοεῖται εἰ δὲ μὴ αἰσθητά οὐδὲ φωνή εἶδος γάρ τι τῶν αἰσθητῶν ὑπῆρχεν
ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ψυχή καθὼς ἐν τοῖς περὶ αὐτῆς ὑπομνήμασιν ἐδείκνυμεν οὐκ ἄρα ἔστι
φωνή [656] Kαὶ μὴν εἰ μήτε βραχεῖά ἐστι φωνὴ μήτε μακρά οὐκ ἔστι φωνή οὔτε δὲ
βραχεῖά ἐστιν οὔτε μακρὰ φωνή ὡς ἐν τοῖς πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ὑπεμνήσαμεν περὶ
συλλαβῆς καὶ λέξεως ζητοῦντες πρὸς τούτους οὐκ ἄρα ἔστι φωνή [657] Πρὸς τούτοις ἡ
φωνὴ οὔτε ἐν ἀποτελέσματι οὔτε ἐν ὑποστάσει νοεῖται ἀλλ ἐν γενέσει καὶ χρονικῇ
παρεκτάσει τὸ δὲ ἐν γενέσει νοούμενον γίνεται οὐδέπω δ ἔστιν ὥσπερ οὐδὲ οἰκία γινομένη
ἢ ναῦς καὶ ἄλλα παμπληθῆ εἶναι λέγεται τοίνυν οὐθέν ἐστι φωνή [658] καὶ ἄλλοις δὲ
συχνοῖς εἰς τοῦτο ἔνεστι λόγοις χρῆσθαι περὶ ὧν ὡς ἔφην ἐν τοῖς Πυρρωνείοις
ὑπομνηματιζόμενοι διεξῄειμεν νυνὶ δὲ φωνῆς μὴ οὔσης οὐδὲ φθόγγος ἔστιν ὃς ἐλέγετο
φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν τάσιν φθόγγου δὲ μὴ ὄντος οὐδὲ διάστημα μουσικὸν καθέστηκεν οὐ
συμφωνία οὐ μελῳδία οὐ τὰ ἐκ τούτων γένη διὰ τοῦτο οὐδὲ μουσική ἐπιστήμη γὰρ ἐλέγετο
ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
[659] Ὅθεν ἀπ ἄλλης ἀρχῆς ὑποδεικτέον ὅτι κἂν τούτων ἀποστῶμεν διὰ τὴν
ἐγχειρηθησομένην ἐπὶ τῆς ῥυθμοποιίας ἀπορίαν ἀνυπόστατος καθέστηκεν ἡ μουσική εἰ γὰρ
μηδέν ἐστι ῥυθμός οὐδὲ ἐπιστήμη τις ἔσται περὶ ῥυθμοῦ ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ῥυθμός ὡς
παραστήσομεν οὐκ ἄρα ἔστι τις ἐπιστήμη περὶ ῥυθμοῦ [660] Ὡς γὰρ πολλάκις εἰρήκαμεν
ῥυθμὸς σύστημά ἐστιν ἐκ ποδῶν ὁ δὲ ποῦς τὸ συνεστὼς ἐξ ἄρσεως καὶ θέσεως ἡ δὲ ἆρσις
καὶ ἡ θέσις ἐν ποσότητι χρόνου θεωρεῖται ὧν τινὰς μὲν ἐπεῖχεν ἡ θέσις τινὰς δὲ ἡ ἆρσις
χρόνους καθάπερ ἐκ μὲν στοιχείων συλλαβαὶ ἐκ δὲ συλλαβῶν λέξεις συντίθενται οὕτως ἐκ
μὲν τῶν χρόνων οἱ πόδες ἐκ δὲ τῶν ποδῶν οἱ ῥυθμοὶ γίνονται
117
[655] Alguma outra pessoa pode tentar dizer que tal como natildeo existe alma natildeo existem
sentidos pois estes existem enquanto parte daquela E se natildeo existem sentidos natildeo existem
os sensiacuteveis pois a existecircncia destes eacute concebida em relaccedilatildeo aos sentidos E se natildeo haacute
objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo haacute som pois ele existe enquanto um tipo de objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Mas a alma eacute nada tal como mostramos nas observaccedilotildees306 a respeito
dela logo natildeo existe som [656] Tambeacutem se o som natildeo eacute curto nem longo natildeo existe som
o som natildeo eacute curto nem longo tal como observamos no Contra os Gramaacuteticos307 em nossa
investigaccedilatildeo sobre siacutelaba e palavra Logo natildeo existe som [657] Aleacutem disso o som nem eacute
concebido como um efeito nem como substacircncia mas como algo que vem a ser e que se
estende no tempo aquilo que eacute concebido como algo que vem a ser estaacute vindo a ser e ainda
natildeo existe assim como natildeo soacute uma casa ou uma nau que estatildeo vindo a ser mas uma
multitude de coisas natildeo satildeo ditas existentes Portanto o som eacute nada308 [658] Mas existem
muitos argumentos que podem ser usados para isso os quais como eu disse foram
completamente relatados em nossas observaccedilotildees pirrocircnicas309 Agora natildeo existindo som
tambeacutem natildeo existe nota a qual era dita ldquoa incidecircncia do som em uma tensatildeordquo natildeo existindo
nota natildeo se estabelece nenhum intervalo musical nem consonacircncia nem melodia nem os
gecircneros delas Por isso natildeo existe muacutesica visto que ela foi dita ciecircncia do meloacutedico e do natildeo
meloacutedico
[659] Dado isso deve-se indicar a partir de outro princiacutepio que mesmo que nos
afastemos dessas questotildees a muacutesica se estabelece como natildeo-existente atraveacutes da aporia que
seraacute discutida em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo riacutetmica Pois se o ritmo eacute nada natildeo existiraacute a ciecircncia
do que eacute o ritmo mas de fato o ritmo eacute nada tal como seraacute mostrado logo natildeo existe essa
ciecircncia do ritmo [660] De fato tal como dissemos muitas vezes ritmo eacute um sistema
composto de peacutes e o peacute eacute composto de aacutersis (levantamento) e theacutesis (abaixamento) Aacutersis e
theacutesis satildeo considerados uma quantidade de tempo dos quais aacutersis ocupa alguns tempos e
theacutesis outros Assim como as siacutelabas satildeo compostas de elementos e as palavras de siacutelabas
tambeacutem os peacutes satildeo compostos de tempos e os ritmos vecircm a ser a partir dos peacutes310
306 Ou eacute uma obra perdida ou Sexto faz referecircncia a algumas passagens de suas obras que abordam a mesmaquestatildeo Ver M X 284 HP II 31 e III 186
307 Cf M I 124-130308 O mesmo argumento aparece em M VIII 131 Ver M VI 53309 Ver nota 306310 Na liacutengua e na muacutesica grega a submissatildeo agrave riacutetmica do texto ldquose deve ao fato de a pronuacutencia e a prosoacutedia
estarem fundamentadas nas duraccedilotildees das siacutelabasrdquo (Reinach 2011 [1890] p 77) Na muacutesica o ritmo eramarcado pelo movimento corporal de levantar e abaixar o peacute (ndash ᴗ ᴗ ndash ndash e ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ por exemplo equivalem auma batida de dois tempos e um levantamento de dois tempos) Visto que a divisatildeo riacutetmica se daacute a partir dadivisatildeo silaacutebica natildeo podemos comparar a pulsaccedilatildeo da muacutesica moderna (com maior intensidade no primeiro
118
[661] Ἐὰν οὖν δείξωμεν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος ἕξομεν συναποδεδειγμένον ὅτι οὐδὲ πόδες
ὑπάρξουσιν διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ οἱ ῥυθμοί ἐξ ἐκείνων τὴν σύστασιν λαμβάνοντες ᾧ
ἀκολουθήσει τὸ μηδὲ ἐπιστήμην εἶναί τινα περὶ ῥυθμούς πῶς οὖν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος
ἤδη μὲν παρεστήσαμεν ἐν τοῖς Πυρρωνείοις οὐδὲν δὲ ἧττον καὶ τὰ νῦν παραστήσομεν ἐπὶ
ποσόν [662] Eἰ γὰρ ἔστι τι χρόνος ἤτοι πεπέρασται ἢ ἄπειρός ἐστιν οὔτε δὲ πεπέρασται
ἐπεὶ ἐροῦμέν ποτε γεγονέναι χρόνον ὅτε χρόνος οὐκ ἦν καὶ ἔσεσθαί ποτε χρόνον ὅτε χρόνος
οὐκ ἔσται οὔτε ἄπειρος καθέστηκεν ἔστι γάρ τι αὐτοῦ παρῳχηκὸς καὶ ἐνεστὼς καὶ μέλλον
ὧν ἑκάτερον εἰ μὲν οὐκ ἔστιν πεπέρασται ὁ χρόνος εἰ δ ἔστιν ἔσται ἐν τῷ παρόντι καὶ ὁ
παρῳχηκὼς καὶ ὁ μέλλων ὅπερ ἄτοπον οὐκ ἄρα ἔστι χρόνος [663] Tό γε μὴν ἐξ
ἀνυπάρκτων συνεστὼς ἀνύπαρκτόν ἐστιν ὁ δὲ χρόνος ἔκ τε τοῦ παρῳχημένου καὶ μηκέτ
ὄντος καὶ ἐκ τοῦ μέλλοντος μηδέπω δὲ ὄντος συνεστὼς ἀνύπαρκτος ἔσται [664] Ἄλλως τε
εἰ μὲν ἀμερής ἐστιν ὁ χρόνος πῶς τὸ μέν τι αὐτοῦ παρῳχημένον τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον
λέγομεν εἰ δὲ μεριστός ἐστιν ἐπεὶ πᾶν τὸ μεριστὸν ὑπό τινος αὐτοῦ μέρους καταμετρεῖται
ὡς πῆχυς μὲν ὑπὸ παλαιστοῦ ὁ παλαιστὴς δὲ ὑπὸ δακτύλου δεήσει καὶ αὐτὸν ὑπό τινος τῶν
αὐτοῦ μερῶν καταμετρεῖσθαι [665] οὔτε δὲ τῷ ἐνεστῶτι δυνατὸν καταμετρεῖν τοὺς ἄλλους
χρόνους ἐπείπερ ὁ γινόμενος καὶ ὁ ἐνεστὼς χρόνος ὁ αὐτὸς ἔσται κατ αὐτοὺς παρῳχημένος
καὶ μέλλων παρῳχημένος μὲν ὅτι τὸν παρῳχημένον καταμετρεῖ χρόνον μέλλων δὲ ὅτι τὸν
μέλλοντα ὅπερ ἄτοπον οὐ τοίνυν τινὶ τῶν λειπομένων δυοῖν τὸν ἐνεστῶτα καταμετρητέον
δι ἣν αἰτίαν οὐδὲ ταύτῃ λεκτέον εἶναί τινα χρόνον [666] Πρὸς τούτοις ὁ χρόνος τριμερής
ἐστι καὶ τὸ μὲν ἔχει παρῳχηκὸς τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον ὧν τὸ μὲν παρῳχημένον οὐκέτι
ἔστιν τὸ δὲ μέλλον οὔπω ἔστιν τὸ δὲ ἐνεστὼς ἤτοι ἀμερές ἐστιν ἢ μεριστόν ἀλλ ἀμερὲς μὲν
οὐκ ἂν εἴη ἐν ἀμερεῖ μὲν γὰρ οὐδὲν δύναται γίνεσθαι μεριστόν ὥς φησι Τίμων οἷον τὸ
γίνεσθαι τὸ φθείρεσθαι
tempo do compasso) com a batida de peacute na muacutesica grega aleacutem disso os ritmos comeccedilam tanto com a batidaquanto com a elevaccedilatildeo de peacute
119
[661] Entatildeo se tivermos mostrado que o tempo eacute nada noacutes teremos concomitantemente
mostrado que natildeo existem peacutes e a partir disso que os ritmos natildeo existem visto que eles satildeo
compostos de peacutes Consequentemente disso se seguiraacute que natildeo haacute ciecircncia do ritmo Mas
como Que o tempo natildeo existe jaacute foi estabelecido nas Pirronianas311 mas nem por isso
deixaremos de estabelececirc-lo brevemente tambeacutem agora [662] Se existe algum tempo ou ele
eacute limitado ou ilimitado Ele natildeo eacute limitado pois se fosse diriacuteamos que em algum momento
houve um tempo em que o tempo natildeo existia e que em algum momento haveraacute um tempo em
que natildeo existiraacute o tempo Ele tambeacutem natildeo eacute considerado ilimitado pois algo dele eacute passado e
presente e futuro e se cada um deles natildeo existir o tempo eacute limitado e se existir tanto o
passado quanto o futuro existiratildeo ao mesmo tempo no presente o que eacute absurdo312 Logo natildeo
existe o tempo [663] E ainda aquilo que eacute composto de inexistentes eacute inexistente O tempo
sendo composto de passado que natildeo existe mais e de futuro que ainda natildeo existe seraacute
inexistente313 [664] Aleacutem disso se o tempo eacute indivisiacutevel como dizemos que o passado o
presente e o futuro satildeo parte dele Se ele eacute divisiacutevel visto que tudo que eacute divisiacutevel eacute medido
por uma parte de si mesmo (como o antebraccedilo pela palma e a palma pelo dedo) seraacute
necessaacuterio que o tempo seja medido por uma de suas proacuteprias partes [665] Mas natildeo eacute
possiacutevel medir os outros tempos pelo presente visto que o tempo presente e que vem a ser
seraacute ele mesmo tanto passado quanto futuro Seraacute passado porque mede o tempo passado e
futuro porque mede o tempo futuro o que eacute absurdo Portanto tambeacutem o presente natildeo pode
ser medido por um dos tempos restantes Por essa razatildeo natildeo se pode dizer existir algum
tempo314 [666] Aleacutem disso o tempo eacute tripartido e uma parte eacute passado outra presente outra
futuro Destas o passado natildeo eacute mais o futuro ainda natildeo eacute e o presente ou eacute divisiacutevel ou
indivisiacutevel Mas ele natildeo seraacute indivisiacutevel pois como diz Timon no indivisiacutevel nada divisiacutevel
pode vir a ser tal como o devir e o perecer315
311 Refere-se possivelmente agraves passagens sobre o tema encontradas em outros escritos ou agrave obra perdidamencionada em M VI 58 Os mesmos argumentos contra o conceito de tempo apresentados no Contra osMuacutesicos aparecem de maneira breve nas Hipotiposes Pirronianas (HP III 136-150) e mais aprofundada noContra os Fiacutesicos (M X 189-214)
312 Ver especificamente HP III 140-1 e M X 189313 Cf HP III 142 e M X 192314 Cf HP III 143 e M X 193-6315 Cf HP III 144 e M X 197 No Contra os Fiacutesicos o mesmo fragmento de Timon eacute mencionado
120
[667] Kαὶ ἄλλως εἴπερ ἀμερές ἐστι τὸ ἐνεστὼς τοῦ χρόνου οὔτε ἀρχὴν ἔχει ἀφ ἧς ἄρχεται
οὔτε πέρας ἐφ ὃ καταλήγει διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ μέσον καὶ οὕτως οὐκ ἔσται ὁ ἐνεστὼς χρόνος
εἰ δὲ μεριστός ἐστιν εἰ μὲν εἰς τοὺς μὴ ὄντας χρόνους μερίζεται οὐκ ἔσται χρόνος εἰ δ εἰς
τοὺς ὄντας χρόνους οὐκ ἔσται ὅλος ὁ χρόνος ἀλλὰ τῶν μερῶν αὐτοῦ τινὰ μὲν ἔσται τινὰ δὲ
οὐκ ἔσται τοίνυν οὐδέν ἐστι χρόνος διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ πόδες οὐδὲ ῥυθμοί οὐδ ἡ περὶ τοὺς
ῥυθμοὺς ἐπιστήμη
[668] Τοσαῦτα πραγματικῶς καὶ πρὸς τὰς τῆς μουσικῆς εἰπόντες ἀρχὰς ἐν τοσούτοις
τὴν πρὸς τὰ μαθήματα διέξοδον ἀπαρτίζομεν
121
[667] Por outro lado se a parte presente do tempo eacute indivisiacutevel ela natildeo tem um princiacutepio
onde ela comeccedila nem um limite no qual ela termina e por isso tambeacutem natildeo tem um meio
Assim natildeo haveraacute o tempo presente Se ele for divisiacutevel pelos tempos que natildeo satildeo natildeo
haveraacute tempo e se for divisiacutevel pelos tempos que natildeo existem o tempo natildeo existiraacute inteiro
mas algumas partes dele existiratildeo e algumas natildeo316 Portanto o tempo eacute nada e por isso nem
os peacutes nem os ritmos nem a ciecircncia acerca dos ritmos [existem]317
[668] Tendo dito tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica
noacutes encerramos nossa discussatildeo contra as disciplinas
316 Cf M X 198-200317 Argumento baseado no segundo Modo de Agripa
122
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Elaboramos nossa traduccedilatildeo e nossos comentaacuterios ao Contra os Muacutesicos de Sexto
Empiacuterico visando explicaacute-lo tanto no que diz respeito aos interesses da musicologia quanto
aos estudos do ceticismo pirrocircnico tendo em vista a escassez de ediccedilotildees que faccedilam referecircncia
a essa obra no Brasil buscando auxiliar sua compreensatildeo enquanto fonte sobre o papel da
Muacutesica na Antiguidade
Tomamos como ponto de partida a dicotomia entre teoria e praacutetica musical tal como
apresentada na criacutetica ceacutetica agrave teoria musical da Antiguidade O termo mousike designou
enquanto fenocircmeno sonoro tanto o conjunto que englobava palavra harmonia e ritmo
quanto puramente a arte dos sons Enquanto conceito metafiacutesico a mousike foi considerada
sob uma perspectiva matemaacutetica a ordem encontrada na muacutesica sendo derivada das relaccedilotildees
matemaacuteticas que subjazem tambeacutem agrave ordem do cosmos
A mousike era considerada uacutetil para a sociedade e necessaacuteria agrave educaccedilatildeo porque se
acreditava que ela teria o poder de alterar o caraacuteter do ouvinte por recuperar a harmonia da
alma ao imitar a harmonia do universo Mas a presenccedila da muacutesica na sociedade natildeo
implicava no incentivo indiscriminado de sua praacutetica Contrariamente para Platatildeo sua
praacutetica deveria ser restrita e regulada por leis e para Aristoacuteteles a muacutesica enquanto uma das
Artes Liberais deveria ser ensinada com a finalidade de desenvolver a capacidade de avaliar
a boa muacutesica e fruiacute-la de maneira correta a praacutetica musical enquanto parte desse
aprendizado consistia apenas em um meio jamais em um fim
Foi Aristoacutexeno quem abordou a mousike enquanto ciecircncia autocircnoma voltando-se agraves
relaccedilotildees entre os sons e natildeo mais agrave metafiacutesica (e consequentemente agrave teoria do ethos)
Mesmo mantendo um discurso considerado dogmaacutetico do ponto de vista ceacutetico Aristoacutexeno
pode ser considerado um dos precursores318 da questatildeo da autonomia da muacutesica enfatizando
o fenocircmeno sonoro como ponto de partida para a teoria musical que para ele estava deveras
descolada da praacutetica de seu tempo Essa questatildeo tambeacutem aparece em Filodemo como uma
reaccedilatildeo agrave supervalorizaccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo moral da sociedade Filodemo
ainda que de maneira dogmaacutetica questiona a utilidade da muacutesica em funccedilatildeo do seu suposto
poder de alterar o caraacuteter do ouvinte e com isso contribuir para a felicidade humana para
ele ela natildeo proporciona mais do que o simples prazer
No Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico constata-se que a criacutetica que se daacute por318 O registro mais antigo a que temos acesso que aborda a questatildeo da autonomia da muacutesica no pensamento
grego eacute o Papiro de Hibeh
123
essas duas vias (epistemoloacutegica e eacutetica) natildeo estaacute especificamente vinculada a uma defesa da
autonomia da muacutesica mas antes apresenta-se como uma refutaccedilatildeo a um certo modo de se
elaborar teorias a respeito das coisas
Observamos que na Antiguidade as artes fundadas na razatildeo entre elas a mousike
eram levadas em consideraccedilatildeo apenas por sua funccedilatildeo propedecircutica para a Filosofia Essa
subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia que permaneceu presente na Enkyklios Paideia do
periacuteodo imperial subsidia a elaboraccedilatildeo do Contra os Professores destinado justamente a
essas a discutir essas tekhnai Sexto parte dessa concepccedilatildeo das tekhnai como subordinadas agrave
Filosofia porque essa teria sido a visatildeo dominante dos pensadores ndash por ele considerados
dogmaacuteticos ndash de sua eacutepoca
Ao considerar que a investigaccedilatildeo das disciplinas Estudos Ciacuteclicos se daacute depois da
investigaccedilatildeo da filosofia visando ali tambeacutem encontrar a verdade Sexto Empiacuterico nega agrave
filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdade Nesse sentido Sexto abre a
possibilidade para se considerar as tekhnai em dois sentidos enquanto tekhnai teoacutericas
dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e enquanto praacuteticas autocircnomas sejam dogmaacuteticas ou
natildeo Desse modo seu ataque abre espaccedilo para se pensar a possibilidade da autonomia das
tekhnai em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Em nossa interpretaccedilatildeo sobre a finalidade do ceticismo pirrocircnico consideramos que o
meacutetodo argumentativo ceacutetico visa mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e
sua precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe externamente
agraves nossas representaccedilotildees Sob essa perspectiva no que diz respeito agraves tekhnai
compartilhamos da visatildeo de Pellegrin de que ldquoo tratado Contra os Muacutesicos demonstra bem
que natildeo se trata em ultima anaacutelise de chegar a uma forccedila igual de argumentos opostos mas
antes de condenar a abordagem dogmaacutetica dos teoacutericos da muacutesicardquo (Pellegrin 2002 p 46-7)
Sob essa perspectiva o que Sexto Empiacuterico condena em cada uma das disciplinas ldquoeacute o desvio
dogmaacutetico que acompanha quase sempre sua incontestaacutevel utilidade praacuteticardquo (Pellegrin 2002
p 19) Esse desvio estaria situado natildeo na praacutetica das tekhnai mas antes no discurso sobre
elas em funccedilatildeo da ldquotentaccedilatildeo dos homens das artes pela teoriardquo (Pellegrin 2002 p 20) ou da
tentaccedilatildeo dos filoacutesofos em relaccedilatildeo a ela
Se a refutaccedilatildeo ceacutetica se propotildee a tarefa de mostrar a inconsistecircncia teoacuterica de cada
uma das tekhnai em funccedilatildeo da pretensatildeo de verdade dos discursos dogmaacuteticos dos
professores no caso da muacutesica eacute a teoria musical sob seus aspectos teacutecnicos e em funccedilatildeo de
sua utilidade que deve ser questionada
124
Assim no Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico concentra sua argumentaccedilatildeo contra as
teorias dogmaacuteticas que consideram a muacutesica uacutetil porque se o sentido fundamental de uma
tekhnai se daacute em funccedilatildeo de sua utilidade ao se mostrar que a muacutesica natildeo tem as propriedades
a ela atribuiacutedas ela se tornaria inuacutetil e com isso seu estatuto de tekhne ficaria comprometido
Aleacutem disso Sexto desconstroacutei os conceitos baacutesicos sobre os quais a teoria musical estaacute
baseada mostrando a inconsistecircncia ou ausecircncia de fundamento de toda a teoria musical
Essa condenaccedilatildeo agrave conduta dogmaacutetica em relaccedilatildeo agraves tekhnai se daacute porque como
vimos haacute um sentido em que as tekhnai natildeo satildeo condenadas pelo ceacutetico Pelo contraacuterio
enquanto parte do criteacuterio praacutetico pirrocircnico a possibilidade do exerciacutecio de uma tekhne livre
de dogmatismo eacute fundamental para a coerecircncia dessa filosofia
Enquanto disciplina da Enkyklios Paideia a teoria musical eacute refutada por ser ldquoserva
de primeira ordemrdquo da Filosofia mas por outro lado as artes aprovadas pelo ceacutetico estatildeo
ligadas agrave experiecircncia (empeiria) que para ele natildeo depende das demonstraccedilotildees racionais
proacuteprias da ciecircncia para se estabelecer Por isso a muacutesica enquanto ldquoexperiecircncia em
instrumentosrdquo ou seja a muacutesica praacutetica natildeo eacute refutada
No Contra os Muacutesicos a teoria musical eacute refutada sobretudo em funccedilatildeo da
associaccedilatildeo da utilidade da muacutesica ao seu pretenso poder de afetar a alma do ouvinte Se esse
suposto poder natildeo estaacute na melodia mas apenas em nossa opiniatildeo ao se eliminar a crenccedila
adicional de que a muacutesica teria certos atributos por natureza restaria apenas a muacutesica praacutetica
executada pelo instrumentista independentemente da funccedilatildeo atribuiacuteda a ela pelos teoacutericos
A refutaccedilatildeo ceacutetica agraves teorias musicais da Antiguidade apresenta-se como uma criacutetica
de modo algum ultrapassada justamente porque nos faz revisitar importantes questotildees da
esteacutetica musical A contraposiccedilatildeo entre proposiccedilotildees acerca do que eacute a muacutesica de seu papel na
sociedade explicita a limitaccedilatildeo do debate a dois principais modos possiacuteveis de compreendecirc-la
(representado na histoacuteria recente pela oposiccedilatildeo entre idealismo e formalismo) e ao mesmo
tempo coloca em xeque a dicotomia (e frequente hierarquizaccedilatildeo) entre teoria e praacutetica
musical presente ainda hoje no pensamento daqueles que trabalham com o ensino de
muacutesica
Se considerarmos a argumentaccedilatildeo ceacutetica como uma mostra do dogmatismo que
permeia as mais diversas teses de toda a teoria sobre muacutesica e ainda se fizermos um
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo e transpusermos para a aacuterea da muacutesica as bases daquilo que
possivelmente seria uma tekhne natildeo-dogmaacutetica de acordo com o meacutetodo ceacutetico eacute possiacutevel
vislumbrar uma tekhne musical onde o discurso surja e emane da praacutetica e natildeo o contraacuterio
125
(Ora se todo o conhecimento musical estudado hoje surgiu inevitavelmente da experiecircncia
sendo apenas posteriormente formalizado em teorias isso natildeo seria uma grande inovaccedilatildeo)
A atualidade das questotildees suscitadas no combate ao dogmatismo das disciplinas dos
Estudos Ciacuteclicos ndash que deixando de lado a ascensatildeo e queda das mais variadas verdades ao
longo dos seacuteculos satildeo as mesmas disciplinas que ainda compotildeem nosso curriacuteculo ndash revela o
ainda natildeo superado abismo entre teoria e praacutetica que nossos meacutetodos de ensino-aprendizado
frequentemente impotildeem Sob essa oacutetica se jaacute descartamos as teses pitagoacutericas de uma muacutesica
inaudiacutevel se a muacutesica existe ‒ para noacutes ‒ enquanto um fenocircmeno sonoro a refutaccedilatildeo de
Sexto Empiacuterico faz lembrar que sem a praacutetica (ou ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo) a muacutesica
simplesmente ldquonatildeo existerdquo e por conseguinte qualquer teoria a respeito dela tambeacutem natildeo
126
REFEREcircNCIAS
EMPIRICUS Sextus Against the Professors Prous Mathematikous Traduccedilatildeo de R GBury Cambridge Harvard University Press 1933 (Loeb Classical Library)
_________________ Contra los Profesores Traduccedilatildeo de Jorge Bergua Cavero MadridGredos Editorial 1997
________ Against the Logicians Traduccedilatildeo de Richard Bett New York CambridgeUniversity Press 2005
DELATTRE D Contre les musiciens In PELLEGRIN (Org) Sextus Empiricus Contreles professeurs Paris Eacuteditions du Seuil 2002
GREAVES D D Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ Against the musicians Editedand translated with introduction and notes London University of Nebraska Press 1986
ALLEN J Pyrronism and medicine In BETT R (Org) The Cambridge companion toancient scepticism Cambridge Cambridge University Press 2010
ANDERSON W D Ethos and Education in Greek Music Cambridge Harvard UniversityPress 1966
ANNAS J BARNES J The Modes of Scepticism Ancient Texts and ModernInterpretations Cambridge Cambridge University Press 1985
ARISTOPHANES The Clouds Traduccedilatildeo de Jeffrey Henderson Cambridge HarvardUniversity Press 1998 (Loeb Classical Library)
ARISTOacuteTELES On the Heavens De Caelo Traduccedilatildeo de W K C Guthrie CambridgeHarvard University Press 1939 (Loeb Classical Edition)
____________ Poeacutetica Traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa daMoeda 2003
____________ Poliacutetica Traduccedilatildeo de Antoacutenio Campelo Amaral e Carlos de CarvalhoGomes Lisboa Vega 1998
____________ Problemas Musicais Traduccedilatildeo de Maria Luiza Roque Brasiacutelia Thesaurus2001
____________ The Nicomachean Ethics Traduccedilatildeo de David Ross Britain OxfordUniversity Press 1998
BARKER A Greek Musical Writings vol I of the Musician and his Art BritainCambridge University Press 1984
127
__________ Greek Musical Writings vol II Harmonic and Acoustic Theory BritainCambridge University Press 1989
__________ The science of harmonics in classical Greece Cambridge CambridgeUniversity Press 2007
BARNES J Scepticism and the Arts In RJ Hankinson (Org) Method Medicine andMetaphysics Studies in the Philosophy of Ancient Science (Special Issue of Apeiron 21) p53ndash77 1988
BEacuteLIS A Aristoxegravene de Tarente et Aristote Le Traiteacute drsquoharmonique Paris Klincksieck1986
_______ Les nuances dans le Traiteacute dharmonique dAristoxegravene de Tarente Revue desEtudes Grecques XCV p 54-73 1982
BETT R A Sceptic Looks at Art (but not Very Closely) Sextus Empiricus on MusicInternational Journal for the Study of Skepticism 3 p 155ndash181 2013
BOWMAN W D Philosophical Perspectives on Music Oxford Oxford University Press1998
BROCHARD V Os Ceacuteticos Gregos Traduccedilatildeo de Jaimir Conte Satildeo Paulo OdysseusEditora 2009
BYCHKOV O V SHEPPARD A Greek and Roman Aesthetics Cambridge CambridgeUniversity Press 2010
CASTANHEIRA C P De Institutione Musica de Boeacutecio Livro 1 traduccedilatildeo e comentaacuterios154f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Estudos Literaacuterios) - Universidade Federal de MinasGerais 2009
CORREcircA P C Harmonia mito e muacutesica na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Humanitas 2008
DELATTRE D Preacutesence de LrsquoEacutepicurisme dans le Contre les grammariens et le Contre lesmusiciens de Sextus Empiricus In DELATTRE J (Org) Sur le Contre les professeurs deSextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p 47ndash65
___________ Philodegraveme de Gadara Sur la musique 2 vols Paris Les Belles Lettres2007
DESBORDES F Le scepticisme et les lsquoarts libeacuterauxrsquo une eacutetude de Sextus Empiricus AdvMath I-VI In A-J Voelke (Org) Le scepticisme antique perspectives historiques etsysteacutematiques Actes du Colloque international sur le scepticisme antique Universiteacute deLausanne 1-3 juin 1988 (Cahiers de la revue de theacuteologie et de philosophie 15) GenevaLausanne and Neuchacirctel Revue de Theacutelologie et de Philosophie 1990 p 167ndash79
DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker (6th ed) Revised with additions and indexby W Kranz Berlin Weidman 1951-2
128
EPICURO Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Lorencini e EnzoDel Carratore Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
FLORIDI L Sextus Empiricus The Transmission and Recovery of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 2002
FUBINI E Esteacutetica da Muacutesica Lisboa Ediccedilotildees 70 2012
GIGANTE M Scetticismo e Epicureismo Per lavviamento di un discorso storiograficoNapoli Bibliopolis 1981
HADOT I Arts libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Paris EacutetudesAugustiniennes 1984
HADOT P O que eacute Filosofia antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008
HANSLICK E Do Belo Musical Traduccedilatildeo Artur Mouratildeo Covilhaacute LusoSofia 2011
HIPPOCRATES Aphorisms (Vol IV) Traduccedilatildeo de W H S Jones Cambridge HarvardUniversity Press 1931 (Loeb Classical Library)
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
________ Odisseia Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
LIPPMAN E A A History of Western Musical Aesthetics Lincoln University ofNebraska 1992
_____________ Musical thought in Ancient Greece New York Da Capo Press 1964
____________ The Place of Music in the System of Liberal Arts In J LaRue and othersAspects of Medieval and Renaissance Music a Birthday Offering to Gustave Reese NewYork 1966 p 545ndash59
MATES B The Skeptic Way Sextus Empiricusrsquos Outlines of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 1996
MATHIESEN T L Apolos Lyre greek music and music theory in antiquity and the middleages Londres University of Nebraska Press 1999
MARROU H Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Editora Herder 1966
MOUTSOPOULOS E La mousique dan loeuvres de Platon Paris Presses Universitairesde France 1959
PELLEGRIN P Introduction In ______ (Org) Sextus Empiricus Contre les professeurs
129
Paris Eacuteditions du Seuil 2002 p 9ndash47
_____________ De lrsquouniteacute du scepticisme sextien In DELATTRE J (Org) Sur le Contreles professeurs de Sextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p35ndash45
PEREIRA A R A esteacutetica musical em Aristoacutexeno de Tarento Hvmanitas Lisboa VolXLVII Universidade Nova de Lisboa 1995
_____________ A mousikeacute das origens ao drama de Euriacutepides Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2001
_____________ Poleacutemica acerca da mousikeacute no Adversus Musicos de Sexto EmpiacutericoHvmanitas Lisboa vol XLVIII Universidade Nova de Lisboa 1996
PHILO On mating with the preliminary studies De Congressu (Vol IV) Traduccedilatildeo F HColson e G H Whitaker Cambridge Harvard University Press 1939 (Loeb ClassicalLibrary)
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa FundaccedilatildeoCalouste Gulbenkian 1980
________ Fedro In Diaacutelogos III Trad intro e notas Lledoacute Intildeigo Madrid EditorialGredos 1988
________ Leis Traduccedilatildeo e notas Carlos Humberto Gomes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004
________ Eutidemo In Diaacutelogos II Traduccedilatildeo F J Olivieri Madrid Editorial Gredos1983
________ Timeu In Diaacutelogos VI Trad intro e notas Francisco Lisi Madrid EditorialGredos 1992
________ Menexeno In Diaacutelogos II Trad intro e notas E Acosta Meacutendez MadridEditorial Gredos 1983
PLUTARCO De virtute morali (Moralia Vol 6) Traduccedilatildeo de W C Helmbold) CambridgeHarvard University Press 1936 (Loeb Classical Library)
PLUTARCO Sobre a Muacutesica In SOARES C ROCHA R Plutarco Obras Morais Sobreo afecto aos filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo de Roosevelt Rocha Coimbra Centro deEstudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010
POPKIN R H Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Traduccedilatildeo de DaniloMarcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000
PORCHAT PEREIRA O ldquoA autocriacutetica da razatildeo no mundo antigo In Waldomiro Joseacute SilvaFilho (Org) O Ceticismo e a possibilidade da Filosofia Injuiacute Ed Unijuiacute 2005
130
___________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
QUINTILIANO Institutio Oratoria Traduccedilatildeo de H E Butles Cambridge HarvardUniversity Press 1930 (Loeb Classical Library)
REYES P R Sexto Empiacuterico y la mousikeacute EMERITA - Revista de Linguistica y FilologiacuteaClaacutesica (EM) ndash LXXII 1 p 95-119 2004
ROCHA R Uma introduccedilatildeo agrave teoria musical na antiguidade claacutessica Via LitteraeAnaacutepolis v 1 n 1 p 138-164 juldez 2009
SPINELLI E Pyrrhonism and the specialized sciences In BETT R (Org) TheCambridge companion to ancient scepticism Cambridge Cambridge University Press2010
TARTAKIEWICZ W Objectivity and Subjectivity in the History of Aesthetics Philosophyand Phenomenological Research Vol 24 No 2 (Dec 1963) pp 157-173 1963
Thesaurus Linguae Graecae Compilaccedilatildeo de todos os textos em prosa ou verso em grego dosseacutecsVIII aC ateacute VI dC in httpwwwtlguciedu
TOMAacuteS L Ouvir o loacutegos muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
________ Vozes dissonantes precursores da autonomia da muacutesica na antiguidade InDUARTE R e SAFATLE V Ensaios sobre muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo AssociaccedilatildeoEditorial Humanitas 2007
VITRUacuteVIO The Ten Books on Architecture Trad Morris Hicky Morgan CambridgeHarvard University Press London Humphrey Milford Oxford University Press 1914
WEST M L Ancient Greek Music New York Oxford University Press 1992
WILKINSON L P Philodemus on Ethos in Music The Classical Quarterly Vol 32 No34 (Jul - Oct 1938) pp 174-181
WOODWARD L H Diogenes of Babylon A Stoic on Music and Ethics Dissertaccedilatildeo(Master of Philosophy in Classics) - UCL 2009
131
GLOSSAacuteRIO
aisthesis (αἴσθησις) ndash sentidos percepccedilatildeo sensiacutevelaisthetos (αἰσθητός) ndash objeto da percepccedilatildeo sensiacutevelaletes (ἀλήτης) ndash verdadeiroanagke (ἀνάγκη) ndash necessidadeandreia (ἀνδρέια) ndash bravura coragemanomalia (ἀνωμαλία) ndash anomalia antirresis (ἀντίρρησις) ndash refutaccedilatildeoanyparktos (ἀνύπαρκτος) ndash irreal natildeo-existenteanypostatos (ἀνυπόστατος) ndash irreal natildeo-existenteaporia (ἀπορία) ndash aporiaarete (ἀρήτη) ndash excelecircncia virtudeataraxia (ἀταραξία) ndash tranquilidade (da alma)azetetos (ἀζήτητος) ndash natildeo-investigaacutevelbarys (βαρύς) ndash gravebios (βίος) ndash vida vida comumdia pason (διὰ πασῶν) ndash intevalo de oitavadia pente (διὰ πέντε) ndash intervalo de quintadia tettaron (διὰ τεττάρων) ndash intervalo de quartadiabebaiomai (διαβεβαιῦμαι) ndash sustentar firmementedianoia (διάνοια) ndash pensamento intelectodiastema (διάστημα) ndash intervalodiatonos (διάτονος) ndash diatocircnico (gecircnero)diaphonia (διαφωνία) ndash discordacircncia disputa controveacutersiadiaphonos (διάφωνος) ndash dissonante (muacutesica)diesis (δίεσις) ndash o menor intervalo na escaladogma (δόγμα) ndash dogma crenccedila opiniatildeodoxa (δόξα) ndash opiniatildeodynamis (δύναμις) ndash capacidade habilidade poder disposiccedilatildeo ethos (ἔθος) ndash haacutebito costumeethos (ἦθος) ndash caraacuteter disposiccedilatildeoeidesis (εἴδησις) ndash conhecimentoekmeles (ἐκμελής) ndash desafinado dissonanteektos hupokeimenon (ἐκτograveς ὑποκείμενον) ndash aquilo que existe externamente (agrave nossa percepccedilatildeo) emmeles (ἐμμελής) ndash afinado harmoniosoempeiria (ἐμπειρία) ndash experiecircncia enkyklios paideia (ἐγκύκλιος παιδεία) ndash educaccedilatildeo ciacuteclicaennoia (ἔννοια) ndash conceito concepccedilatildeoepisteme (ἐπιστήμη) ndash ciecircnciaepokhe (ἐποχή) ndash suspensatildeo de juiacutezoeudaimonia (εὐδαιμονία) ndash felicidade prosperidade boa fortunaharmonia (ἁρμονία) ndash harmonia enarmocircnico (gecircnero)hemitonion (ἡμιτόνιον) ndash semitomhomophonos (ὁμόφωνος) ndash na mesma nota em uniacutessono Opp σύμφωνος (em concordacircncia)hypostasis (Ὑπόστασις) ndash existecircncia substacircnciaidiotes (ἰδιώτης) ndash pessoas comunsisostheneia (ἰσοσθένεια) ndash equipolecircncia igual forccedila
132
katastello (καταστέλλω) ndash refrear tranquilizarkhreo (χρεώ) ndash utilidadekhroma (χρῶμα) ndash cromaacutetico (gecircnero)khronos (χρόνος) ndash tempologike tekhne (λογική τέχνη) ndash arte racionallogos (λόγος) ndash razatildeo argumento discursomathema (μάθημα) ndash ensinamento disciplinamelodia (μελῳδία) ndash canto muacutesica melodiamimesis (μίμεσις) ndash imitaccedilatildeonoos (νόος) ndash menteorganikos (ὀργανικός) ndash instrumento instrumentaloxus (Ὀξύς) ndash agudopathos (πάθος) ndash afecccedilatildeophainomenon (φαινόμενον) ndash aquilo que aparece fenocircmenophone (φωνή) ndash somphthonnos (φθόγγος) ndash notarythmos (ῥυθμός) ndash ritmostoikheion (στοιχεῖον) ndash elementosymphonos (σύμφωνος) ndash consonantesystema (σύστημα) ndash sistemasophronizo (σωφρονίζω) ndash regular moderarsophrosyne (σωφροσύνη) ndash temperanccedila tasis (τάσις) ndash tensatildeo altura da voztekhne (τέχνη) ndash arte teacutecnicatekhnites (τεχνίτες) ndash artistas artiacutefices especialistas profissionaistheoria (θεωρία) ndash teoria tonos (τόνος) ndash tomtropos (τρόπος) ndash modo zeteo (ζητέω) ndash investigar
SARAH ROEDER
O CONTRA OS MUacuteSICOS DE SEXTO EMPIacuteRICO INTRODUCcedilAtildeO TRADUCcedilAtildeO E COMENTAacuteRIOS
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Muacutesica aacuterea de concentraccedilatildeo emMusicologia Histoacuterica Departamento de MuacutesicaSetor de Artes Universidade Federal do Paranaacutecomo requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestreem Muacutesica
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Junior
CURITIBA2014
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeoFernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607
Biblioteca de Ciecircncias Humanas e Educaccedilatildeo - UFPR
Roeder Sarah O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico introduccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios Sarah Roeder ndash Curitiba 2014 132 f
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Muacutesica) ndash Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e
Design da Universidade Federal do Paranaacute
1 Muacutesica - Histoacuteria e criacutetica 2 Muacutesica grega na Antiguidade 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Teoria musical ITiacutetulo CDD 7809
Aos que sustentam firmemente a dicotomia entre o pensar e o fazer artiacutestico
AGRADECIMENTOS
Ao professor Roosevelt Rocha pela orientaccedilatildeo por sua postura (praacutetica e direta) naconduccedilatildeo de nossas reuniotildees pelo incentivo a esse projeto e pela incriacutevel paciecircncia
Ao professor Luiz Eva com quem pude estudar a Filosofia ceacutetica do segundo ano agravemonografia agradeccedilo pelos ldquohieroacuteglifosrdquo de suas correccedilotildees a partir dos quais aprendi aestruturar minhas ideias e esclarececirc-las no papel
Ao professor Bernardo Brandatildeo por encorajar o estudo do grego antigo tratando-ocomo a liacutengua mais simples do mundo e pelo projeto inicial de traduccedilatildeo do Contra osMuacutesicos E ao Professor Pedro Ipiranga pelas primeiras letras gregas
Agrave professora Lia Tomaacutes pela pertinecircncia de seus comentaacuterios pela indicaccedilatildeo debibliografia e pelo empreacutestimo de livros fundamentais para essa pesquisa
Ao professor Roberto Bolzani pela dedicada anaacutelise dessa dissertaccedilatildeoAos amigos professor Paulo Vieira Neto pelos cafeacutes filosoacuteficos ao longo desses
anos professor Benito Maeso pelo estaacutegio em docecircncia com a turma de monstrinhos (nomelhor sentido da palavra) e pelas orientaccedilotildees de botequim Ana Carolina Freire pelasrevisotildees e inuacutemeros conselhos que sempre terminam com um ldquonada temardquo Aos colegasfilosofantes Marcelo Gustavo Raphael Eduardo Bruno Gustavo Paiva e principalmenteao grande amigo Wagner Bitencourt
Agrave turma do mestrado pelo carinho com que todos me receberam Especialmente aoVicente pelo incentivo e pela parceria nos trabalhos de anaacutelise ao Adriano pelas conversasao longo da Rua XV ao Elder pelo seu incansaacutevel espiacuterito criacutetico agrave Renata pelas agradaacuteveistardes no cafeacute agrave Lilian e agrave Flora pelo apoio e preciosos conselhos
Agrave Denise Drechsel e agrave Vera Lucia Barbosa pelo carinho e entusiasmo com queaceitaram o trabalho de revisatildeo dessa dissertaccedilatildeo
Aos colegas do Coro da UFPR pela companhia nas tardes de traduccedilatildeo e revisatildeoAo Maestro Alvaro Nadolny pela dedicaccedilatildeo em ensinar arte muito aleacutem da teacutecnica
pelo incentivo agraves mudanccedilas em meu caminho pelos inuacutemeros conselhos que ele (ldquonatildeordquo) daacutee principalmente por me ensinar (no sentido mais profundo que se possa entender) quemuacutesica eacute para o outro
Ao Hermes (namorado noivo e marido durante esses dois anos de mestrado) por seuamor sua muacutesica e por me mostrar o mundo de outro jeito fazendo de mim algueacutem melhor
Agrave minha matildee Gloacuteria (principalmente pelo seu bom-senso infaliacutevel) e ao meu paiJunior (especialmente por pensar ndash sempre ndash fora da caixinha) por apoiaremincondicionalmente todas as (boas) ideias mirabolantes de seus filhos
Ao meu irmatildeo Matheo pelo carinho pela paciecircncia absurda e pelos trocadilhos ruinsque divertiram meus dias enquanto moramos juntos
Por fim aos professores do PPG - Muacutesica por acreditarem no potencial desse projetoespecialmente agrave professora Silvana Scarinci e ao professor Danilo Ramos
Ao secretaacuterio Gabriel pelo profissionalismo com que exerce sua funccedilatildeo Agrave CAPES pelo suporte financeiro agrave realizaccedilatildeo dessa pesquisa
Por amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar por meio da argumentaccedilatildeo na medida do possiacutevel
o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticos
Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas III 280
RESUMO
O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico eacute uma importante fonte sobre o papel da muacutesica naAntiguidade Nesta obra o filoacutesofo ceacutetico refuta a teoria musical tanto sob a perspectiva eacuteticandash questionando sua utilidade quanto sob a perspectiva teacutecnica ndash apresentando argumentoscontra conceitos fundamentais da ciecircncia musical como o de melodia e o de ritmo Arefutaccedilatildeo da teoria musical compartilha de um objetivo mais amplo da Filosofia ceacutetica asaber o combate ao dogmatismo na Filosofia e nas disciplinas que compunham os EstudosCiacuteclicos O presente trabalho consiste na traduccedilatildeo comentada do Contra os Muacutesicos Emnosso comentaacuterio agrave obra buscamos reunir as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeodessa obra sob a perspectiva filosoacutefica e a perspectiva musicoloacutegica Partimos da divisatildeohieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical e em funccedilatildeo disso apresentamos um panoramageral da teoria musical na Antiguidade segundo duas perspectivas o papel psicagoacutegico damuacutesica e os aspectos teacutecnicos da ciecircncia musical Enfatizamos por um lado a importacircncia dateoria do ethos musical no pensamento filosoacutefico de Platatildeo e de Aristoacuteteles e por outro aconcepccedilatildeo de teoria musical enquanto ciecircncia autocircnoma desenvolvida por Aristoacutexeno Aleacutemdisso devido agrave sua semelhanccedila com o Contra os Muacutesicos apresentamos a criacutetica ao papeleacutetico da muacutesica elaborada pelo filoacutesofo epicurista Filodemo Buscamos em seguida explicara mousike enquanto uma das artes que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos que privilegiando oacircmbito teoacuterico constituiacuteam ainda uma propedecircutica agrave Filosofia Depois disso situamos aobra no acircmbito da Filosofia ceacutetica mostrando que em todos os livros do Contra osProfessores o ceacutetico parte de uma dicotomia entre arte teoacuterica e praacutetica e que sua refutaccedilatildeodiz respeito apenas agrave precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de sustentar teorias sobre cada uma das tekhnaiPor fim analisamos em detalhe os argumentos que compotildeem o Contra os Muacutesicosmostrando que estes refutam somente o acircmbito teoacuterico da muacutesica abrindo espaccedilo para umareflexatildeo a respeito do valor da praacutetica musical na cultura grega antiga
Palavras-chave Muacutesica Grega Antiga Ceticismo Ethos tekhne Sexto Empiacuterico Estudos Ciacuteclicos
ABSTRACT
Sextus Empiricus work called Against the Musicians is an important source about music inthe Ancient Greece In this book the skeptic attempts to refute musical theory of that timeson the ethical way ndash questioning its utility as well as on the technical perspective ndash arguingagainst fundamental concepts of this science such as melody and rhythm The refutation ofmusical theory is part of a broader goal in Sextus work - and on the Skeptical Philosophyproject as a whole to oppose dogmatism in philosophy and in the Cyclical Studies subjectsOur work consists of a translation and a commentary on Against the Musicians Thecommentary aims to present the necessary tools for an interpretation of Against the Musiciansin philosophical and musicolgical terms We followed the hierarchycal division betweenmusical theory and practice as a starting point and present music theory in Ancient times bytwo perspectives musics psychagogic role and technical aspects of music science Weemphasized the importance of the theory of musical ethos in Platos and Aristotlesphilosophy Aristoxenus development of music theory as an autonomous science andPhilodemus critic regarding musics ethical role An effort was made to explain mousike asone of the arts of the Cyclical Studies These favoured the theorical range also constituting apropedeutic to Philosophy After that we put the work into its philosophical context byshowing that the whole Against the Professors assumes a dichotomy between theorical andpractical art and that the refutation concerns only the dogmatic precipitancy to firmly mantaintheories about each one of the tekhnai At last a detailed analysis was made on the argumentsthat make up the Against the Musicians showing that these arguments extends just to thetheorical part of music enabling us to reflect upon the value of musical practice
Keywords Ancient Greek Music Skepticism Ethos Tekhne Sextus Empiricus Cyclical Studies
LISTA DE ABREVIATURAS
Aristides Quintiliano De mus ndash De Musica
AristoacutetelesEN ndash Eacutetica a NicocircmacoMet ndash MetafiacutesicaPol ndash PoliacuteticaProb ndash Problemas Musicais
AristoacutexenoEl Harm ndash Elementa Harmonica
Boeacutecio Inst ndash De Institutione Musica
Filodemo De mus ndash De musica
PlatatildeoRep ndash RepuacuteblicaEuth ndash EutidemoTi ndash Timeu
Plutarco De mus ndash De Musica
QuintilianoInst ndash Institutione Oratoria
Sexto Empiacuterico1
HP ndash Hipotiposes PirronianasM I - VI ndash Contra os Professores (Adversus Mathematicos)M I ndash Contra os GramaacuteticosM II ndash Contra os RetoacutericosM III ndash Contra os GeocircmetrasM IV ndash Contra os AritmeacuteticosM V ndash Contra os AstroacutelogosM VI ndash Contra os MuacutesicosM VII ndash XI ndash Contra os DogmaacuteticosM VII ndash VIII ndash Contra os LoacutegicosM IX ndash X ndash Contra os FiacutesicosM XI ndash Contra os Eacuteticos
1 Os livros agrupados sob o tiacutetulo Contra os Dogmaacuteticos foram numerados erroneamente como umacontinuaccedilatildeo dos seis livros que compotildeem o Contra os Professores Em funccedilatildeo de sua praticidademanteremos essa abreviaccedilatildeo
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
1017
3 MOUSIKE 2031 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO 2032 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA 22321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo 23322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles 2833 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO 3534 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO 414 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS NO CONTRA OS PROFESSORES 4641 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO NA FILOSOFIA E NAS ARTES 4742 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS 5243 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES 59431 O modelo argumentativo da obra 6144 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO 665 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS 6951 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6) 69511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo 69512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica 7152 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37) 7353 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68) 806 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISREFEREcircNCIASGLOSSAacuteRIO
867122126131
10
1 INTRODUCcedilAtildeO
Ateacute o seacuteculo V de nossa era a praacutetica e a teoria musical2 eram duas vertentes
completamente distintas3 A praacutetica musical restringia-se agrave execuccedilatildeo do instrumento
considerava-se que esta natildeo fazia uso do intelecto e por isso era colocada em um niacutevel
inferior em relaccedilatildeo agrave teoria Boeacutecio4 por exemplo afirma que haacute trecircs classes de muacutesicos
uma delas eacute formada por aqueles que executam os instrumentos considerada como
desprovida de reflexatildeo a segunda eacute a dos poetas que compotildeem as canccedilotildees por um certo
instinto natural e a terceira e mais elevada eacute a dos que julgam os ritmos e melodias das
canccedilotildees
A teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmoloacutegico
da ciecircncia musical quanto seu sentido teacutecnico relacionado ao estudo da harmonike da
riacutetmica e da meacutetrica Aleacutem disso os estudiosos da muacutesica estavam preocupados com o papel
eacutetico da muacutesica no que diz respeito agraves suas caracteriacutesticas terapecircuticas e ao seu poder de
formar e determinar o caraacuteter5 e o comportamento do ouvinte Este aspecto da muacutesica estava
estritamente ligado agrave paideia6 grega
No Contra os Muacutesicos uacuteltimo livro da obra intitulada Contra os Professores Sexto
Empiacuterico7 filoacutesofo ceacutetico do seacuteculo II dC dirige sua criacutetica agrave teoria musical que segundo
ele era considerada por muitos mais completa que a praacutetica musical8 Sua refutaccedilatildeo dirige-
se aos acircmbitos eacutetico e epistemoloacutegico da teoria musical Seu meacutetodo consiste em apresentar
algumas definiccedilotildees difundidas sobre a muacutesica e argumentar mostrando que elas natildeo satildeo
necessariamente vaacutelidas Na primeira parte do texto a muacutesica eacute discutida em termos de sua
utilidade para se alcanccedilar a felicidade Se por um lado ela eacute dita uacutetil para a felicidade humana
2 A expressatildeo ldquoteoria musicalrdquo eacute utilizada aqui em sentido amplo ou seja abrangendo os aspectos eacutetico eteacutecnico da muacutesica Ver Tomaacutes (2002 p 18-22)
3 Cf Tomaacutes (2002 p43)4 Cf Boeacutecio Inst (480-524)5 O termo grego traduzido por ldquocaraacuteterrdquo ao longo deste texto eacute ἦθος (ethos) e estaacute ligado agrave virtude moral que
se desenvolve na alma atraveacutes do haacutebito em grego ἔθος (ethos) De acordo com Aristoacuteteles (EN 1103 A) onome dessa virtude moral (ἠθική ndash ethike) surge por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ldquohaacutebitordquo (ethos ndashἔθος) Essa modificaccedilatildeo consiste na utilizaccedilatildeo do ldquoηrdquo (eta) no lugar do ldquoεrdquo (epsilon) Ao longo do textoutilizamos a transliteraccedilatildeo ldquoethosrdquo para ἦθος (caraacuteter)
6 O termo paideia ldquodesigna a experiecircncia cultural e eacutetica grega ele natildeo eacute de nenhum modo limitado agraveeducaccedilatildeo em seu sentido formalrdquo (Anderson 1966 p 2)
7 A obra de Sexto Empiacuterico eacute ainda pouco estudada em relaccedilatildeo agraves suas contribuiccedilotildees ao pensamentofilosoacutefico - sobretudo sua influecircncia na Filosofia moderna Dentre os textos que chegaram ateacute noacutes estatildeo asHipotiposes Pirronianas o Contra os Dogmaacuteticos e o Contra os Professores
8 Os argumentos acerca do valor da muacutesica refutados por Sexto satildeo parecidos com os argumentos queaparecem nas obras de Quintiliano e de Plutarco A refutaccedilatildeo contra o valor eacutetico e filosoacutefico da muacutesica porsua vez estaacute muito proacutexima da obra de Filodemo de Gadara (seacuteculo I aC) A principal fonte da teoriamusical apresentada por Sexto eacute a obra de Aristoacutexeno havendo tambeacutem paralelos com a obra de AristoacutetelesCf Greaves (1986 p 24-36)
11
em funccedilatildeo do poder de mover a alma podendo com isso alterar o caraacuteter do ouvinte por
outro Sexto apresenta diversos argumentos e exemplos que contrariam essa tese mostrando
que sendo as artes consideradas como tal em funccedilatildeo de sua utilidade e se a muacutesica for inuacutetil
ela deixa de ser uma arte Na segunda parte Sexto refuta diretamente os fundamentos da
ciecircncia musical a saber os conceitos de melodia e de ritmo atacando os conceitos de som e
de tempo Ao colocar em duacutevida os seus fundamentos o autor compromete todos os conceitos
teacutecnicos da ciecircncia da muacutesica que dependem deles9
No que diz respeito ao estudo da muacutesica antiga no Contra os Muacutesicos condensam-se
em poucas paacuteginas algumas das principais visotildees acerca da muacutesica na Antiguidade Junto do
Papiro de Hibeh10 e do De Musica de Filodemo11 esta eacute uma das raras obras onde a teoria
musical eacute abordada sob uma perspectiva criacutetica condenando as ideias difundidas entre a
maioria dos pensadores do periacuteodo a respeito do papel da muacutesica sendo por isso uma fonte
importante para os estudos sobre Muacutesica Antiga
Considerando-se a escassez de publicaccedilotildees que faccedilam referecircncia ao Contra os
Muacutesicos a traduccedilatildeo do texto grego apresentada neste trabalho primeira completa em liacutengua
portuguesa eacute acompanhada de um estudo que abrange algumas das principais teorias
musicais da Antiguidade e o contexto filosoacutefico da obra a fim de possibilitar a compreensatildeo
do Contra os Muacutesicos tanto sob a perspectiva filosoacutefica quanto sob a perspectiva
musicoloacutegica As notas agrave traduccedilatildeo aleacutem de esclarecerem questotildees especiacuteficas do texto
pontuam as relaccedilotildees entre os temas discutidos por Sexto Empiacuterico e outros textos importantes
sobre Muacutesica Grega Antiga
Nosso estudo comeccedila pelo modo como o conceito de mousike foi compreendido ao
9 Tal modelo argumentativo pode soar como um contrassenso agravequeles que natildeo estatildeo familiarizados com aFilosofia ceacutetica Em funccedilatildeo disso para se compreender o sentido dessa criacutetica eacute preciso abordar o Contraos Muacutesicos agrave luz dos objetivos do ceticismo pirrocircnico
10 O Papiro de Hibeh critica a ideia de que a muacutesica tem poderes eacuteticos e expressivos Nele haacute um discursoque foi proferido no Egito por um orador ateniense provavelmente na eacutepoca de Platatildeo De acordo comBarker (1989 p 183) o Papiro conteacutem um discurso dirigido contra os muacutesicos estruturado em trecircsargumentos O primeiro diz respeito agrave falta de base dos muacutesicos praacuteticos o segundo questiona a doutrina doethos e o terceiro aborda a falaacutecia existente entre as bases teoacutericas e a performance musical O oradorprocura refutar a noccedilatildeo de que algumas melodias nos fazem ser justos outras razoaacuteveis outras corretosoutras bravos e outras mais covardes Para refutar essa ideia ele afirma que ldquoas pessoas que vivem naaacuterea de Termoacutepilas cuja muacutesica eacute diatocircnica satildeo mais corajosas que os traacutegicos que cantam exclusivamentemelodias enarmocircnicas embora se pretendesse que esse gecircnero produzisse coragem Similarmente eleafirma muacutesica cromaacutetica natildeo produz covardiardquo (Lippman 1975 p 113) Adotando um tom retoacuterico eleataca a qualificaccedilatildeo daqueles que sustentam noccedilotildees sobre a influecircncia musical considerando que eles natildeosatildeo especialistas nem em muacutesica nem em argumentaccedilatildeo O orador os critica por tocarem mal e afirmaremcoisas ridiacuteculas como quando dizem que ldquocertas melodias satildeo relacionadas ao loureiro e outras agrave herardquoSegundo Lippman ldquoa referecircncia aos siacutembolos de Apolo e Dioniacutesio serve aqui para satirizar a descriccedilatildeo dasmelodias como eacuteticas e orgiaacutesticas A oraccedilatildeo expressa uma atitude cientiacutefica do especialista em muacutesica e eacuteaparentemente direcionada contra os filoacutesofosrdquo (Lippman 1975 p 114)
11 Sobre o De Musica de Filodemo ver seccedilatildeo 34
12
longo da Antiguidade tendo em vista evidenciar a dicotomia entre teoria e praacutetica musical e
as perspectivas eacutetica e teacutecnica abarcadas pela teoria Partimos da relaccedilatildeo entre o significado
cosmoloacutegico da teoria musical para os pitagoacutericos e o seu papel na educaccedilatildeo em funccedilatildeo da
teoria do ethos tal como formulada por Daacutemon Iremos nos ater inicialmente agrave exposiccedilatildeo
das ideias sobre a muacutesica apresentadas na Filosofia de Platatildeo e na discussatildeo dessas ideias
na Poliacutetica de Aristoacuteteles Mesmo sendo cronologicamente distantes da eacutepoca de Sexto
Empiacuterico concentramo-nos nessas ideias porque elas estatildeo invariavelmente presentes em
boa parte das obras posteriores
O pensamento musical de Platatildeo permanece ateacute hoje o arqueacutetipo para todas asconsideraccedilotildees acerca da doutrina musical da Antiguidade e deve ter influenciadoqualquer autor que escreveu sobre o tema que viveu depois do seacuteculo IV aC Platatildeofoi um dos primeiros se natildeo realmente o primeiro que escreveu longamente acercada muacutesica (Woodward 2009 p 102)
Enquanto Platatildeo enfatiza as raiacutezes pitagoacutericas de sua teoria musical e ao mesmo
tempo por incorporar as teorias damonianas a respeito do ethos musical manteacutem uma
posiccedilatildeo bastante restritiva no que diz respeito ao papel da muacutesica na sociedade Aristoacuteteles
limita-se a colocar em discussatildeo as diversas opiniotildees a respeito do papel da muacutesica
(dispensando as questotildees metafiacutesicas) voltando-se sobretudo aos efeitos do fenocircmeno
sonoro observaacuteveis no ouvinte O modo como Aristoacuteteles conduz sua investigaccedilatildeo a respeito
da muacutesica abre espaccedilo para que mais tarde seu disciacutepulo Aristoacutexeno mude o paradigma da
teoria musical
Em seguida concentramo-nos no pensamento musical de Aristoacutexeno e de Filodemo
Embora o nosso foco nesses autores se decirc em funccedilatildeo do uso de suas teorias no Contra os
Muacutesicos (ainda que ambos sejam criticados pelo ceacutetico) eacute importante destacar que na
historiografia musical Aristoacutexeno e Filodemo satildeo colocados ao lado de Sexto Empiacuterico no
que diz respeito a questatildeo da autonomia da muacutesica na Antiguidade
Esse conjunto de autores tem em comum o rompimento com as ideias difundidas e
sustentadas por Platatildeo e Aristoacuteteles rejeitando a relevacircncia dos possiacuteveis significados sociais
poliacuteticos ou matemaacuteticos da muacutesica Observa-se que apoacutes seacuteculos de domiacutenio da perspectiva
platocircnico-aristoteacutelica no que concerne agrave heteronomia do significado da muacutesica o pensamento
desses autores converge com uma visatildeo que considera a muacutesica enquanto forma autocircnoma12
12 A respeito da autonomia da muacutesica tal como aparece em Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico Bowmanconsidera que ldquoeles desafiam a ideia de que a muacutesica contribui de maneira significativa para coisas como ocaraacuteter humano mas sem avanccedilar ateacute a afirmaccedilatildeo da autossuficiecircncia musical Natildeo antes do surgimento dachamada muacutesica absoluta seacuteculos depois pode comeccedilar a emergir um verdadeiro formalismordquo(Bowmann 1998 p 136)
13
surgida no debate esteacutetico Iluminista a partir dos seacuteculos XVIII-XIX solidificada em 1854
com a publicaccedilatildeo da obra ldquoDo Belo Musicalrdquo de Eduard Hanslick13
Embora por diferentes razotildees Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico suspeitavamdas tentativas filosoacuteficas de conectar muacutesica ao que eles consideravam questotildeesextramusicais Na realidade fique com o que eacute dado ao ouvido com os fatosmusicais foi o que cada um argumentou Evidentemente nenhum deles visualizouuma gama de valores intrinsecamente musicais mas apenas procurou estreitar oacircmbito da relevacircncia musical para excluir coisas que sob sua perspectiva natildeotinham nada a ver com muacutesica (Bowmann 12112 p 140)
Aristoacutexeno promoveu uma sistematizaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica privilegiando seus
aspectos teacutecnicos que foi tomada como paradigma nos seacuteculos posteriores Enquanto a
harmonike para os pitagoacutericos era o estudo das relaccedilotildees matemaacuteticas ligadas agrave metafiacutesica na
medida em que a muacutesica passa a ser considerada a partir do proacuteprio fenocircmeno sonoro a
ciecircncia harmocircnica muda seu escopo a ponto de ser tomada como objeto de uma ciecircncia
autocircnoma14 Entretanto mesmo desvinculado do acircmbito considerado mais elevado do
conhecimento que eacute a metafiacutesica o estudo teoacuterico do fenocircmeno sonoro manteacutem-se em uma
posiccedilatildeo hieraacuterquica elevada em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical15 Tal sistema dogmaacutetico do ponto
de vista ceacutetico eacute refutado na segunda parte do Contra os Muacutesicos e por isso merece aqui
nossa atenccedilatildeo
Encerramos o primeiro capiacutetulo apresentando a refutaccedilatildeo do filoacutesofo epicurista
Filodemo agrave ideia de que a muacutesica eacute uacutetil em funccedilatildeo de ter por natureza o poder de afetar o
caraacuteter do ouvinte Ele rejeita a teoria do ethos musical afirmando que se a muacutesica tem algum
efeito em nossa alma isso se daacute em funccedilatildeo daquilo que noacutes associamos a ela que por si
mesma natildeo tem poder algum sobre nossa alma a natildeo ser o de distraiacute-la Essa criacutetica ao papel
eacutetico da muacutesica eacute muito parecida com aquela que eacute adotada por Sexto Empiacuterico que
apresenta argumentos semelhantes aos do De Musica em sua argumentaccedilatildeo Entretanto como
veremos nem por isso os epicuristas estatildeo livres de serem considerados dogmaacuteticos pelo
ceacutetico16
13 A perspectiva defendida por Hanslick conhecida como ldquoformalistardquo sustenta ldquoa crenccedila de que acompreensatildeo da natureza da muacutesica e de seu valor natildeo eacute encontrada em seus efeitos nos vislumbres que elapermite nos sentimentos que desperta ou ainda nas conexotildees com qualquer coisa fora dela mesma Seuvalor sob essa visatildeo eacute estritamente seu estritamente intriacutenseco localizado inteiramente dentro de umdomiacutenio puramente musicalrdquo (Bowman 1998 p 133)
14 Nesta pesquisa natildeo nos ateremos agraves diferenccedilas teacutecnicas entre os dois modos de abordar a ciecircncia harmocircnica15 A observaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical eacute fundamental para a compreensatildeo da
refutaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave ciecircncia da muacutesica16 Eles satildeo considerados dogmaacuteticos porque sustentam firmemente a tese de que a muacutesica natildeo eacute uacutetil para a
felicidade A relaccedilatildeo entre as ideias apresentadas por Filodemo no De Musica e a primeira parte do Contraos Muacutesicos seraacute analisada na seccedilatildeo 52
14
Dado o panorama histoacuterico do conceito de mousike apresentado no capiacutetulo inicial que
teve como intuito evidenciar sua amplitude e esclarecer as diversas facetas do conceito que
estaacute em jogo precisamos nos voltar ainda agrave filosofia ceacutetica para compreendermos as razotildees
pelas quais a mousike tal como eacute comumente concebida eacute refutada por Sexto Empiacuterico
A Filosofia tradicionalmente eacute relacionada agrave busca pela verdade e quando falamos
em Filosofia antiga associamos rapidamente essa busca a filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles
Mas ainda na Antiguidade houve quem desconfiasse da possibilidade de se apreender a
verdade sobre as coisas O ceticismo pirrocircnico eacute uma dessas correntes filosoacuteficas que
questionam tal possibilidade Primeiramente deve-se enfatizar que o termo ldquoceticismordquo natildeo
tem a ver com descrenccedila mas com investigaccedilatildeo do grego skepsis17 Tomando uma definiccedilatildeo
apresentada por Brochard (2009 p 20) o verdadeiro ceacutetico ldquoeacute aquele que de propoacutesito
deliberado e por razotildees gerais duvida de tudo exceto dos fenocircmenos e se contenta com a
duacutevidardquo18
De acordo com Sexto Empiacuterico o ceticismo pirrocircnico tem por objetivo o combate agrave
precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de se sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe na
realidade externamente agraves nossas representaccedilotildees O ceacutetico observa que as vaacuterias teorias
desenvolvidas pelos filoacutesofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que natildeo
haacute um criteacuterio que nos permita distinguir qual delas eacute verdadeira Em funccedilatildeo disso para cada
afirmaccedilatildeo dogmaacutetica ele apresenta uma afirmaccedilatildeo oposta e o igual peso das teorias colocadas
em oposiccedilatildeo leva-o a um estado de suspensatildeo do juiacutezo19
Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Ciacuteclicos20 os ceacuteticos
tambeacutem se depararam com uma postura dogmaacutetica Sexto Empiacuterico propotildee um ataque agraves
bases de cada uma das disciplinas (mathemata) ensinadas pelos especialistas O Contra os
17 Para uma introduccedilatildeo geral ao Ceticismo Antigo ver Brochard (2009)18 O ceticismo pirrocircnico eacute assim nomeado ldquoa partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de
forma mais significativa do que seus predecessoresrdquo (HP I 3) Pirro (360 ndash 270 aC) contemporacircneo deAlexandre Magno e de Aristoacuteteles eacute tomado como fundador dessa tradiccedilatildeo ceacutetica natildeo deixou nada escritomas seu modo de vida e seus ensinamentos serviram como base para essa corrente do ceticismo Oceticismo pirrocircnico foi desenvolvido posteriormente sobretudo por meacutedicos a partir do primeiro seacuteculo daEra Cristatilde A obra de Sexto Empiacuterico eacute uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrocircnico Sobre suabiografia pouco se sabe Supotildee-se a partir de seus escritos que ele foi um meacutedico da escola empiacuterica demedicina e que viveu provavelmente por volta da segunda metade do seacuteculo II dC mas natildeo se sabe ondeCf Floridi (2002 p 3-7) Sobre Pirro ver Brochard (2009 p 65-88) sobre a escola ceacutetica ver Brochard(2009 p 235-247)
19 A obra principal de Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas eacute dividida em trecircs livros o primeiro visafazer uma apresentaccedilatildeo geral do que eacute o ceticismo (HP I) e os seguintes procuram ldquofazer objeccedilotildees a cadaparte da assim chamada Filosofiardquo (HP I 6) As partes da Filosofia a que Sexto se refere satildeo a Loacutegica (HPII) a Fiacutesica (HP III 1-167) e a Eacutetica (HP III 168-281) Elas tambeacutem satildeo abordadas no Contra osDogmaacuteticos composto pelos livros Contra os Loacutegicos (M VII-VIII) Contra os Fiacutesicos (M IX-X) e Contraos Eacuteticos (M XI)
20 Os Estudos Ciacuteclicos eram o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educaccedilatildeo propedecircutica para aFilosofia Ver seccedilatildeo 42
15
Professores (M I-VI) destina-se aos professores dessas disciplinas21 que faziam parte dos
Estudos Ciacuteclicos entre elas a muacutesica Mas Sexto natildeo nos daacute indicaccedilotildees muito precisas a
respeito do que satildeo para ele os Estudos Ciacuteclicos porque sua exposiccedilatildeo ldquodirige-se agravequeles
que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nessas questotildeesrdquo (M I 7) Em funccedilatildeo disso exploramos
o significado dessa expressatildeo em outras fontes do periacuteodo mostrando seu papel fundamental
para a compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves tekhnai tendo em vistao que os Estudos
Ciacuteclicos abrangem especificamente o sentido de tekhne que Sexto Empiacuterico potildee em jogo
Para compreendermos os motivos que levam Sexto Empiacuterico a empreender um ataque
(quase fervoroso) agraves disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos teremos de observar o Contra os
Professores sob uma dupla perspectiva Por um lado devemos atentar ao fato de que os
conteuacutedos discutidos natildeo satildeo refutados por si mesmos mas enquanto disciplinas que fazem
parte de um ciclo de Estudos ensinadas de acordo com determinados meacutetodos e crenccedilas Por
outro devemos observar os motivos pelos quais a refutaccedilatildeo a essas disciplinas faz-se
necessaacuteria dentro do ceticismo
Sexto Empiacuterico parece lidar com uma dicotomia entre teoria e praacutetica do conhecimento
teacutecnico na Antiguidade22 Ele parte da definiccedilatildeo23 de tekhne enquanto um conhecimento que
seja uacutetil para a vida Sua refutaccedilatildeo eacute direcionada exclusivamente ao acircmbito teoacuterico porque
este para ele estaacute impregnado de dogmatismo e natildeo parece cumprir os requisitos da
definiccedilatildeo de tekhne aprovada pelo ceacutetico visto que haacute um sentido ligado ao criteacuterio de accedilatildeo
deste em que o conhecimento teacutecnico natildeo eacute considerado dogmaacutetico Buscamos explicar
como o ceacutetico refuta as tekhnai no Contra os Professores como um todo e porque ele faz isso
a fim de resgatar por fim a originalidade do pensamento ceacutetico em relaccedilatildeo agraves tekhnai Ele
considera vaacutelido apenas o acircmbito praacutetico de cada uma das tekhnai justamente aquele que era
colocado em um niacutevel inferior pelos pensadores da Antiguidade
Na terceira seccedilatildeo analisamos de modo detalhado o texto do Contra os Muacutesicos
Partimos da distinccedilatildeo entre os sentidos de muacutesica que Sexto Empiacuterico apresenta Opotildee teoria
e praacutetica musical e restringe sua criacutetica agrave primeira Seu texto abrange dois aspectos da teoria
musical para os quais ele utiliza tambeacutem dois tipos de argumentaccedilatildeo No que diz respeito ao
primeiro a discussatildeo acerca da utilidade da muacutesica investigamos o uso que Sexto Empiacuterico
21 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido por ldquoensinamentordquo ldquoconteuacutedo de aprendizadordquo ldquodisciplinardquo Nestetexto utilizamos tambeacutem os termos ldquociecircncias especializadasrdquo (expressatildeo que aparece tambeacutem na traduccedilatildeode Bury) e ldquoartesrdquo porque mathemata nesse caso satildeo os ensinamentos a respeito de determinadas ciecircnciasou artes
22 Essa hierarquia entre teoria e praacutetica pode ser observada em todas as aacutereas do conhecimento especializado23 A definiccedilatildeo de uma tekhne em funccedilatildeo de sua utilidade eacute bastante comum Sexto Empiacuterico parte
assumidamente da definiccedilatildeo dada pelos filoacutesofos estoicos que eacute muito parecida com a de Aristoacuteteles Ver p54
16
faz de argumentos que satildeo semelhantes aos de Filodemo e sustentamos a tese de que mesmo
ao tratar da utilidade da muacutesica o ceacutetico permanece dentro do escopo da teoria musical No
que concerne agrave segunda parte da obra apresentamos alguns conceitos teacutecnicos da ciecircncia
harmocircnica que satildeo refutados pelo autor e buscamos explicar os argumentos utilizados Por
fim evidenciamos que o interesse ceacutetico natildeo estava de modo algum voltado agraves questotildees
musicais mas ao combate agrave precipitaccedilatildeo dos dogmaacuteticos em afirmar teses sobre a natureza da
muacutesica
Texto grego e traduccedilatildeo
Eacute escasso o nuacutemero de traduccedilotildees modernas do Contra os Professores Temos a
espanhola de J B Cavero a italiana de A Russo a francesa de D Delattre e a inglesa de R
G Bury24 Especificamente do Contra os Muacutesicos haacute uma traduccedilatildeo parcial em liacutengua
portuguesa no artigo de A R Pereira (1996) uma francesa de C Ruelle e uma em liacutengua
inglesa de D D Greaves
A ediccedilatildeo elaborada por Greaves apresenta a traduccedilatildeo comentada da obra e uma
introduccedilatildeo que abrange as principais fontes de Sexto Empiacuterico Aleacutem disso as notas de
rodapeacute da versatildeo relacionam os argumentos do autor com as suas fontes servindo como
referecircncia para o presente trabalho
Para nossa traduccedilatildeo tomamos como base a ediccedilatildeo do texto grego tal como
apresentada por Greaves devido ao seu extenso trabalho de comparaccedilatildeo de manuscritos As
exceccedilotildees satildeo informadas em notas agrave traduccedilatildeo
24 Sobre a transmissatildeo da obra de Sexto Empiacuterico manuscritos e ediccedilotildees latinas ver Floridi (2002)
17
2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
21 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
O Contra os Muacutesicos inicia com a distinccedilatildeo entre os sentidos teoacuterico praacutetico e
metafoacuterico do termo ldquomuacutesicardquo Ele eacute utilizado no sentido teoacuterico enquanto ldquociecircncia que lida
com melodias notas e composiccedilatildeo riacutetmica e coisas semelhantesrdquo (M VI 1) praacutetico em
relaccedilatildeo agrave habilidade na execuccedilatildeo de instrumentos tal como quando chamamos
instrumentistas de ldquomuacutesicosrdquo e por fim no sentido metafoacuterico tomado como adjetivo
quando algo eacute considerado ldquomusicalrdquo Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma
Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute apenas nesse sentido que ele pretende refutar a
muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o mais completordquo (M VI 3)
A refutaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica estrutura-se em dois momentos principais no
primeiro haacute a criacutetica agraves opiniotildees a respeito do papel psicagoacutegico da muacutesica e no segundo a
refutaccedilatildeo de aspectos teacutecnicos da teoria musical25
22 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
No que concerne agrave discussatildeo sobre a utilidade da muacutesica Sexto argumenta contra as
opiniotildees comuns acerca dela concentrando-se sobretudo na refutaccedilatildeo agrave teoria do ethos
musical semelhante agravequela feita pelos epicuristas que a consideravam um conteuacutedo natildeo
necessaacuterio para atingir a felicidade (eudaimonia)
221 As opiniotildees comuns acerca da utilidade da muacutesica (sect 7-18) e sua refutaccedilatildeo (sect 19-28)
a) O autor apresenta exemplos que podem ser encontrados em diversas fontes da
Antiguidade sobre o modo como a muacutesica afeta a alma Esses exemplos estatildeo ligados agrave
teoria do ethos musical e defendem a utilidade da muacutesica para refrear as paixotildees e promover a
virtude
b) Contra isso ele faz uma refutaccedilatildeo geral agrave ideia de que a muacutesica tem uma
25 Cf Greaves (1986 p 19-24)
18
capacidade inerente de afetar a alma e em seguida refuta especificamente cada um dos
exemplos mencionados
222 A utilidade da muacutesica em relaccedilatildeo agrave paideia agrave Filosofia e ao ethos (sect 29-30) e sua
refutaccedilatildeo (sect 31-37)
a) Sexto apresenta argumentos a respeito da importacircncia da muacutesica em sua relaccedilatildeo
com a paideia a Filosofia e novamente o ethos tratando da relaccedilatildeo entre a muacutesica e a
Filosofia do papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes da relaccedilatildeo entre a harmonia e
a ordem do cosmos da necessidade da educaccedilatildeo musical e da inerecircncia das qualidades eacuteticas
na melodia (sect 29-30)
b) Para tais argumentos eacute apresentada uma contra-argumentaccedilatildeo que visa refutar a
necessidade dessas relaccedilotildees (sect31-37)
23 REFUTACcedilAtildeO AOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
Sexto Empiacuterico apresenta alguns dos principais conceitos da teoria musical e
argumenta contra a existecircncia dos seus princiacutepios baacutesicos
231 Os conceitos de som nota intervalo ethos (sect 38-51) e argumentaccedilatildeo contra a existecircncia
do som (sect 52-58)
a) Sexto aborda a melodia (sect 38-51) partindo de uma definiccedilatildeo de muacutesica (sect 38)
muito semelhante agrave de Aristoacutexeno Aquele distingue entre um som musical e um som natildeo
musical Ao conceito de melodia estatildeo ligados os de intervalo e de ethos Sexto considera que
o ldquocaraacuteter eacute um certo gecircnero de melodiardquo (M VI 48) e visto que os intervalos nascem da
uniatildeo das notas o caraacuteter tambeacutem surge delas
b) Visto que natildeo haacute caraacuteter (ethos) musical sem notas e as notas satildeo ldquosom meloacutedicordquo
Sexto para refutar os conceitos da teoria musical argumenta contra a existecircncia do som
19
232 A ciecircncia do ritmo e os argumentos contra a existecircncia do tempo (sect 59-68)
a) Apresentaccedilatildeo do conceito de ritmo enquanto quantidade de tempo
b) Para refutar sua existecircncia Sexto apresenta algumas definiccedilotildees que entram em
conflito com aquela apresentada primeiro tendo em vista que o conceito de tempo estaacute
contido na definiccedilatildeo de ritmo26 Se o tempo natildeo pode ser definido deixam de ser vaacutelidos
todos os conceitos de teoria musical que dependem deste conceito
26 No que concerne ao ethos riacutetmico a melodia tal como tratada por Sexto jaacute abrange tambeacutem o ritmo Dessemodo a negaccedilatildeo do ethos na melodia implica a negaccedilatildeo dos ethe riacutetmicos
20
3 MOUSIKE
31 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO
O conceito de mousike estaacute presente nas mais diversas aacutereas do pensamento na
Antiguidade como a medicina astronomia religiatildeo filosofia poesia meacutetrica danccedila e
pedagogia
O termo na verdade deriva da palavra Mousa e para os antigos gregos durantemuito tempo ele designou um complexo de faculdades espirituais e intelectuais quehoje noacutes chamamos de lsquoartesrsquo e que estavam sob o patronato das Musas emespecial a poesia liacuterica que era uma mescla daquilo que noacutes entendemos por muacutesicae poesia (Rocha 2009 p 139)
Inicialmente enquanto fenocircmeno sensiacutevel a mousike abrangia palavra harmonia e
ritmo (Platatildeo Rep 398 C) e natildeo havia uma palavra que designasse exclusivamente a ldquoarte
dos sonsrdquo (o termo soacute passou a ter esse significado no seacuteculo IV aC) Aleacutem disso a mousike
era abordada tambeacutem sob uma perspectiva metafiacutesica
Se consideramos o conceito de mousike como um desses conceitos de grandeamplitude podemos supor sua compreensatildeo em duas instacircncias no acircmbitoparticular quando se referindo agraves especificidades da linguagem musical e geralultrapassando esse niacutevel e se entrelaccedilando aos significados de outros conceitos demesmo patamar como harmonia cosmos e logos (Tomaacutes 2002 p38)
O conceito de mousike deve ser compreendido sob essas duas perspectivas enquanto
fenocircmeno sonoro (palavra harmonia e ritmo e depois especificamente arte dos sons) e
enquanto conceito metafiacutesico ldquodaiacute que ele natildeo enuncie apenas o que soa mas tambeacutem
aquilo que permite o soar ou seja as leis de organizaccedilatildeo um princiacutepio universal que
subsume toda particularidaderdquo (Tomaacutes 2002 p 38)
A teorizaccedilatildeo sobre a mousike comeccedila com a escola pitagoacuterica no seacuteculo VI aC Para
os pitagoacutericos27 a teoria musical em seu sentido lato tem significado cosmoloacutegico abrange
as leis de organizaccedilatildeo o princiacutepio universal que rege o cosmos e natildeo estaacute diretamente ligada
ao fenocircmeno sonoro Em seu sentido estrito trata-se do fenocircmeno sonoro que imita no
27 Eacute importante enfatizar que o termo ldquopitagoacutericosrdquo abrange um conjunto de ideias que natildeo diz respeitoestritamente a Pitaacutegoras e seus seguidores mas nomeia teoacutericos que no que concerne agrave harmonike tinhamldquocertas visotildees e atitudes em comumrdquo Cf Barker (1989 p 5)
21
mundo fenomecircnico a harmonia que rege todo o cosmos28
Nos fragmentos de Filolau de Crotona filoacutesofo da escola pitagoacuterica do seacuteculo V aC
lemos que a ldquoHarmonia vem a ser em todos os sentidos a partir dos opostos pois harmonia eacute
uniatildeo das coisas heterogecircneas e concordacircncia das coisas que estatildeo em desacordordquo29 Teacuteon de
Esmirna apresenta a mesma definiccedilatildeo referindo-se aos ldquoPitagoacutericos os quais foram em
muitas coisas seguidos por Platatildeordquo definindo a mousike com os mesmos conceitos de
harmonia30
Anderson (1966 p 37) chama atenccedilatildeo para um dos excertos de Filolau que segundo
ele mostra ldquoa importacircncia da teoria do Nuacutemero na explicaccedilatildeo da muacutesica e todas outras
atividadesrdquo
O Nuacutemero ajustando todas as coisas dentro da alma atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevelas faz reconheciacuteveis e comparaacuteveis umas com as outras Vocecirc pode ver a naturezado Nuacutemero e seu poder em accedilatildeo natildeo soacute na existecircncia supernatural e divinamastambeacutem em todas as atividades e palavras humanas ambos atraveacutes de todaproduccedilatildeo teacutecnica e tambeacutem na Muacutesica31
As investigaccedilotildees a respeito da muacutesica feitas pelos pitagoacutericos natildeo estavam
diretamente voltadas ao fenocircmeno sonoro As pesquisas acerca da harmonike ligam-se agraves
ideias de que ldquoo universo eacute ordenado que a perfeiccedilatildeo da alma humana depende de sua
apreensatildeo e de assimilar a si proacutepria a essa ordem e que a chave para uma compreensatildeo de
sua natureza reside no Nuacutemerordquo (Barker 1989 p6)
A mousike enquanto fenocircmeno sonoro soacute entra em discussatildeo para os pitagoacutericos
porque as relaccedilotildees intervalares percebidas podem ser expressas tambeacutem em foacutermulas
numeacutericas simples De acordo com Barker
Assim essas relaccedilotildees harmocircnicas fundamentais correspondem a relaccedilotildeesmatemaacuteticas fundamentais e evidentemente elegantes e incentivam a ideia de quetodos os intervalos propriamente harmocircnicos recebem seu status musical por causade suas propriedades matemaacuteticas (hellip) A ordem encontrada na muacutesica eacute umaordem matemaacutetica os princiacutepios da coerecircncia de um sistema harmocircnico coordenadosatildeo princiacutepios matemaacuteticos E visto que esses satildeo princiacutepios que geram uma belezaperceptiacutevel e um sistema de organizaccedilatildeo satisfatoacuterio talvez sejam essas mesmasrelaccedilotildees matemaacuteticas ou alguma extensatildeo delas que subjazem agrave admiraacutevel ordem
28 Cf Tomaacutes (2002 p 17)29 Filolau eacute citado em Nicocircmaco Introductio Arithmetica (II 191 TLG) ldquoἁρμονία δὲ πάντως ἐξ ἐναντίων
γίνεται ἔστι γὰρ ἁρμονία πολυμιγέων ἕνωσις καὶ δίχα φρονεόντων συμφρόνησιςrdquo30 Teacuteon de Esmirna De utilitate mathematicae (p 12 10 TLG) ldquoκαὶ οἱ Πυθαγορικοὶ δέ οἷς πολλαχῆι ἕπεται
Πλάτων τὴν μουσικήν φασιν ἐναντίων συναρμογὴν καὶ τῶν πολλῶν ἕνωσιν καὶ τῶν δίχα φρονούντωνσυμφρόνησινrdquo
31 Fr 44 B 11 (DK) apud Anderson (1966 p 37)
22
do cosmos e agrave ordem agrave qual a alma humana pode aspirar (Barker 1989 p 6)32 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA
Apesar da conexatildeo entre muacutesica e metafiacutesica implicada no conceito de mimesis de
acordo com Lippman (1975 p 88) ldquoo pensamento antigo estaacute focado antes nos valores
poliacuteticos e educacionais da muacutesica sonora do que na sua ontologiardquo Embora ambas estejam
baseadas em uma concepccedilatildeo ampla de mousike enquanto a metafiacutesica da harmonia privilegia
o estudo da harmonike o papel psicagoacutegico32 da muacutesica estaacute estritamente ligado ao fenocircmeno
sensiacutevel e por isso ligado ao conceito de mousike enquanto palavra harmonia e ritmo33
No que diz respeito ao papel da muacutesica na educaccedilatildeo grega muito embora os relatos
apareccedilam na literatura grega desde Homero34 foi com Daacutemon que a teoria sobre o papel
psicagoacutegico da muacutesica ganhou forma De acordo com Anderson
em grande parte a histoacuteria do ethos na Greacutecia eacute ela mesma um enigma masencontramos sugestotildees da teoria em autores do seacuteculo V Daacutemon natildeo inventou ateoria do ethos ele a expandiu e codificou a um grau notaacutevel e talvez incomparaacutevel(Anderson 1966 p 42)
A respeito da teoria atribuiacuteda a ele temos apenas testemunhos posteriores Daacutemon eacute
considerado um sofista do final do seacuteculo V aC para ele ldquomuacutesica e danccedila surgem
necessariamente quando a alma eacute movida de algum modo muacutesicas e danccedilas belas e livres
criam uma alma semelhante e as de tipo contraacuterio criam um tipo contraacuterio de almardquo 35 Cada
tipo de muacutesica variando em suas harmoniai e ritmos tem o poder de representar diferentes
qualidades do caraacuteter virtudes e viacutecios36 Por isso segundo os relatos de Platatildeo e Ateneu
32 Conceito formado a partir dos termos psykhe (alma) e agoge (caminho) psicagogia significa literalmenteldquoconduccedilatildeo da almardquo Em Luciano por exemplo o termo estaacute ligado agrave conduccedilatildeo dos mortos para o HadesEm rituais religiosos significa encantar conduzir as almas dos mortos e dos vivos O conceito de psicagogiano contexto educacional aparece no Fedro de Platatildeo ligado agrave retoacuterica Primeiramente Soacutecrates pergunta sea arte da oratoacuteria natildeo seria uma psicagogia ldquoum modo de conduzir as almas por intermeacutedio do discursordquo(Platatildeo Fedro 261 A) Ao que ele afirma que ldquovisto que a funccedilatildeo proacutepria do discurso eacute a de ser um modode conduzir as almas uma psicagogia aquele que quer ser um dia um orador de talento devenecessariamente saber da alma as formas que tem ()rdquo (Platatildeo Fedro 271 C-D) Do mesmo modotambeacutem a mousike teria o poder de conduzir a alma Segundo Moutsopoulos (1959 p 259) ldquoo mecanismopelo qual a muacutesica se introduz na alma exposto no Timeu ilustra o modo de acordo com o qual Platatildeo soba influecircncia das doutrinas hipocraacuteticas considera o ritmo dos movimentos corporais como provocador deum apaziguamento alegre agrave alma excitada ou em estado de distuacuterbiordquo No que diz respeito agrave muacutesica apsicagogia eacute o ldquoresultado exercido sobre a alma pelo bom ritmo e pela simetriardquo (Moutsopoulos 1959 p261) Ver Platatildeo Timeu (80 A-B) a respeito da muacutesica Goacutergias (82 B) a respeito da poesia Para maisreferecircncias ver Moutsopoulos (1959 p 259-61)
33 Cf Tomaacutes (2002 p 41) Lippman (1975 p 87-90)34 Cf Homero Iliacuteada (I 472 601) Odisseia (VIII 44-45 XXII 344)35 Fr 37 B 6 apud Anderson (1966 p 42)36 Cf Aristoacutefanes Tesmoforiantes (146) Aristides Quintiliano De Mus (8025)
23
para Daacutemon a muacutesica tem poder moral e as mudanccedilas na muacutesica produzem mudanccedilas nas
estruturas sociais e poliacuteticas37
Se a muacutesica eacute considerada resultado de certo movimento da alma eacute a natureza da
alma que determina a natureza dos movimentos que ela cria e daqueles com os quais ela teraacute
afinidade quando forem ouvidos (Cf Barker 1984 p 169)38 Sobre isso Aristides
Quintiliano considera que nas harmoniai transmitidas por Daacutemon as alteraccedilotildees nas
sequecircncias de notas acontecem porque cada harmonia diferente era uacutetil39 de acordo com o
caraacuteter de cada alma particular
Tais ideias sobretudo no que diz respeito ao poder da muacutesica e sua funccedilatildeo na
sociedade satildeo levadas agraves uacuteltimas consequecircncias na Repuacuteblica de Platatildeo40
deve-se ter cuidado com a mudanccedila para um novo gecircnero musical que pode pocircrtudo em risco Eacute que nunca se abalam os gecircneros musicais sem abalar as mais altasleis da cidade como Dacircmon afirma e eu creio (Platatildeo Rep 424 C)
321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo
Na obra de Platatildeo pode-se observar a estreita relaccedilatildeo entre os dois sentidos do
conceito de mousike O filoacutesofo tal como os pitagoacutericos considera a harmonike sob uma
perspectiva matemaacutetica desvinculada do fenocircmeno sonoro Natildeo obstante o conceito
metafiacutesico de harmonia eacute a chave para a compreensatildeo da teoria do ethos em sua relaccedilatildeo com
a educaccedilatildeo A muacutesica teria o poder de recuperar a harmonia da alma porque imita a harmonia
divina do universo nas almas dos mortais A muacutesica por sua relaccedilatildeo com a harmonia eacute a arte
que tem influecircncia direta no caraacuteter (ethos) do ouvinte penetrando no iacutentimo de sua alma
Platatildeo ocupa-se do desenvolvimento de uma paideia que tem o objetivo de harmonizar a
alma Daiacute a importacircncia para Platatildeo de definir na Repuacuteblica e nas Leis qual o ethos de cada
37 Platatildeo Rep (424 C) Ateneu (628 C)38 A explicaccedilatildeo de como essa mudanccedila acontece se baseia na ideia de que harmoniai de diferentes ethe satildeo
produzidas pela mudanccedila de posiccedilatildeo das notas intermediaacuterias do tetracorde de acordo com a finalidade quese classificava como feminina ou masculina
39 O conceito de utilidade eacute central para a compreensatildeo da mousike enquanto uma das disciplinas dos EstudosCiacuteclicos e tambeacutem para a compreensatildeo da refutaccedilatildeo ceacutetica ao papel psicagoacutegico da muacutesica
40 Embora os reflexos da teoria damoniana do ethos sejam evidentes na obra de Platatildeo segundo Anderson(1966 p 40) ldquomostra-se muito difiacutecil infelizmente lidar com a noccedilatildeo de similaridade enquanto um meioefetivo de construir o caraacuteter atraveacutes da melodia Enquanto alguma conexatildeo com a mimesis parece ser certahaacute boas razotildees para se tratar a similaridade (homoiotes) como um princiacutepio originalmente damonianoligeiramente diferente da mimesis platocircnica que o incorporourdquo A delimitaccedilatildeo das particularidades da teoriade Daacutemon que foram absorvidas por Platatildeo foge ao escopo de nossa investigaccedilatildeo
24
harmonia e de cada ritmo41
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta o tipo de educaccedilatildeo que algueacutem deve receber antes de
estudar Filosofia As ciecircncias matemaacuteticas que devem ser ensinadas satildeo aritmeacutetica
geometria astronomia e harmonike42 Essa uacuteltima tem uma relaccedilatildeo estreita com a concepccedilatildeo
pitagoacuterica43 Nesse sentido para Platatildeo qualquer arte quando privada do nuacutemero e da
medida eacute deixada agrave mercecirc dos sentidos e segundo ele a muacutesica eacute um claro exemplo disso 44
Eacute esse para ele o caso dos teoacutericos empiristas que em oposiccedilatildeo aos pitagoacutericos tomavam
somente o fenocircmeno sonoro como base para a ciecircncia musical medindo uns pelos outros os
acordes e os sons que satildeo ouvidos45
Assim como para os pitagoacutericos para Platatildeo a harmonike estaacute ligada agrave astronomia e
soacute diz respeito agrave muacutesica na medida em que os intervalos musicais podem ser descritos como
relaccedilotildees matemaacuteticas
Eacute provaacutevel que assim como os olhos foram moldados para a astronomia os ouvidosforam formados para o movimento harmocircnico e as proacuteprias ciecircncias satildeo irmatildes umada outra tal como afirmam os Pitagoacutericos e noacutes oacute Glaacuteucon concordamos (PlatatildeoRep 530 D)
Mesmo assim segundo Barker o estudo da harmonike eacute fundamental para a
compreensatildeo dos efeitos da muacutesica
O propoacutesito da harmonike na Repuacuteblica Livro VII e no Timeu eacute nos guiar emdireccedilatildeo agrave compreensatildeo dos princiacutepios que governam a estrutura da realidade comoum todo e fornecer uma forma de entendimento que iraacute nos ajudar a restaurarnossas proacuteprias almas distorcidas agrave sua perfeiccedilatildeo original (Barker 2007 p 311)
Embora a ciecircncia harmocircnica seja um estudo abstrato distante do fenocircmeno sonoro e
por isso mais elevado satildeo os efeitos da muacutesica na alma do homem e consequentemente na
sociedade que tambeacutem para Platatildeo importam na vida praacutetica
No Timeu o filoacutesofo relaciona estruturas harmocircnicas agrave constituiccedilatildeo do universo e da
41 A Repuacuteblica e as Leis satildeo as principais fontes sobre o papel psicagoacutegico da muacutesica na Filosofia de PlatatildeoEssas obras tratam de uma sociedade ideal e muitas das coisas condenadas por Platatildeo faziam parte darealidade de sua eacutepoca Assim eacute tanto a partir das teorias discutidas por Platatildeo (o pitagorismo e a teoria doethos musical) quanto em funccedilatildeo de suas criacuteticas agrave muacutesica de seu tempo que podemos compreenderquestotildees importantes sobre o papel da muacutesica e a relevacircncia da teoria do ethos musical
42 Satildeo essas as disciplinas que vieram a compor os Estudos Ciacuteclicos ainda na Antiguidade e posteriormenteo quadrivium das Artes Liberais Ver seccedilatildeo 42
43 Muito embora no livro VII Platatildeo critique os pitagoacutericos por natildeo abstraiacuterem o suficiente do acircmbito sonoro44 Cf Platatildeo Filebo (55 E ndash 56 A)45 Cf Platatildeo Rep (531 A) Aristoacutexeno algum tempo depois estabeleceu uma teoria musical baseada no
fenocircmeno sonoro mas com um rigor cientiacutefico muito maior do que o dos empiricistas criticados por Platatildeo
25
alma humana A muacutesica (enquanto fenocircmeno sonoro) foi dada para noacutes pelas Musas em
funccedilatildeo da harmonia que se move de maneira anaacuteloga agraves nossas almas e natildeo em funccedilatildeo do
prazer irracional tal como de acordo com o autor se considerava em sua eacutepoca A muacutesica
serviria para auxiliar o movimento da alma em direccedilatildeo agrave ordem e agrave concordacircncia quando
essa tivesse perdido sua harmonia46
Se a muacutesica tem essa relaccedilatildeo direta com o movimento da alma uma muacutesica ruim
levaria agrave discordacircncia e confusatildeo na alma Por oposiccedilatildeo quando os sons satildeo executados
harmonicamente eles ldquoproporcionam prazer (hedone) aos brutos e felicidade (euphrosyne)
aos inteligentes porque nos movimentos mortais se produz uma imitaccedilatildeo da harmonia
divinardquo (Platatildeo Ti 80B)47 De acordo com Barker as combinaccedilotildees musicais de sons ldquonatildeo
podem dar prazer [intelectual] agraves pessoas que falham em apreciar a conexatildeo desses padrotildees
sonoros com a harmonia da Alma do Mundordquo (Barker 2007 p 326)
Contudo o prazer irracional ou intelectual natildeo eacute o que define o ethos musical Os
homens tecircm prazer com as muacutesicas a que eles estatildeo acostumados Acontece que a alma eacute
suscetiacutevel agraves melodias sejam ldquoboasrdquo ou ldquoruinsrdquo Para o filoacutesofo a muacutesica que produz prazer
irracional aquela que ldquodesarmonizardquo a alma faz os homens piores Jaacute a muacutesica que
harmoniza a alma produz homens melhores48
Se para Platatildeo ldquoa verdadeira funccedilatildeo de toda educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento da alma e
harmonizaccedilatildeo de seus elementosrdquo (Barker 1984 p 127) ela deve abranger o corpo e a alma
Por isso na Repuacuteblica Platatildeo divide-a em duas partes a saber a ginaacutestica e a mousike
(enquanto veiacuteculo da poesia)
Depois da muacutesica eacute na ginaacutestica que se deve educar os jovens (hellip) A mim natildeo meparece ser o corpo por perfeito que seja que pela sua excelecircncia49 torne a almaboa mas pelo contraacuterio a alma boa pela sua excelecircncia permite ao corpo ser omelhor possiacutevel (Platatildeo Rep 403 C - D)
Platatildeo define a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne) como os objetivos
eacuteticos da educaccedilatildeo50 A educaccedilatildeo pela muacutesica e pela ginaacutestica natildeo tem como finalidade o
corpo mas se daacute em funccedilatildeo da alma A ginaacutestica gera no homem certa rusticidade que
46 Cf Platatildeo Ti (47 C - E) Anderson (1966 p 60)47 Podemos distinguir entre hedone como o prazer irracional e euphrosyne (traduzido aqui por ldquofelicidaderdquo)
enquanto prazer intelectual 48 Cf Platatildeo Leis (802 C - D) Ti (43 A ndash 44 C) Ver tambeacutem Barker (1984 p 124)49 ldquoExcelecircnciardquo traduz ldquoareterdquo comumente traduzido tambeacutem por ldquovirtuderdquo50 O desenvolvimento de tais virtudes na alma por meio da muacutesica seraacute alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica na primeira
parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37)
26
quando bem educada vem a ser bravura e a muacutesica certa brandura que bem educada tem
uma natureza filosoacutefica sendo temperada e ordenada51 Essas qualidades satildeo consideradas
necessaacuterias e devem ser harmonizadas A alma que as potildee em harmonia eacute considerada
temperante e corajosa e a que natildeo as potildee eacute covarde e ruacutestica
No que concerne agrave muacutesica ao discutir a educaccedilatildeo no livro III da Repuacuteblica Platatildeo
apresenta o modo como as harmoniai e os ritmos refletem diferentes disposiccedilotildees da alma e
afirma em funccedilatildeo disso seu poder de afetar o desenvolvimento do caraacuteter Cada harmonia
determina um padratildeo de afinaccedilatildeo para o instrumento e para a voz que traz consigo certos
atributos eacuteticos ldquoimitando disposiccedilotildees psicoloacutegicas desejaacuteveis ou indesejaacuteveis e moldando a
alma do ouvinte de acordo com elasrdquo (Barker 2007 p 309)
Em vista desse poder da muacutesica toda praacutetica musical que pudesse corromper a alma
deveria ser banida Tais restriccedilotildees relacionam-se aos compositores considerados ldquomodernosrdquo
na eacutepoca em que Platatildeo vivia52 Nas Leis o filoacutesofo condena os compositores que misturam
palavras melodias e ritmos de caraacuteteres opostos imitam sons diversos afastam o ritmo da
melodia53 (recitando os textos dentro de uma meacutetrica mas sem um contorno meloacutedico) e
afastam o ritmo e a melodia da palavra (praacutetica de muacutesica instrumental) Em suma eles usam
os instrumentos musicais para outros propoacutesitos aleacutem do acompanhamento da danccedila e do
canto e o uso que fazem dos instrumentos eacute considerado vulgar e inculto
Essas caracteriacutesticas da ldquomuacutesica novardquo satildeo repetidamente condenadas pelos que
escreveram sobre muacutesica ao longo dos seacuteculos seguintes em vista da idealizaccedilatildeo de uma
muacutesica ldquopurardquo que remete ao periacuteodo arcaico Segundo Barker
todas as complexidades sutis e sofisticaccedilotildees agradaacuteveis esteticamente introduzidasna muacutesica pelos compositores ldquomodernosrdquo devem ser rejeitadas em favor de umasimplicidade nobre que supotildee-se que tenha caracterizado a muacutesica de uma era deouro perdida (Barker 2007 p 309)
As criacuteticas de Platatildeo visavam combater a ideia de que a muacutesica estaacute mais ligada ao
prazer individual do que aos valores morais tradicionais uma alusatildeo direta agrave muacutesica de seu
periacuteodo que era considerada hedonista lasciva e virtuosiacutestica Natildeo que o prazer fosse
absolutamente condenado por Platatildeo O prazer eacute considerado um acompanhamento
51 A questatildeo da relaccedilatildeo entre muacutesica e filosofia eacute utilizada por Sexto Empiacuterico para refutar a utilidade damuacutesica Cf M VI 13 36
52 Sexto Empiacuterico retoma essa oposiccedilatildeo entre muacutesica antiga e moderna Cf M VI 14-553 Platatildeo enfatiza a importacircncia da palavra em relaccedilatildeo ao ritmo e agrave melodia advertindo que ldquodevem forccedilar-se
os peacutes e a melodia a seguirem as palavras e natildeo estas agravequelesrdquo (Platatildeo Rep 400 A)
27
importante da muacutesica mas apenas enquanto subordinado agrave finalidade moral54
Eacute por isso que Platatildeo adverte na Repuacuteblica que os cuidadores da cidade devem zelar
para que a educaccedilatildeo natildeo venha a se corromper ldquoque a tenham sob vigilacircncia em todas as
situaccedilotildees para que natildeo haja inovaccedilotildees contra as regras estabelecidas na ginaacutestica nem na
muacutesicardquo (Platatildeo Rep 424 B) Tambeacutem nas Leis o filoacutesofo considera que
visto que ela [a muacutesica] eacute mais estimada do que as outras representaccedilotildees ela requerum tratamento mais cuidadoso entre todas Qualquer um que cometa um engano emrelaccedilatildeo a ela seria muito prejudicado por adotar preferencialmente disposiccedilotildeesruins () (Platatildeo Leis 669 B - C)
O legislador deveraacute distinguir quais satildeo as canccedilotildees adequadas para os homens e para
as mulheres e combinaacute-las aos ritmos e harmoniai adequados ldquoPois seria terriacutevel para o
canto estar errado em toda sua harmonia ou para o ritmo em todo seu ritmo se ele [o
legislador] designasse harmoniai e ritmos que fossem inadequados para as canccedilotildeesrdquo (Platatildeo
Leis 802 E)
Devido agrave estreita relaccedilatildeo entre muacutesica e paideia focada no desenvolvimento moral do
cidadatildeos Platatildeo apresenta especificamente quais harmoniai e ritmos satildeo permitidos e quais
devem ser banidos As harmonias que devem ser evitadas satildeo as ldquochorosasrdquo como ldquoa
mixoliacutedia a sintonoliacutedia e outras que tais (hellip) Portanto essas satildeo as que se deve excluir
visto que satildeo inuacuteteis para as mulheres que conveacutem que sejam honestas para jaacute natildeo falar dos
homensrdquo (Platatildeo Rep 398 E) Aleacutem disso as harmonias lacircnguidas (adequadas aos
banquetes) satildeo as harmonias jocircnia e liacutedia Estas satildeo consideradas efeminadas e tambeacutem
devem ser evitadas
As harmonias que devem ser preservadas na Repuacuteblica em funccedilatildeo de seu poder de
provocar bravura e temperanccedila satildeo a doacuterica pela capacidade de imitar a voz e as inflexotildees
de um homem valente na guerra e em toda a accedilatildeo violenta e a friacutegia que imitaria
aquele que se encontra em atos paciacuteficos natildeo violentos mas voluntaacuterios que usa dorogo e da persuasatildeo (hellip) ou pelo contraacuterio se submete aos outros quando lhepedem o ensinam ou persuadem e tendo assim procedido a seu gosto semsobranceria se comporta com bom senso e moderaccedilatildeo em todas estascircunstacircncias (Platatildeo Rep 399 B - C)
Platatildeo dispensa a fabricaccedilatildeo de instrumentos apropriados para muitas harmonias
ldquologo natildeo teremos de sustentar artiacutefices para fabricarem harpas triacutegonos e toda a espeacutecie de
54 Cf Lippman (1975 p 114) Essa diferenccedila jaacute foi abordada acima (nota 47)
28
instrumentos de muitas cordas e de muitas harmoniasrdquo (Platatildeo Rep 399 C ndash D) Tambeacutem
proiacutebe o uso do aulo por ser aquele que emite o maior nuacutemero de sons De acordo com
Platatildeo satildeo uacuteteis na cidade a lira e a ciacutetara e nos campos a siringe preferindo ldquoApolo e os
instrumentos de Apolo a Maacutersias55 e os seus instrumentosrdquo (Platatildeo Rep 399 E) Fazendo
essas coisas descritas acima afirma Platatildeo ldquopurificamos de novo a cidade que haacute pouco
diziacuteamos estar efeminadardquo (Platatildeo Rep 399 E)
Aleacutem disso Platatildeo determina os ritmos adequados agrave Repuacuteblica buscando observar
ldquoquais satildeo os correspondentes a uma vida ordenada e corajosardquo (Platatildeo Rep 399 E) Para
falar dos ritmos Platatildeo recorre a Daacutemon e os classifica de acordo com suas qualidades eacuteticas
distinguindo aqueles que satildeo ldquoadequados agrave baixeza agrave insolecircncia agrave loucura e aos outros
defeitos e os ritmos que devem deixar-se aos seus contraacuteriosrdquo (Platatildeo Rep 400 B)
Se a muacutesica tem o poder de mover a alma alterando-a em direccedilatildeo ao caos ou agrave ordem
a educaccedilatildeo musical eacute considerada no pensamento Platocircnico fundamental para restaurar a
harmonia na alma movendo o caraacuteter do ouvinte em direccedilatildeo agrave excelecircncia moral
Em suma para Platatildeo ldquoa educaccedilatildeo pela muacutesica eacute capital porque o ritmo e a harmonia
penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente trazendo consigo a perfeiccedilatildeo e
tornando aquela perfeita (hellip)rdquo (Platatildeo Rep 401 D) Por isso
aquele que foi educado nela [na muacutesica] como devia sentiria mais agudamente asomissotildees e imperfeiccedilotildees no trabalho56 ou na conformaccedilatildeo natural e suportando-asmal e com razatildeo honraria as coisas belas e acolhendo-as jubilosamente na suaalma com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito57 (Platatildeo Rep 401E)
322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica Aristoacuteteles discute as definiccedilotildees apresentadas por Platatildeo na Repuacuteblica e
nas Leis Mas enquanto as consideraccedilotildees deste tomam como ponto de partida as teorias
pitagoacutericas a respeito da mousike (focada em princiacutepios matemaacuteticos) para desta teoria
musical extrair as consequecircncias eacuteticas que determinam seu papel na sociedade aquele natildeo se
55 Maacutersias teria sido um auleta friacutegio que desafiou Apolo para uma competiccedilatildeo musical56 O termo traduzido por ldquotrabalhordquo deriva da palavra grega ldquodemiourgeordquo e estaacute ligado neste caso
especificamente agrave praacutetica das artes manuais 57 No texto grego aparece a expressatildeo ldquokalos te kagathosrdquo que significa ldquobelo e bomrdquo O tradutor da ediccedilatildeo de
referecircncia preferiu utilizar o termo ldquoperfeitordquo porque no seacuteculo V aC ldquobelo e bomrdquo traduzia o ideal deperfeiccedilatildeo fiacutesica e moral grego Ver Platatildeo Rep (p 133 n 68 ediccedilatildeo de referecircncia)
29
preocupa na Poliacutetica em determinar as relaccedilotildees entre muacutesica e matemaacutetica ou astronomia
mas como concentra a discussatildeo nos efeitos do fenocircmeno sonoro observados na sociedade
Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo questotildees acuacutesticas a fisiologia da voz e a fisiologia e
psicologia do ouvir Nesse sentido para abordar o papel da muacutesica na educaccedilatildeo o filoacutesofo
observa as experiecircncias humanas ― as opiniotildees os gostos e costumes ― e extrai daiacute um
conhecimento praacutetico distinto da ciecircncia das causas primeiras
Essa cisatildeo entre a visatildeo metafiacutesica do conceito de mousike e sua concepccedilatildeo enquanto
fenocircmeno sonoro aparece nas divergecircncias entre Platatildeo e Aristoacuteteles como resultado de uma
diferenccedila fundamental entre suas concepccedilotildees metafiacutesicas58 Observa-se a partir disso uma
mudanccedila radical no estatuto do conceito de harmonia As verdades a respeito da muacutesica
estavam ligadas ao fato desta ser um reflexo sonoro harmonioso dos nuacutemeros silenciosos que
eram a realidade uacuteltima Por isso para Platatildeo a ciecircncia musical natildeo dizia respeito ao
fenocircmeno musical visto que os proacuteprios fenocircmenos enquanto sujeitos agrave accedilatildeo do tempo satildeo
imperfeitos
No que diz respeito agrave harmonia Aristoacuteteles discorda radicalmente de Platatildeo Ele
rejeita as ideias platocircnicas e a importacircncia do nuacutemero A esse respeito Lippman chama a
atenccedilatildeo para o fato de que a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute
em um grau consideraacutevel uma polecircmica contra as concepccedilotildees pitagoacutericas eplatocircnicas Os Objetos Matemaacuteticos sustenta Aristoacuteteles natildeo podem existirenquanto substacircncias distintas tanto nas coisas sensiacuteveis quanto separados delaseles podem ser separados apenas em pensamento (Lippman 1975 p 116)
Muito embora a harmonia tambeacutem caracterize a concepccedilatildeo de homem na Filosofia de
Aristoacuteteles59 ele ldquonatildeo acredita na harmonia platocircnica do cosmos ou da alma nem acredita
que a presenccedila das mesmas relaccedilotildees matemaacuteticas em dois fenocircmenos tem qualquer
sustentaccedilatildeo real na interconexatildeo ou na natureza desses fenocircmenosrdquo (Lippman 1975 p 118)
A rejeiccedilatildeo da metafiacutesica da harmonia sendo parte vital de uma elaborada rejeiccedilatildeo do
idealismo platocircnico tem como consequecircncia a libertaccedilatildeo da muacutesica da necessidade de uma
ontologia o que faz com que o interesse no proacuteprio fenocircmeno sonoro aumente60 A
58 Enquanto a verdade para Platatildeo eacute algo transcendente para Aristoacuteteles natildeo haacute uma realidade aleacutem doproacuteprio mundo o sensiacutevel deixa de ser engano e passa a ser ponto de partida legiacutetimo para o conhecimento
59 As concepccedilotildees harmocircnicas de Aristoacuteteles satildeo encontradas na fiacutesica na matemaacutetica e nas ciecircncias praacuteticas eprodutivas Cf Lippman (1975 p 117) A harmonia eacute considerada inerente aos oacutergatildeos do sentido enquantoeles correspondem agrave natureza dos objetos sensiacuteveis A beleza fiacutesica e a excelecircncia corporal tambeacutem se datildeodevido agrave harmonia Jaacute a alma nem eacute harmocircnica nem conteacutem harmonia ou nuacutemero Cf Lippman (1975 p120)
60 Cf Lippman (1975 p 115)
30
investigaccedilatildeo especializada e cientiacutefica da muacutesica no pensamento aristoteacutelico faz com que
cada vez mais os atributos do som se tornem importantes
Natildeo obstante no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Aristoacuteteles ainda
reserva a ela um papel importante Todavia sua atuaccedilatildeo na alma deixa de ser um reflexo do
cosmos Para o filoacutesofo a muacutesica surge de uma capacidade humana inata61 Sob essa
perspectiva a mimesis perde seu sentido quase pejorativo de coacutepia imperfeita e passa a ser
considerada uma atitude natural do homem atraveacutes da qual ele aprende Para Aristoacuteteles as
artes mimeacuteticas satildeo as artes ligadas tambeacutem agrave criaccedilatildeo Tal concepccedilatildeo culmina em uma
postura muito menos restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica
Suas observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave muacutesica na Poliacutetica tecircm como ponto de partida as
opiniotildees comuns acerca da muacutesica a praacutetica musical de sua eacutepoca e a educaccedilatildeo musical
comum Tomando a descriccedilatildeo de Barker
A tarefa do filoacutesofo eacute examinar minuciosamente e organizar certa evidecircncia mostrarda maneira mais clara possiacutevel as tensotildees inerentes a ela e se ele puder desativaacute-las mostrando como visotildees opostas podem ser reinterpretadas e relacionadasharmoniosamente enquanto partes diferentes ou aspectos de uma aspiraccedilatildeo comumagrave felicidade e excelecircncia humana (Barker 1984 p 170)62
Das atividades que os homens exercem algumas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo
dignas As atividades necessaacuterias e uacuteteis existem em funccedilatildeo das atividades honrosas
(Aristoacuteteles Pol 1333 A 30) A educaccedilatildeo tem em vista as virtudes que devem ser
desenvolvidas na alma e por isso deve ser uma preocupaccedilatildeo constante do legislador A
questatildeo da educaccedilatildeo dos jovens na eacutepoca de Aristoacuteteles de acordo com o filoacutesofo
tem presentemente gerado controveacutersia na medida em que nem todos estatildeo deacordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos no que se refere agrave virtude eno que diz respeito agrave vida melhor Tambeacutem natildeo eacute evidente se eacute mais adequado que aeducaccedilatildeo vise as capacidades intelectuais ou o caraacuteter da alma (Aristoacuteteles Pol1337 A 30)63
Discute-se diz Aristoacuteteles se a educaccedilatildeo deve visar o que eacute uacutetil para a vida o que eacute
61 Cf Lippman (1975 p 138)62 Note-se que o procedimento de Aristoacuteteles eacute semelhante ao que Sexto Empiacuterico descreve em relaccedilatildeo ao
ceticismo Mas enquanto Aristoacuteteles busca harmonizar as opiniotildees opostas o ceacutetico as toma comoferramenta para gerar a suspensatildeo de juiacutezo que tambeacutem levaria em uacuteltima instacircncia agrave felicidade
63 Aqui por caraacuteter da alma Aristoacuteteles designa as disposiccedilotildees psicoloacutegicas que formam o caraacuteter doindiviacuteduo O termo no original eacute ethos
31
adequado agrave praacutetica da virtude ou ateacute mesmo aquilo que natildeo tem utilidade64 Aleacutem disso
distingue-se entre quais satildeo tarefas adequadas aos homens livres e natildeo-livres Em vista desses
aspectos a educaccedilatildeo eacute discutida na Poliacutetica
Aristoacuteteles (Pol 1337 B 1339 B) considera a muacutesica um dos ramos da educaccedilatildeo
mas questiona sua utilidade O filoacutesofo apresenta duas opiniotildees acerca da utilidade da
muacutesica que ela natildeo eacute necessaacuteria nem uacutetil agrave vida na cidade mas eacute uacutetil enquanto diversatildeo no
tempo de lazer Seu papel na educaccedilatildeo se restringiria a isso ldquodiversatildeo proacutepria aos homens
livresrdquo
Para o filoacutesofo os homens livres podem se ocupar dos Estudos Liberais65 Mas um
estudo demasiado intensivo desses saberes poderia vir a provocar efeitos nocivos pois o
cidadatildeo passaria a enxergar melhor a parte do que o todo Isso porque Aristoacuteteles considera
sobretudo a finalidade em vista da qual se realiza determinada atividade A praacutetica eventual
das atividades ligadas aos Estudos Liberais eacute permitida desde que com finalidade em si
mesma e natildeo em funccedilatildeo de outros
Para Aristoacuteteles os Estudos Liberais satildeo compostos pela Gramaacutetica Ginaacutestica
Muacutesica e Desenho Entre essas disciplinas apenas a muacutesica pode ser questionada em termos
de sua utilidade Tal como Platatildeo Aristoacuteteles tambeacutem tece consideraccedilotildees a respeito da
finalidade hedonista da muacutesica que era cultivada em sua eacutepoca Todavia enquanto Platatildeo em
funccedilatildeo dos princiacutepios filosoacuteficos que estatildeo na base das ideias apresentadas na Repuacuteblica
subsume o prazer da muacutesica agrave sua finalidade eacutetica para Aristoacuteteles o prazer eacute colocado ao
lado dos objetivos morais do ensino da muacutesica ldquoenquanto um efeito musical coordenadordquo
(Lippman 1975 p 114)
Aristoacuteteles considera que a muacutesica participa da educaccedilatildeo da diversatildeo e do
entretenimento Em funccedilatildeo da sua agradabilidade ela leva ao relaxamento que eacute o objetivo da
diversatildeo (poder terapecircutico) aleacutem disso ela serve ao entretenimento visto que esse tem que
ser elevado e apraziacutevel No que diz respeito agrave educaccedilatildeo o filoacutesofo considera que deve-se
orientar bem o oacutecio que eacute mais elevado que o trabalho Eacute nesse sentido que para ele a
muacutesica foi inserida por muitos na educaccedilatildeo
O esquema eacutetico de Aristoacuteteles concebe que a melhor vida eacute a vida de accedilotildeesvirtuosas nessa a natureza do homem enquanto um composto de corpo e alma seexpressa mais completamente Menos valiosos satildeo os jogos o entretenimento e a
64 Para Platatildeo como jaacute foi exposto a educaccedilatildeo deve se concentrar nos conhecimentos matemaacuteticosaritmeacutetica geometria astronomia harmonike
65 Ver seccedilatildeo 42
32
apreciaccedilatildeo da arte pois estes natildeo satildeo despropositados mas servem agrave finalidade derenovaccedilatildeo da habilidade para o trabalho De mais alto valor do que a accedilatildeo virtuosapor outro lado eacute a contemplaccedilatildeo teoreacutetica (Lippman 1975 p 124)
Ao indagar se a muacutesica contribui para a formaccedilatildeo do caraacuteter e da alma Aristoacuteteles
considera que a prova de sua influecircncia eacute revelada nas melodias de Olimpo66 A esse respeito
o filoacutesofo considera que
Todos satildeo unacircnimes em considerar que essas melodias provocam entusiasmo nasalmas ora o entusiasmo eacute uma afecccedilatildeo do caraacuteter da alma Aleacutem do mais e mesmonatildeo contando com os ritmos e as melodias todo o tipo de imitaccedilatildeo provocasentimentos homoacutelogos nos ouvintes Ora sucedendo ser a muacutesica do domiacutenio dascoisas agradaacuteveis (e consistindo a virtude em experimentar com retidatildeo alegriaamor ou oacutedio) eacute evidente que nada eacute mais necessaacuterio aprender e tornar haacutebito doque julgar com retidatildeo e alegrar-se com costumes dignos e belas accedilotildees (AristoacutetelesPol 1340 A 5-15)
A audiccedilatildeo eacute a uacutenica das sensaccedilotildees que se assemelha67 agraves disposiccedilotildees morais Os
ritmos e melodias satildeo imitaccedilotildees da natureza68 de certas disposiccedilotildees morais como a coacutelera e a
mansidatildeo a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne)69 ao que ele acrescenta que ldquoa
praacutetica prova-o bem visto que o nosso estado de espiacuterito se altera consoante a muacutesica que
escutamosrdquo (Aristoacuteteles Pol 1340 A 20)
Para Aristoacuteteles ldquonas proacuteprias melodias haacute imitaccedilatildeo (mimesis) do caraacuteter (ethos)rdquo70 e
isso se evidencia pela diferente natureza de cada uma das harmoniai Consequentemente
quem as ouve eacute afetado de maneira diferente de acordo com as suas diversas formas
Com efeito umas [harmoniai] deixam-nos mais melancoacutelicos e graves comoacontece com a mixoliacutedia outras enfraquecem o espiacuterito como as lacircnguidas outrasincutem um estado de espiacuterito intermeacutedio e circunspecto como parece ser apanaacutegioda harmonia doacuterica porquanto jaacute a friacutegia induz o entusiasmo (Aristoacuteteles Pol1340 A 40 ndash B 5)
Isso ocorre tambeacutem em relaccedilatildeo aos ritmos Uns satildeo mais calmos e outros mais
movimentados e entre esses uns satildeo dignos e outros vulgares O filoacutesofo toma como
evidente que a muacutesica pode alterar o caraacuteter e por isso considera que esta deve ser aplicada agrave
educaccedilatildeo dos jovens pois ela se adapta agrave natureza deles que tecircm dificuldade para tolerar
66 Muacutesico friacutegio do seacuteculo VII aC67 Cf Aristoacuteteles Prob (27 29)68 Enquanto para Platatildeo a imitaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo a algo que estaacute fora do nosso mundo para Aristoacuteteles
ela se daacute dentro do mundo69 As mesmas virtudes que aparecem na obra de PlatatildeoVer p 25 2770 A muacutesica instrumental para os peripateacuteticos tambeacutem afeta o caraacuteter Nos Problemas Musicais lemos que
ldquomesmo se uma melodia natildeo tiver palavras tem todavia caraacuteter moralrdquo (Aristoacuteteles Prob 27 37-8)
33
ensinamentos natildeo suavizados pelo prazer71
As melodias satildeo divididas segundo Aristoacuteteles de acordo com o estabelecido por
determinados filoacutesofos em eacuteticas praacuteticas e entusiaacutesticas Natildeo se deve excluir nenhuma
harmonia visto que cada uma delas tem uma funccedilatildeo na sociedade Na Poeacutetica (1447 A 28
1459 B 37) o modo doacuterico corresponde a uma melodia eacutetica que suscita virtude o hipofriacutegio
a uma melodia energeacutetica que incita a atividade praacutetica e o friacutegio a uma melodia exaltada que
suscita um estado emocional freneacutetico
Enquanto as harmoniai eacuteticas destinam-se agrave educaccedilatildeo do homem livre as praacuteticas e as
entusiaacutesticas podem ser ouvidas por eles somente quando executadas por outros Para a
educaccedilatildeo ldquoimporta usar melodias eacuteticas e harmonias da mesma espeacutecierdquo Admitindo a
opiniatildeo de Platatildeo Aristoacuteteles assume que a harmonia doacuterica eacute desse tipo ldquotodos concordam
que eacute o mais sereno de todos e que possui um caraacuteter mais virilrdquo
Aristoacuteteles critica a instruccedilatildeo teacutecnica que se destina aos concursos porque eacute feita com
uma finalidade exterior a ela mesma e por isso natildeo eacute digna de homens livres Entretanto
diferentemente de Platatildeo o filoacutesofo natildeo considera que se deve abolir completamente os
concursos e espetaacuteculos Mas que utilizando as melodias cataacuterticas esses concursos deveriam
ser propiciados aos homens comuns pois ldquoeacute devido agrave corrupccedilatildeo das harmonias
(especialmente as de tom agudo e dissonantes) que as suas almas se encontram desviadas da
iacutendole naturalrdquo (Aristoacuteteles Pol 1342 A 20)
Nesse sentido o filoacutesofo condena a fala de Soacutecrates na Repuacuteblica onde haacute a recusa do
aulo entre os instrumentos considerando que este por ser excitante pode ser usado para se
produzir o efeito cataacutertico Ainda assim Aristoacuteteles rejeita o uso do aulo na educaccedilatildeo visto
que ele impede o uso da palavra (Aristoacuteteles Pol 1341 B) Do mesmo modo ele considera a
harmonia friacutegia vaacutelida visto que esta eacute em relaccedilatildeo agraves harmoniai o que o aulo eacute em relaccedilatildeo
aos instrumentos ldquoambos satildeo de teor orgiaacutestico e incutem a paixatildeordquo sendo utilizados com
frequecircncia juntos
Aleacutem disso Aristoacuteteles critica Soacutecrates por banir as harmoniai lacircnguidas em funccedilatildeo
de elas provocarem fadiga (na Repuacuteblica essas satildeo a jocircnia e a liacutedia) tendo em vista que na
velhice esse gecircnero de melodia deve ser praticado pois em decorrecircncia da idade os idosos
natildeo conseguem alcanccedilar os tons agudos Por fim Aristoacuteteles contrariando Platatildeo conclui
que a harmonia mais adequada aos jovens parece ser a liacutedia
Para Lippman um dos grandes meacuteritos de Aristoacuteteles reside no modo detalhado como
71 Ver M VI 7
34
ele aborda os princiacutepios que regem o uso da muacutesica Haacute uma ampla consideraccedilatildeo dos fatores
variados que influenciam a questatildeo ldquoo que parece errado de um ponto de vista Aristoacuteteles
mostra pode ser vaacutelido de outrordquo (Lippman 1975 p 126)
O ensino da muacutesica deve ser conduzido de maneira cuidadosa devendo ser enfatizado
com relaccedilatildeo agrave escuta e natildeo agrave praacutetica instrumental muito embora seja necessaacuterio que o
aprendiz participe da praacutetica musical A experiecircncia em instrumentos natildeo eacute o objetivo da
educaccedilatildeo musical pois a praacutetica de uma arte eacute uma atividade improacutepria para o homem livre
A praacutetica musical visa gerar uma familiaridade com a muacutesica tendo em vista o
desenvolvimento da capacidade de fazer bons julgamentos acerca dela Assim uma boa
educaccedilatildeo musical na infacircncia tornaria o indiviacuteduo apto a mais tarde avaliar a boa muacutesica e
fruiacute-la corretamente
Seria bom que esta aprendizagem natildeo fizesse penar como os que se preparam paraconcursos de profissionais72 nem se esperasse das obras realizadas o brilho e ovirtuosismo atingidos pelos que se apresentam nesses concursos nomeadamentenos relativos agrave educaccedilatildeo a muacutesica deveria ser estudada na medida suficiente parapossibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum damuacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns animais(Aristoacuteteles Pol 1341 A 10-17)73
Aristoacuteteles eacute muito menos restritivo que Platatildeo a respeito da muacutesica que pode ser
executada na polis A distinccedilatildeo entre o papel educativo e o prazer que a muacutesica proporciona
enquanto aspectos coordenados e natildeo mais dependentes permite que a muacutesica seja em certas
ocasiotildees apreciada por ela mesma
Diferentemente de Platatildeo no entanto Aristoacuteteles natildeo tem uma baixa consideraccedilatildeopela imitaccedilatildeo ele natildeo estaacute preocupado com seu afastamento da realidade masconsidera pelo contraacuterio que ela eacute natural para o homem que ela o ensina e que daacutea ele prazer Assim eacute dada agrave arte uma base na natureza humana e ela eacute consideradacomo eacutetica e prazerosa de maneira inerente nosso prazer nela entretanto natildeo se daacutedevido agraves suas propriedades sensiacuteveis mas em funccedilatildeo de um prazer no aprendizado(Lippman 1975 p 123-4)
O conceito de mimesis embora despido de seu caraacuteter metafiacutesico permanece central
72 O termo grego ldquotekhnikousrdquo traduzido aqui por ldquoprofissionaisrdquo pode significar tambeacutem ldquoespecialistasrdquo ouldquoteacutecnicosrdquo
73 Essa passagem eacute esclarecedora a respeito da relaccedilatildeo entre os projetos pedagoacutegicos aristoteacutelico e platocircnicoAmbos estatildeo preocupados em educar uma elite que saiba apreciar a muacutesica dita de caraacuteter elevado Maistarde Aristoacutexeno seguindo os passos de seu mestre tambeacutem propotildee que o estudo da muacutesica deve prepararpara uma capacidade de julgamento a respeito da praacutetica musical de seu tempo que eacute considerada vulgarEssa visatildeo natildeo sofre muitas alteraccedilotildees nos seacuteculos seguintes (como mostramos na seccedilatildeo 44 a respeito dosEstudos Ciacuteclicos)
35
no pensamento aristoteacutelico no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Ao
considerar a mimesis enquanto fenocircmeno natural da vida humana a arte (e especificamente a
muacutesica) passa a ser por si mesma eacutetica e prazerosa
No que concerne agraves ideias pitagoacutericas e platocircnicas a respeito da relaccedilatildeo da alma
humana com a harmonia Aristoacuteteles limita-se a dizer que ldquoparece que em noacutes existe algo que
se assemelha a harmonia e ritmo e eacute nesse sentido que alguns saacutebios referem que a alma eacute
harmonia outros que tem harmoniardquo (Aristoacuteteles Pol 1340 B 15) Aristoacuteteles todavia
restringe sua abordagem ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo excluindo do escopo da teoria musical a
questatildeo a respeito do seu estatuto ontoloacutegico Nesse sentido
a imitaccedilatildeo eacute tanto mantida quanto alterada Seu modelo permanece sendo a accedilatildeohumana e o caraacuteter incluindo agora ateacute o que eacute feio mas ao inveacutes de se voltar agravescoisas individuais ela procura sua natureza ideal e geral um processo um tantodiferente no entanto da revelaccedilatildeo de uma realidade eterna por traacutes delas (Lippman1975 p 138)
Ao desvincular o conceito de mimesis (que estaacute na base da teoria do ethos musical) de
suas raiacutezes metafiacutesicas Aristoacuteteles abre caminho para que a muacutesica enquanto fenocircmeno
sonoro adquira uma maior autonomia visto que as alteraccedilotildees que ela promove no caraacuteter do
ouvinte natildeo dependem mais da harmonia do cosmos mas do proacuteprio fenocircmeno sonoro em
sua relaccedilatildeo com a alma humana
33 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA
DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO
Eacute a partir do ponto de vista dos filoacutesofos peripateacuteticos que um dos mais renomados
disciacutepulos de Aristoacuteteles Aristoacutexeno74 promove uma sistematizaccedilatildeo da teoria musical
considerando-a enquanto uma ciecircncia autocircnoma desvinculada dos pressupostos metafiacutesicos
que a subjugavam anteriormente A teoria musical de Aristoacutexeno rompe com a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica de modo que a partir dela a ciecircncia da muacutesica natildeo empresta seus princiacutepios
baacutesicos da matemaacutetica e da fiacutesica mas parte de seu proacuteprio objeto de investigaccedilatildeo De acordo
com Aristoacutexeno a harmonike enquanto parte da muacutesica eacute baseada nos dados que satildeo
apreendidos atraveacutes da audiccedilatildeo Segundo Barker
74 As traduccedilotildees dos trechos da obra de Aristoacutexeno foram feitas a partir da comparaccedilatildeo das traduccedilotildees de Barker(1989) e de Roosevelt Rocha (natildeo publicada) com o texto grego dos Elementa Harmonica (TLG)
36
Sua tarefa eacute exibir a ordem interna do fenocircmeno perceptivo analisar os padrotildeessistemaacuteticos dentro dos quais ela eacute organizada mostrar como a exigecircncia de que asnotas devem caber em certo padratildeo de organizaccedilatildeo mdashse elas devem ser apreendidascomo meloacutedicas mdash explica porque algumas sequecircncias possiacuteveis de alturas formamuma melodia enquanto outras natildeo e por uacuteltimo apresentar todas as regras quegovernam a forma meloacutedica enquanto algo que flui de um grupo coordenado deprinciacutepios que descrevem uma uacutenica e determinada essecircncia a do proacuteprioldquomeloacutedicordquo ou do ldquoafinadordquo75 (Barker 1989 p 4)
Nascido em meados do seacuteculo IV aC Aristoacutexeno de Tarento estudou composiccedilatildeo e
performance musical mas focou seus estudos na Filosofia e na teoria musical
Apoacutes ter recebido de seu pai o muacutesico Espiacutentaro suas primeiras liccedilotildees musicaisAristoacutexeno seguiu os ensinamentos de um Pitagoacuterico (hellip) depois disso ele recebeuliccedilotildees de Aristoacuteteles e adquiriu entre os disciacutepulos do mestre uma reputaccedilatildeosuficiente para pretender sucedecirc-lo na direccedilatildeo da escola (Beacutelis 1986 p 10)
Aristoacutexeno passou um tempo consideraacutevel com os Pitagoacutericos antes de entrar para o
Liceu e se tornar aprendiz de Aristoacuteteles por volta de 330 aC o que provocou uma grande
mudanccedila no seu modo de pensar Apesar de ele ter deixado o Liceu depois deste ter sido
assumido por Teofrasto (porque ele proacuteprio almejava substituir Aristoacuteteles) Aristoacutexeno
permaneceu fiel aos ensinamentos aristoteacutelicos declarando-se ldquodecidido a aplicar os
princiacutepios metodoloacutegicos herdados do Estagiritardquo (Beacutelis 1986 p 11)
Seus escritos sobre teoria musical satildeo inspirados na concepccedilatildeo aristoteacutelica de
conhecimento De acordo com Annie Beacutelis Aristoacutexeno busca fundar uma ciecircncia nova e
autecircntica ldquoaquilo que ele chama legitimamente de ciecircncia harmocircnica uma disciplina
rigorosa e que esgota a totalidade dos objetos que dela dependemrdquo (Beacutelis 1986 p 170) Sua
influecircncia pode ser percebida pelo fato de que no periacuteodo Romano ele era citado
simplesmente como ldquoo muacutesicordquo76
Aristoacutexeno apresenta a ldquociecircncia acerca da melodiardquo77 ou seja a ciecircncia musical como
dividida em muitas partes A disciplina harmocircnica eacute entre elas ldquoa primeira e tem funccedilatildeo
elementar De fato ela eacute a primeira das disciplinas teoreacuteticas cuja magnitude eacute tatildeo grande
que se estende ateacute a teoria dos sistemas (systemata) e dos tons (tonos)rdquo (Aristoacutexeno El
75 Essa definiccedilatildeo eacute usada por Sexto Empiacuterico na segunda parte do Contra os Muacutesicos Ver M VI 3876 Sua relevacircncia no periacuteodo romano pode ser indicativa do motivo pelo qual Sexto Empiacuterico o utiliza como
paradigma de muacutesico e sua teoria como paradigma de ciecircncia musical Sexto Empiacuterico pretende combater asvisotildees mais comuns a respeito da teoria musical e Aristoacutexeno eacute por sua vez considerado ldquoo muacutesicordquo no quediz respeito agrave ciecircncia musical Nesse sentido satildeo os aspectos teacutecnicos da teoria musical de acordo com opensamento de Aristoacutexeno que satildeo combatidos
77 ldquoMelodiardquo traduz ldquoto melosrdquo Aqui tem um sentido amplo que inclui melodia ritmo e palavra
37
Harm 11)
As questotildees de tipo mais elevado que satildeo consideradas jaacute quando a muacutesica praacutetica(poietike)78 utiliza os sistemas e os tons natildeo mais pertencem a ela mas agrave ciecircnciaque compreende essa e as outras ciecircncias atraveacutes das quais considera-se tudo quediz respeito agrave muacutesica Eacute isso que diz respeito ao muacutesico (Aristoacutexeno El Harm12)
Diante dessas definiccedilotildees o primeiro recorte que se faz eacute o de que a harmonike natildeo faz
parte do acircmbito praacutetico A harmonike eacute apresentada como parte de uma ciecircncia mais ampla
que envolve o estudo de tudo que tem a ver com muacutesica
A ciecircncia harmocircnica divide-se em sete partes a saber mdash a discussatildeo das notas
intervalos gecircneros sistemas tons modulaccedilatildeo e a uacuteltima estaacute ligada agrave proacutepria composiccedilatildeo
meloacutedica79 As notas satildeo a base para a composiccedilatildeo de melodias
visto que muitas formas de melodias de todos os tipos vecircm a ser em notas que satildeoelas proacuteprias as mesmas e imutaacuteveis eacute evidente que sua variedade depende do usoque eacute dado agraves notas e isto noacutes chamamos composiccedilatildeo meloacutedica Portanto a ciecircncialigada agrave afinaccedilatildeo harmocircnica depois de percorrer as partes que foram mencionadasatinge sua finalidade aqui (Aristoacutexeno El Harm 238 20)80
A composiccedilatildeo de melodias (melopoiia) aparece como finalidade da harmonike
Todavia tal finalidade natildeo parece estar ligada agrave ldquopraacutetica composicionalrdquo (poietike) mas
antes ao conhecimento dos princiacutepios baacutesicos que a norteiam A harmonike natildeo eacute da ordem
da tekhne mas eacute uma teoria Tambeacutem de acordo com Beacutelis eacute evidente que Aristoacutexeno a
distingue tambeacutem da ldquopoeacuteticardquo que cria e da muacutesica ldquopraacuteticardquo que utiliza o material
musical81 Segundo a comentadora Aristoacutexeno
(hellip) definitivamente distingue em todo caso a teoria da poeacutetica a harmonike elediz eacute a primeira disciplina teoreacutetica ela natildeo se estende aleacutem do que concerne oconhecimento dos sistemas de tons (noacutes utilizamos essa expressatildeo como umatalho) mas ela investiga as questotildees mais elevadas que haacute enquanto a poeacuteticautiliza os sistemas e os tons natildeo lhe pertencendo mais (Beacutelis 1986 p 171)
78 O termo ldquopoietikerdquo inclui os aspectos praacuteticos da composiccedilatildeo estaacute ligado ao proacuteprio fazer musical VerBarker (2007 p 139) e Beacutelis (1986 p 171)
79 Discutimos o uso dessa definiccedilatildeo em Sexto Empiacuterico na seccedilotildees 511 e 5380 Para Aristoacutexeno as notas estatildeo na base da ciecircncia dos sons Eacute nesse sentido que Sexto Empiacuterico ataca o
conceito de som contido na definiccedilatildeo de nota Se a nota eacute a ldquoincidecircncia de um som em uma tensatildeordquo se natildeohaacute uma definiccedilatildeo do conceito de som natildeo haacute definiccedilatildeo do conceito de nota Ver M VI 52 Assim se amuacutesica eacute baseada nas notas e as notas no som ao mostrar a inconsistecircncia do conceito de som (mostrando asua ldquoinexistecircnciardquo) destroacutei-se tambeacutem toda a muacutesica
81 Ver Beacutelis (1986 p 187 n 4)
38
Pode-se considerar que cada gecircnero meloacutedico eacute um tipo de composiccedilatildeo Aristoacutexeno
apresenta como escopo de suas exposiccedilotildees o sentido em que cada tipo de composiccedilatildeo tem
um efeito (de acordo com sua proacutepria ressalva isso se a muacutesica tiver esse poder)
No momento importa frisar que Aristoacutexeno define como objeto de seus discursos
cada uma das composiccedilotildees meloacutedicas que segundo a interpretaccedilatildeo de Barker (2007 p 232)
ldquonatildeo satildeo composiccedilotildees individuais mas estilos de composiccedilatildeordquo82 Assim a harmonike teria
como finalidade natildeo a praacutetica composicional mas a compreensatildeo dos estilos de composiccedilatildeo
Tal interpretaccedilatildeo eacute corroborada tambeacutem pela seguinte passagem do segundo livro dos
Elementa Harmonica
Alguns imaginam que essa ciecircncia eacute de grande significacircncia alguns deles supondoateacute mesmo que ouvir a um discurso sobre harmonike iraacute fazecirc-los natildeo apenasmuacutesicos mas tambeacutem melhores quanto ao caraacuteter Essas pessoas ouviram mal osdiscursos nas nossas exposiccedilotildees ldquoo que tentamos fazer eacute mostrar para cada tipo decomposiccedilatildeo meloacutedica (ton melopoiion hekasten) e para a muacutesica em geral que tal etal tipo prejudica o caraacuteter enquanto tal e tal tipo eacute uacutetilrdquo e natildeo tendo ouvido issoeles tambeacutem natildeo ouviram nossa qualificaccedilatildeo ldquona medida em que a muacutesica pode seruacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30)
Acerca desta passagem resta assinalar que no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre os tipos
de composiccedilatildeo meloacutedica e seu efeito no ouvinte de fato Aristoacutexeno eacute bastante reticente ao
tratar da relaccedilatildeo entre muacutesica e virtude
Aristoacutexeno se dedica a corrigir dois excessos alguns imaginam por saberem osrudimentos da harmonike que satildeo muacutesicos por completo mas tambeacutem que setornaram moralmente melhores Outros ao contraacuterio relegaram esta ciecircncia a umaposiccedilatildeo despreziacutevel se contentando em ignoraacute-la Optando pela posiccedilatildeo do meioAristoacutexeno sustenta que a harmonike natildeo eacute mais que uma parte do saber do muacutesicoem si ela natildeo tem efeito moral seus ouvintes aparentemente natildeo apreenderam seupropoacutesito sobre os tipos de melopeia dos quais alguns foram qualificadosprejudiciais e outros uacuteteis (hellip) (Beacutelis 1986 p 97)
Aleacutem disso segundo Beacutelis ldquoAristoacutexeno provavelmente mostrou o valor musical de
uma e outra melopeia quer dizer tal e tal forma de combinaccedilatildeo de sons onde certos ouvintes
acreditaram reconhecer o valor moral das tonalidadesrdquo (Beacutelis 1986 p 172) mas este natildeo
constitui o foco principal de sua teoria
Como apresentamos cabe agravequele que eacute chamado ldquomuacutesicordquo dominar muitas
disciplinas ldquoA harmonike eacute apenas uma parte da habilidade do muacutesico tal como satildeo as
82 Para uma discussatildeo apurada dessa questatildeo ver Barker (2007 cap 9)
39
ciecircncias do ritmo da meacutetrica e dos instrumentosrdquo83 (Aristoacutexeno El Harm 232)
A harmonike eacute designada como ciecircncia mas como uma ciecircncia particular que seraacuteum elo de um conjunto cientiacutefico Esboccedila-se jaacute uma teoria do saber musical porinteiro onde a exigecircncia de rigor pesa sobre todas as partes do saber que o muacutesicodeve dominar para merecer seu tiacutetulo de mousikos (Beacutelis 1986 p 171)
Conhecer os diversos ramos da ciecircncia da muacutesica natildeo significa praticar muacutesica Se
satildeo esses conhecimentos (da harmonike do ritmo da meacutetrica e dos instrumentos) que
Aristoacutexeno atribui ao muacutesico ldquomuacutesicordquo aqui natildeo diz respeito ao muacutesico praacutetico mas agravequele
que estuda a muacutesica como um todo De acordo com Barker
quando usado sem qualificaccedilatildeo e no contexto de uma compreensatildeo que envolvetodos os acircmbitos da muacutesica o termo mousikos eacute mais naturalmente lido em umsentido amplo indicando uma pessoa de uma ampla e sofisticada cultura musicalindependentemente de eles serem tambeacutem especialistas em algum ramo da arte(Barker 2007 p 140)
Assim para Aristoacutexeno o muacutesico natildeo eacute em primeira instacircncia aquele que pratica a
arte da muacutesica mas sim aquele que estudou todas as aacutereas da ciecircncia musical possuindo os
conhecimentos necessaacuterios para compreendecirc-la e com isso emitir juiacutezos criacuteticos a respeito
da muacutesica praacutetica Nesse sentido para fazer um julgamento adequado de uma peccedila musical o
muacutesico deve observar os trecircs elementos baacutesicos que a compotildeem as notas a duraccedilatildeo riacutetmica e
a siacutelaba A percepccedilatildeo e o pensamento (dianoia) devem estar um ao lado do outro na formaccedilatildeo
do julgamento
Eacute evidente que compreender melodias eacute uma questatildeo de seguir as coisas com aaudiccedilatildeo e a razatildeo na medida em que elas vem a ser no que diz respeito a todas assuas distinccedilotildees pois eacute em um processo de vir a ser que consiste a melodia comosatildeo tambeacutem todas as outras partes da muacutesica A compreensatildeo da muacutesica vem deduas coisas percepccedilatildeo e memoacuteria pois noacutes temos que apreender o que estaacute vindo aser e lembrar o que veio a ser (Aristoacutexeno El Harm 238-9)
O objetivo da investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute a compreensatildeo84 (Aristoacutexeno El Harm 41 15-
83 Organike aparece aqui junto agrave episteme Jaacute na introduccedilatildeo do Contra os Muacutesicos episteme eacute oposta agraveempeiria e a organike aparece ligada a essa uacuteltima Ver seccedilatildeo 51
84 Ao explicar que o conceito de harmonike supera a mera notaccedilatildeo Aristoacutexeno argumenta que ldquonotaccedilatildeo natildeo eacutenem mesmo uma parte dela a menos que escrever metros seja tambeacutem uma parte da ciecircncia do metro Masse isso se aplica aqui ndash que aquele que pode escrever o metro jacircmbico natildeo eacute necessariamente aquele quemelhor compreende o que o jacircmbico realmente eacute ndash se aplica tambeacutem agraves melodiasrdquo (Aristoacutexeno El Harm239) Nesse sentido a notaccedilatildeo natildeo participa da investigaccedilatildeo cientiacutefica que compreende apenas o acircmbitoteoacuterico Isso corrobora com a ideia de que a ciecircncia musical natildeo abrange a execuccedilatildeo de instrumentos ou apraacutetica composicional
40
6) Em funccedilatildeo disso ldquoo saber harmocircnico natildeo se reduziraacute mais a mediccedilatildeo de intervalos nem agrave
assimilaccedilatildeo das relaccedilotildees numeacutericasrdquo (Beacutelis 1986 p 172) A compreensatildeo pode e deve ser
usada para instruir aqueles que julgam a muacutesica que eacute executada na praacutetica a fim de garantir
que ela seja executada de maneira correta85 A ideia de que o conhecimento teacutecnico deve ser
adquirido para que se possa julgar as peccedilas que satildeo executadas jaacute aparece tambeacutem em
Platatildeo86 Para o filoacutesofo eacute preciso apreender o que eacute correto acerca da peccedila para se julgar
uma muacutesica de maneira inteligente tendo desenvolvido uma percepccedilatildeo aguccedilada e uma
compreensatildeo dos ritmos e das harmonias
Segundo Beacutelis
os dois autores rejeitam com um mesmo desprezo o leigo que eles opunham aoconhecedor quando trata-se de julgar uma muacutesica ou sentir prazer com ela (hellip) Domesmo modo Aristoacutexeno distingue o leigo do conhecedor uacutenico qualificado parajulgar a beleza de uma aacuteria e acusa certos harmonicistas de lisonjear os leigos aofazer da notaccedilatildeo das canccedilotildees o termo do aprendizado da harmonia (Beacutelis 1986 p99)87
O conhecedor da muacutesica eacute para ambos aquele que tem as habilidades necessaacuterias ao
julgamento de uma peccedila musical sendo a harmonike uma dessas habilidades Tambeacutem na
Poliacutetica a muacutesica eacute situada entre as disciplinas que fazem parte da educaccedilatildeo liberal destinada
agrave formaccedilatildeo de uma elite intelectual Para Aristoacuteteles como apontamos anteriormente o
objetivo da participaccedilatildeo dos jovens na praacutetica musical eacute desenvolvimento da capacidade de
julgar peccedilas musicais Desse modo a muacutesica poderia ser praticada na juventude ndash como
forma de entretenimento e ainda assim sob um controle riacutegido de quais melodias ritmos e
instrumentos podem ser utilizados ndash mas ao atingirem a idade adulta devem abster-se da
praacutetica mantendo como resultado desse aprendizado a capacidade de julgar e fruir das coisas
de maneira correta
como para ajuizar eacute necessaacuterio que se participe da execuccedilatildeo as crianccedilas devempraticar a muacutesica desde tenra idade Chegados agrave idade avanccedilada devem pocirc-la agraveparte pois eacute devido agrave aprendizagem na infacircncia que poderatildeo mais tarde avaliar aboa muacutesica e fruiacute-la corretamente (Aristoacuteteles Pol 1340 B 35)
85 Enquanto para filoacutesofos como Platatildeo a correccedilatildeo tem uma funccedilatildeo moral para Aristoacutexeno diz respeito aestar de acordo com o conhecimento cientiacutefico
86 Platatildeo Leis 670 BndashC Ti 70 A-B87 Contudo haacute uma diferenccedila fundamental entre Platatildeo e Aristoacutexeno no que diz respeito ao efeito da muacutesica na
alma ldquoEacute verdade que ele [Aristoacutexeno] reconhece que a muacutesica afeta a alma que certas melopeias satildeo uacuteteise outras prejudiciais mas natildeo admite que a harmonia possa de qualquer modo incitar a virtuderdquo (Beacutelis1984 p 100)
41
Aristoacuteteles propocircs ainda que as habilidades teacutecnicas musicais deveriam ser estudadas
ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave
parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns
animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A)
Se eacute difiacutecil ligar Aristoacuteteles a esta ou aquela escola de muacutesica - apesar de algunstextos que se mostram bem proacuteximos das ideias pitagoacutericas - natildeo haacute duacutevidas aocontraacuterio que ele toma partido dos tradicionalistas que reprovam as inovaccedilotildeesintroduzidas pelos virtuosos na praacutetica musical (Beacutelis 1986 p 56)
Aristoacutexeno tambeacutem manteacutem o conservadorismo de seus antecessores (Platatildeo e
Aristoacuteteles) no que diz respeito ao ldquocultordquo agrave muacutesica do passado em oposiccedilatildeo ao virtuosismo
de seus contemporacircneos O conhecimento da arte da combinaccedilatildeo das notas a harmonike
seria um dos conhecimentos necessaacuterios agrave Educaccedilatildeo Liberal que se contrapotildee ao gosto do
senso comum
Segundo Barker o texto de Aristoacutexeno revela uma progressiva divisatildeo entre o gosto
popular do periacuteodo (disseminado nas disputas entre muacutesicos profissionais que satildeo
mencionadas por Platatildeo e Aristoacuteteles) e o gosto dos intelectuais do seacuteculo IV aC Para eles
a capacidade de se elevar acima do amor das massas pelo virtuosismo e pelosefeitos melodramaacuteticos e formar julgamentos musicais sobre uma base esteacutetica eintelectualmente sofisticada se tornou um marco de seu status superior Na medidaem que ele representa a teoria harmocircnica como um dos instrumentos essenciais naldquocaixa de ferramentas intelectuaisrdquo daquele que julga Aristoacutexeno estaacute continuandoo projeto de resgataacute-la das matildeos do mero ldquoartesatildeordquo com o qual ela havia comeccediladoe recomendando-a agrave atenccedilatildeo das cultas classes superiores para as quais em temposanteriores ela teria parecido tatildeo irrelevante quanto aprender a cozinhar (Barker2007 p 234)
Se por um lado Aristoacutexeno daacute um passo diferente em relaccedilatildeo aos seus antecessores
circunscrevendo a ciecircncia musical ao acircmbito sonoro por outro em seu conservadorismo ele
manteacutem ainda uma cisatildeo entre teoria e praacutetica musical e uma divisatildeo hieraacuterquica entre aquele
que pratica e aquele que julga a arte musical
34 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO
Se muito se teorizou na Antiguidade a respeito da importacircncia da muacutesica na
sociedade houve por outro lado um filoacutesofo que dedicou-se agrave refutaccedilatildeo das opiniotildees sobre
42
muacutesica difundidas em sua eacutepoca Filodemo de Gadara88 filoacutesofo epicurista do primeiro
seacuteculo aC (c 110 ndash 40) em sua obra intitulada De Musica dedica-se a refutar as
consideraccedilotildees favoraacuteveis do filoacutesofo estoico89 Dioacutegenes da Babilocircnia a respeito do papel da
muacutesica
O meacutetodo de Filodemo consiste em apresentar as afirmaccedilotildees de seu oponente e em
seguida criticar cada uma delas90 A discussatildeo sobre muacutesica apresentada nessa obra natildeo diz
respeito agrave questotildees teacutecnicas musicais tal como podemos observar na obra de Aristoacutexeno
mas somente agraves questotildees relacionadas ao ensino da muacutesica ao seu papel moral e educacional
devido ao modo como esta afetaria a alma tal como Platatildeo e Aristoacuteteles a abordaram91
Dioacutegenes da Babilocircnia92 viveu entre 240 ndash 152 aC Embora natildeo tenhamos acesso aos
seus escritos apenas a fragmentos citados por outros autores considera-se que ele reformulou
as posiccedilotildees de seus antecessores a tal ponto que sua visatildeo veio a ser a ortodoxa de sua escola
nos seacuteculos II e I aC Segundo Woodward (2009 p 13) ldquoo fato de que Dioacutegenes seja o
principal oponente de Filodemo no De Retorica e tambeacutem no De Musica IV pareceria
sustentar essa sugestatildeordquo De acordo com Delattre
certamente se Dioacutegenes por sua vez agindo dessa maneira natildeo fazia nada mais doque se inscrever na jaacute longa tradiccedilatildeo que via na muacutesica uma insubstituiacutevelpropedecircutica para a virtude o que parece contudo ter distinguido claramente nossoEstoico de todos os seus antecessores desde Pitaacutegoras eacute uma vontade bem marcadade fundamentar cientificamente isto eacute com base em uma teoria coerente dasensaccedilatildeo e do conhecimento as crenccedilas e prejulgamentos repetidos aqui e ali depoisdo seacuteculo VI aC (Delattre 2007 p 3)
A preocupaccedilatildeo fundamental do estoico parece ter sido sobretudo a de afirmar a
eficaacutecia eacutetico-psicoloacutegica da muacutesica para o que ele buscou fundar uma ciecircncia ldquo() uma
verdadeira psicologia musical caracterizada por leis imutaacuteveis necessaacuterias e universaisrdquo
(Delattre 2007 p 16)93
88 Para as citaccedilotildees do De Musica nossa traduccedilatildeo parte da versatildeo francesa de Delattre (2007)89 Note-se que os filoacutesofos epicuristas foram tambeacutem o principal alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica em outras questotildees90 Tal como no caso de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos podemos apenas conjecturar a respeito de sua
visatildeo positiva sobre o tema91 Estima-se que a refutaccedilatildeo de Filodemo agraves afirmaccedilotildees de Dioacutegenes sobre a muacutesica seja tambeacutem uma defesa
contra as acusaccedilotildees de ignoracircncia difundidas contra a escola epicurista Essas acusaccedilotildees deram-se sobretudoem funccedilatildeo da criacutetica epicurista aos Estudos Ciacuteclicos Tais acusaccedilotildees satildeo reafirmadas por Sexto Empiacuterico noinicio do Contra os Professores Cf Woodward (2009 p 12 222)
92 Note-se que os filoacutesofos Estoicos figuram entre os principais alvos da refutaccedilatildeo ceacutetica Dioacutegenes foi pupilode Crisipo um dos principais pensadores desta doutrina que figura entre aqueles que tambeacutem satildeo refutadospor Sexto Empiacuterico
93 Tudo se passa como se Dioacutegenes pretendesse reunir em suas teorias a um soacute tempo as preocupaccedilotildeespsicagoacutegicas de Platatildeo e o rigor cientiacutefico de Aristoacutexeno
43
Entre as teses sobre muacutesica apresentadas por Dioacutegenes a sua relaccedilatildeo com a eacutetica eacute
colocada em primeiro plano o estoico defende que a muacutesica estaacute em estreita relaccedilatildeo com o
belo e com o bem considerando assim como Platatildeo que a muacutesica teria o poder de
harmonizar as partes da alma e aleacutem disso que sua utilidade estaacute ligada ao lazer mas que
natildeo se deve exercitaacute-la ao niacutevel profissional94
Dioacutegenes defende a utilidade da muacutesica sob duas perspectivas Por um lado o ensino
da muacutesica eacute importante desde a infacircncia para a aquisiccedilatildeo das virtudes e por outro a muacutesica
ldquomais que o desenho daacute ao ser humano e desenvolve nele o senso de beleza puro e
desinteressadordquo (Filodemo De mus col 27)
A respeito do poder da muacutesica sobre o caraacuteter do ouvinte Dioacutegenes teria afirmado
reiterando aquilo que jaacute era bem estabelecido por todos de sua eacutepoca que ldquoo fato de que as
melodias recebem qualificativos eacuteticos prova que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticasrdquo
(Filodemo De mus col 19)95
As afirmaccedilotildees de Dioacutegenes satildeo a um soacute tempo histoacutericas e demonstrativas Deste
modo para Delattre Dioacutegenes se coloca sem o saber como representante de uma cultura
livresca vasta ldquomas que sobrecarrega o leitor em um acuacutemulo de provas cuja credibilidade e
confianccedila eram geralmente pouco confiaacuteveis e que poderiam de maneira definitiva ocultar a
realidade musical e moral contemporacircnea de Dioacutegenesrdquo (Delattre 2007 p 18) De fato as
autoridades filosoacuteficas e literaacuterias a que ele recorre datam de um outro periacuteodo ao qual a sua
realidade musical jaacute natildeo corresponde
Assim para Dioacutegenes o muacutesico torna-se essencialmente um especialista nos efeitospsicoloacutegicos e eacuteticos que satildeo suscetiacuteveis de produzir as diferentes gamas ritmos emelodias Desse modo o estoico perde totalmente de vista nessa atividade (que oepicurista chama de delirante) a uacutenica noccedilatildeo que vale para um disciacutepulo deEpicuro a do prazer musical (Delattre 2007 p 16)
Ora para Filodemo
todas as tentativas de teorizar a psicologia musical satildeo vatildes Eacute por essa razatildeoprecisamente que o muacutesico em busca de um saber que lhe permita reconhecerdistintamente as disposiccedilotildees nas quais se encontram os oacutergatildeos sensoriais quaissejam elas estaacute em busca de uma ciecircncia do inexistente (Filodemo De Mus col117 3-10)96
94 Ver Filodemo De Mus (col 6-12)95 Essa proposiccedilatildeo exemplifica o tipo de posicionamento estoico que o ceacutetico considera dogmaacutetico pois daacute
ares de verdade a uma mera suposiccedilatildeo O fato de que as melodias recebem qualificativos eacuteticos natildeo provaapenas exemplifica a crenccedila que as pessoas tecircm de que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticas
96 Observa-se aqui uma argumentaccedilatildeo anaacuteloga agravequela que aparece na segunda parte do Contra os Muacutesicos
44
O pensamento estoico eacute refutado por Filodemo porque para os estoicos a sensaccedilatildeo eacute
dotada de inteligibilidade sendo o veiacuteculo do conhecimento imediato da realidade97 Segundo
Woodward (2009 p 18) ldquoa muacutesica portanto requereria alguma qualidade racional para ter
qualquer valor psicoloacutegico para o estoico visto que a alma teria de (a) entender a impressatildeo
racional para poder (b) dar assentimento ou rejeitar a proposiccedilatildeo colocadardquo Entretanto para
Filodemo a ideia estoica de atribuir logos ao sentido da audiccedilatildeo seria absurda visto que de
acordo com a filosofia epicurista o mesmo som atinge qualquer ouvinte de modo anaacutelogo e a
ele satildeo acrescentadas qualidades pelo proacuteprio ouvinte de acordo com suas experiecircncias
particulares
Toda a concepccedilatildeo de que a muacutesica pode afetar a alma diretamente aleacutem dos sinaisde misticismo pitagoacuterico entra em conflito com a concepccedilatildeo epicurista depercepccedilatildeo De acordo com Epicuro todos os sentidos satildeo semelhantes no seumeacutetodo de operaccedilatildeo o som natildeo tem propriedades peculiares Aleacutem disso todasensaccedilatildeo eacute por si mesma desprovida de significado cognitivo (hellip) Portanto elanatildeo tem physei [por natureza] efeito cognitivo pois os sons natildeo adquiremsignificado ateacute que a doxa [opiniatildeo] entre em accedilatildeo e se natildeo haacute efeito cognitivonatildeo haacute efeito eacutetico pois afecccedilotildees e moral soacute podem ser influenciadas por meioscognitivos () (Wilkinson 1938 p 178)
Em funccedilatildeo disso o som natildeo teria a capacidade de mover a alma atraveacutes da imitaccedilatildeo
A melodia sendo irracional nem potildee a alma em movimento quando ela estaacute em repouso
nem leva a alma agrave condiccedilatildeo natural de seu caraacuteter e tambeacutem natildeo a acalma quando ela estaacute
agitada Movendo-se em qualquer direccedilatildeo aleacutem disso tambeacutem natildeo pode transformaacute-la
diminuindo ou intensificando uma disposiccedilatildeo existente
pois a muacutesica natildeo eacute algo capaz de imitar como alguns98 imaginam em sonho nem eacuteverdade que ndash como nosso adversaacuterio ltpretendegt - apresentando semelhanccedilas decaraacuteteres que natildeo tecircm de modo algum o poder de imitar ela faccedila aparecer todas asqualidades de caraacuteteres de modo que haja entre elas a da magnificecircncia e a dabaixeza a da coragem e a da ausecircncia de coragem a da reserva e a da audaacutecia natildeomais do que aquilo que pode a arte da culinaacuteria (Filodemo De Mus col 117)
O proacuteximo passo de Filodemo eacute sustentar que tais qualidades satildeo erroneamente
atribuiacutedas agrave muacutesica porque Dioacutegenes (e consequentemente todos aqueles com quem ele97 A representaccedilatildeo traz nela a sua evidecircncia (que exige que se decirc o assentimento) O assentimento a uma
representaccedilatildeo verdadeira eacute um ato voluntaacuterio da mente isso eacute o que os estoicos chamam ldquoapreensatildeordquo Oassentimento a uma sensaccedilatildeo assim como toda accedilatildeo eacute um ato voluntaacuterio As impressotildees humanas satildeodesde sua ocorrecircncia racionais por isso eacute necessaacuterio o assentimento antes da impressatildeo inicial conduzir agraveaccedilatildeo
98 Referecircncia a Platatildeo (Leis 699 B-E) atribuiacuteda a Dioacutegenes por Filodemo (De Mus col 51) Ver Delattre(2007 p 214 n 5)
45
concorda) confunde muacutesica e poesia Tendo em vista que Dioacutegenes rejeitava a muacutesica
instrumental de seu tempo os poderes atribuiacutedos agrave muacutesica por Dioacutegenes dizem respeito agrave
mousike no sentido antigo do termo ou seja a uniatildeo entre melodia ritmo e texto poeacutetico
Muito embora de acordo com o sistema estoico o proacuteprio som tenha logos por conseguinte
um significado e o poder de mover a alma do ouvinte
Jaacute para Filodemo os compositores de muacutesica instrumental assim nomeados natildeo soacute
por ele mas no uso comum de seu tempo e tambeacutem por Aristoacutexeno emitem sons desprovidos
de significaccedilatildeo tanto quando tocam peccedilas instrumentais quanto acompanhando o canto
A discordacircncia fundamental aqui eacute entre o conceito de mousike enquanto melodia
ritmo e palavra e o de mousike enquanto ldquoarte dos sonsrdquo Filodemo toma isso como ponto de
partida sustentando que os efeitos que a muacutesica exerce na alma do ouvinte se datildeo em funccedilatildeo
do significado das palavras e que o som por si mesmo natildeo tem significado algum sendo
desprovido de razatildeo (logos) Nesse sentido ele considera que
se Simonides e Piacutendaro foram muacutesicos eles foram tambeacutem poetas que enquantomuacutesicos compuseram melodias desprovidas de significaccedilatildeo e por outro ladoenquanto poetas compuseram as palavras e que se satildeo uacuteteis (talvez natildeo sejammesmo a partir deste ponto de vista ou muito pouco) elas natildeo satildeo uacuteteis apenas paraos muacutesicos ou mais uacuteteis para os muacutesicos mas satildeo igualmente uacuteteis para todas aspessoas educadas (Filodemo De Mus col 143 20-40)99
Assim de acordo com Wilkinson (1938 p 175-6) ldquoenquanto um muacutesico no sentido
antigo pode ter um efeito moral nomeadamente atraveacutes de suas palavras no novo e restrito
sentido ele natildeo pode ter nenhum Ele natildeo pode excitar ou acalmar nenhuma sensaccedilatildeo em
particularrdquo
Segundo Filodemo a muacutesica natildeo tem nenhum ethos intriacutenseco As qualidades dos
modos musicais natildeo se datildeo a partir da sensaccedilatildeo mas da opiniatildeo ldquoNessas condiccedilotildees no que
diz respeito agraves muacutesicas enarmocircnica e cromaacutetica natildeo eacute pela sua percepccedilatildeo qualitativa da qual
a razatildeo natildeo participa mas pelas opiniotildees formadas a partir dela que as pessoas entram em
desacordordquo (Filodemo De Mus col 116 10-20) Para o filoacutesofo epicurista se as pessoas
reagem de maneiras diferentes ao mesmo tipo de muacutesica isso se daacute em funccedilatildeo de sua
experiecircncia de vida e cultura Nesse sentido a muacutesica natildeo teria nenhum papel educacional
poderia ser prazerosa e a sua valoraccedilatildeo dependeria apenas do contexto e das associaccedilotildees de
ideias feitas pelos seus ouvintes
99 A relaccedilatildeo entre muacutesica e poesia eacute retomada por Sexto Empiacuterico em M VI 28 e a questatildeo da utilidade em MVI 33
46
4 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
NO CONTRA OS PROFESSORES
O Contra os Muacutesicos sexto livro do Contra os Professores insere-se em uma
proposta maior de Sexto Empiacuterico que tem como objetivo refutar os ensinamentos
(mathemata) que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos (enkyklios paideia) Na introduccedilatildeo do
Contra os Professores Sexto Empiacuterico explica que a refutaccedilatildeo agraves disciplinas dos Estudos
Ciacuteclicos se daacute porque os ceacuteticos100
a respeito das disciplinas (mathemata) tiveram a mesma experiecircncia que tiveram noque diz respeito agrave Filosofia como um todo Pois tal como eles se aproximaram daFilosofia com o desejo de alcanccedilar a verdade mas quando se depararam com oconflito da igual forccedila das opiniotildees e com a anomalia das coisas suspenderam ojuiacutezo - assim tambeacutem no caso das disciplinas [dos Estudos Ciacuteclicos] quando elespuseram-se a dominaacute-las visando tambeacutem aqui aprender a verdade elesencontraram dificuldades natildeo menos seacuterias que eles natildeo omitiram Do mesmomodo noacutes tambeacutem seguiremos o mesmo meacutetodo que eles e buscaremos natildeo emespiacuterito de controveacutersia selecionar e apresentar os argumentos fundamentais contraos professores (M I 6-7)
Infelizmente o autor natildeo daacute indicaccedilotildees precisas do que sejam as enkyklia mathemata
porque sua refutaccedilatildeo dirige-se agravequeles que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nelas Apesar da
breve menccedilatildeo de Sexto consideramos tal como fundamental para se compreender o sentido
em que cada uma das disciplinas - entre elas a muacutesica - eacute refutada
Entretanto em algumas traduccedilotildees e comentaacuterios ao Contra os Professores a expressatildeo
enkyklia mathemata eacute ou simplesmente igualada a ldquoArtes Liberaisrdquo ou traduzida como
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo101 Por sua imprecisatildeo e brevidade tais definiccedilotildees comprometem a
compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo do Contra os Professores e consequentemente
obscurecem o papel dessa refutaccedilatildeo na filosofia ceacutetica pirrocircnica
Em funccedilatildeo disso antes de analisarmos o Contra os Muacutesicos cabem ainda algumas
etapas Primeiramente eacute preciso compreender em que consiste o ceticismo pirrocircnico seus
meacutetodos e seus objetivos A partir disso poderemos observar a relaccedilatildeo entre o objeto
100 Para as citaccedilotildees do Contra os Professores (exceto M VI) utilizamos as traduccedilotildees de Bury (1933) e Cavero(1997) como referecircncia adaptando-as de acordo com o texto grego quando julgamos necessaacuterio
101 Observe-se as seguintes ediccedilotildees Cavero (1997 p 7-8) simplesmente iguala as expressotildees grega e latinaGreaves (1986 p 18) limita-se a apresentar os livros do Adversus Mathematikous descrevendo-os comouma ldquorefutaccedilatildeo dos mathematikoi (ou professores) das seis disciplinas conhecidas como Estudos Ciacuteclicos eque constituiacuteam o curriacuteculo baacutesico da educaccedilatildeo antigardquo Bury (1933 p 6-7) explica em uma nota agrave suatraduccedilatildeo que as enkyklia mathemata satildeo ldquoos conteuacutedos da educaccedilatildeo geral preacute-profissional que inclui aastronomia geometria muacutesica gramaacutetica e retoacutericardquo Dentre as ediccedilotildees que utilizamos como referecircncia aediccedilatildeo de Pellegrin (2002) eacute a uacutenica que em sua introduccedilatildeo aprofunda o tema
47
principal da refutaccedilatildeo ceacutetica a Filosofia e o tipo de conhecimento refutado no Contra os
Professores as artes (tekhnai) Para isso aprofundaremos o sentido da Enkyklios Paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico chamando atenccedilatildeo para a presenccedila constante da mousike enquanto
uma das disciplinas que a compotildeem
Tendo claro o objeto ao qual a refutaccedilatildeo se dirige poderemos nos ater agraves
peculiaridades do estilo argumentativo utilizado por Sexto Empiacuterico para a refutaccedilatildeo das
mathemata Com isso por fim teremos as ferramentas necessaacuterias para no uacuteltimo capiacutetulo
compreendermos o sentido dos argumentos que Sexto Empiacuterico utiliza para refutar a mousike
no Contra os Muacutesicos
41 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO
NA FILOSOFIA E NAS ARTES
ldquoPor amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar atraveacutes da argumentaccedilatildeo na medida do
possiacutevel o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticosrdquo (HP III 280)102 Nas Hipotiposes
Pirronianas o ceticismo pirrocircnico eacute apresentado por Sexto Empiacuterico como uma habilidade
de opor phenomena e noumena (objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel e objetos do pensamento)103 O
igual peso (isostheneia) das coisas e afirmaccedilotildees colocadas em oposiccedilatildeo gera segundo Sexto
um estado de suspensatildeo do juiacutezo (epokhe) - ldquoum estado mental por meio do qual nem
afirmamos nem negamosrdquo (HP I 10) Isso no que diz respeito ao que se relaciona agrave opiniatildeo
(doxa) leva agrave tranquilidade da alma (ataraxia) Visto que haacute acontecimentos inevitaacuteveis
tendo observado as perturbaccedilotildees adicionais geradas pela crenccedila de que algo eacute bom ou mau
por natureza essa praacutetica visa eliminar tal crenccedila adicional promovendo assim afecccedilotildees
moderadas (metriopatheia) (HP I 30)
O princiacutepio (arkhe) causal do ceticismo eacute a busca pela tranquilidade da alma Como
explica Sexto
ldquoHomens de talentordquo perturbados com as anomalias nas coisas e confusos acercade quais mereciam assentimento esforccedilaram-se em descobrir o que eacute verdadeiro e o
102 Para as citaccedilotildees das Hipotiposes Pirronianas de Sexto Empiacuterico traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir daediccedilatildeo de Mates (1996)
103 Note-se que neste momento ldquota phainomenardquo e ldquota noumenardquo devem ser compreendidos de modo estritoos primeiros satildeo objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel enquanto os segundos satildeo objetos do pensamento Maisadiante ldquoto phainomenonrdquo ou seja aquilo que aparece incluiraacute tanto os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevelquanto os objetos do pensamento
48
que eacute falso nelas esperando que ao esclarecer isso atingiriam a tranquilidade daalma (HP I 12)
Todavia para o ceacutetico durante cada investigaccedilatildeo sobre as coisas encontra-se
afirmaccedilotildees inconsistentes entre si Segundo Sexto para esses ldquohomens de talentordquo nenhuma
das afirmaccedilotildees eacute mais passiacutevel de credibilidade do que a outra e na falta de um criteacuterio que
permita o assentimento a uma das afirmaccedilotildees seria uma atitude precipitada assumir uma
delas como verdadeira Essa impossibilidade de decidir leva agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca
daquilo que se estava investigando Desse modo embora pretendesse atingir a tranquilidade
da alma por meio da busca pela verdade o ceacutetico acaba por obtecirc-la ao suspender o juiacutezo
acerca dela
Segundo Sexto acontece ao ceacutetico o mesmo que aconteceu ao pintor Apeles
Conta-se que certa vez quando ele estava pintando um cavalo e desejavarepresentar a espuma do cavalo ele falhou de tal modo que desistiu e jogou suaesponja na pintura - a esponja na qual ele limpava as tintas do pincel ndash e ao atingira pintura a esponja produziu o efeito desejado (HP I 28)
Do mesmo modo o surgimento do ceticismo se daacute como que por acaso e a
tranquilidade da alma segue a suspensatildeo do juiacutezo ldquoassim como a sombra segue o corpordquo (HP
I 29)
O ainda futuro ceacutetico quer evitar a precipitaccedilatildeo de dizer-se conhecedor da verdade ao
assentir de modo arbitraacuterio com algo que natildeo seja evidente Quando o ceacutetico descobre que a
praacutetica de opor a cada sentenccedila outra de igual forccedila leva agrave suspensatildeo de juiacutezo toma essa
praacutetica como princiacutepio do ceticismo visto que ela parece acabar com o dogmatismo104
Quanto ao dogmatismo eacute importante salientar que no pirronismo natildeo haacute diferenccedila
entre ldquodogmatizarrdquo e ldquoacreditarrdquo Quando o ceacutetico diz que natildeo dogmatiza ele estaacute dizendo
em outras palavras que natildeo sustenta crenccedila
O predicado ldquoverdadeirordquo aplica-se primeiramente a proposiccedilotildees que se pretendeque descrevam objetos externos (to ektos hypokeimenon) e estados de coisas eldquocrenccedilardquo refere-se a uma atitude afirmativa forte e estaacutevel em relaccedilatildeo a essasproposiccedilotildees (Mates 1996 p 6)
Nesse sentido mais estreito105 do termo ldquodogmardquo estaacute ligado a questotildees investigaacuteveis
104 ldquoAqueles que acreditam terem encontrado a verdade satildeo os Dogmaacuteticos ndash por exemplo os seguidores deAristoacuteteles e Epicuro os Estoicos e outrosrdquo (HP I 3)
105 O sentido mais amplo de dogma diz respeito a ldquoalgo com que algueacutem meramente concordardquo - como umasentenccedila que descreve uma afecccedilatildeo determinada ndash e nesse sentido segundo o autor pode-se dizer que o
49
sobre a ldquoexistecircncia e natureza daquilo que se supotildee ser independente das nossas impressotildees
subjetivas pensamentos e sensaccedilotildeesrdquo106 (Mates 1996 p 7) Eacute sobre isso que por meio da
argumentaccedilatildeo o ceacutetico suspende o juiacutezo
Para o ceacutetico dogmaacutetico eacute aquele que pretende demonstrar que aquilo que lhe aparece
eacute o modo como de fato as coisas realmente satildeo e que busca formular teorias sobre o
fenocircmeno teorias que teriam apreendido a verdade a realidade das coisas Desse modo a
suspensatildeo de juiacutezo estaacute voltada agraves asserccedilotildees dogmaacuteticas e natildeo agraves coisas dizendo respeito agrave
afirmaccedilatildeo da conformidade entre o ser e o aparecer De acordo com Porchat
A Filosofia claacutessica distinguira como se sabe entre o ser e o aparecer transpondometafisicamente a distinccedilatildeo corriqueira entre as aparecircncias enganosas das coisas esua manifestaccedilatildeo correta e ordinaacuteria Ela privilegiou o ser como necessaacuterio eestaacutevel desqualificando o aparecer porque instaacutevel e contingente Por vezesentendeu o aparecer como manifestaccedilatildeo do ser ainda que superficial mas commaior frequecircncia o pensou como aparecircncia enganosa que dissimulava o ser e oocultava (Porchat 1993 p 179)
Portanto nas Hipotiposes Pirronianas a argumentaccedilatildeo ceacutetica visa produzir a
suspensatildeo de juiacutezo ao mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e sua
precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente107 crenccedilas a respeito daquilo que existe na realidade
externamente agraves nossas representaccedilotildees
Se por um lado o ceacutetico critica os discursos dogmaacuteticos por outro ele pretende que
seu proacuteprio discurso expresse apenas a admissatildeo de uma afecccedilatildeo (pathos) involuntaacuteria o
estado presente de sua alma em relaccedilatildeo ao fenocircmeno Por isso as sentenccedilas proferidas pelo
ceacutetico satildeo ditas ldquonatildeo investigaacuteveisrdquo (azetetos) ldquoA questatildeo sobre sua veracidade ou falsidade
natildeo se colocardquo (Mates 1996 p 6)108 visto que dizem respeito apenas ao fenocircmeno
Mesmo assim os filoacutesofos ditos dogmaacuteticos consideram que uma vez
suspendido o juiacutezo interrompe-se tambeacutem a possibilidade de accedilatildeo no mundo e por isso
ceacutetico emite doxai sem se comprometer com um criteacuterio de verdade106 Satildeo essas as caracteriacutesticas que Sexto observa no conceito de mousike refutado no Contra os Muacutesicos
Veremos que ele constata que atribui-se poderes agrave muacutesica por natureza A refutaccedilatildeo de Sexto tende amostrar que os poderes que se considera inerentes a ela dependem natildeo de sua natureza mas de nossasrepresentaccedilotildees
107 Atenccedilatildeo ao uso do termo grego ldquodiabebaiomairdquo que significa ldquoassegurarrdquo ldquoafirmar energicamenterdquo juntoao sentido dogmaacutetico de crenccedila Cf Mates (1996 p 60)
108 Para que o discurso do ceacutetico seja coerente com a sua finalidade ndash a de promover a suspensatildeo de juiacutezovisando obter a tranquilidade da alma - as sentenccedilas que o constituem ldquonatildeo devem ser tomadas comoverdadeirasrdquo (Mates 1996 p 255) Por isso o discurso ceacutetico seraacute considerado natildeo-assertivo ldquoAsserccedilatildeordquoem sentido amplo abrange qualquer ldquoexpressatildeo indicando afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e em sentido estrito dizrespeito apenas a expressotildees afirmativas A ldquonatildeo-asserccedilatildeordquo eacute uma afecccedilatildeo em vista da qual o ceacutetico diraacute quenatildeo afirma ou nega qualquer coisa no que diz respeito agraves ldquodeclaraccedilotildees dogmaacuteticas acerca daquilo que eacute natildeo-evidenterdquo (HP I 193)
50
acusam o ceacutetico de que sua postura levaria agrave inaccedilatildeo (apraxia)109 A resposta dos ceacuteticos
pirrocircnicos ao contra-argumento da inaccedilatildeo eacute dada com a proposiccedilatildeo de um criteacuterio de accedilatildeo
desvinculado do criteacuterio que o ceticismo ataca Nesse sentido o pirrocircnico distingue entre dois
tipos de criteacuterio aquele ligado agrave ldquocrenccedila sobre a existecircncia e a natildeo existecircnciardquo ou seja aquilo
que chamamos ldquocriteacuterio de verdaderdquo ao qual estatildeo voltadas as suas objeccedilotildees e por outro
lado o criteacuterio de accedilatildeo a partir do qual ldquona conduccedilatildeo da vida diaacuteria noacutes fazemos algumas
coisas e natildeo outrasrdquo (HP I 21)
Isso significa que o ceacutetico natildeo soacute limita seu discurso agravequilo que lhe aparece mas toma
o proacuteprio aparecer como criteacuterio de suas accedilotildees O fenocircmeno por se basear em uma afecccedilatildeo
involuntaacuteria nunca eacute posto em duacutevida pelo ceacutetico para ele natildeo eacute preciso ultrapassar o
acircmbito do fenocircmeno dizendo o que as coisas realmente satildeo para se viver no mundo Afinal
nas palavras de Sexto ldquoimagino que ningueacutem dispute sobre se o objeto externo aparece desse
modo ou daquele mas antes sobre se ele eacute tal como parece serrdquo (HP I 22) ou seja a duacutevida
se daacute a respeito da conformidade entre o ser e o aparecer Basear-se no fenocircmeno eacute
excetuando essa duacutevida sustentar suas decisotildees naquilo que estaacute aleacutem do escopo da
suspensatildeo do juiacutezo e natildeo eacute passiacutevel de duacutevida
Isso que natildeo podemos rejeitar que se oferece irrecusavelmente agrave nossasensibilidade e entendimento ndash se nos permitimos lanccedilar matildeo de uma terminologiafilosoacutefica consagrada ndash eacute o que os ceacuteticos chamamos de fenocircmeno (tophainomenon o que aparece) O que nos aparece se nos impotildee com necessidade aele natildeo podemos senatildeo assentir eacute absolutamente inquestionaacutevel em seu aparecerQue as coisas nos apareccedilam como aparecem independe de nossa deliberaccedilatildeo ouescolha natildeo se prende a uma decisatildeo de nossa vontade O que nos aparece natildeo eacuteenquanto tal objeto de investigaccedilatildeo precisamente porque natildeo pode ser objeto deduacutevida Natildeo haacute sentido em argumentar contra o aparecer do que aparece talargumentaccedilatildeo seria ineficaz e absurda (Porchat 1993 p 176)
Sexto Empiacuterico apresenta os desdobramentos do criteacuterio praacutetico baseado em quatro
aspectos principais
no que concerne agravequilo que aparece entatildeo noacutes [ceacuteticos] vivemos sem crenccedilas masde acordo com a vida comum visto que natildeo podemos ser totalmente inativos Eesse regime da vida comum parece ser quaacutedruplo uma parte tem a ver com aorientaccedilatildeo da natureza outra com a compulsatildeo das afecccedilotildees outra com aquilo quenos eacute apresentado pelas leis e pelos costumes e a quarta com a instruccedilatildeo nas artes[tekhnai] (HP I 23)
109 Tal questionamento se daacute porque a epistemologia estoica implica que se decirc assentimento voluntaacuterio agravesrepresentaccedilotildees para que se possa tomar decisotildees a respeito delas
51
Segundo a proacutepria explicaccedilatildeo de Sexto a parte do criteacuterio de accedilatildeo que diz repeito agrave
orientaccedilatildeo da natureza eacute aquela pela qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo epensamento a compulsatildeo das afecccedilotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva agrave comidae a sede nos faz beber o seguir os costumes e leis eacute aquela pela qual noacutes aceitamosque ser piedoso na conduccedilatildeo da vida eacute bom e ser impiedoso eacute ruim e a instruccedilatildeo nasartes eacute aquela pela qual noacutes natildeo somos inativos em qualquer funccedilatildeo adquirida (HP I24)
Ao que ele acrescenta ainda ao final ldquoe dizemos todas essas coisas sem crenccedilardquo (HP
I 24) reforccedilando que tal criteacuterio eacute tomado de maneira independente da existecircncia ou natildeo
existecircncia daquilo que estaacute por traacutes dele
A pergunta que o contra-argumento da inaccedilatildeo nos coloca eacute como vive o ceacutetico a
partir disso A adoccedilatildeo do criteacuterio praacutetico poderia ser um indiacutecio de que ele pretende retornar
ao senso comum e viver ldquosem Filosofiardquo muito embora como afirma Brochard esse retorno
seja ldquoum retorno muito pouco ingecircnuo agrave ingenuidade primitivardquo (Brochard 2009 p 362)
Mas o que seria esse retorno agrave vida comum Seria simplesmente viver seguindo a multidatildeo
A esse respeito Sexto diz que ldquoqualquer um que diga que noacutes devemos dar assentimento agrave
maioria estaacute fazendo uma proposta infantilrdquo (HP I 89)110 Segundo Porchat ldquoa visatildeo de
mundo de um ceacutetico se conforma obviamente como a visatildeo do mundo de qualquer homem agrave
sua experiecircncia passada e agrave sua formaccedilatildeo cultural ela se constroacutei a partir de sua vivecircncia do
fenocircmeno e lhe estaacute intimamente associadardquo (Porchat 1993 p 198)
Tal como um filoacutesofo dogmaacutetico que para fazer uso de seus sentidos e de sua
inteligecircncia natildeo precisa dar a prova ontoloacutegica de sua existecircncia tambeacutem para o ceacutetico natildeo
haacute porque deixar de agir por natildeo assumir uma posiccedilatildeo a respeito das questotildees acerca da
existecircncia ou natildeo das coisas Natildeo eacute preciso sustentar a verdade de conceitos filosoacuteficos para
ao se sentir fome ir em busca de alimento Aleacutem disso assim como um filoacutesofo que nos
apresenta uma Filosofia moral baseada em princiacutepios racionais natildeo vive necessariamente de
acordo com a Filosofia que formula mas muitas vezes simplesmente obedece agraves leis e aos
costumes de seu paiacutes sem verificar sua validade ou veracidade o ceacutetico segue as leis e
costumes enquanto aquilo que lhe aparece como sendo o caso
Desse modo natildeo soacute o ceacutetico mas tambeacutem o filoacutesofo dogmaacutetico no que concerne agrave
vida praacutetica simplesmente vivem de acordo com aquilo que lhes aparece sem precisar
ultrapassar a esfera fenomecircnica e dizer o que as coisas realmente satildeo Eacute sob essa perspectiva
110 No Contra os Muacutesicos Sexto dedica-se a refutar as opiniotildees sobre muacutesica ldquorepetidas costumeiramente pelamaioriardquo (M VI 7)
52
que o ceacutetico pretende natildeo precisar sustentar crenccedilas a respeito das coisas para poder viver no
mundo Em suma eacute tendo em vista a conduccedilatildeo da vida que o ceacutetico adota o criteacuterio praacutetico
Visto que a instruccedilatildeo nas artes faz parte do criteacuterio praacutetico o combate ao dogmatismo
tambeacutem nessa aacuterea eacute essencial ao funcionamento do ceticismo Eacute nesse sentido que o Contra
os Professores parece ter uma funccedilatildeo peculiar dentre as obras de Sexto Natildeo obstante os
livros que o compotildeem satildeo destinados natildeo a qualquer tipo de ensino teacutecnico mas apenas
agravequeles das disciplinas dos chamados Estudos Ciacuteclicos Como veremos a delimitaccedilatildeo do
escopo dessa criacutetica se daacute em funccedilatildeo do dogmatismo observado nos conteuacutedos e meacutetodos
relacionados a esse sistema de ensino
42 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
A expressatildeo Enkyklios Paideia tem uma origem antiga na histoacuteria da educaccedilatildeo na
Greacutecia mas eacute importante frisar que ela muda de significado entre o periacuteodo claacutessico e o
imperial Os chamados Estudos Ciacuteclicos na Greacutecia arcaica tinham uma conotaccedilatildeo praacutetica
inicialmente centrada na mousike Kyklios nesse caso parece remeter agrave danccedila circular
realizada pelo coro Todavia essa educaccedilatildeo musical (naquele sentido amplo de mousike) foi
perdendo espaccedilo para a retoacuterica e para a Filosofia Em Platatildeo (Teeteto 172 C - 177 C) por
exemplo observa-se a rejeiccedilatildeo das ocupaccedilotildees praacuteticas (consideradas servis) Tambeacutem em
Aristoacuteteles observamos as recomendaccedilotildees e as reservas em relaccedilatildeo agrave praacutetica das atividades
que deveriam fazer parte da educaccedilatildeo do homem livre A enkyklios paideia deixa a muacutesica
praticamente de lado e permanece centrada na retoacuterica dialeacutetica e gramaacutetica111 De acordo
com Lippman ldquoesse processo comeccedila durante o curso do seacuteculo V aC a desintegraccedilatildeo da
composta arte da muacutesica acompanhada pela efervescecircncia poliacutetica e o crescimento de uma
cultura com uma mentalidade retoacuterica provoca a desmusicalizaccedilatildeo da educaccedilatildeordquo (Lippman
1966 552)
A partir disso a chamada Enkyklios Paideia expande seu escopo incorporando um
significado mais geral Na obra de Aristoacuteteles112 aparecem tambeacutem as expressotildees ldquoenkyklia
philosophematardquo e ldquota enkykliardquo que provavelmente equivalem agrave expressatildeo ldquoexoterikoi
logoirdquo designando ldquoum desenvolvimento ou uma obra que natildeo tem um caraacuteter
111 Disciplinas que vieram a compor o trivium das chamadas Artes Liberais na Idade Meacutedia112 Ver Aristoacuteteles De Caelo (279 A) EN (1096 A)
53
especificamente filosoacutefico mas se situa em um niacutevel inferior e preparatoacuteriordquo (Hadot 1984 p
264) Reforccedilamos que essas expressotildees que remetem agrave Enkyklios Paideia no periacuteodo
heleniacutestico natildeo tecircm o mesmo significado que teratildeo no periacuteodo imperial
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta as disciplinas matemaacuteticas que tinham funccedilatildeo
preparatoacuteria para se atingir a Filosofia A lista das disciplinas inclui aritmeacutetica geometria
astronomia e muacutesica113 Platatildeo eacute herdeiro de uma tradiccedilatildeo pitagoacuterica segundo a qual ldquoas
ciecircncias matemaacuteticas estatildeo relacionadas porque lidam com as duas formas primaacuterias do ser
(que podemos tomar como a multiplicidade e a extensatildeo)rdquo (Lippman 1966 p 545) O
filoacutesofo ressalta o papel eacutetico das mathemata e sublinha o caraacuteter abstrato e ideal de cada
uma O pitagoacuterico Arquitas de Tarento tambeacutem coloca a muacutesica no uacuteltimo lugar da lista o
que indica seu status mais elevado
Enquanto uma das mathemata a muacutesica era estudada em seu aspecto mais abstrato a
ciecircncia harmocircnica em funccedilatildeo de sua conexatildeo direta com a astronomia Como jaacute foi
enfatizado as mathemata ldquonatildeo dizem respeito ao uso praacutetico nem a objetos da experiecircnciardquo
(Lippman 1966 p 547) Por isso em seu tratado pedagoacutegico destinado a preparar o
estudante para a leitura de Platatildeo Teon de Smirna afirma que natildeo haacute necessidade da muacutesica
instrumental mas que o interesse estaacute voltado agrave compreensatildeo da harmonia e da muacutesica
celestial
Na obra de Aristoacuteteles a muacutesica aparece em uma lista bastante semelhante114 remetida
agraves eleutherai tekhnai (artes liberais) ou seja agraves artes destinadas agrave educaccedilatildeo do homem livre
A mousike enquanto disciplina do ensino eacute denominada com diversas outras disciplinas
pelo termo tekhne (arte ou teacutecnica) De acordo com Pellegrin
depois do seacuteculo V aC desenvolveu-se uma literatura ldquoteacutecnicardquo constituiacuteda detratados codificando a praacutetica de numerosos domiacutenios desde a equitaccedilatildeo e aculinaacuteria ateacute a estrateacutegia e a arte poliacutetica Aleacutem disso as disciplinas que noacutesconsiderariacuteamos cientiacuteficas como a geometria a aritmeacutetica ou teacutecnico-cientiacuteficascomo a medicina eram comumente chamadas tekhnai Este haacutebito de transmitir umsavoir-faire racionalmente exposto eacute com certeza uma reaproximaccedilatildeo do tipo deracionalidade que foi aplicada agrave aacuterea cultural grega com o estabelecimento dascidades No domiacutenio das artes como em outras aacutereas a praacutetica rotineira e atransmissatildeo tradicional no interior das linhagens deram lugar a uma abordagemuniversal normatizada e tirando sua forccedila da constriccedilatildeo do raciociacutenio (Pellegrin2002 p 14)115
113 Essas disciplinas compotildeem o conjunto que veio a ser o quadrivium das Artes Liberais na Idade Meacutedia114 Ver seccedilatildeo 322 p 31115 Deve-se destacar o papel dos Sofistas no desenvolvimento desse tipo de literatura teacutecnica Os Sofistas num
certo sentido foram aqueles que profissionalizaram o ensino Hiacutepias um dos Sofistas que aparece nosdiaacutelogos de Platatildeo defendia um ensino que permitisse que se fosse ldquocapaz de falar sobre qualquer coisa e dearrostar quem quer que seja em qualquer assuntordquo (Marrou 1966 p 94) Segundo Platatildeo (Protaacutegoras 218
54
Para fins de nosso estudo tomamos como paradigma do que seja uma tekhne a
definiccedilatildeo atribuiacuteda aos estoicos apresentada e refutada pelo proacuteprio Sexto Empiacuterico no
Contra os Professores ldquotoda tekhne eacute um sistema composto de apreensotildees exercidas
conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10)116
Cabe pontuar que tanto para Aristoacuteteles quanto para os Estoicos tanto a ciecircncia
quanto a teacutecnica partem dos sentidos A diferenccedila de acordo com essas duas correntes
filosoacuteficas natildeo estaacute no modo como o conhecimento se daacute mas nos objetos aos quais a
ciecircncia e a teacutecnica se dirigem117 Aristoacuteteles daacute agrave tekhne um sentido e um papel bastante
precisos Na Metafiacutesica o filoacutesofo distingue os homens dos animais dizendo que os homens
ldquose elevam agrave arte (tekhne) e ao raciociacutenio (logismos) a arte e a ciecircncia (episteme) procedem
natildeo do acaso (tykhe) mas da experiecircncia (empeiria)rdquo (Aristoacuteteles Met 980 B 25)
Experiecircncia que eacute constituiacuteda pela uniatildeo da sensaccedilatildeo ndash nosso primeiro contato com o mundo
ndash com a memoacuteria de repetidas sensaccedilotildees
Natildeo obstante para Aristoacuteteles soacute haacute arte e ciecircncia quando haacute algum juiacutezo sobre algo
universal ldquoa arte se gera quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia nasce uma noccedilatildeo
uacutenica concernente aos casos semelhantesrdquo (Aristoacuteteles Met A 1 981 A 5) Eacute nesse sentido
que na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a tekhne como ldquohaacutebito produtivo acompanhado
pelo logos verdadeirordquo (Aristoacuteteles EN 1140 A 10)
Na Filosofia aristoteacutelica o conhecimento teacutecnico aproxima-se da ciecircncia porque
ambos estatildeo preocupados com o logos e nesse sentido com aquilo que haacute de universal nas
relaccedilotildees de causa e efeito A diferenccedila sob essa perspectiva eacute apenas a de que a ciecircncia diz
respeito agrave busca do conhecimento das ldquocausas primeirasrdquo (que existem necessariamente na
natureza) e a teacutecnica tem por objeto a forma de um produto contingente
Aristoacuteteles apresenta a tekhne como uma forma de saber verdadeiro constituiacuteda por
E) Hiacutepias exigia de seus alunos um estudo soacutelido das quatro ciecircncias elaboradas desde os pitagoacutericos116 Essa definiccedilatildeo estoica de tekhne enquanto ldquosistema composto de apreensotildeesrdquo pode ser encontrada em vaacuterios
trechos da obra de Sexto Empiacuterico Em um trecho das Hipotiposes que trata da possibilidade do aprendizadolemos que ldquoEles [os estoicos] dizem que uma arte eacute um sistema de apreensotildees exercidas conjuntamente naparte superior da almardquo (HP III 188) e tambeacutem que ldquoa arte eacute um sistema de apreensotildees e que umaapreensatildeo eacute um assentimento a uma representaccedilatildeo apreensivardquo (HP III 240) Essa noccedilatildeo eacute tomada na obrade Sexto Empiacuterico como paradigma daquilo que eacute assumido pelos filoacutesofos chamados dogmaacuteticos Arelaccedilatildeo entre o conceito de tekhne e a noccedilatildeo de utilidade eacute fundamental para a compreensatildeo da criacutetica deSexto Empiacuterico agrave mousike enquanto uma das enkyklia mathemata
117 A sensaccedilatildeo eacute algo bastante diferente para um e para outro No pensamento de Aristoacuteteles ainda natildeo haacute aquestatildeo da correspondecircncia entre a representaccedilatildeo e o objeto representado questatildeo que na Filosofia estoicafaz com que o problema da verdade seja colocado jaacute nesse momento Para um estoico se natildeo haacute um criteacuteriode verdade que valide as suas representaccedilotildees natildeo eacute possiacutevel o raciociacutenio
55
juiacutezos universais e suscetiacutevel de ser transmitida por um ensinamento racional118 Por isso de
acordo com Pellegrin
sob essa perspectiva aristoteacutelica as tekhnai natildeo tecircm nenhuma razatildeo para sair dodegrau teoacuterico da Filosofia entendida como sistema total de saber mesmo seevidentemente nem todos os teacutecnicos satildeo filoacutesofos e nem todos os filoacutesofos satildeoteacutecnicos (Pellegrin 2002 p 15)
O uso dessas artes baseadas no raciociacutenio (logikai ou enkyklioi tekhnai) como
propedecircutica para a Filosofia tornou-se de maneiras diferentes lugar comum nas escolas
filosoacuteficas estoica peripateacutetica e platocircnica (Hadot 1984 p 273) Essa subordinaccedilatildeo da
tekhne agrave Filosofia constitui uma das caracteriacutesticas do que veio a ser a Enkyklios Paideia no
periacuteodo imperial
Em Arts Libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Ilsetraut Hadot apresenta as
ocorrecircncias da expressatildeo ldquoenkyklios paideiardquo em autores importantes do periacuteodo imperial
Tal pesquisa eacute referecircncia para a compreensatildeo do que satildeo as enkyklia mathemata refutadas por
Sexto Empiacuterico
Na eacutepoca de Sexto Empiacuterico o adjetivo enkyklios (ciacuteclico) construiacutedo a partir de
kyklos (ciacuterculo) deixa de significar um ldquolargo ciacuterculordquo de estudos ligado agrave vulgarizaccedilatildeo do
conhecimento e aparece nas expressotildees ldquoencyclios disciplinardquo e ldquoenkyklios paideiardquo do
periacuteodo imperial designando
um curriacuteculo de estudos unificado pelo meacutetodo e pela estrutura que se devepercorrer e concluir para se ter uma educaccedilatildeo completa eacute uma espeacutecie de ldquociclordquopelo qual as ciecircncias que o constituem podem por sua vez ser chamadas ldquociacuteclicasrdquoMas este ldquociclordquo natildeo se refere a um nuacutemero limitado tal como o das ldquosete artesrdquopor exemplo mas corresponde agrave ideia de unidade interior e de completude119 (Hadot1984 p 268)
Esclarecedor a esse respeito eacute o texto de Vitruacutevio autor latino do seacuteculo I aC De
acordo com Vitruacutevio ldquoarquitetura eacute uma ciecircncia composta de muitas disciplinas e adornada
com tipos variados de aprendizado ()rdquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1) Para ele ldquoos
objetos de todas as ciecircncias (disciplinas) satildeo conectados por uma estreita comunidade pois a
encyclios disciplina eacute formada por todas as suas partes como um corpo uacutenicordquo (Hadot 1984
118 Sobre a relaccedilatildeo entre ciecircncia e arte em Aristoacuteteles ver Met (1028 B) e EN (1141 A)119 Nesse sentido a traduccedilatildeo da expressatildeo ldquota enkyklia mathematardquo a que Sexto se refere por ldquoArtes Liberaisrdquo
(da Idade Meacutedia) eacute uma aproximaccedilatildeo muito pouco precisa Sexto de fato menciona as eleutherai tekhnaiuma vez todavia essa expressatildeo possivelmente remete mais ao sentido em que Aristoacuteteles a emprega doque agraves Artes Liberais da Idade Meacutedia
56
p 265) O autor descreve sua proacutepria instruccedilatildeo do seguinte modo
agradeccedilo aos meus pais pela sua aprovaccedilatildeo a essa lei Ateniense e por terem cuidadopara que eu fosse instruiacutedo em uma arte e uma arte de tal natureza que natildeo possaser levada agrave perfeiccedilatildeo sem literatura e uma educaccedilatildeo ciacuteclica em todas asdisciplinas Portanto graccedilas agrave atenccedilatildeo dos meus pais e agrave instruccedilatildeo que me foi dadapor meus professores eu obtive uma variada gama de conhecimentos (hellip)(Vitruacutevio VI pref 4 grifo nosso)120
O caraacuteter teoacuterico do estudo das enkyklia mathemata eacute enfatizado na seguinte
passagem do De Architetura onde o autor exemplifica a ideia de que todas as artes satildeo
compostas de teoria e praacutetica121
Uma dessas a realizaccedilatildeo do trabalho eacute proacutepria aos homens treinados no conteuacutedoindividual enquanto a outra a teoria eacute comum a todos os estudiosos por exemplopara meacutedicos e muacutesicos a batida riacutetmica do pulso e seu movimento meacutetrico Masse haacute uma ferida a ser curada ou um homem doente a ser salvo do perigo o muacutesiconatildeo seraacute chamado pois a ocupaccedilatildeo seraacute apropriada para o meacutedico Assim tambeacutemno caso de um instrumento musical natildeo seraacute o meacutedico mas o muacutesico que iraacute afinaro instrumento de modo que os ouvidos possam encontrar o devido prazer em suascordas Os astrocircnomos do mesmo modo tecircm um acircmbito comum de discussatildeo comos muacutesicos no que diz respeito agrave harmonia das estrelas e agrave concordacircncia musical nasteacutetrades e triacuteades [dos intervalos] de quarta e de quinta e com os geocircmetras noconteuacutedo da visatildeo (em grego logos optikos) e em todas as outras ciecircncias muitospontos talvez todos satildeo comuns no que diz respeito agrave sua discussatildeo (Vitruacutevio DeArchitetura I 1 15-6)
Enkyklios parece exprimir a ideia de que se deve estudar todas as disciplinas para
praticar uma porque elas implicam-se mutuamente Daiacute que Vitruacutevio apresente no primeiro
livro do De Architetura todos os saberes necessaacuterios a um bom arquiteto Entre esses saberes
estatildeo as disciplinas listadas com frequecircncia como a muacutesica a geometria e a astronomia
A descriccedilatildeo de Ciacutecero dessa relaccedilatildeo ldquociacuteclicardquo entre as ciecircncias remete ao
pensamento platocircnico em que ldquotodos os conteuacutedos doutrinais das artes liberais e humanas
satildeo mantidos unidos por um tipo de conexatildeo uacutenicardquo (Hadot 1984 p 265) onde se pode
observar um ldquotipo de concordacircncia e harmonia admiraacuteveis entre todas as ciecircnciasrdquo (idem)
Quintiliano que viveu entre I aC e I dC em seu Instituitione Oratoria tambeacutem
recomenda o estudo daquilo que ldquoos Gregos chamaram Enkyklios Paideiardquo (Quintiliano
Inst I X 1) O autor apresenta vaacuterios argumentos a favor das mathemata platocircnicas120 Para as citaccedilotildees de Vitruacutevio utilizamos a traduccedilatildeo em liacutengua inglesa de Morgan (1914) com algumas
adaptaccedilotildees baseadas no texto latino121 De acordo com Vitruacutevio na arquitetura ldquoa praacutetica eacute o exerciacutecio contiacutenuo e regular do emprego onde o
trabalho manual eacute executado com qualquer material necessaacuterio de acordo com o design de um desenhoTeoria por outro lado eacute a habilidade de demonstrar e explicar os resultados da destreza nos princiacutepios daproporccedilatildeordquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1)
57
sobretudo no que diz respeito agrave importacircncia do estudo da muacutesica122 ao que ele conclui que a
muacutesica eacute ldquoum elemento necessaacuterio agrave educaccedilatildeo do oradorrdquo (Quintiliano Inst I X 33)
Suas observaccedilotildees fazem referecircncia principalmente agrave autoridade de Pitaacutegoras e agrave de
Platatildeo Quintiliano recomenda esses estudos ldquonatildeo apenas por sua habilidade de afiar o
espiacuterito mas tambeacutem por seu valor filosoacuteficordquo (Hadot 1984 p 267) Nesse sentido nota-se
aqui uma retomada do papel propedecircutico das disciplinas matemaacuteticas platocircnicas agora
agrupadas dentro do conjunto da Enkyklios Paideia
Sobre esse caraacuteter ciacuteclico das artes fundadas na razatildeo Hadot tambeacutem chama atenccedilatildeo
para um comentaacuterio de Quintiliano a Dioniacutesio o Traacutecio (gramaacutetico do seacuteculo II aC)
enkyklioi satildeo as artes que alguns chamam de logikai [fundadas na razatildeo] como aastronomia a geometria a muacutesica a filosofia a medicina a gramaacutetica a retoacutericaChamam-nas enkuklioi porque o especialista (ho tekhnites) deve ao percorrer todasintroduzir em sua arte o que ele encontrou de uacutetil em cada uma delas (QuintilianoInst 1 X 6-7)
Na distinccedilatildeo entre as logikai tekhnai por oposiccedilatildeo as praktikai tekhnai Dioniacutesio
coloca a muacutesica entre as disciplinas fundadas na razatildeo Tambeacutem Galeno meacutedico grego do
seacuteculo II dC apresenta o mesmo tipo de oposiccedilatildeo e coloca entre as artes fundadas na razatildeo a
medicina a retoacuterica a muacutesica a geometria a aritmeacutetica o caacutelculo a astronomia a gramaacutetica
e o direito Galeno opotildee essas disciplinas agraves artes praacuteticas ou artes manuais (keironaktikai ou
banausoi tekhnai)123
Em diversos autores encontra-se as disciplinas fundadas na razatildeo sendo consideradas
como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes (tekhnai) De acordo com Hadot nesse
vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar as ldquoartes
fundadas na razatildeordquo124 em oposiccedilatildeo agraves artes manuais ou praacuteticas
Entre todos esses pensadores Filo de Alexandria no seacuteculo I dC talvez seja quem
melhor resume as caracteriacutesticas das enkyklia mathemata tal como Sexto parece compreendecirc-
la Seu pensamento reuacutene ldquointerpretaccedilotildees alegoacutericas do antigo testamento da Filosofia grega
e especialmente da Filosofia platocircnica contemporacircnea que havia sido enriquecida de
numerosos elementos doutrinais de proveniecircncia estoica e peripateacuteticardquo (Hadot 1984 p
282) No tratado De Congressu Filo introduz a Enkyklios Paideia personificada na figura de
122 Ver Quintiliano Inst (I X 9-33)123 Ver Galeno Protreptique aux arts (5 7)124 Tal distinccedilatildeo eacute encontrada no Contra os Muacutesicos na apresentaccedilatildeo dos sentidos do termo muacutesica (M VI 1)
O sentido de muacutesica refutado por Sexto eacute intitulado episteme por oposiccedilatildeo agrave chamada organiken empeiriaque designa a praacutetica musical
58
Agar125 como o caminho para a virtude
devemos compreender que grandes temas requerem grandes introduccedilotildees e o maiorde todos os temas eacute a virtude pois ela lida com o maior dos conteuacutedos que eacute atotalidade da vida humana Naturalmente a virtude implica uma introduccedilatildeo que natildeoseja menor que o estudo da gramaacutetica da geometria da astronomia da retoacuterica damuacutesica e de todos os outros estudos fundados no raciociacutenio (Filo De Congressu11)
Em Filo reencontramos a ideia de que as artes fundadas no raciociacutenio recebem seus
princiacutepios da Filosofia que eacute considerada por sua vez uma ciecircncia natildeo-hipoteacutetica e
inabalaacutevel Ao mesmo tempo tal panorama apresenta as enkyklia mathemata novamente
como um caminho enquanto ensino propedecircutico para se alcanccedilar a Filosofia Aqui destaca-
se a relaccedilatildeo hieraacuterquica entre esses conhecimentos os Estudos Ciacuteclicos como caminho para a
Filosofia e esta como caminho para a Sabedoria
Filo tambeacutem retoma outra expressatildeo cara ao nosso estudo ele iguala a Enkyklios
Paideia e a Enkyklios Mousike ou seja o ciacuterculo de atividades dedicadas agraves Musas Nesse
caso reencontramos aquele significado amplo do termo mousike ligado agrave cultura126
Haacute homens grosseiros e homens cultos aqueles que satildeo dedicados agrave harmonia dalira e das Musas e aqueles que danccedilam no coro do ciacuterculo de atividades dedicadasagraves Musas [hoi lteggtkekhoreukotes tei egkuklioi mousikei] os segundos tecircm maisrecursos para se desenvolver que os primeiros pois por assim dizer quase desdesua infacircncia eles satildeo inundados por discursos que defendem a firmeza oautocontrole e todas as virtudes (Filo De Mutatione Nominus 229 apud Hadot1984 p 286)
Eacute importante lembrar que sob a perspectiva do platonismo ldquoenkyklia mathematardquo
natildeo significa educaccedilatildeo usual tal como aparecia em Aristoacuteteles Nesse sentido embora os
termos eleutherai tekhnai e enkyklios paideia natildeo tenham o mesmo escopo o que haacute de
comum entre a enkyklios paideia do periacuteodo imperial as eleutherai tekhnai aristoteacutelicas e a
educaccedilatildeo matemaacutetica platocircnica eacute o seu caraacuteter que poderiacuteamos chamar elitizado Em funccedilatildeo
disso
natildeo eacute possiacutevel traduzir por ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteria habitualrdquo a expressatildeo enkuklios
125 Agar eacute o escravo egiacutepcio de Sarah mulher de Abraatildeo Abraatildeo simboliza o ldquointelecto amante doconhecimento e da virtuderdquo e Sarah representa a proacutepria virtude a Filosofia a ciecircncia e a sabedoria No DeCongressu para poder se unir a Sarah (ou seja para atingir a sabedoria) Abraatildeo deve primeiro unir-se aAgar
126 Esse significado estaacute relacionado agravequele modo considerado por Sexto Empiacuterico como menos apropriado emque os homens usam o termo muacutesica (M VI 2)
59
paideia empregada a toda hora no texto citado [de Vitruacutevio] mesmo se lembrarmosque tal educaccedilatildeo ordinaacuteria era reservada apenas a uma minoria eacute preferiacutevel traduzira expressatildeo por cultura completa (Hadot 1984 p 267)
Enquanto o conceito de artes liberais (eleutherai tekhnai) no periacuteodo imperial diz
respeito a todas as artes dignas de serem praticadas pelos homens livres abrangendo
atividades intelectuais ou de cunho mais praacutetico (tal como a caccedila e a ginaacutestica por exemplo)
o conceito de Enkyklios Paideia abrange as artes fundadas no raciociacutenio (logikai tekhnai)
enquanto um conjunto de ciecircncias que compotildeem um sistema teoacuterico unificado A
compreensatildeo dessa diferenccedila eacute fundamental para esclarecer o caraacuteter teoacuterico das disciplinas
dos Estudos Ciacuteclicos que Sexto propotildee refutar
Eacute dentro desse contexto que a muacutesica enquanto uma das mathemata que compotildeem a
enkyklios paideia aparece em todas as listas do periacuteodo imperial reunidas por Hadot
Aristides Quintiliano ilustra muito bem o caraacuteter teoacuterico e propedecircutico das mathemata
especificamente na relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia ao final de seu tratado sobre a muacutesica
Logo na medida em que eacute a principal companheira e colaboradora desta ndash me refiroagrave Filosofia ndash deve-se praticar e ensinar a muacutesica de modo completo e considerandoa relaccedilatildeo que existe entre ambas como a que existe entre os pequenos misteacuterios emrelaccedilatildeo aos misteacuterios maiores deve-se atribuir a cada uma a dignidade e a honraoportunas e deve-se estreitar sua uniatildeo por ser a mais conveniente e legiacutetima Comefeito a Filosofia eacute a culminaccedilatildeo de todo o conhecimento e a muacutesica eacute educaccedilatildeopreliminar (Aristides Quintiliano De Mus III 27)
Assim eacute enquanto parte de um sistema de conhecimento voltado ao acircmbito teoacuterico
que a muacutesica eacute listada como uma das mathemata refutadas no Contra os Professores A
muacutesica enquanto logikon tekhne permanece como uma propedecircutica para a Filosofia
43 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES
A lista das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos apresentada por Sexto Empiacuterico eacute
surpreendentemente parecida com a lista canocircnica das sete Artes Liberais estabelecida por
Santo Agostinho constituiacuteda pelo trivium (gramaacutetica retoacuterica dialeacutetica) e pelo quadrivium
(geometria aritmeacutetica astronomia muacutesica) Aleacutem disso o autor refere-se a essas disciplinas
como eleutherai tekhnai uma vez em sua obra (M II 57) Contudo tal referecircncia natildeo eacute razatildeo
suficiente para se supor que Sexto Empiacuterico considera as enkyklia mathemata e as eleutherai
tekhnai exatamente a mesma coisa ou que as compreenda segundo o seu significado a partir
60
de Santo Agostinho127 Tais interpretaccedilotildees mostram-se anacrocircnicas sob duas perspectivas
tanto quando se iguala as enkyklia mathemata ao seu sentido no periacuteodo claacutessico (de
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo tal como aparece em Aristoacuteteles) quanto ao se atribuir agrave lista de Sexto
um sentido posterior a ela
Apesar da inegaacutevel proximidade da lista de Sexto Empiacuterico com o trivium e o
quadrivium parece-nos muito mais razoaacutevel pensar tal como Pellegrin que ldquoSexto ataca um
modo de proceder que eacute dominante em sua eacutepoca ou pelo menos que ele considera como
mais completo que os outrosrdquo (Pellegrin 2002 p 30 grifo nosso) A lista das enkyklia
mathemata apresentada por Sexto Empiacuterico aproxima-se ndash muito ndash da lista de disciplinas de
Filo de Alexandria (gramaacutetica geometria ndash abrangendo possivelmente a aritmeacutetica ndash
astronomia retoacuterica e muacutesica) que estatildeo entre aquelas fundadas no raciociacutenio Nesse sentido
Sexto adotou como ldquomateacuteriardquo sobre a qual exercer sua criacutetica certa imagem das tekhnai daenkyklios paideia como ldquoservasrdquo da Filosofia natildeo porque seja sua convicccedilatildeo pessoal masporque essa seria a posiccedilatildeo dominante dos pensadores dogmaacuteticos de seu tempo (Pellegrin2002 p 32)
Se por um lado Sexto ataca tal perspectiva por ela ser predominante em seu periacuteodo
por outro tal ataque pauta-se em uma possiacutevel autonomia da tekhne em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Apesar do predomiacutenio da ideia de subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia houve ao mesmo
tempo no periacuteodo heleniacutestico uma espeacutecie de divoacutercio entre tekhne e Filosofia Alguns
ramos do conhecimento teacutecnico buscaram desenvolver um princiacutepio de funcionamento
autocircnomo em relaccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas ldquoA partir do momento em que Alexandria
destrona Atenas enquanto centro da vida intelectual grega as ciecircncias e as teacutecnicas ao
menos em seu niacutevel mais elevado natildeo satildeo mais praticadas nas escolas filosoacuteficasrdquo (Pellegrin
2002 p 15)
Observa-se que ao mesmo tempo em que a tekhne passa a ser ldquoestudada por ela
mesmardquo haacute o desenvolvimento de uma reflexatildeo que poderia ser chamada de epistemoloacutegica a
respeito das tekhnai128 O Contra os Professores parece lidar com essas duas posiccedilotildees em
127 Muito embora alguns comentadores o faccedilam Barnes considera a lista de Sexto Empiacuterico como um dosprimeiros aparecimentos da lista das Artes Liberais no sentido medieval Richard Bett (2005 p X)considera a lista das disciplinas apresentada por Sexto Empiacuterico como ldquocorrespondenterdquo agrave lista das seteArtes Liberais do curriacuteculo medieval Conforme apontamos acima (ver nota 101) essa equiparaccedilatildeo parece-nos leviana
128 Esse movimento havia comeccedilado pela medicina Pode-se observar na obra de Hipoacutecrates um esforccedilo de sedefinir o estatuto a aacuterea de atuaccedilatildeo e os meacutetodos da arte meacutedica Hipoacutecrates eacute considerado como aquele queldquolibertou a medicina de sua dependecircncia teoacuterica em relaccedilatildeo agrave Filosofiardquo (Pellegrin 2002 p 16) A relaccedilatildeocom a medicina eacute elucidativa a respeito do conceito de tekhne (aprovado pelo ceacutetico) que toma como base aexperiecircncia desvinculado do conceito de episteme Note-se que os principais representantes do ceticismo no
61
relaccedilatildeo agraves tekhnai ou seja as tekhnai teoacutericas dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e as
tekhnai enquanto praacuteticas autocircnomas dogmaacuteticas ou natildeo129
No Contra os Professores Sexto explicita que a investigaccedilatildeo sobre as mathemata se
daacute depois da investigaccedilatildeo da Filosofia visando ali tambeacutem (tal como na Filosofia) encontrar
a verdade deparando-se contudo com o dogmatismo Com isso o ceacutetico automaticamente
abre espaccedilo para a consideraccedilatildeo de que as tekhnai poderiam deter algum tipo de verdade
independentemente da Filosofia De acordo com Pellegrin ao fazer isso Sexto ldquonega agrave
Filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdaderdquo (Pellegrin 2002 p 32)
A refutaccedilatildeo ceacutetica dirige-se a um certo tipo de tekhne uma concepccedilatildeo especiacutefica
aquela dos professores das mathemata Em contrapartida haacute um sentido natildeo dogmaacutetico em
que as tekhnai natildeo satildeo refutadas130 Essa dicotomia como veremos aparece em relaccedilatildeo a
cada uma das disciplinas discutidas no Contra os Professores
431 O modelo argumentativo da obra
O Contra os Professores apresenta diferenccedilas de estilo argumentativo e de objeto em
relaccedilatildeo aos outros textos de Sexto Empiacuterico No restante de sua obra a Filosofia eacute o objeto da
refutaccedilatildeo ceacutetica e a argumentaccedilatildeo dirigida contra as partes desta culmina na suspensatildeo de
juiacutezo
Pellegrin chama atenccedilatildeo para o fato de que ldquoa situaccedilatildeo da Filosofia e das disciplinas eacute
seacuteculo II dC entre eles o proacuteprio Sexto Empirico eram tambeacutem os principais representantes da escolaempirista de Medicina Essa corrente toma como base o pensamento de Galeno De acordo com Allen oldquoempirismo meacutedico que surgiu no meio do terceiro seacuteculo aC define-se em oposiccedilatildeo a uma disseminadatendecircncia racionalista que seus fundadores detectaram na medicina do seu tempordquo (Allen 2010 p 234) Amedicina empiacuterica partia da observaccedilatildeo do fenocircmeno tendo como meacutetodo natildeo no raciociacutenio mas asistematizaccedilatildeo da experiecircncia Sobre a estreita relaccedilatildeo entre pirronismo e medicina ver Brochard (2009) eAllen (2010)
129 Os fundadores da escola empirista de medicina a compreendiam enquanto praacutetica autocircnoma (desvinculadada episteme mas ainda assim considerada dogmaacutetica pelo ceticismo) Haacute ainda a Escola Metoacutedica demedicina que surge em I aC Tal como os empiristas os metoacutedicos baseavam-se apenas no fenocircmenoTodavia diferentemente daqueles os Metoacutedicos segundo Porchat ldquoaceitaram explicitamente certo uso darazatildeo mas natildeo como fonte de conhecimentos teoacutericos natildeo como propiciadora de uma pretensa passagem doobservaacutevel ao inobservaacutevel que nos poria em condiccedilotildees de explicar os fenocircmenos observadosReconheceram por assim dizer uma razatildeo embutida na proacutepria experiecircnciardquo (Porchat 2007 p 24) EmboraEmpiristas e Metoacutedicos tivessem em comum o fenocircmeno enquanto ponto de partida os Empiristas eramcriticados ldquoporque estes afirmavam dogmaticamente que as entidades ocultas dos racionalistas eraminexistentes ou absolutamente incognosciacuteveisrdquo (Porchat 2005 p 33) E eacute esta a diferenccedila que faz com queSexto Empiacuterico mesmo sendo um meacutedico da escola empirista afirme que o ceticismo estaacute mais proacuteximo daescola metodista de medicina (ver HP I 236)
130 Tal como se observa no criteacuterio praacutetico do ceticismo pirrocircnico Ver acima p 50-1
62
comparaacutevel mas natildeo idecircntica Em relaccedilatildeo agraves disciplinas do aprendizado a questatildeo natildeo eacute
mais a suspensatildeo do assentimento mas a apresentaccedilatildeo de argumentos eficazes contra essas
disciplinasrdquo (Pellegrin 2002 p 11)
As diferenccedilas entre o modelo argumentativo presente no Contra os Professores e o
das outras obras e o desaparecimento da suspensatildeo de juiacutezo (ao menos explicitamente)
levaram alguns comentadores agrave conclusatildeo de que Sexto Empiacuterico teria abandonado o
ceticismo131 Outros consideram que se partimos daquilo que eacute apresentado por Sexto em
outros textos o Contra os Professores cai em contradiccedilatildeo e natildeo escapa ao dogmatismo132
No que diz respeito ao estilo do texto muito embora natildeo haja menccedilatildeo direta agrave
suspensatildeo de juiacutezo eacute impossiacutevel negar a presenccedila massiva dos procedimentos da
argumentaccedilatildeo ceacutetica O discurso ceacutetico eacute pautado em uma seacuterie de argumentos que foram
desenvolvidos pelos ceacuteticos anteriores a Sexto Empiacuterico Nas Hipotiposes Pirronianas (HP I
36-163) Sexto apresenta os argumentos ceacuteticos utilizados para minar as bases teoacutericas dos
especialistas os chamados Modos de Enesidemo e os Modos de Agripa Os Modos ou Tropos
(tropous) como satildeo chamados levam agrave suspensatildeo de juiacutezo ao mostrarem a equipolecircncia das
afirmaccedilotildees acerca das coisas Satildeo consideraccedilotildees baseadas (1) naquele que julga (2) naquilo
que eacute julgado e (3) em ambos133 Os Modos desenvolvidos pelo filoacutesofo Enesidemo (I aC)
segundo a tradiccedilatildeo dos antigos ceacuteticos seriam dez134 Jaacute os Modos de Agripa satildeo um conjunto
de argumentos baseados nos problemas loacutegicos em que incorreriam os argumentos dos
dogmaacuteticos contra os ceacuteticos que satildeo (1) conflito de opiniotildees (2) regresso ao infinito (3)
relatividade (4) hipoacutetese (5) ciacuterculo Estes posteriores aos de Enesidemo visam
131 O principal comentador a defender essa tese eacute Janaacuteček em Sextus Empiricus skeptical methods (1972) Suatese eacute refutada em diversos artigos Ver por exemplo Pellegrin (2002 p 11 ss) Desbordes (1990 p 167ss)
132 Richard Bett em seu artigo La double schizophreacutenie de M I-VI et ses origines historiques (2006)apresenta uma outra explicaccedilatildeo para as diferenccedilas detectadas entre as obras de Sexto Empiacuterico Em sumasegundo ele ldquomuitas pesquisas tentam mostrar que Sexto natildeo se contradiz Entretanto um exame detalhadodo texto mostra claramente que tais tentativas estatildeo fadadas ao fracassordquo Baseado em uma pesquisahistoacuterica Bett considera que a argumentaccedilatildeo do Contra os Professores eacute ldquoresultado de uma falta deadaptaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave sua proacutepria forma posterior do pirronismo dos argumentos que estavamoriginalmente em seu lugar em um periacuteodo anterior e distintordquo (Bett 2006 p 17) O artigo de Pellegrin(2006) retomando sua leitura apresentada na introduccedilatildeo agrave sua ediccedilatildeo do Contra os Professores (2002) eacuteuma resposta a essa visatildeo sustentada por Bett Entretanto em um artigo posterior especificamente sobre oContra os Muacutesicos Bett teria revisto algumas de suas conclusotildees a esse respeito afirmando que ldquopodehaver algumas singularidades no modo como ele [Sexto] apresenta seu material neste livro e em sua obracomo um todo mas as preocupaccedilotildees que muitos (incluindo eu mesmo) expressaram sobre isso natildeo satildeofundamentaisrdquo (Bett 2013 p 168)
133 Tomemos como exemplo o primeiro Modo de Enesidemo acerca da variedade dos animais identificado noseguinte argumento do Contra os Muacutesicos ldquoa mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute demodo algum para os homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitantemas perturbadorardquo (M VI 20)
134 Sobre os Modos de Enesidemo ver Annas amp Barnes (1985)
63
complementaacute-los Para Spinelli (2010 p 259) ldquotodo objeto de investigaccedilatildeo pode ser referido
a esses Modosrdquo
Jaacute no iniacutecio do primeiro livro do Contra os Professores Sexto faz uma refutaccedilatildeo geral
com a pretensatildeo de mostrar que natildeo existem tais ensinamentos Sua argumentaccedilatildeo aborda a
impossibilidade do aprendizado devido agrave inexistecircncia das partes necessaacuterias ao aprendizado
das disciplinas a saber o conteuacutedo ensinado o professor o aprendiz e o meacutetodo de
aprendizado (M I 40)135
Em tal exposiccedilatildeo observa-se a forma dicotocircmica e ldquoem ondasrdquo da argumentaccedilatildeo
ceacutetica ldquotudo eacute A ou B (por exemplo sensiacutevel e inteligiacutevel) poreacutem X (por exemplo os
corpos) natildeo eacute A nem B por conseguinte X natildeo existe e natildeo pode ter a propriedade Y (por
exemplo ser ensinado) e mesmo se supusermos que X eacute A ele natildeo estaacute menos privado de
Yrdquo (Pellegrin 2002 p 11-2)
A argumentaccedilatildeo ceacutetica parte de conceitos considerados dogmaacuteticos (tambeacutem
abordados em outras obras de Sexto136) privilegiando com frequecircncia os conceitos
estoicos137 Quando Sexto argumenta para mostrar a impossibilidade de existecircncia de uma
arte ele parte das noccedilotildees de ldquoconhecimentordquo ldquoverdaderdquo e ldquoexistecircnciardquo daqueles que ele
pretende refutar Em sua contra-argumentaccedilatildeo Sexto assume opiniotildees tatildeo dogmaacuteticas quanto
essas que ele visa refutar Todavia ao contraacuterio daqueles que emitiram essas opiniotildees ele natildeo
pretende assumi-las como verdadeiras mas as utiliza para mostrar o conflito entre as opiniotildees
dos dogmaacuteticos
Assim em todos os livros do Contra os Professores observa-se que o autor
utiliza o arsenal dos tropos particularmente os cinco de Agripa (diaphonia regressoao infinito relatividade hipoacutetese ciacuterculo) e os mesmo dispositivos de ataque aosfundamentos mais abstratos (inexistecircncia da prova aporia dos raciociacutenios sobre otodo e a parte) e frequentemente o equiliacutebrio das opiniotildees a equipolecircnciarealiza-se de fato mesmo se Sexto persiste menos que em outros lugares emrelacionar este resultado agrave realizaccedilatildeo de uma das foacutermulas que ele cuidadosamentecomentou no livro I das Hipotiposes (Desbordes 1990 p 168)
No Contra os Professores satildeo utilizados dois tipos de argumentaccedilatildeo explicitados pelo
proacuteprio ceacutetico De acordo com Sexto Empiacuterico ldquoo caso contra os professores foi exposto
135 O mesmo tema eacute abordado em HP III 238-279136 Cf PH II 37 PH III 38 102 M IX 359 M X 39137 Cf M I 17 20 Exemplo disso eacute o uso da noccedilatildeo estoica de tekhne como paradigma para sua refutaccedilatildeo (ver
p 54) Aleacutem disso especificamente no Contra os Muacutesicos os argumentos a respeito da utilidade da muacutesicasatildeo muito semelhantes aos de Filodemo sendo que muitas das afirmaccedilotildees a favor de sua utilidade satildeoatribuiacutedas diretamente aos estoicos Ver seccedilotildees 34 e 52
64
tanto por Epicuro quanto pelos disciacutepulos de Pirro embora de maneiras diferentesrdquo (M I
1)138 Ao compor sua argumentaccedilatildeo Sexto Empiacuterico
sente-se livre para se apropriar das opiniotildees e conclusotildees dos outros sendodogmaacuteticas ou ceacuteticas sem por essa razatildeo ter que defendecirc-las por si mesmo Issojustifica a presenccedila em M I-VI de diversas vozes entre as quais aleacutem da pirrocircnicae de outras escolas e movimentos filosoacuteficos os epicuristas como jaacute foi notado sesobressaem Isto natildeo eacute de modo algum se usado para propoacutesitos polecircmicos e emfunccedilatildeo da argumentaccedilatildeo incompatiacutevel com o pirronismo (Spinelli 2010 p 256)
De acordo com Desbordes o autor utiliza com propriedade a antilogia retoacuterica em sua
exposiccedilatildeo sobre a utilidade de certas disciplinas Para o comentador no Contra os Muacutesicos
(M VI 4-6)
Sexto assinala a diferenccedila entre essa tradiccedilatildeo [epicurista] e o meacutetodo que ele julgacomo mais propriamente ceacutetico e observando-se de perto essa oposiccedilatildeo eacuteinstrutiva Trata-se com efeito de uma dupla oposiccedilatildeo por um lado a proposta eacutedogmaacutetica visando agrave negaccedilatildeo por outro eacute mais aporeacutetica (aporetikoteron)visando a princiacutepio agrave suspensatildeo de juiacutezo aleacutem disso por um lado examina-se osargumentos do adversaacuterio de outro ataca-se diretamente os fundamentos de suaopiniatildeo (Desbordes 1990 p 168-9)
Sexto Empiacuterico toma o conceito estoico de arte como ldquosistema composto de
apreensotildees exercidas conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10 grifo
nosso) como paradigma do que seja uma tekhne Consequentemente uma parte da refutaccedilatildeo
ceacutetica estaacute voltada agrave utilidade das mathemata Todavia Sexto considera dogmaacuteticos os
argumentos que ele mesmo apresenta para a refutaccedilatildeo da utilidade Embora Sexto critique
sob certa perspectiva tais argumentos ele tambeacutem os toma como parte vaacutelida de sua
argumentaccedilatildeo visto que ele natildeo pretende ocultar qualquer parte da refutaccedilatildeo (ver M VI 6)
No que concerne a essa argumentaccedilatildeo contra a utilidade das tekhnai para Pellegrin
tudo parece indicar que Sexto fala de dois tipos distintos de inutilidade R Bett fazuma boa observaccedilatildeo quando nota que sendo as artes definidas pela sua utilidade osargumentos que atacam sua utilidade satildeo ldquouma variaccedilatildeordquo dos argumentos a favor dasua natildeo existecircncia visto que se ela eacute inuacutetil uma arte deixa de ser uma arte(Pellegrin 2006 p 41)
Mesmo utilizando argumentos semelhantes aos dos epicuristas Sexto Empiacuterico
apresenta no iniacutecio do Contra os Professores uma criacutetica agrave tese dogmaacutetica sustentada por
eles de que os Estudos Ciacuteclicos satildeo ineficazes para se chegar agrave sabedoria Tambeacutem de acordo
138 Sexto Empiacuterico considera que a refutaccedilatildeo agraves artes feita por Epicuro eacute dogmaacutetica por sustentar firmementeque as artes satildeo inuacuteteis aleacutem disso ele sugere que a atitude de Epicuro eacute motivada pela ignoracircncia
65
com Pellegrin apesar dessa ldquorepreensatildeordquo ao meacutetodo epicurista
nas outras passagens ao contraacuterio parece que no que concerne agraves disciplinasteacutecnicas as evidecircncias de sua inutilidade valem pela criacutetica de sua proacutepriaexistecircncia e os argumentos apresentados por certos dogmaacuteticos (os Epicuristas osCirenaicos os Ciacutenicos e outros) satildeo utilizaacuteveis pelo ceacutetico pirrocircnico Os pirrocircnicose certos dogmaacuteticos que tinham posiccedilotildees inconciliaacuteveis sobre a Filosofiaencontram-se adotando uma estrateacutegia comum no que diz respeito agraves disciplinasteacutecnicas a saber arruinar um elemento fundamental neste caso a utilidade A parteldquomais aporeacuteticardquo natildeo faz mais que continuar o trabalho de aniquilaccedilatildeo (Pellegrin2006 p 41)
O segundo tipo de refutaccedilatildeo a argumentaccedilatildeo ldquomais aporeacuteticardquo que aparece no Contra
os Professores conclui pela inexistecircncia dos princiacutepios baacutesicos ou da proacutepria arte em
questatildeo Mas como vimos o ceacutetico visa desestabilizar as teorias daqueles que pretendem ter
apreendido a verdade natildeo provar sua inexistecircncia Segundo Pellegrin os termos utilizados
por Sexto Empiacuterico tal como ldquoanyparktos anypostatos ou asystasos indicam natildeo uma
inexistecircncia no sentido ontoloacutegico mas uma inconsistecircncia ou uma ausecircncia de
fundamentordquo139 (Pellegrin 2006 p42) Eacute nesse sentido que no Contra os Muacutesicos Sexto
afirma por exemplo que ldquoo som natildeo existerdquo
Em vista disso a argumentaccedilatildeo que conclui pela ldquonatildeo-existecircnciardquo dos conceitos
apresentados no Contra os Professores tambeacutem natildeo precisa ser considerada um sinal de
dogmatismo negativo da parte do ceacutetico Se ele utiliza uma argumentaccedilatildeo de caraacuteter
destrutivo eacute antes de tudo para atacar as bases dogmaacuteticas dos conteuacutedos discutidos Nesse
caso o princiacutepio seguido pelo pirrocircnico eacute o de que ele ldquodeve concentrar os disparos de sua
polecircmica contra as bases do edifiacutecio dogmaacutetico visto que somente derrubando-as totalmente
o colapso de todos os outros aspectos teoacutericos que dependem destas bases seraacute tambeacutem
garantidordquo (Spinelli 2010 p 257)
No que diz respeito ao estilo argumentativo parece-nos plausiacutevel assumir que a visatildeo
ceacutetica permanece atuante no Contra os Professores Tal como Pellegrin (2002 p 13)
relacionamos ldquoas diferenccedilas que existem entre o Contra os Professores e os outros tratados agrave
diferenccedila entre seus objetosrdquo Consideramos que tal diferenccedila se daacute ainda em funccedilatildeo dos
proacuteprios interlocutores (os professores) aos quais os livros satildeo destinados Em suma
Sexto fala de outro modo que em suas outras obras porque ele estaacute falando de outracoisa Em M I-VI encontramo-nos com efeito fora do programa da Filosofia ceacutetica
139 Tal distinccedilatildeo eacute fundamental para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo que aparece na segunda parte do Contraos Muacutesicos
66
que Sexto expotildee no iniacutecio das Hipotiposes (I 5-6)140 (hellip) Em M I-VI comeccedila algoque eacute comparaacutevel ao tratamento da Filosofia (hellip) com as intenccedilotildees e a metodologiaceacutetica Sexto aborda um domiacutenio que natildeo eacute mais a Filosofia propriamente dita ()mas que aproxima-se em muitos aspectos da simples experiecircncia da vida cotidiana(Desbordes 1990 p 170)
44 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA
DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO
A refutaccedilatildeo das disciplinas tal como a compreendemos ateacute aqui implica na ideia de
que o dogmatismo natildeo estaacute simplesmente ligado aos juiacutezos filosoacuteficos mas sim e sobretudo
a uma atitude em relaccedilatildeo a uma crenccedila mdash a atitude de sustentar firmemente essa crenccedila141
Sob essa perspectiva o ceacutetico natildeo estaacute preocupado em refutar apenas teses estritamente
filosoacuteficas Ele quer combater toda e qualquer precipitaccedilatildeo dogmaacutetica mostrando que esta
acontece tambeacutem em outras aacutereas do conhecimento tanto em uma dimensatildeo praacutetica da
Filosofia142 quanto no que diz respeito agraves bases do conhecimento teacutecnico
De acordo com Desbordes o que acontece no Contra os Professores eacute uma ldquoreaccedilatildeo de
defesa contra as invasotildees excessivas da especulaccedilatildeordquo (Desbordes 1990 p 171) Segundo o
comentador ldquoo ceticismo aplica-se apenas agraves proposiccedilotildees dogmaacuteticas sobre aquilo que natildeo eacute
evidente Mas encontra-se tambeacutem proposiccedilotildees dogmaacuteticas incompatiacuteveis com as evidecircncias
do senso comum e sobre elas a posiccedilatildeo de Sexto variardquo (idem) Todavia para Desbordes a
oposiccedilatildeo entre uma posiccedilatildeo dogmaacutetica e a afirmaccedilatildeo de uma evidecircncia pode constituir uma
diaphonia que conduziria agrave suspensatildeo de juiacutezo
No Contra os Professores enfatiza-se a diferenccedila entre a vida cotidiana e a
especulaccedilatildeo intelectual Tal diferenccedila foi sublinhada tambeacutem no Contra os Moralistas (M XI
165) ldquoo ceacutetico natildeo conduz sua vida de acordo com o discurso filosoacutefico (ele eacute inativo sob
essa perspectiva) mas de acordo com a observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica ele eacute capaz de escolher isso
e rejeitar aquilordquo
Sob essa perspectiva a da observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica determinar o sentido em que um
conceito seraacute discutido eacute procedimento comum na obra de Sexto Empiacuterico Em todos os
livros do Contra os Professores aparecem definiccedilotildees dos sentidos em que cada uma das Artes
eacute atacada em oposiccedilatildeo agravequilo que eacute preservado de cada uma delas Se por um lado as Artes140 Sexto pontua a conclusatildeo do relato acerca da refutaccedilatildeo ceacutetica agrave Filosofia em M XI 257141 Tendo em vista a interpretaccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico que apresentamos acima Ver seccedilatildeo 41
(especificamente p 48-9)142 Na questatildeo acerca da Arte de Viver abordada em HP III
67
devem ser refutadas em funccedilatildeo de seus aspectos dogmaacuteticos por outro elas devem ser
preservadas na medida em que satildeo uacuteteis natildeo segundo a definiccedilatildeo dogmaacutetica dos estoicos
mas de acordo com o criteacuterio praacutetico do ceacutetico segundo o qual ldquoalgumas artes foram
introduzidas principalmente com o objetivo de evitar coisas prejudiciais outras com o de
descobrir coisas beneacuteficas medicina eacute um exemplo do primeiro tipo sendo uma arte curativa
que alivia a dor e navegaccedilatildeo do segundo tipo pois todos os homens precisam muito da
assitecircncia de outras naccedilotildeesrdquo (M I 51)
Ao longo do Contra os Professores Sexto apresenta o sentido em que cada uma das
artes natildeo eacute refutada
noacutes temos a gramaacutetica baacutesica ou grammatistike (M I 44 49 ss e talvez II 13) mastambeacutem poesia (M I 278 299) ldquoastrometeorologiardquo baseada na observaccedilatildeo dofenocircmeno (M V 1-2) tal como agricultura (M V 2) ou a arte da pilotagem (M I51 II 13 V 2 ver tambeacutem M VIII 203) e tambeacutem talvez escultura e pintura (MI 182) muacutesica enquanto a simples execuccedilatildeo de instrumentos (M VI 1) eobviamente a medicina (M I 51 II 13) e talvez finalmente a Filosofia secompreendida em um sentido genuinamente pirrocircnico (novamente M II 13 mastambeacutem I 280 296 e II 25) (Spinelli 2010 p 258 grifo nosso)
Enquanto parte do criteacuterio praacutetico as artes natildeo podem ser simplesmente eliminadas
por isso a distinccedilatildeo entre arte dogmaacutetica e arte relacionada agrave vida comum eacute essencial para o
ceacutetico De acordo com Spinelli
Sexto parece se dirigir agraves artes ou tekhnai ao inveacutes dos aspectos especiacuteficos doraciociacutenio filosoacutefico e essas tecircm caracteriacutesticas diferentes Embora tambeacutempretenda-se que estejam ancoradas a uma estrutura teoacuterica que visa uma verdadedita incontroversiacutevel a qual eacute objeto das criacuteticas destrutivas de Sexto em vaacuterioslivros de M I-VI parece que elas satildeo para aleacutem disso e especialmente perigosas em outra direccedilatildeo Tais tekhnai de modos diferentes e em diferentes graussatildeo de fato natildeo apenas uma fonte de precipitaccedilatildeo dogmaacutetica no niacutevel do argumentoabstrato mas representam uma ameaccedila agrave uacutenica estrutura de referecircncia moral ecomportamental que o ceacutetico aceita as aparecircncias relacionadas agrave vida comum oukoinos bios (PH I 17) Aqui entatildeo estaacute a explicaccedilatildeo para a dicotomia deaproximaccedilotildees notada anteriormente tal como a estrateacutegica alianccedila temporaacuteria comalgumas criacuteticas Epicuristas acerca da falta de utilidade das Artes LiberaisParticularmente entretanto torna-se mais faacutecil entender as tantas ressalvas feitaspor Sexto em defesa da legitimidade de algumas tekhnai e da possibilidade depraticaacute-las agraves vezes em contraste expliacutecito com as Artes Liberais (Spinelli 2010p 258 grifo nosso)
Em funccedilatildeo disso a diferenccedila entre o meacutetodo utilizado contra a Filosofia e este
utilizado no caso das tekhnai se daacute natildeo soacute porque os objetos refutados satildeo diferentes mas
porque essa diferenccedila eacute fundamental para a coerecircncia interna do ceticismo O Contra os
68
Professores inicia-se com a justificativa de que a refutaccedilatildeo agraves mathemata acontece porque em
relaccedilatildeo a elas o ceacutetico encontrou as mesmas dificuldades que havia encontrado em relaccedilatildeo agrave
Filosofia Dificuldades essas ele explicita ligadas agrave pretensatildeo de verdade dessas disciplinas
ou em outras palavras ao dogmatismo impliacutecito (e muitas vezes expliacutecito) nas afirmaccedilotildees
dos professores das mathemata
Faz-se necessaacuterio para o ceacutetico mostrar a vaidade destes discursos dogmaacuteticos queas artes sustentam sobre elas mesmas e natildeo mostrar que haacute teses opostas de forccedilaigual enunciadas pelos teoacutericos de cada uma dessas artes entre as quais o ceacuteticonatildeo pode escolher (hellip) portanto as ldquodificuldades iguaisrdquo agravequelas encontradas naFilosofia que satildeo aquelas com as quais o ceacutetico se confrontou no que concerne agravesdisciplinas teacutecnicas natildeo satildeo ou pelo menos natildeo principalmente a igualdade dasteses contraditoacuterias e a irregularidade do real Incumbe-se ao ceacutetico mostrar ainconsistecircncia teoacuterica das descriccedilotildees que as artes datildeo a si mesmas (Pellegrin2006 p 43 grifo nosso)
Se o Contra os Professores aparece como uma reaccedilatildeo quase pessoal de Sexto
Empiacuterico ao dogmatismo dos professores das mathemata isso se daacute porque estes dogmatizam
a respeito de uma aacuterea decisiva para a coerecircncia interna da praacutetica ceacutetica O ceacutetico recusa as
teorias a respeito das artes natildeo soacute porque elas partem de premissas natildeo evidentes mas
tambeacutem porque a determinaccedilatildeo da natureza de certos aspectos de uma arte eacute algo
completamente inuacutetil para a sua execuccedilatildeo A possibilidade de execuccedilatildeo de uma arte eacute por sua
vez algo essencial agrave legitimidade do criteacuterio praacutetico e consequentemente para a
legitimidade do proacuteprio ceticismo pirrocircnico
Nesse sentido a suspensatildeo de juiacutezo nunca mencionada no Contra os Professores natildeo
estaacute diretamente em questatildeo Eacute tendo em vista as ldquopretensotildees de uma arte de possuir uma
estrutura teoacuterica e principalmente princiacutepios que Sexto pretende anairein derrubar anular
as disciplinas teacutecnicasrdquo (Pellegrin 2006 p 44)
Se o ceacutetico faz uma distinccedilatildeo entre as tekhnai que ele considera dogmaacuteticas (aquelas
que compunham os Estudos Ciacuteclicos) e as tekhnai de acordo com o criteacuterio praacutetico eacute porque
ele ldquopressente a possiacutevel autonomia de um pensamento teacutecnico (hellip) apenas as tekhnai que
satildeo pode-se dizer servas de primeira ordem da Filosofia teriam o meacuterito de ser atacadas
pelo ceacutetico (Pellegrin 2002 p 34) Por isso podemos concluir junto com Pellegrin que
ldquomesmo quando ele pretende combater outra coisa que a Filosofia Sexto ainda estava
combatendo a sombra da Filosofiardquo (idem)
69
5 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS
O Contra os Muacutesicos comeccedila com a distinccedilatildeo entre alguns sentidos do termo
ldquomuacutesicardquo para definir o escopo da refutaccedilatildeo Tendo definido em que sentido o termo seraacute
refutado Sexto apresenta os dois tipos de argumentaccedilatildeo que seratildeo utilizados O primeiro
conjunto de argumentos sobre a utilidade da muacutesica eacute carregado de exemplos que dialogam
com diversas fontes da Antiguidade o segundo conjunto sobre a teoria musical apresenta os
principais conceitos desta teoria e os refuta Agora que jaacute compreendemos o conceito de
mousike e seu sentido enquanto uma das disciplinas que faziam parte da enkyklios paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico e tendo aleacutem disso apreendido o sentido da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves
tekhnai como um todo cabe ainda tecer algumas consideraccedilotildees diretamente sobre o conteuacutedo
do Contra os Muacutesicos
51 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo
Sexto Empiacuterico distingue trecircs sentidos em que o termo ldquomuacutesicardquo eacute utilizado enquanto
ldquociecircncia acerca das melodias [episteme tis peri melodias] sons e composiccedilatildeo de ritmosrdquo
ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo [he peri organiken empeiria] e ldquosucesso na realizaccedilatildeo de
alguma coisardquo (M VI 1-2) Esse uacuteltimo considerado por Sexto Empiacuterico como menos
apropriado eacute derivado de um sentido amplo de ldquomousikerdquo que inclui todas as artes e ciecircncias
presididas pelas Musas Por isso ldquomusicalrdquo (mousikos) pode ser atribuiacutedo agravequele que eacute
ldquodotado pelas Musas culto refinado eleganterdquo (Tomaacutes 2002 p 40-1)
Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute
apenas nesse sentido que ele pretende refutar a muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o
mais completordquo (M VI 3)
A definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico apresenta pode de fato ser encontrada na obra de
Aristoacutexeno mas como definiccedilatildeo da ciecircncia harmocircnica que eacute uma das partes da muacutesica Para
Aristoacutexeno a muacutesica eacute dividida em quatro partes143 entre elas a harmonike eacute a principal e
143 ldquo() ciecircncia harmocircnica eacute uma parte da competecircncia do muacutesico assim como a riacutetmica a meacutetrica e a
70
por sua vez eacute dividida em sete partes notas intervalos escalas gecircneros sistemas
modulaccedilatildeo e melopeia (Aristoacutexeno El Harm 4410-48) Pela sua definiccedilatildeo de mousike a
partir de uma de suas partes ‒ que eacute a harmonike ‒ nota-se que Sexto Empiacuterico apresenta uma
definiccedilatildeo pouco exata de mousike De acordo com Reyes essa aproximaccedilatildeo entre mousike e
harmonike pode natildeo ser tatildeo imediata ldquotonos eacute um elemento da harmonike enquanto a
rythmopoiia eacute um elemento da mousike melodia pode ser referida por Sexto agrave melopoiia (que
pertence agrave harmonike embora pareccedila ser utilizada aqui para designar o termo geneacuterico
melos)rdquo (Reyes 2004 p 99) A princiacutepio algueacutem poderia simplesmente supor que Sexto
Empiacuterico natildeo domina o assunto Natildeo obstante essa primeira definiccedilatildeo aparece acompanhada
da expressatildeo ldquoe coisas desse tipordquo (kai ta paraplesia katagignomene pragmata) o que abre
espaccedilo para se considerar que a intenccedilatildeo de Sexto Empiacuterico eacute dar uma definiccedilatildeo bastante
geral sobre a muacutesica
O objetivo de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos implica uma refutaccedilatildeo que natildeo
tem uma teoria especiacutefica enquanto alvo mas antes uma perspectiva comum sobre a muacutesica
Nesse sentido a definiccedilatildeo de Aristoacutexeno (enquanto o representante do grupo de teoacutericos
chamados ldquomuacutesicosrdquo) tem caraacuteter paradigmaacutetico a respeito daquilo que se quer discutir visto
que ela eacute tida como a ldquomais completardquo (M VI 3)
Se a muacutesica eacute objeto da refutaccedilatildeo ceacutetica enquanto uma das disciplinas da enkyklios
paideia sua definiccedilatildeo enquanto episteme coloca-a no grupo das ldquoartes baseadas na razatildeordquo144
as logiken tekhnai A mousike enquanto episteme definida por elementos da harmonike eacute
oposta por Sexto Empiacuterico a outro conceito que aparece tambeacutem em Aristoacutetexo a organike
Embora a organike apareccedila como uma das partes da mousike ao lado da harmonike os
autores da tratadiacutestica musical desconsideram a parte praacutetica da muacutesica considerando-a
alogos (irracional)145 A organike enquanto arte praacutetica (pratike tekhne) aparece junto do
termo ldquoempeiriardquo (experiecircncia) destacando o seu caraacuteter praacutetico
Reyes aponta que ldquona eacutepoca de Sexto o oposto agrave harmonike eacute jaacute claramente a
organike (hellip) Os organikoi isto eacute a organike de Sexto nem sequer participa da discussatildeo
dos kriteria em muacutesica tatildeo relevante nessa eacutepocardquo (Reyes 2004 p 100) Tal recorte de
acordo com a cisatildeo entre teoria e praacutetica musical na Antiguidade evidencia que Sexto estaacute
preocupado em refutar a muacutesica enquanto teoria e natildeo como uma arte praacutetica
orgacircnicardquo (Aristoacutexeno El Harm 419-12 traduccedilatildeo Roosevelt Rocha)144 Ver seccedilatildeo 42 (p 57)145 Aristides Quintiliano De Mus (419-20) Cleonides Harm (1793-4 Jan) Anon Bellerm (12)
71
512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica
A argumentaccedilatildeo presente no Contra os Muacutesicos segue o modelo argumentativo
apresentado no capiacutetulo anterior146 e foi dividida explicitamente pelo autor em dois conjuntos
de argumentos e contra-argumentos Tendo definido o objeto a ser refutado a teoria musical
(no sentido amplo do termo147) Sexto Empiacuterico ldquoalinhou sucessivamente argumentos mais
dogmaacuteticos [dogmatikoteron] e em seguida argumentos mais aporeacuteticos [aporetikoteron]rdquo
(Pellegrin 2002 p 46) atribuindo-os inicialmente a ldquounsrdquo e ldquooutrosrdquo Para o ceacutetico
Uns de modo mais dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute umensinamento necessaacuterio para a felicidade mas muito prejudicial e eles seesforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo que eacute dito pelos muacutesicos esustentando que seus argumentos principais eram dignos de negaccedilatildeo Outros de ummodo mais aporeacutetico evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo ao desestabilizar asprincipais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem destruir toda a muacutesica (M VI4-5 grifo nosso)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37) a discussatildeo se daacute a respeito da
utilidade da muacutesica se ela eacute ou natildeo necessaacuteria para a felicidade Isso porque desde Platatildeo
as questotildees esteacuteticas satildeo apresentadas tipicamente em contextos inextricaacuteveis dequestotildees eacuteticas e poliacuteticas mais amplas a beleza estaacute mais intimamente ligada como bem do que noacutes tenderiacuteamos a assumir e as artes satildeo amplamente consideradasem termos de seus efeitos eacuteticos e pedagoacutegicos de seu papel na sociedade etc EPlatatildeo dita o tom a respeito disso para a Filosofia Grega bastante posterior a eleComo veremos os Estoicos parecem tecirc-lo seguido nisso enquanto os Epicuristasque argumentaram contra o poder eticamente transformativo da muacutesica claramentese consideram como desafiando uma visatildeo amplamente sustentada (Bett 2013 p156-7)
Se a discussatildeo das artes estaacute ligada a seu papel pedagoacutegico e poliacutetico a questatildeo da
utilidade da muacutesica eacute um problema eacutetico e natildeo esteacutetico De acordo com Bett os argumentos
eacuteticos apresentados pelo ceacutetico em geral abrangem duas questotildees centrais ldquose algo eacute bom
ou ruim por natureza (hellip) e quais satildeo as consequecircncias praacuteticas de uma resposta afirmativa a
essa questatildeordquo (Bett 2013 p 157) e se existe (tal como afirmavam os Estoicos) ou natildeo uma
Arte de Viver
Enquanto os filoacutesofos e a maioria das pessoas acreditam que a muacutesica pode ser boa
por natureza os filoacutesofos Epicuristas148 satildeo aqueles ldquounsrdquo que ldquode modo mais dogmaacutetico
146 Ver seccedilotildees 43 e 431147 Ver Introduccedilatildeo (p 10) e seccedilatildeo 31148 Mostraremos adiante a relaccedilatildeo estreita entre os argumentos do filoacutesofo epicurista Filodemo e os de Sexto
72
tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute um ensinamento necessaacuterio para a felicidaderdquo (M VI 4)
Ainda que Sexto Empiacuterico atribua explicitamente alguns dos contra-argumentos aos
epicuristas (ver M VI 1927) ele continua considerando que eles satildeo dogmaacuteticos149 visto que
sustentam firmemente a crenccedila150 de que determinadas teses satildeo falsas (HP I 1-10) Nesse
sentido seus argumentos satildeo usados pelo ceacutetico para apresentar um ponto de vista contraacuterio
ao da maioria
Embora os argumentos contra a utilidade da muacutesica recebam mais atenccedilatildeo do ceacutetico
do que os a favor (ateacute porque estes jaacute eram bastante conhecidos por aqueles aos quais o
Contra os Muacutesicos se dirige) consideramos tal como Bett (2013 p 162) que ldquonatildeo eacute difiacutecil
observar isso como um exemplo do procedimento padratildeo de Sexto de justapor argumentos
para conclusotildees opostas visando induzir a suspensatildeo do juiacutezo a respeito de ambos os ladosrdquo
apesar da suspensatildeo do juiacutezo natildeo ser diretamente mencionada ao longo do Contra os
Professores151
Na segunda parte da obra (M VI 38-68) Sexto apresenta brevemente alguns
conceitos da teoria musical (em sentido estrito) especificamente os da ciecircncia harmocircnica de
Aristoacutexeno e contra isso sustenta argumentos contra os princiacutepios baacutesicos da teoria musical
visando mostrar a inexistecircncia dos conceitos a partir dos quais a ciecircncia harmocircnica se
constroacutei152 Nesse ponto natildeo haacute propriamente uma oposiccedilatildeo de argumentos mas basicamente
a apresentaccedilatildeo de alguns conceitos e argumentos destinados a minar a sua possibilidade de
existecircncia153 e com isso a coerecircncia interna de toda a teoria musical
Essa argumentaccedilatildeo inicialmente atribuiacuteda a ldquooutrosrdquo (M VI 6) considerada pelo
ceacutetico como de caraacuteter ldquomais aporeacuteticordquo (aporetikoteron) ou ldquomais em um espiacuterito de
impasserdquo (como Bett traduz) eacute apresentada por Sexto Empiacuterico em primeira pessoa ldquose
mostrarmos que nem as melodias existem e nem os ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos
mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existerdquo (M VI 38 grifo nosso) De acordo com Bett
na habitual terminologia pirrocircnica utilizada por Sexto os propagadores doldquoimpasserdquo (aporia) satildeo os proacuteprios ceacuteticos e aporetikos eacute um dos roacutetulos
Empiacuterico Ver seccedilatildeo 52 (p 74-8)149 A relaccedilatildeo entre ceticismo e epicurismo no Contra os Professores foi abordada na seccedilatildeo 431 (p 64-6)150 Ver p 49151 De fato tal como foi discutido na seccedilatildeo 431 a suspensatildeo de juiacutezo natildeo parece ser o que estaacute em jogo nesta
parte do Contra os Muacutesicos embora os recursos argumentativos sejam os mesmos da argumentaccedilatildeo quevisa levar agrave suspensatildeo
152 Tambeacutem nessa segunda parte pode-se identificar os Modos de Enesidemo e Agripa que estatildeo de acordo como meacutetodo ceacutetico Ver por exemplo M VI 55 67
153 Jaacute explicitamos anteriormente (ver p 65) em que sentido a argumentaccedilatildeo a respeito da natildeo existecircncia podeser compreendida nos escritos pirrocircnicos
73
alternativos para ldquoceacuteticordquo listados no iniacutecio das Hipotiposes Pirronianas (HP I 7)contrariamente ldquodogmaacuteticosrdquo eacute o termo padratildeo de Sexto para aqueles filoacutesofosnatildeo-ceacuteticos dos quais ele anseia se afastar (Bett 2013 p 162)
Visto que o ceticismo pirrocircnico se aproxima da argumentaccedilatildeo chamada ldquoaporeacuteticardquo e
busca combater o dogmatismo torna-se inevitaacutevel questionarmos por que Sexto Empiacuterico
utiliza esses dois tipos de argumentaccedilatildeo se ele claramente daacute preferecircncia ao segundo tipo
Ora apesar de termos apresentado uma explicaccedilatildeo bastante plausiacutevel para o modelo
argumentativo presente em todo o Contra os Professores154 no caso do Contra os Muacutesicos
podemos arriscar ainda uma razatildeo a mais para isso Se como sugerimos155 Sexto Empiacuterico
utiliza argumentos de estilos diferentes tendo em vista o puacuteblico ao qual seus escritos se
dirigem ‒ os Professores das disciplinas das enkyklia mathemata ‒ no caso da muacutesica apesar
de o autor parecer confiar mais no segundo os dois tipos de argumentaccedilatildeo abordam aspectos
diferentes da teoria musical Por um lado temos a discussatildeo a respeito do papel eacutetico
atribuiacutedo agrave muacutesica centrada na questatildeo de sua utilidade para se chegar agrave felicidade e por
outro a discussatildeo epistemoloacutegica que aborda a muacutesica enquanto uma ciecircncia centrada na
coerecircncia das teses defendidas Se a muacutesica foi de fato abordada sob essas duas perspectivas
na Greacutecia Antiga156 natildeo eacute estranho supor que Sexto utilize dois tipos de refutaccedilatildeo
especificamente contra estes dois acircmbitos da teoria musical a fim de abarcar a mousike em
sua totalidade
52 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida
a utilidade da muacutesica compreendida em um sentido amplo ligada agrave possibilidade de produzir
felicidade (eudaimonia) Tal questatildeo estaacute relacionada agrave ideia de que a muacutesica trazia em si o
poder de afetar a alma e o caraacuteter do ouvinte e por isso seria uacutetil
Como destacamos no primeiro capiacutetulo diversas satildeo as questotildees discutidas pelos
filoacutesofos a respeito da muacutesica (como a muacutesica deve ser ensinada o quanto ela deve ou natildeo
ser praticada quais modos satildeo bons e quais natildeo devem ser executados o papel da muacutesica
instrumental o poder da muacutesica de afetar a alma do ouvinte a ponto de alterar o seu caraacuteter
etc) mas a questatildeo em uacuteltima instacircncia eacute a sua utilidade para a vida Platatildeo atribuiu agrave
154 Ver seccedilatildeo 431155 Ver seccedilatildeo 431 (especialmente p 63 65)156 Tal como observamos ao longo da seccedilatildeo 3 a diferenccedila entre as abordagens de Platatildeo e Aristoacuteteles por um
lado e Aristoacutexeno por outro
74
muacutesica um grande valor eacutetico e um papel fundamental na educaccedilatildeo e a maioria dos
pensadores posteriores seguiu esse caminho Sua utilidade para a vida em funccedilatildeo de seu
papel psicagoacutegico foi tomada como ponto de comum acordo entre a maioria dos teoacutericos e
pessoas comuns
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto se propotildee a apresentar ldquoas coisas
sobre a muacutesica repetidas costumeiramente pela maioriardquo (M VI 7) e para refutaacute-las o ceacutetico
utiliza contra-argumentos muito parecidos com os que satildeo encontrados no De Musica de
Filodemo (seccedilatildeo 132) Os argumentos a favor da muacutesica satildeo apresentados de maneira breve
(M VI 7-18) e respondidos na mesma ordem (M VI 19-28) Em seguida Sexto apresenta a
discussatildeo que ele considera ldquoprincipalrdquo aquela que de acordo com ele diz respeito
explicitamente agrave utilidade da muacutesica (M VI 29-37)
De acordo com Bett (2013 p 170) ldquohaacute boas razotildees para crer que a duacutevida de Sexto
Empiacuterico nesta parte do livro vai aleacutem das duas menccedilotildees expliacutecitas aos epicuristas (M VI 19
27)rdquo Isso se deve natildeo soacute agraves semelhanccedilas entre as estruturas do texto ceacutetico e do epicurista
mas tambeacutem porque muitos dos exemplos que observamos no Contra os Muacutesicos aparecem
tambeacutem no De Musica
Dentre os exemplos e argumentos que aparecem em ambos os textos temos a anedota
de Pitaacutegoras (M VI 8 23 e De mus col 39-44) a histoacuteria dos Espartanos guerrearem ao
som do aulo e da lira (M VI 9 24 e De Mus col 72 43-73) Clitemnestra sendo deixada aos
cuidados de um muacutesico (M VI 11-2 26 e De mus col 49 23-7) e Soacutecrates aprendendo a
tocar lira (M VI 13 e De mus col 139 39-40) Aleacutem da semelhanccedila entre os exemplos
mencionados haacute uma seacuterie de afirmaccedilotildees e argumentos a respeito da muacutesica que podem ser
encontrados em ambos os autores
O primeiro argumento a favor da muacutesica apresentado por Sexto Empiacuterico diz respeito
agrave crenccedila de que esta ldquoregula a vida humana e refreia as afecccedilotildees da almardquo (M VI 7) Contra
isso Sexto argumenta que ldquonatildeo eacute prontamente concebiacutevel que por natureza algumas
melodias excitam a alma e outras tranquilizamrdquo (M VI 19) elencando dois argumentos para
isso
O primeiro argumento parte de um exemplo atribuiacutedo nominalmente aos epicuristas
para mostrar que ldquoalgumas melodias musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de
outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada por noacutesrdquo (M VI 20) Natildeo obstante esse exemplo
antecede um raciociacutenio baseado no primeiro Modo de Enesidemo157 Aqui observamos a
157 Sobre os Modos ver p 62 Especificamente sobre essa passagem ver M VI 20 nota 245 agrave nossa traduccedilatildeo
75
ideia de que a influecircncia que alguma melodia possa por ventura ter depende natildeo de sua
natureza mas do modo como aquilo aparece ao ouvinte (ideia compartilhada entre epicuristas
e ceacuteticos) A isso Sexto acrescenta que ldquonatildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica
refreia o pensamento mas porque tem o poder de distrairrdquo (M VI 21 e De Mus col 78 32-
7)
Em seguida tomando os Espartanos e a ira de Aquiles como exemplo Sexto diz que
ldquotal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a ser corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempetordquo (M VI 10) Contra isso o
argumento apresentado eacute novamente o de que a muacutesica faz isso porque distrai a mente (M VI
24 e De mus Col 68 33-40 e tambeacutem col 122 10-1)158
Embora apareccedilam mesclados a tantos outros argumentos tais argumentos abrangem
questotildees muito debatidas ateacute o presente159 merecendo alguma atenccedilatildeo A ideia de que o efeito
natildeo estaacute na muacutesica mas em nossa opiniatildeo eacute absolutamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo a tudo
que era comumente dito sobre muacutesica Enquanto os pitagoacutericos e em seu rastro Platatildeo e
tambeacutem os Estoicos atribuiacuteam um valor objetivo agrave muacutesica considerando seus efeitos fruto de
sua natureza Filodemo e Sexto Empiacuterico datildeo talvez pela primeira vez um tratamento que
poderiacuteamos chamar ldquosubjetivordquo160 agrave muacutesica161 Para o ceticismo isso se daacute porque natildeo temos
acesso aos objetos externos agrave nossa mente e consequentemente natildeo temos acesso agrave natureza
das coisas que por natureza natildeo satildeo boas nem maacutes essa opiniatildeo sendo acrescentada por
noacutes162 Do mesmo modo o efeito da muacutesica na mente humana eacute desvinculado de sua natureza
e o papel atribuiacutedo agrave muacutesica varia de acordo com a situaccedilatildeo e o contexto do ouvinte
dependendo natildeo da natureza da muacutesica mas da nossa opiniatildeo163
O uacuteltimo grupo de argumentos (M VI 29-37) aparece como uma compilaccedilatildeo das
principais alegaccedilotildees a respeito da utilidade da muacutesica seguida da refutaccedilatildeo sextiana164 O
(p 99)158 Para mais paralelos entre as duas obras ver Bett (2013 p 170 - 1)159 Referimo-nos aqui ao debate a respeito da autonomia da muacutesica Ver Introduccedilatildeo (p 12-3)160 O termo ldquosubjetivordquo eacute aqui utilizado com aspas por estar ligado diretamente agrave Filosofia moderna sendo
neste caso anacrocircnico Natildeo obstante o modo como o ceacutetico aborda certos conceitos aproxima-se muitodaquilo que posteriormente foi ligado ao conceito de ldquosubjetividaderdquo
161 Sobre a oposiccedilatildeo entre objetividade e subjetividade no pensamento esteacutetico da Antiguidade verTatarkiewicz (1963)
162 Ver o iniacutecio da seccedilatildeo 41163 Tais conjecturas satildeo reencontradas nas especulaccedilotildees sobre muacutesica apenas no seacuteculo XIX Eduard Hanslick
em O belo musical (1854) defende que a muacutesica natildeo exprime nenhum sentimento sendo completamenteassemacircntica
164 Para Bett (2013 p 174) aqui haacute uma mudanccedila de foco que explicaria o fato desses argumentos natildeo teremparalelos com passagens em Filodemo Entretanto tambeacutem aqui podemos encontrar muitas aproximaccedilotildeescom o texto de Filodemo as quais pontuamos a seguir
76
primeiro apresenta a ideia de que ldquoos que cultivaram o gosto pela muacutesicardquo (M VI 29) tecircm
mais prazer com ela do que as pessoas comuns ao que Sexto Empiacuterico responde que este natildeo
eacute um prazer necessaacuterio (M VI 31)165 e que mesmo que o fosse a experiecircncia musical natildeo eacute
fundamental para isso visto que tambeacutem aqueles que satildeo considerados desprovidos de
experiecircncia ou compreensatildeo musical (os animais e as crianccedilas) parecem ter prazer com a
muacutesica e por fim acrescenta-se que assim como aquele que natildeo eacute instruiacutedo na arte da
culinaacuteria obteacutem o mesmo prazer ao saborear a comida o especialista tem com a muacutesica o
mesmo prazer que o homem comum166 (M VI 33-4 e De Mus col 143 6-12)
Sobre essa discussatildeo Bett (2013 p 174) insinua que Sexto Empiacuterico se contradiz por
discutir a necessidade de ldquoexperiecircncia musicalrdquo visto que ldquoexperiecircncia musicalrdquo era aquilo
que tinha ficado fora do escopo da discussatildeo (ver M VI 1 3) Todavia o que estaacute em jogo
aqui eacute a teoria de que a educaccedilatildeo musical (que inclui a praacutetica musical) deveria acontecer tal
como considera Aristoacuteteles ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas
melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos
escravos crianccedilas e alguns animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A ver tambeacutem Platatildeo Leis 812
B-C)167 A questatildeo aqui eacute que Aristoacuteteles diferencia a fruiccedilatildeo obtida por aquele que eacute educado
musicalmente daquela obtida por seres ldquodesprovidos de razatildeordquo como tipos diferentes de
prazer e defende a utilidade do ensino da muacutesica para que se obtenha o prazer que acompanha
apenas a boa muacutesica A discussatildeo em Sexto restringe-se agrave necessidade da praacutetica musical para
que se obtenha prazer (qualquer que seja168) nas muacutesicas ouvidas ao que se responde que a
praacutetica natildeo eacute necessaacuteria visto que aqueles que natildeo satildeo educados musicalmente tambeacutem
obtecircm prazer nela Contrariamente ao que Bett insinua a questatildeo em pauta eacute novamente a
utilidade do ensino da muacutesica do qual a praacutetica participaria apenas em certa medida
O segundo argumento sobre a utilidade da muacutesica sustenta que ldquonatildeo acontece de os
homens virem a ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicosrdquo (M VI 29) A
discussatildeo aqui diz respeito ao papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes Se a
finalidade da educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento das virtudes e estas satildeo necessaacuterias para a
felicidade visto que a muacutesica eacute considerada por muitos como parte fundamental da165 Tal posiccedilatildeo eacute defendida pelos epicuristas (Filodemo De Mus col 151 29-31)166 Essa analogia com a arte de cozinhar pode ser encontrada tambeacutem na Poliacutetica de Aristoacuteteles (Pol 1039 A)
onde o filoacutesofo questiona a necessidade do aprofundamento na praacutetica musical para que as pessoas possamfruiacute-la corretamente e afirma que concluir essa necessidade seria o mesmo que dizer que para se apreciarboa comida eacute necessaacuterio aprender a cozinhar Tal constataccedilatildeo antecede a proacutexima discussatildeo a respeito nanecessidade da praacutetica musical para sua fruiccedilatildeo
167 Ver p 34 40-1168 Conforme salientamos na primeira seccedilatildeo (p 25) Platatildeo e Aristoacuteteles fazem uma diferenciaccedilatildeo entre tipos de
prazer
77
educaccedilatildeo a muacutesica seria fundamental para o desenvolvimento das virtudes e
consequentemente para se alcanccedilar a felicidade169 Esse eacute um dos aspectos principais da
discussatildeo eacutetica sobre a muacutesica tomado como certo pela maioria dos autores (como
observamos no primeiro capiacutetulo) consequentemente essa eacute tambeacutem uma das principais
teses combatidas por Filodemo
Contra esse segundo argumento Sexto considera que a muacutesica pode conduzir os
jovens agrave intemperanccedila e agrave luxuacuteria (M VI 34-5) tal como tambeacutem aponta Filodemo (De Mus
col 127 28-30) Utilizando um recurso tipicamente ceacutetico Sexto simplesmente aponta que
se ldquoeacute fatordquo que ela leva agrave virtude tambeacutem ldquoeacute fatordquo que ela leva igualmente ao viacutecio
apresentando um exemplo que contraria a tese de que a muacutesica deveria ser valorizada porque
leva agrave virtude
O terceiro argumento que Sexto apresenta consiste na afirmaccedilatildeo de que ldquoacontece de
os elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofiardquo (M
VI 30 e De Mus col 136 10-137170) Contra isso Sexto argumenta que de acordo com
essas ideias tambeacutem natildeo se pode dizer que a utilidade da muacutesica se deve ao fato de esta e a
Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos (M VI 36) Para refutar a tese de que a
Filosofia e a muacutesica tecircm elementos em comum Sexto apenas reporta-se agrave sua refutaccedilatildeo ao
argumento anterior
Em sua anaacutelise Bett limita-se a afirmar que ldquoeacute difiacutecil perceber como essa ideia [a
refutaccedilatildeo apresentada anteriormente] deveria ser transferida para a questatildeo dos elementos
comuns entre muacutesica e Filosofia e que se poderia muito bem suspeitar de alguma ediccedilatildeo
inadequada da parte de Sextordquo (Bett 2013 p 174) De nossa parte suspeitamos da
inadequaccedilatildeo dessa leitura Jaacute em M VI 7 Sexto apresenta a teoria de que a muacutesica produz os
mesmos efeitos que a Filosofia especificamente regular a alma humana e refrear suas
afecccedilotildees mas que o faz com certa ldquopersuasividade encantatoacuteriardquo Ora o problema do
segundo argumento discutido por Sexto eacute justamente o do papel da muacutesica no
desenvolvimento das virtudes que neste caso satildeo as mesmas virtudes que a Filosofia se
propotildee a desenvolver na alma humana Eacute nesse sentido que a refutaccedilatildeo ao argumento
anterior se aplica tambeacutem a este171
Por fim Sexto aponta que a muacutesica eacute considerada uacutetil ldquoporque o cosmos eacute governado
169 Cf Aristoacuteteles Pol (1340 A) e EN (1102 A)170 Filodemo (De Mus col 82-5) tambeacutem apresenta a discussatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre Muacutesica e Filosofia
e seu papel na educaccedilatildeo Para ele eacute a Filosofia que educa natildeo a muacutesica visto que esta sendo (para ele)irracional natildeo pode produzir disposiccedilotildees racionais agrave virtude ou ao viacutecio
171 Sobre isso ver M VI 7 notas 215 217 e 218 agrave nossa traduccedilatildeo (p 91)
78
de acordo com a harmoniardquo (M VI 30)172 e tambeacutem ldquoporque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da almardquo (M VI 30)173 Ao que Sexto Empiacuterico responde que esse uacuteltimo
argumento ldquojaacute foi desconsiderado como natildeo sendo verdadeiro174 e que o cosmos eacute ordenado
segundo a harmonia mostra-se falso de vaacuterios modosrdquo (M VI 36-7) aleacutem disso de acordo
com Sexto mesmo se essa tese fosse verdadeira ldquotal coisa natildeo tem poder sobre a bem-
aventuranccedila tal como a harmonia natildeo tem poder sobre os instrumentos musicaisrdquo visto que a
harmonia do cosmos eacute inaudiacutevel175 (M VI 37 e De Mus col 80)
A proximidade entre os argumentos de Sexto Empiacuterico e os de Filodemo deixa claro
que haacute alguma relaccedilatildeo forte entre os dois textos Contudo se Filodemo serviu de fonte direta
para Sexto Empiacuterico ou se eles usaram fontes em comum eacute uma questatildeo difiacutecil de ser
respondida Embora Sexto e Filodemo tenham estilos bastante diferentes para Bett se
partimos da ediccedilatildeo de Delattre (2007) do De Musica
noacutes temos um texto com um formato notavelmente similar ao modo habitual deSexto proceder e particularmente agravequilo que ele faz nesta parte do Contra osMuacutesicos A exposiccedilatildeo dos argumentos positivos a respeito da utilidade da muacutesicaseguida pelos argumentos negativos que correspondem a eles precisamente namesma ordem (hellip) estaacute muito proacutexima do modo como (se Delattre estaacute certo)Filodemo conduziu seu tratamento deste toacutepico (Bett 2013 p 172-3)
Ainda assim embora os argumentos sejam muito semelhantes Filodemo abordou o
assunto de maneira muito mais ampla e se Sexto utilizou sua obra como fonte direta ele
ldquoresumiu aquilo que pegou de Filodemo e reorganizou para seu proacuteprio usordquo (Bett 2013 p
172) Por fim a diferenccedila fundamental entre os argumentos eacute sua finalidade visto que para o
ceacutetico o epicurista eacute ainda um dogmaacutetico que espera que tomemos suas teses como
verdadeiras enquanto o ceacutetico visa neste caso combater o dogmatismo dos professores de
muacutesica enquanto uma das mathemata176
A respeito da natureza dos argumentos apresentados nesta primeira parte e do objeto
ao qual tais argumentos satildeo dirigidos resta-nos algumas observaccedilotildees Richard Bett sustenta
que Sexto Empiacuterico se contradiz por ter afirmado que soacute iria abordar a teoria musical mas
172 Filodemo (De Mus col 145 17) tambeacutem menciona essa teoria atribuindo-a a alguns neopitagoacutericos173 Essa eacute uma das principais teses atribuiacutedas por Filodemo ao estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (ver Filodemo
De Mus col 23 1-19) contra a qual como foi mostrado anteriormente ele sustenta que se a muacutesica temalgum poder de alterar a alma isso se deve ao seu poder de distrair e agraves opiniotildees que o ouvinte associaposteriormente a esta Ver acima (p 74-5) a discussatildeo dos argumentos de M VI 7 e 19
174 De fato Sexto aborda essa questatildeo inuacutemeras vezes nos paraacutegrafos anteriores Ver especialmente M VI 19-22
175 Ver M VI 37 nota 280 agrave nossa traduccedilatildeo (p 109)176 Ver seccedilatildeo 2
79
que a discussatildeo desta primeira parte do texto gira em torno da praacutetica musical177 Aqui
precisamos ter certa cautela Eacute certo que a definiccedilatildeo inicial de teoria musical natildeo parece
prontamente incluir as questotildees eacuteticas discutidas Todavia do mesmo modo a discussatildeo a
respeito da utilidade da muacutesica natildeo pode ser simplesmente subsumida ao conceito de muacutesica
enquanto ldquoempeiriardquo (experiecircncia) Se o conceito de muacutesica discutido parece estar restrito aos
aspectos teacutecnicos da teoria musical haja vista sua delimitaccedilatildeo ldquoenquanto ciecircncia das
melodias sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipordquo (M VI 1) a definiccedilatildeo de muacutesica
enquanto empeiria restringe-se (de acordo com Sexto) aos ldquomuacutesicos praacuteticosrdquo aqueles que
ldquousam aulos e salteacuteriosrdquo (M VI 1) Assim se a discussatildeo a respeito da utilidade da muacutesica
natildeo pode ser conectada agrave primeira definiccedilatildeo ela tambeacutem natildeo pode ser simplesmente
subsumida agrave segunda
O conceito de empeiria no ceticismo estaacute ligado em geral agraves artes que satildeo
aprovadas pelo ceacutetico Nesse sentido a simples execuccedilatildeo de uma peccedila em um instrumento
natildeo eacute questionada pelo ceacutetico Agora a discussatildeo da primeira parte natildeo diz respeito agrave praacutetica
do instrumentista ser ou natildeo abolida do mundo mas especificamente aborda a utilidade da
muacutesica que enquanto disciplina deveraacute ou natildeo ser ensinada178 em funccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo
para a felicidade
Em suma se o objetivo do Contra os Professores eacute o combate ao dogmatismo em
cada uma das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos embora a discussatildeo sobre a utilidade da
muacutesica natildeo pareccedila cair sob o escopo da definiccedilatildeo de teoria musical inicialmente apresentada
por Sexto ela permanece dentro do acircmbito teoacuterico abrangendo o papel eacutetico pelo qual
muitos autores consideraram a muacutesica uacutetil Se a discussatildeo sobre a utilidade de cada uma das
tekhnai eacute fundamental visto que uma tekhne soacute pode ser considerada como tal em funccedilatildeo de
sua utilidade179 o debate a respeito da utilidade da muacutesica natildeo diz respeito agrave praacutetica musical
(tal como Bett insinua) mas estaacute de acordo com o escopo da discussatildeo e com a finalidade do
Contra os Muacutesicos
53 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
177 Para corroborar com sua afirmaccedilatildeo Bett enfatiza a ligaccedilatildeo entre a discussatildeo sobre a ldquoexperiecircncia musicalrdquo(mousikes empeirias) em M VI 32 e a expressatildeo que parafraseando Bett Sexto originalmente usou paradesignar experiecircncia em instrumentos (organiken empeirian) Cf Bett (2013 p 174)
178 A medida que o ensino abrange praacutetica musical conhecimento teacutecnico ou ainda ldquotreinamento auditivordquo eacutebastante discutiacutevel haja vista as restriccedilotildees agrave praacutetica musical feitas por Platatildeo Aristoacuteteles e Aristoacutexeno
179 Sobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54) e 44
80
A uacuteltima parte do Contra os Muacutesicos diz respeito aos aspectos teacutecnicos da ciecircncia
musical que satildeo refutados por Sexto Empiacuterico Tendo isso em vista apresentamos os
argumentos acompanhados da explicaccedilatildeo de alguns conceitos baacutesicos da harmonike que satildeo
apresentados na segunda parte do Contra os Muacutesicos
Como vimos esse segundo tipo de argumentaccedilatildeo que aparece no Contra os Muacutesicos
(M VI 38-68) ldquoatacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais
pragmaacuteticardquo (pragmatikoteros) (M VI 38) A abordagem da muacutesica sob uma perspectiva
teacutecnica relaciona-se especificamente agrave parte da ciecircncia musical conhecida como harmonike
As definiccedilotildees dos elementos que compotildeem a harmonike apresentadas no Contra os Muacutesicos
reportam-se natildeo a um autor especiacutefico mas a diversas fontes haja vista que Sexto Empiacuterico
parece fazer um ataque geral agrave teoria da muacutesica Natildeo obstante as definiccedilotildees dos conceitos
aproximam-se em diversos momentos das definiccedilotildees apresentadas por Aristoacutexeno
A partir de Aristoacutexeno a harmonike divide-se como exposto acima180 em sete partes
notas intervalos escalas gecircneros sistemas modulaccedilatildeo e composiccedilatildeo de melodias
(Aristoacutexeno El Harm 235-8) Essas partes natildeo satildeo apresentadas ao acaso mas seguem uma
ordem em que a composiccedilatildeo de melodias eacute apresentada como finalidade (telos) e a nota como
elemento baacutesico do qual todas as outras partes dependem
A argumentaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico visa invalidar a teoria da muacutesica a partir da
refutaccedilatildeo de seus princiacutepios baacutesicos A definiccedilatildeo de muacutesica dada nessa etapa eacute a de que ldquoa
muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico181 e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e do que
natildeo eacute riacutetmicordquo (M VI 38)182 Dada esta definiccedilatildeo Sexto parte do pressuposto loacutegico de que se
a melodia e o ritmo natildeo existirem a muacutesica tambeacutem natildeo existe Ora a melodia eacute constituiacuteda
de notas e as notas satildeo constituiacutedas de sons Entatildeo o ceacutetico ataca o conceito de som visto
que eacute a partir deste que se constitui a nota
Segundo Tomaacutes (2002 p 48) para os gregos ldquoo som em sua forma bruta eacute de fato
um existente no tempo e no espaccedilo reais ele eacute um elemento do mundo e natildeo um elemento
moldado na inteligecircnciardquo E eacute em vista dessa concepccedilatildeo de som que compreendemos os
argumentos a respeito da natildeo existecircncia do som183
A definiccedilatildeo de som enquanto ldquoobjeto da percepccedilatildeo sensiacutevel do ouvirrdquo (M VI 39)
180 Ver seccedilotildees 33 e 511181 Emmeles eacute em geral a qualidade daquilo que respeita as leis proacuteprias do melos ou seja diz respeito aos
sons estarem dispostos musicalmente de maneira adequada Cf Reyes (2004 p 101)182 A mesma definiccedilatildeo aparece tambeacutem no Contra os Eacuteticos (M XI 186)183 O sentido da argumentaccedilatildeo contra a existecircncia jaacute foi apresentado na seccedilatildeo 431 (p 65)
81
apresenta o som enquanto objeto sensiacutevel mas ainda natildeo relacionado agrave muacutesica Tal definiccedilatildeo
eacute desenvolvida pelo estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (que compreende o som como ar
percutido)184
A definiccedilatildeo de nota eacute dada a partir da definiccedilatildeo de som uma nota eacute um som emitido
de certa maneira (M VI 41-2) Segundo Sexto Empiacuterico a definiccedilatildeo dada pelos muacutesicos de
maneira geral eacute de que ldquonota eacute a incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo Uma
definiccedilatildeo muito semelhante eacute encontrada em Aristoacutexeno ldquouma nota eacute a incidecircncia do som em
uma tensatildeordquo (Aristoacutexeno El Harm 115)185
Essa definiccedilatildeo de nota eacute seguida por outras definiccedilotildees relacionadas a ela (homofonia e
natildeo homofonia agudo e grave consonacircncia e dissonacircncia) que abrem o caminho para a
definiccedilatildeo de intervalo e a seguir de gecircnero (apresentado no Contra os Muacutesicos diretamente
ligado ao conceito de ethos) Todas essas definiccedilotildees evidenciam a variedade de conceitos da
ciecircncia musical que dependem do conceito de nota e consequentemente do conceito de som
No que diz respeito agrave classificaccedilatildeo dos intervalos segundo o criteacuterio da consonacircncia
essa divisatildeo dos intervalos em consonantes e dissonantes tambeacutem eacute apresentada por
Aristoacutexeno que considera que ldquoa segunda distinccedilatildeo que deve ser feita eacute que alguns intervalos
satildeo consonantes e outros dissonantesrdquo (Aristoacutexeno El Harm 44)186
Visto que a definiccedilatildeo dos gecircneros se daacute a partir de uma relaccedilatildeo intervalar187 Sexto
aborda em seguida os gecircneros de melodias ldquoDesse modo natildeo apenas todo intervalo em
muacutesica tem sua existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de
melodiardquo (M VI 48) Observa-se que a passagem se daacute a partir da relaccedilatildeo dos ethe humanos
com os ethe musicais Segundo Sexto Empiacuterico ldquouma melodia de tal tipo eacute chamada pelos
muacutesicos caraacuteter por ser capaz de produzir caraacuteterrdquo (M VI 49)
Os gecircneros satildeo apresentados por Sexto de acordo com a divisatildeo de Aristoacutexeno Isso
corrobora com a tese de que de acordo com Reyes (2004 p 105) ldquodesde o princiacutepio da era
cristatilde a classificaccedilatildeo aristoxecircnica havia se tornado canocircnica nos escritos teoacutericos devido agrave
enorme influecircncia desse autorrdquo Para Reyes o uso dos gecircneros de acordo com a classificaccedilatildeo
184 Ver Dioacutegenes Laeacutercio Testemonia (VII 55) Para a discussatildeo a respeito das fontes de Sexto Empiacuterico verReyes (2004 p 102)
185 A definiccedilatildeo de nota dada por Aristoacutexeno eacute a base para as definiccedilotildees encontradas tambeacutem em outros autoresda Antiguidade tardia aleacutem de Sexto Empiacuterico Segundo Reyes (2004 p 103) a definiccedilatildeo apresentada porSexto Empiacuterico evidencia que a fonte utilizada por ele natildeo eacute diretamente a obra de Aristoacutexeno pois Sextoacrescenta o adjetivo emmeles que pode ser encontrado em outros autores como Cleoniacutedes Cf Cleoniacutedes(1799-10) Bacchius (14 ou 29215-17 jan) Gaudencius (3297-8 jan) Anon Bellerm (39 48-9)
186 Para as outras definiccedilotildees ver Aristoacutexeno El Harm (44-46)187 A diferenccedila de gecircnero se daacute de acordo com as relaccedilotildees intervalares entre as notas que compotildeem o
tetracorde Ver traduccedilatildeo M VI 42 nota 288 (p 111)
82
de Aristoacutexeno tem duas vertentes ldquopor um lado segue a tendecircncia da eacutepoca (hellip) de adotar a
doutrina aristoxecircnica por outro facilita a intenccedilatildeo de Sexto de tratar os elementos da ciecircncia
musical de um modo nuclear sem entrar em distinccedilotildees sutisrdquo (idem)
Sexto Empiacuterico utiliza inclusive os mesmos termos que Aristoacutexeno para definir os
gecircneros188 Aristoacutexeno define os gecircneros em que a melodia evidentemente se distingue em
trecircs considerando que toda melodia no que diz respeito agrave harmonizaccedilatildeo ou eacute diatocircnica
(diatonon) ou cromaacutetica (khroma) ou enarmocircnica (harmonia)
Muito embora os termos utilizados por Sexto Empiacuterico sejam os mesmo de
Aristoacutexeno aqui se observa um descompasso em relaccedilatildeo ao autor Sexto Empiacuterico apresenta
os mesmos gecircneros que Aristoacutexeno mas atribui a cada um deles um ethos Entretanto
Aristoacutexeno parece ter evitado todo tipo de especulaccedilatildeo sobre os efeitos emocionaisintriacutensecos dos vaacuterios tipos de muacutesica em contraste agrave tradiccedilatildeo vinda de Damon ePlatatildeo Sexto parece aqui se separar da tradiccedilatildeo de Aristoacutexeno e retomar o tipo dequestatildeo apresentada na primeira parte do livro (Bett 2013 p 176)189
Embora Aristoacutexeno tenha restriccedilotildees agraves teorias acerca do poder da muacutesica sobre o
caraacuteter defendidas por Daacutemon Platatildeo e Aristoacuteteles diversos autores ldquooferecem uma
caracterizaccedilatildeo eacutetica dos gecircneros e nesse aspecto Sexto natildeo se diferencia delasrdquo (Reyes
2004 p 106) Tal caracterizaccedilatildeo reforccedila a ideia de que Sexto natildeo estaacute refutando uma tese
especiacutefica mas estaacute preocupado em refutar as principais opiniotildees que faziam parte do ensino
da muacutesica enquanto disciplina da Enkyklios Paideia
No que diz respeito aos ldquogecircneros meloacutedicosrdquo segundo Sexto Empiacuterico das melodias
ldquoa enarmocircnica eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um caraacuteter
claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseirordquo (M VI 50) Tais definiccedilotildees
satildeo segundo Reyes (2004 p 106-9) semelhantes agraves utilizadas por outros autores de tratados
musicais190
188 Reyes (2004 p 105) chama atenccedilatildeo para o fato de que a escrita de Aristoacutexeno emprega a forma antiga deabordar os gecircneros enquanto os escritores contemporacircneos a Sexto Empiacuterico utilizavam os adjetivosdiatonikon khromatikon e enarmonion
189 Note-se que no que diz respeito agrave teoria do ethos musical Aristoacutexeno critica aqueles que acreditam que amuacutesica tem efeito direto sobre o caraacuteter das pessoas dizendo que as pessoas afirmam que um tipo de muacutesicaprejudica o caraacuteter e outro o melhora sem prestarem atenccedilatildeo agrave seguinte qualificaccedilatildeo ldquona medida em que amuacutesica pode ser uacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30) De acordo com Beacutelis essa qualificaccedilatildeo ldquomostrao ceticismo de Aristoacutexeno no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a muacutesica e a moralrdquo (Beacutelis 1986 p 97) Ver p38
190 Eacute interessante notar que as definiccedilotildees do enarmocircnico e do diatocircnico aparecem invertidas em relaccedilatildeo agravequiloque Platatildeo defendia O enarmocircnico eacute classificado por Aristoacutexeno como o mais recente e que exige haacutebitopara ser cantado Ao enarmocircnico satildeo atribuiacutedas as caracteriacutesticas nobres que Platatildeo atribuiacutea ao diatocircnicoObserva-se tambeacutem que enquanto Filodemo omite a definiccedilatildeo do gecircnero diatocircnico muitos autores daAntiguidade tardia atribuem caracteriacutesticas semelhantes ao enarmocircnico e ao diatocircnico Reyes (2004 p 107)
83
As mesmas definiccedilotildees (austeros ou semnos) do ethos do gecircnero enarmocircnico podem
ser encontradas nas obras de Filodemo e de Pseudo-Plutarco191 No que diz respeito ao
cromaacutetico encontra-se definiccedilotildees semelhantes em Dioniacutesio de Helicarnaso e Adrasto Em
ambos os casos Sexto natildeo parece se afastar das definiccedilotildees comumente encontradas na
tradiccedilatildeo No caso do gecircnero diatocircnico Reyes chama atenccedilatildeo para o fato de que Sexto se
limita a uma contraposiccedilatildeo esteacutetica com o gecircnero enarmocircnico O comentador aponta a
caracterizaccedilatildeo esteacutetica do gecircnero diatocircnico como um indiacutecio de que este seria mais recente
que o enarmocircnico o que iria contra a opiniatildeo de Aristoacutexeno
Depois de apresentar os principais conceitos da teoria musical que dependem do
conceito de nota Sexto conclui que ldquoeacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos sobre a melodia
natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notasrdquo (M VI 52) Sexto Empiacuterico busca
desestabilizar a teoria musical apresentando a diaphonia ndash o conflito de opiniotildees ndash nos
discursos filosoacuteficos Visto que as notas existem ldquoconforme o gecircnero do somrdquo (M VI 52) o
autor discute o conceito de som enquanto afecccedilatildeo (pathos) e em seguida discute se o som
existe enquanto algo corpoacutereo ou incorpoacutereo192
O argumento parte da oposiccedilatildeo entre o conceito de som enquanto afecccedilatildeo ou enquanto
produtor de uma afecccedilatildeo e opotildee duas teses filosoacuteficas que consideram como criteacuterio de
verdade respectivamente os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (ou as afecccedilotildees) e os objetos
inteligiacuteveis Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida a tese dos filoacutesofos Cirenaicos de
que soacute existem as afecccedilotildees De acordo com o autor (M VII 191) para os Cirenaicos as
afecccedilotildees (pathe) satildeo o uacutenico criteacuterio de verdade Por outro lado Platatildeo e Demoacutecrito193 tomam
como criteacuterio de verdade natildeo as afecccedilotildees mas apenas as coisas inteligiacuteveis (o som enquanto
existente por si mesmo) A afecccedilatildeo eacute para eles algo distinto do proacuteprio som e nesse sentido
o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo mas produz uma afecccedilatildeo ou seja o som aparece para noacutes enquanto
objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel Platatildeo e Demoacutecrito ao rejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel
(enquanto criteacuterio de verdade) rejeitariam tambeacutem o som tal como eacute compreendido pelos
Cirenaicos194 Com isso Sexto mostra o conflito das opiniotildees acerca das quais natildeo seria
possiacutevel decidir a qual dar assentimento
compreende que esta mudanccedila se deve ao desaparecimento do enarmocircnico enquanto gecircnero praacutetico (talcomo atestam Pseudo-Plutarco e Ptolomeu)
191 Filodemo De Mus (64222) Ps-Plutarco De Mus (1145 A)192 Ver por exemplo Aristides Quintiliano De Mus (520-2) e Ptolomeu Harm (32)193 Ver traduccedilatildeo M VI 53 nota 303 (p 115)194 A explicaccedilatildeo de Reyes (2004 p 103) a respeito deste argumento natildeo eacute muito clara dando a entender que os
Cirenaicos consideravam que o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo Para uma explicaccedilatildeo elucidativa sobre o tema verBett (2013 p 178)
84
O argumento seguinte (M VI 55) apresenta a aporia de que o som natildeo eacute corpoacutereo nem
incorpoacutereo Os Peripateacuteticos satildeo citados como defensores da primeira tese e os Estoicos da
segunda Sexto argumenta que se natildeo existe alma natildeo existe som A partir disso tambeacutem os
sentidos enquanto partes da alma natildeo existem195 e consequentemente tambeacutem natildeo existem
os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (entre eles o som) De acordo com Bett
essa inferecircncia final pode parecer completamente ilegiacutetima se natildeo haacute sentidosentatildeo certamente nenhum objeto eacute percebido pelos sentidos mas disso natildeo se segueque os objetos que noacutes normalmente tomamos como percebidos pelos sentidos natildeoexistam (embora natildeo sejam percebidos) (Bett 2013 p 178)
Mas especificamente no caso do som Aristoacuteteles compreende que o som real (em
oposiccedilatildeo ao som em potecircncia) e a audiccedilatildeo satildeo a mesma coisa Partindo disso Bett considera
que seria possiacutevel (com uma dose de boa vontade) considerar que Sexto parte desse conceito
compreendendo o ldquosomrdquo (phone) como uma ldquoqualidade audiacutevel dos objetosrdquo
Aleacutem disso ldquoo som nem eacute concebido como um efeito nem como substacircncia mas
como algo que vem a ser e que se estende no tempordquo (M VI 57) Assim se natildeo conseguimos
chegar a uma definiccedilatildeo do conceito de tempo o conceito de som enquanto existente no
tempo eacute automaticamente destruiacutedo
Visto que Sexto partiu da definiccedilatildeo de mousike como ciecircncia do que eacute meloacutedico e do
que eacute riacutetmico resta ainda a refutaccedilatildeo da muacutesica enquanto ciecircncia do ritmo Tambeacutem nesse
caso sua refutaccedilatildeo se daacute a partir do conceito mais fundamental presente na definiccedilatildeo de
ritmo Se ldquoritmo eacute um sistema composto de peacutes e o peacute eacute composto de arsis (levantamento) e
thesis (abaixamento)rdquo e ldquoarsis e thesis satildeo considerados uma quantidade de tempordquo (M VI
60) entatildeo o conceito que precisa ser refutado para desestabilizar toda a teoria da muacutesica eacute o
conceito de tempo Para isso Sexto Empiacuterico retoma alguns de seus argumentos contra o
tempo apresentados no Contra os Fiacutesicos196 Em seguida o Contra os Muacutesicos simplesmente
encerra a investigaccedilatildeo ceacutetica a respeito das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos ldquoTendo dito
tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica noacutes encerramos nossa
discussatildeo contra as disciplinasrdquo (M VI 68)
Se observamos o que estaacute em jogo nessa segunda parte do texto composta pelos
argumentos que o proacuteprio autor considera que estatildeo mais de acordo com a corrente ceacutetica197
mais uma vez confirmamos que o ceacutetico natildeo estaacute de modo algum preocupado com o
195 Ver Aristoacuteteles De Anima (425 B 26-8)196 Para referecircncias ver nossa traduccedilatildeo M VI 60-7 notas 311-6 (p 117-120)197 Ver M VI 4-5 e seccedilatildeo 512
85
conceito de muacutesica especificamente mas sim com a criacutetica agrave postura dogmaacutetica da parte dos
professores de muacutesica que sustentam teses contraditoacuterias entre si a respeito dessa arte
86
6 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)
ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ
[61] Ἡ μουσικὴ λέγεται τριχῶς καθ ἕνα μὲν τρόπον ἐπιστήμη τις περὶ μελῳδίας καὶ
φθόγγους καὶ ῥυθμοποιίας καὶ τὰ παραπλήσια καταγινομένη πράγματα καθὸ καὶ
Ἀριστόξενον τὸν Σπινθάρου λέγομεν εἶναι μουσικόν καθ ἕτερον δὲ ἡ περὶ ὀργανικὴν
ἐμπειρίαν ὡς ὅταν τοὺς μὲν αὐλοῖς καὶ ψαλτηρίοις χρωμένους μουσικοὺς ὀνομάζομεν τὰς
δὲ ψαλτρίας μουσικάς ἀλλὰ κυρίως καταὐτὰ τὰ σημαινόμενα καὶ παρὰ πολλοῖς λέγεται
μουσική [62] καταχρηστικώτερον δὲ ἐνίοτε προσαγορεύειν εἰώθαμεν τῷ αὐτῷ ὀνόματι καὶ
τὴν ἔν τινι πράγματι κατόρθωσιν οὕτω γοῦν μεμουσωμένον τι ἔργον φαμέν κἂν ζωγραφίας
μέρος ὑπάρχῃ καὶ μεμουσῶσθαι τὸν ἐν τούτῳ κατορθώσαντα ζωγράφον [63] ἀλλὰ δὴ κατὰ
τοσούτους τρόπους νοουμένης τῆς μουσικῆς πρόκειται νῦν ποιεῖσθαι τὴν ἀντίρρησιν οὐ μὰ
Δία πρὸς ἄλλην τινὰ ἢ πρὸς τὴν κατὰ τὸ πρῶτον νοουμένην σημαινόμενον αὕτη γὰρ καὶ
ἐντελεστάτη παρὰ τὰς ἄλλας μουσικὰς δοκεῖ καθεστηκέναι
87
CONTRA OS MUacuteSICOS
[61] A muacutesica eacute dita de trecircs maneiras Na primeira enquanto ciecircncia198 das melodias
sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipo sentido em que dizemos que Aristoacutexeno199
filho de Espiacutentaro eacute muacutesico Na segunda ela diz respeito agrave experiecircncia200 em instrumentos201
tal como quando nomeamos ldquomuacutesicosrdquo aqueles que usam aulos202 e salteacuterios203 e ldquomusicistasrdquo
aquelas que tocam salteacuterio De maneira apropriada a muacutesica eacute dita de acordo com esses
significados por muitas pessoas [62] De modo menos apropriado agraves vezes costumamos
chamar com o mesmo nome a realizaccedilatildeo bem sucedida de algo Desse modo tambeacutem
dizemos que algo eacute musical204 mesmo sendo parte de uma pintura e que o pintor eacute
ldquomusicalrdquo205 por ter sido bem sucedido nisso [63] Mas sendo a muacutesica concebida dessas
maneiras propotildee-se agora que se faccedila uma refutaccedilatildeo ndash por Zeus ndash natildeo contra qualquer outra
muacutesica senatildeo contra aquela concebida de acordo com o primeiro significado pois essa em
comparaccedilatildeo com os outros significados de muacutesica parece ter se estabelecido como a mais
completa206
198 Encontra-se frequentemente as disciplinas consideradas como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes(tekhnai) Nesse vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar asldquoartes baseadas na razatildeordquo (logiken tekhnai) Ver seccedilatildeo 42
199 Aristoacutexeno disciacutepulo de Aristoacuteteles viveu no seacuteculo IV aC Sua obra teve grande repercussatildeo durante todaa Antiguidade Ele eacute tomado como exemplo de muacutesico na medida em que trata da muacutesica sob umaperspectiva teoacuterica Na parte do texto em que Sexto Empiacuterico refuta conceitos teacutecnicos da muacutesica muitasdas definiccedilotildees satildeo semelhantes agraves do muacutesico Sobre o pensamento musical de Aristoacutexeno ver seccedilatildeo 33
200 O conceito de empeiria eacute comumente utilizado no pirronismo ligado agraves artes que estatildeo de acordo com ocriteacuterio praacutetico e que por isso natildeo satildeo refutadas pelo ceacutetico Ver seccedilotildees 41 e 44
201 A organike enquanto parte da praacutetica musical era frequentemente oposta agrave harmonike que eacute a parte teoacutericada muacutesica e considerada como a mais completa Ver seccedilatildeo 511
202 O mais importante instrumento da famiacutelia dos aerofones De origem oriental o aulo eacute um instrumento desopro ldquocomposto de um tubo (bombyx) feito de junco madeira marfim chifre osso de cervo ou bronzecortado em secccedilotildees ciliacutendricas inseridas umas nas outras com quatro ou cinco furos ( trypemata) sendo queo segundo estava na parte de baixo do tubo O aulo tinha ainda uma ou duas palhetas (glossai ou glottides)no bocal e isso eacute que produzia seu som penetrante e estrondosordquo (Rocha 2009 p 159) Muitas vezes seencontra a traduccedilatildeo de ldquoaulosrdquo por ldquoflautardquo mas essa traduccedilatildeo eacute improacutepria porque a flauta tem um somsuave muito diferente do som do aulo
203 Nome geneacuterico para designar a famiacutelia das harpas (cordas obliacutequas e de comprimento desigual) Osinstrumentos desse gecircnero de origem natildeo grega eram pinccedilados com os dedos nus sem plectro
204 Em grego ldquomemousomenonrdquo O termo remete ao sentido mais amplo de mousike estaacute relacionado agraves artes eciecircncias presididas pelas Musas
205 Nesse sentido amplo de mousike musical (mousikos) eacute o homem bem educado culto206 Eacute a teoria musical natildeo a praacutetica musical considerada pelos pensadores como a mais completa Cf Platatildeo
Rep (530 D-531 C) De acordo com Aristides Quintiliano De Mus (1110) para os antigos filoacutesofos amuacutesica (a teoria musical) ldquonatildeo soacute era apreciada por si mesma mas era tambeacutem extraordinariamenteadmirada por ser uacutetil agraves demais ciecircncias Sob influecircncia pitagoacuterica e platocircnica ele considera que a muacutesicaconteacutem as relaccedilotildees harmocircnicas que compreendem todo o universo por isso ela seria uacutetil para todas as outrasciecircncias
88
[64] τῆς δὲ ἀντιρρήσεως καθάπερ καὶ ἐπὶ γραμματικῆς διττόν ἐστι τὸ εἶδος οἱ μὲν οὖν
δογματικώτερον ἐπεχείρησαν διδάσκειν ὅτι οὐκ ἀναγκαῖόν ἐστι μάθημα πρὸς εὐδαιμονίαν
μουσική ἀλλὰ βλαπτικὸν μᾶλλον καὶ τοῦτο δείκνυσθαι ἔκ τε τοῦ διαβάλλεσθαι τὰ πρὸς τῶν
μουσικῶν λεγόμενα καὶ ἐκ τοῦ τοὺς προηγουμένους λόγους ἀνασκευῆς ἀξιοῦσθαι [65] οἱ δὲ
ἀπορητικώτερον πάσης ἀποστάντες τῆς τοιαύτης ἀντιρρήσεως ἐν τῷ σαλεύειν τὰς ἀρχικὰς
ὑποθέσεις τῶν μουσικῶν ᾠήθησαν καὶ τὴν ὅλην ἀνῃρῆσθαι μουσικήν [66] Ὃθεν καὶ ἡμεῖς
ὑπὲρ τοῦ μὴ δοκεῖν τι τῆς διδασκαλίας χρεωκοπεῖν τὸν ἑκατέρου δόγματος ἢ ἀπορήματος207
χαρακτῆρα κεφαλαιωδέστερον ἐφοδεύσομεν μήτε ἐν τοῖς παρέλκουσιν ὑπερεκπίπτοντες εἰς
μακρὰς διεξόδους μήτε ἐν τοῖς ἀναγκαιοτέροις ὑστεροῦντες πρὸς τὴν τῶν ἐπειγόντων
ἔκθεσιν ἀλλὰ μέσην καὶ μεμετρημένην κατὰ τὸ δυνατὸν ποιούμενοι τὴν διδασκαλίαν
207 Embora Greaves (1986 p 127) opte pelo termo ldquopragmatosrdquo em sua anaacutelise dos manuscritos optamos aquipor manter o termo ldquoaporematosrdquo tal como Delattre (2002 p 415) visto que deste modo a sentenccedila dizrespeito aos tipos de refutaccedilatildeo apresentados anteriormente o dogmaacutetico e o aporeacutetico
89
[64] A refutaccedilatildeo tal como aquela da gramaacutetica se daacute de dois modos208 Uns de modo mais
dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute uma disciplina209 necessaacuteria para a
felicidade210 mas muito prejudicial e eles se esforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo
que eacute dito pelos muacutesicos e sustentando que seus argumentos principais eram dignos de serem
destruiacutedos211 [65] Outros de um modo mais aporeacutetico212 evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo
pensaram que ao desestabilizar as principais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem ter-se
destruiacutedo213 toda a muacutesica [66] Portanto tambeacutem noacutes para que natildeo pareccedilamos minimizar
qualquer coisa da explicaccedilatildeo214 examinaremos metodicamente o caraacuteter principal de cada
uma dessas atitudes ndash a dogmaacutetica e a aporeacutetica Nem de maneira redundante excedendo-nos
em longas descriccedilotildees nem falhando na exposiccedilatildeo daquilo que eacute mais indispensaacutevel mas
criando uma explicaccedilatildeo tatildeo moderada e calculada quanto possiacutevel
208 Tambeacutem no Contra os Gramaacuteticos Sexto Empiacuterico empreende dois tipos de refutaccedilatildeo ele apresentaargumentos mostrando a inutilidade da gramaacutetica e argumenta contra a existecircncia dos princiacutepios queconstituem a ciecircncia das letras
209 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido como ldquodisciplinardquo ldquoconteuacutedordquo ldquoensinamentordquo Ta mathemata satildeoos ensinamentos adquiridos atraveacutes do ensino transmitido pelos mathematikos ou seja pelosprofessoresVer seccedilatildeo 42
210 O termo grego ldquoeudaimoniardquo traduz-se comumente por ldquofelicidaderdquo entretanto essa traduccedilatildeo eacute limitadavisto que identificamos o termo com um certo estado de espiacuterito Eudaimonia na verdade refere-se agraveobtenccedilatildeo daquilo que eacute mais desejaacutevel o sumo bem Para Aristoacuteteles a felicidade eacute uma atividade da almade acordo com a virtude Epicuro considerou o prazer acompanhado da prudecircncia enquanto a principalvirtude como sumo bem tendo definido o prazer como ldquoausecircncia de sofrimentos fiacutesicos e perturbaccedilotildees naalmardquo (Epicuro Carta Sobre a Felicidade p 43) De modo geral o termo eudaimonia remete ao resultadode uma vida virtuosa que regida por determinados princiacutepios de acordo com cada escola filosoacutefica Aeudaimonia (muitas vezes associada agrave tranquilidade da alma) era o principal objetivo das escolas filosoacuteficasdo periacuteodo heleniacutestico combatidas pelos ceacuteticos tal como a epicurista e a estoica Cf Hadot (2008 cap 7)
211 Sexto Empiacuterico refere-se explicitamente aos filoacutesofos epicuristas Segundo Dellatre (2002 p 415 n 1) issose estende tambeacutem aos cirenaicos
212 O termo aporia aparece frequentemente associado ao ceticismo De acordo com Sexto Empiacuterico opensamento ceacutetico eacute chamado tambeacutem de ldquoaporeacuteticordquo Cf HP I 3 210 Ver seccedilotildees 431 (p 62-3) e 512 (p72-3)
213 Sexto Empiacuterico parece se referir aqui agrave proacutepria escola ceacutetica Anairesis indica no ceticismo pirrocircnico asupressatildeo ou destruiccedilatildeo de algum conceito dada enquanto resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica Esse tipo desupressatildeo aparece na segunda parte do texto (sect 38 ndash 68) quando Sexto conclui pela inexistecircncia dosconceitos apresentados Ver seccedilotildees 431 e 512 (p 72-3)
214 ldquoDidaskaliardquo para Sexto Empiacuterico pode designar um ldquoensinamento por demonstraccedilatildeordquo
90
[67] Τάξει δὲ ἀρχέτω πρῶτον τὰ ὑπὲρ μουσικῆς παρὰ τοῖς πολλοῖς εἰωθότα
θρυλεῖσθαι εἴπερ τοίνυν φασί φιλοσοφίαν ἀποδεχόμεθα σωφρονίζουσαν τὸν ἀνθρώπινον
βίον καὶ τὰ ψυχικὰ πάθη καταστέλλουσαν πολλῷ μᾶλλον ἀποδεχόμεθα τὴν μουσικήν ὅτι οὐ
βιαστικώτερον ἐπιτάττουσα ἡμῖν ἀλλὰ μετὰ θελγούσης τινὸς πειθοῦς τῶν αὐτῶν
ἀποτελεσμάτων περιγίνεται ὧνπερ καὶ ἡ φιλοσοφία [68] Ὁ γοῦν Πυθαγόρας μειράκια ὑπὸ
μέθης ἐκβεβακχευμένα ποτὲ θεασάμενος ὡς μηδὲν τῶν μεμηνότων διαφέρειν παρῄνεσε τῷ
συνεπικωμάζοντι τούτοις αὐλητῇ τὸ σπονδεῖον αὐτοῖς ἐπαυλῆσαι μέλος τοῦ δὲ τὸ
προσταχθὲν ποιήσαντος οὕτως αἰφνίδιον μεταβαλεῖν σωφρονισθέντας ὡς εἰ καὶ τὴν ἀρχὴν
ἔνηφον
91
[67] Pela ordem comecemos primeiro com as coisas sobre a muacutesica repetidas
costumeiramente pela maioria Ora se eles dizem admitimos que a Filosofia regula215 a vida
humana e refreia as afecccedilotildees da alma216 mais ainda admitimos que a muacutesica faz isso porque
ela natildeo se impotildee a noacutes de modo violento mas com certa persuasividade encantatoacuteria217 ela
produz os mesmos efeitos que a Filosofia218 [68] Pitaacutegoras certa vez tendo observado que
os jovens em estado de frenesi baacutequico causado pela embriaguez de modo algum diferiam
dos enlouquecidos aconselhou o auleta que estava junto deles na folia a tocar no aulo a
melodia espondaica219 Depois que o auleta fez o que foi ordenado os jovens repentinamente
mudaram e se mostraram temperantes como se tivessem estado soacutebrios desde o iniacutecio220
215 O termo ldquosophronizordquo eacute traduzido ao longo do texto por ldquotemperarrdquo ldquoregularrdquo e ldquomoderarrdquo O verbo estaacuteligado agrave virtude da temperanccedila ou moderaccedilatildeo (sophrosyne) uma das quatro virtudes principais apresentadaspor Platatildeo na Repuacuteblica (427 E) Eacute interessante notar que quando Platatildeo apresenta a virtude da temperanccedilaele a aproxima dos conceitos musicais da consonacircncia (symphonia) e da harmonia apresentando atemperanccedila como ldquouma espeacutecie de ordenaccedilatildeordquo e como ldquoo domiacutenio de certos prazeres e desejosrdquo Cf PlatatildeoRep (430 E)
216 No Fedro Platatildeo aborda a relaccedilatildeo entre as partes da alma fazendo uma analogia da parte racional da almacom a figura de um cocheiro que tenta controlar dois cavalos que representam as partes irracionais da almaDaiacute o papel da Filosofia (atividade da parte racional) de refrear as afecccedilotildees da parte irracional da alma CfPlatatildeo Fedro (253 C ndash 257 B)
217 Na Repuacuteblica (600 E ndash 601 B) Platatildeo afirma que os elementos que compotildeem a muacutesica como a meacutetrica oritmo e o modo tecircm um encantamento que faz um discurso ou qualquer conteuacutedo teacutecnico parecer excelenteembora o poeta natildeo saiba nada mais do que representar aparecircncias Por isso para Platatildeo a execuccedilatildeomusical deve ser muito bem administrada Quando bem utilizada a muacutesica tem o poder de alterar o caraacuteterdo ouvinte e levaacute-lo agrave excelecircncia moral Eacute nesse sentido que ela realizaria o mesmo papel da Filosofia soacuteque de um modo mais agradaacutevel
218 Essa relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia eacute encontrada em diversos textos da Antiguidade Aristides Quintiliano(De mus 2320) apresenta a Filosofia como um objeto de aprendizado (mathesis) que ldquomanteacutem a parteracional [da alma] em sua liberdade natural tornando-a soacutebria e mantendo-a pura atraveacutes da prudecircncia(phronesis)rdquo Jaacute a muacutesica eacute encarregada da parte irracional curando-a e domesticando-a atraveacutes do haacutebitoldquonatildeo permitindo que ela [a alma] cometa excessos nem que seja completamente subjugadardquo ldquoDesde ainfacircncia [a muacutesica] molda o caraacuteter com suas harmoniai e torna o corpo mais melodioso com seus ritmosrdquoIsso poderia se dar de acordo com Aristides Quintiliano porque ldquoa doccedilura dessa atividade encanta suasmentes ou talvez suas almasrdquo Sobre o papel da muacutesica enquanto ensino preliminar para a Filosofia verAristides Quintiliano De mus (32720)Plutarco (De virtute morali 441 E) apresenta essa mesma relaccedilatildeo atribuindo esse conhecimento a Pitaacutegorasque segundo o filoacutesofo teria introduzido o estudo da muacutesica ldquopara encantar e acalmar a almardquo por ternotado que nem todas as partes da alma se submetem agrave razatildeo ldquomas que algumas partes precisam de algumoutro tipo de persuasatildeo para cooperar com elas para moldaacute-las e domesticaacute-las se elas natildeo satildeo para sertotalmente intrataacuteveis e obstinadas ao ensino da Filosofiardquo Ver tambeacutem Platatildeo Euth (290 A)
219 Indica uma melodia apropriada para ocasiotildees religiosas de caraacuteter solene e dominada ritmicamente portempos longos Essas melodias eram compostas no modo doacuterico e consideradas calmantes Cf Platatildeo Ti(47 D) Plutarco De Mus (1135 A)
220 Essa anedota sobre Pitaacutegoras aparece em vaacuterios textos da Antiguidade Cf Filodemo De Mus (col 42 39 ndash44) Quintiliano Inst (110 32) Boeacutecio Inst (11) Plutarco De mus (1146 F)
92
[69] Οἵ τε τῆς Ἑλλάδος ἡγούμενοι καὶ ἐπ ἀνδρείᾳ διαβόητοι Σπαρτιᾶται μουσικῆς ἀεί ποτε
στρατηγούσης αὐτῶν ἐπολέμουν καὶ οἱ ταῖς Σόλωνος χρώμενοι παραινέσεσι πρὸς αὐλὸν καὶ
λύραν παρετάσσοντο ἔνρυθμον ποιούμενοι τὴν ἐνόπλιον κίνησιν [610] Kαὶ μὴν ὥσπερ
σωφρονίζει μὲν τοὺς ἄφρονας ἡ μουσική εἰς ἀνδρείαν δὲ προτρέπει τοὺς δειλοτέρους οὕτω
καὶ παρηγορεῖ τοὺς ὑπ ὀργῆς ἐκκαιομένους ὁρῶμεν γοῦν ὡς καὶ ὁ παρὰ τῷ ποιητῇ μηνίων
Ἀχιλλεὺς καταλαμβάνεται ὑπὸ τῶν ἐξαποσταλέντων πρεσβευτῶν
φρένα τερπόμενος φόρμιγγι λιγείῃ
καλῇ δαιδαλέῃ ἐπὶ δ ἀργύρεον ζυγὸν ἦεν
τὴν ἕλετ ἐξ ἐνάρων πόλιν Ἠετίωνος ὀλέσσας
τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν
ὡς ἂν σαφῶς γινώσκων τὴν μουσικὴν πραγματείαν μάλιστα δυναμένην περιγίνεσθαι τῆς περὶ
αὐτὸν διαθέσεως [611] Kαὶ μὴν διἔθους ἦν καὶ τοῖς ἄλλοις ἥρωσιν εἴ ποτε ἀποδημοῖεν καὶ
μακρὸν πλοῦν στέλλοιντο ὡς πιστοτάτους φύλακας καὶ σωφρονιστῆρας τῶν γυναικῶν
αὑτῶν ἀπολείπειν τοὺς μουσικούς Κλυταιμνήστρᾳ γέ τοι παρῆν ἀοιδός ᾧ πολλὰ ἐπέτελλεν
Ἀγαμέμνων περὶ τῆς κατὰ ταύτην σωφροσύνης [612] ἀλλ ὁ Αἴγισθος πανοῦργος ὢν αὐτίκα
τὸν ἀοιδὸν τοῦτον
ἄγων εἰς νῆσον ἐρήμην
κάλλιπεν οἰωνοῖσιν ἕλωρ καὶ κῦρμα γενέσθαι
εἶθ οὕτως ἀφύλακτον λαβὼν τὴν Κλυταιμνήστραν διέφθειρε προτρεψάμενος αὐτὴν
ἐπιθέσθαι τῇ ἀρχῇ τοῦ Ἀγαμέμνονος
93
[69] Os Espartanos liacutederes da Heacutelade e famosos por sua bravura221 guerreavam sempre sob
o comando da muacutesica222 E aqueles que utilizavam as exortaccedilotildees de Soacutelon223 se colocavam em
ordem de batalha ao som do aulo e da lira fazendo o movimento marcial riacutetmico224 [610]
Tal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a serem corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempeto Vejamos de acordo com o poeta
como Aquiles em sua ira eacute encontrado pelos embaixadores que foram enviados ateacute ele
deleitando seu espiacuterito com a melodiosa foacuterminge
bela obra de arte em cima havia argecircnteo jugo
Escolheu-a dentre os espoacutelios a cidade de Etion tendo destruiacutedo
Com ela ele deleitava seu coraccedilatildeo225
como se ele soubesse claramente que a praacutetica musical eacute sobretudo capaz de prevalecer
sobre sua disposiccedilatildeo [611] Aleacutem disso era haacutebito tambeacutem para outros heroacuteis quando eles
deixavam seus lares e partiam em uma longa navegaccedilatildeo deixar muacutesicos como os mais
confiaacuteveis guardiotildees e responsaacuteveis pela conduta226 de suas mulheres Assim um aedo
acompanhava Clitemnestra ao qual Agamecircnon ordenou muitas coisas a respeito da
temperanccedila dela [612] Mas Egisto sendo perverso rapidamente
conduzindo o aedo para uma ilha deserta o abandonou
para se tornar presa e espoacutelio para os abutres227
entatildeo pegou Clitemnestra jaacute sem vigilacircncia e seduziu-a incitando-a a tomar o poder de
Agamecircnon228
221 ldquoAndreiardquo - traduzido comumente por ldquofortalezardquo ldquocoragemrdquo ldquobravurardquo - denomina tambeacutem uma dasvirtudes a ser cultivada na Repuacuteblica de Platatildeo Quando Platatildeo se refere ao poder da muacutesica de alterar ocaraacuteter do ouvinte esse poder estaacute ligado agraves virtudes da temperanccedila (sophrosyne) e da bravura (andreia)
222 Esse argumento a favor da muacutesica aparece tambeacutem em Quintiliano Inst (I X 14)223 Soacutelon (638 ndash 558 aC) foi um legislador jurista e poeta grego Filodemo tambeacutem apresenta Soacutelon dando
conselhos atraveacutes de elegias morais (poesias monoacutedicas que eram classificadas de acordo com o seuconteuacutedo)
224 As canccedilotildees para a guerra normalmente eram em ritmo creacutetico ou peocircnico ( ndash ᴗ ndash ndash ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ndash ) (Naescansatildeo dos versos as siacutelabas longas satildeo representadas por ldquondashrdquo e as breves por ldquo ᴗ rdquo) Cf West (1992 p15-6) Mathiesen (1999 p 40)
225 Homero Iliacuteada (IX 186-9) A mesma citaccedilatildeo aparece em Plutarco De Mus (1145 E) As traduccedilotildees dostrechos de obras da literatura claacutessica que aparecem neste texto satildeo de nossa autoria em parceria com o profRoosevelt Rocha
226 Utilizamos essa expressatildeo para traduzir o termo ldquosophronisterasrdquo O termo ligado agrave virtude da temperanccedilaassociado agrave conduta das mulheres neste caso diz respeito ao controle do desejo sexual delas
227 Homero Odisseia (III 270-1)228 Cf Filodemo De Mus (col 49 23-7)
94
[613] Oἵ τε μέγα δυνηθέντες ἐν φιλοσοφίᾳ καθάπερ καὶ Πλάτων τὸν σοφὸν ὅμοιόν φασιν
εἶναι τῷ μουσικῷ τὴν ψυχὴν ἡρμοσμένην ἔχοντα καθὸ καὶ Σωκράτης καίπερ βαθυγήρως
ἤδη γεγονὼς οὐκ ᾐδεῖτο πρὸς Λάμπωνα τὸν κιθαριστὴν φοιτῶν καὶ πρὸς τὸν ἐπὶ τούτῳ
ὀνειδίσαντα λέγειν ὅτι κρεῖττόν ἐστιν ὀψιμαθῆ μᾶλλον ἢ ἀμαθῆ διαβάλλεσθαι [614] Oὐ χρὴ
μέντοι φασίν ἀπὸ τῆς νῦν ἐπιτρίπτου καὶ κατεαγυίας μουσικῆς τὴν παλαιὰν διασύρειν ὅτε
καὶ Ἀθηναῖοι πολλὴν πρόνοιαν σωφροσύνης ποιούμενοι καὶ τὴν σεμνότητα τῆς τε μουσικῆς
κατειληφότες ὡς ἀναγκαιότατον αὐτὴν μάθημα τοῖς ἐκγόνοις παρεδίδοσαν [615] καὶ τούτου
μάρτυς ὁ τῆς ἀρχαίας κωμῳδίας ποιητής λέγων
λέξω τοίνυν βίον ὃν ἐξ ἀρχῆς ἐγὼ θνητοῖσι παρεῖχον
πρότερον γὰρ ἔδει παιδὸς φωνὴν γρύσαντος μηδέν ἀκοῦσαι
εἶτα βαδίζειν ἐν ταῖσιν ὁδοῖς εὐτάκτως ἐς κιθαριστοῦ
ὅθεν εἰ καὶ κεκλασμένοις τισὶ μέλεσι νῦν καὶ γυναικώδεσι ῥυθμοῖς θηλύνει τὸν νοῦν ἡ
μουσική οὐδὲν τοῦτο πρὸς τὴν ἀρχαίαν καὶ ἔπανδρον μουσικήν [616] Εἴπερ τε ἡ ποιητικὴ
βιωφελής ἐστι ταύτην δὲ φαίνεται κοσμεῖν ἡ μουσικὴ μερίζουσα καὶ ἐπῳδὸν παρέχουσα
χρειώδης γενήσεται ἡ μουσική ἀμέλει γέ τοι καὶ οἱ ποιηταὶ μελοποιοὶ λέγονται καὶ τὰ
Ὁμήρου ἔπη τὸ πάλαι πρὸς λύραν ᾔδετο
95
[613] Aleacutem disso aqueles muito capazes em Filosofia tal como Platatildeo dizem que o saacutebio eacute
semelhante ao muacutesico pois tem a sua alma harmonizada229 Assim do mesmo modo
Soacutecrates embora jaacute estivesse muito velho natildeo se envergonhava de recorrer a Laacutempon230 o
citarista e para algueacutem que o repreendeu ele disse que eacute melhor ser acusado de aprendiz
tardio do que de ignorante231 [614] Natildeo se deve tambeacutem dizem desprezar a muacutesica antiga
tomando como base a atual232 que eacute vergonhosa e efeminada quando tambeacutem os Atenienses
que devotaram grande atenccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo da conduta compreendendo a dignidade da
muacutesica transmitiram-na para seus descendentes como o ensinamento mais necessaacuterio [615]
Testemunha disso eacute o poeta da Antiga Comeacutedia que diz
Agora contarei da vida a qual em princiacutepio eu dei aos mortais233
Pois primeiramente que natildeo se ouvisse o som de uma crianccedila murmurando
Em seguida que as crianccedilas fossem pelas ruas de maneira ordenada ao encontro do
citarista234
Por essa razatildeo se a muacutesica atual enfraquece a mente com certas melodias fragmentadas e
ritmos efeminados235 isso natildeo tem nada a ver com a muacutesica antiga e viril [616] Aleacutem disso
se a arte poeacutetica eacute uacutetil para a vida e se a muacutesica parece adornaacute-la dividindo-a e produzindo o
canto a muacutesica seraacute necessaacuteria Sem duacutevida tambeacutem os poetas satildeo chamados compositores
de melodia236 e antigamente os versos de Homero eram cantados ao som da lira
229 Cf Platatildeo Rep(410 E 443 D-E 554 E) Timeu (43 A)230 Greaves (1986 p 135 n 35) chama atenccedilatildeo para o fato de que se desconhece a existecircncia de qualquer
muacutesico chamado ldquoLaacutemponrdquo mas que houve um sacerdote do oraacuteculo chamado ldquoLaacutemponrdquo contemporacircneo aSoacutecrates Nos diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates aborda o fato de ser um aprendiz tardio da ciacutetara tendo como seuprofessor de ciacutetara o muacutesico Cono Cf Platatildeo Euth (272 B-C 295 D) No Menexeno (235 E - 236 A) Conotambeacutem eacute mencionado junto do nome ldquoLamprusrdquo professor de muacutesica de Soacutefocles Cf tambeacutem Vida deSoacutefocles (III 19-20)
231 Cf Filodemo De mus (col 139 39-40) Quintiliano Inst (I X 13)232 Platatildeo e Aristoacutefanes criticaram os muacutesicos de seu tempo exaltando os poderes da muacutesica arcaica
Aristoacutefanes sobretudo na comeacutedia As Ratildes faz um apelo agrave tradiccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo gregasatirizando uma disputa entre Euriacutepides enquanto a personificaccedilatildeo do novo muacutesico aberto a todas asinovaccedilotildees e elaboraccedilotildees da chamada nova muacutesica e Eacutesquilo enquanto representante da muacutesica antiga Talsaacutetira ldquonatildeo soacute eacute um apelo agrave tradiccedilatildeo como tambeacutem o testemunho duma profunda ruptura que haviacomeccedilado a produzir-se dentro do acircmbito da cultura musical grega (hellip)rdquo (Pereira 2001 p 259)
233 Telecleides (fr 1) citado em Ateneu Deipnosofistas (VI 268 B) 234 Aristoacutefanes Nuvens (963-4) Na comeacutedia de Aristoacutefanes essa citaccedilatildeo descreve o comportamento
considerado adequado para as crianccedilas de acordo com a antiga educaccedilatildeo ldquoquando a dececircncia era umcostume aceitordquo
235 Ver seccedilatildeo 321 (p 25-6)236 Melopoios
96
[617] ὡσαύτως δὲ καὶ τὰ παρὰ τοῖς τραγικοῖς μέλη καὶ στάσιμα φυσικόν τινα ἐπέχοντα
λόγον ὁποῖά ἐστι τὰ οὕτω λεγόμενα
γαῖα μεγίστη καὶ Διὸς αἰθήρ
ὁ μὲν ἀνθρώπων καὶ θεῶν γενέτωρ
ἡ δ ὑγροβόλους σταγόνας νοτίας
παραδεξαμένη τίκτει θνατούς
τίκτει δὲ βορὰν φῦλά τε θηρῶν
ὅθεν οὐκ ἀδίκως
μήτηρ πάντων νενόμισται
[618] Kαθόλου γὰρ οὐ μόνον χαιρόντων ἐστὶν ἄκουσμα ἀλλ ἐν ὕμνοις καὶ εὐωχίαις καὶ
θεῶν θυσίαις ἡ μουσική διὰ δὲ τοῦτο καὶ ἐπὶ τὸν τῶν ἀγαθῶν ζῆλον τὴν διάνοιαν
προτρέπεται ἀλλὰ καὶ λυπουμένων παρηγόρημα ὅθεν καὶ τοῖς πενθοῦσιν αὐλοὶ μελῳδοῦσιν
οἱ τὴν λύπην αὐτῶν ἐπικουφίζοντες
[619] Τοιαῦτα μὲν ὑπὲρ μουσικῆς λέγεται δὲ πρὸς ταῦτα τὸ μὲν πρῶτον ὅτι οὐκ
ἔστιν ἐκ προχείρου διδόμενον τὸ φύσει τῶν μελῶν τὰ μὲν εἶναι διεγερτικὰ τῆς ψυχῆς τὰ δὲ
κατασταλτικά παρὰ γὰρ τὴν ἡμετέραν δόξαν τὸ τοιοῦτο γίνεται ὥσπερ γὰρ ὁ τῆς βροντῆς
κτύπος καθά φασιν Ἐπικουρείων παῖδες οὐ θεοῦ τινος ἐπιφάνειαν σημαίνει ἀλλὰ τοῖς
ἰδιώταις καὶ δεισιδαίμοσι τοιοῦτος εἶναι δοξάζεται [620] ἐπεὶ καὶ ἄλλων σωμάτων ἐπ ἴσης
ἀλλήλοις προσκρουσάντων ὅμοιως ἀποτελεῖται κτύπος ὥσπερ καὶ μύλου περιαγομένου ἢ
χειρῶν συμπαταγουσῶν τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῶν κατὰ μουσικὴν μελῶν οὐ φύσει τὰ μὲν
τοῖά ἐστι τὰ δὲ τοῖα ἀλλ ὑφ ἡμῶν προσδοξάζεται
97
[617] Tambeacutem eram desse modo as melodias e cantos corais237 dos poetas traacutegicos
mantendo certa relaccedilatildeo natural tal como os ditos assim
Terra Maacutexima e eacuteter de Zeus
que eacute genitor dos homens e dos deuses
e ela que recebendo uacutemidas gotas pluviais
engendra os mortais
e gera o alimento e as raccedilas das feras
Por isso natildeo sem razatildeo
ela eacute considerada matildee de todos238
[618] Pois em geral a muacutesica natildeo eacute apenas um som ouvido em situaccedilotildees alegres mas
tambeacutem eacute ouvida em hinos oraccedilotildees e sacrifiacutecios aos deuses por isso tambeacutem o
pensamento239 eacute incitado ao zelo pelas coisas boas Daiacute tambeacutem eacute um consolo aos
entristecidos por essa razatildeo aos aflitos satildeo tocadas melodias no aulo aliviando a tristeza
deles
[619] Tais satildeo os argumentos a favor da muacutesica Mas diz-se contra essas ideias
primeiro que natildeo eacute prontamente concedido que por natureza240 algumas melodias excitam a
alma e outras tranquilizam241 Com efeito tal coisa eacute contraacuteria agrave nossa opiniatildeo Pois tal como
o estrondo do trovatildeo ndash segundo dizem os aprendizes242 de Epicuro243 ndash natildeo significa a epifania
de algum deus (embora isso seja suposto pelas pessoas comuns e supersticiosas) [620] visto
que outros corpos colidindo uns nos outros igualmente produzem um estrondo similar (como
quando um moinho gira ou quando matildeos batem palmas) do mesmo modo algumas melodias
musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada
por noacutes244
237 Em grego ldquostasimonrdquo Cf Aristoacuteteles Poeacutetica (1452 B) ldquoo estaacutesimo eacute um coral desprovido de anapestos etroqueusrdquo O anapesto eacute usado na entrada do coro composto de duas siacutelabas breves e uma longa ᴗ ᴗ ndash e otroqueu tem a forma ndash ᴗ ndash ᴗ ou ndash ᴗ ndash x e eacute mais adequado para danccedila
238 Euriacutepides (fr 839 Nauck)239 Em grego ldquodianoiardquo eacute um dos termos usados para se referir agrave atividade do intelecto240 Aquilo que eacute dito ldquopor naturezardquo diz respeito ao que existe independentemente de nossas representaccedilotildees
Todavia de acordo com o ceticismo pirrocircnico temos acesso apenas agravequilo que nos aparece por isso natildeopodemos afirmar ou negar algo sobre como as coisas satildeo por elas mesmas ou seja por natureza Ver seccedilatildeo41
241 Cf Filodemo De Mus(col 120)242 Parece haver uma certa ironia no modo como Sexto se refere aos disciacutepulos de Epicuro utilizando o termo
ldquopaidesrdquo (que traduzimos por ldquoaprendizesrdquo) que em grego significa ldquoescravosrdquo ldquoservosrdquo ldquocrianccedilasrdquo243 Tal afirmaccedilatildeo parece se referir a Lucreacutecio De rerum natura (VI 96 ss)244 Para Platatildeo e Aristoacuteteles as melodias tecircm certos caracteres (ethe) por natureza Essa visatildeo foi criticada
tambeacutem por Filodemo (De Mus col 88 e 96) A definiccedilatildeo das melodias pelo termo ldquoethosrdquo se daacute a partir daideia de que as melodias teriam por natureza a capacidade de influenciar na formaccedilatildeo do caraacuteter humanoincitando a alma a accedilotildees boas ou maacutes
98
τὸ αὐτὸ γοῦν μέλος τῶν μὲν ἵππων διεγερτικόν ἐστι τῶν δὲ ἀνθρώπων ἐν θεάτροις
ἀκουόντων οὐδαμῶς καὶ τῶν ἵππων δὲ τάχα οὐ διεγερτικόν ἐστιν ἀλλὰ ταρακτικόν [621]
Eἶτα κἂν τοιαῦτα ᾖ τὰ τῆς μουσικῆς μέλη οὐ διὰ τοῦτο καὶ ἡ μουσικὴ βιωφελὴς καθέστηκεν
οὐ γὰρ ὅτι δύναμιν ἔχει σωφρονιστικήν καταστέλλει τὴν διάνοιαν ἀλλὰ ᾗ περισπαστικήν
παρὸ καὶ ἡσυχασθέντων πως τῶν τοιούτων μελῶν πάλιν ὁ νοῦς ὡς ἂν μὴ θεραπευθεὶς ὑπ
αὐτῶν ἐπὶ τὴν ἀρχῆθεν ἀνακάμπτει διάνοιαν [622] ὅνπερ οὖν τρόπον ὁ ὕπνος ἢ ὁ οἶνος οὐ
λύει τὴν λύπην ἀλλ ὑπερτίθεται κάρον ἐμποιῶν καὶ ἔκλυσιν καὶ λήθην οὕτω τὸ ποιὸν μέλος
οὐ καταστέλλει λυπουμένην ψυχὴν ἢ περὶ ὀργὴν σεσοβημένην τὴν διάνοιαν ἀλλ εἴπερ
περισπᾷ
99
Portanto a mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute de modo algum para os
homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitante mas
perturbadora245 [621] Em segundo lugar ainda que a melodia da muacutesica seja desse modo
tambeacutem natildeo foi devido a isso que a muacutesica se estabeleceu como uacutetil para a vida246 Com
efeito natildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica refreia o pensamento mas porque
tem o poder de distrair Por conseguinte tais melodias tendo sido silenciadas novamente a
mente como se natildeo tivesse sido tratada pela melodia volta imediatamente ao estado de
pensamento inicial [622] Entatildeo do mesmo modo que o sono ou o vinho natildeo dissolve a
tristeza mas a sobrepassa o torpor produzindo enfraquecimento e esquecimento a melodia
desse tipo natildeo tranquiliza a alma entristecida ou o pensamento agitado pela raiva mas se faz
algo os distrai247
245 Esse argumento eacute baseado no primeiro Modo de Enesidemo sobre a variedade dos animais Nele mostra-seque a partir das mesmas coisas natildeo recebemos as mesmas representaccedilotildees por causa das diferenccedilas entre osanimais Segundo Sexto Empiacuterico isso se daacute devido agraves (1) diferenccedilas no modo como os animais satildeoproduzidos (HP I 41-43) agraves (2) diferenccedilas nas estruturas corporais (44-54) e agraves (3) diferenccedilas naspreferecircncias e aversotildees dos animais (55-58) Ao abordar essas diferenccedilas Sexto nunca daacute um exemploconcreto de como as coisas aparecem para os animais pois segundo Annas amp Barnes (1985 p 41) ldquoseuapelo agraves experiecircncias dos animais natildeo supotildee que noacutes humanos podemos saber como eacute ser natildeo-humanordquo Noque diz respeito agrave diferenccedila nas estruturas corporais Sexto argumenta por exemplo que as diferenccedilas nocanal auditivo e na constituiccedilatildeo das orelhas podem afetar o modo como o mesmo som eacute percebido (HP I50) Aleacutem disso no que diz respeito agraves diferentes preferecircncias aquilo que eacute agradaacutevel ao homem pode serdesagradaacutevel ou ateacute mortiacutefero para outro animal Apoacutes apresentar vaacuterios exemplos especiacuteficos acerca dessasdiferenccedilas Sexto conclui que ldquose as mesmas coisas satildeo desagradaacuteveis para alguns mas agradaacuteveis paraoutros e se prazer e desagradabilidade repousam nas representaccedilotildees entatildeo animais diferentes recebemdiferentes representaccedilotildees dos objetos externosrdquo (HP I 58) No caso de uma melodia o mesmo conjunto desons pode ser percebido de maneira diferente pelos homens e pelos animais Mas se os mesmos objetosaparecem de maneiras diferentes em funccedilatildeo das diferenccedilas entre os animais ldquoentatildeo noacutes devemos sercapazes de dizer como um objeto existente parece quando observado por noacutes mas sobre como ele eacute em suanatureza noacutes devemos suspender o juiacutezo Pois noacutes natildeo podemos decidir entre nossas percepccedilotildees e as dosoutros animais sendo noacutes mesmos uma parte da disputardquo (HP I 59) Assim no que diz respeito agrave melodiapara o ceacutetico podemos dizer como ela aparece para noacutes e como ela parece (para noacutes) afetar o cavalo masnatildeo podemos dizer se ela eacute excitante ou natildeo por natureza Ver seccedilotildees 41 e 431 (p 62)
246 A argumentaccedilatildeo a favor da muacutesica pauta-se em sua utilidade para a vida visto que eacute a partir de sua utilidadeque os filoacutesofos abordam a necessidade do ensino da muacutesica A criacutetica de Sexto Empiacuterico tal como a deFilodemo (De Mus col 137-144 e 149) contesta essa utilidade
247 Ver Filodemo De Mus (col 129 1-7)
100
[623] Ὃ τε Πυθαγόρας τὸ μὲν πρῶτον μάταιος ἦν τοὺς μεθύοντας ἀκαίρως σωφρονίζειν
βουλόμενος ἀλλὰ μὴ ἐκκλίνων εἶτα καὶ τούτῳ τῷ τρόπῳ ἐπανορθούμενος αὐτοὺς ὁμολογεῖ
πλεῖόν τι δύνασθαι τῶν φιλοσόφων πρὸς ἐπανόρθωσιν ἠθῶν τοὺς αὐλητάς [624] Tό τε τοὺς
Σπαρτιάτας πρὸς αὐλὸν καὶ λύραν πολεμεῖν τοῦ μικρῷ πρότερον εἰρημένου τεκμήριόν ἐστιν
ἀλλ οὐχὶ τοῦ βιωφελῆ τυγχάνειν τὴν μουσικήν καθάπερ δ οἱ ἀχθοφοροῦντες ἢ ἐρέσσοντες ἢ
ἄλλο τι τῶν ἐπιπόνων δρῶντες ἔργων κελεύουσιν εἰς τὸ ἀνθέλκειν τὸν νοῦν ἀπὸ τῆς κατὰ τὸ
ἔργον βασάνου οὕτω καὶ αὐλοῖς ἢ σάλπιγξιν ἐν πολέμοις χρώμενοι οὐ διὰ τὸ ἔχειν τι τῆς
διανοίας ἐπεγερτικὸν τὸ μέλος καὶ ἀνδρικοῦ λήματος αἴτιον ὑπάρχειν τοῦτο ἐμηχανήσαντο
ἀλλἀπὸ τῆς ἀγωνίας καὶ ταραχῆς ἀνθέλκειν ἑαυτοὺς σπουδάσαντες εἴγε καὶ στρόμβοις τινὲς
τῶν βαρβάρων βουκινίζουσι καὶ τυμπάνοις κτυποῦντες πολεμοῦσιν ἀλλ οὐδὲν τούτων ἐπ
ἀνδρείαν προτρέπεται
101
[623] E Pitaacutegoras primeiramente era um tolo desejando regular aqueles inapropriadamente
embriagados em vez de evitaacute-los aleacutem disso recorrendo a esse modo de correccedilatildeo ele aceita
que os auletas tecircm mais poder do que os filoacutesofos248 no que concerne agrave correccedilatildeo dos
caraacuteteres249 [624] E que os Espartanos fazem guerra ao som do aulo e da lira 250 eacute prova do
que foi dito um pouco antes mas natildeo de que a muacutesica eacute uacutetil251 para a vida Do mesmo modo
que os que carregam fardos ou remam ou cumprem tarefas ldquocantam lamentosrdquo252 para afastar
a mente da agonia do trabalho253 tambeacutem aqueles que usam aulos e saacutelpinges254 em batalhas
inventaram isso natildeo por terem alguma melodia estimulante do pensamento como causa de
coragem viril mas porque ansiavam afastar a si mesmos da agonia e da perturbaccedilatildeo255 ainda
que alguns baacuterbaros256 guerreiem assoprando257 conchas e ressoando tambores258 Entretanto
nada disso incita algueacutem agrave coragem
248 Os auletas sendo muacutesicos praacuteticos seriam inferiores em relaccedilatildeo aos filoacutesofos Na Poliacutetica (1339 B 1341B) Aristoacuteteles afirma que o muacutesico profissional pode ser considerado vulgar e que a praacutetica musical natildeo eacuteproacutepria para o homem livre visto que esta natildeo tem um fim em si mesma Filodemo utiliza o mesmo tipo deargumento contra Dioacutegenes da Babilocircnia cf Filodemo De Mus (IV col 126 35-40 136 10-21)
249 Ethos (ἦθος) diz respeito ao caraacuteter da alma Na Eacutetica a Nicocircmaco (1103A) Aristoacuteteles apresenta duasespeacutecies de virtudes a intelectual e a moral A virtude moral surge do haacutebito ldquodonde forma-se seu nome(ethike) [ἠθική] por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ethos [ἔθος] (haacutebito)rdquo Todos os elementos damuacutesica conteacutem um caraacuteter proacuteprio que eacute transmitido para a alma atraveacutes de um processo de imitaccedilatildeo CfAristides Quintiliano De Mus (218) e Filodemo De Mus (col 99-100)
250 Ver Filodemo De Mus (col 72 43-732 ) 251 A utilidade para a vida eacute o criteacuterio de acordo com o qual o ceacutetico condena algumas artes e natildeo outras Ver
seccedilotildees 41 (p 51-2) e 54252 ldquoKeleuosirdquo comumente significa ldquoincitarrdquo ou ldquodar ordensrdquo De acordo com Delattre (2002 p 425 n 6) agraves
vezes com acompanhamento musical Na Repuacuteblica (390 B) de Platatildeo aparece com o sentido teacutecnico deldquodar a cadecircnciardquo Delattre opta por traduzir o termo pela expressatildeo ldquocadencent leurs mouvementsrdquo
253 Um argumento a favor da muacutesica nesse contexto aparece em Quintiliano Inst (I X 16)254 Em grego ldquosalpinxrdquo instrumento de origem Etrusca parecido com um trompete consistindo de um tubo
reto de bronze ou latatildeo Era utilizado em contextos militares255 Ver Filodemo De Mus (col 69 7-12)256 De acordo com Greaves (1986 p 145 n 65) ldquoisso reflete uma crenccedila da parte de muitos Gregos de que
muitos baacuterbaros ou natildeo-Helenos eram naturalmente inferiores agravequeles de nacionalidade Grega Oargumento aqui eacute de que os baacuterbaros natildeo teriam a capacidade para o espiacuterito viril uma das virtudesrdquo NaPoliacutetica por exemplo Aristoacuteteles afirma que os ldquoHelenos satildeo senhores naturais de baacuterbarosrdquo (AristoacutetelesPol 1252 B)
257 Segundo Beacutelis (apud Delattre 2002 p 427 n 2) ldquoo verbo boukinizein remete agrave bucina trompa de guerrados romanosrdquo
258 Aristides Quintiliano (De mus 26) tambeacutem aborda as questotildees dos baacuterbaros serem civilizados atraveacutes damuacutesica e do uso da saacutelpinge para dar os comandos nas batalhas
102
[625] Tὰ δὲ αὐτὰ λεκτέον καὶ ἐπὶ τοῦ μηνίοντος Ἀχιλλέως καίτοι ἐρωτικοῦ ὄντος καὶ
ἀκρατοῦς οὐ παράδοξον τὴν μουσικὴν σπουδάζεσθαι [626] Nὴ Δί ἀλλὰ καὶ οἱ ἥρωες τὰς
ἑαυτῶν γυναῖκας ᾠδοῖς τισὶν ὡς σώφροσι φύλαξι παρακατετίθεντο καθάπερ ὁ Ἀγαμέμνων
τὴν Κλυταιμνήστραν ταῦτα δὲ ἤδη μυθολογούντων ἐστὶν ἀνδρῶν εἶτα καὶ παρὰ πόδας
αὑτοὺς διελεγχόντων πῶς γάρ εἴπερ μουσικὴ περὶ τῆς τῶν παθῶν ἐπανορθώσεως
ἐπιστεύετο τὸν μὲν Ἀγαμέμνονα ἡ Κλυταιμνήστρα ἐπὶ τῆς ἰδίας ἑστίας κατέκτανεν ὥσπερ
ldquoβοῦν ἐπὶ φάτνῃrdquo εἰς δὲ τοὺς Ὀδυσσέως οἴκους ἡ Πηνελόπη ὄχλον ἄσωτον ἐπιδέχεται
μειρακίων ἀεὶ δὲ τὰς ἐπιθυμίας αὐτῶν ἐλπιδοκοποῦσα καὶ παραύξουσα μοχθηρότερον καὶ
χαλεπώτερον τῆς ἐπὶ Ἴλιον στρατείας τὸν ἐν Ἰθάκῃ πόλεμον ἤγειρε τῷ γήμαντι [627] Kαὶ
μὴν εἰ οὔτε οἱ περὶ τὸν Πλάτωνα μουσικὴν ἀπεδέξαντο ῥητέον οὐ πρὸς εὐδαιμονίαν αὐτὴν
συντείνειν ἐπεὶ καὶ ἄλλοι μὴ λειπόμενοι τῆς τούτων ἀξιοπιστίας καθάπερ οἱ περὶ τὸν
Ἐπίκουρον ἠρνήσαντο ταύτην τὴν ἀντιποίησιν λέγομεν τοὐναντίον αὐτὴν ἀσύμφορον εἶναι
καὶ ἀργήν φίλοινον χρημάτων ἀτημελῆ
103
[625] Isso tambeacutem deve ser dito sobre a ira de Aquiles259 embora seja passional e
incontinente260 natildeo eacute contraacuterio agrave expectativa ele ser ansioso a respeito da muacutesica [626] Mas
por Zeus tambeacutem os heroacuteis confiavam suas mulheres a alguns cantores como guardiotildees da
temperanccedila delas tal como Agamecircnon fez com Clitemnestra Mas essas coisas satildeo mitos
contados pelos homens que imediatamente em seguida contradizem a si mesmos Com
efeito se realmente se acreditava que a muacutesica teria influecircncia na correccedilatildeo dos afetos como
Clitemnestra mataria Agamecircnon em sua proacutepria lareira como se fosse um ldquoboi na
manjedourardquo261 E como Peneacutelope admitiria na casa de Odisseu uma multidatildeo desesperada de
jovens e conduzindo-os a falsas esperanccedilas e aumentando o desejo deles provocaria para seu
marido a guerra em Iacutetaca que foi mais horriacutevel e mais difiacutecil do que a campanha de Troia
[627] Aleacutem disso mesmo se os seguidores de Platatildeo admitiram a muacutesica natildeo se deve dizer
que ela leva agrave felicidade visto que tambeacutem outros que natildeo satildeo inferiores em credibilidade
nessas coisas tal como os seguidores de Epicuro se negaram a assumir essas afirmaccedilotildees262
dizendo pelo contraacuterio que a muacutesica eacute prejudicial e ociosa amante do vinho e
desnecessaacuteria263
259 Cf Homero Iliacuteada (IX 186-9) Segundo Aristides Quintiliano (De Mus 210) o papel da muacutesica naeducaccedilatildeo eacute suficientemente confirmado por Homero ldquoAssim quando Aquiles na Iliacuteada quer se livrar dapaixatildeo por Briseida ele natildeo aparece cantando algo amoroso mas convida sua alma a se tornar virilrelembrando com a ciacutetara as faccedilanhas guerreiras dos antigosrdquo
260 Em grego ldquoacrasiardquo traduz-se por ldquoincontinecircnciardquo ldquofalta de autocontrolerdquo Cf Aristoacuteteles EN (1095 A)261 Homero Odisseia (XI 411)262 Pode-se compreender esse argumento agrave luz de um dos conceitos baacutesicos do ceticismo apresentado no
primeiro Modo de Agripa o conflito das opiniotildees (diaphonia) ldquode acordo com o qual noacutes descobrimos quetanto na vida comum quanto entre os filoacutesofos no que diz respeito a uma determinada questatildeo foialcanccedilado um impasse natildeo resolvido acerca do qual noacutes somos incapazes de alcanccedilar um veredito ()rdquo (HPI 165) Aleacutem disso esse argumento pode ser reportado ao segundo Modo de Enesidemo que aborda asdiferenccedilas entre os seres humanos (em funccedilatildeo das diferenccedilas do corpo e da alma) A esse respeito lemos queldquoa grande indicaccedilatildeo da vasta e ilimitada diferenccedila no intelecto dos seres humanos eacute a inconsistecircncia dasvaacuterias afirmaccedilotildees dos Dogmaacuteticos no que diz respeito agravequilo que pode ser apropriadamente escolhido o quepode ser evitado etcrdquo (HP I 85-6) Sexto Empiacuterico aponta que aquilo que escolhemos e evitamos estaacuteconectado agravequilo que eacute agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos e ldquoquando as mesmas coisas satildeo escolhidaspor algumas pessoas e evitadas por outras eacute loacutegico para noacutes inferir que essas pessoas natildeo satildeo afetadas damesma maneira pelas mesmas coisas visto que se fossem elas iriam do mesmo modo ter escolhido eevitado as mesmas coisasrdquo (HP I 87) O ceacutetico ainda acrescenta que ldquoenquanto os Dogmaacuteticos de maneiraegoiacutesta pretendem que a decisatildeo acerca dos fato deve ser dada a eles acima de todos os outros sereshumanos noacutes sabemos que essa pretensatildeo eacute absurda visto que eles proacuteprios fazem parte da disputa ()rdquo (HPI 89) Assim para o ceacutetico se a mesma coisa neste caso a muacutesica produz um determinado efeito para umou um grupo de seres humanos e natildeo para outros eacute impossiacutevel decidir quem estaacute certo a respeito de comoela eacute por natureza Sobre os Modos ver p 62
263 Euriacutepides Antiacuteope (fr 184 Nauck) Delattre (2002 p 229 n 1) chama atenccedilatildeo para uma relaccedilatildeo comDioacutegenes da Babilocircnia
104
[628] Eὐήθεις δέ εἰσι καὶ οἱ τὴν ἀπὸ ποιητικῆς χρείαν συμπλέκοντες αὐτῇ πρὸς εὐχρηστίαν
ἐπείπερ δύναται μέν τις ὡς καὶ ἐν τῷ πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ἐλέγομεν ἀνωφελῆ διδάσκειν
τὴν ποιητικήν οὐδὲν δὲ ἔλαττον κἀκεῖνο δεικνύναι ὅτι ἡ μὲν μουσικὴ περὶ μέλος
καταγινομένη μόνον τέρπειν πέφυκεν ἡ δὲ ποιητικὴ καὶ περὶ διάνοιαν καταγινομένη δύναται
συνωφελεῖν τε καὶ σωφρονίζειν
[629] Ἀλλ ὁ μὲν πρὸς τὰ ἐγκεχειρημένα λόγος ἐστὶ τοιοῦτος προηγουμένως δὲ
λέγεται καὶ κατὰ μουσικῆς ὡς εἴπερ ἐστὶ χρειώδης καὶ κατὰ τοῦτο λέγεται χρειοῦν παρόσον
μουσικευσάμενος πλεῖον παρὰ τοὺς ἰδιώτας τέρπεται πρὸς μουσικῶν ἀκροαμάτων ἢ
παρόσον οὐκ ἔστιν ἀγαθοὺς γενέσθαι μὴ προπαιδευθέντας ὑπ αὐτῶν [630] ἢ τῷ τὰ αὐτὰ
στοιχεῖα τυγχάνειν τῆς μουσικῆς καὶ τῶν κατὰ φιλοσοφίαν πραγμάτων εἰδήσεως ὁποῖόν τι
καὶ περὶ γραμματικῆς ἀνώτερον ἐλέγομεν ἢ τῷ κατὰ ἁρμονίαν διοικεῖσθαι τὸν κόσμον
καθὼς φάσκουσι Πυθαγορικῶν παῖδες δέεσθαί τε ἡμᾶς τῶν μουσικῶν θεωρημάτων πρὸς
τὴν τῶν ὅλων εἴδησιν ἢ τῷ τὰ ποιὰ μέλη ἠθοποιεῖν τὴν ψυχήν [631] Oὔτε δὲ τῷ τοὺς
μουσικοὺς πλέον τέρπεσθαι παρὰ τοὺς ἰδιώτας ἀπὸ τῶν ἀκροαμάτων λέγοιτ ἂν χρειοῦν ἡ
μουσική πρῶτον μὲν γὰρ οὐκ ἀναγκαία ἰδιώταις ἡ τέρψις καθάπερ αἱ ἐπὶ λιμῷ ἢ δίψει ἢ
κρύει γινόμεναι ὑπὸ πόματος ἢ ἀλέας
105
[628] E tolos satildeo tambeacutem os que ligam a muacutesica aos benefiacutecios do uso da poeacutetica em funccedilatildeo
de sua utilidade visto que - tal como diziacuteamos no Contra os Gramaacuteticos - algueacutem pode
ensinar que a poeacutetica eacute inuacutetil264 e igualmente pode-se mostrar que a muacutesica dizendo
respeito somente agrave melodia produz por natureza somente prazer enquanto a poeacutetica dizendo
respeito ao pensamento pode tanto ser beneacutefica quanto levar agrave temperanccedila265
[629] Esses satildeo os argumentos contra as ideias que foram discutidas Mas a primeira
e principal discussatildeo sobre a muacutesica eacute se de fato ela eacute uacutetil e ela eacute dita uacutetil na medida em que
aqueles que cultivaram o gosto pela muacutesica em comparaccedilatildeo agraves pessoas comuns tecircm mais
prazer com concertos musicais266 ou na medida em que natildeo acontece de os homens virem a
ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicos [630] ou porque acontece dos
elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofia267 (tal
como aquilo que dissemos acima sobre a gramaacutetica268) ou porque o cosmos eacute governado de
acordo com a harmonia - segundo afirmam os aprendizes de Pitaacutegoras269 ndash e noacutes necessitamos
dos teoremas musicais para a conhecimento do todo ou porque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da alma270 [631] Nem a muacutesica deveria ser dita uacutetil porque os muacutesicos tecircm
mais prazer com os concertos do que as pessoas comuns271 Primeiro porque certamente esse
prazer natildeo eacute necessaacuterio272 para as pessoas comuns tal como o prazer que surge da bebida ou
do calor quando se tem fome sede ou frio
264 Cf M I 277-80 onde o mesmo tipo de argumento eacute apresentado contra a utilidade da Gramaacutetica Vertambeacutem M I 296-8
265 Uma das criacuteticas principais de Filodemo a Dioacutegenes da Babilocircnia eacute que ele atribui agraves melodias consideradasdesprovidas de razatildeo os efeitos das poesias que elas acompanham
266 Em nota agrave traduccedilatildeo de Delattre Beacutelis (apud Delattre 2002 p 429 n 4) chama atenccedilatildeo para a traduccedilatildeo dotermo akroama que significa literalmente ldquocoisa ouvidardquo como ldquoconcertordquo ou ldquorecitalrdquo
267 Filodemo tambeacutem aborda a relaccedilatildeo da muacutesica com outras artes e com a Filosofia Ver Filodemo De Mus(col 136-7)
268 No Contra os Gramaacuteticos (M I 72) Sexto aponta que para Ptolomeu a Gramaacutetica natildeo eacute uma arteconjectural (sujeita a acidentes como a navegaccedilatildeo e a medicina) mas eacute semelhante agrave muacutesica e agrave FilosofiaSobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54-5)
269 Filodemo menciona alguns neopitagoacutericos no que diz respeito a esta concepccedilatildeo Ver De Mus (col 145 17)270 Cf Filodemo De Mus (col 38 1-19 e 117 2-42)271 Filodemo De Mus (col 42-3)272 A ideia de que a muacutesica proporciona um prazer natildeo necessaacuterio eacute defendida pelos Epicuristas ver Filodemo
De Mus (col 151 29-31)
106
[632] εἶτα κἂν τῶν ἀναγκαίων ὑπάρχωσι δυνάμεθα χωρὶς μουσικῆς ἐμπειρίας αὐτῶν
ἀπολαύειν νήπια γοῦν ἐμμελοῦς μινυρίσματος κατακούοντα κοιμίζεται καὶ τὰ ἄλογα τῶν
ζῴων ὑπὸ αὐλοῦ καὶ σύριγγος κηλεῖται οἵ τε δελφῖνες ὡς λόγος αὐλῶν μελῳδίαις
τερπόμενοι προσνήχονται τοῖς ἐρεσσομένοις σκάφεσιν ὧν οὐδὲ ὁπότερον ἔοικε μουσικῆς
ἔχειν ἐμπειρίαν ἢ ἔννοιαν [633] Kαὶ διὰ τοῦτο μή ποτε ὃν τρόπον χωρὶς ὀψαρτυτικῆς καὶ
οἰνογευστικῆς ἡδόμεθα ὄψου ἢ οἴνου γευσάμενοι ὧδε καὶ χωρὶς μουσικῆς ἡσθείημεν ἂν
τερπνοῦ μέλους ἀκούσαντες τοῦ μὲν ὅτι τεχνικῶς γίνεται μᾶλλον παρὰ τὸν ἰδιώτην
ἀντιλαμβανoacuteμενοι τοῦ δὲ ἡστικοῦ πάθους μηδὲν πλείω κερδαίνοντες [634] Ὥστε οὐχ
αἱρετὸν μουσικὴ παρόσον τοὺς εἰδήμονας αὐτῆς ἐπὶ πλεῖον τέρπεσθαι συμβέβηκεν καὶ μὴν
οὐδὲ τῷ προοδοποιεῖν τὴν ψυχὴν εἰς σοφίαν ἀνάπαλιν γὰρ ἀντικόπτει καὶ ἀντιβαίνει πρὸς τὸ
τῆς ἀρετῆς ἐφίεσθαι εὐαγώγους εἰς ἀκολασίαν καὶ λαγνείαν παρασκευάζουσα τοὺς νέους
[635] ἐπείπερ ὁ μουσικευσάμενος
μολπαῖσιν ἡσθεὶς τοῦτ ἀεὶ θηρεύεται
ἀργὸς μὲν οἴκοις καὶ πόλει γενήσεται
φίλοισι τ οὐθείς ἀλλ ἄφαντος οἴχεται
ὅταν γλυκείας ἡδονῆς ἥσσων τις ᾖ
[636] Kατὰ ταὐτὰ δὲ οὐδὲ ἀπὸ τῶν αὐτῶν στοιχείων ὁρμᾶσθαι ταύτην τε καὶ φιλοσοφίαν
εἰσακτέον τὸ καταὐτὴν χρειῶδες ὡς αὐτόθεν ἐστὶ συμφανές λείπεται ἄρα τῷ καθ ἁρμονίαν
τὸν κόσμον διοικεῖσθαι ἢ τῷ ἠθοποιοῖς μέλεσι κεχρῆσθαι χρειώδη πρὸς εὐδαιμονίαν λέγειν
αὐτὴν τυγχάνειν
107
[632] E mesmo que estes venham a ser prazeres necessaacuterios noacutes podemos aproveitaacute-los sem
experiecircncia musical273 Crianccedilas satildeo colocadas para dormir ouvindo um gorjear meloacutedico274 e
os animais irracionais satildeo encantados pelo aulo e pela siacuteringe275 Assim os golfinhos segundo
o relato276 por terem prazer com as melodias dos aulos nadam ao redor dos cascos dos navios
que estatildeo sendo remados mas nenhum deles parece ter experiecircncia ou compreensatildeo musical
[633] E por causa de tais coisas do mesmo modo que sem a arte da culinaacuteria e a arte da
degustaccedilatildeo de vinhos noacutes temos prazer em saborear a comida e o vinho tambeacutem sem a arte
da muacutesica noacutes temos prazer ouvindo melodias prazerosas Embora por um lado os artistas
profissionais no que concerne agraves regras da arte apreendam mais do que as pessoas comuns
por outro eles natildeo recebem nada mais no que diz respeito agrave afecccedilatildeo prazerosa [634] Entatildeo
a muacutesica natildeo eacute escolhida porque os especialistas tecircm mais prazer nela Tambeacutem natildeo eacute
escolhida por preparar a alma de antematildeo para a sabedoria277 Inversamente ela resiste e vai
contra o desejo pela virtude tornando os jovens facilmente conduzidos agrave intemperanccedila e agrave
luxuacuteria278 [635] porque aquele que cultivou o gosto pela muacutesica
ter prazer nas danccedilas ele sempre busca
ele seraacute ocioso em casa e na cidade
natildeo sendo ningueacutem para os amigos invisiacutevel ele vai embora
a qualquer hora quando for vencido pelo doce prazer279
[636] A partir dessas mesmas ideias a utilidade da muacutesica natildeo deve ser introduzida pelo fato
de ambas a muacutesica e a Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos como eacute
imediatamente evidente Resta entatildeo dizer que acontece dela ser uacutetil para a felicidade
porque o cosmos eacute ordenado segundo a harmonia ou porque se usa melodias para a formaccedilatildeo
do caraacuteter
273 Ver seccedilatildeo 52 (p 75-6)274 Platatildeo nas Leis (790 D - E) fala de como as matildees potildeem os bebecircs para dormir cantando para eles Beacutelis
(apud Delattre 2002 p 431 n 4) aponta que essa pode ser uma criacutetica agrave afirmaccedilatildeo de Platatildeo visto que ascrianccedilas natildeo seriam colocadas para dormir soacute pela melodia mas pela sua combinaccedilatildeo com o balanccedilo
275 Em grego ldquosyrinxrdquo Instrumento da famiacutelia dos aerofones semelhante agrave ldquoflauta de Patilderdquo na sua forma maiscomum
276 Esse relato aparece em vaacuterias fontes Ver Euriacutepedes Electra (435) Plutarco Banquete dos Sete Saacutebios (160E-162 B) Heroacutedoto (1 24)
277 Ver seccedilatildeo 52 (p 76-7)278 Ver Filodemo De Mus (col 127 28-30)279 Euriacutepides Antiacuteope (fr 187 Nauck)
108
ὧν τὸ μὲν τελευταῖον ἤδη διαβέβληται ὡς οὐχ ὑπάρχον ἀληθές [637] τὸ δὲ κατὰ ἁρμονίαν
διοικεῖσθαι τὸν κόσμον ποικίλως δείκνυται ψεῦδος εἶτα καὶ ἂν ἀληθὲς ὑπάρχῃ οὐδὲν
τοιοῦτο δύναται πρὸς μακαριότητα καθάπερ οὐδὲ ἡ ἐν τοῖς ὀργάνοις ἁρμονία
Ἀλλὰ τὸ μὲν πρῶτον εἶδος τῆς πρὸς τοὺς μουσικοὺς ἀντιρρήσεως τοιουτότροπόν
ἐστιν [638] τὸ δὲ δεύτερον καὶ τῶν τῆς μουσικῆς ἀρχῶν καθαπτόμενον πραγματικωτέρας
μᾶλλον ἔχεται ζητήσεως οἷον ἐπεὶ ἡ μουσικὴ ἐπιστήμη τίς ἐστιν ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
ἐνρύθμων τε καὶ ἐκρύθμων πάντως ἐὰν δείξωμεν ὅτι οὔτε τὰ μέλη ὑποστατά ἐστιν οὔτε οἱ
ῥυθμοὶ τῶν ὑπαρκτῶν πραγμάτων τυγχάνουσιν ἐσόμεθα παρεστακότες καὶ τὴν μουσικὴν
ἀνυπόστατον λέγωμεν δὲ πρῶτον περὶ μελῶν καὶ τῆς τούτων ὑποστάσεως μικρὸν ἄνωθεν
καταρξάμενοι
[639] Φωνὴ τοίνυν ἐστίν ὡς ἄν τις ἀναμφισβητήτως ἀποδοίη τὸ ἴδιον αἰσθητὸν
ἀκοῆς καθάπερ γὰρ μόνης ὁράσεως ἔργον ἐστὶ τὸ χρωμάτων ἀντιλαμβάνεσθαι καὶ μόνης
ὀσφρήσεως τὸ εὐωδῶν καὶ δυσωδῶν ἀντιποιεῖσθαι καὶ ἤδη γεύσεως τὸ γλυκέων ἢ πικρῶν
αἰσθάνεσθαι οὕτω γένοιτ ἂν ἴδιον αἰσθητὸν ἀκοῆς ἡ φωνή [640] Tῆς δὲ φωνῆς ἡ μέν τίς
ἐστιν ὀξεῖα ἡ δὲ βαρεῖα μεταφορικώτερον ἀπὸ τῶν περὶ τὴν ἁφὴν αἰσθητῶν ἑκατέρου
τούτων λαμβάνοντος τὴν προσηγορίαν καθάπερ γὰρ τὸ κεντοῦν καὶ τέμνον τὴν ἁφὴν ὀξὺ
προσηγόρευσεν ὁ βίος καὶ τὸ θλάσιν ἐμποιοῦν καὶ πιέζον βαρύ τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῆς
φωνῆς τὴν μὲν οἱονεὶ τέμνουσαν τὴν ἀκοὴν ὀξεῖαν τὴν δὲ ὥσπερ θλῶσαν βαρεῖαν [641] καὶ
οὐ ξένον ὥσπερ φαιάν τινα καὶ μέλαιναν καὶ λευκὴν φωνὴν ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ὅρασιν
αἰσθητῶν κεκλήκαμεν ὧδε καὶ ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ἁφὴν ἐχρησάμεθά τισι μεταφοραῖς Ὅταν
μὲν οὖν ἐπἴσης ἐκφέρηται ἡ φωνὴ καὶ ὑπὸ μίαν τάσιν ὡς μηδένα περισπασμὸν γίνεσθαι τῆς
αἰσθήσεως ἤτοι ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἢ τὸ ὀξύτερον τότε ὁ τοιοῦτος ἦχος φθόγγος καλεῖται
παρὸ καὶ οἱ μουσικοὶ ὑπογράφοντές φασι ldquoφθόγγος ἐστὶν ἐμμελοῦς φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν
τάσινrdquo
109
Desses o uacuteltimo jaacute foi desconsiderado como natildeo verdadeiro [637] e que o cosmos eacute
ordenado segundo a harmonia mostra-se falso de varios modos E ainda que porventura isso
fosse verdadeiro tal coisa natildeo tem poder sobre a bem aventuranccedila tal como a harmonia natildeo
tem poder sobre os instrumentos musicais280
De tal tipo eacute o primeiro modo de refutaccedilatildeo contra os muacutesicos [638] jaacute o segundo
atacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais pragmaacutetica281 Por exemplo
visto que a muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e
do que natildeo eacute riacutetmico282 se mostrarmos plenamente que nem as melodias existem283 e nem os
ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existe Falemos
primeiro sobre a melodia e sua existecircncia comeccedilando com algumas questotildees preliminares
[639] Ora o som eacute como algueacutem poderia indisputavelmente definir o sensiacutevel
proacuteprio da audiccedilatildeo284 Pois tal como a tarefa somente da visatildeo eacute apreender as cores e a do
olfato opor as fragracircncias boas e ruins e igualmente a do paladar eacute perceber o doce e o
amargo do mesmo modo o som seria o sensiacutevel proacuteprio do ouvir [640] Dos sons um tipo
eacute grave e outro agudo ambos utilizando metaforicamente nomes com base nos sensiacuteveis
proacuteprios do tato pois assim como as pessoas chamaram o que pica e corta o tato ldquoagudordquo e o
que esmaga e pressiona ldquograverdquo do mesmo modo tambeacutem o som na medida em que o que
corta o ouvir eacute ldquoagudordquo e na medida em que o que esmaga - como se o fizesse - eacute ldquograverdquo
[641] Tambeacutem natildeo eacute estranho que tal como chamamos algum som de cinza preto ou branco
por causa dos objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel da visatildeo assim tambeacutem usamos os objetos do
tato para as metaacuteforas Entatildeo sempre que o som eacute emitido igualmente e na mesma tensatildeo
quando natildeo haacute distraccedilatildeo da percepccedilatildeo tanto em direccedilatildeo ao grave quanto ao agudo entatildeo tal
som eacute chamado ldquonotardquo Para o que tambeacutem os muacutesicos285 definem de maneira geral ldquonota eacute a
incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo286
280 Isso porque a harmonia do cosmos seria inaudiacutevel e o efeito produzido pelos instrumentos eacute audiacutevelAristoacuteteles no De Caelo (290 B - 291 A) apresenta uma refutaccedilatildeo agrave teoria pitagoacuterica da harmonia dasesferas rejeitando a ideia de que a harmonia do cosmos produziria algum tipo de som Sobre a harmoniados instrumentos ver Aristides Quintiliano De Mus (217-9)
281 O termo que deriva de ldquopragmatikosrdquo nesta passagem eacute comumente traduzido ou por ldquopraacuteticordquo ou porldquoteacutecnicordquo O mesmo termo aparece no uacuteltimo paraacutegrafo do texto
282 Definiccedilatildeo proacutexima agrave de Dioacutegenes da Babilocircnia apresentada por Filodemo De Mus (col 34 31-33 e 11234-36)
283 Aquilo que existe substancialmente de maneira independente das nossas representaccedilotildees284 Definiccedilatildeo do som dada por Dioacutegenes da Babilocircnia seguindo a de Aristoacuteteles285 Ou seja os teoacutericos da muacutesica286 Definiccedilatildeo dada por Aristoacutexeno El Harm (115 14-15)
110
[642] Tῶν δὲ φθόγγων οἱ μέν εἰσιν ὁμόφωνοι οἱ δὲ οὐχ ὁμόφωνοι καὶ ὁμόφωνοι μὲν οἱ μὴ
διαφέροντες ἀλλήλων κατὀξύτητα καὶ βαρύτητα οὐχ ὁμόφωνοι δὲ οἱ μὴ οὕτως ἔχοντες
[643] τῶν δὲ ὁμοφώνων ὡς καὶ τῶν οὐχ ὁμοφώνων τινὲς μὲν ὀξεῖς τινὲς δὲ βαρεῖς
καλοῦνται καὶ πάλιν τῶν οὐχ ὁμοφώνων οἱ μὲν διάφωνοι προσαγορεύονται οἱ δὲ σύμφωνοι
καὶ διάφωνοι μὲν οἱ ἀνωμάλως καὶ διεσπασμένως τὴν ἀκοὴν κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ
ὁμαλώτερον καὶ ἀμερίστως [644] Σαφέστερον δὲ μᾶλλον ἔσται τὸ ἑκατέρου γένους ἰδίωμα
τῇ ἀπὸ τῶν πρὸς γεῦσιν ποιοτήτων μεταβάσει χρησαμένων ἡμῶν ὥσπερ τοίνυν τῶν γευστῶν
τὰ μὲν τοιαύτην ἔχει κρᾶσιν ὥστε μονοειδῶς καὶ λείως κινεῖν τὴν αἴσθησιν ὁποῖον τὸ
οἰνόμελι καὶ ὑδρόμελι τὰ δὲ οὐχ ὡσαύτως οὐδὲ ὁμοίως καθάπερ τὸ ὀξύμελι (ἑκάτερον γὰρ
τούτων τῶν μιγμάτων τὴν ἴδιον ἐντυποῖ ποιότητα τῇ γεύσει) οὕτω τῶν φθόγγων διάφωνοι
μέν εἰσιν οἱ ἀνωμάλως τὴν ἀκοὴν καὶ διεσπασμένως κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ ὁμαλώτεροι
ἀλλὰ γὰρ ἡ μὲν διαφορὰ τῶν φθόγγων τοιαύτη τίς ἐστι παρὰ μουσικοῖς [645] περιγράφεται
δέ τινα πρὸς τούτων διαστήματα καθ ἃ καὶ ἡ φωνὴ κινεῖται ἤτοι ἐπὶ τὸ ὀξύτερον
ἀναβαίνουσα ἢ ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἀνιεμένη παρ ἣν αἰτίαν κατὰ τὸ ἀνάλογον τῶν
διαστημάτων τούτων τὰ μὲν σύμφωνα τὰ δὲ διάφωνα προσηγόρευται
111
[642] Mas das notas algumas satildeo homofocircnicas e outras natildeo homofocircnicas287 Homofocircnicas
satildeo as que natildeo diferem umas das outras segundo ldquoagudezardquo e ldquogravidaderdquo e natildeo homofocircnicas
satildeo aquelas que natildeo satildeo desse modo288 [643] Das homofocircnicas como tambeacutem das natildeo
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquoagudasrdquo outras ldquogravesrdquo e novamente das natildeo-
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquodissonantesrdquo e outras ldquoconsonantesrdquo As dissonantes
sendo aquelas que movem a audiccedilatildeo anocircmala e desordenadamente e as consonantes regulada
e continuamente [644] Mas as propriedades de cada gecircnero estaratildeo mais claras quando
tivermos feito a analogia289 com as qualidades do paladar Ora assim como das coisas que
podem ser saboreadas algumas tecircm uma mistura de tal modo que movem a sensaccedilatildeo
uniforme e suavemente tal como o vinho de mel e o hidromel e outras natildeo sendo assim natildeo
a movem similarmente tal como o oximel290 (pois cada uma dessas coisas misturadas
imprime sua proacutepria qualidade ao paladar) do mesmo modo das notas dissonantes satildeo as
que movem o ouvido anocircmala e desordenadamente consonantes as que o movem de maneira
regulada De acordo com os muacutesicos essa eacute entatildeo a diferenccedila entre as notas [645] Aleacutem
disso satildeo definidos por eles alguns intervalos de acordo com os quais o som se move
subindo em direccedilatildeo ao agudo ou descendo em direccedilatildeo ao grave Por isso de modo anaacutelogo
dos intervalos alguns satildeo chamados consonantes e outros dissonantes
287 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 437 n 3) Sexto Empiacuterico deveria ter utilizado o adjetivoldquohomotocircnicasrdquo e natildeo ldquohomofocircnicasrdquo Isso porque os muacutesicos antigos distinguiam entre as notashomofocircnicas (enquanto aquelas que se encontram em oitavas diferentes) e as notas homotocircnicas (as mesmasnotas na mesma oitava)
288 A muacutesica grega antiga tem como elemento primaacuterio de sua constituiccedilatildeo o tetracorde que eacute um conjunto dequatro notas separadas por trecircs graus As notas que formam a quarta justa do tetracorde satildeo ditas sons fixosHavia duas maneiras de se agrupar os tetracordes para se constituir uma escala (sistema) por conjunccedilatildeoformando um heptacorde ou por disjunccedilatildeo formando um octacorde Ambos abrangem um intervalo deoitava a consonacircncia (symphonia)
289 Metabasis eacute um termo relacionado agrave escola empiacuterica de medicina com a qual o ceticismo pirrocircnicoapresenta afinidades e da qual Sexto Empiacuterico foi um dos representantes A medicina empiacuterica funda-se naexperiecircncia e esta se daacute atraveacutes da observaccedilatildeo direta (autopsia ou teresis) pela atenccedilatildeo agrave histoacuteria mdash ou sejaagraves observaccedilotildees anteriormente feitas e registradas por outros mdash e finalmente pela passagem do semelhanteao semelhante (he tou homoiou metabasis) tambeacutem chamada ldquoinduccedilatildeordquo ldquoanalogiardquo ou ldquotransferecircnciardquo CfAllen (2010 p 232)
290 Mistura de mel e vinagre utilizada na medicina na qual cada um dos elementos manteacutem seu saborparticular natildeo gerando um sabor proacuteprio da mistura Cf Delattre (2002 p 439 n 1) A comparaccedilatildeoaparece tambeacutem em contexto musical nos Problemas de Aristoacuteteles ldquo() o composto eacute mais agradaacutevel queo natildeo composto se se adquirir a percepccedilatildeo de ambos os elementos simultaneamente Por conseguinte ovinho eacute mais agradaacutevel que o oximel pelo fato de se combinarem melhor entre si as cousas misturadas pelanatureza do que por noacutesrdquo (Aristoacuteteles Prob 922 A)
112
[646] καὶ σύμφωνα μὲν ὁπόσα ὑπὸ συμφώνων φθόγγων περιέχεται διάφωνα δὲ ὁπόσα ὑπὸ
διαφώνων τῶν δὲ συμφώνων διαστημάτων τὸ μὲν πρῶτον καὶ ἐλάχιστον διὰ τεσσάρων οἱ
μουσικοὶ προσαγορεύουσι τὸ δὲ μετὰ τοῦτο μεῖζον διὰ πέντε καὶ τοῦ διὰ πέντε μεῖζον τὸ διὰ
πασῶν [647] πάλιν τε τῶν διαφώνων διαστημάτων ἐλάχιστον μέν ἐστι καὶ πρῶτον παρ
αὐτοῖς ἡ καλουμένη δίεσις δεύτερον δὲ τὸ ἡμιτόνιον ὅ ἐστι διπλοῦν τῆς διέσεως τρίτον ὁ
τόνος ὅς ἐστι διπλασίων τοῦ ἡμιτονίου [648] Oὐ μὴν ἀλλ ὃν τρόπον ἅπαν διάστημα κατὰ
μουσικὴν ἐν φθόγγοις ἔχει τὴν ὑπόστασι οὕτω καὶ πᾶν ἦθος τὸ δἔστι τι γένος μελῳδίας
καθὰ γὰρ τῶν ἀνθρωπίνων ἠθῶν τινὰ μέν ἐστι σκυθρωπὰ καὶ στιβαρώτερα ὁποῖα τὰ τῶν
ἀρχαίων ἱστοροῦσιν τὰ δὲ εὐένδοτα πρὸς ἔρωτας καὶ οἰνοφλυγίας καὶ ὀδυρμοὺς καὶ
οἰμωγάς οὕτω τὶς μὲν μελῳδία σεμνά τινα καὶ ἀστεῖα ἐμποιεῖ τῇ ψυχῇ κινήματα τὶς δὲ
ταπεινότερα καὶ ἀγεννῆ [649] καλεῖται δὲ κατὰ κοινὸν ἡ τοιουτότροπος μελῳδία τοῖς
μουσικοῖς ἦθος ἀπὸ τοῦ ἤθους εἶναι ποιητική καθάπερ καὶ τὸ χλωρὸν δέος τὸ χλωροποιόν
καὶ τὸ ldquoνότοι βαρυήκοοι ἀχλυώδεις καρηβαρικοὶ νωθροὶ διαλυτικοίrdquo ἀντὶ τοῦ τούτων
δραστικοί [650] Tῆς δὲ κοινῆς μελῳδίας ταύτης τὸ μέν τι χρῶμα λέγεται τὸ δὲ ἁρμονία τὸ
δὲ διάτονον ὧν ἡ μὲν ἁρμονία αὐστηροῦ τινος ἤθους καὶ σεμνότητος κατασκευαστική πως
ὑπῆρχεν τὸ δὲ χρῶμα λιγυρόν τί ἐστι καὶ θρηνῶδες τὸ δὲ διάτονον ἔντραχυ καὶ ὑπάγροικον
113
[646] Os consonantes satildeo todos aqueles contidos pelas notas consonantes e os dissonantes os
contidos pelas notas dissonantes Dos intervalos consonantes os muacutesicos chamam o primeiro
e menor de quarta o maior depois desse de quinta e o maior que o de quinta eles chamam de
oitava [647] Novamente dos intervalos dissonantes o primeiro e menor eacute chamado entre os
muacutesicos de diacuteese291 o segundo eacute o semitom que eacute o dobro da diesis o terceiro eacute o tom o qual
eacute o dobro do semitom [648] Contudo natildeo apenas todo intervalo em muacutesica tem sua
existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de melodia Pois
tal como dos caracteres humanos alguns satildeo mais graves e mais fortes (como contam que
eram os caracteres dos antigos) outros satildeo facilmente suscetiacuteveis ao erotismo e agrave embriaguez
agraves lamentaccedilotildees e agraves reclamaccedilotildees Do mesmo modo uma melodia produz movimentos nobres
e refinados na alma outra produz movimentos mais baixos e soacuterdidos292 [649] Uma melodia
de tal tipo eacute comumente chamada caraacuteter pelos muacutesicos por ser capaz de produzir caraacuteter
como tambeacutem o medo eacute chamado de paacutelido293 por sua capacidade de empalidecer e tambeacutem
considera-se ldquoos ventos do sul difiacuteceis de se ouvir enevoados causadores de dor de cabeccedila
indolentes e relaxantesrdquo294 em vez de consideraacute-los causas desses efeitos [650] Dessa
melodia comum295 uma eacute dita ldquocromaacuteticardquo296 outra ldquoharmoniardquo297 e outra ldquodiatocircnicardquo298
Destas a harmonia eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um
caraacuteter claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseiro299
291 O menor intervalo da escala de acordo com o gecircnero Assim na escala diatocircnica a diesis corresponde a umsemitom e na enarmocircnica a um quarto de tom Cf Aristoacutexeno El Harm (21)
292 Filodemo De Mus (col 116 21-36)293 Cf Homero Iliacuteada (VII 479)294 Hipoacutecrates Aforismos (III 5) A citaccedilatildeo de Hipoacutecrates eacute literal Entretanto no contexto do aforismo na obra
de Hipoacutecrates natildeo haacute espaccedilo para a confusatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito apontada por Sexto EmpiacutericoClaramente os ventos do sul satildeo apresentados como causa dos efeitos citados
295 Nos dois sons intermediaacuterios (sons moacuteveis) do tetracorde as entonaccedilotildees diferem segundo o ldquogecircnerordquo doacorde A variaccedilatildeo das entonaccedilotildees dos sons moacuteveis caracteriza os trecircs gecircneros de progressatildeo meloacutedica damuacutesica grega o diatocircnico (tom ndash tom - semitom) o cromaacutetico (terccedila menor ndash semitom - semitom) e oenarmocircnico (terccedila maior ndash frac14 de tom ndash frac14 de tom)
296 Sexto Empiacuterico utiliza o termo ldquokhromardquo (que significa primeiramente ldquocorrdquo) para se referir agravequilo quedesde o seacuteculo IV aC era comumente chamado ldquoto khromatikonrdquo referindo-se ao gecircnero cromaacutetico
297 O termo ldquoharmoniardquo designa tambeacutem um dos gecircneros meloacutedicos mais conhecido como enarmocircnico298 Beacutelis (apud Delattre 2002 p 441 n 6) chama atenccedilatildeo para o fato de que desde a eacutepoca de Aristoacutexeno as
escalas eram listadas da menor para a maior (enarmocircnica cromaacutetica e diatocircnica) no entanto essa ordemaparece curiosamente deturpada por Sexto Empiacuterico tanto que a explicaccedilatildeo que se segue eacute apresentada naordem tradicional e natildeo na ordem que foi anunciada Sobre os gecircneros ver Aristoacutexeno El Harm (246-52)
299 Cf Euclides Introduccedilatildeo harmocircnica (3 7)
114
[651] ἀλλὰ δὴ πάλιν τὸ μὲν ἁρμονικὸν μέλος τῶν μελῳδουμένων ἀδιαίρετόν ἐστι τὸ δὲ
διάτονον καὶ τὸ χρῶμα ἰδικωτέρας τινὰς εἶχε διαφοράς δύο μὲν τὸ διάτονον τήν τε τοῦ
μαλακοῦ διατόνου καλουμένην καὶ τὴν τοῦ συντόνου τρεῖς δὲ τὸ χρῶμα τὸ μὲν γάρ τι αὐτοῦ
τονικὸν καλεῖται τὸ δὲ ἡμιτόνιον τὸ δὲ μαλακόν
[652] Πλὴν ἐκ τούτων συμφανὲς ὅτι πᾶσα ἡ κατὰ μελῳδίας θεωρία παρὰ τοῖς
μουσικοῖς οὐκ ἐν ἄλλῳ τινὶ τὴν ὑπόστασιν εἶχεν εἰ μὴ τοῖς φθόγγοις καὶ διὰ τοῦτο
ἀναιρουμένων αὐτῶν τὸ μηδὲν ἔσται ἡ μουσική πῶς οὖν καὶ ἐρεῖ τις ὅτι οὐκ εἰσὶ φθόγγοι ἐκ
τοῦ φωνὴν αὐτοὺς κατὰ γένος ὑπάρχειν φήσομεν καὶ τὴν φωνὴν ἀνύπαρκτον ἡμῖν ἐν τοῖς
σκεπτικοῖς ὑπομνήμασι δεδεῖχθαι ἀπὸ τῆς τῶν δογματικῶν μαρτυρίας [653] Oἵ τε γὰρ ἀπὸ
τῆς Κυρήνης φιλόσοφοι μόνα φασὶν ὑπάρχειν τὰ πάθη ἄλλο δὲ οὐδέν ὅθεν καὶ τὴν φωνὴν
μὴ οὖσαν πάθος ἀλλὰ πάθους ποιητικήν μὴ γίγνεσθαι τῶν ὑπαρκτῶν οἵ γέ τοι περὶ τὸν
Δημόκριτον καὶ Πλάτωνα πᾶν αἰσθητὸν ἀναιροῦντες συναναιροῦσι καὶ τὴν φωνήν αἰσθητόν
τι δοκοῦσαν πρᾶγμα ὑπάρχειν [654] καὶ γὰρ ἄλλως εἰ ἔστι φωνή ἤτοι σῶμά ἐστιν ἢ
ἀσώματον οὔτε δὲ σῶμά ἐστιν ὡς οἱ Περιπατητικοὶ διὰ πολλῶν διδάσκουσιν οὔτε
ἀσώματος ὡς οἱ ἀπὸ τῆς Στοᾶς οὐκ ἄρα ἔστι φωνή
115
[651] Novamente das melodias que satildeo cantadas a enarmocircnica eacute invariaacutevel jaacute a diatocircnica e
a cromaacutetica comportam algumas variaccedilotildees especiacuteficas A diatocircnica tem duas a chamada
diatocircnica suave e a intensa A cromaacutetica tem trecircs delas uma eacute chamada tocircnica outra
semitocircnica e outra suave300
[652] Aleacutem disso a partir dessas coisas eacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos
sobre a melodia natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notas Por isso destruindo
as notas a muacutesica seraacute nada Como entatildeo algueacutem declararaacute que as notas natildeo existem Noacutes
diremos a partir do fato das notas existirem conforme o gecircnero do som e noacutes mostramos em
nossas observaccedilotildees ceacuteticas301 a partir dos testemunhos dos dogmaacuteticos que o som natildeo existe
[653] Com efeito os filoacutesofos Cirenaicos302 dizem que apenas existem as afecccedilotildees mais
nada por essa razatildeo o som natildeo sendo uma afecccedilatildeo mas produtor de afecccedilatildeo natildeo vem a ser
algo existente Os disciacutepulos de Demoacutecrito e Platatildeo destruindo todos os objetos sensiacuteveis
destruiacuteram ao mesmo tempo o som303 que se supotildee ser um objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel304
[654] Aleacutem disso se o som existe ou ele eacute corpoacutereo ou incorpoacutereo nem eacute corpoacutereo tal
como os Peripateacuteticos tanto ensinam nem incorpoacutereo tal como ensinam os Estoicos305 Logo
natildeo existe som
300 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 443 n 1) trata-se aqui de uma maacute compreensatildeo de SextoEmpiacuterico em relaccedilatildeo a uma passagem de Aristoacutexeno A afirmaccedilatildeo diz respeito agrave distribuiccedilatildeo e ao tamanhodos intervalos em cada escala Enquanto na enarmocircnica haacute apenas uma possibilidade de construccedilatildeo deintervalos na cromaacutetica e na diatocircnica haacute vaacuterias
301 Para Richard Bett (2013 p 177) esse parece ser o modo que Sexto faz referecircncia agraves obras hoje conhecidascomo Contra os Loacutegicos Contra os Fiacutesicos e Contra os Eacuteticos isso pode ser observado a partir de outrasreferecircncias (ver M I 26 29) Essa passagem especificamente parece fazer referecircncia ao Contra os Loacutegicosonde Sexto tambeacutem argumenta contra a existecircncia do som Cf M VIII 131
302 Muito embora os Cirenaicos assim como os ceacuteticos considerem que apenas as afecccedilotildees satildeo apreensiacuteveisenquanto os ceacuteticos consideram a tranquilidade da alma como objetivo de sua escola os Cirenaicosconsideram o prazer da percepccedilatildeo sensiacutevel Aleacutem disso eles satildeo dogmaacuteticos por sustentarem firmemente acrenccedila de que os objetos externos agrave percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo inapreensiacuteveis Cf HP I 215 Ver seccedilatildeo 41
303 A mesma questatildeo aparece no Contra os Loacutegicos (M VIII 56) onde Sexto acusa Demoacutecrito e Platatildeo derejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel e com isso confundirem natildeo soacute a verdade sobre as coisas que satildeo mastambeacutem os conceitos sobre elas Isso porque de acordo com Sexto (M VIII 6) Platatildeo e Demoacutecritosupunham que ldquoapenas as coisas inteligiacuteveis satildeo verdadeirasrdquo Demoacutecrito por considerar que nadaperceptiacutevel existe por natureza e Platatildeo por considerar que as coisas perceptiacuteveis estatildeo sempre vindo a sermas nunca satildeo efetivamente
304 Sobre os Cirenaicos no Contra os Loacutegicos (Cf M VII 191) o mesmo tipo de argumento aparecerelacionado ao paladar
305 No Contra os Gramaacuteticos (M I 155) Sexto Empiacuterico aponta uma distinccedilatildeo feita por alguns gramaacuteticos arespeito das partes corpoacuterea e incorpoacuterea do discurso O som de uma palavra seria a parte corpoacutereaenquanto o significado seria incorpoacutereo
116
[655] Ἀλλὧδέ τις κὰκείνως ἐπιχειρήσειε λέγειν ὡς εἰ μὴ ἔστι ψυχή οὐδὲ αἰσθήσεις μέρη
γὰρ ταύτης ὑπῆρχον εἰ δὲ μή εἰσιν αἱ αἰσθήσεις οὐδὲ τὰ αἰσθητά πρὸς αἰσθήσεις γὰρ ἡ
τούτων ὑπόστασις νοεῖται εἰ δὲ μὴ αἰσθητά οὐδὲ φωνή εἶδος γάρ τι τῶν αἰσθητῶν ὑπῆρχεν
ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ψυχή καθὼς ἐν τοῖς περὶ αὐτῆς ὑπομνήμασιν ἐδείκνυμεν οὐκ ἄρα ἔστι
φωνή [656] Kαὶ μὴν εἰ μήτε βραχεῖά ἐστι φωνὴ μήτε μακρά οὐκ ἔστι φωνή οὔτε δὲ
βραχεῖά ἐστιν οὔτε μακρὰ φωνή ὡς ἐν τοῖς πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ὑπεμνήσαμεν περὶ
συλλαβῆς καὶ λέξεως ζητοῦντες πρὸς τούτους οὐκ ἄρα ἔστι φωνή [657] Πρὸς τούτοις ἡ
φωνὴ οὔτε ἐν ἀποτελέσματι οὔτε ἐν ὑποστάσει νοεῖται ἀλλ ἐν γενέσει καὶ χρονικῇ
παρεκτάσει τὸ δὲ ἐν γενέσει νοούμενον γίνεται οὐδέπω δ ἔστιν ὥσπερ οὐδὲ οἰκία γινομένη
ἢ ναῦς καὶ ἄλλα παμπληθῆ εἶναι λέγεται τοίνυν οὐθέν ἐστι φωνή [658] καὶ ἄλλοις δὲ
συχνοῖς εἰς τοῦτο ἔνεστι λόγοις χρῆσθαι περὶ ὧν ὡς ἔφην ἐν τοῖς Πυρρωνείοις
ὑπομνηματιζόμενοι διεξῄειμεν νυνὶ δὲ φωνῆς μὴ οὔσης οὐδὲ φθόγγος ἔστιν ὃς ἐλέγετο
φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν τάσιν φθόγγου δὲ μὴ ὄντος οὐδὲ διάστημα μουσικὸν καθέστηκεν οὐ
συμφωνία οὐ μελῳδία οὐ τὰ ἐκ τούτων γένη διὰ τοῦτο οὐδὲ μουσική ἐπιστήμη γὰρ ἐλέγετο
ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
[659] Ὅθεν ἀπ ἄλλης ἀρχῆς ὑποδεικτέον ὅτι κἂν τούτων ἀποστῶμεν διὰ τὴν
ἐγχειρηθησομένην ἐπὶ τῆς ῥυθμοποιίας ἀπορίαν ἀνυπόστατος καθέστηκεν ἡ μουσική εἰ γὰρ
μηδέν ἐστι ῥυθμός οὐδὲ ἐπιστήμη τις ἔσται περὶ ῥυθμοῦ ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ῥυθμός ὡς
παραστήσομεν οὐκ ἄρα ἔστι τις ἐπιστήμη περὶ ῥυθμοῦ [660] Ὡς γὰρ πολλάκις εἰρήκαμεν
ῥυθμὸς σύστημά ἐστιν ἐκ ποδῶν ὁ δὲ ποῦς τὸ συνεστὼς ἐξ ἄρσεως καὶ θέσεως ἡ δὲ ἆρσις
καὶ ἡ θέσις ἐν ποσότητι χρόνου θεωρεῖται ὧν τινὰς μὲν ἐπεῖχεν ἡ θέσις τινὰς δὲ ἡ ἆρσις
χρόνους καθάπερ ἐκ μὲν στοιχείων συλλαβαὶ ἐκ δὲ συλλαβῶν λέξεις συντίθενται οὕτως ἐκ
μὲν τῶν χρόνων οἱ πόδες ἐκ δὲ τῶν ποδῶν οἱ ῥυθμοὶ γίνονται
117
[655] Alguma outra pessoa pode tentar dizer que tal como natildeo existe alma natildeo existem
sentidos pois estes existem enquanto parte daquela E se natildeo existem sentidos natildeo existem
os sensiacuteveis pois a existecircncia destes eacute concebida em relaccedilatildeo aos sentidos E se natildeo haacute
objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo haacute som pois ele existe enquanto um tipo de objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Mas a alma eacute nada tal como mostramos nas observaccedilotildees306 a respeito
dela logo natildeo existe som [656] Tambeacutem se o som natildeo eacute curto nem longo natildeo existe som
o som natildeo eacute curto nem longo tal como observamos no Contra os Gramaacuteticos307 em nossa
investigaccedilatildeo sobre siacutelaba e palavra Logo natildeo existe som [657] Aleacutem disso o som nem eacute
concebido como um efeito nem como substacircncia mas como algo que vem a ser e que se
estende no tempo aquilo que eacute concebido como algo que vem a ser estaacute vindo a ser e ainda
natildeo existe assim como natildeo soacute uma casa ou uma nau que estatildeo vindo a ser mas uma
multitude de coisas natildeo satildeo ditas existentes Portanto o som eacute nada308 [658] Mas existem
muitos argumentos que podem ser usados para isso os quais como eu disse foram
completamente relatados em nossas observaccedilotildees pirrocircnicas309 Agora natildeo existindo som
tambeacutem natildeo existe nota a qual era dita ldquoa incidecircncia do som em uma tensatildeordquo natildeo existindo
nota natildeo se estabelece nenhum intervalo musical nem consonacircncia nem melodia nem os
gecircneros delas Por isso natildeo existe muacutesica visto que ela foi dita ciecircncia do meloacutedico e do natildeo
meloacutedico
[659] Dado isso deve-se indicar a partir de outro princiacutepio que mesmo que nos
afastemos dessas questotildees a muacutesica se estabelece como natildeo-existente atraveacutes da aporia que
seraacute discutida em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo riacutetmica Pois se o ritmo eacute nada natildeo existiraacute a ciecircncia
do que eacute o ritmo mas de fato o ritmo eacute nada tal como seraacute mostrado logo natildeo existe essa
ciecircncia do ritmo [660] De fato tal como dissemos muitas vezes ritmo eacute um sistema
composto de peacutes e o peacute eacute composto de aacutersis (levantamento) e theacutesis (abaixamento) Aacutersis e
theacutesis satildeo considerados uma quantidade de tempo dos quais aacutersis ocupa alguns tempos e
theacutesis outros Assim como as siacutelabas satildeo compostas de elementos e as palavras de siacutelabas
tambeacutem os peacutes satildeo compostos de tempos e os ritmos vecircm a ser a partir dos peacutes310
306 Ou eacute uma obra perdida ou Sexto faz referecircncia a algumas passagens de suas obras que abordam a mesmaquestatildeo Ver M X 284 HP II 31 e III 186
307 Cf M I 124-130308 O mesmo argumento aparece em M VIII 131 Ver M VI 53309 Ver nota 306310 Na liacutengua e na muacutesica grega a submissatildeo agrave riacutetmica do texto ldquose deve ao fato de a pronuacutencia e a prosoacutedia
estarem fundamentadas nas duraccedilotildees das siacutelabasrdquo (Reinach 2011 [1890] p 77) Na muacutesica o ritmo eramarcado pelo movimento corporal de levantar e abaixar o peacute (ndash ᴗ ᴗ ndash ndash e ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ por exemplo equivalem auma batida de dois tempos e um levantamento de dois tempos) Visto que a divisatildeo riacutetmica se daacute a partir dadivisatildeo silaacutebica natildeo podemos comparar a pulsaccedilatildeo da muacutesica moderna (com maior intensidade no primeiro
118
[661] Ἐὰν οὖν δείξωμεν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος ἕξομεν συναποδεδειγμένον ὅτι οὐδὲ πόδες
ὑπάρξουσιν διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ οἱ ῥυθμοί ἐξ ἐκείνων τὴν σύστασιν λαμβάνοντες ᾧ
ἀκολουθήσει τὸ μηδὲ ἐπιστήμην εἶναί τινα περὶ ῥυθμούς πῶς οὖν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος
ἤδη μὲν παρεστήσαμεν ἐν τοῖς Πυρρωνείοις οὐδὲν δὲ ἧττον καὶ τὰ νῦν παραστήσομεν ἐπὶ
ποσόν [662] Eἰ γὰρ ἔστι τι χρόνος ἤτοι πεπέρασται ἢ ἄπειρός ἐστιν οὔτε δὲ πεπέρασται
ἐπεὶ ἐροῦμέν ποτε γεγονέναι χρόνον ὅτε χρόνος οὐκ ἦν καὶ ἔσεσθαί ποτε χρόνον ὅτε χρόνος
οὐκ ἔσται οὔτε ἄπειρος καθέστηκεν ἔστι γάρ τι αὐτοῦ παρῳχηκὸς καὶ ἐνεστὼς καὶ μέλλον
ὧν ἑκάτερον εἰ μὲν οὐκ ἔστιν πεπέρασται ὁ χρόνος εἰ δ ἔστιν ἔσται ἐν τῷ παρόντι καὶ ὁ
παρῳχηκὼς καὶ ὁ μέλλων ὅπερ ἄτοπον οὐκ ἄρα ἔστι χρόνος [663] Tό γε μὴν ἐξ
ἀνυπάρκτων συνεστὼς ἀνύπαρκτόν ἐστιν ὁ δὲ χρόνος ἔκ τε τοῦ παρῳχημένου καὶ μηκέτ
ὄντος καὶ ἐκ τοῦ μέλλοντος μηδέπω δὲ ὄντος συνεστὼς ἀνύπαρκτος ἔσται [664] Ἄλλως τε
εἰ μὲν ἀμερής ἐστιν ὁ χρόνος πῶς τὸ μέν τι αὐτοῦ παρῳχημένον τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον
λέγομεν εἰ δὲ μεριστός ἐστιν ἐπεὶ πᾶν τὸ μεριστὸν ὑπό τινος αὐτοῦ μέρους καταμετρεῖται
ὡς πῆχυς μὲν ὑπὸ παλαιστοῦ ὁ παλαιστὴς δὲ ὑπὸ δακτύλου δεήσει καὶ αὐτὸν ὑπό τινος τῶν
αὐτοῦ μερῶν καταμετρεῖσθαι [665] οὔτε δὲ τῷ ἐνεστῶτι δυνατὸν καταμετρεῖν τοὺς ἄλλους
χρόνους ἐπείπερ ὁ γινόμενος καὶ ὁ ἐνεστὼς χρόνος ὁ αὐτὸς ἔσται κατ αὐτοὺς παρῳχημένος
καὶ μέλλων παρῳχημένος μὲν ὅτι τὸν παρῳχημένον καταμετρεῖ χρόνον μέλλων δὲ ὅτι τὸν
μέλλοντα ὅπερ ἄτοπον οὐ τοίνυν τινὶ τῶν λειπομένων δυοῖν τὸν ἐνεστῶτα καταμετρητέον
δι ἣν αἰτίαν οὐδὲ ταύτῃ λεκτέον εἶναί τινα χρόνον [666] Πρὸς τούτοις ὁ χρόνος τριμερής
ἐστι καὶ τὸ μὲν ἔχει παρῳχηκὸς τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον ὧν τὸ μὲν παρῳχημένον οὐκέτι
ἔστιν τὸ δὲ μέλλον οὔπω ἔστιν τὸ δὲ ἐνεστὼς ἤτοι ἀμερές ἐστιν ἢ μεριστόν ἀλλ ἀμερὲς μὲν
οὐκ ἂν εἴη ἐν ἀμερεῖ μὲν γὰρ οὐδὲν δύναται γίνεσθαι μεριστόν ὥς φησι Τίμων οἷον τὸ
γίνεσθαι τὸ φθείρεσθαι
tempo do compasso) com a batida de peacute na muacutesica grega aleacutem disso os ritmos comeccedilam tanto com a batidaquanto com a elevaccedilatildeo de peacute
119
[661] Entatildeo se tivermos mostrado que o tempo eacute nada noacutes teremos concomitantemente
mostrado que natildeo existem peacutes e a partir disso que os ritmos natildeo existem visto que eles satildeo
compostos de peacutes Consequentemente disso se seguiraacute que natildeo haacute ciecircncia do ritmo Mas
como Que o tempo natildeo existe jaacute foi estabelecido nas Pirronianas311 mas nem por isso
deixaremos de estabelececirc-lo brevemente tambeacutem agora [662] Se existe algum tempo ou ele
eacute limitado ou ilimitado Ele natildeo eacute limitado pois se fosse diriacuteamos que em algum momento
houve um tempo em que o tempo natildeo existia e que em algum momento haveraacute um tempo em
que natildeo existiraacute o tempo Ele tambeacutem natildeo eacute considerado ilimitado pois algo dele eacute passado e
presente e futuro e se cada um deles natildeo existir o tempo eacute limitado e se existir tanto o
passado quanto o futuro existiratildeo ao mesmo tempo no presente o que eacute absurdo312 Logo natildeo
existe o tempo [663] E ainda aquilo que eacute composto de inexistentes eacute inexistente O tempo
sendo composto de passado que natildeo existe mais e de futuro que ainda natildeo existe seraacute
inexistente313 [664] Aleacutem disso se o tempo eacute indivisiacutevel como dizemos que o passado o
presente e o futuro satildeo parte dele Se ele eacute divisiacutevel visto que tudo que eacute divisiacutevel eacute medido
por uma parte de si mesmo (como o antebraccedilo pela palma e a palma pelo dedo) seraacute
necessaacuterio que o tempo seja medido por uma de suas proacuteprias partes [665] Mas natildeo eacute
possiacutevel medir os outros tempos pelo presente visto que o tempo presente e que vem a ser
seraacute ele mesmo tanto passado quanto futuro Seraacute passado porque mede o tempo passado e
futuro porque mede o tempo futuro o que eacute absurdo Portanto tambeacutem o presente natildeo pode
ser medido por um dos tempos restantes Por essa razatildeo natildeo se pode dizer existir algum
tempo314 [666] Aleacutem disso o tempo eacute tripartido e uma parte eacute passado outra presente outra
futuro Destas o passado natildeo eacute mais o futuro ainda natildeo eacute e o presente ou eacute divisiacutevel ou
indivisiacutevel Mas ele natildeo seraacute indivisiacutevel pois como diz Timon no indivisiacutevel nada divisiacutevel
pode vir a ser tal como o devir e o perecer315
311 Refere-se possivelmente agraves passagens sobre o tema encontradas em outros escritos ou agrave obra perdidamencionada em M VI 58 Os mesmos argumentos contra o conceito de tempo apresentados no Contra osMuacutesicos aparecem de maneira breve nas Hipotiposes Pirronianas (HP III 136-150) e mais aprofundada noContra os Fiacutesicos (M X 189-214)
312 Ver especificamente HP III 140-1 e M X 189313 Cf HP III 142 e M X 192314 Cf HP III 143 e M X 193-6315 Cf HP III 144 e M X 197 No Contra os Fiacutesicos o mesmo fragmento de Timon eacute mencionado
120
[667] Kαὶ ἄλλως εἴπερ ἀμερές ἐστι τὸ ἐνεστὼς τοῦ χρόνου οὔτε ἀρχὴν ἔχει ἀφ ἧς ἄρχεται
οὔτε πέρας ἐφ ὃ καταλήγει διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ μέσον καὶ οὕτως οὐκ ἔσται ὁ ἐνεστὼς χρόνος
εἰ δὲ μεριστός ἐστιν εἰ μὲν εἰς τοὺς μὴ ὄντας χρόνους μερίζεται οὐκ ἔσται χρόνος εἰ δ εἰς
τοὺς ὄντας χρόνους οὐκ ἔσται ὅλος ὁ χρόνος ἀλλὰ τῶν μερῶν αὐτοῦ τινὰ μὲν ἔσται τινὰ δὲ
οὐκ ἔσται τοίνυν οὐδέν ἐστι χρόνος διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ πόδες οὐδὲ ῥυθμοί οὐδ ἡ περὶ τοὺς
ῥυθμοὺς ἐπιστήμη
[668] Τοσαῦτα πραγματικῶς καὶ πρὸς τὰς τῆς μουσικῆς εἰπόντες ἀρχὰς ἐν τοσούτοις
τὴν πρὸς τὰ μαθήματα διέξοδον ἀπαρτίζομεν
121
[667] Por outro lado se a parte presente do tempo eacute indivisiacutevel ela natildeo tem um princiacutepio
onde ela comeccedila nem um limite no qual ela termina e por isso tambeacutem natildeo tem um meio
Assim natildeo haveraacute o tempo presente Se ele for divisiacutevel pelos tempos que natildeo satildeo natildeo
haveraacute tempo e se for divisiacutevel pelos tempos que natildeo existem o tempo natildeo existiraacute inteiro
mas algumas partes dele existiratildeo e algumas natildeo316 Portanto o tempo eacute nada e por isso nem
os peacutes nem os ritmos nem a ciecircncia acerca dos ritmos [existem]317
[668] Tendo dito tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica
noacutes encerramos nossa discussatildeo contra as disciplinas
316 Cf M X 198-200317 Argumento baseado no segundo Modo de Agripa
122
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Elaboramos nossa traduccedilatildeo e nossos comentaacuterios ao Contra os Muacutesicos de Sexto
Empiacuterico visando explicaacute-lo tanto no que diz respeito aos interesses da musicologia quanto
aos estudos do ceticismo pirrocircnico tendo em vista a escassez de ediccedilotildees que faccedilam referecircncia
a essa obra no Brasil buscando auxiliar sua compreensatildeo enquanto fonte sobre o papel da
Muacutesica na Antiguidade
Tomamos como ponto de partida a dicotomia entre teoria e praacutetica musical tal como
apresentada na criacutetica ceacutetica agrave teoria musical da Antiguidade O termo mousike designou
enquanto fenocircmeno sonoro tanto o conjunto que englobava palavra harmonia e ritmo
quanto puramente a arte dos sons Enquanto conceito metafiacutesico a mousike foi considerada
sob uma perspectiva matemaacutetica a ordem encontrada na muacutesica sendo derivada das relaccedilotildees
matemaacuteticas que subjazem tambeacutem agrave ordem do cosmos
A mousike era considerada uacutetil para a sociedade e necessaacuteria agrave educaccedilatildeo porque se
acreditava que ela teria o poder de alterar o caraacuteter do ouvinte por recuperar a harmonia da
alma ao imitar a harmonia do universo Mas a presenccedila da muacutesica na sociedade natildeo
implicava no incentivo indiscriminado de sua praacutetica Contrariamente para Platatildeo sua
praacutetica deveria ser restrita e regulada por leis e para Aristoacuteteles a muacutesica enquanto uma das
Artes Liberais deveria ser ensinada com a finalidade de desenvolver a capacidade de avaliar
a boa muacutesica e fruiacute-la de maneira correta a praacutetica musical enquanto parte desse
aprendizado consistia apenas em um meio jamais em um fim
Foi Aristoacutexeno quem abordou a mousike enquanto ciecircncia autocircnoma voltando-se agraves
relaccedilotildees entre os sons e natildeo mais agrave metafiacutesica (e consequentemente agrave teoria do ethos)
Mesmo mantendo um discurso considerado dogmaacutetico do ponto de vista ceacutetico Aristoacutexeno
pode ser considerado um dos precursores318 da questatildeo da autonomia da muacutesica enfatizando
o fenocircmeno sonoro como ponto de partida para a teoria musical que para ele estava deveras
descolada da praacutetica de seu tempo Essa questatildeo tambeacutem aparece em Filodemo como uma
reaccedilatildeo agrave supervalorizaccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo moral da sociedade Filodemo
ainda que de maneira dogmaacutetica questiona a utilidade da muacutesica em funccedilatildeo do seu suposto
poder de alterar o caraacuteter do ouvinte e com isso contribuir para a felicidade humana para
ele ela natildeo proporciona mais do que o simples prazer
No Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico constata-se que a criacutetica que se daacute por318 O registro mais antigo a que temos acesso que aborda a questatildeo da autonomia da muacutesica no pensamento
grego eacute o Papiro de Hibeh
123
essas duas vias (epistemoloacutegica e eacutetica) natildeo estaacute especificamente vinculada a uma defesa da
autonomia da muacutesica mas antes apresenta-se como uma refutaccedilatildeo a um certo modo de se
elaborar teorias a respeito das coisas
Observamos que na Antiguidade as artes fundadas na razatildeo entre elas a mousike
eram levadas em consideraccedilatildeo apenas por sua funccedilatildeo propedecircutica para a Filosofia Essa
subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia que permaneceu presente na Enkyklios Paideia do
periacuteodo imperial subsidia a elaboraccedilatildeo do Contra os Professores destinado justamente a
essas a discutir essas tekhnai Sexto parte dessa concepccedilatildeo das tekhnai como subordinadas agrave
Filosofia porque essa teria sido a visatildeo dominante dos pensadores ndash por ele considerados
dogmaacuteticos ndash de sua eacutepoca
Ao considerar que a investigaccedilatildeo das disciplinas Estudos Ciacuteclicos se daacute depois da
investigaccedilatildeo da filosofia visando ali tambeacutem encontrar a verdade Sexto Empiacuterico nega agrave
filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdade Nesse sentido Sexto abre a
possibilidade para se considerar as tekhnai em dois sentidos enquanto tekhnai teoacutericas
dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e enquanto praacuteticas autocircnomas sejam dogmaacuteticas ou
natildeo Desse modo seu ataque abre espaccedilo para se pensar a possibilidade da autonomia das
tekhnai em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Em nossa interpretaccedilatildeo sobre a finalidade do ceticismo pirrocircnico consideramos que o
meacutetodo argumentativo ceacutetico visa mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e
sua precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe externamente
agraves nossas representaccedilotildees Sob essa perspectiva no que diz respeito agraves tekhnai
compartilhamos da visatildeo de Pellegrin de que ldquoo tratado Contra os Muacutesicos demonstra bem
que natildeo se trata em ultima anaacutelise de chegar a uma forccedila igual de argumentos opostos mas
antes de condenar a abordagem dogmaacutetica dos teoacutericos da muacutesicardquo (Pellegrin 2002 p 46-7)
Sob essa perspectiva o que Sexto Empiacuterico condena em cada uma das disciplinas ldquoeacute o desvio
dogmaacutetico que acompanha quase sempre sua incontestaacutevel utilidade praacuteticardquo (Pellegrin 2002
p 19) Esse desvio estaria situado natildeo na praacutetica das tekhnai mas antes no discurso sobre
elas em funccedilatildeo da ldquotentaccedilatildeo dos homens das artes pela teoriardquo (Pellegrin 2002 p 20) ou da
tentaccedilatildeo dos filoacutesofos em relaccedilatildeo a ela
Se a refutaccedilatildeo ceacutetica se propotildee a tarefa de mostrar a inconsistecircncia teoacuterica de cada
uma das tekhnai em funccedilatildeo da pretensatildeo de verdade dos discursos dogmaacuteticos dos
professores no caso da muacutesica eacute a teoria musical sob seus aspectos teacutecnicos e em funccedilatildeo de
sua utilidade que deve ser questionada
124
Assim no Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico concentra sua argumentaccedilatildeo contra as
teorias dogmaacuteticas que consideram a muacutesica uacutetil porque se o sentido fundamental de uma
tekhnai se daacute em funccedilatildeo de sua utilidade ao se mostrar que a muacutesica natildeo tem as propriedades
a ela atribuiacutedas ela se tornaria inuacutetil e com isso seu estatuto de tekhne ficaria comprometido
Aleacutem disso Sexto desconstroacutei os conceitos baacutesicos sobre os quais a teoria musical estaacute
baseada mostrando a inconsistecircncia ou ausecircncia de fundamento de toda a teoria musical
Essa condenaccedilatildeo agrave conduta dogmaacutetica em relaccedilatildeo agraves tekhnai se daacute porque como
vimos haacute um sentido em que as tekhnai natildeo satildeo condenadas pelo ceacutetico Pelo contraacuterio
enquanto parte do criteacuterio praacutetico pirrocircnico a possibilidade do exerciacutecio de uma tekhne livre
de dogmatismo eacute fundamental para a coerecircncia dessa filosofia
Enquanto disciplina da Enkyklios Paideia a teoria musical eacute refutada por ser ldquoserva
de primeira ordemrdquo da Filosofia mas por outro lado as artes aprovadas pelo ceacutetico estatildeo
ligadas agrave experiecircncia (empeiria) que para ele natildeo depende das demonstraccedilotildees racionais
proacuteprias da ciecircncia para se estabelecer Por isso a muacutesica enquanto ldquoexperiecircncia em
instrumentosrdquo ou seja a muacutesica praacutetica natildeo eacute refutada
No Contra os Muacutesicos a teoria musical eacute refutada sobretudo em funccedilatildeo da
associaccedilatildeo da utilidade da muacutesica ao seu pretenso poder de afetar a alma do ouvinte Se esse
suposto poder natildeo estaacute na melodia mas apenas em nossa opiniatildeo ao se eliminar a crenccedila
adicional de que a muacutesica teria certos atributos por natureza restaria apenas a muacutesica praacutetica
executada pelo instrumentista independentemente da funccedilatildeo atribuiacuteda a ela pelos teoacutericos
A refutaccedilatildeo ceacutetica agraves teorias musicais da Antiguidade apresenta-se como uma criacutetica
de modo algum ultrapassada justamente porque nos faz revisitar importantes questotildees da
esteacutetica musical A contraposiccedilatildeo entre proposiccedilotildees acerca do que eacute a muacutesica de seu papel na
sociedade explicita a limitaccedilatildeo do debate a dois principais modos possiacuteveis de compreendecirc-la
(representado na histoacuteria recente pela oposiccedilatildeo entre idealismo e formalismo) e ao mesmo
tempo coloca em xeque a dicotomia (e frequente hierarquizaccedilatildeo) entre teoria e praacutetica
musical presente ainda hoje no pensamento daqueles que trabalham com o ensino de
muacutesica
Se considerarmos a argumentaccedilatildeo ceacutetica como uma mostra do dogmatismo que
permeia as mais diversas teses de toda a teoria sobre muacutesica e ainda se fizermos um
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo e transpusermos para a aacuterea da muacutesica as bases daquilo que
possivelmente seria uma tekhne natildeo-dogmaacutetica de acordo com o meacutetodo ceacutetico eacute possiacutevel
vislumbrar uma tekhne musical onde o discurso surja e emane da praacutetica e natildeo o contraacuterio
125
(Ora se todo o conhecimento musical estudado hoje surgiu inevitavelmente da experiecircncia
sendo apenas posteriormente formalizado em teorias isso natildeo seria uma grande inovaccedilatildeo)
A atualidade das questotildees suscitadas no combate ao dogmatismo das disciplinas dos
Estudos Ciacuteclicos ndash que deixando de lado a ascensatildeo e queda das mais variadas verdades ao
longo dos seacuteculos satildeo as mesmas disciplinas que ainda compotildeem nosso curriacuteculo ndash revela o
ainda natildeo superado abismo entre teoria e praacutetica que nossos meacutetodos de ensino-aprendizado
frequentemente impotildeem Sob essa oacutetica se jaacute descartamos as teses pitagoacutericas de uma muacutesica
inaudiacutevel se a muacutesica existe ‒ para noacutes ‒ enquanto um fenocircmeno sonoro a refutaccedilatildeo de
Sexto Empiacuterico faz lembrar que sem a praacutetica (ou ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo) a muacutesica
simplesmente ldquonatildeo existerdquo e por conseguinte qualquer teoria a respeito dela tambeacutem natildeo
126
REFEREcircNCIAS
EMPIRICUS Sextus Against the Professors Prous Mathematikous Traduccedilatildeo de R GBury Cambridge Harvard University Press 1933 (Loeb Classical Library)
_________________ Contra los Profesores Traduccedilatildeo de Jorge Bergua Cavero MadridGredos Editorial 1997
________ Against the Logicians Traduccedilatildeo de Richard Bett New York CambridgeUniversity Press 2005
DELATTRE D Contre les musiciens In PELLEGRIN (Org) Sextus Empiricus Contreles professeurs Paris Eacuteditions du Seuil 2002
GREAVES D D Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ Against the musicians Editedand translated with introduction and notes London University of Nebraska Press 1986
ALLEN J Pyrronism and medicine In BETT R (Org) The Cambridge companion toancient scepticism Cambridge Cambridge University Press 2010
ANDERSON W D Ethos and Education in Greek Music Cambridge Harvard UniversityPress 1966
ANNAS J BARNES J The Modes of Scepticism Ancient Texts and ModernInterpretations Cambridge Cambridge University Press 1985
ARISTOPHANES The Clouds Traduccedilatildeo de Jeffrey Henderson Cambridge HarvardUniversity Press 1998 (Loeb Classical Library)
ARISTOacuteTELES On the Heavens De Caelo Traduccedilatildeo de W K C Guthrie CambridgeHarvard University Press 1939 (Loeb Classical Edition)
____________ Poeacutetica Traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa daMoeda 2003
____________ Poliacutetica Traduccedilatildeo de Antoacutenio Campelo Amaral e Carlos de CarvalhoGomes Lisboa Vega 1998
____________ Problemas Musicais Traduccedilatildeo de Maria Luiza Roque Brasiacutelia Thesaurus2001
____________ The Nicomachean Ethics Traduccedilatildeo de David Ross Britain OxfordUniversity Press 1998
BARKER A Greek Musical Writings vol I of the Musician and his Art BritainCambridge University Press 1984
127
__________ Greek Musical Writings vol II Harmonic and Acoustic Theory BritainCambridge University Press 1989
__________ The science of harmonics in classical Greece Cambridge CambridgeUniversity Press 2007
BARNES J Scepticism and the Arts In RJ Hankinson (Org) Method Medicine andMetaphysics Studies in the Philosophy of Ancient Science (Special Issue of Apeiron 21) p53ndash77 1988
BEacuteLIS A Aristoxegravene de Tarente et Aristote Le Traiteacute drsquoharmonique Paris Klincksieck1986
_______ Les nuances dans le Traiteacute dharmonique dAristoxegravene de Tarente Revue desEtudes Grecques XCV p 54-73 1982
BETT R A Sceptic Looks at Art (but not Very Closely) Sextus Empiricus on MusicInternational Journal for the Study of Skepticism 3 p 155ndash181 2013
BOWMAN W D Philosophical Perspectives on Music Oxford Oxford University Press1998
BROCHARD V Os Ceacuteticos Gregos Traduccedilatildeo de Jaimir Conte Satildeo Paulo OdysseusEditora 2009
BYCHKOV O V SHEPPARD A Greek and Roman Aesthetics Cambridge CambridgeUniversity Press 2010
CASTANHEIRA C P De Institutione Musica de Boeacutecio Livro 1 traduccedilatildeo e comentaacuterios154f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Estudos Literaacuterios) - Universidade Federal de MinasGerais 2009
CORREcircA P C Harmonia mito e muacutesica na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Humanitas 2008
DELATTRE D Preacutesence de LrsquoEacutepicurisme dans le Contre les grammariens et le Contre lesmusiciens de Sextus Empiricus In DELATTRE J (Org) Sur le Contre les professeurs deSextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p 47ndash65
___________ Philodegraveme de Gadara Sur la musique 2 vols Paris Les Belles Lettres2007
DESBORDES F Le scepticisme et les lsquoarts libeacuterauxrsquo une eacutetude de Sextus Empiricus AdvMath I-VI In A-J Voelke (Org) Le scepticisme antique perspectives historiques etsysteacutematiques Actes du Colloque international sur le scepticisme antique Universiteacute deLausanne 1-3 juin 1988 (Cahiers de la revue de theacuteologie et de philosophie 15) GenevaLausanne and Neuchacirctel Revue de Theacutelologie et de Philosophie 1990 p 167ndash79
DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker (6th ed) Revised with additions and indexby W Kranz Berlin Weidman 1951-2
128
EPICURO Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Lorencini e EnzoDel Carratore Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
FLORIDI L Sextus Empiricus The Transmission and Recovery of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 2002
FUBINI E Esteacutetica da Muacutesica Lisboa Ediccedilotildees 70 2012
GIGANTE M Scetticismo e Epicureismo Per lavviamento di un discorso storiograficoNapoli Bibliopolis 1981
HADOT I Arts libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Paris EacutetudesAugustiniennes 1984
HADOT P O que eacute Filosofia antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008
HANSLICK E Do Belo Musical Traduccedilatildeo Artur Mouratildeo Covilhaacute LusoSofia 2011
HIPPOCRATES Aphorisms (Vol IV) Traduccedilatildeo de W H S Jones Cambridge HarvardUniversity Press 1931 (Loeb Classical Library)
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
________ Odisseia Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
LIPPMAN E A A History of Western Musical Aesthetics Lincoln University ofNebraska 1992
_____________ Musical thought in Ancient Greece New York Da Capo Press 1964
____________ The Place of Music in the System of Liberal Arts In J LaRue and othersAspects of Medieval and Renaissance Music a Birthday Offering to Gustave Reese NewYork 1966 p 545ndash59
MATES B The Skeptic Way Sextus Empiricusrsquos Outlines of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 1996
MATHIESEN T L Apolos Lyre greek music and music theory in antiquity and the middleages Londres University of Nebraska Press 1999
MARROU H Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Editora Herder 1966
MOUTSOPOULOS E La mousique dan loeuvres de Platon Paris Presses Universitairesde France 1959
PELLEGRIN P Introduction In ______ (Org) Sextus Empiricus Contre les professeurs
129
Paris Eacuteditions du Seuil 2002 p 9ndash47
_____________ De lrsquouniteacute du scepticisme sextien In DELATTRE J (Org) Sur le Contreles professeurs de Sextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p35ndash45
PEREIRA A R A esteacutetica musical em Aristoacutexeno de Tarento Hvmanitas Lisboa VolXLVII Universidade Nova de Lisboa 1995
_____________ A mousikeacute das origens ao drama de Euriacutepides Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2001
_____________ Poleacutemica acerca da mousikeacute no Adversus Musicos de Sexto EmpiacutericoHvmanitas Lisboa vol XLVIII Universidade Nova de Lisboa 1996
PHILO On mating with the preliminary studies De Congressu (Vol IV) Traduccedilatildeo F HColson e G H Whitaker Cambridge Harvard University Press 1939 (Loeb ClassicalLibrary)
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa FundaccedilatildeoCalouste Gulbenkian 1980
________ Fedro In Diaacutelogos III Trad intro e notas Lledoacute Intildeigo Madrid EditorialGredos 1988
________ Leis Traduccedilatildeo e notas Carlos Humberto Gomes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004
________ Eutidemo In Diaacutelogos II Traduccedilatildeo F J Olivieri Madrid Editorial Gredos1983
________ Timeu In Diaacutelogos VI Trad intro e notas Francisco Lisi Madrid EditorialGredos 1992
________ Menexeno In Diaacutelogos II Trad intro e notas E Acosta Meacutendez MadridEditorial Gredos 1983
PLUTARCO De virtute morali (Moralia Vol 6) Traduccedilatildeo de W C Helmbold) CambridgeHarvard University Press 1936 (Loeb Classical Library)
PLUTARCO Sobre a Muacutesica In SOARES C ROCHA R Plutarco Obras Morais Sobreo afecto aos filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo de Roosevelt Rocha Coimbra Centro deEstudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010
POPKIN R H Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Traduccedilatildeo de DaniloMarcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000
PORCHAT PEREIRA O ldquoA autocriacutetica da razatildeo no mundo antigo In Waldomiro Joseacute SilvaFilho (Org) O Ceticismo e a possibilidade da Filosofia Injuiacute Ed Unijuiacute 2005
130
___________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
QUINTILIANO Institutio Oratoria Traduccedilatildeo de H E Butles Cambridge HarvardUniversity Press 1930 (Loeb Classical Library)
REYES P R Sexto Empiacuterico y la mousikeacute EMERITA - Revista de Linguistica y FilologiacuteaClaacutesica (EM) ndash LXXII 1 p 95-119 2004
ROCHA R Uma introduccedilatildeo agrave teoria musical na antiguidade claacutessica Via LitteraeAnaacutepolis v 1 n 1 p 138-164 juldez 2009
SPINELLI E Pyrrhonism and the specialized sciences In BETT R (Org) TheCambridge companion to ancient scepticism Cambridge Cambridge University Press2010
TARTAKIEWICZ W Objectivity and Subjectivity in the History of Aesthetics Philosophyand Phenomenological Research Vol 24 No 2 (Dec 1963) pp 157-173 1963
Thesaurus Linguae Graecae Compilaccedilatildeo de todos os textos em prosa ou verso em grego dosseacutecsVIII aC ateacute VI dC in httpwwwtlguciedu
TOMAacuteS L Ouvir o loacutegos muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
________ Vozes dissonantes precursores da autonomia da muacutesica na antiguidade InDUARTE R e SAFATLE V Ensaios sobre muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo AssociaccedilatildeoEditorial Humanitas 2007
VITRUacuteVIO The Ten Books on Architecture Trad Morris Hicky Morgan CambridgeHarvard University Press London Humphrey Milford Oxford University Press 1914
WEST M L Ancient Greek Music New York Oxford University Press 1992
WILKINSON L P Philodemus on Ethos in Music The Classical Quarterly Vol 32 No34 (Jul - Oct 1938) pp 174-181
WOODWARD L H Diogenes of Babylon A Stoic on Music and Ethics Dissertaccedilatildeo(Master of Philosophy in Classics) - UCL 2009
131
GLOSSAacuteRIO
aisthesis (αἴσθησις) ndash sentidos percepccedilatildeo sensiacutevelaisthetos (αἰσθητός) ndash objeto da percepccedilatildeo sensiacutevelaletes (ἀλήτης) ndash verdadeiroanagke (ἀνάγκη) ndash necessidadeandreia (ἀνδρέια) ndash bravura coragemanomalia (ἀνωμαλία) ndash anomalia antirresis (ἀντίρρησις) ndash refutaccedilatildeoanyparktos (ἀνύπαρκτος) ndash irreal natildeo-existenteanypostatos (ἀνυπόστατος) ndash irreal natildeo-existenteaporia (ἀπορία) ndash aporiaarete (ἀρήτη) ndash excelecircncia virtudeataraxia (ἀταραξία) ndash tranquilidade (da alma)azetetos (ἀζήτητος) ndash natildeo-investigaacutevelbarys (βαρύς) ndash gravebios (βίος) ndash vida vida comumdia pason (διὰ πασῶν) ndash intevalo de oitavadia pente (διὰ πέντε) ndash intervalo de quintadia tettaron (διὰ τεττάρων) ndash intervalo de quartadiabebaiomai (διαβεβαιῦμαι) ndash sustentar firmementedianoia (διάνοια) ndash pensamento intelectodiastema (διάστημα) ndash intervalodiatonos (διάτονος) ndash diatocircnico (gecircnero)diaphonia (διαφωνία) ndash discordacircncia disputa controveacutersiadiaphonos (διάφωνος) ndash dissonante (muacutesica)diesis (δίεσις) ndash o menor intervalo na escaladogma (δόγμα) ndash dogma crenccedila opiniatildeodoxa (δόξα) ndash opiniatildeodynamis (δύναμις) ndash capacidade habilidade poder disposiccedilatildeo ethos (ἔθος) ndash haacutebito costumeethos (ἦθος) ndash caraacuteter disposiccedilatildeoeidesis (εἴδησις) ndash conhecimentoekmeles (ἐκμελής) ndash desafinado dissonanteektos hupokeimenon (ἐκτograveς ὑποκείμενον) ndash aquilo que existe externamente (agrave nossa percepccedilatildeo) emmeles (ἐμμελής) ndash afinado harmoniosoempeiria (ἐμπειρία) ndash experiecircncia enkyklios paideia (ἐγκύκλιος παιδεία) ndash educaccedilatildeo ciacuteclicaennoia (ἔννοια) ndash conceito concepccedilatildeoepisteme (ἐπιστήμη) ndash ciecircnciaepokhe (ἐποχή) ndash suspensatildeo de juiacutezoeudaimonia (εὐδαιμονία) ndash felicidade prosperidade boa fortunaharmonia (ἁρμονία) ndash harmonia enarmocircnico (gecircnero)hemitonion (ἡμιτόνιον) ndash semitomhomophonos (ὁμόφωνος) ndash na mesma nota em uniacutessono Opp σύμφωνος (em concordacircncia)hypostasis (Ὑπόστασις) ndash existecircncia substacircnciaidiotes (ἰδιώτης) ndash pessoas comunsisostheneia (ἰσοσθένεια) ndash equipolecircncia igual forccedila
132
katastello (καταστέλλω) ndash refrear tranquilizarkhreo (χρεώ) ndash utilidadekhroma (χρῶμα) ndash cromaacutetico (gecircnero)khronos (χρόνος) ndash tempologike tekhne (λογική τέχνη) ndash arte racionallogos (λόγος) ndash razatildeo argumento discursomathema (μάθημα) ndash ensinamento disciplinamelodia (μελῳδία) ndash canto muacutesica melodiamimesis (μίμεσις) ndash imitaccedilatildeonoos (νόος) ndash menteorganikos (ὀργανικός) ndash instrumento instrumentaloxus (Ὀξύς) ndash agudopathos (πάθος) ndash afecccedilatildeophainomenon (φαινόμενον) ndash aquilo que aparece fenocircmenophone (φωνή) ndash somphthonnos (φθόγγος) ndash notarythmos (ῥυθμός) ndash ritmostoikheion (στοιχεῖον) ndash elementosymphonos (σύμφωνος) ndash consonantesystema (σύστημα) ndash sistemasophronizo (σωφρονίζω) ndash regular moderarsophrosyne (σωφροσύνη) ndash temperanccedila tasis (τάσις) ndash tensatildeo altura da voztekhne (τέχνη) ndash arte teacutecnicatekhnites (τεχνίτες) ndash artistas artiacutefices especialistas profissionaistheoria (θεωρία) ndash teoria tonos (τόνος) ndash tomtropos (τρόπος) ndash modo zeteo (ζητέω) ndash investigar
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeoFernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607
Biblioteca de Ciecircncias Humanas e Educaccedilatildeo - UFPR
Roeder Sarah O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico introduccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios Sarah Roeder ndash Curitiba 2014 132 f
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Muacutesica) ndash Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e
Design da Universidade Federal do Paranaacute
1 Muacutesica - Histoacuteria e criacutetica 2 Muacutesica grega na Antiguidade 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Teoria musical ITiacutetulo CDD 7809
Aos que sustentam firmemente a dicotomia entre o pensar e o fazer artiacutestico
AGRADECIMENTOS
Ao professor Roosevelt Rocha pela orientaccedilatildeo por sua postura (praacutetica e direta) naconduccedilatildeo de nossas reuniotildees pelo incentivo a esse projeto e pela incriacutevel paciecircncia
Ao professor Luiz Eva com quem pude estudar a Filosofia ceacutetica do segundo ano agravemonografia agradeccedilo pelos ldquohieroacuteglifosrdquo de suas correccedilotildees a partir dos quais aprendi aestruturar minhas ideias e esclarececirc-las no papel
Ao professor Bernardo Brandatildeo por encorajar o estudo do grego antigo tratando-ocomo a liacutengua mais simples do mundo e pelo projeto inicial de traduccedilatildeo do Contra osMuacutesicos E ao Professor Pedro Ipiranga pelas primeiras letras gregas
Agrave professora Lia Tomaacutes pela pertinecircncia de seus comentaacuterios pela indicaccedilatildeo debibliografia e pelo empreacutestimo de livros fundamentais para essa pesquisa
Ao professor Roberto Bolzani pela dedicada anaacutelise dessa dissertaccedilatildeoAos amigos professor Paulo Vieira Neto pelos cafeacutes filosoacuteficos ao longo desses
anos professor Benito Maeso pelo estaacutegio em docecircncia com a turma de monstrinhos (nomelhor sentido da palavra) e pelas orientaccedilotildees de botequim Ana Carolina Freire pelasrevisotildees e inuacutemeros conselhos que sempre terminam com um ldquonada temardquo Aos colegasfilosofantes Marcelo Gustavo Raphael Eduardo Bruno Gustavo Paiva e principalmenteao grande amigo Wagner Bitencourt
Agrave turma do mestrado pelo carinho com que todos me receberam Especialmente aoVicente pelo incentivo e pela parceria nos trabalhos de anaacutelise ao Adriano pelas conversasao longo da Rua XV ao Elder pelo seu incansaacutevel espiacuterito criacutetico agrave Renata pelas agradaacuteveistardes no cafeacute agrave Lilian e agrave Flora pelo apoio e preciosos conselhos
Agrave Denise Drechsel e agrave Vera Lucia Barbosa pelo carinho e entusiasmo com queaceitaram o trabalho de revisatildeo dessa dissertaccedilatildeo
Aos colegas do Coro da UFPR pela companhia nas tardes de traduccedilatildeo e revisatildeoAo Maestro Alvaro Nadolny pela dedicaccedilatildeo em ensinar arte muito aleacutem da teacutecnica
pelo incentivo agraves mudanccedilas em meu caminho pelos inuacutemeros conselhos que ele (ldquonatildeordquo) daacutee principalmente por me ensinar (no sentido mais profundo que se possa entender) quemuacutesica eacute para o outro
Ao Hermes (namorado noivo e marido durante esses dois anos de mestrado) por seuamor sua muacutesica e por me mostrar o mundo de outro jeito fazendo de mim algueacutem melhor
Agrave minha matildee Gloacuteria (principalmente pelo seu bom-senso infaliacutevel) e ao meu paiJunior (especialmente por pensar ndash sempre ndash fora da caixinha) por apoiaremincondicionalmente todas as (boas) ideias mirabolantes de seus filhos
Ao meu irmatildeo Matheo pelo carinho pela paciecircncia absurda e pelos trocadilhos ruinsque divertiram meus dias enquanto moramos juntos
Por fim aos professores do PPG - Muacutesica por acreditarem no potencial desse projetoespecialmente agrave professora Silvana Scarinci e ao professor Danilo Ramos
Ao secretaacuterio Gabriel pelo profissionalismo com que exerce sua funccedilatildeo Agrave CAPES pelo suporte financeiro agrave realizaccedilatildeo dessa pesquisa
Por amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar por meio da argumentaccedilatildeo na medida do possiacutevel
o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticos
Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas III 280
RESUMO
O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico eacute uma importante fonte sobre o papel da muacutesica naAntiguidade Nesta obra o filoacutesofo ceacutetico refuta a teoria musical tanto sob a perspectiva eacuteticandash questionando sua utilidade quanto sob a perspectiva teacutecnica ndash apresentando argumentoscontra conceitos fundamentais da ciecircncia musical como o de melodia e o de ritmo Arefutaccedilatildeo da teoria musical compartilha de um objetivo mais amplo da Filosofia ceacutetica asaber o combate ao dogmatismo na Filosofia e nas disciplinas que compunham os EstudosCiacuteclicos O presente trabalho consiste na traduccedilatildeo comentada do Contra os Muacutesicos Emnosso comentaacuterio agrave obra buscamos reunir as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeodessa obra sob a perspectiva filosoacutefica e a perspectiva musicoloacutegica Partimos da divisatildeohieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical e em funccedilatildeo disso apresentamos um panoramageral da teoria musical na Antiguidade segundo duas perspectivas o papel psicagoacutegico damuacutesica e os aspectos teacutecnicos da ciecircncia musical Enfatizamos por um lado a importacircncia dateoria do ethos musical no pensamento filosoacutefico de Platatildeo e de Aristoacuteteles e por outro aconcepccedilatildeo de teoria musical enquanto ciecircncia autocircnoma desenvolvida por Aristoacutexeno Aleacutemdisso devido agrave sua semelhanccedila com o Contra os Muacutesicos apresentamos a criacutetica ao papeleacutetico da muacutesica elaborada pelo filoacutesofo epicurista Filodemo Buscamos em seguida explicara mousike enquanto uma das artes que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos que privilegiando oacircmbito teoacuterico constituiacuteam ainda uma propedecircutica agrave Filosofia Depois disso situamos aobra no acircmbito da Filosofia ceacutetica mostrando que em todos os livros do Contra osProfessores o ceacutetico parte de uma dicotomia entre arte teoacuterica e praacutetica e que sua refutaccedilatildeodiz respeito apenas agrave precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de sustentar teorias sobre cada uma das tekhnaiPor fim analisamos em detalhe os argumentos que compotildeem o Contra os Muacutesicosmostrando que estes refutam somente o acircmbito teoacuterico da muacutesica abrindo espaccedilo para umareflexatildeo a respeito do valor da praacutetica musical na cultura grega antiga
Palavras-chave Muacutesica Grega Antiga Ceticismo Ethos tekhne Sexto Empiacuterico Estudos Ciacuteclicos
ABSTRACT
Sextus Empiricus work called Against the Musicians is an important source about music inthe Ancient Greece In this book the skeptic attempts to refute musical theory of that timeson the ethical way ndash questioning its utility as well as on the technical perspective ndash arguingagainst fundamental concepts of this science such as melody and rhythm The refutation ofmusical theory is part of a broader goal in Sextus work - and on the Skeptical Philosophyproject as a whole to oppose dogmatism in philosophy and in the Cyclical Studies subjectsOur work consists of a translation and a commentary on Against the Musicians Thecommentary aims to present the necessary tools for an interpretation of Against the Musiciansin philosophical and musicolgical terms We followed the hierarchycal division betweenmusical theory and practice as a starting point and present music theory in Ancient times bytwo perspectives musics psychagogic role and technical aspects of music science Weemphasized the importance of the theory of musical ethos in Platos and Aristotlesphilosophy Aristoxenus development of music theory as an autonomous science andPhilodemus critic regarding musics ethical role An effort was made to explain mousike asone of the arts of the Cyclical Studies These favoured the theorical range also constituting apropedeutic to Philosophy After that we put the work into its philosophical context byshowing that the whole Against the Professors assumes a dichotomy between theorical andpractical art and that the refutation concerns only the dogmatic precipitancy to firmly mantaintheories about each one of the tekhnai At last a detailed analysis was made on the argumentsthat make up the Against the Musicians showing that these arguments extends just to thetheorical part of music enabling us to reflect upon the value of musical practice
Keywords Ancient Greek Music Skepticism Ethos Tekhne Sextus Empiricus Cyclical Studies
LISTA DE ABREVIATURAS
Aristides Quintiliano De mus ndash De Musica
AristoacutetelesEN ndash Eacutetica a NicocircmacoMet ndash MetafiacutesicaPol ndash PoliacuteticaProb ndash Problemas Musicais
AristoacutexenoEl Harm ndash Elementa Harmonica
Boeacutecio Inst ndash De Institutione Musica
Filodemo De mus ndash De musica
PlatatildeoRep ndash RepuacuteblicaEuth ndash EutidemoTi ndash Timeu
Plutarco De mus ndash De Musica
QuintilianoInst ndash Institutione Oratoria
Sexto Empiacuterico1
HP ndash Hipotiposes PirronianasM I - VI ndash Contra os Professores (Adversus Mathematicos)M I ndash Contra os GramaacuteticosM II ndash Contra os RetoacutericosM III ndash Contra os GeocircmetrasM IV ndash Contra os AritmeacuteticosM V ndash Contra os AstroacutelogosM VI ndash Contra os MuacutesicosM VII ndash XI ndash Contra os DogmaacuteticosM VII ndash VIII ndash Contra os LoacutegicosM IX ndash X ndash Contra os FiacutesicosM XI ndash Contra os Eacuteticos
1 Os livros agrupados sob o tiacutetulo Contra os Dogmaacuteticos foram numerados erroneamente como umacontinuaccedilatildeo dos seis livros que compotildeem o Contra os Professores Em funccedilatildeo de sua praticidademanteremos essa abreviaccedilatildeo
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
1017
3 MOUSIKE 2031 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO 2032 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA 22321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo 23322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles 2833 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO 3534 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO 414 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS NO CONTRA OS PROFESSORES 4641 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO NA FILOSOFIA E NAS ARTES 4742 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS 5243 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES 59431 O modelo argumentativo da obra 6144 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO 665 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS 6951 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6) 69511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo 69512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica 7152 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37) 7353 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68) 806 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISREFEREcircNCIASGLOSSAacuteRIO
867122126131
10
1 INTRODUCcedilAtildeO
Ateacute o seacuteculo V de nossa era a praacutetica e a teoria musical2 eram duas vertentes
completamente distintas3 A praacutetica musical restringia-se agrave execuccedilatildeo do instrumento
considerava-se que esta natildeo fazia uso do intelecto e por isso era colocada em um niacutevel
inferior em relaccedilatildeo agrave teoria Boeacutecio4 por exemplo afirma que haacute trecircs classes de muacutesicos
uma delas eacute formada por aqueles que executam os instrumentos considerada como
desprovida de reflexatildeo a segunda eacute a dos poetas que compotildeem as canccedilotildees por um certo
instinto natural e a terceira e mais elevada eacute a dos que julgam os ritmos e melodias das
canccedilotildees
A teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmoloacutegico
da ciecircncia musical quanto seu sentido teacutecnico relacionado ao estudo da harmonike da
riacutetmica e da meacutetrica Aleacutem disso os estudiosos da muacutesica estavam preocupados com o papel
eacutetico da muacutesica no que diz respeito agraves suas caracteriacutesticas terapecircuticas e ao seu poder de
formar e determinar o caraacuteter5 e o comportamento do ouvinte Este aspecto da muacutesica estava
estritamente ligado agrave paideia6 grega
No Contra os Muacutesicos uacuteltimo livro da obra intitulada Contra os Professores Sexto
Empiacuterico7 filoacutesofo ceacutetico do seacuteculo II dC dirige sua criacutetica agrave teoria musical que segundo
ele era considerada por muitos mais completa que a praacutetica musical8 Sua refutaccedilatildeo dirige-
se aos acircmbitos eacutetico e epistemoloacutegico da teoria musical Seu meacutetodo consiste em apresentar
algumas definiccedilotildees difundidas sobre a muacutesica e argumentar mostrando que elas natildeo satildeo
necessariamente vaacutelidas Na primeira parte do texto a muacutesica eacute discutida em termos de sua
utilidade para se alcanccedilar a felicidade Se por um lado ela eacute dita uacutetil para a felicidade humana
2 A expressatildeo ldquoteoria musicalrdquo eacute utilizada aqui em sentido amplo ou seja abrangendo os aspectos eacutetico eteacutecnico da muacutesica Ver Tomaacutes (2002 p 18-22)
3 Cf Tomaacutes (2002 p43)4 Cf Boeacutecio Inst (480-524)5 O termo grego traduzido por ldquocaraacuteterrdquo ao longo deste texto eacute ἦθος (ethos) e estaacute ligado agrave virtude moral que
se desenvolve na alma atraveacutes do haacutebito em grego ἔθος (ethos) De acordo com Aristoacuteteles (EN 1103 A) onome dessa virtude moral (ἠθική ndash ethike) surge por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ldquohaacutebitordquo (ethos ndashἔθος) Essa modificaccedilatildeo consiste na utilizaccedilatildeo do ldquoηrdquo (eta) no lugar do ldquoεrdquo (epsilon) Ao longo do textoutilizamos a transliteraccedilatildeo ldquoethosrdquo para ἦθος (caraacuteter)
6 O termo paideia ldquodesigna a experiecircncia cultural e eacutetica grega ele natildeo eacute de nenhum modo limitado agraveeducaccedilatildeo em seu sentido formalrdquo (Anderson 1966 p 2)
7 A obra de Sexto Empiacuterico eacute ainda pouco estudada em relaccedilatildeo agraves suas contribuiccedilotildees ao pensamentofilosoacutefico - sobretudo sua influecircncia na Filosofia moderna Dentre os textos que chegaram ateacute noacutes estatildeo asHipotiposes Pirronianas o Contra os Dogmaacuteticos e o Contra os Professores
8 Os argumentos acerca do valor da muacutesica refutados por Sexto satildeo parecidos com os argumentos queaparecem nas obras de Quintiliano e de Plutarco A refutaccedilatildeo contra o valor eacutetico e filosoacutefico da muacutesica porsua vez estaacute muito proacutexima da obra de Filodemo de Gadara (seacuteculo I aC) A principal fonte da teoriamusical apresentada por Sexto eacute a obra de Aristoacutexeno havendo tambeacutem paralelos com a obra de AristoacutetelesCf Greaves (1986 p 24-36)
11
em funccedilatildeo do poder de mover a alma podendo com isso alterar o caraacuteter do ouvinte por
outro Sexto apresenta diversos argumentos e exemplos que contrariam essa tese mostrando
que sendo as artes consideradas como tal em funccedilatildeo de sua utilidade e se a muacutesica for inuacutetil
ela deixa de ser uma arte Na segunda parte Sexto refuta diretamente os fundamentos da
ciecircncia musical a saber os conceitos de melodia e de ritmo atacando os conceitos de som e
de tempo Ao colocar em duacutevida os seus fundamentos o autor compromete todos os conceitos
teacutecnicos da ciecircncia da muacutesica que dependem deles9
No que diz respeito ao estudo da muacutesica antiga no Contra os Muacutesicos condensam-se
em poucas paacuteginas algumas das principais visotildees acerca da muacutesica na Antiguidade Junto do
Papiro de Hibeh10 e do De Musica de Filodemo11 esta eacute uma das raras obras onde a teoria
musical eacute abordada sob uma perspectiva criacutetica condenando as ideias difundidas entre a
maioria dos pensadores do periacuteodo a respeito do papel da muacutesica sendo por isso uma fonte
importante para os estudos sobre Muacutesica Antiga
Considerando-se a escassez de publicaccedilotildees que faccedilam referecircncia ao Contra os
Muacutesicos a traduccedilatildeo do texto grego apresentada neste trabalho primeira completa em liacutengua
portuguesa eacute acompanhada de um estudo que abrange algumas das principais teorias
musicais da Antiguidade e o contexto filosoacutefico da obra a fim de possibilitar a compreensatildeo
do Contra os Muacutesicos tanto sob a perspectiva filosoacutefica quanto sob a perspectiva
musicoloacutegica As notas agrave traduccedilatildeo aleacutem de esclarecerem questotildees especiacuteficas do texto
pontuam as relaccedilotildees entre os temas discutidos por Sexto Empiacuterico e outros textos importantes
sobre Muacutesica Grega Antiga
Nosso estudo comeccedila pelo modo como o conceito de mousike foi compreendido ao
9 Tal modelo argumentativo pode soar como um contrassenso agravequeles que natildeo estatildeo familiarizados com aFilosofia ceacutetica Em funccedilatildeo disso para se compreender o sentido dessa criacutetica eacute preciso abordar o Contraos Muacutesicos agrave luz dos objetivos do ceticismo pirrocircnico
10 O Papiro de Hibeh critica a ideia de que a muacutesica tem poderes eacuteticos e expressivos Nele haacute um discursoque foi proferido no Egito por um orador ateniense provavelmente na eacutepoca de Platatildeo De acordo comBarker (1989 p 183) o Papiro conteacutem um discurso dirigido contra os muacutesicos estruturado em trecircsargumentos O primeiro diz respeito agrave falta de base dos muacutesicos praacuteticos o segundo questiona a doutrina doethos e o terceiro aborda a falaacutecia existente entre as bases teoacutericas e a performance musical O oradorprocura refutar a noccedilatildeo de que algumas melodias nos fazem ser justos outras razoaacuteveis outras corretosoutras bravos e outras mais covardes Para refutar essa ideia ele afirma que ldquoas pessoas que vivem naaacuterea de Termoacutepilas cuja muacutesica eacute diatocircnica satildeo mais corajosas que os traacutegicos que cantam exclusivamentemelodias enarmocircnicas embora se pretendesse que esse gecircnero produzisse coragem Similarmente eleafirma muacutesica cromaacutetica natildeo produz covardiardquo (Lippman 1975 p 113) Adotando um tom retoacuterico eleataca a qualificaccedilatildeo daqueles que sustentam noccedilotildees sobre a influecircncia musical considerando que eles natildeosatildeo especialistas nem em muacutesica nem em argumentaccedilatildeo O orador os critica por tocarem mal e afirmaremcoisas ridiacuteculas como quando dizem que ldquocertas melodias satildeo relacionadas ao loureiro e outras agrave herardquoSegundo Lippman ldquoa referecircncia aos siacutembolos de Apolo e Dioniacutesio serve aqui para satirizar a descriccedilatildeo dasmelodias como eacuteticas e orgiaacutesticas A oraccedilatildeo expressa uma atitude cientiacutefica do especialista em muacutesica e eacuteaparentemente direcionada contra os filoacutesofosrdquo (Lippman 1975 p 114)
11 Sobre o De Musica de Filodemo ver seccedilatildeo 34
12
longo da Antiguidade tendo em vista evidenciar a dicotomia entre teoria e praacutetica musical e
as perspectivas eacutetica e teacutecnica abarcadas pela teoria Partimos da relaccedilatildeo entre o significado
cosmoloacutegico da teoria musical para os pitagoacutericos e o seu papel na educaccedilatildeo em funccedilatildeo da
teoria do ethos tal como formulada por Daacutemon Iremos nos ater inicialmente agrave exposiccedilatildeo
das ideias sobre a muacutesica apresentadas na Filosofia de Platatildeo e na discussatildeo dessas ideias
na Poliacutetica de Aristoacuteteles Mesmo sendo cronologicamente distantes da eacutepoca de Sexto
Empiacuterico concentramo-nos nessas ideias porque elas estatildeo invariavelmente presentes em
boa parte das obras posteriores
O pensamento musical de Platatildeo permanece ateacute hoje o arqueacutetipo para todas asconsideraccedilotildees acerca da doutrina musical da Antiguidade e deve ter influenciadoqualquer autor que escreveu sobre o tema que viveu depois do seacuteculo IV aC Platatildeofoi um dos primeiros se natildeo realmente o primeiro que escreveu longamente acercada muacutesica (Woodward 2009 p 102)
Enquanto Platatildeo enfatiza as raiacutezes pitagoacutericas de sua teoria musical e ao mesmo
tempo por incorporar as teorias damonianas a respeito do ethos musical manteacutem uma
posiccedilatildeo bastante restritiva no que diz respeito ao papel da muacutesica na sociedade Aristoacuteteles
limita-se a colocar em discussatildeo as diversas opiniotildees a respeito do papel da muacutesica
(dispensando as questotildees metafiacutesicas) voltando-se sobretudo aos efeitos do fenocircmeno
sonoro observaacuteveis no ouvinte O modo como Aristoacuteteles conduz sua investigaccedilatildeo a respeito
da muacutesica abre espaccedilo para que mais tarde seu disciacutepulo Aristoacutexeno mude o paradigma da
teoria musical
Em seguida concentramo-nos no pensamento musical de Aristoacutexeno e de Filodemo
Embora o nosso foco nesses autores se decirc em funccedilatildeo do uso de suas teorias no Contra os
Muacutesicos (ainda que ambos sejam criticados pelo ceacutetico) eacute importante destacar que na
historiografia musical Aristoacutexeno e Filodemo satildeo colocados ao lado de Sexto Empiacuterico no
que diz respeito a questatildeo da autonomia da muacutesica na Antiguidade
Esse conjunto de autores tem em comum o rompimento com as ideias difundidas e
sustentadas por Platatildeo e Aristoacuteteles rejeitando a relevacircncia dos possiacuteveis significados sociais
poliacuteticos ou matemaacuteticos da muacutesica Observa-se que apoacutes seacuteculos de domiacutenio da perspectiva
platocircnico-aristoteacutelica no que concerne agrave heteronomia do significado da muacutesica o pensamento
desses autores converge com uma visatildeo que considera a muacutesica enquanto forma autocircnoma12
12 A respeito da autonomia da muacutesica tal como aparece em Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico Bowmanconsidera que ldquoeles desafiam a ideia de que a muacutesica contribui de maneira significativa para coisas como ocaraacuteter humano mas sem avanccedilar ateacute a afirmaccedilatildeo da autossuficiecircncia musical Natildeo antes do surgimento dachamada muacutesica absoluta seacuteculos depois pode comeccedilar a emergir um verdadeiro formalismordquo(Bowmann 1998 p 136)
13
surgida no debate esteacutetico Iluminista a partir dos seacuteculos XVIII-XIX solidificada em 1854
com a publicaccedilatildeo da obra ldquoDo Belo Musicalrdquo de Eduard Hanslick13
Embora por diferentes razotildees Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico suspeitavamdas tentativas filosoacuteficas de conectar muacutesica ao que eles consideravam questotildeesextramusicais Na realidade fique com o que eacute dado ao ouvido com os fatosmusicais foi o que cada um argumentou Evidentemente nenhum deles visualizouuma gama de valores intrinsecamente musicais mas apenas procurou estreitar oacircmbito da relevacircncia musical para excluir coisas que sob sua perspectiva natildeotinham nada a ver com muacutesica (Bowmann 12112 p 140)
Aristoacutexeno promoveu uma sistematizaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica privilegiando seus
aspectos teacutecnicos que foi tomada como paradigma nos seacuteculos posteriores Enquanto a
harmonike para os pitagoacutericos era o estudo das relaccedilotildees matemaacuteticas ligadas agrave metafiacutesica na
medida em que a muacutesica passa a ser considerada a partir do proacuteprio fenocircmeno sonoro a
ciecircncia harmocircnica muda seu escopo a ponto de ser tomada como objeto de uma ciecircncia
autocircnoma14 Entretanto mesmo desvinculado do acircmbito considerado mais elevado do
conhecimento que eacute a metafiacutesica o estudo teoacuterico do fenocircmeno sonoro manteacutem-se em uma
posiccedilatildeo hieraacuterquica elevada em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical15 Tal sistema dogmaacutetico do ponto
de vista ceacutetico eacute refutado na segunda parte do Contra os Muacutesicos e por isso merece aqui
nossa atenccedilatildeo
Encerramos o primeiro capiacutetulo apresentando a refutaccedilatildeo do filoacutesofo epicurista
Filodemo agrave ideia de que a muacutesica eacute uacutetil em funccedilatildeo de ter por natureza o poder de afetar o
caraacuteter do ouvinte Ele rejeita a teoria do ethos musical afirmando que se a muacutesica tem algum
efeito em nossa alma isso se daacute em funccedilatildeo daquilo que noacutes associamos a ela que por si
mesma natildeo tem poder algum sobre nossa alma a natildeo ser o de distraiacute-la Essa criacutetica ao papel
eacutetico da muacutesica eacute muito parecida com aquela que eacute adotada por Sexto Empiacuterico que
apresenta argumentos semelhantes aos do De Musica em sua argumentaccedilatildeo Entretanto como
veremos nem por isso os epicuristas estatildeo livres de serem considerados dogmaacuteticos pelo
ceacutetico16
13 A perspectiva defendida por Hanslick conhecida como ldquoformalistardquo sustenta ldquoa crenccedila de que acompreensatildeo da natureza da muacutesica e de seu valor natildeo eacute encontrada em seus efeitos nos vislumbres que elapermite nos sentimentos que desperta ou ainda nas conexotildees com qualquer coisa fora dela mesma Seuvalor sob essa visatildeo eacute estritamente seu estritamente intriacutenseco localizado inteiramente dentro de umdomiacutenio puramente musicalrdquo (Bowman 1998 p 133)
14 Nesta pesquisa natildeo nos ateremos agraves diferenccedilas teacutecnicas entre os dois modos de abordar a ciecircncia harmocircnica15 A observaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical eacute fundamental para a compreensatildeo da
refutaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave ciecircncia da muacutesica16 Eles satildeo considerados dogmaacuteticos porque sustentam firmemente a tese de que a muacutesica natildeo eacute uacutetil para a
felicidade A relaccedilatildeo entre as ideias apresentadas por Filodemo no De Musica e a primeira parte do Contraos Muacutesicos seraacute analisada na seccedilatildeo 52
14
Dado o panorama histoacuterico do conceito de mousike apresentado no capiacutetulo inicial que
teve como intuito evidenciar sua amplitude e esclarecer as diversas facetas do conceito que
estaacute em jogo precisamos nos voltar ainda agrave filosofia ceacutetica para compreendermos as razotildees
pelas quais a mousike tal como eacute comumente concebida eacute refutada por Sexto Empiacuterico
A Filosofia tradicionalmente eacute relacionada agrave busca pela verdade e quando falamos
em Filosofia antiga associamos rapidamente essa busca a filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles
Mas ainda na Antiguidade houve quem desconfiasse da possibilidade de se apreender a
verdade sobre as coisas O ceticismo pirrocircnico eacute uma dessas correntes filosoacuteficas que
questionam tal possibilidade Primeiramente deve-se enfatizar que o termo ldquoceticismordquo natildeo
tem a ver com descrenccedila mas com investigaccedilatildeo do grego skepsis17 Tomando uma definiccedilatildeo
apresentada por Brochard (2009 p 20) o verdadeiro ceacutetico ldquoeacute aquele que de propoacutesito
deliberado e por razotildees gerais duvida de tudo exceto dos fenocircmenos e se contenta com a
duacutevidardquo18
De acordo com Sexto Empiacuterico o ceticismo pirrocircnico tem por objetivo o combate agrave
precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de se sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe na
realidade externamente agraves nossas representaccedilotildees O ceacutetico observa que as vaacuterias teorias
desenvolvidas pelos filoacutesofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que natildeo
haacute um criteacuterio que nos permita distinguir qual delas eacute verdadeira Em funccedilatildeo disso para cada
afirmaccedilatildeo dogmaacutetica ele apresenta uma afirmaccedilatildeo oposta e o igual peso das teorias colocadas
em oposiccedilatildeo leva-o a um estado de suspensatildeo do juiacutezo19
Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Ciacuteclicos20 os ceacuteticos
tambeacutem se depararam com uma postura dogmaacutetica Sexto Empiacuterico propotildee um ataque agraves
bases de cada uma das disciplinas (mathemata) ensinadas pelos especialistas O Contra os
17 Para uma introduccedilatildeo geral ao Ceticismo Antigo ver Brochard (2009)18 O ceticismo pirrocircnico eacute assim nomeado ldquoa partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de
forma mais significativa do que seus predecessoresrdquo (HP I 3) Pirro (360 ndash 270 aC) contemporacircneo deAlexandre Magno e de Aristoacuteteles eacute tomado como fundador dessa tradiccedilatildeo ceacutetica natildeo deixou nada escritomas seu modo de vida e seus ensinamentos serviram como base para essa corrente do ceticismo Oceticismo pirrocircnico foi desenvolvido posteriormente sobretudo por meacutedicos a partir do primeiro seacuteculo daEra Cristatilde A obra de Sexto Empiacuterico eacute uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrocircnico Sobre suabiografia pouco se sabe Supotildee-se a partir de seus escritos que ele foi um meacutedico da escola empiacuterica demedicina e que viveu provavelmente por volta da segunda metade do seacuteculo II dC mas natildeo se sabe ondeCf Floridi (2002 p 3-7) Sobre Pirro ver Brochard (2009 p 65-88) sobre a escola ceacutetica ver Brochard(2009 p 235-247)
19 A obra principal de Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas eacute dividida em trecircs livros o primeiro visafazer uma apresentaccedilatildeo geral do que eacute o ceticismo (HP I) e os seguintes procuram ldquofazer objeccedilotildees a cadaparte da assim chamada Filosofiardquo (HP I 6) As partes da Filosofia a que Sexto se refere satildeo a Loacutegica (HPII) a Fiacutesica (HP III 1-167) e a Eacutetica (HP III 168-281) Elas tambeacutem satildeo abordadas no Contra osDogmaacuteticos composto pelos livros Contra os Loacutegicos (M VII-VIII) Contra os Fiacutesicos (M IX-X) e Contraos Eacuteticos (M XI)
20 Os Estudos Ciacuteclicos eram o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educaccedilatildeo propedecircutica para aFilosofia Ver seccedilatildeo 42
15
Professores (M I-VI) destina-se aos professores dessas disciplinas21 que faziam parte dos
Estudos Ciacuteclicos entre elas a muacutesica Mas Sexto natildeo nos daacute indicaccedilotildees muito precisas a
respeito do que satildeo para ele os Estudos Ciacuteclicos porque sua exposiccedilatildeo ldquodirige-se agravequeles
que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nessas questotildeesrdquo (M I 7) Em funccedilatildeo disso exploramos
o significado dessa expressatildeo em outras fontes do periacuteodo mostrando seu papel fundamental
para a compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves tekhnai tendo em vistao que os Estudos
Ciacuteclicos abrangem especificamente o sentido de tekhne que Sexto Empiacuterico potildee em jogo
Para compreendermos os motivos que levam Sexto Empiacuterico a empreender um ataque
(quase fervoroso) agraves disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos teremos de observar o Contra os
Professores sob uma dupla perspectiva Por um lado devemos atentar ao fato de que os
conteuacutedos discutidos natildeo satildeo refutados por si mesmos mas enquanto disciplinas que fazem
parte de um ciclo de Estudos ensinadas de acordo com determinados meacutetodos e crenccedilas Por
outro devemos observar os motivos pelos quais a refutaccedilatildeo a essas disciplinas faz-se
necessaacuteria dentro do ceticismo
Sexto Empiacuterico parece lidar com uma dicotomia entre teoria e praacutetica do conhecimento
teacutecnico na Antiguidade22 Ele parte da definiccedilatildeo23 de tekhne enquanto um conhecimento que
seja uacutetil para a vida Sua refutaccedilatildeo eacute direcionada exclusivamente ao acircmbito teoacuterico porque
este para ele estaacute impregnado de dogmatismo e natildeo parece cumprir os requisitos da
definiccedilatildeo de tekhne aprovada pelo ceacutetico visto que haacute um sentido ligado ao criteacuterio de accedilatildeo
deste em que o conhecimento teacutecnico natildeo eacute considerado dogmaacutetico Buscamos explicar
como o ceacutetico refuta as tekhnai no Contra os Professores como um todo e porque ele faz isso
a fim de resgatar por fim a originalidade do pensamento ceacutetico em relaccedilatildeo agraves tekhnai Ele
considera vaacutelido apenas o acircmbito praacutetico de cada uma das tekhnai justamente aquele que era
colocado em um niacutevel inferior pelos pensadores da Antiguidade
Na terceira seccedilatildeo analisamos de modo detalhado o texto do Contra os Muacutesicos
Partimos da distinccedilatildeo entre os sentidos de muacutesica que Sexto Empiacuterico apresenta Opotildee teoria
e praacutetica musical e restringe sua criacutetica agrave primeira Seu texto abrange dois aspectos da teoria
musical para os quais ele utiliza tambeacutem dois tipos de argumentaccedilatildeo No que diz respeito ao
primeiro a discussatildeo acerca da utilidade da muacutesica investigamos o uso que Sexto Empiacuterico
21 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido por ldquoensinamentordquo ldquoconteuacutedo de aprendizadordquo ldquodisciplinardquo Nestetexto utilizamos tambeacutem os termos ldquociecircncias especializadasrdquo (expressatildeo que aparece tambeacutem na traduccedilatildeode Bury) e ldquoartesrdquo porque mathemata nesse caso satildeo os ensinamentos a respeito de determinadas ciecircnciasou artes
22 Essa hierarquia entre teoria e praacutetica pode ser observada em todas as aacutereas do conhecimento especializado23 A definiccedilatildeo de uma tekhne em funccedilatildeo de sua utilidade eacute bastante comum Sexto Empiacuterico parte
assumidamente da definiccedilatildeo dada pelos filoacutesofos estoicos que eacute muito parecida com a de Aristoacuteteles Ver p54
16
faz de argumentos que satildeo semelhantes aos de Filodemo e sustentamos a tese de que mesmo
ao tratar da utilidade da muacutesica o ceacutetico permanece dentro do escopo da teoria musical No
que concerne agrave segunda parte da obra apresentamos alguns conceitos teacutecnicos da ciecircncia
harmocircnica que satildeo refutados pelo autor e buscamos explicar os argumentos utilizados Por
fim evidenciamos que o interesse ceacutetico natildeo estava de modo algum voltado agraves questotildees
musicais mas ao combate agrave precipitaccedilatildeo dos dogmaacuteticos em afirmar teses sobre a natureza da
muacutesica
Texto grego e traduccedilatildeo
Eacute escasso o nuacutemero de traduccedilotildees modernas do Contra os Professores Temos a
espanhola de J B Cavero a italiana de A Russo a francesa de D Delattre e a inglesa de R
G Bury24 Especificamente do Contra os Muacutesicos haacute uma traduccedilatildeo parcial em liacutengua
portuguesa no artigo de A R Pereira (1996) uma francesa de C Ruelle e uma em liacutengua
inglesa de D D Greaves
A ediccedilatildeo elaborada por Greaves apresenta a traduccedilatildeo comentada da obra e uma
introduccedilatildeo que abrange as principais fontes de Sexto Empiacuterico Aleacutem disso as notas de
rodapeacute da versatildeo relacionam os argumentos do autor com as suas fontes servindo como
referecircncia para o presente trabalho
Para nossa traduccedilatildeo tomamos como base a ediccedilatildeo do texto grego tal como
apresentada por Greaves devido ao seu extenso trabalho de comparaccedilatildeo de manuscritos As
exceccedilotildees satildeo informadas em notas agrave traduccedilatildeo
24 Sobre a transmissatildeo da obra de Sexto Empiacuterico manuscritos e ediccedilotildees latinas ver Floridi (2002)
17
2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
21 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
O Contra os Muacutesicos inicia com a distinccedilatildeo entre os sentidos teoacuterico praacutetico e
metafoacuterico do termo ldquomuacutesicardquo Ele eacute utilizado no sentido teoacuterico enquanto ldquociecircncia que lida
com melodias notas e composiccedilatildeo riacutetmica e coisas semelhantesrdquo (M VI 1) praacutetico em
relaccedilatildeo agrave habilidade na execuccedilatildeo de instrumentos tal como quando chamamos
instrumentistas de ldquomuacutesicosrdquo e por fim no sentido metafoacuterico tomado como adjetivo
quando algo eacute considerado ldquomusicalrdquo Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma
Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute apenas nesse sentido que ele pretende refutar a
muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o mais completordquo (M VI 3)
A refutaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica estrutura-se em dois momentos principais no
primeiro haacute a criacutetica agraves opiniotildees a respeito do papel psicagoacutegico da muacutesica e no segundo a
refutaccedilatildeo de aspectos teacutecnicos da teoria musical25
22 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
No que concerne agrave discussatildeo sobre a utilidade da muacutesica Sexto argumenta contra as
opiniotildees comuns acerca dela concentrando-se sobretudo na refutaccedilatildeo agrave teoria do ethos
musical semelhante agravequela feita pelos epicuristas que a consideravam um conteuacutedo natildeo
necessaacuterio para atingir a felicidade (eudaimonia)
221 As opiniotildees comuns acerca da utilidade da muacutesica (sect 7-18) e sua refutaccedilatildeo (sect 19-28)
a) O autor apresenta exemplos que podem ser encontrados em diversas fontes da
Antiguidade sobre o modo como a muacutesica afeta a alma Esses exemplos estatildeo ligados agrave
teoria do ethos musical e defendem a utilidade da muacutesica para refrear as paixotildees e promover a
virtude
b) Contra isso ele faz uma refutaccedilatildeo geral agrave ideia de que a muacutesica tem uma
25 Cf Greaves (1986 p 19-24)
18
capacidade inerente de afetar a alma e em seguida refuta especificamente cada um dos
exemplos mencionados
222 A utilidade da muacutesica em relaccedilatildeo agrave paideia agrave Filosofia e ao ethos (sect 29-30) e sua
refutaccedilatildeo (sect 31-37)
a) Sexto apresenta argumentos a respeito da importacircncia da muacutesica em sua relaccedilatildeo
com a paideia a Filosofia e novamente o ethos tratando da relaccedilatildeo entre a muacutesica e a
Filosofia do papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes da relaccedilatildeo entre a harmonia e
a ordem do cosmos da necessidade da educaccedilatildeo musical e da inerecircncia das qualidades eacuteticas
na melodia (sect 29-30)
b) Para tais argumentos eacute apresentada uma contra-argumentaccedilatildeo que visa refutar a
necessidade dessas relaccedilotildees (sect31-37)
23 REFUTACcedilAtildeO AOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
Sexto Empiacuterico apresenta alguns dos principais conceitos da teoria musical e
argumenta contra a existecircncia dos seus princiacutepios baacutesicos
231 Os conceitos de som nota intervalo ethos (sect 38-51) e argumentaccedilatildeo contra a existecircncia
do som (sect 52-58)
a) Sexto aborda a melodia (sect 38-51) partindo de uma definiccedilatildeo de muacutesica (sect 38)
muito semelhante agrave de Aristoacutexeno Aquele distingue entre um som musical e um som natildeo
musical Ao conceito de melodia estatildeo ligados os de intervalo e de ethos Sexto considera que
o ldquocaraacuteter eacute um certo gecircnero de melodiardquo (M VI 48) e visto que os intervalos nascem da
uniatildeo das notas o caraacuteter tambeacutem surge delas
b) Visto que natildeo haacute caraacuteter (ethos) musical sem notas e as notas satildeo ldquosom meloacutedicordquo
Sexto para refutar os conceitos da teoria musical argumenta contra a existecircncia do som
19
232 A ciecircncia do ritmo e os argumentos contra a existecircncia do tempo (sect 59-68)
a) Apresentaccedilatildeo do conceito de ritmo enquanto quantidade de tempo
b) Para refutar sua existecircncia Sexto apresenta algumas definiccedilotildees que entram em
conflito com aquela apresentada primeiro tendo em vista que o conceito de tempo estaacute
contido na definiccedilatildeo de ritmo26 Se o tempo natildeo pode ser definido deixam de ser vaacutelidos
todos os conceitos de teoria musical que dependem deste conceito
26 No que concerne ao ethos riacutetmico a melodia tal como tratada por Sexto jaacute abrange tambeacutem o ritmo Dessemodo a negaccedilatildeo do ethos na melodia implica a negaccedilatildeo dos ethe riacutetmicos
20
3 MOUSIKE
31 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO
O conceito de mousike estaacute presente nas mais diversas aacutereas do pensamento na
Antiguidade como a medicina astronomia religiatildeo filosofia poesia meacutetrica danccedila e
pedagogia
O termo na verdade deriva da palavra Mousa e para os antigos gregos durantemuito tempo ele designou um complexo de faculdades espirituais e intelectuais quehoje noacutes chamamos de lsquoartesrsquo e que estavam sob o patronato das Musas emespecial a poesia liacuterica que era uma mescla daquilo que noacutes entendemos por muacutesicae poesia (Rocha 2009 p 139)
Inicialmente enquanto fenocircmeno sensiacutevel a mousike abrangia palavra harmonia e
ritmo (Platatildeo Rep 398 C) e natildeo havia uma palavra que designasse exclusivamente a ldquoarte
dos sonsrdquo (o termo soacute passou a ter esse significado no seacuteculo IV aC) Aleacutem disso a mousike
era abordada tambeacutem sob uma perspectiva metafiacutesica
Se consideramos o conceito de mousike como um desses conceitos de grandeamplitude podemos supor sua compreensatildeo em duas instacircncias no acircmbitoparticular quando se referindo agraves especificidades da linguagem musical e geralultrapassando esse niacutevel e se entrelaccedilando aos significados de outros conceitos demesmo patamar como harmonia cosmos e logos (Tomaacutes 2002 p38)
O conceito de mousike deve ser compreendido sob essas duas perspectivas enquanto
fenocircmeno sonoro (palavra harmonia e ritmo e depois especificamente arte dos sons) e
enquanto conceito metafiacutesico ldquodaiacute que ele natildeo enuncie apenas o que soa mas tambeacutem
aquilo que permite o soar ou seja as leis de organizaccedilatildeo um princiacutepio universal que
subsume toda particularidaderdquo (Tomaacutes 2002 p 38)
A teorizaccedilatildeo sobre a mousike comeccedila com a escola pitagoacuterica no seacuteculo VI aC Para
os pitagoacutericos27 a teoria musical em seu sentido lato tem significado cosmoloacutegico abrange
as leis de organizaccedilatildeo o princiacutepio universal que rege o cosmos e natildeo estaacute diretamente ligada
ao fenocircmeno sonoro Em seu sentido estrito trata-se do fenocircmeno sonoro que imita no
27 Eacute importante enfatizar que o termo ldquopitagoacutericosrdquo abrange um conjunto de ideias que natildeo diz respeitoestritamente a Pitaacutegoras e seus seguidores mas nomeia teoacutericos que no que concerne agrave harmonike tinhamldquocertas visotildees e atitudes em comumrdquo Cf Barker (1989 p 5)
21
mundo fenomecircnico a harmonia que rege todo o cosmos28
Nos fragmentos de Filolau de Crotona filoacutesofo da escola pitagoacuterica do seacuteculo V aC
lemos que a ldquoHarmonia vem a ser em todos os sentidos a partir dos opostos pois harmonia eacute
uniatildeo das coisas heterogecircneas e concordacircncia das coisas que estatildeo em desacordordquo29 Teacuteon de
Esmirna apresenta a mesma definiccedilatildeo referindo-se aos ldquoPitagoacutericos os quais foram em
muitas coisas seguidos por Platatildeordquo definindo a mousike com os mesmos conceitos de
harmonia30
Anderson (1966 p 37) chama atenccedilatildeo para um dos excertos de Filolau que segundo
ele mostra ldquoa importacircncia da teoria do Nuacutemero na explicaccedilatildeo da muacutesica e todas outras
atividadesrdquo
O Nuacutemero ajustando todas as coisas dentro da alma atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevelas faz reconheciacuteveis e comparaacuteveis umas com as outras Vocecirc pode ver a naturezado Nuacutemero e seu poder em accedilatildeo natildeo soacute na existecircncia supernatural e divinamastambeacutem em todas as atividades e palavras humanas ambos atraveacutes de todaproduccedilatildeo teacutecnica e tambeacutem na Muacutesica31
As investigaccedilotildees a respeito da muacutesica feitas pelos pitagoacutericos natildeo estavam
diretamente voltadas ao fenocircmeno sonoro As pesquisas acerca da harmonike ligam-se agraves
ideias de que ldquoo universo eacute ordenado que a perfeiccedilatildeo da alma humana depende de sua
apreensatildeo e de assimilar a si proacutepria a essa ordem e que a chave para uma compreensatildeo de
sua natureza reside no Nuacutemerordquo (Barker 1989 p6)
A mousike enquanto fenocircmeno sonoro soacute entra em discussatildeo para os pitagoacutericos
porque as relaccedilotildees intervalares percebidas podem ser expressas tambeacutem em foacutermulas
numeacutericas simples De acordo com Barker
Assim essas relaccedilotildees harmocircnicas fundamentais correspondem a relaccedilotildeesmatemaacuteticas fundamentais e evidentemente elegantes e incentivam a ideia de quetodos os intervalos propriamente harmocircnicos recebem seu status musical por causade suas propriedades matemaacuteticas (hellip) A ordem encontrada na muacutesica eacute umaordem matemaacutetica os princiacutepios da coerecircncia de um sistema harmocircnico coordenadosatildeo princiacutepios matemaacuteticos E visto que esses satildeo princiacutepios que geram uma belezaperceptiacutevel e um sistema de organizaccedilatildeo satisfatoacuterio talvez sejam essas mesmasrelaccedilotildees matemaacuteticas ou alguma extensatildeo delas que subjazem agrave admiraacutevel ordem
28 Cf Tomaacutes (2002 p 17)29 Filolau eacute citado em Nicocircmaco Introductio Arithmetica (II 191 TLG) ldquoἁρμονία δὲ πάντως ἐξ ἐναντίων
γίνεται ἔστι γὰρ ἁρμονία πολυμιγέων ἕνωσις καὶ δίχα φρονεόντων συμφρόνησιςrdquo30 Teacuteon de Esmirna De utilitate mathematicae (p 12 10 TLG) ldquoκαὶ οἱ Πυθαγορικοὶ δέ οἷς πολλαχῆι ἕπεται
Πλάτων τὴν μουσικήν φασιν ἐναντίων συναρμογὴν καὶ τῶν πολλῶν ἕνωσιν καὶ τῶν δίχα φρονούντωνσυμφρόνησινrdquo
31 Fr 44 B 11 (DK) apud Anderson (1966 p 37)
22
do cosmos e agrave ordem agrave qual a alma humana pode aspirar (Barker 1989 p 6)32 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA
Apesar da conexatildeo entre muacutesica e metafiacutesica implicada no conceito de mimesis de
acordo com Lippman (1975 p 88) ldquoo pensamento antigo estaacute focado antes nos valores
poliacuteticos e educacionais da muacutesica sonora do que na sua ontologiardquo Embora ambas estejam
baseadas em uma concepccedilatildeo ampla de mousike enquanto a metafiacutesica da harmonia privilegia
o estudo da harmonike o papel psicagoacutegico32 da muacutesica estaacute estritamente ligado ao fenocircmeno
sensiacutevel e por isso ligado ao conceito de mousike enquanto palavra harmonia e ritmo33
No que diz respeito ao papel da muacutesica na educaccedilatildeo grega muito embora os relatos
apareccedilam na literatura grega desde Homero34 foi com Daacutemon que a teoria sobre o papel
psicagoacutegico da muacutesica ganhou forma De acordo com Anderson
em grande parte a histoacuteria do ethos na Greacutecia eacute ela mesma um enigma masencontramos sugestotildees da teoria em autores do seacuteculo V Daacutemon natildeo inventou ateoria do ethos ele a expandiu e codificou a um grau notaacutevel e talvez incomparaacutevel(Anderson 1966 p 42)
A respeito da teoria atribuiacuteda a ele temos apenas testemunhos posteriores Daacutemon eacute
considerado um sofista do final do seacuteculo V aC para ele ldquomuacutesica e danccedila surgem
necessariamente quando a alma eacute movida de algum modo muacutesicas e danccedilas belas e livres
criam uma alma semelhante e as de tipo contraacuterio criam um tipo contraacuterio de almardquo 35 Cada
tipo de muacutesica variando em suas harmoniai e ritmos tem o poder de representar diferentes
qualidades do caraacuteter virtudes e viacutecios36 Por isso segundo os relatos de Platatildeo e Ateneu
32 Conceito formado a partir dos termos psykhe (alma) e agoge (caminho) psicagogia significa literalmenteldquoconduccedilatildeo da almardquo Em Luciano por exemplo o termo estaacute ligado agrave conduccedilatildeo dos mortos para o HadesEm rituais religiosos significa encantar conduzir as almas dos mortos e dos vivos O conceito de psicagogiano contexto educacional aparece no Fedro de Platatildeo ligado agrave retoacuterica Primeiramente Soacutecrates pergunta sea arte da oratoacuteria natildeo seria uma psicagogia ldquoum modo de conduzir as almas por intermeacutedio do discursordquo(Platatildeo Fedro 261 A) Ao que ele afirma que ldquovisto que a funccedilatildeo proacutepria do discurso eacute a de ser um modode conduzir as almas uma psicagogia aquele que quer ser um dia um orador de talento devenecessariamente saber da alma as formas que tem ()rdquo (Platatildeo Fedro 271 C-D) Do mesmo modotambeacutem a mousike teria o poder de conduzir a alma Segundo Moutsopoulos (1959 p 259) ldquoo mecanismopelo qual a muacutesica se introduz na alma exposto no Timeu ilustra o modo de acordo com o qual Platatildeo soba influecircncia das doutrinas hipocraacuteticas considera o ritmo dos movimentos corporais como provocador deum apaziguamento alegre agrave alma excitada ou em estado de distuacuterbiordquo No que diz respeito agrave muacutesica apsicagogia eacute o ldquoresultado exercido sobre a alma pelo bom ritmo e pela simetriardquo (Moutsopoulos 1959 p261) Ver Platatildeo Timeu (80 A-B) a respeito da muacutesica Goacutergias (82 B) a respeito da poesia Para maisreferecircncias ver Moutsopoulos (1959 p 259-61)
33 Cf Tomaacutes (2002 p 41) Lippman (1975 p 87-90)34 Cf Homero Iliacuteada (I 472 601) Odisseia (VIII 44-45 XXII 344)35 Fr 37 B 6 apud Anderson (1966 p 42)36 Cf Aristoacutefanes Tesmoforiantes (146) Aristides Quintiliano De Mus (8025)
23
para Daacutemon a muacutesica tem poder moral e as mudanccedilas na muacutesica produzem mudanccedilas nas
estruturas sociais e poliacuteticas37
Se a muacutesica eacute considerada resultado de certo movimento da alma eacute a natureza da
alma que determina a natureza dos movimentos que ela cria e daqueles com os quais ela teraacute
afinidade quando forem ouvidos (Cf Barker 1984 p 169)38 Sobre isso Aristides
Quintiliano considera que nas harmoniai transmitidas por Daacutemon as alteraccedilotildees nas
sequecircncias de notas acontecem porque cada harmonia diferente era uacutetil39 de acordo com o
caraacuteter de cada alma particular
Tais ideias sobretudo no que diz respeito ao poder da muacutesica e sua funccedilatildeo na
sociedade satildeo levadas agraves uacuteltimas consequecircncias na Repuacuteblica de Platatildeo40
deve-se ter cuidado com a mudanccedila para um novo gecircnero musical que pode pocircrtudo em risco Eacute que nunca se abalam os gecircneros musicais sem abalar as mais altasleis da cidade como Dacircmon afirma e eu creio (Platatildeo Rep 424 C)
321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo
Na obra de Platatildeo pode-se observar a estreita relaccedilatildeo entre os dois sentidos do
conceito de mousike O filoacutesofo tal como os pitagoacutericos considera a harmonike sob uma
perspectiva matemaacutetica desvinculada do fenocircmeno sonoro Natildeo obstante o conceito
metafiacutesico de harmonia eacute a chave para a compreensatildeo da teoria do ethos em sua relaccedilatildeo com
a educaccedilatildeo A muacutesica teria o poder de recuperar a harmonia da alma porque imita a harmonia
divina do universo nas almas dos mortais A muacutesica por sua relaccedilatildeo com a harmonia eacute a arte
que tem influecircncia direta no caraacuteter (ethos) do ouvinte penetrando no iacutentimo de sua alma
Platatildeo ocupa-se do desenvolvimento de uma paideia que tem o objetivo de harmonizar a
alma Daiacute a importacircncia para Platatildeo de definir na Repuacuteblica e nas Leis qual o ethos de cada
37 Platatildeo Rep (424 C) Ateneu (628 C)38 A explicaccedilatildeo de como essa mudanccedila acontece se baseia na ideia de que harmoniai de diferentes ethe satildeo
produzidas pela mudanccedila de posiccedilatildeo das notas intermediaacuterias do tetracorde de acordo com a finalidade quese classificava como feminina ou masculina
39 O conceito de utilidade eacute central para a compreensatildeo da mousike enquanto uma das disciplinas dos EstudosCiacuteclicos e tambeacutem para a compreensatildeo da refutaccedilatildeo ceacutetica ao papel psicagoacutegico da muacutesica
40 Embora os reflexos da teoria damoniana do ethos sejam evidentes na obra de Platatildeo segundo Anderson(1966 p 40) ldquomostra-se muito difiacutecil infelizmente lidar com a noccedilatildeo de similaridade enquanto um meioefetivo de construir o caraacuteter atraveacutes da melodia Enquanto alguma conexatildeo com a mimesis parece ser certahaacute boas razotildees para se tratar a similaridade (homoiotes) como um princiacutepio originalmente damonianoligeiramente diferente da mimesis platocircnica que o incorporourdquo A delimitaccedilatildeo das particularidades da teoriade Daacutemon que foram absorvidas por Platatildeo foge ao escopo de nossa investigaccedilatildeo
24
harmonia e de cada ritmo41
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta o tipo de educaccedilatildeo que algueacutem deve receber antes de
estudar Filosofia As ciecircncias matemaacuteticas que devem ser ensinadas satildeo aritmeacutetica
geometria astronomia e harmonike42 Essa uacuteltima tem uma relaccedilatildeo estreita com a concepccedilatildeo
pitagoacuterica43 Nesse sentido para Platatildeo qualquer arte quando privada do nuacutemero e da
medida eacute deixada agrave mercecirc dos sentidos e segundo ele a muacutesica eacute um claro exemplo disso 44
Eacute esse para ele o caso dos teoacutericos empiristas que em oposiccedilatildeo aos pitagoacutericos tomavam
somente o fenocircmeno sonoro como base para a ciecircncia musical medindo uns pelos outros os
acordes e os sons que satildeo ouvidos45
Assim como para os pitagoacutericos para Platatildeo a harmonike estaacute ligada agrave astronomia e
soacute diz respeito agrave muacutesica na medida em que os intervalos musicais podem ser descritos como
relaccedilotildees matemaacuteticas
Eacute provaacutevel que assim como os olhos foram moldados para a astronomia os ouvidosforam formados para o movimento harmocircnico e as proacuteprias ciecircncias satildeo irmatildes umada outra tal como afirmam os Pitagoacutericos e noacutes oacute Glaacuteucon concordamos (PlatatildeoRep 530 D)
Mesmo assim segundo Barker o estudo da harmonike eacute fundamental para a
compreensatildeo dos efeitos da muacutesica
O propoacutesito da harmonike na Repuacuteblica Livro VII e no Timeu eacute nos guiar emdireccedilatildeo agrave compreensatildeo dos princiacutepios que governam a estrutura da realidade comoum todo e fornecer uma forma de entendimento que iraacute nos ajudar a restaurarnossas proacuteprias almas distorcidas agrave sua perfeiccedilatildeo original (Barker 2007 p 311)
Embora a ciecircncia harmocircnica seja um estudo abstrato distante do fenocircmeno sonoro e
por isso mais elevado satildeo os efeitos da muacutesica na alma do homem e consequentemente na
sociedade que tambeacutem para Platatildeo importam na vida praacutetica
No Timeu o filoacutesofo relaciona estruturas harmocircnicas agrave constituiccedilatildeo do universo e da
41 A Repuacuteblica e as Leis satildeo as principais fontes sobre o papel psicagoacutegico da muacutesica na Filosofia de PlatatildeoEssas obras tratam de uma sociedade ideal e muitas das coisas condenadas por Platatildeo faziam parte darealidade de sua eacutepoca Assim eacute tanto a partir das teorias discutidas por Platatildeo (o pitagorismo e a teoria doethos musical) quanto em funccedilatildeo de suas criacuteticas agrave muacutesica de seu tempo que podemos compreenderquestotildees importantes sobre o papel da muacutesica e a relevacircncia da teoria do ethos musical
42 Satildeo essas as disciplinas que vieram a compor os Estudos Ciacuteclicos ainda na Antiguidade e posteriormenteo quadrivium das Artes Liberais Ver seccedilatildeo 42
43 Muito embora no livro VII Platatildeo critique os pitagoacutericos por natildeo abstraiacuterem o suficiente do acircmbito sonoro44 Cf Platatildeo Filebo (55 E ndash 56 A)45 Cf Platatildeo Rep (531 A) Aristoacutexeno algum tempo depois estabeleceu uma teoria musical baseada no
fenocircmeno sonoro mas com um rigor cientiacutefico muito maior do que o dos empiricistas criticados por Platatildeo
25
alma humana A muacutesica (enquanto fenocircmeno sonoro) foi dada para noacutes pelas Musas em
funccedilatildeo da harmonia que se move de maneira anaacuteloga agraves nossas almas e natildeo em funccedilatildeo do
prazer irracional tal como de acordo com o autor se considerava em sua eacutepoca A muacutesica
serviria para auxiliar o movimento da alma em direccedilatildeo agrave ordem e agrave concordacircncia quando
essa tivesse perdido sua harmonia46
Se a muacutesica tem essa relaccedilatildeo direta com o movimento da alma uma muacutesica ruim
levaria agrave discordacircncia e confusatildeo na alma Por oposiccedilatildeo quando os sons satildeo executados
harmonicamente eles ldquoproporcionam prazer (hedone) aos brutos e felicidade (euphrosyne)
aos inteligentes porque nos movimentos mortais se produz uma imitaccedilatildeo da harmonia
divinardquo (Platatildeo Ti 80B)47 De acordo com Barker as combinaccedilotildees musicais de sons ldquonatildeo
podem dar prazer [intelectual] agraves pessoas que falham em apreciar a conexatildeo desses padrotildees
sonoros com a harmonia da Alma do Mundordquo (Barker 2007 p 326)
Contudo o prazer irracional ou intelectual natildeo eacute o que define o ethos musical Os
homens tecircm prazer com as muacutesicas a que eles estatildeo acostumados Acontece que a alma eacute
suscetiacutevel agraves melodias sejam ldquoboasrdquo ou ldquoruinsrdquo Para o filoacutesofo a muacutesica que produz prazer
irracional aquela que ldquodesarmonizardquo a alma faz os homens piores Jaacute a muacutesica que
harmoniza a alma produz homens melhores48
Se para Platatildeo ldquoa verdadeira funccedilatildeo de toda educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento da alma e
harmonizaccedilatildeo de seus elementosrdquo (Barker 1984 p 127) ela deve abranger o corpo e a alma
Por isso na Repuacuteblica Platatildeo divide-a em duas partes a saber a ginaacutestica e a mousike
(enquanto veiacuteculo da poesia)
Depois da muacutesica eacute na ginaacutestica que se deve educar os jovens (hellip) A mim natildeo meparece ser o corpo por perfeito que seja que pela sua excelecircncia49 torne a almaboa mas pelo contraacuterio a alma boa pela sua excelecircncia permite ao corpo ser omelhor possiacutevel (Platatildeo Rep 403 C - D)
Platatildeo define a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne) como os objetivos
eacuteticos da educaccedilatildeo50 A educaccedilatildeo pela muacutesica e pela ginaacutestica natildeo tem como finalidade o
corpo mas se daacute em funccedilatildeo da alma A ginaacutestica gera no homem certa rusticidade que
46 Cf Platatildeo Ti (47 C - E) Anderson (1966 p 60)47 Podemos distinguir entre hedone como o prazer irracional e euphrosyne (traduzido aqui por ldquofelicidaderdquo)
enquanto prazer intelectual 48 Cf Platatildeo Leis (802 C - D) Ti (43 A ndash 44 C) Ver tambeacutem Barker (1984 p 124)49 ldquoExcelecircnciardquo traduz ldquoareterdquo comumente traduzido tambeacutem por ldquovirtuderdquo50 O desenvolvimento de tais virtudes na alma por meio da muacutesica seraacute alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica na primeira
parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37)
26
quando bem educada vem a ser bravura e a muacutesica certa brandura que bem educada tem
uma natureza filosoacutefica sendo temperada e ordenada51 Essas qualidades satildeo consideradas
necessaacuterias e devem ser harmonizadas A alma que as potildee em harmonia eacute considerada
temperante e corajosa e a que natildeo as potildee eacute covarde e ruacutestica
No que concerne agrave muacutesica ao discutir a educaccedilatildeo no livro III da Repuacuteblica Platatildeo
apresenta o modo como as harmoniai e os ritmos refletem diferentes disposiccedilotildees da alma e
afirma em funccedilatildeo disso seu poder de afetar o desenvolvimento do caraacuteter Cada harmonia
determina um padratildeo de afinaccedilatildeo para o instrumento e para a voz que traz consigo certos
atributos eacuteticos ldquoimitando disposiccedilotildees psicoloacutegicas desejaacuteveis ou indesejaacuteveis e moldando a
alma do ouvinte de acordo com elasrdquo (Barker 2007 p 309)
Em vista desse poder da muacutesica toda praacutetica musical que pudesse corromper a alma
deveria ser banida Tais restriccedilotildees relacionam-se aos compositores considerados ldquomodernosrdquo
na eacutepoca em que Platatildeo vivia52 Nas Leis o filoacutesofo condena os compositores que misturam
palavras melodias e ritmos de caraacuteteres opostos imitam sons diversos afastam o ritmo da
melodia53 (recitando os textos dentro de uma meacutetrica mas sem um contorno meloacutedico) e
afastam o ritmo e a melodia da palavra (praacutetica de muacutesica instrumental) Em suma eles usam
os instrumentos musicais para outros propoacutesitos aleacutem do acompanhamento da danccedila e do
canto e o uso que fazem dos instrumentos eacute considerado vulgar e inculto
Essas caracteriacutesticas da ldquomuacutesica novardquo satildeo repetidamente condenadas pelos que
escreveram sobre muacutesica ao longo dos seacuteculos seguintes em vista da idealizaccedilatildeo de uma
muacutesica ldquopurardquo que remete ao periacuteodo arcaico Segundo Barker
todas as complexidades sutis e sofisticaccedilotildees agradaacuteveis esteticamente introduzidasna muacutesica pelos compositores ldquomodernosrdquo devem ser rejeitadas em favor de umasimplicidade nobre que supotildee-se que tenha caracterizado a muacutesica de uma era deouro perdida (Barker 2007 p 309)
As criacuteticas de Platatildeo visavam combater a ideia de que a muacutesica estaacute mais ligada ao
prazer individual do que aos valores morais tradicionais uma alusatildeo direta agrave muacutesica de seu
periacuteodo que era considerada hedonista lasciva e virtuosiacutestica Natildeo que o prazer fosse
absolutamente condenado por Platatildeo O prazer eacute considerado um acompanhamento
51 A questatildeo da relaccedilatildeo entre muacutesica e filosofia eacute utilizada por Sexto Empiacuterico para refutar a utilidade damuacutesica Cf M VI 13 36
52 Sexto Empiacuterico retoma essa oposiccedilatildeo entre muacutesica antiga e moderna Cf M VI 14-553 Platatildeo enfatiza a importacircncia da palavra em relaccedilatildeo ao ritmo e agrave melodia advertindo que ldquodevem forccedilar-se
os peacutes e a melodia a seguirem as palavras e natildeo estas agravequelesrdquo (Platatildeo Rep 400 A)
27
importante da muacutesica mas apenas enquanto subordinado agrave finalidade moral54
Eacute por isso que Platatildeo adverte na Repuacuteblica que os cuidadores da cidade devem zelar
para que a educaccedilatildeo natildeo venha a se corromper ldquoque a tenham sob vigilacircncia em todas as
situaccedilotildees para que natildeo haja inovaccedilotildees contra as regras estabelecidas na ginaacutestica nem na
muacutesicardquo (Platatildeo Rep 424 B) Tambeacutem nas Leis o filoacutesofo considera que
visto que ela [a muacutesica] eacute mais estimada do que as outras representaccedilotildees ela requerum tratamento mais cuidadoso entre todas Qualquer um que cometa um engano emrelaccedilatildeo a ela seria muito prejudicado por adotar preferencialmente disposiccedilotildeesruins () (Platatildeo Leis 669 B - C)
O legislador deveraacute distinguir quais satildeo as canccedilotildees adequadas para os homens e para
as mulheres e combinaacute-las aos ritmos e harmoniai adequados ldquoPois seria terriacutevel para o
canto estar errado em toda sua harmonia ou para o ritmo em todo seu ritmo se ele [o
legislador] designasse harmoniai e ritmos que fossem inadequados para as canccedilotildeesrdquo (Platatildeo
Leis 802 E)
Devido agrave estreita relaccedilatildeo entre muacutesica e paideia focada no desenvolvimento moral do
cidadatildeos Platatildeo apresenta especificamente quais harmoniai e ritmos satildeo permitidos e quais
devem ser banidos As harmonias que devem ser evitadas satildeo as ldquochorosasrdquo como ldquoa
mixoliacutedia a sintonoliacutedia e outras que tais (hellip) Portanto essas satildeo as que se deve excluir
visto que satildeo inuacuteteis para as mulheres que conveacutem que sejam honestas para jaacute natildeo falar dos
homensrdquo (Platatildeo Rep 398 E) Aleacutem disso as harmonias lacircnguidas (adequadas aos
banquetes) satildeo as harmonias jocircnia e liacutedia Estas satildeo consideradas efeminadas e tambeacutem
devem ser evitadas
As harmonias que devem ser preservadas na Repuacuteblica em funccedilatildeo de seu poder de
provocar bravura e temperanccedila satildeo a doacuterica pela capacidade de imitar a voz e as inflexotildees
de um homem valente na guerra e em toda a accedilatildeo violenta e a friacutegia que imitaria
aquele que se encontra em atos paciacuteficos natildeo violentos mas voluntaacuterios que usa dorogo e da persuasatildeo (hellip) ou pelo contraacuterio se submete aos outros quando lhepedem o ensinam ou persuadem e tendo assim procedido a seu gosto semsobranceria se comporta com bom senso e moderaccedilatildeo em todas estascircunstacircncias (Platatildeo Rep 399 B - C)
Platatildeo dispensa a fabricaccedilatildeo de instrumentos apropriados para muitas harmonias
ldquologo natildeo teremos de sustentar artiacutefices para fabricarem harpas triacutegonos e toda a espeacutecie de
54 Cf Lippman (1975 p 114) Essa diferenccedila jaacute foi abordada acima (nota 47)
28
instrumentos de muitas cordas e de muitas harmoniasrdquo (Platatildeo Rep 399 C ndash D) Tambeacutem
proiacutebe o uso do aulo por ser aquele que emite o maior nuacutemero de sons De acordo com
Platatildeo satildeo uacuteteis na cidade a lira e a ciacutetara e nos campos a siringe preferindo ldquoApolo e os
instrumentos de Apolo a Maacutersias55 e os seus instrumentosrdquo (Platatildeo Rep 399 E) Fazendo
essas coisas descritas acima afirma Platatildeo ldquopurificamos de novo a cidade que haacute pouco
diziacuteamos estar efeminadardquo (Platatildeo Rep 399 E)
Aleacutem disso Platatildeo determina os ritmos adequados agrave Repuacuteblica buscando observar
ldquoquais satildeo os correspondentes a uma vida ordenada e corajosardquo (Platatildeo Rep 399 E) Para
falar dos ritmos Platatildeo recorre a Daacutemon e os classifica de acordo com suas qualidades eacuteticas
distinguindo aqueles que satildeo ldquoadequados agrave baixeza agrave insolecircncia agrave loucura e aos outros
defeitos e os ritmos que devem deixar-se aos seus contraacuteriosrdquo (Platatildeo Rep 400 B)
Se a muacutesica tem o poder de mover a alma alterando-a em direccedilatildeo ao caos ou agrave ordem
a educaccedilatildeo musical eacute considerada no pensamento Platocircnico fundamental para restaurar a
harmonia na alma movendo o caraacuteter do ouvinte em direccedilatildeo agrave excelecircncia moral
Em suma para Platatildeo ldquoa educaccedilatildeo pela muacutesica eacute capital porque o ritmo e a harmonia
penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente trazendo consigo a perfeiccedilatildeo e
tornando aquela perfeita (hellip)rdquo (Platatildeo Rep 401 D) Por isso
aquele que foi educado nela [na muacutesica] como devia sentiria mais agudamente asomissotildees e imperfeiccedilotildees no trabalho56 ou na conformaccedilatildeo natural e suportando-asmal e com razatildeo honraria as coisas belas e acolhendo-as jubilosamente na suaalma com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito57 (Platatildeo Rep 401E)
322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica Aristoacuteteles discute as definiccedilotildees apresentadas por Platatildeo na Repuacuteblica e
nas Leis Mas enquanto as consideraccedilotildees deste tomam como ponto de partida as teorias
pitagoacutericas a respeito da mousike (focada em princiacutepios matemaacuteticos) para desta teoria
musical extrair as consequecircncias eacuteticas que determinam seu papel na sociedade aquele natildeo se
55 Maacutersias teria sido um auleta friacutegio que desafiou Apolo para uma competiccedilatildeo musical56 O termo traduzido por ldquotrabalhordquo deriva da palavra grega ldquodemiourgeordquo e estaacute ligado neste caso
especificamente agrave praacutetica das artes manuais 57 No texto grego aparece a expressatildeo ldquokalos te kagathosrdquo que significa ldquobelo e bomrdquo O tradutor da ediccedilatildeo de
referecircncia preferiu utilizar o termo ldquoperfeitordquo porque no seacuteculo V aC ldquobelo e bomrdquo traduzia o ideal deperfeiccedilatildeo fiacutesica e moral grego Ver Platatildeo Rep (p 133 n 68 ediccedilatildeo de referecircncia)
29
preocupa na Poliacutetica em determinar as relaccedilotildees entre muacutesica e matemaacutetica ou astronomia
mas como concentra a discussatildeo nos efeitos do fenocircmeno sonoro observados na sociedade
Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo questotildees acuacutesticas a fisiologia da voz e a fisiologia e
psicologia do ouvir Nesse sentido para abordar o papel da muacutesica na educaccedilatildeo o filoacutesofo
observa as experiecircncias humanas ― as opiniotildees os gostos e costumes ― e extrai daiacute um
conhecimento praacutetico distinto da ciecircncia das causas primeiras
Essa cisatildeo entre a visatildeo metafiacutesica do conceito de mousike e sua concepccedilatildeo enquanto
fenocircmeno sonoro aparece nas divergecircncias entre Platatildeo e Aristoacuteteles como resultado de uma
diferenccedila fundamental entre suas concepccedilotildees metafiacutesicas58 Observa-se a partir disso uma
mudanccedila radical no estatuto do conceito de harmonia As verdades a respeito da muacutesica
estavam ligadas ao fato desta ser um reflexo sonoro harmonioso dos nuacutemeros silenciosos que
eram a realidade uacuteltima Por isso para Platatildeo a ciecircncia musical natildeo dizia respeito ao
fenocircmeno musical visto que os proacuteprios fenocircmenos enquanto sujeitos agrave accedilatildeo do tempo satildeo
imperfeitos
No que diz respeito agrave harmonia Aristoacuteteles discorda radicalmente de Platatildeo Ele
rejeita as ideias platocircnicas e a importacircncia do nuacutemero A esse respeito Lippman chama a
atenccedilatildeo para o fato de que a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute
em um grau consideraacutevel uma polecircmica contra as concepccedilotildees pitagoacutericas eplatocircnicas Os Objetos Matemaacuteticos sustenta Aristoacuteteles natildeo podem existirenquanto substacircncias distintas tanto nas coisas sensiacuteveis quanto separados delaseles podem ser separados apenas em pensamento (Lippman 1975 p 116)
Muito embora a harmonia tambeacutem caracterize a concepccedilatildeo de homem na Filosofia de
Aristoacuteteles59 ele ldquonatildeo acredita na harmonia platocircnica do cosmos ou da alma nem acredita
que a presenccedila das mesmas relaccedilotildees matemaacuteticas em dois fenocircmenos tem qualquer
sustentaccedilatildeo real na interconexatildeo ou na natureza desses fenocircmenosrdquo (Lippman 1975 p 118)
A rejeiccedilatildeo da metafiacutesica da harmonia sendo parte vital de uma elaborada rejeiccedilatildeo do
idealismo platocircnico tem como consequecircncia a libertaccedilatildeo da muacutesica da necessidade de uma
ontologia o que faz com que o interesse no proacuteprio fenocircmeno sonoro aumente60 A
58 Enquanto a verdade para Platatildeo eacute algo transcendente para Aristoacuteteles natildeo haacute uma realidade aleacutem doproacuteprio mundo o sensiacutevel deixa de ser engano e passa a ser ponto de partida legiacutetimo para o conhecimento
59 As concepccedilotildees harmocircnicas de Aristoacuteteles satildeo encontradas na fiacutesica na matemaacutetica e nas ciecircncias praacuteticas eprodutivas Cf Lippman (1975 p 117) A harmonia eacute considerada inerente aos oacutergatildeos do sentido enquantoeles correspondem agrave natureza dos objetos sensiacuteveis A beleza fiacutesica e a excelecircncia corporal tambeacutem se datildeodevido agrave harmonia Jaacute a alma nem eacute harmocircnica nem conteacutem harmonia ou nuacutemero Cf Lippman (1975 p120)
60 Cf Lippman (1975 p 115)
30
investigaccedilatildeo especializada e cientiacutefica da muacutesica no pensamento aristoteacutelico faz com que
cada vez mais os atributos do som se tornem importantes
Natildeo obstante no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Aristoacuteteles ainda
reserva a ela um papel importante Todavia sua atuaccedilatildeo na alma deixa de ser um reflexo do
cosmos Para o filoacutesofo a muacutesica surge de uma capacidade humana inata61 Sob essa
perspectiva a mimesis perde seu sentido quase pejorativo de coacutepia imperfeita e passa a ser
considerada uma atitude natural do homem atraveacutes da qual ele aprende Para Aristoacuteteles as
artes mimeacuteticas satildeo as artes ligadas tambeacutem agrave criaccedilatildeo Tal concepccedilatildeo culmina em uma
postura muito menos restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica
Suas observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave muacutesica na Poliacutetica tecircm como ponto de partida as
opiniotildees comuns acerca da muacutesica a praacutetica musical de sua eacutepoca e a educaccedilatildeo musical
comum Tomando a descriccedilatildeo de Barker
A tarefa do filoacutesofo eacute examinar minuciosamente e organizar certa evidecircncia mostrarda maneira mais clara possiacutevel as tensotildees inerentes a ela e se ele puder desativaacute-las mostrando como visotildees opostas podem ser reinterpretadas e relacionadasharmoniosamente enquanto partes diferentes ou aspectos de uma aspiraccedilatildeo comumagrave felicidade e excelecircncia humana (Barker 1984 p 170)62
Das atividades que os homens exercem algumas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo
dignas As atividades necessaacuterias e uacuteteis existem em funccedilatildeo das atividades honrosas
(Aristoacuteteles Pol 1333 A 30) A educaccedilatildeo tem em vista as virtudes que devem ser
desenvolvidas na alma e por isso deve ser uma preocupaccedilatildeo constante do legislador A
questatildeo da educaccedilatildeo dos jovens na eacutepoca de Aristoacuteteles de acordo com o filoacutesofo
tem presentemente gerado controveacutersia na medida em que nem todos estatildeo deacordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos no que se refere agrave virtude eno que diz respeito agrave vida melhor Tambeacutem natildeo eacute evidente se eacute mais adequado que aeducaccedilatildeo vise as capacidades intelectuais ou o caraacuteter da alma (Aristoacuteteles Pol1337 A 30)63
Discute-se diz Aristoacuteteles se a educaccedilatildeo deve visar o que eacute uacutetil para a vida o que eacute
61 Cf Lippman (1975 p 138)62 Note-se que o procedimento de Aristoacuteteles eacute semelhante ao que Sexto Empiacuterico descreve em relaccedilatildeo ao
ceticismo Mas enquanto Aristoacuteteles busca harmonizar as opiniotildees opostas o ceacutetico as toma comoferramenta para gerar a suspensatildeo de juiacutezo que tambeacutem levaria em uacuteltima instacircncia agrave felicidade
63 Aqui por caraacuteter da alma Aristoacuteteles designa as disposiccedilotildees psicoloacutegicas que formam o caraacuteter doindiviacuteduo O termo no original eacute ethos
31
adequado agrave praacutetica da virtude ou ateacute mesmo aquilo que natildeo tem utilidade64 Aleacutem disso
distingue-se entre quais satildeo tarefas adequadas aos homens livres e natildeo-livres Em vista desses
aspectos a educaccedilatildeo eacute discutida na Poliacutetica
Aristoacuteteles (Pol 1337 B 1339 B) considera a muacutesica um dos ramos da educaccedilatildeo
mas questiona sua utilidade O filoacutesofo apresenta duas opiniotildees acerca da utilidade da
muacutesica que ela natildeo eacute necessaacuteria nem uacutetil agrave vida na cidade mas eacute uacutetil enquanto diversatildeo no
tempo de lazer Seu papel na educaccedilatildeo se restringiria a isso ldquodiversatildeo proacutepria aos homens
livresrdquo
Para o filoacutesofo os homens livres podem se ocupar dos Estudos Liberais65 Mas um
estudo demasiado intensivo desses saberes poderia vir a provocar efeitos nocivos pois o
cidadatildeo passaria a enxergar melhor a parte do que o todo Isso porque Aristoacuteteles considera
sobretudo a finalidade em vista da qual se realiza determinada atividade A praacutetica eventual
das atividades ligadas aos Estudos Liberais eacute permitida desde que com finalidade em si
mesma e natildeo em funccedilatildeo de outros
Para Aristoacuteteles os Estudos Liberais satildeo compostos pela Gramaacutetica Ginaacutestica
Muacutesica e Desenho Entre essas disciplinas apenas a muacutesica pode ser questionada em termos
de sua utilidade Tal como Platatildeo Aristoacuteteles tambeacutem tece consideraccedilotildees a respeito da
finalidade hedonista da muacutesica que era cultivada em sua eacutepoca Todavia enquanto Platatildeo em
funccedilatildeo dos princiacutepios filosoacuteficos que estatildeo na base das ideias apresentadas na Repuacuteblica
subsume o prazer da muacutesica agrave sua finalidade eacutetica para Aristoacuteteles o prazer eacute colocado ao
lado dos objetivos morais do ensino da muacutesica ldquoenquanto um efeito musical coordenadordquo
(Lippman 1975 p 114)
Aristoacuteteles considera que a muacutesica participa da educaccedilatildeo da diversatildeo e do
entretenimento Em funccedilatildeo da sua agradabilidade ela leva ao relaxamento que eacute o objetivo da
diversatildeo (poder terapecircutico) aleacutem disso ela serve ao entretenimento visto que esse tem que
ser elevado e apraziacutevel No que diz respeito agrave educaccedilatildeo o filoacutesofo considera que deve-se
orientar bem o oacutecio que eacute mais elevado que o trabalho Eacute nesse sentido que para ele a
muacutesica foi inserida por muitos na educaccedilatildeo
O esquema eacutetico de Aristoacuteteles concebe que a melhor vida eacute a vida de accedilotildeesvirtuosas nessa a natureza do homem enquanto um composto de corpo e alma seexpressa mais completamente Menos valiosos satildeo os jogos o entretenimento e a
64 Para Platatildeo como jaacute foi exposto a educaccedilatildeo deve se concentrar nos conhecimentos matemaacuteticosaritmeacutetica geometria astronomia harmonike
65 Ver seccedilatildeo 42
32
apreciaccedilatildeo da arte pois estes natildeo satildeo despropositados mas servem agrave finalidade derenovaccedilatildeo da habilidade para o trabalho De mais alto valor do que a accedilatildeo virtuosapor outro lado eacute a contemplaccedilatildeo teoreacutetica (Lippman 1975 p 124)
Ao indagar se a muacutesica contribui para a formaccedilatildeo do caraacuteter e da alma Aristoacuteteles
considera que a prova de sua influecircncia eacute revelada nas melodias de Olimpo66 A esse respeito
o filoacutesofo considera que
Todos satildeo unacircnimes em considerar que essas melodias provocam entusiasmo nasalmas ora o entusiasmo eacute uma afecccedilatildeo do caraacuteter da alma Aleacutem do mais e mesmonatildeo contando com os ritmos e as melodias todo o tipo de imitaccedilatildeo provocasentimentos homoacutelogos nos ouvintes Ora sucedendo ser a muacutesica do domiacutenio dascoisas agradaacuteveis (e consistindo a virtude em experimentar com retidatildeo alegriaamor ou oacutedio) eacute evidente que nada eacute mais necessaacuterio aprender e tornar haacutebito doque julgar com retidatildeo e alegrar-se com costumes dignos e belas accedilotildees (AristoacutetelesPol 1340 A 5-15)
A audiccedilatildeo eacute a uacutenica das sensaccedilotildees que se assemelha67 agraves disposiccedilotildees morais Os
ritmos e melodias satildeo imitaccedilotildees da natureza68 de certas disposiccedilotildees morais como a coacutelera e a
mansidatildeo a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne)69 ao que ele acrescenta que ldquoa
praacutetica prova-o bem visto que o nosso estado de espiacuterito se altera consoante a muacutesica que
escutamosrdquo (Aristoacuteteles Pol 1340 A 20)
Para Aristoacuteteles ldquonas proacuteprias melodias haacute imitaccedilatildeo (mimesis) do caraacuteter (ethos)rdquo70 e
isso se evidencia pela diferente natureza de cada uma das harmoniai Consequentemente
quem as ouve eacute afetado de maneira diferente de acordo com as suas diversas formas
Com efeito umas [harmoniai] deixam-nos mais melancoacutelicos e graves comoacontece com a mixoliacutedia outras enfraquecem o espiacuterito como as lacircnguidas outrasincutem um estado de espiacuterito intermeacutedio e circunspecto como parece ser apanaacutegioda harmonia doacuterica porquanto jaacute a friacutegia induz o entusiasmo (Aristoacuteteles Pol1340 A 40 ndash B 5)
Isso ocorre tambeacutem em relaccedilatildeo aos ritmos Uns satildeo mais calmos e outros mais
movimentados e entre esses uns satildeo dignos e outros vulgares O filoacutesofo toma como
evidente que a muacutesica pode alterar o caraacuteter e por isso considera que esta deve ser aplicada agrave
educaccedilatildeo dos jovens pois ela se adapta agrave natureza deles que tecircm dificuldade para tolerar
66 Muacutesico friacutegio do seacuteculo VII aC67 Cf Aristoacuteteles Prob (27 29)68 Enquanto para Platatildeo a imitaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo a algo que estaacute fora do nosso mundo para Aristoacuteteles
ela se daacute dentro do mundo69 As mesmas virtudes que aparecem na obra de PlatatildeoVer p 25 2770 A muacutesica instrumental para os peripateacuteticos tambeacutem afeta o caraacuteter Nos Problemas Musicais lemos que
ldquomesmo se uma melodia natildeo tiver palavras tem todavia caraacuteter moralrdquo (Aristoacuteteles Prob 27 37-8)
33
ensinamentos natildeo suavizados pelo prazer71
As melodias satildeo divididas segundo Aristoacuteteles de acordo com o estabelecido por
determinados filoacutesofos em eacuteticas praacuteticas e entusiaacutesticas Natildeo se deve excluir nenhuma
harmonia visto que cada uma delas tem uma funccedilatildeo na sociedade Na Poeacutetica (1447 A 28
1459 B 37) o modo doacuterico corresponde a uma melodia eacutetica que suscita virtude o hipofriacutegio
a uma melodia energeacutetica que incita a atividade praacutetica e o friacutegio a uma melodia exaltada que
suscita um estado emocional freneacutetico
Enquanto as harmoniai eacuteticas destinam-se agrave educaccedilatildeo do homem livre as praacuteticas e as
entusiaacutesticas podem ser ouvidas por eles somente quando executadas por outros Para a
educaccedilatildeo ldquoimporta usar melodias eacuteticas e harmonias da mesma espeacutecierdquo Admitindo a
opiniatildeo de Platatildeo Aristoacuteteles assume que a harmonia doacuterica eacute desse tipo ldquotodos concordam
que eacute o mais sereno de todos e que possui um caraacuteter mais virilrdquo
Aristoacuteteles critica a instruccedilatildeo teacutecnica que se destina aos concursos porque eacute feita com
uma finalidade exterior a ela mesma e por isso natildeo eacute digna de homens livres Entretanto
diferentemente de Platatildeo o filoacutesofo natildeo considera que se deve abolir completamente os
concursos e espetaacuteculos Mas que utilizando as melodias cataacuterticas esses concursos deveriam
ser propiciados aos homens comuns pois ldquoeacute devido agrave corrupccedilatildeo das harmonias
(especialmente as de tom agudo e dissonantes) que as suas almas se encontram desviadas da
iacutendole naturalrdquo (Aristoacuteteles Pol 1342 A 20)
Nesse sentido o filoacutesofo condena a fala de Soacutecrates na Repuacuteblica onde haacute a recusa do
aulo entre os instrumentos considerando que este por ser excitante pode ser usado para se
produzir o efeito cataacutertico Ainda assim Aristoacuteteles rejeita o uso do aulo na educaccedilatildeo visto
que ele impede o uso da palavra (Aristoacuteteles Pol 1341 B) Do mesmo modo ele considera a
harmonia friacutegia vaacutelida visto que esta eacute em relaccedilatildeo agraves harmoniai o que o aulo eacute em relaccedilatildeo
aos instrumentos ldquoambos satildeo de teor orgiaacutestico e incutem a paixatildeordquo sendo utilizados com
frequecircncia juntos
Aleacutem disso Aristoacuteteles critica Soacutecrates por banir as harmoniai lacircnguidas em funccedilatildeo
de elas provocarem fadiga (na Repuacuteblica essas satildeo a jocircnia e a liacutedia) tendo em vista que na
velhice esse gecircnero de melodia deve ser praticado pois em decorrecircncia da idade os idosos
natildeo conseguem alcanccedilar os tons agudos Por fim Aristoacuteteles contrariando Platatildeo conclui
que a harmonia mais adequada aos jovens parece ser a liacutedia
Para Lippman um dos grandes meacuteritos de Aristoacuteteles reside no modo detalhado como
71 Ver M VI 7
34
ele aborda os princiacutepios que regem o uso da muacutesica Haacute uma ampla consideraccedilatildeo dos fatores
variados que influenciam a questatildeo ldquoo que parece errado de um ponto de vista Aristoacuteteles
mostra pode ser vaacutelido de outrordquo (Lippman 1975 p 126)
O ensino da muacutesica deve ser conduzido de maneira cuidadosa devendo ser enfatizado
com relaccedilatildeo agrave escuta e natildeo agrave praacutetica instrumental muito embora seja necessaacuterio que o
aprendiz participe da praacutetica musical A experiecircncia em instrumentos natildeo eacute o objetivo da
educaccedilatildeo musical pois a praacutetica de uma arte eacute uma atividade improacutepria para o homem livre
A praacutetica musical visa gerar uma familiaridade com a muacutesica tendo em vista o
desenvolvimento da capacidade de fazer bons julgamentos acerca dela Assim uma boa
educaccedilatildeo musical na infacircncia tornaria o indiviacuteduo apto a mais tarde avaliar a boa muacutesica e
fruiacute-la corretamente
Seria bom que esta aprendizagem natildeo fizesse penar como os que se preparam paraconcursos de profissionais72 nem se esperasse das obras realizadas o brilho e ovirtuosismo atingidos pelos que se apresentam nesses concursos nomeadamentenos relativos agrave educaccedilatildeo a muacutesica deveria ser estudada na medida suficiente parapossibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum damuacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns animais(Aristoacuteteles Pol 1341 A 10-17)73
Aristoacuteteles eacute muito menos restritivo que Platatildeo a respeito da muacutesica que pode ser
executada na polis A distinccedilatildeo entre o papel educativo e o prazer que a muacutesica proporciona
enquanto aspectos coordenados e natildeo mais dependentes permite que a muacutesica seja em certas
ocasiotildees apreciada por ela mesma
Diferentemente de Platatildeo no entanto Aristoacuteteles natildeo tem uma baixa consideraccedilatildeopela imitaccedilatildeo ele natildeo estaacute preocupado com seu afastamento da realidade masconsidera pelo contraacuterio que ela eacute natural para o homem que ela o ensina e que daacutea ele prazer Assim eacute dada agrave arte uma base na natureza humana e ela eacute consideradacomo eacutetica e prazerosa de maneira inerente nosso prazer nela entretanto natildeo se daacutedevido agraves suas propriedades sensiacuteveis mas em funccedilatildeo de um prazer no aprendizado(Lippman 1975 p 123-4)
O conceito de mimesis embora despido de seu caraacuteter metafiacutesico permanece central
72 O termo grego ldquotekhnikousrdquo traduzido aqui por ldquoprofissionaisrdquo pode significar tambeacutem ldquoespecialistasrdquo ouldquoteacutecnicosrdquo
73 Essa passagem eacute esclarecedora a respeito da relaccedilatildeo entre os projetos pedagoacutegicos aristoteacutelico e platocircnicoAmbos estatildeo preocupados em educar uma elite que saiba apreciar a muacutesica dita de caraacuteter elevado Maistarde Aristoacutexeno seguindo os passos de seu mestre tambeacutem propotildee que o estudo da muacutesica deve prepararpara uma capacidade de julgamento a respeito da praacutetica musical de seu tempo que eacute considerada vulgarEssa visatildeo natildeo sofre muitas alteraccedilotildees nos seacuteculos seguintes (como mostramos na seccedilatildeo 44 a respeito dosEstudos Ciacuteclicos)
35
no pensamento aristoteacutelico no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Ao
considerar a mimesis enquanto fenocircmeno natural da vida humana a arte (e especificamente a
muacutesica) passa a ser por si mesma eacutetica e prazerosa
No que concerne agraves ideias pitagoacutericas e platocircnicas a respeito da relaccedilatildeo da alma
humana com a harmonia Aristoacuteteles limita-se a dizer que ldquoparece que em noacutes existe algo que
se assemelha a harmonia e ritmo e eacute nesse sentido que alguns saacutebios referem que a alma eacute
harmonia outros que tem harmoniardquo (Aristoacuteteles Pol 1340 B 15) Aristoacuteteles todavia
restringe sua abordagem ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo excluindo do escopo da teoria musical a
questatildeo a respeito do seu estatuto ontoloacutegico Nesse sentido
a imitaccedilatildeo eacute tanto mantida quanto alterada Seu modelo permanece sendo a accedilatildeohumana e o caraacuteter incluindo agora ateacute o que eacute feio mas ao inveacutes de se voltar agravescoisas individuais ela procura sua natureza ideal e geral um processo um tantodiferente no entanto da revelaccedilatildeo de uma realidade eterna por traacutes delas (Lippman1975 p 138)
Ao desvincular o conceito de mimesis (que estaacute na base da teoria do ethos musical) de
suas raiacutezes metafiacutesicas Aristoacuteteles abre caminho para que a muacutesica enquanto fenocircmeno
sonoro adquira uma maior autonomia visto que as alteraccedilotildees que ela promove no caraacuteter do
ouvinte natildeo dependem mais da harmonia do cosmos mas do proacuteprio fenocircmeno sonoro em
sua relaccedilatildeo com a alma humana
33 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA
DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO
Eacute a partir do ponto de vista dos filoacutesofos peripateacuteticos que um dos mais renomados
disciacutepulos de Aristoacuteteles Aristoacutexeno74 promove uma sistematizaccedilatildeo da teoria musical
considerando-a enquanto uma ciecircncia autocircnoma desvinculada dos pressupostos metafiacutesicos
que a subjugavam anteriormente A teoria musical de Aristoacutexeno rompe com a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica de modo que a partir dela a ciecircncia da muacutesica natildeo empresta seus princiacutepios
baacutesicos da matemaacutetica e da fiacutesica mas parte de seu proacuteprio objeto de investigaccedilatildeo De acordo
com Aristoacutexeno a harmonike enquanto parte da muacutesica eacute baseada nos dados que satildeo
apreendidos atraveacutes da audiccedilatildeo Segundo Barker
74 As traduccedilotildees dos trechos da obra de Aristoacutexeno foram feitas a partir da comparaccedilatildeo das traduccedilotildees de Barker(1989) e de Roosevelt Rocha (natildeo publicada) com o texto grego dos Elementa Harmonica (TLG)
36
Sua tarefa eacute exibir a ordem interna do fenocircmeno perceptivo analisar os padrotildeessistemaacuteticos dentro dos quais ela eacute organizada mostrar como a exigecircncia de que asnotas devem caber em certo padratildeo de organizaccedilatildeo mdashse elas devem ser apreendidascomo meloacutedicas mdash explica porque algumas sequecircncias possiacuteveis de alturas formamuma melodia enquanto outras natildeo e por uacuteltimo apresentar todas as regras quegovernam a forma meloacutedica enquanto algo que flui de um grupo coordenado deprinciacutepios que descrevem uma uacutenica e determinada essecircncia a do proacuteprioldquomeloacutedicordquo ou do ldquoafinadordquo75 (Barker 1989 p 4)
Nascido em meados do seacuteculo IV aC Aristoacutexeno de Tarento estudou composiccedilatildeo e
performance musical mas focou seus estudos na Filosofia e na teoria musical
Apoacutes ter recebido de seu pai o muacutesico Espiacutentaro suas primeiras liccedilotildees musicaisAristoacutexeno seguiu os ensinamentos de um Pitagoacuterico (hellip) depois disso ele recebeuliccedilotildees de Aristoacuteteles e adquiriu entre os disciacutepulos do mestre uma reputaccedilatildeosuficiente para pretender sucedecirc-lo na direccedilatildeo da escola (Beacutelis 1986 p 10)
Aristoacutexeno passou um tempo consideraacutevel com os Pitagoacutericos antes de entrar para o
Liceu e se tornar aprendiz de Aristoacuteteles por volta de 330 aC o que provocou uma grande
mudanccedila no seu modo de pensar Apesar de ele ter deixado o Liceu depois deste ter sido
assumido por Teofrasto (porque ele proacuteprio almejava substituir Aristoacuteteles) Aristoacutexeno
permaneceu fiel aos ensinamentos aristoteacutelicos declarando-se ldquodecidido a aplicar os
princiacutepios metodoloacutegicos herdados do Estagiritardquo (Beacutelis 1986 p 11)
Seus escritos sobre teoria musical satildeo inspirados na concepccedilatildeo aristoteacutelica de
conhecimento De acordo com Annie Beacutelis Aristoacutexeno busca fundar uma ciecircncia nova e
autecircntica ldquoaquilo que ele chama legitimamente de ciecircncia harmocircnica uma disciplina
rigorosa e que esgota a totalidade dos objetos que dela dependemrdquo (Beacutelis 1986 p 170) Sua
influecircncia pode ser percebida pelo fato de que no periacuteodo Romano ele era citado
simplesmente como ldquoo muacutesicordquo76
Aristoacutexeno apresenta a ldquociecircncia acerca da melodiardquo77 ou seja a ciecircncia musical como
dividida em muitas partes A disciplina harmocircnica eacute entre elas ldquoa primeira e tem funccedilatildeo
elementar De fato ela eacute a primeira das disciplinas teoreacuteticas cuja magnitude eacute tatildeo grande
que se estende ateacute a teoria dos sistemas (systemata) e dos tons (tonos)rdquo (Aristoacutexeno El
75 Essa definiccedilatildeo eacute usada por Sexto Empiacuterico na segunda parte do Contra os Muacutesicos Ver M VI 3876 Sua relevacircncia no periacuteodo romano pode ser indicativa do motivo pelo qual Sexto Empiacuterico o utiliza como
paradigma de muacutesico e sua teoria como paradigma de ciecircncia musical Sexto Empiacuterico pretende combater asvisotildees mais comuns a respeito da teoria musical e Aristoacutexeno eacute por sua vez considerado ldquoo muacutesicordquo no quediz respeito agrave ciecircncia musical Nesse sentido satildeo os aspectos teacutecnicos da teoria musical de acordo com opensamento de Aristoacutexeno que satildeo combatidos
77 ldquoMelodiardquo traduz ldquoto melosrdquo Aqui tem um sentido amplo que inclui melodia ritmo e palavra
37
Harm 11)
As questotildees de tipo mais elevado que satildeo consideradas jaacute quando a muacutesica praacutetica(poietike)78 utiliza os sistemas e os tons natildeo mais pertencem a ela mas agrave ciecircnciaque compreende essa e as outras ciecircncias atraveacutes das quais considera-se tudo quediz respeito agrave muacutesica Eacute isso que diz respeito ao muacutesico (Aristoacutexeno El Harm12)
Diante dessas definiccedilotildees o primeiro recorte que se faz eacute o de que a harmonike natildeo faz
parte do acircmbito praacutetico A harmonike eacute apresentada como parte de uma ciecircncia mais ampla
que envolve o estudo de tudo que tem a ver com muacutesica
A ciecircncia harmocircnica divide-se em sete partes a saber mdash a discussatildeo das notas
intervalos gecircneros sistemas tons modulaccedilatildeo e a uacuteltima estaacute ligada agrave proacutepria composiccedilatildeo
meloacutedica79 As notas satildeo a base para a composiccedilatildeo de melodias
visto que muitas formas de melodias de todos os tipos vecircm a ser em notas que satildeoelas proacuteprias as mesmas e imutaacuteveis eacute evidente que sua variedade depende do usoque eacute dado agraves notas e isto noacutes chamamos composiccedilatildeo meloacutedica Portanto a ciecircncialigada agrave afinaccedilatildeo harmocircnica depois de percorrer as partes que foram mencionadasatinge sua finalidade aqui (Aristoacutexeno El Harm 238 20)80
A composiccedilatildeo de melodias (melopoiia) aparece como finalidade da harmonike
Todavia tal finalidade natildeo parece estar ligada agrave ldquopraacutetica composicionalrdquo (poietike) mas
antes ao conhecimento dos princiacutepios baacutesicos que a norteiam A harmonike natildeo eacute da ordem
da tekhne mas eacute uma teoria Tambeacutem de acordo com Beacutelis eacute evidente que Aristoacutexeno a
distingue tambeacutem da ldquopoeacuteticardquo que cria e da muacutesica ldquopraacuteticardquo que utiliza o material
musical81 Segundo a comentadora Aristoacutexeno
(hellip) definitivamente distingue em todo caso a teoria da poeacutetica a harmonike elediz eacute a primeira disciplina teoreacutetica ela natildeo se estende aleacutem do que concerne oconhecimento dos sistemas de tons (noacutes utilizamos essa expressatildeo como umatalho) mas ela investiga as questotildees mais elevadas que haacute enquanto a poeacuteticautiliza os sistemas e os tons natildeo lhe pertencendo mais (Beacutelis 1986 p 171)
78 O termo ldquopoietikerdquo inclui os aspectos praacuteticos da composiccedilatildeo estaacute ligado ao proacuteprio fazer musical VerBarker (2007 p 139) e Beacutelis (1986 p 171)
79 Discutimos o uso dessa definiccedilatildeo em Sexto Empiacuterico na seccedilotildees 511 e 5380 Para Aristoacutexeno as notas estatildeo na base da ciecircncia dos sons Eacute nesse sentido que Sexto Empiacuterico ataca o
conceito de som contido na definiccedilatildeo de nota Se a nota eacute a ldquoincidecircncia de um som em uma tensatildeordquo se natildeohaacute uma definiccedilatildeo do conceito de som natildeo haacute definiccedilatildeo do conceito de nota Ver M VI 52 Assim se amuacutesica eacute baseada nas notas e as notas no som ao mostrar a inconsistecircncia do conceito de som (mostrando asua ldquoinexistecircnciardquo) destroacutei-se tambeacutem toda a muacutesica
81 Ver Beacutelis (1986 p 187 n 4)
38
Pode-se considerar que cada gecircnero meloacutedico eacute um tipo de composiccedilatildeo Aristoacutexeno
apresenta como escopo de suas exposiccedilotildees o sentido em que cada tipo de composiccedilatildeo tem
um efeito (de acordo com sua proacutepria ressalva isso se a muacutesica tiver esse poder)
No momento importa frisar que Aristoacutexeno define como objeto de seus discursos
cada uma das composiccedilotildees meloacutedicas que segundo a interpretaccedilatildeo de Barker (2007 p 232)
ldquonatildeo satildeo composiccedilotildees individuais mas estilos de composiccedilatildeordquo82 Assim a harmonike teria
como finalidade natildeo a praacutetica composicional mas a compreensatildeo dos estilos de composiccedilatildeo
Tal interpretaccedilatildeo eacute corroborada tambeacutem pela seguinte passagem do segundo livro dos
Elementa Harmonica
Alguns imaginam que essa ciecircncia eacute de grande significacircncia alguns deles supondoateacute mesmo que ouvir a um discurso sobre harmonike iraacute fazecirc-los natildeo apenasmuacutesicos mas tambeacutem melhores quanto ao caraacuteter Essas pessoas ouviram mal osdiscursos nas nossas exposiccedilotildees ldquoo que tentamos fazer eacute mostrar para cada tipo decomposiccedilatildeo meloacutedica (ton melopoiion hekasten) e para a muacutesica em geral que tal etal tipo prejudica o caraacuteter enquanto tal e tal tipo eacute uacutetilrdquo e natildeo tendo ouvido issoeles tambeacutem natildeo ouviram nossa qualificaccedilatildeo ldquona medida em que a muacutesica pode seruacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30)
Acerca desta passagem resta assinalar que no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre os tipos
de composiccedilatildeo meloacutedica e seu efeito no ouvinte de fato Aristoacutexeno eacute bastante reticente ao
tratar da relaccedilatildeo entre muacutesica e virtude
Aristoacutexeno se dedica a corrigir dois excessos alguns imaginam por saberem osrudimentos da harmonike que satildeo muacutesicos por completo mas tambeacutem que setornaram moralmente melhores Outros ao contraacuterio relegaram esta ciecircncia a umaposiccedilatildeo despreziacutevel se contentando em ignoraacute-la Optando pela posiccedilatildeo do meioAristoacutexeno sustenta que a harmonike natildeo eacute mais que uma parte do saber do muacutesicoem si ela natildeo tem efeito moral seus ouvintes aparentemente natildeo apreenderam seupropoacutesito sobre os tipos de melopeia dos quais alguns foram qualificadosprejudiciais e outros uacuteteis (hellip) (Beacutelis 1986 p 97)
Aleacutem disso segundo Beacutelis ldquoAristoacutexeno provavelmente mostrou o valor musical de
uma e outra melopeia quer dizer tal e tal forma de combinaccedilatildeo de sons onde certos ouvintes
acreditaram reconhecer o valor moral das tonalidadesrdquo (Beacutelis 1986 p 172) mas este natildeo
constitui o foco principal de sua teoria
Como apresentamos cabe agravequele que eacute chamado ldquomuacutesicordquo dominar muitas
disciplinas ldquoA harmonike eacute apenas uma parte da habilidade do muacutesico tal como satildeo as
82 Para uma discussatildeo apurada dessa questatildeo ver Barker (2007 cap 9)
39
ciecircncias do ritmo da meacutetrica e dos instrumentosrdquo83 (Aristoacutexeno El Harm 232)
A harmonike eacute designada como ciecircncia mas como uma ciecircncia particular que seraacuteum elo de um conjunto cientiacutefico Esboccedila-se jaacute uma teoria do saber musical porinteiro onde a exigecircncia de rigor pesa sobre todas as partes do saber que o muacutesicodeve dominar para merecer seu tiacutetulo de mousikos (Beacutelis 1986 p 171)
Conhecer os diversos ramos da ciecircncia da muacutesica natildeo significa praticar muacutesica Se
satildeo esses conhecimentos (da harmonike do ritmo da meacutetrica e dos instrumentos) que
Aristoacutexeno atribui ao muacutesico ldquomuacutesicordquo aqui natildeo diz respeito ao muacutesico praacutetico mas agravequele
que estuda a muacutesica como um todo De acordo com Barker
quando usado sem qualificaccedilatildeo e no contexto de uma compreensatildeo que envolvetodos os acircmbitos da muacutesica o termo mousikos eacute mais naturalmente lido em umsentido amplo indicando uma pessoa de uma ampla e sofisticada cultura musicalindependentemente de eles serem tambeacutem especialistas em algum ramo da arte(Barker 2007 p 140)
Assim para Aristoacutexeno o muacutesico natildeo eacute em primeira instacircncia aquele que pratica a
arte da muacutesica mas sim aquele que estudou todas as aacutereas da ciecircncia musical possuindo os
conhecimentos necessaacuterios para compreendecirc-la e com isso emitir juiacutezos criacuteticos a respeito
da muacutesica praacutetica Nesse sentido para fazer um julgamento adequado de uma peccedila musical o
muacutesico deve observar os trecircs elementos baacutesicos que a compotildeem as notas a duraccedilatildeo riacutetmica e
a siacutelaba A percepccedilatildeo e o pensamento (dianoia) devem estar um ao lado do outro na formaccedilatildeo
do julgamento
Eacute evidente que compreender melodias eacute uma questatildeo de seguir as coisas com aaudiccedilatildeo e a razatildeo na medida em que elas vem a ser no que diz respeito a todas assuas distinccedilotildees pois eacute em um processo de vir a ser que consiste a melodia comosatildeo tambeacutem todas as outras partes da muacutesica A compreensatildeo da muacutesica vem deduas coisas percepccedilatildeo e memoacuteria pois noacutes temos que apreender o que estaacute vindo aser e lembrar o que veio a ser (Aristoacutexeno El Harm 238-9)
O objetivo da investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute a compreensatildeo84 (Aristoacutexeno El Harm 41 15-
83 Organike aparece aqui junto agrave episteme Jaacute na introduccedilatildeo do Contra os Muacutesicos episteme eacute oposta agraveempeiria e a organike aparece ligada a essa uacuteltima Ver seccedilatildeo 51
84 Ao explicar que o conceito de harmonike supera a mera notaccedilatildeo Aristoacutexeno argumenta que ldquonotaccedilatildeo natildeo eacutenem mesmo uma parte dela a menos que escrever metros seja tambeacutem uma parte da ciecircncia do metro Masse isso se aplica aqui ndash que aquele que pode escrever o metro jacircmbico natildeo eacute necessariamente aquele quemelhor compreende o que o jacircmbico realmente eacute ndash se aplica tambeacutem agraves melodiasrdquo (Aristoacutexeno El Harm239) Nesse sentido a notaccedilatildeo natildeo participa da investigaccedilatildeo cientiacutefica que compreende apenas o acircmbitoteoacuterico Isso corrobora com a ideia de que a ciecircncia musical natildeo abrange a execuccedilatildeo de instrumentos ou apraacutetica composicional
40
6) Em funccedilatildeo disso ldquoo saber harmocircnico natildeo se reduziraacute mais a mediccedilatildeo de intervalos nem agrave
assimilaccedilatildeo das relaccedilotildees numeacutericasrdquo (Beacutelis 1986 p 172) A compreensatildeo pode e deve ser
usada para instruir aqueles que julgam a muacutesica que eacute executada na praacutetica a fim de garantir
que ela seja executada de maneira correta85 A ideia de que o conhecimento teacutecnico deve ser
adquirido para que se possa julgar as peccedilas que satildeo executadas jaacute aparece tambeacutem em
Platatildeo86 Para o filoacutesofo eacute preciso apreender o que eacute correto acerca da peccedila para se julgar
uma muacutesica de maneira inteligente tendo desenvolvido uma percepccedilatildeo aguccedilada e uma
compreensatildeo dos ritmos e das harmonias
Segundo Beacutelis
os dois autores rejeitam com um mesmo desprezo o leigo que eles opunham aoconhecedor quando trata-se de julgar uma muacutesica ou sentir prazer com ela (hellip) Domesmo modo Aristoacutexeno distingue o leigo do conhecedor uacutenico qualificado parajulgar a beleza de uma aacuteria e acusa certos harmonicistas de lisonjear os leigos aofazer da notaccedilatildeo das canccedilotildees o termo do aprendizado da harmonia (Beacutelis 1986 p99)87
O conhecedor da muacutesica eacute para ambos aquele que tem as habilidades necessaacuterias ao
julgamento de uma peccedila musical sendo a harmonike uma dessas habilidades Tambeacutem na
Poliacutetica a muacutesica eacute situada entre as disciplinas que fazem parte da educaccedilatildeo liberal destinada
agrave formaccedilatildeo de uma elite intelectual Para Aristoacuteteles como apontamos anteriormente o
objetivo da participaccedilatildeo dos jovens na praacutetica musical eacute desenvolvimento da capacidade de
julgar peccedilas musicais Desse modo a muacutesica poderia ser praticada na juventude ndash como
forma de entretenimento e ainda assim sob um controle riacutegido de quais melodias ritmos e
instrumentos podem ser utilizados ndash mas ao atingirem a idade adulta devem abster-se da
praacutetica mantendo como resultado desse aprendizado a capacidade de julgar e fruir das coisas
de maneira correta
como para ajuizar eacute necessaacuterio que se participe da execuccedilatildeo as crianccedilas devempraticar a muacutesica desde tenra idade Chegados agrave idade avanccedilada devem pocirc-la agraveparte pois eacute devido agrave aprendizagem na infacircncia que poderatildeo mais tarde avaliar aboa muacutesica e fruiacute-la corretamente (Aristoacuteteles Pol 1340 B 35)
85 Enquanto para filoacutesofos como Platatildeo a correccedilatildeo tem uma funccedilatildeo moral para Aristoacutexeno diz respeito aestar de acordo com o conhecimento cientiacutefico
86 Platatildeo Leis 670 BndashC Ti 70 A-B87 Contudo haacute uma diferenccedila fundamental entre Platatildeo e Aristoacutexeno no que diz respeito ao efeito da muacutesica na
alma ldquoEacute verdade que ele [Aristoacutexeno] reconhece que a muacutesica afeta a alma que certas melopeias satildeo uacuteteise outras prejudiciais mas natildeo admite que a harmonia possa de qualquer modo incitar a virtuderdquo (Beacutelis1984 p 100)
41
Aristoacuteteles propocircs ainda que as habilidades teacutecnicas musicais deveriam ser estudadas
ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave
parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns
animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A)
Se eacute difiacutecil ligar Aristoacuteteles a esta ou aquela escola de muacutesica - apesar de algunstextos que se mostram bem proacuteximos das ideias pitagoacutericas - natildeo haacute duacutevidas aocontraacuterio que ele toma partido dos tradicionalistas que reprovam as inovaccedilotildeesintroduzidas pelos virtuosos na praacutetica musical (Beacutelis 1986 p 56)
Aristoacutexeno tambeacutem manteacutem o conservadorismo de seus antecessores (Platatildeo e
Aristoacuteteles) no que diz respeito ao ldquocultordquo agrave muacutesica do passado em oposiccedilatildeo ao virtuosismo
de seus contemporacircneos O conhecimento da arte da combinaccedilatildeo das notas a harmonike
seria um dos conhecimentos necessaacuterios agrave Educaccedilatildeo Liberal que se contrapotildee ao gosto do
senso comum
Segundo Barker o texto de Aristoacutexeno revela uma progressiva divisatildeo entre o gosto
popular do periacuteodo (disseminado nas disputas entre muacutesicos profissionais que satildeo
mencionadas por Platatildeo e Aristoacuteteles) e o gosto dos intelectuais do seacuteculo IV aC Para eles
a capacidade de se elevar acima do amor das massas pelo virtuosismo e pelosefeitos melodramaacuteticos e formar julgamentos musicais sobre uma base esteacutetica eintelectualmente sofisticada se tornou um marco de seu status superior Na medidaem que ele representa a teoria harmocircnica como um dos instrumentos essenciais naldquocaixa de ferramentas intelectuaisrdquo daquele que julga Aristoacutexeno estaacute continuandoo projeto de resgataacute-la das matildeos do mero ldquoartesatildeordquo com o qual ela havia comeccediladoe recomendando-a agrave atenccedilatildeo das cultas classes superiores para as quais em temposanteriores ela teria parecido tatildeo irrelevante quanto aprender a cozinhar (Barker2007 p 234)
Se por um lado Aristoacutexeno daacute um passo diferente em relaccedilatildeo aos seus antecessores
circunscrevendo a ciecircncia musical ao acircmbito sonoro por outro em seu conservadorismo ele
manteacutem ainda uma cisatildeo entre teoria e praacutetica musical e uma divisatildeo hieraacuterquica entre aquele
que pratica e aquele que julga a arte musical
34 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO
Se muito se teorizou na Antiguidade a respeito da importacircncia da muacutesica na
sociedade houve por outro lado um filoacutesofo que dedicou-se agrave refutaccedilatildeo das opiniotildees sobre
42
muacutesica difundidas em sua eacutepoca Filodemo de Gadara88 filoacutesofo epicurista do primeiro
seacuteculo aC (c 110 ndash 40) em sua obra intitulada De Musica dedica-se a refutar as
consideraccedilotildees favoraacuteveis do filoacutesofo estoico89 Dioacutegenes da Babilocircnia a respeito do papel da
muacutesica
O meacutetodo de Filodemo consiste em apresentar as afirmaccedilotildees de seu oponente e em
seguida criticar cada uma delas90 A discussatildeo sobre muacutesica apresentada nessa obra natildeo diz
respeito agrave questotildees teacutecnicas musicais tal como podemos observar na obra de Aristoacutexeno
mas somente agraves questotildees relacionadas ao ensino da muacutesica ao seu papel moral e educacional
devido ao modo como esta afetaria a alma tal como Platatildeo e Aristoacuteteles a abordaram91
Dioacutegenes da Babilocircnia92 viveu entre 240 ndash 152 aC Embora natildeo tenhamos acesso aos
seus escritos apenas a fragmentos citados por outros autores considera-se que ele reformulou
as posiccedilotildees de seus antecessores a tal ponto que sua visatildeo veio a ser a ortodoxa de sua escola
nos seacuteculos II e I aC Segundo Woodward (2009 p 13) ldquoo fato de que Dioacutegenes seja o
principal oponente de Filodemo no De Retorica e tambeacutem no De Musica IV pareceria
sustentar essa sugestatildeordquo De acordo com Delattre
certamente se Dioacutegenes por sua vez agindo dessa maneira natildeo fazia nada mais doque se inscrever na jaacute longa tradiccedilatildeo que via na muacutesica uma insubstituiacutevelpropedecircutica para a virtude o que parece contudo ter distinguido claramente nossoEstoico de todos os seus antecessores desde Pitaacutegoras eacute uma vontade bem marcadade fundamentar cientificamente isto eacute com base em uma teoria coerente dasensaccedilatildeo e do conhecimento as crenccedilas e prejulgamentos repetidos aqui e ali depoisdo seacuteculo VI aC (Delattre 2007 p 3)
A preocupaccedilatildeo fundamental do estoico parece ter sido sobretudo a de afirmar a
eficaacutecia eacutetico-psicoloacutegica da muacutesica para o que ele buscou fundar uma ciecircncia ldquo() uma
verdadeira psicologia musical caracterizada por leis imutaacuteveis necessaacuterias e universaisrdquo
(Delattre 2007 p 16)93
88 Para as citaccedilotildees do De Musica nossa traduccedilatildeo parte da versatildeo francesa de Delattre (2007)89 Note-se que os filoacutesofos epicuristas foram tambeacutem o principal alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica em outras questotildees90 Tal como no caso de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos podemos apenas conjecturar a respeito de sua
visatildeo positiva sobre o tema91 Estima-se que a refutaccedilatildeo de Filodemo agraves afirmaccedilotildees de Dioacutegenes sobre a muacutesica seja tambeacutem uma defesa
contra as acusaccedilotildees de ignoracircncia difundidas contra a escola epicurista Essas acusaccedilotildees deram-se sobretudoem funccedilatildeo da criacutetica epicurista aos Estudos Ciacuteclicos Tais acusaccedilotildees satildeo reafirmadas por Sexto Empiacuterico noinicio do Contra os Professores Cf Woodward (2009 p 12 222)
92 Note-se que os filoacutesofos Estoicos figuram entre os principais alvos da refutaccedilatildeo ceacutetica Dioacutegenes foi pupilode Crisipo um dos principais pensadores desta doutrina que figura entre aqueles que tambeacutem satildeo refutadospor Sexto Empiacuterico
93 Tudo se passa como se Dioacutegenes pretendesse reunir em suas teorias a um soacute tempo as preocupaccedilotildeespsicagoacutegicas de Platatildeo e o rigor cientiacutefico de Aristoacutexeno
43
Entre as teses sobre muacutesica apresentadas por Dioacutegenes a sua relaccedilatildeo com a eacutetica eacute
colocada em primeiro plano o estoico defende que a muacutesica estaacute em estreita relaccedilatildeo com o
belo e com o bem considerando assim como Platatildeo que a muacutesica teria o poder de
harmonizar as partes da alma e aleacutem disso que sua utilidade estaacute ligada ao lazer mas que
natildeo se deve exercitaacute-la ao niacutevel profissional94
Dioacutegenes defende a utilidade da muacutesica sob duas perspectivas Por um lado o ensino
da muacutesica eacute importante desde a infacircncia para a aquisiccedilatildeo das virtudes e por outro a muacutesica
ldquomais que o desenho daacute ao ser humano e desenvolve nele o senso de beleza puro e
desinteressadordquo (Filodemo De mus col 27)
A respeito do poder da muacutesica sobre o caraacuteter do ouvinte Dioacutegenes teria afirmado
reiterando aquilo que jaacute era bem estabelecido por todos de sua eacutepoca que ldquoo fato de que as
melodias recebem qualificativos eacuteticos prova que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticasrdquo
(Filodemo De mus col 19)95
As afirmaccedilotildees de Dioacutegenes satildeo a um soacute tempo histoacutericas e demonstrativas Deste
modo para Delattre Dioacutegenes se coloca sem o saber como representante de uma cultura
livresca vasta ldquomas que sobrecarrega o leitor em um acuacutemulo de provas cuja credibilidade e
confianccedila eram geralmente pouco confiaacuteveis e que poderiam de maneira definitiva ocultar a
realidade musical e moral contemporacircnea de Dioacutegenesrdquo (Delattre 2007 p 18) De fato as
autoridades filosoacuteficas e literaacuterias a que ele recorre datam de um outro periacuteodo ao qual a sua
realidade musical jaacute natildeo corresponde
Assim para Dioacutegenes o muacutesico torna-se essencialmente um especialista nos efeitospsicoloacutegicos e eacuteticos que satildeo suscetiacuteveis de produzir as diferentes gamas ritmos emelodias Desse modo o estoico perde totalmente de vista nessa atividade (que oepicurista chama de delirante) a uacutenica noccedilatildeo que vale para um disciacutepulo deEpicuro a do prazer musical (Delattre 2007 p 16)
Ora para Filodemo
todas as tentativas de teorizar a psicologia musical satildeo vatildes Eacute por essa razatildeoprecisamente que o muacutesico em busca de um saber que lhe permita reconhecerdistintamente as disposiccedilotildees nas quais se encontram os oacutergatildeos sensoriais quaissejam elas estaacute em busca de uma ciecircncia do inexistente (Filodemo De Mus col117 3-10)96
94 Ver Filodemo De Mus (col 6-12)95 Essa proposiccedilatildeo exemplifica o tipo de posicionamento estoico que o ceacutetico considera dogmaacutetico pois daacute
ares de verdade a uma mera suposiccedilatildeo O fato de que as melodias recebem qualificativos eacuteticos natildeo provaapenas exemplifica a crenccedila que as pessoas tecircm de que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticas
96 Observa-se aqui uma argumentaccedilatildeo anaacuteloga agravequela que aparece na segunda parte do Contra os Muacutesicos
44
O pensamento estoico eacute refutado por Filodemo porque para os estoicos a sensaccedilatildeo eacute
dotada de inteligibilidade sendo o veiacuteculo do conhecimento imediato da realidade97 Segundo
Woodward (2009 p 18) ldquoa muacutesica portanto requereria alguma qualidade racional para ter
qualquer valor psicoloacutegico para o estoico visto que a alma teria de (a) entender a impressatildeo
racional para poder (b) dar assentimento ou rejeitar a proposiccedilatildeo colocadardquo Entretanto para
Filodemo a ideia estoica de atribuir logos ao sentido da audiccedilatildeo seria absurda visto que de
acordo com a filosofia epicurista o mesmo som atinge qualquer ouvinte de modo anaacutelogo e a
ele satildeo acrescentadas qualidades pelo proacuteprio ouvinte de acordo com suas experiecircncias
particulares
Toda a concepccedilatildeo de que a muacutesica pode afetar a alma diretamente aleacutem dos sinaisde misticismo pitagoacuterico entra em conflito com a concepccedilatildeo epicurista depercepccedilatildeo De acordo com Epicuro todos os sentidos satildeo semelhantes no seumeacutetodo de operaccedilatildeo o som natildeo tem propriedades peculiares Aleacutem disso todasensaccedilatildeo eacute por si mesma desprovida de significado cognitivo (hellip) Portanto elanatildeo tem physei [por natureza] efeito cognitivo pois os sons natildeo adquiremsignificado ateacute que a doxa [opiniatildeo] entre em accedilatildeo e se natildeo haacute efeito cognitivonatildeo haacute efeito eacutetico pois afecccedilotildees e moral soacute podem ser influenciadas por meioscognitivos () (Wilkinson 1938 p 178)
Em funccedilatildeo disso o som natildeo teria a capacidade de mover a alma atraveacutes da imitaccedilatildeo
A melodia sendo irracional nem potildee a alma em movimento quando ela estaacute em repouso
nem leva a alma agrave condiccedilatildeo natural de seu caraacuteter e tambeacutem natildeo a acalma quando ela estaacute
agitada Movendo-se em qualquer direccedilatildeo aleacutem disso tambeacutem natildeo pode transformaacute-la
diminuindo ou intensificando uma disposiccedilatildeo existente
pois a muacutesica natildeo eacute algo capaz de imitar como alguns98 imaginam em sonho nem eacuteverdade que ndash como nosso adversaacuterio ltpretendegt - apresentando semelhanccedilas decaraacuteteres que natildeo tecircm de modo algum o poder de imitar ela faccedila aparecer todas asqualidades de caraacuteteres de modo que haja entre elas a da magnificecircncia e a dabaixeza a da coragem e a da ausecircncia de coragem a da reserva e a da audaacutecia natildeomais do que aquilo que pode a arte da culinaacuteria (Filodemo De Mus col 117)
O proacuteximo passo de Filodemo eacute sustentar que tais qualidades satildeo erroneamente
atribuiacutedas agrave muacutesica porque Dioacutegenes (e consequentemente todos aqueles com quem ele97 A representaccedilatildeo traz nela a sua evidecircncia (que exige que se decirc o assentimento) O assentimento a uma
representaccedilatildeo verdadeira eacute um ato voluntaacuterio da mente isso eacute o que os estoicos chamam ldquoapreensatildeordquo Oassentimento a uma sensaccedilatildeo assim como toda accedilatildeo eacute um ato voluntaacuterio As impressotildees humanas satildeodesde sua ocorrecircncia racionais por isso eacute necessaacuterio o assentimento antes da impressatildeo inicial conduzir agraveaccedilatildeo
98 Referecircncia a Platatildeo (Leis 699 B-E) atribuiacuteda a Dioacutegenes por Filodemo (De Mus col 51) Ver Delattre(2007 p 214 n 5)
45
concorda) confunde muacutesica e poesia Tendo em vista que Dioacutegenes rejeitava a muacutesica
instrumental de seu tempo os poderes atribuiacutedos agrave muacutesica por Dioacutegenes dizem respeito agrave
mousike no sentido antigo do termo ou seja a uniatildeo entre melodia ritmo e texto poeacutetico
Muito embora de acordo com o sistema estoico o proacuteprio som tenha logos por conseguinte
um significado e o poder de mover a alma do ouvinte
Jaacute para Filodemo os compositores de muacutesica instrumental assim nomeados natildeo soacute
por ele mas no uso comum de seu tempo e tambeacutem por Aristoacutexeno emitem sons desprovidos
de significaccedilatildeo tanto quando tocam peccedilas instrumentais quanto acompanhando o canto
A discordacircncia fundamental aqui eacute entre o conceito de mousike enquanto melodia
ritmo e palavra e o de mousike enquanto ldquoarte dos sonsrdquo Filodemo toma isso como ponto de
partida sustentando que os efeitos que a muacutesica exerce na alma do ouvinte se datildeo em funccedilatildeo
do significado das palavras e que o som por si mesmo natildeo tem significado algum sendo
desprovido de razatildeo (logos) Nesse sentido ele considera que
se Simonides e Piacutendaro foram muacutesicos eles foram tambeacutem poetas que enquantomuacutesicos compuseram melodias desprovidas de significaccedilatildeo e por outro ladoenquanto poetas compuseram as palavras e que se satildeo uacuteteis (talvez natildeo sejammesmo a partir deste ponto de vista ou muito pouco) elas natildeo satildeo uacuteteis apenas paraos muacutesicos ou mais uacuteteis para os muacutesicos mas satildeo igualmente uacuteteis para todas aspessoas educadas (Filodemo De Mus col 143 20-40)99
Assim de acordo com Wilkinson (1938 p 175-6) ldquoenquanto um muacutesico no sentido
antigo pode ter um efeito moral nomeadamente atraveacutes de suas palavras no novo e restrito
sentido ele natildeo pode ter nenhum Ele natildeo pode excitar ou acalmar nenhuma sensaccedilatildeo em
particularrdquo
Segundo Filodemo a muacutesica natildeo tem nenhum ethos intriacutenseco As qualidades dos
modos musicais natildeo se datildeo a partir da sensaccedilatildeo mas da opiniatildeo ldquoNessas condiccedilotildees no que
diz respeito agraves muacutesicas enarmocircnica e cromaacutetica natildeo eacute pela sua percepccedilatildeo qualitativa da qual
a razatildeo natildeo participa mas pelas opiniotildees formadas a partir dela que as pessoas entram em
desacordordquo (Filodemo De Mus col 116 10-20) Para o filoacutesofo epicurista se as pessoas
reagem de maneiras diferentes ao mesmo tipo de muacutesica isso se daacute em funccedilatildeo de sua
experiecircncia de vida e cultura Nesse sentido a muacutesica natildeo teria nenhum papel educacional
poderia ser prazerosa e a sua valoraccedilatildeo dependeria apenas do contexto e das associaccedilotildees de
ideias feitas pelos seus ouvintes
99 A relaccedilatildeo entre muacutesica e poesia eacute retomada por Sexto Empiacuterico em M VI 28 e a questatildeo da utilidade em MVI 33
46
4 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
NO CONTRA OS PROFESSORES
O Contra os Muacutesicos sexto livro do Contra os Professores insere-se em uma
proposta maior de Sexto Empiacuterico que tem como objetivo refutar os ensinamentos
(mathemata) que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos (enkyklios paideia) Na introduccedilatildeo do
Contra os Professores Sexto Empiacuterico explica que a refutaccedilatildeo agraves disciplinas dos Estudos
Ciacuteclicos se daacute porque os ceacuteticos100
a respeito das disciplinas (mathemata) tiveram a mesma experiecircncia que tiveram noque diz respeito agrave Filosofia como um todo Pois tal como eles se aproximaram daFilosofia com o desejo de alcanccedilar a verdade mas quando se depararam com oconflito da igual forccedila das opiniotildees e com a anomalia das coisas suspenderam ojuiacutezo - assim tambeacutem no caso das disciplinas [dos Estudos Ciacuteclicos] quando elespuseram-se a dominaacute-las visando tambeacutem aqui aprender a verdade elesencontraram dificuldades natildeo menos seacuterias que eles natildeo omitiram Do mesmomodo noacutes tambeacutem seguiremos o mesmo meacutetodo que eles e buscaremos natildeo emespiacuterito de controveacutersia selecionar e apresentar os argumentos fundamentais contraos professores (M I 6-7)
Infelizmente o autor natildeo daacute indicaccedilotildees precisas do que sejam as enkyklia mathemata
porque sua refutaccedilatildeo dirige-se agravequeles que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nelas Apesar da
breve menccedilatildeo de Sexto consideramos tal como fundamental para se compreender o sentido
em que cada uma das disciplinas - entre elas a muacutesica - eacute refutada
Entretanto em algumas traduccedilotildees e comentaacuterios ao Contra os Professores a expressatildeo
enkyklia mathemata eacute ou simplesmente igualada a ldquoArtes Liberaisrdquo ou traduzida como
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo101 Por sua imprecisatildeo e brevidade tais definiccedilotildees comprometem a
compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo do Contra os Professores e consequentemente
obscurecem o papel dessa refutaccedilatildeo na filosofia ceacutetica pirrocircnica
Em funccedilatildeo disso antes de analisarmos o Contra os Muacutesicos cabem ainda algumas
etapas Primeiramente eacute preciso compreender em que consiste o ceticismo pirrocircnico seus
meacutetodos e seus objetivos A partir disso poderemos observar a relaccedilatildeo entre o objeto
100 Para as citaccedilotildees do Contra os Professores (exceto M VI) utilizamos as traduccedilotildees de Bury (1933) e Cavero(1997) como referecircncia adaptando-as de acordo com o texto grego quando julgamos necessaacuterio
101 Observe-se as seguintes ediccedilotildees Cavero (1997 p 7-8) simplesmente iguala as expressotildees grega e latinaGreaves (1986 p 18) limita-se a apresentar os livros do Adversus Mathematikous descrevendo-os comouma ldquorefutaccedilatildeo dos mathematikoi (ou professores) das seis disciplinas conhecidas como Estudos Ciacuteclicos eque constituiacuteam o curriacuteculo baacutesico da educaccedilatildeo antigardquo Bury (1933 p 6-7) explica em uma nota agrave suatraduccedilatildeo que as enkyklia mathemata satildeo ldquoos conteuacutedos da educaccedilatildeo geral preacute-profissional que inclui aastronomia geometria muacutesica gramaacutetica e retoacutericardquo Dentre as ediccedilotildees que utilizamos como referecircncia aediccedilatildeo de Pellegrin (2002) eacute a uacutenica que em sua introduccedilatildeo aprofunda o tema
47
principal da refutaccedilatildeo ceacutetica a Filosofia e o tipo de conhecimento refutado no Contra os
Professores as artes (tekhnai) Para isso aprofundaremos o sentido da Enkyklios Paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico chamando atenccedilatildeo para a presenccedila constante da mousike enquanto
uma das disciplinas que a compotildeem
Tendo claro o objeto ao qual a refutaccedilatildeo se dirige poderemos nos ater agraves
peculiaridades do estilo argumentativo utilizado por Sexto Empiacuterico para a refutaccedilatildeo das
mathemata Com isso por fim teremos as ferramentas necessaacuterias para no uacuteltimo capiacutetulo
compreendermos o sentido dos argumentos que Sexto Empiacuterico utiliza para refutar a mousike
no Contra os Muacutesicos
41 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO
NA FILOSOFIA E NAS ARTES
ldquoPor amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar atraveacutes da argumentaccedilatildeo na medida do
possiacutevel o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticosrdquo (HP III 280)102 Nas Hipotiposes
Pirronianas o ceticismo pirrocircnico eacute apresentado por Sexto Empiacuterico como uma habilidade
de opor phenomena e noumena (objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel e objetos do pensamento)103 O
igual peso (isostheneia) das coisas e afirmaccedilotildees colocadas em oposiccedilatildeo gera segundo Sexto
um estado de suspensatildeo do juiacutezo (epokhe) - ldquoum estado mental por meio do qual nem
afirmamos nem negamosrdquo (HP I 10) Isso no que diz respeito ao que se relaciona agrave opiniatildeo
(doxa) leva agrave tranquilidade da alma (ataraxia) Visto que haacute acontecimentos inevitaacuteveis
tendo observado as perturbaccedilotildees adicionais geradas pela crenccedila de que algo eacute bom ou mau
por natureza essa praacutetica visa eliminar tal crenccedila adicional promovendo assim afecccedilotildees
moderadas (metriopatheia) (HP I 30)
O princiacutepio (arkhe) causal do ceticismo eacute a busca pela tranquilidade da alma Como
explica Sexto
ldquoHomens de talentordquo perturbados com as anomalias nas coisas e confusos acercade quais mereciam assentimento esforccedilaram-se em descobrir o que eacute verdadeiro e o
102 Para as citaccedilotildees das Hipotiposes Pirronianas de Sexto Empiacuterico traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir daediccedilatildeo de Mates (1996)
103 Note-se que neste momento ldquota phainomenardquo e ldquota noumenardquo devem ser compreendidos de modo estritoos primeiros satildeo objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel enquanto os segundos satildeo objetos do pensamento Maisadiante ldquoto phainomenonrdquo ou seja aquilo que aparece incluiraacute tanto os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevelquanto os objetos do pensamento
48
que eacute falso nelas esperando que ao esclarecer isso atingiriam a tranquilidade daalma (HP I 12)
Todavia para o ceacutetico durante cada investigaccedilatildeo sobre as coisas encontra-se
afirmaccedilotildees inconsistentes entre si Segundo Sexto para esses ldquohomens de talentordquo nenhuma
das afirmaccedilotildees eacute mais passiacutevel de credibilidade do que a outra e na falta de um criteacuterio que
permita o assentimento a uma das afirmaccedilotildees seria uma atitude precipitada assumir uma
delas como verdadeira Essa impossibilidade de decidir leva agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca
daquilo que se estava investigando Desse modo embora pretendesse atingir a tranquilidade
da alma por meio da busca pela verdade o ceacutetico acaba por obtecirc-la ao suspender o juiacutezo
acerca dela
Segundo Sexto acontece ao ceacutetico o mesmo que aconteceu ao pintor Apeles
Conta-se que certa vez quando ele estava pintando um cavalo e desejavarepresentar a espuma do cavalo ele falhou de tal modo que desistiu e jogou suaesponja na pintura - a esponja na qual ele limpava as tintas do pincel ndash e ao atingira pintura a esponja produziu o efeito desejado (HP I 28)
Do mesmo modo o surgimento do ceticismo se daacute como que por acaso e a
tranquilidade da alma segue a suspensatildeo do juiacutezo ldquoassim como a sombra segue o corpordquo (HP
I 29)
O ainda futuro ceacutetico quer evitar a precipitaccedilatildeo de dizer-se conhecedor da verdade ao
assentir de modo arbitraacuterio com algo que natildeo seja evidente Quando o ceacutetico descobre que a
praacutetica de opor a cada sentenccedila outra de igual forccedila leva agrave suspensatildeo de juiacutezo toma essa
praacutetica como princiacutepio do ceticismo visto que ela parece acabar com o dogmatismo104
Quanto ao dogmatismo eacute importante salientar que no pirronismo natildeo haacute diferenccedila
entre ldquodogmatizarrdquo e ldquoacreditarrdquo Quando o ceacutetico diz que natildeo dogmatiza ele estaacute dizendo
em outras palavras que natildeo sustenta crenccedila
O predicado ldquoverdadeirordquo aplica-se primeiramente a proposiccedilotildees que se pretendeque descrevam objetos externos (to ektos hypokeimenon) e estados de coisas eldquocrenccedilardquo refere-se a uma atitude afirmativa forte e estaacutevel em relaccedilatildeo a essasproposiccedilotildees (Mates 1996 p 6)
Nesse sentido mais estreito105 do termo ldquodogmardquo estaacute ligado a questotildees investigaacuteveis
104 ldquoAqueles que acreditam terem encontrado a verdade satildeo os Dogmaacuteticos ndash por exemplo os seguidores deAristoacuteteles e Epicuro os Estoicos e outrosrdquo (HP I 3)
105 O sentido mais amplo de dogma diz respeito a ldquoalgo com que algueacutem meramente concordardquo - como umasentenccedila que descreve uma afecccedilatildeo determinada ndash e nesse sentido segundo o autor pode-se dizer que o
49
sobre a ldquoexistecircncia e natureza daquilo que se supotildee ser independente das nossas impressotildees
subjetivas pensamentos e sensaccedilotildeesrdquo106 (Mates 1996 p 7) Eacute sobre isso que por meio da
argumentaccedilatildeo o ceacutetico suspende o juiacutezo
Para o ceacutetico dogmaacutetico eacute aquele que pretende demonstrar que aquilo que lhe aparece
eacute o modo como de fato as coisas realmente satildeo e que busca formular teorias sobre o
fenocircmeno teorias que teriam apreendido a verdade a realidade das coisas Desse modo a
suspensatildeo de juiacutezo estaacute voltada agraves asserccedilotildees dogmaacuteticas e natildeo agraves coisas dizendo respeito agrave
afirmaccedilatildeo da conformidade entre o ser e o aparecer De acordo com Porchat
A Filosofia claacutessica distinguira como se sabe entre o ser e o aparecer transpondometafisicamente a distinccedilatildeo corriqueira entre as aparecircncias enganosas das coisas esua manifestaccedilatildeo correta e ordinaacuteria Ela privilegiou o ser como necessaacuterio eestaacutevel desqualificando o aparecer porque instaacutevel e contingente Por vezesentendeu o aparecer como manifestaccedilatildeo do ser ainda que superficial mas commaior frequecircncia o pensou como aparecircncia enganosa que dissimulava o ser e oocultava (Porchat 1993 p 179)
Portanto nas Hipotiposes Pirronianas a argumentaccedilatildeo ceacutetica visa produzir a
suspensatildeo de juiacutezo ao mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e sua
precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente107 crenccedilas a respeito daquilo que existe na realidade
externamente agraves nossas representaccedilotildees
Se por um lado o ceacutetico critica os discursos dogmaacuteticos por outro ele pretende que
seu proacuteprio discurso expresse apenas a admissatildeo de uma afecccedilatildeo (pathos) involuntaacuteria o
estado presente de sua alma em relaccedilatildeo ao fenocircmeno Por isso as sentenccedilas proferidas pelo
ceacutetico satildeo ditas ldquonatildeo investigaacuteveisrdquo (azetetos) ldquoA questatildeo sobre sua veracidade ou falsidade
natildeo se colocardquo (Mates 1996 p 6)108 visto que dizem respeito apenas ao fenocircmeno
Mesmo assim os filoacutesofos ditos dogmaacuteticos consideram que uma vez
suspendido o juiacutezo interrompe-se tambeacutem a possibilidade de accedilatildeo no mundo e por isso
ceacutetico emite doxai sem se comprometer com um criteacuterio de verdade106 Satildeo essas as caracteriacutesticas que Sexto observa no conceito de mousike refutado no Contra os Muacutesicos
Veremos que ele constata que atribui-se poderes agrave muacutesica por natureza A refutaccedilatildeo de Sexto tende amostrar que os poderes que se considera inerentes a ela dependem natildeo de sua natureza mas de nossasrepresentaccedilotildees
107 Atenccedilatildeo ao uso do termo grego ldquodiabebaiomairdquo que significa ldquoassegurarrdquo ldquoafirmar energicamenterdquo juntoao sentido dogmaacutetico de crenccedila Cf Mates (1996 p 60)
108 Para que o discurso do ceacutetico seja coerente com a sua finalidade ndash a de promover a suspensatildeo de juiacutezovisando obter a tranquilidade da alma - as sentenccedilas que o constituem ldquonatildeo devem ser tomadas comoverdadeirasrdquo (Mates 1996 p 255) Por isso o discurso ceacutetico seraacute considerado natildeo-assertivo ldquoAsserccedilatildeordquoem sentido amplo abrange qualquer ldquoexpressatildeo indicando afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e em sentido estrito dizrespeito apenas a expressotildees afirmativas A ldquonatildeo-asserccedilatildeordquo eacute uma afecccedilatildeo em vista da qual o ceacutetico diraacute quenatildeo afirma ou nega qualquer coisa no que diz respeito agraves ldquodeclaraccedilotildees dogmaacuteticas acerca daquilo que eacute natildeo-evidenterdquo (HP I 193)
50
acusam o ceacutetico de que sua postura levaria agrave inaccedilatildeo (apraxia)109 A resposta dos ceacuteticos
pirrocircnicos ao contra-argumento da inaccedilatildeo eacute dada com a proposiccedilatildeo de um criteacuterio de accedilatildeo
desvinculado do criteacuterio que o ceticismo ataca Nesse sentido o pirrocircnico distingue entre dois
tipos de criteacuterio aquele ligado agrave ldquocrenccedila sobre a existecircncia e a natildeo existecircnciardquo ou seja aquilo
que chamamos ldquocriteacuterio de verdaderdquo ao qual estatildeo voltadas as suas objeccedilotildees e por outro
lado o criteacuterio de accedilatildeo a partir do qual ldquona conduccedilatildeo da vida diaacuteria noacutes fazemos algumas
coisas e natildeo outrasrdquo (HP I 21)
Isso significa que o ceacutetico natildeo soacute limita seu discurso agravequilo que lhe aparece mas toma
o proacuteprio aparecer como criteacuterio de suas accedilotildees O fenocircmeno por se basear em uma afecccedilatildeo
involuntaacuteria nunca eacute posto em duacutevida pelo ceacutetico para ele natildeo eacute preciso ultrapassar o
acircmbito do fenocircmeno dizendo o que as coisas realmente satildeo para se viver no mundo Afinal
nas palavras de Sexto ldquoimagino que ningueacutem dispute sobre se o objeto externo aparece desse
modo ou daquele mas antes sobre se ele eacute tal como parece serrdquo (HP I 22) ou seja a duacutevida
se daacute a respeito da conformidade entre o ser e o aparecer Basear-se no fenocircmeno eacute
excetuando essa duacutevida sustentar suas decisotildees naquilo que estaacute aleacutem do escopo da
suspensatildeo do juiacutezo e natildeo eacute passiacutevel de duacutevida
Isso que natildeo podemos rejeitar que se oferece irrecusavelmente agrave nossasensibilidade e entendimento ndash se nos permitimos lanccedilar matildeo de uma terminologiafilosoacutefica consagrada ndash eacute o que os ceacuteticos chamamos de fenocircmeno (tophainomenon o que aparece) O que nos aparece se nos impotildee com necessidade aele natildeo podemos senatildeo assentir eacute absolutamente inquestionaacutevel em seu aparecerQue as coisas nos apareccedilam como aparecem independe de nossa deliberaccedilatildeo ouescolha natildeo se prende a uma decisatildeo de nossa vontade O que nos aparece natildeo eacuteenquanto tal objeto de investigaccedilatildeo precisamente porque natildeo pode ser objeto deduacutevida Natildeo haacute sentido em argumentar contra o aparecer do que aparece talargumentaccedilatildeo seria ineficaz e absurda (Porchat 1993 p 176)
Sexto Empiacuterico apresenta os desdobramentos do criteacuterio praacutetico baseado em quatro
aspectos principais
no que concerne agravequilo que aparece entatildeo noacutes [ceacuteticos] vivemos sem crenccedilas masde acordo com a vida comum visto que natildeo podemos ser totalmente inativos Eesse regime da vida comum parece ser quaacutedruplo uma parte tem a ver com aorientaccedilatildeo da natureza outra com a compulsatildeo das afecccedilotildees outra com aquilo quenos eacute apresentado pelas leis e pelos costumes e a quarta com a instruccedilatildeo nas artes[tekhnai] (HP I 23)
109 Tal questionamento se daacute porque a epistemologia estoica implica que se decirc assentimento voluntaacuterio agravesrepresentaccedilotildees para que se possa tomar decisotildees a respeito delas
51
Segundo a proacutepria explicaccedilatildeo de Sexto a parte do criteacuterio de accedilatildeo que diz repeito agrave
orientaccedilatildeo da natureza eacute aquela pela qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo epensamento a compulsatildeo das afecccedilotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva agrave comidae a sede nos faz beber o seguir os costumes e leis eacute aquela pela qual noacutes aceitamosque ser piedoso na conduccedilatildeo da vida eacute bom e ser impiedoso eacute ruim e a instruccedilatildeo nasartes eacute aquela pela qual noacutes natildeo somos inativos em qualquer funccedilatildeo adquirida (HP I24)
Ao que ele acrescenta ainda ao final ldquoe dizemos todas essas coisas sem crenccedilardquo (HP
I 24) reforccedilando que tal criteacuterio eacute tomado de maneira independente da existecircncia ou natildeo
existecircncia daquilo que estaacute por traacutes dele
A pergunta que o contra-argumento da inaccedilatildeo nos coloca eacute como vive o ceacutetico a
partir disso A adoccedilatildeo do criteacuterio praacutetico poderia ser um indiacutecio de que ele pretende retornar
ao senso comum e viver ldquosem Filosofiardquo muito embora como afirma Brochard esse retorno
seja ldquoum retorno muito pouco ingecircnuo agrave ingenuidade primitivardquo (Brochard 2009 p 362)
Mas o que seria esse retorno agrave vida comum Seria simplesmente viver seguindo a multidatildeo
A esse respeito Sexto diz que ldquoqualquer um que diga que noacutes devemos dar assentimento agrave
maioria estaacute fazendo uma proposta infantilrdquo (HP I 89)110 Segundo Porchat ldquoa visatildeo de
mundo de um ceacutetico se conforma obviamente como a visatildeo do mundo de qualquer homem agrave
sua experiecircncia passada e agrave sua formaccedilatildeo cultural ela se constroacutei a partir de sua vivecircncia do
fenocircmeno e lhe estaacute intimamente associadardquo (Porchat 1993 p 198)
Tal como um filoacutesofo dogmaacutetico que para fazer uso de seus sentidos e de sua
inteligecircncia natildeo precisa dar a prova ontoloacutegica de sua existecircncia tambeacutem para o ceacutetico natildeo
haacute porque deixar de agir por natildeo assumir uma posiccedilatildeo a respeito das questotildees acerca da
existecircncia ou natildeo das coisas Natildeo eacute preciso sustentar a verdade de conceitos filosoacuteficos para
ao se sentir fome ir em busca de alimento Aleacutem disso assim como um filoacutesofo que nos
apresenta uma Filosofia moral baseada em princiacutepios racionais natildeo vive necessariamente de
acordo com a Filosofia que formula mas muitas vezes simplesmente obedece agraves leis e aos
costumes de seu paiacutes sem verificar sua validade ou veracidade o ceacutetico segue as leis e
costumes enquanto aquilo que lhe aparece como sendo o caso
Desse modo natildeo soacute o ceacutetico mas tambeacutem o filoacutesofo dogmaacutetico no que concerne agrave
vida praacutetica simplesmente vivem de acordo com aquilo que lhes aparece sem precisar
ultrapassar a esfera fenomecircnica e dizer o que as coisas realmente satildeo Eacute sob essa perspectiva
110 No Contra os Muacutesicos Sexto dedica-se a refutar as opiniotildees sobre muacutesica ldquorepetidas costumeiramente pelamaioriardquo (M VI 7)
52
que o ceacutetico pretende natildeo precisar sustentar crenccedilas a respeito das coisas para poder viver no
mundo Em suma eacute tendo em vista a conduccedilatildeo da vida que o ceacutetico adota o criteacuterio praacutetico
Visto que a instruccedilatildeo nas artes faz parte do criteacuterio praacutetico o combate ao dogmatismo
tambeacutem nessa aacuterea eacute essencial ao funcionamento do ceticismo Eacute nesse sentido que o Contra
os Professores parece ter uma funccedilatildeo peculiar dentre as obras de Sexto Natildeo obstante os
livros que o compotildeem satildeo destinados natildeo a qualquer tipo de ensino teacutecnico mas apenas
agravequeles das disciplinas dos chamados Estudos Ciacuteclicos Como veremos a delimitaccedilatildeo do
escopo dessa criacutetica se daacute em funccedilatildeo do dogmatismo observado nos conteuacutedos e meacutetodos
relacionados a esse sistema de ensino
42 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
A expressatildeo Enkyklios Paideia tem uma origem antiga na histoacuteria da educaccedilatildeo na
Greacutecia mas eacute importante frisar que ela muda de significado entre o periacuteodo claacutessico e o
imperial Os chamados Estudos Ciacuteclicos na Greacutecia arcaica tinham uma conotaccedilatildeo praacutetica
inicialmente centrada na mousike Kyklios nesse caso parece remeter agrave danccedila circular
realizada pelo coro Todavia essa educaccedilatildeo musical (naquele sentido amplo de mousike) foi
perdendo espaccedilo para a retoacuterica e para a Filosofia Em Platatildeo (Teeteto 172 C - 177 C) por
exemplo observa-se a rejeiccedilatildeo das ocupaccedilotildees praacuteticas (consideradas servis) Tambeacutem em
Aristoacuteteles observamos as recomendaccedilotildees e as reservas em relaccedilatildeo agrave praacutetica das atividades
que deveriam fazer parte da educaccedilatildeo do homem livre A enkyklios paideia deixa a muacutesica
praticamente de lado e permanece centrada na retoacuterica dialeacutetica e gramaacutetica111 De acordo
com Lippman ldquoesse processo comeccedila durante o curso do seacuteculo V aC a desintegraccedilatildeo da
composta arte da muacutesica acompanhada pela efervescecircncia poliacutetica e o crescimento de uma
cultura com uma mentalidade retoacuterica provoca a desmusicalizaccedilatildeo da educaccedilatildeordquo (Lippman
1966 552)
A partir disso a chamada Enkyklios Paideia expande seu escopo incorporando um
significado mais geral Na obra de Aristoacuteteles112 aparecem tambeacutem as expressotildees ldquoenkyklia
philosophematardquo e ldquota enkykliardquo que provavelmente equivalem agrave expressatildeo ldquoexoterikoi
logoirdquo designando ldquoum desenvolvimento ou uma obra que natildeo tem um caraacuteter
111 Disciplinas que vieram a compor o trivium das chamadas Artes Liberais na Idade Meacutedia112 Ver Aristoacuteteles De Caelo (279 A) EN (1096 A)
53
especificamente filosoacutefico mas se situa em um niacutevel inferior e preparatoacuteriordquo (Hadot 1984 p
264) Reforccedilamos que essas expressotildees que remetem agrave Enkyklios Paideia no periacuteodo
heleniacutestico natildeo tecircm o mesmo significado que teratildeo no periacuteodo imperial
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta as disciplinas matemaacuteticas que tinham funccedilatildeo
preparatoacuteria para se atingir a Filosofia A lista das disciplinas inclui aritmeacutetica geometria
astronomia e muacutesica113 Platatildeo eacute herdeiro de uma tradiccedilatildeo pitagoacuterica segundo a qual ldquoas
ciecircncias matemaacuteticas estatildeo relacionadas porque lidam com as duas formas primaacuterias do ser
(que podemos tomar como a multiplicidade e a extensatildeo)rdquo (Lippman 1966 p 545) O
filoacutesofo ressalta o papel eacutetico das mathemata e sublinha o caraacuteter abstrato e ideal de cada
uma O pitagoacuterico Arquitas de Tarento tambeacutem coloca a muacutesica no uacuteltimo lugar da lista o
que indica seu status mais elevado
Enquanto uma das mathemata a muacutesica era estudada em seu aspecto mais abstrato a
ciecircncia harmocircnica em funccedilatildeo de sua conexatildeo direta com a astronomia Como jaacute foi
enfatizado as mathemata ldquonatildeo dizem respeito ao uso praacutetico nem a objetos da experiecircnciardquo
(Lippman 1966 p 547) Por isso em seu tratado pedagoacutegico destinado a preparar o
estudante para a leitura de Platatildeo Teon de Smirna afirma que natildeo haacute necessidade da muacutesica
instrumental mas que o interesse estaacute voltado agrave compreensatildeo da harmonia e da muacutesica
celestial
Na obra de Aristoacuteteles a muacutesica aparece em uma lista bastante semelhante114 remetida
agraves eleutherai tekhnai (artes liberais) ou seja agraves artes destinadas agrave educaccedilatildeo do homem livre
A mousike enquanto disciplina do ensino eacute denominada com diversas outras disciplinas
pelo termo tekhne (arte ou teacutecnica) De acordo com Pellegrin
depois do seacuteculo V aC desenvolveu-se uma literatura ldquoteacutecnicardquo constituiacuteda detratados codificando a praacutetica de numerosos domiacutenios desde a equitaccedilatildeo e aculinaacuteria ateacute a estrateacutegia e a arte poliacutetica Aleacutem disso as disciplinas que noacutesconsiderariacuteamos cientiacuteficas como a geometria a aritmeacutetica ou teacutecnico-cientiacuteficascomo a medicina eram comumente chamadas tekhnai Este haacutebito de transmitir umsavoir-faire racionalmente exposto eacute com certeza uma reaproximaccedilatildeo do tipo deracionalidade que foi aplicada agrave aacuterea cultural grega com o estabelecimento dascidades No domiacutenio das artes como em outras aacutereas a praacutetica rotineira e atransmissatildeo tradicional no interior das linhagens deram lugar a uma abordagemuniversal normatizada e tirando sua forccedila da constriccedilatildeo do raciociacutenio (Pellegrin2002 p 14)115
113 Essas disciplinas compotildeem o conjunto que veio a ser o quadrivium das Artes Liberais na Idade Meacutedia114 Ver seccedilatildeo 322 p 31115 Deve-se destacar o papel dos Sofistas no desenvolvimento desse tipo de literatura teacutecnica Os Sofistas num
certo sentido foram aqueles que profissionalizaram o ensino Hiacutepias um dos Sofistas que aparece nosdiaacutelogos de Platatildeo defendia um ensino que permitisse que se fosse ldquocapaz de falar sobre qualquer coisa e dearrostar quem quer que seja em qualquer assuntordquo (Marrou 1966 p 94) Segundo Platatildeo (Protaacutegoras 218
54
Para fins de nosso estudo tomamos como paradigma do que seja uma tekhne a
definiccedilatildeo atribuiacuteda aos estoicos apresentada e refutada pelo proacuteprio Sexto Empiacuterico no
Contra os Professores ldquotoda tekhne eacute um sistema composto de apreensotildees exercidas
conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10)116
Cabe pontuar que tanto para Aristoacuteteles quanto para os Estoicos tanto a ciecircncia
quanto a teacutecnica partem dos sentidos A diferenccedila de acordo com essas duas correntes
filosoacuteficas natildeo estaacute no modo como o conhecimento se daacute mas nos objetos aos quais a
ciecircncia e a teacutecnica se dirigem117 Aristoacuteteles daacute agrave tekhne um sentido e um papel bastante
precisos Na Metafiacutesica o filoacutesofo distingue os homens dos animais dizendo que os homens
ldquose elevam agrave arte (tekhne) e ao raciociacutenio (logismos) a arte e a ciecircncia (episteme) procedem
natildeo do acaso (tykhe) mas da experiecircncia (empeiria)rdquo (Aristoacuteteles Met 980 B 25)
Experiecircncia que eacute constituiacuteda pela uniatildeo da sensaccedilatildeo ndash nosso primeiro contato com o mundo
ndash com a memoacuteria de repetidas sensaccedilotildees
Natildeo obstante para Aristoacuteteles soacute haacute arte e ciecircncia quando haacute algum juiacutezo sobre algo
universal ldquoa arte se gera quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia nasce uma noccedilatildeo
uacutenica concernente aos casos semelhantesrdquo (Aristoacuteteles Met A 1 981 A 5) Eacute nesse sentido
que na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a tekhne como ldquohaacutebito produtivo acompanhado
pelo logos verdadeirordquo (Aristoacuteteles EN 1140 A 10)
Na Filosofia aristoteacutelica o conhecimento teacutecnico aproxima-se da ciecircncia porque
ambos estatildeo preocupados com o logos e nesse sentido com aquilo que haacute de universal nas
relaccedilotildees de causa e efeito A diferenccedila sob essa perspectiva eacute apenas a de que a ciecircncia diz
respeito agrave busca do conhecimento das ldquocausas primeirasrdquo (que existem necessariamente na
natureza) e a teacutecnica tem por objeto a forma de um produto contingente
Aristoacuteteles apresenta a tekhne como uma forma de saber verdadeiro constituiacuteda por
E) Hiacutepias exigia de seus alunos um estudo soacutelido das quatro ciecircncias elaboradas desde os pitagoacutericos116 Essa definiccedilatildeo estoica de tekhne enquanto ldquosistema composto de apreensotildeesrdquo pode ser encontrada em vaacuterios
trechos da obra de Sexto Empiacuterico Em um trecho das Hipotiposes que trata da possibilidade do aprendizadolemos que ldquoEles [os estoicos] dizem que uma arte eacute um sistema de apreensotildees exercidas conjuntamente naparte superior da almardquo (HP III 188) e tambeacutem que ldquoa arte eacute um sistema de apreensotildees e que umaapreensatildeo eacute um assentimento a uma representaccedilatildeo apreensivardquo (HP III 240) Essa noccedilatildeo eacute tomada na obrade Sexto Empiacuterico como paradigma daquilo que eacute assumido pelos filoacutesofos chamados dogmaacuteticos Arelaccedilatildeo entre o conceito de tekhne e a noccedilatildeo de utilidade eacute fundamental para a compreensatildeo da criacutetica deSexto Empiacuterico agrave mousike enquanto uma das enkyklia mathemata
117 A sensaccedilatildeo eacute algo bastante diferente para um e para outro No pensamento de Aristoacuteteles ainda natildeo haacute aquestatildeo da correspondecircncia entre a representaccedilatildeo e o objeto representado questatildeo que na Filosofia estoicafaz com que o problema da verdade seja colocado jaacute nesse momento Para um estoico se natildeo haacute um criteacuteriode verdade que valide as suas representaccedilotildees natildeo eacute possiacutevel o raciociacutenio
55
juiacutezos universais e suscetiacutevel de ser transmitida por um ensinamento racional118 Por isso de
acordo com Pellegrin
sob essa perspectiva aristoteacutelica as tekhnai natildeo tecircm nenhuma razatildeo para sair dodegrau teoacuterico da Filosofia entendida como sistema total de saber mesmo seevidentemente nem todos os teacutecnicos satildeo filoacutesofos e nem todos os filoacutesofos satildeoteacutecnicos (Pellegrin 2002 p 15)
O uso dessas artes baseadas no raciociacutenio (logikai ou enkyklioi tekhnai) como
propedecircutica para a Filosofia tornou-se de maneiras diferentes lugar comum nas escolas
filosoacuteficas estoica peripateacutetica e platocircnica (Hadot 1984 p 273) Essa subordinaccedilatildeo da
tekhne agrave Filosofia constitui uma das caracteriacutesticas do que veio a ser a Enkyklios Paideia no
periacuteodo imperial
Em Arts Libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Ilsetraut Hadot apresenta as
ocorrecircncias da expressatildeo ldquoenkyklios paideiardquo em autores importantes do periacuteodo imperial
Tal pesquisa eacute referecircncia para a compreensatildeo do que satildeo as enkyklia mathemata refutadas por
Sexto Empiacuterico
Na eacutepoca de Sexto Empiacuterico o adjetivo enkyklios (ciacuteclico) construiacutedo a partir de
kyklos (ciacuterculo) deixa de significar um ldquolargo ciacuterculordquo de estudos ligado agrave vulgarizaccedilatildeo do
conhecimento e aparece nas expressotildees ldquoencyclios disciplinardquo e ldquoenkyklios paideiardquo do
periacuteodo imperial designando
um curriacuteculo de estudos unificado pelo meacutetodo e pela estrutura que se devepercorrer e concluir para se ter uma educaccedilatildeo completa eacute uma espeacutecie de ldquociclordquopelo qual as ciecircncias que o constituem podem por sua vez ser chamadas ldquociacuteclicasrdquoMas este ldquociclordquo natildeo se refere a um nuacutemero limitado tal como o das ldquosete artesrdquopor exemplo mas corresponde agrave ideia de unidade interior e de completude119 (Hadot1984 p 268)
Esclarecedor a esse respeito eacute o texto de Vitruacutevio autor latino do seacuteculo I aC De
acordo com Vitruacutevio ldquoarquitetura eacute uma ciecircncia composta de muitas disciplinas e adornada
com tipos variados de aprendizado ()rdquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1) Para ele ldquoos
objetos de todas as ciecircncias (disciplinas) satildeo conectados por uma estreita comunidade pois a
encyclios disciplina eacute formada por todas as suas partes como um corpo uacutenicordquo (Hadot 1984
118 Sobre a relaccedilatildeo entre ciecircncia e arte em Aristoacuteteles ver Met (1028 B) e EN (1141 A)119 Nesse sentido a traduccedilatildeo da expressatildeo ldquota enkyklia mathematardquo a que Sexto se refere por ldquoArtes Liberaisrdquo
(da Idade Meacutedia) eacute uma aproximaccedilatildeo muito pouco precisa Sexto de fato menciona as eleutherai tekhnaiuma vez todavia essa expressatildeo possivelmente remete mais ao sentido em que Aristoacuteteles a emprega doque agraves Artes Liberais da Idade Meacutedia
56
p 265) O autor descreve sua proacutepria instruccedilatildeo do seguinte modo
agradeccedilo aos meus pais pela sua aprovaccedilatildeo a essa lei Ateniense e por terem cuidadopara que eu fosse instruiacutedo em uma arte e uma arte de tal natureza que natildeo possaser levada agrave perfeiccedilatildeo sem literatura e uma educaccedilatildeo ciacuteclica em todas asdisciplinas Portanto graccedilas agrave atenccedilatildeo dos meus pais e agrave instruccedilatildeo que me foi dadapor meus professores eu obtive uma variada gama de conhecimentos (hellip)(Vitruacutevio VI pref 4 grifo nosso)120
O caraacuteter teoacuterico do estudo das enkyklia mathemata eacute enfatizado na seguinte
passagem do De Architetura onde o autor exemplifica a ideia de que todas as artes satildeo
compostas de teoria e praacutetica121
Uma dessas a realizaccedilatildeo do trabalho eacute proacutepria aos homens treinados no conteuacutedoindividual enquanto a outra a teoria eacute comum a todos os estudiosos por exemplopara meacutedicos e muacutesicos a batida riacutetmica do pulso e seu movimento meacutetrico Masse haacute uma ferida a ser curada ou um homem doente a ser salvo do perigo o muacutesiconatildeo seraacute chamado pois a ocupaccedilatildeo seraacute apropriada para o meacutedico Assim tambeacutemno caso de um instrumento musical natildeo seraacute o meacutedico mas o muacutesico que iraacute afinaro instrumento de modo que os ouvidos possam encontrar o devido prazer em suascordas Os astrocircnomos do mesmo modo tecircm um acircmbito comum de discussatildeo comos muacutesicos no que diz respeito agrave harmonia das estrelas e agrave concordacircncia musical nasteacutetrades e triacuteades [dos intervalos] de quarta e de quinta e com os geocircmetras noconteuacutedo da visatildeo (em grego logos optikos) e em todas as outras ciecircncias muitospontos talvez todos satildeo comuns no que diz respeito agrave sua discussatildeo (Vitruacutevio DeArchitetura I 1 15-6)
Enkyklios parece exprimir a ideia de que se deve estudar todas as disciplinas para
praticar uma porque elas implicam-se mutuamente Daiacute que Vitruacutevio apresente no primeiro
livro do De Architetura todos os saberes necessaacuterios a um bom arquiteto Entre esses saberes
estatildeo as disciplinas listadas com frequecircncia como a muacutesica a geometria e a astronomia
A descriccedilatildeo de Ciacutecero dessa relaccedilatildeo ldquociacuteclicardquo entre as ciecircncias remete ao
pensamento platocircnico em que ldquotodos os conteuacutedos doutrinais das artes liberais e humanas
satildeo mantidos unidos por um tipo de conexatildeo uacutenicardquo (Hadot 1984 p 265) onde se pode
observar um ldquotipo de concordacircncia e harmonia admiraacuteveis entre todas as ciecircnciasrdquo (idem)
Quintiliano que viveu entre I aC e I dC em seu Instituitione Oratoria tambeacutem
recomenda o estudo daquilo que ldquoos Gregos chamaram Enkyklios Paideiardquo (Quintiliano
Inst I X 1) O autor apresenta vaacuterios argumentos a favor das mathemata platocircnicas120 Para as citaccedilotildees de Vitruacutevio utilizamos a traduccedilatildeo em liacutengua inglesa de Morgan (1914) com algumas
adaptaccedilotildees baseadas no texto latino121 De acordo com Vitruacutevio na arquitetura ldquoa praacutetica eacute o exerciacutecio contiacutenuo e regular do emprego onde o
trabalho manual eacute executado com qualquer material necessaacuterio de acordo com o design de um desenhoTeoria por outro lado eacute a habilidade de demonstrar e explicar os resultados da destreza nos princiacutepios daproporccedilatildeordquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1)
57
sobretudo no que diz respeito agrave importacircncia do estudo da muacutesica122 ao que ele conclui que a
muacutesica eacute ldquoum elemento necessaacuterio agrave educaccedilatildeo do oradorrdquo (Quintiliano Inst I X 33)
Suas observaccedilotildees fazem referecircncia principalmente agrave autoridade de Pitaacutegoras e agrave de
Platatildeo Quintiliano recomenda esses estudos ldquonatildeo apenas por sua habilidade de afiar o
espiacuterito mas tambeacutem por seu valor filosoacuteficordquo (Hadot 1984 p 267) Nesse sentido nota-se
aqui uma retomada do papel propedecircutico das disciplinas matemaacuteticas platocircnicas agora
agrupadas dentro do conjunto da Enkyklios Paideia
Sobre esse caraacuteter ciacuteclico das artes fundadas na razatildeo Hadot tambeacutem chama atenccedilatildeo
para um comentaacuterio de Quintiliano a Dioniacutesio o Traacutecio (gramaacutetico do seacuteculo II aC)
enkyklioi satildeo as artes que alguns chamam de logikai [fundadas na razatildeo] como aastronomia a geometria a muacutesica a filosofia a medicina a gramaacutetica a retoacutericaChamam-nas enkuklioi porque o especialista (ho tekhnites) deve ao percorrer todasintroduzir em sua arte o que ele encontrou de uacutetil em cada uma delas (QuintilianoInst 1 X 6-7)
Na distinccedilatildeo entre as logikai tekhnai por oposiccedilatildeo as praktikai tekhnai Dioniacutesio
coloca a muacutesica entre as disciplinas fundadas na razatildeo Tambeacutem Galeno meacutedico grego do
seacuteculo II dC apresenta o mesmo tipo de oposiccedilatildeo e coloca entre as artes fundadas na razatildeo a
medicina a retoacuterica a muacutesica a geometria a aritmeacutetica o caacutelculo a astronomia a gramaacutetica
e o direito Galeno opotildee essas disciplinas agraves artes praacuteticas ou artes manuais (keironaktikai ou
banausoi tekhnai)123
Em diversos autores encontra-se as disciplinas fundadas na razatildeo sendo consideradas
como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes (tekhnai) De acordo com Hadot nesse
vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar as ldquoartes
fundadas na razatildeordquo124 em oposiccedilatildeo agraves artes manuais ou praacuteticas
Entre todos esses pensadores Filo de Alexandria no seacuteculo I dC talvez seja quem
melhor resume as caracteriacutesticas das enkyklia mathemata tal como Sexto parece compreendecirc-
la Seu pensamento reuacutene ldquointerpretaccedilotildees alegoacutericas do antigo testamento da Filosofia grega
e especialmente da Filosofia platocircnica contemporacircnea que havia sido enriquecida de
numerosos elementos doutrinais de proveniecircncia estoica e peripateacuteticardquo (Hadot 1984 p
282) No tratado De Congressu Filo introduz a Enkyklios Paideia personificada na figura de
122 Ver Quintiliano Inst (I X 9-33)123 Ver Galeno Protreptique aux arts (5 7)124 Tal distinccedilatildeo eacute encontrada no Contra os Muacutesicos na apresentaccedilatildeo dos sentidos do termo muacutesica (M VI 1)
O sentido de muacutesica refutado por Sexto eacute intitulado episteme por oposiccedilatildeo agrave chamada organiken empeiriaque designa a praacutetica musical
58
Agar125 como o caminho para a virtude
devemos compreender que grandes temas requerem grandes introduccedilotildees e o maiorde todos os temas eacute a virtude pois ela lida com o maior dos conteuacutedos que eacute atotalidade da vida humana Naturalmente a virtude implica uma introduccedilatildeo que natildeoseja menor que o estudo da gramaacutetica da geometria da astronomia da retoacuterica damuacutesica e de todos os outros estudos fundados no raciociacutenio (Filo De Congressu11)
Em Filo reencontramos a ideia de que as artes fundadas no raciociacutenio recebem seus
princiacutepios da Filosofia que eacute considerada por sua vez uma ciecircncia natildeo-hipoteacutetica e
inabalaacutevel Ao mesmo tempo tal panorama apresenta as enkyklia mathemata novamente
como um caminho enquanto ensino propedecircutico para se alcanccedilar a Filosofia Aqui destaca-
se a relaccedilatildeo hieraacuterquica entre esses conhecimentos os Estudos Ciacuteclicos como caminho para a
Filosofia e esta como caminho para a Sabedoria
Filo tambeacutem retoma outra expressatildeo cara ao nosso estudo ele iguala a Enkyklios
Paideia e a Enkyklios Mousike ou seja o ciacuterculo de atividades dedicadas agraves Musas Nesse
caso reencontramos aquele significado amplo do termo mousike ligado agrave cultura126
Haacute homens grosseiros e homens cultos aqueles que satildeo dedicados agrave harmonia dalira e das Musas e aqueles que danccedilam no coro do ciacuterculo de atividades dedicadasagraves Musas [hoi lteggtkekhoreukotes tei egkuklioi mousikei] os segundos tecircm maisrecursos para se desenvolver que os primeiros pois por assim dizer quase desdesua infacircncia eles satildeo inundados por discursos que defendem a firmeza oautocontrole e todas as virtudes (Filo De Mutatione Nominus 229 apud Hadot1984 p 286)
Eacute importante lembrar que sob a perspectiva do platonismo ldquoenkyklia mathematardquo
natildeo significa educaccedilatildeo usual tal como aparecia em Aristoacuteteles Nesse sentido embora os
termos eleutherai tekhnai e enkyklios paideia natildeo tenham o mesmo escopo o que haacute de
comum entre a enkyklios paideia do periacuteodo imperial as eleutherai tekhnai aristoteacutelicas e a
educaccedilatildeo matemaacutetica platocircnica eacute o seu caraacuteter que poderiacuteamos chamar elitizado Em funccedilatildeo
disso
natildeo eacute possiacutevel traduzir por ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteria habitualrdquo a expressatildeo enkuklios
125 Agar eacute o escravo egiacutepcio de Sarah mulher de Abraatildeo Abraatildeo simboliza o ldquointelecto amante doconhecimento e da virtuderdquo e Sarah representa a proacutepria virtude a Filosofia a ciecircncia e a sabedoria No DeCongressu para poder se unir a Sarah (ou seja para atingir a sabedoria) Abraatildeo deve primeiro unir-se aAgar
126 Esse significado estaacute relacionado agravequele modo considerado por Sexto Empiacuterico como menos apropriado emque os homens usam o termo muacutesica (M VI 2)
59
paideia empregada a toda hora no texto citado [de Vitruacutevio] mesmo se lembrarmosque tal educaccedilatildeo ordinaacuteria era reservada apenas a uma minoria eacute preferiacutevel traduzira expressatildeo por cultura completa (Hadot 1984 p 267)
Enquanto o conceito de artes liberais (eleutherai tekhnai) no periacuteodo imperial diz
respeito a todas as artes dignas de serem praticadas pelos homens livres abrangendo
atividades intelectuais ou de cunho mais praacutetico (tal como a caccedila e a ginaacutestica por exemplo)
o conceito de Enkyklios Paideia abrange as artes fundadas no raciociacutenio (logikai tekhnai)
enquanto um conjunto de ciecircncias que compotildeem um sistema teoacuterico unificado A
compreensatildeo dessa diferenccedila eacute fundamental para esclarecer o caraacuteter teoacuterico das disciplinas
dos Estudos Ciacuteclicos que Sexto propotildee refutar
Eacute dentro desse contexto que a muacutesica enquanto uma das mathemata que compotildeem a
enkyklios paideia aparece em todas as listas do periacuteodo imperial reunidas por Hadot
Aristides Quintiliano ilustra muito bem o caraacuteter teoacuterico e propedecircutico das mathemata
especificamente na relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia ao final de seu tratado sobre a muacutesica
Logo na medida em que eacute a principal companheira e colaboradora desta ndash me refiroagrave Filosofia ndash deve-se praticar e ensinar a muacutesica de modo completo e considerandoa relaccedilatildeo que existe entre ambas como a que existe entre os pequenos misteacuterios emrelaccedilatildeo aos misteacuterios maiores deve-se atribuir a cada uma a dignidade e a honraoportunas e deve-se estreitar sua uniatildeo por ser a mais conveniente e legiacutetima Comefeito a Filosofia eacute a culminaccedilatildeo de todo o conhecimento e a muacutesica eacute educaccedilatildeopreliminar (Aristides Quintiliano De Mus III 27)
Assim eacute enquanto parte de um sistema de conhecimento voltado ao acircmbito teoacuterico
que a muacutesica eacute listada como uma das mathemata refutadas no Contra os Professores A
muacutesica enquanto logikon tekhne permanece como uma propedecircutica para a Filosofia
43 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES
A lista das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos apresentada por Sexto Empiacuterico eacute
surpreendentemente parecida com a lista canocircnica das sete Artes Liberais estabelecida por
Santo Agostinho constituiacuteda pelo trivium (gramaacutetica retoacuterica dialeacutetica) e pelo quadrivium
(geometria aritmeacutetica astronomia muacutesica) Aleacutem disso o autor refere-se a essas disciplinas
como eleutherai tekhnai uma vez em sua obra (M II 57) Contudo tal referecircncia natildeo eacute razatildeo
suficiente para se supor que Sexto Empiacuterico considera as enkyklia mathemata e as eleutherai
tekhnai exatamente a mesma coisa ou que as compreenda segundo o seu significado a partir
60
de Santo Agostinho127 Tais interpretaccedilotildees mostram-se anacrocircnicas sob duas perspectivas
tanto quando se iguala as enkyklia mathemata ao seu sentido no periacuteodo claacutessico (de
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo tal como aparece em Aristoacuteteles) quanto ao se atribuir agrave lista de Sexto
um sentido posterior a ela
Apesar da inegaacutevel proximidade da lista de Sexto Empiacuterico com o trivium e o
quadrivium parece-nos muito mais razoaacutevel pensar tal como Pellegrin que ldquoSexto ataca um
modo de proceder que eacute dominante em sua eacutepoca ou pelo menos que ele considera como
mais completo que os outrosrdquo (Pellegrin 2002 p 30 grifo nosso) A lista das enkyklia
mathemata apresentada por Sexto Empiacuterico aproxima-se ndash muito ndash da lista de disciplinas de
Filo de Alexandria (gramaacutetica geometria ndash abrangendo possivelmente a aritmeacutetica ndash
astronomia retoacuterica e muacutesica) que estatildeo entre aquelas fundadas no raciociacutenio Nesse sentido
Sexto adotou como ldquomateacuteriardquo sobre a qual exercer sua criacutetica certa imagem das tekhnai daenkyklios paideia como ldquoservasrdquo da Filosofia natildeo porque seja sua convicccedilatildeo pessoal masporque essa seria a posiccedilatildeo dominante dos pensadores dogmaacuteticos de seu tempo (Pellegrin2002 p 32)
Se por um lado Sexto ataca tal perspectiva por ela ser predominante em seu periacuteodo
por outro tal ataque pauta-se em uma possiacutevel autonomia da tekhne em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Apesar do predomiacutenio da ideia de subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia houve ao mesmo
tempo no periacuteodo heleniacutestico uma espeacutecie de divoacutercio entre tekhne e Filosofia Alguns
ramos do conhecimento teacutecnico buscaram desenvolver um princiacutepio de funcionamento
autocircnomo em relaccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas ldquoA partir do momento em que Alexandria
destrona Atenas enquanto centro da vida intelectual grega as ciecircncias e as teacutecnicas ao
menos em seu niacutevel mais elevado natildeo satildeo mais praticadas nas escolas filosoacuteficasrdquo (Pellegrin
2002 p 15)
Observa-se que ao mesmo tempo em que a tekhne passa a ser ldquoestudada por ela
mesmardquo haacute o desenvolvimento de uma reflexatildeo que poderia ser chamada de epistemoloacutegica a
respeito das tekhnai128 O Contra os Professores parece lidar com essas duas posiccedilotildees em
127 Muito embora alguns comentadores o faccedilam Barnes considera a lista de Sexto Empiacuterico como um dosprimeiros aparecimentos da lista das Artes Liberais no sentido medieval Richard Bett (2005 p X)considera a lista das disciplinas apresentada por Sexto Empiacuterico como ldquocorrespondenterdquo agrave lista das seteArtes Liberais do curriacuteculo medieval Conforme apontamos acima (ver nota 101) essa equiparaccedilatildeo parece-nos leviana
128 Esse movimento havia comeccedilado pela medicina Pode-se observar na obra de Hipoacutecrates um esforccedilo de sedefinir o estatuto a aacuterea de atuaccedilatildeo e os meacutetodos da arte meacutedica Hipoacutecrates eacute considerado como aquele queldquolibertou a medicina de sua dependecircncia teoacuterica em relaccedilatildeo agrave Filosofiardquo (Pellegrin 2002 p 16) A relaccedilatildeocom a medicina eacute elucidativa a respeito do conceito de tekhne (aprovado pelo ceacutetico) que toma como base aexperiecircncia desvinculado do conceito de episteme Note-se que os principais representantes do ceticismo no
61
relaccedilatildeo agraves tekhnai ou seja as tekhnai teoacutericas dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e as
tekhnai enquanto praacuteticas autocircnomas dogmaacuteticas ou natildeo129
No Contra os Professores Sexto explicita que a investigaccedilatildeo sobre as mathemata se
daacute depois da investigaccedilatildeo da Filosofia visando ali tambeacutem (tal como na Filosofia) encontrar
a verdade deparando-se contudo com o dogmatismo Com isso o ceacutetico automaticamente
abre espaccedilo para a consideraccedilatildeo de que as tekhnai poderiam deter algum tipo de verdade
independentemente da Filosofia De acordo com Pellegrin ao fazer isso Sexto ldquonega agrave
Filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdaderdquo (Pellegrin 2002 p 32)
A refutaccedilatildeo ceacutetica dirige-se a um certo tipo de tekhne uma concepccedilatildeo especiacutefica
aquela dos professores das mathemata Em contrapartida haacute um sentido natildeo dogmaacutetico em
que as tekhnai natildeo satildeo refutadas130 Essa dicotomia como veremos aparece em relaccedilatildeo a
cada uma das disciplinas discutidas no Contra os Professores
431 O modelo argumentativo da obra
O Contra os Professores apresenta diferenccedilas de estilo argumentativo e de objeto em
relaccedilatildeo aos outros textos de Sexto Empiacuterico No restante de sua obra a Filosofia eacute o objeto da
refutaccedilatildeo ceacutetica e a argumentaccedilatildeo dirigida contra as partes desta culmina na suspensatildeo de
juiacutezo
Pellegrin chama atenccedilatildeo para o fato de que ldquoa situaccedilatildeo da Filosofia e das disciplinas eacute
seacuteculo II dC entre eles o proacuteprio Sexto Empirico eram tambeacutem os principais representantes da escolaempirista de Medicina Essa corrente toma como base o pensamento de Galeno De acordo com Allen oldquoempirismo meacutedico que surgiu no meio do terceiro seacuteculo aC define-se em oposiccedilatildeo a uma disseminadatendecircncia racionalista que seus fundadores detectaram na medicina do seu tempordquo (Allen 2010 p 234) Amedicina empiacuterica partia da observaccedilatildeo do fenocircmeno tendo como meacutetodo natildeo no raciociacutenio mas asistematizaccedilatildeo da experiecircncia Sobre a estreita relaccedilatildeo entre pirronismo e medicina ver Brochard (2009) eAllen (2010)
129 Os fundadores da escola empirista de medicina a compreendiam enquanto praacutetica autocircnoma (desvinculadada episteme mas ainda assim considerada dogmaacutetica pelo ceticismo) Haacute ainda a Escola Metoacutedica demedicina que surge em I aC Tal como os empiristas os metoacutedicos baseavam-se apenas no fenocircmenoTodavia diferentemente daqueles os Metoacutedicos segundo Porchat ldquoaceitaram explicitamente certo uso darazatildeo mas natildeo como fonte de conhecimentos teoacutericos natildeo como propiciadora de uma pretensa passagem doobservaacutevel ao inobservaacutevel que nos poria em condiccedilotildees de explicar os fenocircmenos observadosReconheceram por assim dizer uma razatildeo embutida na proacutepria experiecircnciardquo (Porchat 2007 p 24) EmboraEmpiristas e Metoacutedicos tivessem em comum o fenocircmeno enquanto ponto de partida os Empiristas eramcriticados ldquoporque estes afirmavam dogmaticamente que as entidades ocultas dos racionalistas eraminexistentes ou absolutamente incognosciacuteveisrdquo (Porchat 2005 p 33) E eacute esta a diferenccedila que faz com queSexto Empiacuterico mesmo sendo um meacutedico da escola empirista afirme que o ceticismo estaacute mais proacuteximo daescola metodista de medicina (ver HP I 236)
130 Tal como se observa no criteacuterio praacutetico do ceticismo pirrocircnico Ver acima p 50-1
62
comparaacutevel mas natildeo idecircntica Em relaccedilatildeo agraves disciplinas do aprendizado a questatildeo natildeo eacute
mais a suspensatildeo do assentimento mas a apresentaccedilatildeo de argumentos eficazes contra essas
disciplinasrdquo (Pellegrin 2002 p 11)
As diferenccedilas entre o modelo argumentativo presente no Contra os Professores e o
das outras obras e o desaparecimento da suspensatildeo de juiacutezo (ao menos explicitamente)
levaram alguns comentadores agrave conclusatildeo de que Sexto Empiacuterico teria abandonado o
ceticismo131 Outros consideram que se partimos daquilo que eacute apresentado por Sexto em
outros textos o Contra os Professores cai em contradiccedilatildeo e natildeo escapa ao dogmatismo132
No que diz respeito ao estilo do texto muito embora natildeo haja menccedilatildeo direta agrave
suspensatildeo de juiacutezo eacute impossiacutevel negar a presenccedila massiva dos procedimentos da
argumentaccedilatildeo ceacutetica O discurso ceacutetico eacute pautado em uma seacuterie de argumentos que foram
desenvolvidos pelos ceacuteticos anteriores a Sexto Empiacuterico Nas Hipotiposes Pirronianas (HP I
36-163) Sexto apresenta os argumentos ceacuteticos utilizados para minar as bases teoacutericas dos
especialistas os chamados Modos de Enesidemo e os Modos de Agripa Os Modos ou Tropos
(tropous) como satildeo chamados levam agrave suspensatildeo de juiacutezo ao mostrarem a equipolecircncia das
afirmaccedilotildees acerca das coisas Satildeo consideraccedilotildees baseadas (1) naquele que julga (2) naquilo
que eacute julgado e (3) em ambos133 Os Modos desenvolvidos pelo filoacutesofo Enesidemo (I aC)
segundo a tradiccedilatildeo dos antigos ceacuteticos seriam dez134 Jaacute os Modos de Agripa satildeo um conjunto
de argumentos baseados nos problemas loacutegicos em que incorreriam os argumentos dos
dogmaacuteticos contra os ceacuteticos que satildeo (1) conflito de opiniotildees (2) regresso ao infinito (3)
relatividade (4) hipoacutetese (5) ciacuterculo Estes posteriores aos de Enesidemo visam
131 O principal comentador a defender essa tese eacute Janaacuteček em Sextus Empiricus skeptical methods (1972) Suatese eacute refutada em diversos artigos Ver por exemplo Pellegrin (2002 p 11 ss) Desbordes (1990 p 167ss)
132 Richard Bett em seu artigo La double schizophreacutenie de M I-VI et ses origines historiques (2006)apresenta uma outra explicaccedilatildeo para as diferenccedilas detectadas entre as obras de Sexto Empiacuterico Em sumasegundo ele ldquomuitas pesquisas tentam mostrar que Sexto natildeo se contradiz Entretanto um exame detalhadodo texto mostra claramente que tais tentativas estatildeo fadadas ao fracassordquo Baseado em uma pesquisahistoacuterica Bett considera que a argumentaccedilatildeo do Contra os Professores eacute ldquoresultado de uma falta deadaptaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave sua proacutepria forma posterior do pirronismo dos argumentos que estavamoriginalmente em seu lugar em um periacuteodo anterior e distintordquo (Bett 2006 p 17) O artigo de Pellegrin(2006) retomando sua leitura apresentada na introduccedilatildeo agrave sua ediccedilatildeo do Contra os Professores (2002) eacuteuma resposta a essa visatildeo sustentada por Bett Entretanto em um artigo posterior especificamente sobre oContra os Muacutesicos Bett teria revisto algumas de suas conclusotildees a esse respeito afirmando que ldquopodehaver algumas singularidades no modo como ele [Sexto] apresenta seu material neste livro e em sua obracomo um todo mas as preocupaccedilotildees que muitos (incluindo eu mesmo) expressaram sobre isso natildeo satildeofundamentaisrdquo (Bett 2013 p 168)
133 Tomemos como exemplo o primeiro Modo de Enesidemo acerca da variedade dos animais identificado noseguinte argumento do Contra os Muacutesicos ldquoa mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute demodo algum para os homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitantemas perturbadorardquo (M VI 20)
134 Sobre os Modos de Enesidemo ver Annas amp Barnes (1985)
63
complementaacute-los Para Spinelli (2010 p 259) ldquotodo objeto de investigaccedilatildeo pode ser referido
a esses Modosrdquo
Jaacute no iniacutecio do primeiro livro do Contra os Professores Sexto faz uma refutaccedilatildeo geral
com a pretensatildeo de mostrar que natildeo existem tais ensinamentos Sua argumentaccedilatildeo aborda a
impossibilidade do aprendizado devido agrave inexistecircncia das partes necessaacuterias ao aprendizado
das disciplinas a saber o conteuacutedo ensinado o professor o aprendiz e o meacutetodo de
aprendizado (M I 40)135
Em tal exposiccedilatildeo observa-se a forma dicotocircmica e ldquoem ondasrdquo da argumentaccedilatildeo
ceacutetica ldquotudo eacute A ou B (por exemplo sensiacutevel e inteligiacutevel) poreacutem X (por exemplo os
corpos) natildeo eacute A nem B por conseguinte X natildeo existe e natildeo pode ter a propriedade Y (por
exemplo ser ensinado) e mesmo se supusermos que X eacute A ele natildeo estaacute menos privado de
Yrdquo (Pellegrin 2002 p 11-2)
A argumentaccedilatildeo ceacutetica parte de conceitos considerados dogmaacuteticos (tambeacutem
abordados em outras obras de Sexto136) privilegiando com frequecircncia os conceitos
estoicos137 Quando Sexto argumenta para mostrar a impossibilidade de existecircncia de uma
arte ele parte das noccedilotildees de ldquoconhecimentordquo ldquoverdaderdquo e ldquoexistecircnciardquo daqueles que ele
pretende refutar Em sua contra-argumentaccedilatildeo Sexto assume opiniotildees tatildeo dogmaacuteticas quanto
essas que ele visa refutar Todavia ao contraacuterio daqueles que emitiram essas opiniotildees ele natildeo
pretende assumi-las como verdadeiras mas as utiliza para mostrar o conflito entre as opiniotildees
dos dogmaacuteticos
Assim em todos os livros do Contra os Professores observa-se que o autor
utiliza o arsenal dos tropos particularmente os cinco de Agripa (diaphonia regressoao infinito relatividade hipoacutetese ciacuterculo) e os mesmo dispositivos de ataque aosfundamentos mais abstratos (inexistecircncia da prova aporia dos raciociacutenios sobre otodo e a parte) e frequentemente o equiliacutebrio das opiniotildees a equipolecircnciarealiza-se de fato mesmo se Sexto persiste menos que em outros lugares emrelacionar este resultado agrave realizaccedilatildeo de uma das foacutermulas que ele cuidadosamentecomentou no livro I das Hipotiposes (Desbordes 1990 p 168)
No Contra os Professores satildeo utilizados dois tipos de argumentaccedilatildeo explicitados pelo
proacuteprio ceacutetico De acordo com Sexto Empiacuterico ldquoo caso contra os professores foi exposto
135 O mesmo tema eacute abordado em HP III 238-279136 Cf PH II 37 PH III 38 102 M IX 359 M X 39137 Cf M I 17 20 Exemplo disso eacute o uso da noccedilatildeo estoica de tekhne como paradigma para sua refutaccedilatildeo (ver
p 54) Aleacutem disso especificamente no Contra os Muacutesicos os argumentos a respeito da utilidade da muacutesicasatildeo muito semelhantes aos de Filodemo sendo que muitas das afirmaccedilotildees a favor de sua utilidade satildeoatribuiacutedas diretamente aos estoicos Ver seccedilotildees 34 e 52
64
tanto por Epicuro quanto pelos disciacutepulos de Pirro embora de maneiras diferentesrdquo (M I
1)138 Ao compor sua argumentaccedilatildeo Sexto Empiacuterico
sente-se livre para se apropriar das opiniotildees e conclusotildees dos outros sendodogmaacuteticas ou ceacuteticas sem por essa razatildeo ter que defendecirc-las por si mesmo Issojustifica a presenccedila em M I-VI de diversas vozes entre as quais aleacutem da pirrocircnicae de outras escolas e movimentos filosoacuteficos os epicuristas como jaacute foi notado sesobressaem Isto natildeo eacute de modo algum se usado para propoacutesitos polecircmicos e emfunccedilatildeo da argumentaccedilatildeo incompatiacutevel com o pirronismo (Spinelli 2010 p 256)
De acordo com Desbordes o autor utiliza com propriedade a antilogia retoacuterica em sua
exposiccedilatildeo sobre a utilidade de certas disciplinas Para o comentador no Contra os Muacutesicos
(M VI 4-6)
Sexto assinala a diferenccedila entre essa tradiccedilatildeo [epicurista] e o meacutetodo que ele julgacomo mais propriamente ceacutetico e observando-se de perto essa oposiccedilatildeo eacuteinstrutiva Trata-se com efeito de uma dupla oposiccedilatildeo por um lado a proposta eacutedogmaacutetica visando agrave negaccedilatildeo por outro eacute mais aporeacutetica (aporetikoteron)visando a princiacutepio agrave suspensatildeo de juiacutezo aleacutem disso por um lado examina-se osargumentos do adversaacuterio de outro ataca-se diretamente os fundamentos de suaopiniatildeo (Desbordes 1990 p 168-9)
Sexto Empiacuterico toma o conceito estoico de arte como ldquosistema composto de
apreensotildees exercidas conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10 grifo
nosso) como paradigma do que seja uma tekhne Consequentemente uma parte da refutaccedilatildeo
ceacutetica estaacute voltada agrave utilidade das mathemata Todavia Sexto considera dogmaacuteticos os
argumentos que ele mesmo apresenta para a refutaccedilatildeo da utilidade Embora Sexto critique
sob certa perspectiva tais argumentos ele tambeacutem os toma como parte vaacutelida de sua
argumentaccedilatildeo visto que ele natildeo pretende ocultar qualquer parte da refutaccedilatildeo (ver M VI 6)
No que concerne a essa argumentaccedilatildeo contra a utilidade das tekhnai para Pellegrin
tudo parece indicar que Sexto fala de dois tipos distintos de inutilidade R Bett fazuma boa observaccedilatildeo quando nota que sendo as artes definidas pela sua utilidade osargumentos que atacam sua utilidade satildeo ldquouma variaccedilatildeordquo dos argumentos a favor dasua natildeo existecircncia visto que se ela eacute inuacutetil uma arte deixa de ser uma arte(Pellegrin 2006 p 41)
Mesmo utilizando argumentos semelhantes aos dos epicuristas Sexto Empiacuterico
apresenta no iniacutecio do Contra os Professores uma criacutetica agrave tese dogmaacutetica sustentada por
eles de que os Estudos Ciacuteclicos satildeo ineficazes para se chegar agrave sabedoria Tambeacutem de acordo
138 Sexto Empiacuterico considera que a refutaccedilatildeo agraves artes feita por Epicuro eacute dogmaacutetica por sustentar firmementeque as artes satildeo inuacuteteis aleacutem disso ele sugere que a atitude de Epicuro eacute motivada pela ignoracircncia
65
com Pellegrin apesar dessa ldquorepreensatildeordquo ao meacutetodo epicurista
nas outras passagens ao contraacuterio parece que no que concerne agraves disciplinasteacutecnicas as evidecircncias de sua inutilidade valem pela criacutetica de sua proacutepriaexistecircncia e os argumentos apresentados por certos dogmaacuteticos (os Epicuristas osCirenaicos os Ciacutenicos e outros) satildeo utilizaacuteveis pelo ceacutetico pirrocircnico Os pirrocircnicose certos dogmaacuteticos que tinham posiccedilotildees inconciliaacuteveis sobre a Filosofiaencontram-se adotando uma estrateacutegia comum no que diz respeito agraves disciplinasteacutecnicas a saber arruinar um elemento fundamental neste caso a utilidade A parteldquomais aporeacuteticardquo natildeo faz mais que continuar o trabalho de aniquilaccedilatildeo (Pellegrin2006 p 41)
O segundo tipo de refutaccedilatildeo a argumentaccedilatildeo ldquomais aporeacuteticardquo que aparece no Contra
os Professores conclui pela inexistecircncia dos princiacutepios baacutesicos ou da proacutepria arte em
questatildeo Mas como vimos o ceacutetico visa desestabilizar as teorias daqueles que pretendem ter
apreendido a verdade natildeo provar sua inexistecircncia Segundo Pellegrin os termos utilizados
por Sexto Empiacuterico tal como ldquoanyparktos anypostatos ou asystasos indicam natildeo uma
inexistecircncia no sentido ontoloacutegico mas uma inconsistecircncia ou uma ausecircncia de
fundamentordquo139 (Pellegrin 2006 p42) Eacute nesse sentido que no Contra os Muacutesicos Sexto
afirma por exemplo que ldquoo som natildeo existerdquo
Em vista disso a argumentaccedilatildeo que conclui pela ldquonatildeo-existecircnciardquo dos conceitos
apresentados no Contra os Professores tambeacutem natildeo precisa ser considerada um sinal de
dogmatismo negativo da parte do ceacutetico Se ele utiliza uma argumentaccedilatildeo de caraacuteter
destrutivo eacute antes de tudo para atacar as bases dogmaacuteticas dos conteuacutedos discutidos Nesse
caso o princiacutepio seguido pelo pirrocircnico eacute o de que ele ldquodeve concentrar os disparos de sua
polecircmica contra as bases do edifiacutecio dogmaacutetico visto que somente derrubando-as totalmente
o colapso de todos os outros aspectos teoacutericos que dependem destas bases seraacute tambeacutem
garantidordquo (Spinelli 2010 p 257)
No que diz respeito ao estilo argumentativo parece-nos plausiacutevel assumir que a visatildeo
ceacutetica permanece atuante no Contra os Professores Tal como Pellegrin (2002 p 13)
relacionamos ldquoas diferenccedilas que existem entre o Contra os Professores e os outros tratados agrave
diferenccedila entre seus objetosrdquo Consideramos que tal diferenccedila se daacute ainda em funccedilatildeo dos
proacuteprios interlocutores (os professores) aos quais os livros satildeo destinados Em suma
Sexto fala de outro modo que em suas outras obras porque ele estaacute falando de outracoisa Em M I-VI encontramo-nos com efeito fora do programa da Filosofia ceacutetica
139 Tal distinccedilatildeo eacute fundamental para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo que aparece na segunda parte do Contraos Muacutesicos
66
que Sexto expotildee no iniacutecio das Hipotiposes (I 5-6)140 (hellip) Em M I-VI comeccedila algoque eacute comparaacutevel ao tratamento da Filosofia (hellip) com as intenccedilotildees e a metodologiaceacutetica Sexto aborda um domiacutenio que natildeo eacute mais a Filosofia propriamente dita ()mas que aproxima-se em muitos aspectos da simples experiecircncia da vida cotidiana(Desbordes 1990 p 170)
44 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA
DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO
A refutaccedilatildeo das disciplinas tal como a compreendemos ateacute aqui implica na ideia de
que o dogmatismo natildeo estaacute simplesmente ligado aos juiacutezos filosoacuteficos mas sim e sobretudo
a uma atitude em relaccedilatildeo a uma crenccedila mdash a atitude de sustentar firmemente essa crenccedila141
Sob essa perspectiva o ceacutetico natildeo estaacute preocupado em refutar apenas teses estritamente
filosoacuteficas Ele quer combater toda e qualquer precipitaccedilatildeo dogmaacutetica mostrando que esta
acontece tambeacutem em outras aacutereas do conhecimento tanto em uma dimensatildeo praacutetica da
Filosofia142 quanto no que diz respeito agraves bases do conhecimento teacutecnico
De acordo com Desbordes o que acontece no Contra os Professores eacute uma ldquoreaccedilatildeo de
defesa contra as invasotildees excessivas da especulaccedilatildeordquo (Desbordes 1990 p 171) Segundo o
comentador ldquoo ceticismo aplica-se apenas agraves proposiccedilotildees dogmaacuteticas sobre aquilo que natildeo eacute
evidente Mas encontra-se tambeacutem proposiccedilotildees dogmaacuteticas incompatiacuteveis com as evidecircncias
do senso comum e sobre elas a posiccedilatildeo de Sexto variardquo (idem) Todavia para Desbordes a
oposiccedilatildeo entre uma posiccedilatildeo dogmaacutetica e a afirmaccedilatildeo de uma evidecircncia pode constituir uma
diaphonia que conduziria agrave suspensatildeo de juiacutezo
No Contra os Professores enfatiza-se a diferenccedila entre a vida cotidiana e a
especulaccedilatildeo intelectual Tal diferenccedila foi sublinhada tambeacutem no Contra os Moralistas (M XI
165) ldquoo ceacutetico natildeo conduz sua vida de acordo com o discurso filosoacutefico (ele eacute inativo sob
essa perspectiva) mas de acordo com a observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica ele eacute capaz de escolher isso
e rejeitar aquilordquo
Sob essa perspectiva a da observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica determinar o sentido em que um
conceito seraacute discutido eacute procedimento comum na obra de Sexto Empiacuterico Em todos os
livros do Contra os Professores aparecem definiccedilotildees dos sentidos em que cada uma das Artes
eacute atacada em oposiccedilatildeo agravequilo que eacute preservado de cada uma delas Se por um lado as Artes140 Sexto pontua a conclusatildeo do relato acerca da refutaccedilatildeo ceacutetica agrave Filosofia em M XI 257141 Tendo em vista a interpretaccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico que apresentamos acima Ver seccedilatildeo 41
(especificamente p 48-9)142 Na questatildeo acerca da Arte de Viver abordada em HP III
67
devem ser refutadas em funccedilatildeo de seus aspectos dogmaacuteticos por outro elas devem ser
preservadas na medida em que satildeo uacuteteis natildeo segundo a definiccedilatildeo dogmaacutetica dos estoicos
mas de acordo com o criteacuterio praacutetico do ceacutetico segundo o qual ldquoalgumas artes foram
introduzidas principalmente com o objetivo de evitar coisas prejudiciais outras com o de
descobrir coisas beneacuteficas medicina eacute um exemplo do primeiro tipo sendo uma arte curativa
que alivia a dor e navegaccedilatildeo do segundo tipo pois todos os homens precisam muito da
assitecircncia de outras naccedilotildeesrdquo (M I 51)
Ao longo do Contra os Professores Sexto apresenta o sentido em que cada uma das
artes natildeo eacute refutada
noacutes temos a gramaacutetica baacutesica ou grammatistike (M I 44 49 ss e talvez II 13) mastambeacutem poesia (M I 278 299) ldquoastrometeorologiardquo baseada na observaccedilatildeo dofenocircmeno (M V 1-2) tal como agricultura (M V 2) ou a arte da pilotagem (M I51 II 13 V 2 ver tambeacutem M VIII 203) e tambeacutem talvez escultura e pintura (MI 182) muacutesica enquanto a simples execuccedilatildeo de instrumentos (M VI 1) eobviamente a medicina (M I 51 II 13) e talvez finalmente a Filosofia secompreendida em um sentido genuinamente pirrocircnico (novamente M II 13 mastambeacutem I 280 296 e II 25) (Spinelli 2010 p 258 grifo nosso)
Enquanto parte do criteacuterio praacutetico as artes natildeo podem ser simplesmente eliminadas
por isso a distinccedilatildeo entre arte dogmaacutetica e arte relacionada agrave vida comum eacute essencial para o
ceacutetico De acordo com Spinelli
Sexto parece se dirigir agraves artes ou tekhnai ao inveacutes dos aspectos especiacuteficos doraciociacutenio filosoacutefico e essas tecircm caracteriacutesticas diferentes Embora tambeacutempretenda-se que estejam ancoradas a uma estrutura teoacuterica que visa uma verdadedita incontroversiacutevel a qual eacute objeto das criacuteticas destrutivas de Sexto em vaacuterioslivros de M I-VI parece que elas satildeo para aleacutem disso e especialmente perigosas em outra direccedilatildeo Tais tekhnai de modos diferentes e em diferentes graussatildeo de fato natildeo apenas uma fonte de precipitaccedilatildeo dogmaacutetica no niacutevel do argumentoabstrato mas representam uma ameaccedila agrave uacutenica estrutura de referecircncia moral ecomportamental que o ceacutetico aceita as aparecircncias relacionadas agrave vida comum oukoinos bios (PH I 17) Aqui entatildeo estaacute a explicaccedilatildeo para a dicotomia deaproximaccedilotildees notada anteriormente tal como a estrateacutegica alianccedila temporaacuteria comalgumas criacuteticas Epicuristas acerca da falta de utilidade das Artes LiberaisParticularmente entretanto torna-se mais faacutecil entender as tantas ressalvas feitaspor Sexto em defesa da legitimidade de algumas tekhnai e da possibilidade depraticaacute-las agraves vezes em contraste expliacutecito com as Artes Liberais (Spinelli 2010p 258 grifo nosso)
Em funccedilatildeo disso a diferenccedila entre o meacutetodo utilizado contra a Filosofia e este
utilizado no caso das tekhnai se daacute natildeo soacute porque os objetos refutados satildeo diferentes mas
porque essa diferenccedila eacute fundamental para a coerecircncia interna do ceticismo O Contra os
68
Professores inicia-se com a justificativa de que a refutaccedilatildeo agraves mathemata acontece porque em
relaccedilatildeo a elas o ceacutetico encontrou as mesmas dificuldades que havia encontrado em relaccedilatildeo agrave
Filosofia Dificuldades essas ele explicita ligadas agrave pretensatildeo de verdade dessas disciplinas
ou em outras palavras ao dogmatismo impliacutecito (e muitas vezes expliacutecito) nas afirmaccedilotildees
dos professores das mathemata
Faz-se necessaacuterio para o ceacutetico mostrar a vaidade destes discursos dogmaacuteticos queas artes sustentam sobre elas mesmas e natildeo mostrar que haacute teses opostas de forccedilaigual enunciadas pelos teoacutericos de cada uma dessas artes entre as quais o ceacuteticonatildeo pode escolher (hellip) portanto as ldquodificuldades iguaisrdquo agravequelas encontradas naFilosofia que satildeo aquelas com as quais o ceacutetico se confrontou no que concerne agravesdisciplinas teacutecnicas natildeo satildeo ou pelo menos natildeo principalmente a igualdade dasteses contraditoacuterias e a irregularidade do real Incumbe-se ao ceacutetico mostrar ainconsistecircncia teoacuterica das descriccedilotildees que as artes datildeo a si mesmas (Pellegrin2006 p 43 grifo nosso)
Se o Contra os Professores aparece como uma reaccedilatildeo quase pessoal de Sexto
Empiacuterico ao dogmatismo dos professores das mathemata isso se daacute porque estes dogmatizam
a respeito de uma aacuterea decisiva para a coerecircncia interna da praacutetica ceacutetica O ceacutetico recusa as
teorias a respeito das artes natildeo soacute porque elas partem de premissas natildeo evidentes mas
tambeacutem porque a determinaccedilatildeo da natureza de certos aspectos de uma arte eacute algo
completamente inuacutetil para a sua execuccedilatildeo A possibilidade de execuccedilatildeo de uma arte eacute por sua
vez algo essencial agrave legitimidade do criteacuterio praacutetico e consequentemente para a
legitimidade do proacuteprio ceticismo pirrocircnico
Nesse sentido a suspensatildeo de juiacutezo nunca mencionada no Contra os Professores natildeo
estaacute diretamente em questatildeo Eacute tendo em vista as ldquopretensotildees de uma arte de possuir uma
estrutura teoacuterica e principalmente princiacutepios que Sexto pretende anairein derrubar anular
as disciplinas teacutecnicasrdquo (Pellegrin 2006 p 44)
Se o ceacutetico faz uma distinccedilatildeo entre as tekhnai que ele considera dogmaacuteticas (aquelas
que compunham os Estudos Ciacuteclicos) e as tekhnai de acordo com o criteacuterio praacutetico eacute porque
ele ldquopressente a possiacutevel autonomia de um pensamento teacutecnico (hellip) apenas as tekhnai que
satildeo pode-se dizer servas de primeira ordem da Filosofia teriam o meacuterito de ser atacadas
pelo ceacutetico (Pellegrin 2002 p 34) Por isso podemos concluir junto com Pellegrin que
ldquomesmo quando ele pretende combater outra coisa que a Filosofia Sexto ainda estava
combatendo a sombra da Filosofiardquo (idem)
69
5 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS
O Contra os Muacutesicos comeccedila com a distinccedilatildeo entre alguns sentidos do termo
ldquomuacutesicardquo para definir o escopo da refutaccedilatildeo Tendo definido em que sentido o termo seraacute
refutado Sexto apresenta os dois tipos de argumentaccedilatildeo que seratildeo utilizados O primeiro
conjunto de argumentos sobre a utilidade da muacutesica eacute carregado de exemplos que dialogam
com diversas fontes da Antiguidade o segundo conjunto sobre a teoria musical apresenta os
principais conceitos desta teoria e os refuta Agora que jaacute compreendemos o conceito de
mousike e seu sentido enquanto uma das disciplinas que faziam parte da enkyklios paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico e tendo aleacutem disso apreendido o sentido da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves
tekhnai como um todo cabe ainda tecer algumas consideraccedilotildees diretamente sobre o conteuacutedo
do Contra os Muacutesicos
51 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo
Sexto Empiacuterico distingue trecircs sentidos em que o termo ldquomuacutesicardquo eacute utilizado enquanto
ldquociecircncia acerca das melodias [episteme tis peri melodias] sons e composiccedilatildeo de ritmosrdquo
ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo [he peri organiken empeiria] e ldquosucesso na realizaccedilatildeo de
alguma coisardquo (M VI 1-2) Esse uacuteltimo considerado por Sexto Empiacuterico como menos
apropriado eacute derivado de um sentido amplo de ldquomousikerdquo que inclui todas as artes e ciecircncias
presididas pelas Musas Por isso ldquomusicalrdquo (mousikos) pode ser atribuiacutedo agravequele que eacute
ldquodotado pelas Musas culto refinado eleganterdquo (Tomaacutes 2002 p 40-1)
Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute
apenas nesse sentido que ele pretende refutar a muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o
mais completordquo (M VI 3)
A definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico apresenta pode de fato ser encontrada na obra de
Aristoacutexeno mas como definiccedilatildeo da ciecircncia harmocircnica que eacute uma das partes da muacutesica Para
Aristoacutexeno a muacutesica eacute dividida em quatro partes143 entre elas a harmonike eacute a principal e
143 ldquo() ciecircncia harmocircnica eacute uma parte da competecircncia do muacutesico assim como a riacutetmica a meacutetrica e a
70
por sua vez eacute dividida em sete partes notas intervalos escalas gecircneros sistemas
modulaccedilatildeo e melopeia (Aristoacutexeno El Harm 4410-48) Pela sua definiccedilatildeo de mousike a
partir de uma de suas partes ‒ que eacute a harmonike ‒ nota-se que Sexto Empiacuterico apresenta uma
definiccedilatildeo pouco exata de mousike De acordo com Reyes essa aproximaccedilatildeo entre mousike e
harmonike pode natildeo ser tatildeo imediata ldquotonos eacute um elemento da harmonike enquanto a
rythmopoiia eacute um elemento da mousike melodia pode ser referida por Sexto agrave melopoiia (que
pertence agrave harmonike embora pareccedila ser utilizada aqui para designar o termo geneacuterico
melos)rdquo (Reyes 2004 p 99) A princiacutepio algueacutem poderia simplesmente supor que Sexto
Empiacuterico natildeo domina o assunto Natildeo obstante essa primeira definiccedilatildeo aparece acompanhada
da expressatildeo ldquoe coisas desse tipordquo (kai ta paraplesia katagignomene pragmata) o que abre
espaccedilo para se considerar que a intenccedilatildeo de Sexto Empiacuterico eacute dar uma definiccedilatildeo bastante
geral sobre a muacutesica
O objetivo de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos implica uma refutaccedilatildeo que natildeo
tem uma teoria especiacutefica enquanto alvo mas antes uma perspectiva comum sobre a muacutesica
Nesse sentido a definiccedilatildeo de Aristoacutexeno (enquanto o representante do grupo de teoacutericos
chamados ldquomuacutesicosrdquo) tem caraacuteter paradigmaacutetico a respeito daquilo que se quer discutir visto
que ela eacute tida como a ldquomais completardquo (M VI 3)
Se a muacutesica eacute objeto da refutaccedilatildeo ceacutetica enquanto uma das disciplinas da enkyklios
paideia sua definiccedilatildeo enquanto episteme coloca-a no grupo das ldquoartes baseadas na razatildeordquo144
as logiken tekhnai A mousike enquanto episteme definida por elementos da harmonike eacute
oposta por Sexto Empiacuterico a outro conceito que aparece tambeacutem em Aristoacutetexo a organike
Embora a organike apareccedila como uma das partes da mousike ao lado da harmonike os
autores da tratadiacutestica musical desconsideram a parte praacutetica da muacutesica considerando-a
alogos (irracional)145 A organike enquanto arte praacutetica (pratike tekhne) aparece junto do
termo ldquoempeiriardquo (experiecircncia) destacando o seu caraacuteter praacutetico
Reyes aponta que ldquona eacutepoca de Sexto o oposto agrave harmonike eacute jaacute claramente a
organike (hellip) Os organikoi isto eacute a organike de Sexto nem sequer participa da discussatildeo
dos kriteria em muacutesica tatildeo relevante nessa eacutepocardquo (Reyes 2004 p 100) Tal recorte de
acordo com a cisatildeo entre teoria e praacutetica musical na Antiguidade evidencia que Sexto estaacute
preocupado em refutar a muacutesica enquanto teoria e natildeo como uma arte praacutetica
orgacircnicardquo (Aristoacutexeno El Harm 419-12 traduccedilatildeo Roosevelt Rocha)144 Ver seccedilatildeo 42 (p 57)145 Aristides Quintiliano De Mus (419-20) Cleonides Harm (1793-4 Jan) Anon Bellerm (12)
71
512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica
A argumentaccedilatildeo presente no Contra os Muacutesicos segue o modelo argumentativo
apresentado no capiacutetulo anterior146 e foi dividida explicitamente pelo autor em dois conjuntos
de argumentos e contra-argumentos Tendo definido o objeto a ser refutado a teoria musical
(no sentido amplo do termo147) Sexto Empiacuterico ldquoalinhou sucessivamente argumentos mais
dogmaacuteticos [dogmatikoteron] e em seguida argumentos mais aporeacuteticos [aporetikoteron]rdquo
(Pellegrin 2002 p 46) atribuindo-os inicialmente a ldquounsrdquo e ldquooutrosrdquo Para o ceacutetico
Uns de modo mais dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute umensinamento necessaacuterio para a felicidade mas muito prejudicial e eles seesforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo que eacute dito pelos muacutesicos esustentando que seus argumentos principais eram dignos de negaccedilatildeo Outros de ummodo mais aporeacutetico evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo ao desestabilizar asprincipais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem destruir toda a muacutesica (M VI4-5 grifo nosso)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37) a discussatildeo se daacute a respeito da
utilidade da muacutesica se ela eacute ou natildeo necessaacuteria para a felicidade Isso porque desde Platatildeo
as questotildees esteacuteticas satildeo apresentadas tipicamente em contextos inextricaacuteveis dequestotildees eacuteticas e poliacuteticas mais amplas a beleza estaacute mais intimamente ligada como bem do que noacutes tenderiacuteamos a assumir e as artes satildeo amplamente consideradasem termos de seus efeitos eacuteticos e pedagoacutegicos de seu papel na sociedade etc EPlatatildeo dita o tom a respeito disso para a Filosofia Grega bastante posterior a eleComo veremos os Estoicos parecem tecirc-lo seguido nisso enquanto os Epicuristasque argumentaram contra o poder eticamente transformativo da muacutesica claramentese consideram como desafiando uma visatildeo amplamente sustentada (Bett 2013 p156-7)
Se a discussatildeo das artes estaacute ligada a seu papel pedagoacutegico e poliacutetico a questatildeo da
utilidade da muacutesica eacute um problema eacutetico e natildeo esteacutetico De acordo com Bett os argumentos
eacuteticos apresentados pelo ceacutetico em geral abrangem duas questotildees centrais ldquose algo eacute bom
ou ruim por natureza (hellip) e quais satildeo as consequecircncias praacuteticas de uma resposta afirmativa a
essa questatildeordquo (Bett 2013 p 157) e se existe (tal como afirmavam os Estoicos) ou natildeo uma
Arte de Viver
Enquanto os filoacutesofos e a maioria das pessoas acreditam que a muacutesica pode ser boa
por natureza os filoacutesofos Epicuristas148 satildeo aqueles ldquounsrdquo que ldquode modo mais dogmaacutetico
146 Ver seccedilotildees 43 e 431147 Ver Introduccedilatildeo (p 10) e seccedilatildeo 31148 Mostraremos adiante a relaccedilatildeo estreita entre os argumentos do filoacutesofo epicurista Filodemo e os de Sexto
72
tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute um ensinamento necessaacuterio para a felicidaderdquo (M VI 4)
Ainda que Sexto Empiacuterico atribua explicitamente alguns dos contra-argumentos aos
epicuristas (ver M VI 1927) ele continua considerando que eles satildeo dogmaacuteticos149 visto que
sustentam firmemente a crenccedila150 de que determinadas teses satildeo falsas (HP I 1-10) Nesse
sentido seus argumentos satildeo usados pelo ceacutetico para apresentar um ponto de vista contraacuterio
ao da maioria
Embora os argumentos contra a utilidade da muacutesica recebam mais atenccedilatildeo do ceacutetico
do que os a favor (ateacute porque estes jaacute eram bastante conhecidos por aqueles aos quais o
Contra os Muacutesicos se dirige) consideramos tal como Bett (2013 p 162) que ldquonatildeo eacute difiacutecil
observar isso como um exemplo do procedimento padratildeo de Sexto de justapor argumentos
para conclusotildees opostas visando induzir a suspensatildeo do juiacutezo a respeito de ambos os ladosrdquo
apesar da suspensatildeo do juiacutezo natildeo ser diretamente mencionada ao longo do Contra os
Professores151
Na segunda parte da obra (M VI 38-68) Sexto apresenta brevemente alguns
conceitos da teoria musical (em sentido estrito) especificamente os da ciecircncia harmocircnica de
Aristoacutexeno e contra isso sustenta argumentos contra os princiacutepios baacutesicos da teoria musical
visando mostrar a inexistecircncia dos conceitos a partir dos quais a ciecircncia harmocircnica se
constroacutei152 Nesse ponto natildeo haacute propriamente uma oposiccedilatildeo de argumentos mas basicamente
a apresentaccedilatildeo de alguns conceitos e argumentos destinados a minar a sua possibilidade de
existecircncia153 e com isso a coerecircncia interna de toda a teoria musical
Essa argumentaccedilatildeo inicialmente atribuiacuteda a ldquooutrosrdquo (M VI 6) considerada pelo
ceacutetico como de caraacuteter ldquomais aporeacuteticordquo (aporetikoteron) ou ldquomais em um espiacuterito de
impasserdquo (como Bett traduz) eacute apresentada por Sexto Empiacuterico em primeira pessoa ldquose
mostrarmos que nem as melodias existem e nem os ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos
mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existerdquo (M VI 38 grifo nosso) De acordo com Bett
na habitual terminologia pirrocircnica utilizada por Sexto os propagadores doldquoimpasserdquo (aporia) satildeo os proacuteprios ceacuteticos e aporetikos eacute um dos roacutetulos
Empiacuterico Ver seccedilatildeo 52 (p 74-8)149 A relaccedilatildeo entre ceticismo e epicurismo no Contra os Professores foi abordada na seccedilatildeo 431 (p 64-6)150 Ver p 49151 De fato tal como foi discutido na seccedilatildeo 431 a suspensatildeo de juiacutezo natildeo parece ser o que estaacute em jogo nesta
parte do Contra os Muacutesicos embora os recursos argumentativos sejam os mesmos da argumentaccedilatildeo quevisa levar agrave suspensatildeo
152 Tambeacutem nessa segunda parte pode-se identificar os Modos de Enesidemo e Agripa que estatildeo de acordo como meacutetodo ceacutetico Ver por exemplo M VI 55 67
153 Jaacute explicitamos anteriormente (ver p 65) em que sentido a argumentaccedilatildeo a respeito da natildeo existecircncia podeser compreendida nos escritos pirrocircnicos
73
alternativos para ldquoceacuteticordquo listados no iniacutecio das Hipotiposes Pirronianas (HP I 7)contrariamente ldquodogmaacuteticosrdquo eacute o termo padratildeo de Sexto para aqueles filoacutesofosnatildeo-ceacuteticos dos quais ele anseia se afastar (Bett 2013 p 162)
Visto que o ceticismo pirrocircnico se aproxima da argumentaccedilatildeo chamada ldquoaporeacuteticardquo e
busca combater o dogmatismo torna-se inevitaacutevel questionarmos por que Sexto Empiacuterico
utiliza esses dois tipos de argumentaccedilatildeo se ele claramente daacute preferecircncia ao segundo tipo
Ora apesar de termos apresentado uma explicaccedilatildeo bastante plausiacutevel para o modelo
argumentativo presente em todo o Contra os Professores154 no caso do Contra os Muacutesicos
podemos arriscar ainda uma razatildeo a mais para isso Se como sugerimos155 Sexto Empiacuterico
utiliza argumentos de estilos diferentes tendo em vista o puacuteblico ao qual seus escritos se
dirigem ‒ os Professores das disciplinas das enkyklia mathemata ‒ no caso da muacutesica apesar
de o autor parecer confiar mais no segundo os dois tipos de argumentaccedilatildeo abordam aspectos
diferentes da teoria musical Por um lado temos a discussatildeo a respeito do papel eacutetico
atribuiacutedo agrave muacutesica centrada na questatildeo de sua utilidade para se chegar agrave felicidade e por
outro a discussatildeo epistemoloacutegica que aborda a muacutesica enquanto uma ciecircncia centrada na
coerecircncia das teses defendidas Se a muacutesica foi de fato abordada sob essas duas perspectivas
na Greacutecia Antiga156 natildeo eacute estranho supor que Sexto utilize dois tipos de refutaccedilatildeo
especificamente contra estes dois acircmbitos da teoria musical a fim de abarcar a mousike em
sua totalidade
52 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida
a utilidade da muacutesica compreendida em um sentido amplo ligada agrave possibilidade de produzir
felicidade (eudaimonia) Tal questatildeo estaacute relacionada agrave ideia de que a muacutesica trazia em si o
poder de afetar a alma e o caraacuteter do ouvinte e por isso seria uacutetil
Como destacamos no primeiro capiacutetulo diversas satildeo as questotildees discutidas pelos
filoacutesofos a respeito da muacutesica (como a muacutesica deve ser ensinada o quanto ela deve ou natildeo
ser praticada quais modos satildeo bons e quais natildeo devem ser executados o papel da muacutesica
instrumental o poder da muacutesica de afetar a alma do ouvinte a ponto de alterar o seu caraacuteter
etc) mas a questatildeo em uacuteltima instacircncia eacute a sua utilidade para a vida Platatildeo atribuiu agrave
154 Ver seccedilatildeo 431155 Ver seccedilatildeo 431 (especialmente p 63 65)156 Tal como observamos ao longo da seccedilatildeo 3 a diferenccedila entre as abordagens de Platatildeo e Aristoacuteteles por um
lado e Aristoacutexeno por outro
74
muacutesica um grande valor eacutetico e um papel fundamental na educaccedilatildeo e a maioria dos
pensadores posteriores seguiu esse caminho Sua utilidade para a vida em funccedilatildeo de seu
papel psicagoacutegico foi tomada como ponto de comum acordo entre a maioria dos teoacutericos e
pessoas comuns
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto se propotildee a apresentar ldquoas coisas
sobre a muacutesica repetidas costumeiramente pela maioriardquo (M VI 7) e para refutaacute-las o ceacutetico
utiliza contra-argumentos muito parecidos com os que satildeo encontrados no De Musica de
Filodemo (seccedilatildeo 132) Os argumentos a favor da muacutesica satildeo apresentados de maneira breve
(M VI 7-18) e respondidos na mesma ordem (M VI 19-28) Em seguida Sexto apresenta a
discussatildeo que ele considera ldquoprincipalrdquo aquela que de acordo com ele diz respeito
explicitamente agrave utilidade da muacutesica (M VI 29-37)
De acordo com Bett (2013 p 170) ldquohaacute boas razotildees para crer que a duacutevida de Sexto
Empiacuterico nesta parte do livro vai aleacutem das duas menccedilotildees expliacutecitas aos epicuristas (M VI 19
27)rdquo Isso se deve natildeo soacute agraves semelhanccedilas entre as estruturas do texto ceacutetico e do epicurista
mas tambeacutem porque muitos dos exemplos que observamos no Contra os Muacutesicos aparecem
tambeacutem no De Musica
Dentre os exemplos e argumentos que aparecem em ambos os textos temos a anedota
de Pitaacutegoras (M VI 8 23 e De mus col 39-44) a histoacuteria dos Espartanos guerrearem ao
som do aulo e da lira (M VI 9 24 e De Mus col 72 43-73) Clitemnestra sendo deixada aos
cuidados de um muacutesico (M VI 11-2 26 e De mus col 49 23-7) e Soacutecrates aprendendo a
tocar lira (M VI 13 e De mus col 139 39-40) Aleacutem da semelhanccedila entre os exemplos
mencionados haacute uma seacuterie de afirmaccedilotildees e argumentos a respeito da muacutesica que podem ser
encontrados em ambos os autores
O primeiro argumento a favor da muacutesica apresentado por Sexto Empiacuterico diz respeito
agrave crenccedila de que esta ldquoregula a vida humana e refreia as afecccedilotildees da almardquo (M VI 7) Contra
isso Sexto argumenta que ldquonatildeo eacute prontamente concebiacutevel que por natureza algumas
melodias excitam a alma e outras tranquilizamrdquo (M VI 19) elencando dois argumentos para
isso
O primeiro argumento parte de um exemplo atribuiacutedo nominalmente aos epicuristas
para mostrar que ldquoalgumas melodias musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de
outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada por noacutesrdquo (M VI 20) Natildeo obstante esse exemplo
antecede um raciociacutenio baseado no primeiro Modo de Enesidemo157 Aqui observamos a
157 Sobre os Modos ver p 62 Especificamente sobre essa passagem ver M VI 20 nota 245 agrave nossa traduccedilatildeo
75
ideia de que a influecircncia que alguma melodia possa por ventura ter depende natildeo de sua
natureza mas do modo como aquilo aparece ao ouvinte (ideia compartilhada entre epicuristas
e ceacuteticos) A isso Sexto acrescenta que ldquonatildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica
refreia o pensamento mas porque tem o poder de distrairrdquo (M VI 21 e De Mus col 78 32-
7)
Em seguida tomando os Espartanos e a ira de Aquiles como exemplo Sexto diz que
ldquotal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a ser corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempetordquo (M VI 10) Contra isso o
argumento apresentado eacute novamente o de que a muacutesica faz isso porque distrai a mente (M VI
24 e De mus Col 68 33-40 e tambeacutem col 122 10-1)158
Embora apareccedilam mesclados a tantos outros argumentos tais argumentos abrangem
questotildees muito debatidas ateacute o presente159 merecendo alguma atenccedilatildeo A ideia de que o efeito
natildeo estaacute na muacutesica mas em nossa opiniatildeo eacute absolutamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo a tudo
que era comumente dito sobre muacutesica Enquanto os pitagoacutericos e em seu rastro Platatildeo e
tambeacutem os Estoicos atribuiacuteam um valor objetivo agrave muacutesica considerando seus efeitos fruto de
sua natureza Filodemo e Sexto Empiacuterico datildeo talvez pela primeira vez um tratamento que
poderiacuteamos chamar ldquosubjetivordquo160 agrave muacutesica161 Para o ceticismo isso se daacute porque natildeo temos
acesso aos objetos externos agrave nossa mente e consequentemente natildeo temos acesso agrave natureza
das coisas que por natureza natildeo satildeo boas nem maacutes essa opiniatildeo sendo acrescentada por
noacutes162 Do mesmo modo o efeito da muacutesica na mente humana eacute desvinculado de sua natureza
e o papel atribuiacutedo agrave muacutesica varia de acordo com a situaccedilatildeo e o contexto do ouvinte
dependendo natildeo da natureza da muacutesica mas da nossa opiniatildeo163
O uacuteltimo grupo de argumentos (M VI 29-37) aparece como uma compilaccedilatildeo das
principais alegaccedilotildees a respeito da utilidade da muacutesica seguida da refutaccedilatildeo sextiana164 O
(p 99)158 Para mais paralelos entre as duas obras ver Bett (2013 p 170 - 1)159 Referimo-nos aqui ao debate a respeito da autonomia da muacutesica Ver Introduccedilatildeo (p 12-3)160 O termo ldquosubjetivordquo eacute aqui utilizado com aspas por estar ligado diretamente agrave Filosofia moderna sendo
neste caso anacrocircnico Natildeo obstante o modo como o ceacutetico aborda certos conceitos aproxima-se muitodaquilo que posteriormente foi ligado ao conceito de ldquosubjetividaderdquo
161 Sobre a oposiccedilatildeo entre objetividade e subjetividade no pensamento esteacutetico da Antiguidade verTatarkiewicz (1963)
162 Ver o iniacutecio da seccedilatildeo 41163 Tais conjecturas satildeo reencontradas nas especulaccedilotildees sobre muacutesica apenas no seacuteculo XIX Eduard Hanslick
em O belo musical (1854) defende que a muacutesica natildeo exprime nenhum sentimento sendo completamenteassemacircntica
164 Para Bett (2013 p 174) aqui haacute uma mudanccedila de foco que explicaria o fato desses argumentos natildeo teremparalelos com passagens em Filodemo Entretanto tambeacutem aqui podemos encontrar muitas aproximaccedilotildeescom o texto de Filodemo as quais pontuamos a seguir
76
primeiro apresenta a ideia de que ldquoos que cultivaram o gosto pela muacutesicardquo (M VI 29) tecircm
mais prazer com ela do que as pessoas comuns ao que Sexto Empiacuterico responde que este natildeo
eacute um prazer necessaacuterio (M VI 31)165 e que mesmo que o fosse a experiecircncia musical natildeo eacute
fundamental para isso visto que tambeacutem aqueles que satildeo considerados desprovidos de
experiecircncia ou compreensatildeo musical (os animais e as crianccedilas) parecem ter prazer com a
muacutesica e por fim acrescenta-se que assim como aquele que natildeo eacute instruiacutedo na arte da
culinaacuteria obteacutem o mesmo prazer ao saborear a comida o especialista tem com a muacutesica o
mesmo prazer que o homem comum166 (M VI 33-4 e De Mus col 143 6-12)
Sobre essa discussatildeo Bett (2013 p 174) insinua que Sexto Empiacuterico se contradiz por
discutir a necessidade de ldquoexperiecircncia musicalrdquo visto que ldquoexperiecircncia musicalrdquo era aquilo
que tinha ficado fora do escopo da discussatildeo (ver M VI 1 3) Todavia o que estaacute em jogo
aqui eacute a teoria de que a educaccedilatildeo musical (que inclui a praacutetica musical) deveria acontecer tal
como considera Aristoacuteteles ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas
melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos
escravos crianccedilas e alguns animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A ver tambeacutem Platatildeo Leis 812
B-C)167 A questatildeo aqui eacute que Aristoacuteteles diferencia a fruiccedilatildeo obtida por aquele que eacute educado
musicalmente daquela obtida por seres ldquodesprovidos de razatildeordquo como tipos diferentes de
prazer e defende a utilidade do ensino da muacutesica para que se obtenha o prazer que acompanha
apenas a boa muacutesica A discussatildeo em Sexto restringe-se agrave necessidade da praacutetica musical para
que se obtenha prazer (qualquer que seja168) nas muacutesicas ouvidas ao que se responde que a
praacutetica natildeo eacute necessaacuteria visto que aqueles que natildeo satildeo educados musicalmente tambeacutem
obtecircm prazer nela Contrariamente ao que Bett insinua a questatildeo em pauta eacute novamente a
utilidade do ensino da muacutesica do qual a praacutetica participaria apenas em certa medida
O segundo argumento sobre a utilidade da muacutesica sustenta que ldquonatildeo acontece de os
homens virem a ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicosrdquo (M VI 29) A
discussatildeo aqui diz respeito ao papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes Se a
finalidade da educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento das virtudes e estas satildeo necessaacuterias para a
felicidade visto que a muacutesica eacute considerada por muitos como parte fundamental da165 Tal posiccedilatildeo eacute defendida pelos epicuristas (Filodemo De Mus col 151 29-31)166 Essa analogia com a arte de cozinhar pode ser encontrada tambeacutem na Poliacutetica de Aristoacuteteles (Pol 1039 A)
onde o filoacutesofo questiona a necessidade do aprofundamento na praacutetica musical para que as pessoas possamfruiacute-la corretamente e afirma que concluir essa necessidade seria o mesmo que dizer que para se apreciarboa comida eacute necessaacuterio aprender a cozinhar Tal constataccedilatildeo antecede a proacutexima discussatildeo a respeito nanecessidade da praacutetica musical para sua fruiccedilatildeo
167 Ver p 34 40-1168 Conforme salientamos na primeira seccedilatildeo (p 25) Platatildeo e Aristoacuteteles fazem uma diferenciaccedilatildeo entre tipos de
prazer
77
educaccedilatildeo a muacutesica seria fundamental para o desenvolvimento das virtudes e
consequentemente para se alcanccedilar a felicidade169 Esse eacute um dos aspectos principais da
discussatildeo eacutetica sobre a muacutesica tomado como certo pela maioria dos autores (como
observamos no primeiro capiacutetulo) consequentemente essa eacute tambeacutem uma das principais
teses combatidas por Filodemo
Contra esse segundo argumento Sexto considera que a muacutesica pode conduzir os
jovens agrave intemperanccedila e agrave luxuacuteria (M VI 34-5) tal como tambeacutem aponta Filodemo (De Mus
col 127 28-30) Utilizando um recurso tipicamente ceacutetico Sexto simplesmente aponta que
se ldquoeacute fatordquo que ela leva agrave virtude tambeacutem ldquoeacute fatordquo que ela leva igualmente ao viacutecio
apresentando um exemplo que contraria a tese de que a muacutesica deveria ser valorizada porque
leva agrave virtude
O terceiro argumento que Sexto apresenta consiste na afirmaccedilatildeo de que ldquoacontece de
os elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofiardquo (M
VI 30 e De Mus col 136 10-137170) Contra isso Sexto argumenta que de acordo com
essas ideias tambeacutem natildeo se pode dizer que a utilidade da muacutesica se deve ao fato de esta e a
Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos (M VI 36) Para refutar a tese de que a
Filosofia e a muacutesica tecircm elementos em comum Sexto apenas reporta-se agrave sua refutaccedilatildeo ao
argumento anterior
Em sua anaacutelise Bett limita-se a afirmar que ldquoeacute difiacutecil perceber como essa ideia [a
refutaccedilatildeo apresentada anteriormente] deveria ser transferida para a questatildeo dos elementos
comuns entre muacutesica e Filosofia e que se poderia muito bem suspeitar de alguma ediccedilatildeo
inadequada da parte de Sextordquo (Bett 2013 p 174) De nossa parte suspeitamos da
inadequaccedilatildeo dessa leitura Jaacute em M VI 7 Sexto apresenta a teoria de que a muacutesica produz os
mesmos efeitos que a Filosofia especificamente regular a alma humana e refrear suas
afecccedilotildees mas que o faz com certa ldquopersuasividade encantatoacuteriardquo Ora o problema do
segundo argumento discutido por Sexto eacute justamente o do papel da muacutesica no
desenvolvimento das virtudes que neste caso satildeo as mesmas virtudes que a Filosofia se
propotildee a desenvolver na alma humana Eacute nesse sentido que a refutaccedilatildeo ao argumento
anterior se aplica tambeacutem a este171
Por fim Sexto aponta que a muacutesica eacute considerada uacutetil ldquoporque o cosmos eacute governado
169 Cf Aristoacuteteles Pol (1340 A) e EN (1102 A)170 Filodemo (De Mus col 82-5) tambeacutem apresenta a discussatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre Muacutesica e Filosofia
e seu papel na educaccedilatildeo Para ele eacute a Filosofia que educa natildeo a muacutesica visto que esta sendo (para ele)irracional natildeo pode produzir disposiccedilotildees racionais agrave virtude ou ao viacutecio
171 Sobre isso ver M VI 7 notas 215 217 e 218 agrave nossa traduccedilatildeo (p 91)
78
de acordo com a harmoniardquo (M VI 30)172 e tambeacutem ldquoporque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da almardquo (M VI 30)173 Ao que Sexto Empiacuterico responde que esse uacuteltimo
argumento ldquojaacute foi desconsiderado como natildeo sendo verdadeiro174 e que o cosmos eacute ordenado
segundo a harmonia mostra-se falso de vaacuterios modosrdquo (M VI 36-7) aleacutem disso de acordo
com Sexto mesmo se essa tese fosse verdadeira ldquotal coisa natildeo tem poder sobre a bem-
aventuranccedila tal como a harmonia natildeo tem poder sobre os instrumentos musicaisrdquo visto que a
harmonia do cosmos eacute inaudiacutevel175 (M VI 37 e De Mus col 80)
A proximidade entre os argumentos de Sexto Empiacuterico e os de Filodemo deixa claro
que haacute alguma relaccedilatildeo forte entre os dois textos Contudo se Filodemo serviu de fonte direta
para Sexto Empiacuterico ou se eles usaram fontes em comum eacute uma questatildeo difiacutecil de ser
respondida Embora Sexto e Filodemo tenham estilos bastante diferentes para Bett se
partimos da ediccedilatildeo de Delattre (2007) do De Musica
noacutes temos um texto com um formato notavelmente similar ao modo habitual deSexto proceder e particularmente agravequilo que ele faz nesta parte do Contra osMuacutesicos A exposiccedilatildeo dos argumentos positivos a respeito da utilidade da muacutesicaseguida pelos argumentos negativos que correspondem a eles precisamente namesma ordem (hellip) estaacute muito proacutexima do modo como (se Delattre estaacute certo)Filodemo conduziu seu tratamento deste toacutepico (Bett 2013 p 172-3)
Ainda assim embora os argumentos sejam muito semelhantes Filodemo abordou o
assunto de maneira muito mais ampla e se Sexto utilizou sua obra como fonte direta ele
ldquoresumiu aquilo que pegou de Filodemo e reorganizou para seu proacuteprio usordquo (Bett 2013 p
172) Por fim a diferenccedila fundamental entre os argumentos eacute sua finalidade visto que para o
ceacutetico o epicurista eacute ainda um dogmaacutetico que espera que tomemos suas teses como
verdadeiras enquanto o ceacutetico visa neste caso combater o dogmatismo dos professores de
muacutesica enquanto uma das mathemata176
A respeito da natureza dos argumentos apresentados nesta primeira parte e do objeto
ao qual tais argumentos satildeo dirigidos resta-nos algumas observaccedilotildees Richard Bett sustenta
que Sexto Empiacuterico se contradiz por ter afirmado que soacute iria abordar a teoria musical mas
172 Filodemo (De Mus col 145 17) tambeacutem menciona essa teoria atribuindo-a a alguns neopitagoacutericos173 Essa eacute uma das principais teses atribuiacutedas por Filodemo ao estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (ver Filodemo
De Mus col 23 1-19) contra a qual como foi mostrado anteriormente ele sustenta que se a muacutesica temalgum poder de alterar a alma isso se deve ao seu poder de distrair e agraves opiniotildees que o ouvinte associaposteriormente a esta Ver acima (p 74-5) a discussatildeo dos argumentos de M VI 7 e 19
174 De fato Sexto aborda essa questatildeo inuacutemeras vezes nos paraacutegrafos anteriores Ver especialmente M VI 19-22
175 Ver M VI 37 nota 280 agrave nossa traduccedilatildeo (p 109)176 Ver seccedilatildeo 2
79
que a discussatildeo desta primeira parte do texto gira em torno da praacutetica musical177 Aqui
precisamos ter certa cautela Eacute certo que a definiccedilatildeo inicial de teoria musical natildeo parece
prontamente incluir as questotildees eacuteticas discutidas Todavia do mesmo modo a discussatildeo a
respeito da utilidade da muacutesica natildeo pode ser simplesmente subsumida ao conceito de muacutesica
enquanto ldquoempeiriardquo (experiecircncia) Se o conceito de muacutesica discutido parece estar restrito aos
aspectos teacutecnicos da teoria musical haja vista sua delimitaccedilatildeo ldquoenquanto ciecircncia das
melodias sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipordquo (M VI 1) a definiccedilatildeo de muacutesica
enquanto empeiria restringe-se (de acordo com Sexto) aos ldquomuacutesicos praacuteticosrdquo aqueles que
ldquousam aulos e salteacuteriosrdquo (M VI 1) Assim se a discussatildeo a respeito da utilidade da muacutesica
natildeo pode ser conectada agrave primeira definiccedilatildeo ela tambeacutem natildeo pode ser simplesmente
subsumida agrave segunda
O conceito de empeiria no ceticismo estaacute ligado em geral agraves artes que satildeo
aprovadas pelo ceacutetico Nesse sentido a simples execuccedilatildeo de uma peccedila em um instrumento
natildeo eacute questionada pelo ceacutetico Agora a discussatildeo da primeira parte natildeo diz respeito agrave praacutetica
do instrumentista ser ou natildeo abolida do mundo mas especificamente aborda a utilidade da
muacutesica que enquanto disciplina deveraacute ou natildeo ser ensinada178 em funccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo
para a felicidade
Em suma se o objetivo do Contra os Professores eacute o combate ao dogmatismo em
cada uma das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos embora a discussatildeo sobre a utilidade da
muacutesica natildeo pareccedila cair sob o escopo da definiccedilatildeo de teoria musical inicialmente apresentada
por Sexto ela permanece dentro do acircmbito teoacuterico abrangendo o papel eacutetico pelo qual
muitos autores consideraram a muacutesica uacutetil Se a discussatildeo sobre a utilidade de cada uma das
tekhnai eacute fundamental visto que uma tekhne soacute pode ser considerada como tal em funccedilatildeo de
sua utilidade179 o debate a respeito da utilidade da muacutesica natildeo diz respeito agrave praacutetica musical
(tal como Bett insinua) mas estaacute de acordo com o escopo da discussatildeo e com a finalidade do
Contra os Muacutesicos
53 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
177 Para corroborar com sua afirmaccedilatildeo Bett enfatiza a ligaccedilatildeo entre a discussatildeo sobre a ldquoexperiecircncia musicalrdquo(mousikes empeirias) em M VI 32 e a expressatildeo que parafraseando Bett Sexto originalmente usou paradesignar experiecircncia em instrumentos (organiken empeirian) Cf Bett (2013 p 174)
178 A medida que o ensino abrange praacutetica musical conhecimento teacutecnico ou ainda ldquotreinamento auditivordquo eacutebastante discutiacutevel haja vista as restriccedilotildees agrave praacutetica musical feitas por Platatildeo Aristoacuteteles e Aristoacutexeno
179 Sobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54) e 44
80
A uacuteltima parte do Contra os Muacutesicos diz respeito aos aspectos teacutecnicos da ciecircncia
musical que satildeo refutados por Sexto Empiacuterico Tendo isso em vista apresentamos os
argumentos acompanhados da explicaccedilatildeo de alguns conceitos baacutesicos da harmonike que satildeo
apresentados na segunda parte do Contra os Muacutesicos
Como vimos esse segundo tipo de argumentaccedilatildeo que aparece no Contra os Muacutesicos
(M VI 38-68) ldquoatacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais
pragmaacuteticardquo (pragmatikoteros) (M VI 38) A abordagem da muacutesica sob uma perspectiva
teacutecnica relaciona-se especificamente agrave parte da ciecircncia musical conhecida como harmonike
As definiccedilotildees dos elementos que compotildeem a harmonike apresentadas no Contra os Muacutesicos
reportam-se natildeo a um autor especiacutefico mas a diversas fontes haja vista que Sexto Empiacuterico
parece fazer um ataque geral agrave teoria da muacutesica Natildeo obstante as definiccedilotildees dos conceitos
aproximam-se em diversos momentos das definiccedilotildees apresentadas por Aristoacutexeno
A partir de Aristoacutexeno a harmonike divide-se como exposto acima180 em sete partes
notas intervalos escalas gecircneros sistemas modulaccedilatildeo e composiccedilatildeo de melodias
(Aristoacutexeno El Harm 235-8) Essas partes natildeo satildeo apresentadas ao acaso mas seguem uma
ordem em que a composiccedilatildeo de melodias eacute apresentada como finalidade (telos) e a nota como
elemento baacutesico do qual todas as outras partes dependem
A argumentaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico visa invalidar a teoria da muacutesica a partir da
refutaccedilatildeo de seus princiacutepios baacutesicos A definiccedilatildeo de muacutesica dada nessa etapa eacute a de que ldquoa
muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico181 e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e do que
natildeo eacute riacutetmicordquo (M VI 38)182 Dada esta definiccedilatildeo Sexto parte do pressuposto loacutegico de que se
a melodia e o ritmo natildeo existirem a muacutesica tambeacutem natildeo existe Ora a melodia eacute constituiacuteda
de notas e as notas satildeo constituiacutedas de sons Entatildeo o ceacutetico ataca o conceito de som visto
que eacute a partir deste que se constitui a nota
Segundo Tomaacutes (2002 p 48) para os gregos ldquoo som em sua forma bruta eacute de fato
um existente no tempo e no espaccedilo reais ele eacute um elemento do mundo e natildeo um elemento
moldado na inteligecircnciardquo E eacute em vista dessa concepccedilatildeo de som que compreendemos os
argumentos a respeito da natildeo existecircncia do som183
A definiccedilatildeo de som enquanto ldquoobjeto da percepccedilatildeo sensiacutevel do ouvirrdquo (M VI 39)
180 Ver seccedilotildees 33 e 511181 Emmeles eacute em geral a qualidade daquilo que respeita as leis proacuteprias do melos ou seja diz respeito aos
sons estarem dispostos musicalmente de maneira adequada Cf Reyes (2004 p 101)182 A mesma definiccedilatildeo aparece tambeacutem no Contra os Eacuteticos (M XI 186)183 O sentido da argumentaccedilatildeo contra a existecircncia jaacute foi apresentado na seccedilatildeo 431 (p 65)
81
apresenta o som enquanto objeto sensiacutevel mas ainda natildeo relacionado agrave muacutesica Tal definiccedilatildeo
eacute desenvolvida pelo estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (que compreende o som como ar
percutido)184
A definiccedilatildeo de nota eacute dada a partir da definiccedilatildeo de som uma nota eacute um som emitido
de certa maneira (M VI 41-2) Segundo Sexto Empiacuterico a definiccedilatildeo dada pelos muacutesicos de
maneira geral eacute de que ldquonota eacute a incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo Uma
definiccedilatildeo muito semelhante eacute encontrada em Aristoacutexeno ldquouma nota eacute a incidecircncia do som em
uma tensatildeordquo (Aristoacutexeno El Harm 115)185
Essa definiccedilatildeo de nota eacute seguida por outras definiccedilotildees relacionadas a ela (homofonia e
natildeo homofonia agudo e grave consonacircncia e dissonacircncia) que abrem o caminho para a
definiccedilatildeo de intervalo e a seguir de gecircnero (apresentado no Contra os Muacutesicos diretamente
ligado ao conceito de ethos) Todas essas definiccedilotildees evidenciam a variedade de conceitos da
ciecircncia musical que dependem do conceito de nota e consequentemente do conceito de som
No que diz respeito agrave classificaccedilatildeo dos intervalos segundo o criteacuterio da consonacircncia
essa divisatildeo dos intervalos em consonantes e dissonantes tambeacutem eacute apresentada por
Aristoacutexeno que considera que ldquoa segunda distinccedilatildeo que deve ser feita eacute que alguns intervalos
satildeo consonantes e outros dissonantesrdquo (Aristoacutexeno El Harm 44)186
Visto que a definiccedilatildeo dos gecircneros se daacute a partir de uma relaccedilatildeo intervalar187 Sexto
aborda em seguida os gecircneros de melodias ldquoDesse modo natildeo apenas todo intervalo em
muacutesica tem sua existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de
melodiardquo (M VI 48) Observa-se que a passagem se daacute a partir da relaccedilatildeo dos ethe humanos
com os ethe musicais Segundo Sexto Empiacuterico ldquouma melodia de tal tipo eacute chamada pelos
muacutesicos caraacuteter por ser capaz de produzir caraacuteterrdquo (M VI 49)
Os gecircneros satildeo apresentados por Sexto de acordo com a divisatildeo de Aristoacutexeno Isso
corrobora com a tese de que de acordo com Reyes (2004 p 105) ldquodesde o princiacutepio da era
cristatilde a classificaccedilatildeo aristoxecircnica havia se tornado canocircnica nos escritos teoacutericos devido agrave
enorme influecircncia desse autorrdquo Para Reyes o uso dos gecircneros de acordo com a classificaccedilatildeo
184 Ver Dioacutegenes Laeacutercio Testemonia (VII 55) Para a discussatildeo a respeito das fontes de Sexto Empiacuterico verReyes (2004 p 102)
185 A definiccedilatildeo de nota dada por Aristoacutexeno eacute a base para as definiccedilotildees encontradas tambeacutem em outros autoresda Antiguidade tardia aleacutem de Sexto Empiacuterico Segundo Reyes (2004 p 103) a definiccedilatildeo apresentada porSexto Empiacuterico evidencia que a fonte utilizada por ele natildeo eacute diretamente a obra de Aristoacutexeno pois Sextoacrescenta o adjetivo emmeles que pode ser encontrado em outros autores como Cleoniacutedes Cf Cleoniacutedes(1799-10) Bacchius (14 ou 29215-17 jan) Gaudencius (3297-8 jan) Anon Bellerm (39 48-9)
186 Para as outras definiccedilotildees ver Aristoacutexeno El Harm (44-46)187 A diferenccedila de gecircnero se daacute de acordo com as relaccedilotildees intervalares entre as notas que compotildeem o
tetracorde Ver traduccedilatildeo M VI 42 nota 288 (p 111)
82
de Aristoacutexeno tem duas vertentes ldquopor um lado segue a tendecircncia da eacutepoca (hellip) de adotar a
doutrina aristoxecircnica por outro facilita a intenccedilatildeo de Sexto de tratar os elementos da ciecircncia
musical de um modo nuclear sem entrar em distinccedilotildees sutisrdquo (idem)
Sexto Empiacuterico utiliza inclusive os mesmos termos que Aristoacutexeno para definir os
gecircneros188 Aristoacutexeno define os gecircneros em que a melodia evidentemente se distingue em
trecircs considerando que toda melodia no que diz respeito agrave harmonizaccedilatildeo ou eacute diatocircnica
(diatonon) ou cromaacutetica (khroma) ou enarmocircnica (harmonia)
Muito embora os termos utilizados por Sexto Empiacuterico sejam os mesmo de
Aristoacutexeno aqui se observa um descompasso em relaccedilatildeo ao autor Sexto Empiacuterico apresenta
os mesmos gecircneros que Aristoacutexeno mas atribui a cada um deles um ethos Entretanto
Aristoacutexeno parece ter evitado todo tipo de especulaccedilatildeo sobre os efeitos emocionaisintriacutensecos dos vaacuterios tipos de muacutesica em contraste agrave tradiccedilatildeo vinda de Damon ePlatatildeo Sexto parece aqui se separar da tradiccedilatildeo de Aristoacutexeno e retomar o tipo dequestatildeo apresentada na primeira parte do livro (Bett 2013 p 176)189
Embora Aristoacutexeno tenha restriccedilotildees agraves teorias acerca do poder da muacutesica sobre o
caraacuteter defendidas por Daacutemon Platatildeo e Aristoacuteteles diversos autores ldquooferecem uma
caracterizaccedilatildeo eacutetica dos gecircneros e nesse aspecto Sexto natildeo se diferencia delasrdquo (Reyes
2004 p 106) Tal caracterizaccedilatildeo reforccedila a ideia de que Sexto natildeo estaacute refutando uma tese
especiacutefica mas estaacute preocupado em refutar as principais opiniotildees que faziam parte do ensino
da muacutesica enquanto disciplina da Enkyklios Paideia
No que diz respeito aos ldquogecircneros meloacutedicosrdquo segundo Sexto Empiacuterico das melodias
ldquoa enarmocircnica eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um caraacuteter
claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseirordquo (M VI 50) Tais definiccedilotildees
satildeo segundo Reyes (2004 p 106-9) semelhantes agraves utilizadas por outros autores de tratados
musicais190
188 Reyes (2004 p 105) chama atenccedilatildeo para o fato de que a escrita de Aristoacutexeno emprega a forma antiga deabordar os gecircneros enquanto os escritores contemporacircneos a Sexto Empiacuterico utilizavam os adjetivosdiatonikon khromatikon e enarmonion
189 Note-se que no que diz respeito agrave teoria do ethos musical Aristoacutexeno critica aqueles que acreditam que amuacutesica tem efeito direto sobre o caraacuteter das pessoas dizendo que as pessoas afirmam que um tipo de muacutesicaprejudica o caraacuteter e outro o melhora sem prestarem atenccedilatildeo agrave seguinte qualificaccedilatildeo ldquona medida em que amuacutesica pode ser uacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30) De acordo com Beacutelis essa qualificaccedilatildeo ldquomostrao ceticismo de Aristoacutexeno no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a muacutesica e a moralrdquo (Beacutelis 1986 p 97) Ver p38
190 Eacute interessante notar que as definiccedilotildees do enarmocircnico e do diatocircnico aparecem invertidas em relaccedilatildeo agravequiloque Platatildeo defendia O enarmocircnico eacute classificado por Aristoacutexeno como o mais recente e que exige haacutebitopara ser cantado Ao enarmocircnico satildeo atribuiacutedas as caracteriacutesticas nobres que Platatildeo atribuiacutea ao diatocircnicoObserva-se tambeacutem que enquanto Filodemo omite a definiccedilatildeo do gecircnero diatocircnico muitos autores daAntiguidade tardia atribuem caracteriacutesticas semelhantes ao enarmocircnico e ao diatocircnico Reyes (2004 p 107)
83
As mesmas definiccedilotildees (austeros ou semnos) do ethos do gecircnero enarmocircnico podem
ser encontradas nas obras de Filodemo e de Pseudo-Plutarco191 No que diz respeito ao
cromaacutetico encontra-se definiccedilotildees semelhantes em Dioniacutesio de Helicarnaso e Adrasto Em
ambos os casos Sexto natildeo parece se afastar das definiccedilotildees comumente encontradas na
tradiccedilatildeo No caso do gecircnero diatocircnico Reyes chama atenccedilatildeo para o fato de que Sexto se
limita a uma contraposiccedilatildeo esteacutetica com o gecircnero enarmocircnico O comentador aponta a
caracterizaccedilatildeo esteacutetica do gecircnero diatocircnico como um indiacutecio de que este seria mais recente
que o enarmocircnico o que iria contra a opiniatildeo de Aristoacutexeno
Depois de apresentar os principais conceitos da teoria musical que dependem do
conceito de nota Sexto conclui que ldquoeacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos sobre a melodia
natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notasrdquo (M VI 52) Sexto Empiacuterico busca
desestabilizar a teoria musical apresentando a diaphonia ndash o conflito de opiniotildees ndash nos
discursos filosoacuteficos Visto que as notas existem ldquoconforme o gecircnero do somrdquo (M VI 52) o
autor discute o conceito de som enquanto afecccedilatildeo (pathos) e em seguida discute se o som
existe enquanto algo corpoacutereo ou incorpoacutereo192
O argumento parte da oposiccedilatildeo entre o conceito de som enquanto afecccedilatildeo ou enquanto
produtor de uma afecccedilatildeo e opotildee duas teses filosoacuteficas que consideram como criteacuterio de
verdade respectivamente os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (ou as afecccedilotildees) e os objetos
inteligiacuteveis Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida a tese dos filoacutesofos Cirenaicos de
que soacute existem as afecccedilotildees De acordo com o autor (M VII 191) para os Cirenaicos as
afecccedilotildees (pathe) satildeo o uacutenico criteacuterio de verdade Por outro lado Platatildeo e Demoacutecrito193 tomam
como criteacuterio de verdade natildeo as afecccedilotildees mas apenas as coisas inteligiacuteveis (o som enquanto
existente por si mesmo) A afecccedilatildeo eacute para eles algo distinto do proacuteprio som e nesse sentido
o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo mas produz uma afecccedilatildeo ou seja o som aparece para noacutes enquanto
objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel Platatildeo e Demoacutecrito ao rejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel
(enquanto criteacuterio de verdade) rejeitariam tambeacutem o som tal como eacute compreendido pelos
Cirenaicos194 Com isso Sexto mostra o conflito das opiniotildees acerca das quais natildeo seria
possiacutevel decidir a qual dar assentimento
compreende que esta mudanccedila se deve ao desaparecimento do enarmocircnico enquanto gecircnero praacutetico (talcomo atestam Pseudo-Plutarco e Ptolomeu)
191 Filodemo De Mus (64222) Ps-Plutarco De Mus (1145 A)192 Ver por exemplo Aristides Quintiliano De Mus (520-2) e Ptolomeu Harm (32)193 Ver traduccedilatildeo M VI 53 nota 303 (p 115)194 A explicaccedilatildeo de Reyes (2004 p 103) a respeito deste argumento natildeo eacute muito clara dando a entender que os
Cirenaicos consideravam que o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo Para uma explicaccedilatildeo elucidativa sobre o tema verBett (2013 p 178)
84
O argumento seguinte (M VI 55) apresenta a aporia de que o som natildeo eacute corpoacutereo nem
incorpoacutereo Os Peripateacuteticos satildeo citados como defensores da primeira tese e os Estoicos da
segunda Sexto argumenta que se natildeo existe alma natildeo existe som A partir disso tambeacutem os
sentidos enquanto partes da alma natildeo existem195 e consequentemente tambeacutem natildeo existem
os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (entre eles o som) De acordo com Bett
essa inferecircncia final pode parecer completamente ilegiacutetima se natildeo haacute sentidosentatildeo certamente nenhum objeto eacute percebido pelos sentidos mas disso natildeo se segueque os objetos que noacutes normalmente tomamos como percebidos pelos sentidos natildeoexistam (embora natildeo sejam percebidos) (Bett 2013 p 178)
Mas especificamente no caso do som Aristoacuteteles compreende que o som real (em
oposiccedilatildeo ao som em potecircncia) e a audiccedilatildeo satildeo a mesma coisa Partindo disso Bett considera
que seria possiacutevel (com uma dose de boa vontade) considerar que Sexto parte desse conceito
compreendendo o ldquosomrdquo (phone) como uma ldquoqualidade audiacutevel dos objetosrdquo
Aleacutem disso ldquoo som nem eacute concebido como um efeito nem como substacircncia mas
como algo que vem a ser e que se estende no tempordquo (M VI 57) Assim se natildeo conseguimos
chegar a uma definiccedilatildeo do conceito de tempo o conceito de som enquanto existente no
tempo eacute automaticamente destruiacutedo
Visto que Sexto partiu da definiccedilatildeo de mousike como ciecircncia do que eacute meloacutedico e do
que eacute riacutetmico resta ainda a refutaccedilatildeo da muacutesica enquanto ciecircncia do ritmo Tambeacutem nesse
caso sua refutaccedilatildeo se daacute a partir do conceito mais fundamental presente na definiccedilatildeo de
ritmo Se ldquoritmo eacute um sistema composto de peacutes e o peacute eacute composto de arsis (levantamento) e
thesis (abaixamento)rdquo e ldquoarsis e thesis satildeo considerados uma quantidade de tempordquo (M VI
60) entatildeo o conceito que precisa ser refutado para desestabilizar toda a teoria da muacutesica eacute o
conceito de tempo Para isso Sexto Empiacuterico retoma alguns de seus argumentos contra o
tempo apresentados no Contra os Fiacutesicos196 Em seguida o Contra os Muacutesicos simplesmente
encerra a investigaccedilatildeo ceacutetica a respeito das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos ldquoTendo dito
tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica noacutes encerramos nossa
discussatildeo contra as disciplinasrdquo (M VI 68)
Se observamos o que estaacute em jogo nessa segunda parte do texto composta pelos
argumentos que o proacuteprio autor considera que estatildeo mais de acordo com a corrente ceacutetica197
mais uma vez confirmamos que o ceacutetico natildeo estaacute de modo algum preocupado com o
195 Ver Aristoacuteteles De Anima (425 B 26-8)196 Para referecircncias ver nossa traduccedilatildeo M VI 60-7 notas 311-6 (p 117-120)197 Ver M VI 4-5 e seccedilatildeo 512
85
conceito de muacutesica especificamente mas sim com a criacutetica agrave postura dogmaacutetica da parte dos
professores de muacutesica que sustentam teses contraditoacuterias entre si a respeito dessa arte
86
6 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)
ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ
[61] Ἡ μουσικὴ λέγεται τριχῶς καθ ἕνα μὲν τρόπον ἐπιστήμη τις περὶ μελῳδίας καὶ
φθόγγους καὶ ῥυθμοποιίας καὶ τὰ παραπλήσια καταγινομένη πράγματα καθὸ καὶ
Ἀριστόξενον τὸν Σπινθάρου λέγομεν εἶναι μουσικόν καθ ἕτερον δὲ ἡ περὶ ὀργανικὴν
ἐμπειρίαν ὡς ὅταν τοὺς μὲν αὐλοῖς καὶ ψαλτηρίοις χρωμένους μουσικοὺς ὀνομάζομεν τὰς
δὲ ψαλτρίας μουσικάς ἀλλὰ κυρίως καταὐτὰ τὰ σημαινόμενα καὶ παρὰ πολλοῖς λέγεται
μουσική [62] καταχρηστικώτερον δὲ ἐνίοτε προσαγορεύειν εἰώθαμεν τῷ αὐτῷ ὀνόματι καὶ
τὴν ἔν τινι πράγματι κατόρθωσιν οὕτω γοῦν μεμουσωμένον τι ἔργον φαμέν κἂν ζωγραφίας
μέρος ὑπάρχῃ καὶ μεμουσῶσθαι τὸν ἐν τούτῳ κατορθώσαντα ζωγράφον [63] ἀλλὰ δὴ κατὰ
τοσούτους τρόπους νοουμένης τῆς μουσικῆς πρόκειται νῦν ποιεῖσθαι τὴν ἀντίρρησιν οὐ μὰ
Δία πρὸς ἄλλην τινὰ ἢ πρὸς τὴν κατὰ τὸ πρῶτον νοουμένην σημαινόμενον αὕτη γὰρ καὶ
ἐντελεστάτη παρὰ τὰς ἄλλας μουσικὰς δοκεῖ καθεστηκέναι
87
CONTRA OS MUacuteSICOS
[61] A muacutesica eacute dita de trecircs maneiras Na primeira enquanto ciecircncia198 das melodias
sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipo sentido em que dizemos que Aristoacutexeno199
filho de Espiacutentaro eacute muacutesico Na segunda ela diz respeito agrave experiecircncia200 em instrumentos201
tal como quando nomeamos ldquomuacutesicosrdquo aqueles que usam aulos202 e salteacuterios203 e ldquomusicistasrdquo
aquelas que tocam salteacuterio De maneira apropriada a muacutesica eacute dita de acordo com esses
significados por muitas pessoas [62] De modo menos apropriado agraves vezes costumamos
chamar com o mesmo nome a realizaccedilatildeo bem sucedida de algo Desse modo tambeacutem
dizemos que algo eacute musical204 mesmo sendo parte de uma pintura e que o pintor eacute
ldquomusicalrdquo205 por ter sido bem sucedido nisso [63] Mas sendo a muacutesica concebida dessas
maneiras propotildee-se agora que se faccedila uma refutaccedilatildeo ndash por Zeus ndash natildeo contra qualquer outra
muacutesica senatildeo contra aquela concebida de acordo com o primeiro significado pois essa em
comparaccedilatildeo com os outros significados de muacutesica parece ter se estabelecido como a mais
completa206
198 Encontra-se frequentemente as disciplinas consideradas como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes(tekhnai) Nesse vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar asldquoartes baseadas na razatildeordquo (logiken tekhnai) Ver seccedilatildeo 42
199 Aristoacutexeno disciacutepulo de Aristoacuteteles viveu no seacuteculo IV aC Sua obra teve grande repercussatildeo durante todaa Antiguidade Ele eacute tomado como exemplo de muacutesico na medida em que trata da muacutesica sob umaperspectiva teoacuterica Na parte do texto em que Sexto Empiacuterico refuta conceitos teacutecnicos da muacutesica muitasdas definiccedilotildees satildeo semelhantes agraves do muacutesico Sobre o pensamento musical de Aristoacutexeno ver seccedilatildeo 33
200 O conceito de empeiria eacute comumente utilizado no pirronismo ligado agraves artes que estatildeo de acordo com ocriteacuterio praacutetico e que por isso natildeo satildeo refutadas pelo ceacutetico Ver seccedilotildees 41 e 44
201 A organike enquanto parte da praacutetica musical era frequentemente oposta agrave harmonike que eacute a parte teoacutericada muacutesica e considerada como a mais completa Ver seccedilatildeo 511
202 O mais importante instrumento da famiacutelia dos aerofones De origem oriental o aulo eacute um instrumento desopro ldquocomposto de um tubo (bombyx) feito de junco madeira marfim chifre osso de cervo ou bronzecortado em secccedilotildees ciliacutendricas inseridas umas nas outras com quatro ou cinco furos ( trypemata) sendo queo segundo estava na parte de baixo do tubo O aulo tinha ainda uma ou duas palhetas (glossai ou glottides)no bocal e isso eacute que produzia seu som penetrante e estrondosordquo (Rocha 2009 p 159) Muitas vezes seencontra a traduccedilatildeo de ldquoaulosrdquo por ldquoflautardquo mas essa traduccedilatildeo eacute improacutepria porque a flauta tem um somsuave muito diferente do som do aulo
203 Nome geneacuterico para designar a famiacutelia das harpas (cordas obliacutequas e de comprimento desigual) Osinstrumentos desse gecircnero de origem natildeo grega eram pinccedilados com os dedos nus sem plectro
204 Em grego ldquomemousomenonrdquo O termo remete ao sentido mais amplo de mousike estaacute relacionado agraves artes eciecircncias presididas pelas Musas
205 Nesse sentido amplo de mousike musical (mousikos) eacute o homem bem educado culto206 Eacute a teoria musical natildeo a praacutetica musical considerada pelos pensadores como a mais completa Cf Platatildeo
Rep (530 D-531 C) De acordo com Aristides Quintiliano De Mus (1110) para os antigos filoacutesofos amuacutesica (a teoria musical) ldquonatildeo soacute era apreciada por si mesma mas era tambeacutem extraordinariamenteadmirada por ser uacutetil agraves demais ciecircncias Sob influecircncia pitagoacuterica e platocircnica ele considera que a muacutesicaconteacutem as relaccedilotildees harmocircnicas que compreendem todo o universo por isso ela seria uacutetil para todas as outrasciecircncias
88
[64] τῆς δὲ ἀντιρρήσεως καθάπερ καὶ ἐπὶ γραμματικῆς διττόν ἐστι τὸ εἶδος οἱ μὲν οὖν
δογματικώτερον ἐπεχείρησαν διδάσκειν ὅτι οὐκ ἀναγκαῖόν ἐστι μάθημα πρὸς εὐδαιμονίαν
μουσική ἀλλὰ βλαπτικὸν μᾶλλον καὶ τοῦτο δείκνυσθαι ἔκ τε τοῦ διαβάλλεσθαι τὰ πρὸς τῶν
μουσικῶν λεγόμενα καὶ ἐκ τοῦ τοὺς προηγουμένους λόγους ἀνασκευῆς ἀξιοῦσθαι [65] οἱ δὲ
ἀπορητικώτερον πάσης ἀποστάντες τῆς τοιαύτης ἀντιρρήσεως ἐν τῷ σαλεύειν τὰς ἀρχικὰς
ὑποθέσεις τῶν μουσικῶν ᾠήθησαν καὶ τὴν ὅλην ἀνῃρῆσθαι μουσικήν [66] Ὃθεν καὶ ἡμεῖς
ὑπὲρ τοῦ μὴ δοκεῖν τι τῆς διδασκαλίας χρεωκοπεῖν τὸν ἑκατέρου δόγματος ἢ ἀπορήματος207
χαρακτῆρα κεφαλαιωδέστερον ἐφοδεύσομεν μήτε ἐν τοῖς παρέλκουσιν ὑπερεκπίπτοντες εἰς
μακρὰς διεξόδους μήτε ἐν τοῖς ἀναγκαιοτέροις ὑστεροῦντες πρὸς τὴν τῶν ἐπειγόντων
ἔκθεσιν ἀλλὰ μέσην καὶ μεμετρημένην κατὰ τὸ δυνατὸν ποιούμενοι τὴν διδασκαλίαν
207 Embora Greaves (1986 p 127) opte pelo termo ldquopragmatosrdquo em sua anaacutelise dos manuscritos optamos aquipor manter o termo ldquoaporematosrdquo tal como Delattre (2002 p 415) visto que deste modo a sentenccedila dizrespeito aos tipos de refutaccedilatildeo apresentados anteriormente o dogmaacutetico e o aporeacutetico
89
[64] A refutaccedilatildeo tal como aquela da gramaacutetica se daacute de dois modos208 Uns de modo mais
dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute uma disciplina209 necessaacuteria para a
felicidade210 mas muito prejudicial e eles se esforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo
que eacute dito pelos muacutesicos e sustentando que seus argumentos principais eram dignos de serem
destruiacutedos211 [65] Outros de um modo mais aporeacutetico212 evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo
pensaram que ao desestabilizar as principais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem ter-se
destruiacutedo213 toda a muacutesica [66] Portanto tambeacutem noacutes para que natildeo pareccedilamos minimizar
qualquer coisa da explicaccedilatildeo214 examinaremos metodicamente o caraacuteter principal de cada
uma dessas atitudes ndash a dogmaacutetica e a aporeacutetica Nem de maneira redundante excedendo-nos
em longas descriccedilotildees nem falhando na exposiccedilatildeo daquilo que eacute mais indispensaacutevel mas
criando uma explicaccedilatildeo tatildeo moderada e calculada quanto possiacutevel
208 Tambeacutem no Contra os Gramaacuteticos Sexto Empiacuterico empreende dois tipos de refutaccedilatildeo ele apresentaargumentos mostrando a inutilidade da gramaacutetica e argumenta contra a existecircncia dos princiacutepios queconstituem a ciecircncia das letras
209 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido como ldquodisciplinardquo ldquoconteuacutedordquo ldquoensinamentordquo Ta mathemata satildeoos ensinamentos adquiridos atraveacutes do ensino transmitido pelos mathematikos ou seja pelosprofessoresVer seccedilatildeo 42
210 O termo grego ldquoeudaimoniardquo traduz-se comumente por ldquofelicidaderdquo entretanto essa traduccedilatildeo eacute limitadavisto que identificamos o termo com um certo estado de espiacuterito Eudaimonia na verdade refere-se agraveobtenccedilatildeo daquilo que eacute mais desejaacutevel o sumo bem Para Aristoacuteteles a felicidade eacute uma atividade da almade acordo com a virtude Epicuro considerou o prazer acompanhado da prudecircncia enquanto a principalvirtude como sumo bem tendo definido o prazer como ldquoausecircncia de sofrimentos fiacutesicos e perturbaccedilotildees naalmardquo (Epicuro Carta Sobre a Felicidade p 43) De modo geral o termo eudaimonia remete ao resultadode uma vida virtuosa que regida por determinados princiacutepios de acordo com cada escola filosoacutefica Aeudaimonia (muitas vezes associada agrave tranquilidade da alma) era o principal objetivo das escolas filosoacuteficasdo periacuteodo heleniacutestico combatidas pelos ceacuteticos tal como a epicurista e a estoica Cf Hadot (2008 cap 7)
211 Sexto Empiacuterico refere-se explicitamente aos filoacutesofos epicuristas Segundo Dellatre (2002 p 415 n 1) issose estende tambeacutem aos cirenaicos
212 O termo aporia aparece frequentemente associado ao ceticismo De acordo com Sexto Empiacuterico opensamento ceacutetico eacute chamado tambeacutem de ldquoaporeacuteticordquo Cf HP I 3 210 Ver seccedilotildees 431 (p 62-3) e 512 (p72-3)
213 Sexto Empiacuterico parece se referir aqui agrave proacutepria escola ceacutetica Anairesis indica no ceticismo pirrocircnico asupressatildeo ou destruiccedilatildeo de algum conceito dada enquanto resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica Esse tipo desupressatildeo aparece na segunda parte do texto (sect 38 ndash 68) quando Sexto conclui pela inexistecircncia dosconceitos apresentados Ver seccedilotildees 431 e 512 (p 72-3)
214 ldquoDidaskaliardquo para Sexto Empiacuterico pode designar um ldquoensinamento por demonstraccedilatildeordquo
90
[67] Τάξει δὲ ἀρχέτω πρῶτον τὰ ὑπὲρ μουσικῆς παρὰ τοῖς πολλοῖς εἰωθότα
θρυλεῖσθαι εἴπερ τοίνυν φασί φιλοσοφίαν ἀποδεχόμεθα σωφρονίζουσαν τὸν ἀνθρώπινον
βίον καὶ τὰ ψυχικὰ πάθη καταστέλλουσαν πολλῷ μᾶλλον ἀποδεχόμεθα τὴν μουσικήν ὅτι οὐ
βιαστικώτερον ἐπιτάττουσα ἡμῖν ἀλλὰ μετὰ θελγούσης τινὸς πειθοῦς τῶν αὐτῶν
ἀποτελεσμάτων περιγίνεται ὧνπερ καὶ ἡ φιλοσοφία [68] Ὁ γοῦν Πυθαγόρας μειράκια ὑπὸ
μέθης ἐκβεβακχευμένα ποτὲ θεασάμενος ὡς μηδὲν τῶν μεμηνότων διαφέρειν παρῄνεσε τῷ
συνεπικωμάζοντι τούτοις αὐλητῇ τὸ σπονδεῖον αὐτοῖς ἐπαυλῆσαι μέλος τοῦ δὲ τὸ
προσταχθὲν ποιήσαντος οὕτως αἰφνίδιον μεταβαλεῖν σωφρονισθέντας ὡς εἰ καὶ τὴν ἀρχὴν
ἔνηφον
91
[67] Pela ordem comecemos primeiro com as coisas sobre a muacutesica repetidas
costumeiramente pela maioria Ora se eles dizem admitimos que a Filosofia regula215 a vida
humana e refreia as afecccedilotildees da alma216 mais ainda admitimos que a muacutesica faz isso porque
ela natildeo se impotildee a noacutes de modo violento mas com certa persuasividade encantatoacuteria217 ela
produz os mesmos efeitos que a Filosofia218 [68] Pitaacutegoras certa vez tendo observado que
os jovens em estado de frenesi baacutequico causado pela embriaguez de modo algum diferiam
dos enlouquecidos aconselhou o auleta que estava junto deles na folia a tocar no aulo a
melodia espondaica219 Depois que o auleta fez o que foi ordenado os jovens repentinamente
mudaram e se mostraram temperantes como se tivessem estado soacutebrios desde o iniacutecio220
215 O termo ldquosophronizordquo eacute traduzido ao longo do texto por ldquotemperarrdquo ldquoregularrdquo e ldquomoderarrdquo O verbo estaacuteligado agrave virtude da temperanccedila ou moderaccedilatildeo (sophrosyne) uma das quatro virtudes principais apresentadaspor Platatildeo na Repuacuteblica (427 E) Eacute interessante notar que quando Platatildeo apresenta a virtude da temperanccedilaele a aproxima dos conceitos musicais da consonacircncia (symphonia) e da harmonia apresentando atemperanccedila como ldquouma espeacutecie de ordenaccedilatildeordquo e como ldquoo domiacutenio de certos prazeres e desejosrdquo Cf PlatatildeoRep (430 E)
216 No Fedro Platatildeo aborda a relaccedilatildeo entre as partes da alma fazendo uma analogia da parte racional da almacom a figura de um cocheiro que tenta controlar dois cavalos que representam as partes irracionais da almaDaiacute o papel da Filosofia (atividade da parte racional) de refrear as afecccedilotildees da parte irracional da alma CfPlatatildeo Fedro (253 C ndash 257 B)
217 Na Repuacuteblica (600 E ndash 601 B) Platatildeo afirma que os elementos que compotildeem a muacutesica como a meacutetrica oritmo e o modo tecircm um encantamento que faz um discurso ou qualquer conteuacutedo teacutecnico parecer excelenteembora o poeta natildeo saiba nada mais do que representar aparecircncias Por isso para Platatildeo a execuccedilatildeomusical deve ser muito bem administrada Quando bem utilizada a muacutesica tem o poder de alterar o caraacuteterdo ouvinte e levaacute-lo agrave excelecircncia moral Eacute nesse sentido que ela realizaria o mesmo papel da Filosofia soacuteque de um modo mais agradaacutevel
218 Essa relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia eacute encontrada em diversos textos da Antiguidade Aristides Quintiliano(De mus 2320) apresenta a Filosofia como um objeto de aprendizado (mathesis) que ldquomanteacutem a parteracional [da alma] em sua liberdade natural tornando-a soacutebria e mantendo-a pura atraveacutes da prudecircncia(phronesis)rdquo Jaacute a muacutesica eacute encarregada da parte irracional curando-a e domesticando-a atraveacutes do haacutebitoldquonatildeo permitindo que ela [a alma] cometa excessos nem que seja completamente subjugadardquo ldquoDesde ainfacircncia [a muacutesica] molda o caraacuteter com suas harmoniai e torna o corpo mais melodioso com seus ritmosrdquoIsso poderia se dar de acordo com Aristides Quintiliano porque ldquoa doccedilura dessa atividade encanta suasmentes ou talvez suas almasrdquo Sobre o papel da muacutesica enquanto ensino preliminar para a Filosofia verAristides Quintiliano De mus (32720)Plutarco (De virtute morali 441 E) apresenta essa mesma relaccedilatildeo atribuindo esse conhecimento a Pitaacutegorasque segundo o filoacutesofo teria introduzido o estudo da muacutesica ldquopara encantar e acalmar a almardquo por ternotado que nem todas as partes da alma se submetem agrave razatildeo ldquomas que algumas partes precisam de algumoutro tipo de persuasatildeo para cooperar com elas para moldaacute-las e domesticaacute-las se elas natildeo satildeo para sertotalmente intrataacuteveis e obstinadas ao ensino da Filosofiardquo Ver tambeacutem Platatildeo Euth (290 A)
219 Indica uma melodia apropriada para ocasiotildees religiosas de caraacuteter solene e dominada ritmicamente portempos longos Essas melodias eram compostas no modo doacuterico e consideradas calmantes Cf Platatildeo Ti(47 D) Plutarco De Mus (1135 A)
220 Essa anedota sobre Pitaacutegoras aparece em vaacuterios textos da Antiguidade Cf Filodemo De Mus (col 42 39 ndash44) Quintiliano Inst (110 32) Boeacutecio Inst (11) Plutarco De mus (1146 F)
92
[69] Οἵ τε τῆς Ἑλλάδος ἡγούμενοι καὶ ἐπ ἀνδρείᾳ διαβόητοι Σπαρτιᾶται μουσικῆς ἀεί ποτε
στρατηγούσης αὐτῶν ἐπολέμουν καὶ οἱ ταῖς Σόλωνος χρώμενοι παραινέσεσι πρὸς αὐλὸν καὶ
λύραν παρετάσσοντο ἔνρυθμον ποιούμενοι τὴν ἐνόπλιον κίνησιν [610] Kαὶ μὴν ὥσπερ
σωφρονίζει μὲν τοὺς ἄφρονας ἡ μουσική εἰς ἀνδρείαν δὲ προτρέπει τοὺς δειλοτέρους οὕτω
καὶ παρηγορεῖ τοὺς ὑπ ὀργῆς ἐκκαιομένους ὁρῶμεν γοῦν ὡς καὶ ὁ παρὰ τῷ ποιητῇ μηνίων
Ἀχιλλεὺς καταλαμβάνεται ὑπὸ τῶν ἐξαποσταλέντων πρεσβευτῶν
φρένα τερπόμενος φόρμιγγι λιγείῃ
καλῇ δαιδαλέῃ ἐπὶ δ ἀργύρεον ζυγὸν ἦεν
τὴν ἕλετ ἐξ ἐνάρων πόλιν Ἠετίωνος ὀλέσσας
τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν
ὡς ἂν σαφῶς γινώσκων τὴν μουσικὴν πραγματείαν μάλιστα δυναμένην περιγίνεσθαι τῆς περὶ
αὐτὸν διαθέσεως [611] Kαὶ μὴν διἔθους ἦν καὶ τοῖς ἄλλοις ἥρωσιν εἴ ποτε ἀποδημοῖεν καὶ
μακρὸν πλοῦν στέλλοιντο ὡς πιστοτάτους φύλακας καὶ σωφρονιστῆρας τῶν γυναικῶν
αὑτῶν ἀπολείπειν τοὺς μουσικούς Κλυταιμνήστρᾳ γέ τοι παρῆν ἀοιδός ᾧ πολλὰ ἐπέτελλεν
Ἀγαμέμνων περὶ τῆς κατὰ ταύτην σωφροσύνης [612] ἀλλ ὁ Αἴγισθος πανοῦργος ὢν αὐτίκα
τὸν ἀοιδὸν τοῦτον
ἄγων εἰς νῆσον ἐρήμην
κάλλιπεν οἰωνοῖσιν ἕλωρ καὶ κῦρμα γενέσθαι
εἶθ οὕτως ἀφύλακτον λαβὼν τὴν Κλυταιμνήστραν διέφθειρε προτρεψάμενος αὐτὴν
ἐπιθέσθαι τῇ ἀρχῇ τοῦ Ἀγαμέμνονος
93
[69] Os Espartanos liacutederes da Heacutelade e famosos por sua bravura221 guerreavam sempre sob
o comando da muacutesica222 E aqueles que utilizavam as exortaccedilotildees de Soacutelon223 se colocavam em
ordem de batalha ao som do aulo e da lira fazendo o movimento marcial riacutetmico224 [610]
Tal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a serem corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempeto Vejamos de acordo com o poeta
como Aquiles em sua ira eacute encontrado pelos embaixadores que foram enviados ateacute ele
deleitando seu espiacuterito com a melodiosa foacuterminge
bela obra de arte em cima havia argecircnteo jugo
Escolheu-a dentre os espoacutelios a cidade de Etion tendo destruiacutedo
Com ela ele deleitava seu coraccedilatildeo225
como se ele soubesse claramente que a praacutetica musical eacute sobretudo capaz de prevalecer
sobre sua disposiccedilatildeo [611] Aleacutem disso era haacutebito tambeacutem para outros heroacuteis quando eles
deixavam seus lares e partiam em uma longa navegaccedilatildeo deixar muacutesicos como os mais
confiaacuteveis guardiotildees e responsaacuteveis pela conduta226 de suas mulheres Assim um aedo
acompanhava Clitemnestra ao qual Agamecircnon ordenou muitas coisas a respeito da
temperanccedila dela [612] Mas Egisto sendo perverso rapidamente
conduzindo o aedo para uma ilha deserta o abandonou
para se tornar presa e espoacutelio para os abutres227
entatildeo pegou Clitemnestra jaacute sem vigilacircncia e seduziu-a incitando-a a tomar o poder de
Agamecircnon228
221 ldquoAndreiardquo - traduzido comumente por ldquofortalezardquo ldquocoragemrdquo ldquobravurardquo - denomina tambeacutem uma dasvirtudes a ser cultivada na Repuacuteblica de Platatildeo Quando Platatildeo se refere ao poder da muacutesica de alterar ocaraacuteter do ouvinte esse poder estaacute ligado agraves virtudes da temperanccedila (sophrosyne) e da bravura (andreia)
222 Esse argumento a favor da muacutesica aparece tambeacutem em Quintiliano Inst (I X 14)223 Soacutelon (638 ndash 558 aC) foi um legislador jurista e poeta grego Filodemo tambeacutem apresenta Soacutelon dando
conselhos atraveacutes de elegias morais (poesias monoacutedicas que eram classificadas de acordo com o seuconteuacutedo)
224 As canccedilotildees para a guerra normalmente eram em ritmo creacutetico ou peocircnico ( ndash ᴗ ndash ndash ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ndash ) (Naescansatildeo dos versos as siacutelabas longas satildeo representadas por ldquondashrdquo e as breves por ldquo ᴗ rdquo) Cf West (1992 p15-6) Mathiesen (1999 p 40)
225 Homero Iliacuteada (IX 186-9) A mesma citaccedilatildeo aparece em Plutarco De Mus (1145 E) As traduccedilotildees dostrechos de obras da literatura claacutessica que aparecem neste texto satildeo de nossa autoria em parceria com o profRoosevelt Rocha
226 Utilizamos essa expressatildeo para traduzir o termo ldquosophronisterasrdquo O termo ligado agrave virtude da temperanccedilaassociado agrave conduta das mulheres neste caso diz respeito ao controle do desejo sexual delas
227 Homero Odisseia (III 270-1)228 Cf Filodemo De Mus (col 49 23-7)
94
[613] Oἵ τε μέγα δυνηθέντες ἐν φιλοσοφίᾳ καθάπερ καὶ Πλάτων τὸν σοφὸν ὅμοιόν φασιν
εἶναι τῷ μουσικῷ τὴν ψυχὴν ἡρμοσμένην ἔχοντα καθὸ καὶ Σωκράτης καίπερ βαθυγήρως
ἤδη γεγονὼς οὐκ ᾐδεῖτο πρὸς Λάμπωνα τὸν κιθαριστὴν φοιτῶν καὶ πρὸς τὸν ἐπὶ τούτῳ
ὀνειδίσαντα λέγειν ὅτι κρεῖττόν ἐστιν ὀψιμαθῆ μᾶλλον ἢ ἀμαθῆ διαβάλλεσθαι [614] Oὐ χρὴ
μέντοι φασίν ἀπὸ τῆς νῦν ἐπιτρίπτου καὶ κατεαγυίας μουσικῆς τὴν παλαιὰν διασύρειν ὅτε
καὶ Ἀθηναῖοι πολλὴν πρόνοιαν σωφροσύνης ποιούμενοι καὶ τὴν σεμνότητα τῆς τε μουσικῆς
κατειληφότες ὡς ἀναγκαιότατον αὐτὴν μάθημα τοῖς ἐκγόνοις παρεδίδοσαν [615] καὶ τούτου
μάρτυς ὁ τῆς ἀρχαίας κωμῳδίας ποιητής λέγων
λέξω τοίνυν βίον ὃν ἐξ ἀρχῆς ἐγὼ θνητοῖσι παρεῖχον
πρότερον γὰρ ἔδει παιδὸς φωνὴν γρύσαντος μηδέν ἀκοῦσαι
εἶτα βαδίζειν ἐν ταῖσιν ὁδοῖς εὐτάκτως ἐς κιθαριστοῦ
ὅθεν εἰ καὶ κεκλασμένοις τισὶ μέλεσι νῦν καὶ γυναικώδεσι ῥυθμοῖς θηλύνει τὸν νοῦν ἡ
μουσική οὐδὲν τοῦτο πρὸς τὴν ἀρχαίαν καὶ ἔπανδρον μουσικήν [616] Εἴπερ τε ἡ ποιητικὴ
βιωφελής ἐστι ταύτην δὲ φαίνεται κοσμεῖν ἡ μουσικὴ μερίζουσα καὶ ἐπῳδὸν παρέχουσα
χρειώδης γενήσεται ἡ μουσική ἀμέλει γέ τοι καὶ οἱ ποιηταὶ μελοποιοὶ λέγονται καὶ τὰ
Ὁμήρου ἔπη τὸ πάλαι πρὸς λύραν ᾔδετο
95
[613] Aleacutem disso aqueles muito capazes em Filosofia tal como Platatildeo dizem que o saacutebio eacute
semelhante ao muacutesico pois tem a sua alma harmonizada229 Assim do mesmo modo
Soacutecrates embora jaacute estivesse muito velho natildeo se envergonhava de recorrer a Laacutempon230 o
citarista e para algueacutem que o repreendeu ele disse que eacute melhor ser acusado de aprendiz
tardio do que de ignorante231 [614] Natildeo se deve tambeacutem dizem desprezar a muacutesica antiga
tomando como base a atual232 que eacute vergonhosa e efeminada quando tambeacutem os Atenienses
que devotaram grande atenccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo da conduta compreendendo a dignidade da
muacutesica transmitiram-na para seus descendentes como o ensinamento mais necessaacuterio [615]
Testemunha disso eacute o poeta da Antiga Comeacutedia que diz
Agora contarei da vida a qual em princiacutepio eu dei aos mortais233
Pois primeiramente que natildeo se ouvisse o som de uma crianccedila murmurando
Em seguida que as crianccedilas fossem pelas ruas de maneira ordenada ao encontro do
citarista234
Por essa razatildeo se a muacutesica atual enfraquece a mente com certas melodias fragmentadas e
ritmos efeminados235 isso natildeo tem nada a ver com a muacutesica antiga e viril [616] Aleacutem disso
se a arte poeacutetica eacute uacutetil para a vida e se a muacutesica parece adornaacute-la dividindo-a e produzindo o
canto a muacutesica seraacute necessaacuteria Sem duacutevida tambeacutem os poetas satildeo chamados compositores
de melodia236 e antigamente os versos de Homero eram cantados ao som da lira
229 Cf Platatildeo Rep(410 E 443 D-E 554 E) Timeu (43 A)230 Greaves (1986 p 135 n 35) chama atenccedilatildeo para o fato de que se desconhece a existecircncia de qualquer
muacutesico chamado ldquoLaacutemponrdquo mas que houve um sacerdote do oraacuteculo chamado ldquoLaacutemponrdquo contemporacircneo aSoacutecrates Nos diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates aborda o fato de ser um aprendiz tardio da ciacutetara tendo como seuprofessor de ciacutetara o muacutesico Cono Cf Platatildeo Euth (272 B-C 295 D) No Menexeno (235 E - 236 A) Conotambeacutem eacute mencionado junto do nome ldquoLamprusrdquo professor de muacutesica de Soacutefocles Cf tambeacutem Vida deSoacutefocles (III 19-20)
231 Cf Filodemo De mus (col 139 39-40) Quintiliano Inst (I X 13)232 Platatildeo e Aristoacutefanes criticaram os muacutesicos de seu tempo exaltando os poderes da muacutesica arcaica
Aristoacutefanes sobretudo na comeacutedia As Ratildes faz um apelo agrave tradiccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo gregasatirizando uma disputa entre Euriacutepides enquanto a personificaccedilatildeo do novo muacutesico aberto a todas asinovaccedilotildees e elaboraccedilotildees da chamada nova muacutesica e Eacutesquilo enquanto representante da muacutesica antiga Talsaacutetira ldquonatildeo soacute eacute um apelo agrave tradiccedilatildeo como tambeacutem o testemunho duma profunda ruptura que haviacomeccedilado a produzir-se dentro do acircmbito da cultura musical grega (hellip)rdquo (Pereira 2001 p 259)
233 Telecleides (fr 1) citado em Ateneu Deipnosofistas (VI 268 B) 234 Aristoacutefanes Nuvens (963-4) Na comeacutedia de Aristoacutefanes essa citaccedilatildeo descreve o comportamento
considerado adequado para as crianccedilas de acordo com a antiga educaccedilatildeo ldquoquando a dececircncia era umcostume aceitordquo
235 Ver seccedilatildeo 321 (p 25-6)236 Melopoios
96
[617] ὡσαύτως δὲ καὶ τὰ παρὰ τοῖς τραγικοῖς μέλη καὶ στάσιμα φυσικόν τινα ἐπέχοντα
λόγον ὁποῖά ἐστι τὰ οὕτω λεγόμενα
γαῖα μεγίστη καὶ Διὸς αἰθήρ
ὁ μὲν ἀνθρώπων καὶ θεῶν γενέτωρ
ἡ δ ὑγροβόλους σταγόνας νοτίας
παραδεξαμένη τίκτει θνατούς
τίκτει δὲ βορὰν φῦλά τε θηρῶν
ὅθεν οὐκ ἀδίκως
μήτηρ πάντων νενόμισται
[618] Kαθόλου γὰρ οὐ μόνον χαιρόντων ἐστὶν ἄκουσμα ἀλλ ἐν ὕμνοις καὶ εὐωχίαις καὶ
θεῶν θυσίαις ἡ μουσική διὰ δὲ τοῦτο καὶ ἐπὶ τὸν τῶν ἀγαθῶν ζῆλον τὴν διάνοιαν
προτρέπεται ἀλλὰ καὶ λυπουμένων παρηγόρημα ὅθεν καὶ τοῖς πενθοῦσιν αὐλοὶ μελῳδοῦσιν
οἱ τὴν λύπην αὐτῶν ἐπικουφίζοντες
[619] Τοιαῦτα μὲν ὑπὲρ μουσικῆς λέγεται δὲ πρὸς ταῦτα τὸ μὲν πρῶτον ὅτι οὐκ
ἔστιν ἐκ προχείρου διδόμενον τὸ φύσει τῶν μελῶν τὰ μὲν εἶναι διεγερτικὰ τῆς ψυχῆς τὰ δὲ
κατασταλτικά παρὰ γὰρ τὴν ἡμετέραν δόξαν τὸ τοιοῦτο γίνεται ὥσπερ γὰρ ὁ τῆς βροντῆς
κτύπος καθά φασιν Ἐπικουρείων παῖδες οὐ θεοῦ τινος ἐπιφάνειαν σημαίνει ἀλλὰ τοῖς
ἰδιώταις καὶ δεισιδαίμοσι τοιοῦτος εἶναι δοξάζεται [620] ἐπεὶ καὶ ἄλλων σωμάτων ἐπ ἴσης
ἀλλήλοις προσκρουσάντων ὅμοιως ἀποτελεῖται κτύπος ὥσπερ καὶ μύλου περιαγομένου ἢ
χειρῶν συμπαταγουσῶν τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῶν κατὰ μουσικὴν μελῶν οὐ φύσει τὰ μὲν
τοῖά ἐστι τὰ δὲ τοῖα ἀλλ ὑφ ἡμῶν προσδοξάζεται
97
[617] Tambeacutem eram desse modo as melodias e cantos corais237 dos poetas traacutegicos
mantendo certa relaccedilatildeo natural tal como os ditos assim
Terra Maacutexima e eacuteter de Zeus
que eacute genitor dos homens e dos deuses
e ela que recebendo uacutemidas gotas pluviais
engendra os mortais
e gera o alimento e as raccedilas das feras
Por isso natildeo sem razatildeo
ela eacute considerada matildee de todos238
[618] Pois em geral a muacutesica natildeo eacute apenas um som ouvido em situaccedilotildees alegres mas
tambeacutem eacute ouvida em hinos oraccedilotildees e sacrifiacutecios aos deuses por isso tambeacutem o
pensamento239 eacute incitado ao zelo pelas coisas boas Daiacute tambeacutem eacute um consolo aos
entristecidos por essa razatildeo aos aflitos satildeo tocadas melodias no aulo aliviando a tristeza
deles
[619] Tais satildeo os argumentos a favor da muacutesica Mas diz-se contra essas ideias
primeiro que natildeo eacute prontamente concedido que por natureza240 algumas melodias excitam a
alma e outras tranquilizam241 Com efeito tal coisa eacute contraacuteria agrave nossa opiniatildeo Pois tal como
o estrondo do trovatildeo ndash segundo dizem os aprendizes242 de Epicuro243 ndash natildeo significa a epifania
de algum deus (embora isso seja suposto pelas pessoas comuns e supersticiosas) [620] visto
que outros corpos colidindo uns nos outros igualmente produzem um estrondo similar (como
quando um moinho gira ou quando matildeos batem palmas) do mesmo modo algumas melodias
musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada
por noacutes244
237 Em grego ldquostasimonrdquo Cf Aristoacuteteles Poeacutetica (1452 B) ldquoo estaacutesimo eacute um coral desprovido de anapestos etroqueusrdquo O anapesto eacute usado na entrada do coro composto de duas siacutelabas breves e uma longa ᴗ ᴗ ndash e otroqueu tem a forma ndash ᴗ ndash ᴗ ou ndash ᴗ ndash x e eacute mais adequado para danccedila
238 Euriacutepides (fr 839 Nauck)239 Em grego ldquodianoiardquo eacute um dos termos usados para se referir agrave atividade do intelecto240 Aquilo que eacute dito ldquopor naturezardquo diz respeito ao que existe independentemente de nossas representaccedilotildees
Todavia de acordo com o ceticismo pirrocircnico temos acesso apenas agravequilo que nos aparece por isso natildeopodemos afirmar ou negar algo sobre como as coisas satildeo por elas mesmas ou seja por natureza Ver seccedilatildeo41
241 Cf Filodemo De Mus(col 120)242 Parece haver uma certa ironia no modo como Sexto se refere aos disciacutepulos de Epicuro utilizando o termo
ldquopaidesrdquo (que traduzimos por ldquoaprendizesrdquo) que em grego significa ldquoescravosrdquo ldquoservosrdquo ldquocrianccedilasrdquo243 Tal afirmaccedilatildeo parece se referir a Lucreacutecio De rerum natura (VI 96 ss)244 Para Platatildeo e Aristoacuteteles as melodias tecircm certos caracteres (ethe) por natureza Essa visatildeo foi criticada
tambeacutem por Filodemo (De Mus col 88 e 96) A definiccedilatildeo das melodias pelo termo ldquoethosrdquo se daacute a partir daideia de que as melodias teriam por natureza a capacidade de influenciar na formaccedilatildeo do caraacuteter humanoincitando a alma a accedilotildees boas ou maacutes
98
τὸ αὐτὸ γοῦν μέλος τῶν μὲν ἵππων διεγερτικόν ἐστι τῶν δὲ ἀνθρώπων ἐν θεάτροις
ἀκουόντων οὐδαμῶς καὶ τῶν ἵππων δὲ τάχα οὐ διεγερτικόν ἐστιν ἀλλὰ ταρακτικόν [621]
Eἶτα κἂν τοιαῦτα ᾖ τὰ τῆς μουσικῆς μέλη οὐ διὰ τοῦτο καὶ ἡ μουσικὴ βιωφελὴς καθέστηκεν
οὐ γὰρ ὅτι δύναμιν ἔχει σωφρονιστικήν καταστέλλει τὴν διάνοιαν ἀλλὰ ᾗ περισπαστικήν
παρὸ καὶ ἡσυχασθέντων πως τῶν τοιούτων μελῶν πάλιν ὁ νοῦς ὡς ἂν μὴ θεραπευθεὶς ὑπ
αὐτῶν ἐπὶ τὴν ἀρχῆθεν ἀνακάμπτει διάνοιαν [622] ὅνπερ οὖν τρόπον ὁ ὕπνος ἢ ὁ οἶνος οὐ
λύει τὴν λύπην ἀλλ ὑπερτίθεται κάρον ἐμποιῶν καὶ ἔκλυσιν καὶ λήθην οὕτω τὸ ποιὸν μέλος
οὐ καταστέλλει λυπουμένην ψυχὴν ἢ περὶ ὀργὴν σεσοβημένην τὴν διάνοιαν ἀλλ εἴπερ
περισπᾷ
99
Portanto a mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute de modo algum para os
homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitante mas
perturbadora245 [621] Em segundo lugar ainda que a melodia da muacutesica seja desse modo
tambeacutem natildeo foi devido a isso que a muacutesica se estabeleceu como uacutetil para a vida246 Com
efeito natildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica refreia o pensamento mas porque
tem o poder de distrair Por conseguinte tais melodias tendo sido silenciadas novamente a
mente como se natildeo tivesse sido tratada pela melodia volta imediatamente ao estado de
pensamento inicial [622] Entatildeo do mesmo modo que o sono ou o vinho natildeo dissolve a
tristeza mas a sobrepassa o torpor produzindo enfraquecimento e esquecimento a melodia
desse tipo natildeo tranquiliza a alma entristecida ou o pensamento agitado pela raiva mas se faz
algo os distrai247
245 Esse argumento eacute baseado no primeiro Modo de Enesidemo sobre a variedade dos animais Nele mostra-seque a partir das mesmas coisas natildeo recebemos as mesmas representaccedilotildees por causa das diferenccedilas entre osanimais Segundo Sexto Empiacuterico isso se daacute devido agraves (1) diferenccedilas no modo como os animais satildeoproduzidos (HP I 41-43) agraves (2) diferenccedilas nas estruturas corporais (44-54) e agraves (3) diferenccedilas naspreferecircncias e aversotildees dos animais (55-58) Ao abordar essas diferenccedilas Sexto nunca daacute um exemploconcreto de como as coisas aparecem para os animais pois segundo Annas amp Barnes (1985 p 41) ldquoseuapelo agraves experiecircncias dos animais natildeo supotildee que noacutes humanos podemos saber como eacute ser natildeo-humanordquo Noque diz respeito agrave diferenccedila nas estruturas corporais Sexto argumenta por exemplo que as diferenccedilas nocanal auditivo e na constituiccedilatildeo das orelhas podem afetar o modo como o mesmo som eacute percebido (HP I50) Aleacutem disso no que diz respeito agraves diferentes preferecircncias aquilo que eacute agradaacutevel ao homem pode serdesagradaacutevel ou ateacute mortiacutefero para outro animal Apoacutes apresentar vaacuterios exemplos especiacuteficos acerca dessasdiferenccedilas Sexto conclui que ldquose as mesmas coisas satildeo desagradaacuteveis para alguns mas agradaacuteveis paraoutros e se prazer e desagradabilidade repousam nas representaccedilotildees entatildeo animais diferentes recebemdiferentes representaccedilotildees dos objetos externosrdquo (HP I 58) No caso de uma melodia o mesmo conjunto desons pode ser percebido de maneira diferente pelos homens e pelos animais Mas se os mesmos objetosaparecem de maneiras diferentes em funccedilatildeo das diferenccedilas entre os animais ldquoentatildeo noacutes devemos sercapazes de dizer como um objeto existente parece quando observado por noacutes mas sobre como ele eacute em suanatureza noacutes devemos suspender o juiacutezo Pois noacutes natildeo podemos decidir entre nossas percepccedilotildees e as dosoutros animais sendo noacutes mesmos uma parte da disputardquo (HP I 59) Assim no que diz respeito agrave melodiapara o ceacutetico podemos dizer como ela aparece para noacutes e como ela parece (para noacutes) afetar o cavalo masnatildeo podemos dizer se ela eacute excitante ou natildeo por natureza Ver seccedilotildees 41 e 431 (p 62)
246 A argumentaccedilatildeo a favor da muacutesica pauta-se em sua utilidade para a vida visto que eacute a partir de sua utilidadeque os filoacutesofos abordam a necessidade do ensino da muacutesica A criacutetica de Sexto Empiacuterico tal como a deFilodemo (De Mus col 137-144 e 149) contesta essa utilidade
247 Ver Filodemo De Mus (col 129 1-7)
100
[623] Ὃ τε Πυθαγόρας τὸ μὲν πρῶτον μάταιος ἦν τοὺς μεθύοντας ἀκαίρως σωφρονίζειν
βουλόμενος ἀλλὰ μὴ ἐκκλίνων εἶτα καὶ τούτῳ τῷ τρόπῳ ἐπανορθούμενος αὐτοὺς ὁμολογεῖ
πλεῖόν τι δύνασθαι τῶν φιλοσόφων πρὸς ἐπανόρθωσιν ἠθῶν τοὺς αὐλητάς [624] Tό τε τοὺς
Σπαρτιάτας πρὸς αὐλὸν καὶ λύραν πολεμεῖν τοῦ μικρῷ πρότερον εἰρημένου τεκμήριόν ἐστιν
ἀλλ οὐχὶ τοῦ βιωφελῆ τυγχάνειν τὴν μουσικήν καθάπερ δ οἱ ἀχθοφοροῦντες ἢ ἐρέσσοντες ἢ
ἄλλο τι τῶν ἐπιπόνων δρῶντες ἔργων κελεύουσιν εἰς τὸ ἀνθέλκειν τὸν νοῦν ἀπὸ τῆς κατὰ τὸ
ἔργον βασάνου οὕτω καὶ αὐλοῖς ἢ σάλπιγξιν ἐν πολέμοις χρώμενοι οὐ διὰ τὸ ἔχειν τι τῆς
διανοίας ἐπεγερτικὸν τὸ μέλος καὶ ἀνδρικοῦ λήματος αἴτιον ὑπάρχειν τοῦτο ἐμηχανήσαντο
ἀλλἀπὸ τῆς ἀγωνίας καὶ ταραχῆς ἀνθέλκειν ἑαυτοὺς σπουδάσαντες εἴγε καὶ στρόμβοις τινὲς
τῶν βαρβάρων βουκινίζουσι καὶ τυμπάνοις κτυποῦντες πολεμοῦσιν ἀλλ οὐδὲν τούτων ἐπ
ἀνδρείαν προτρέπεται
101
[623] E Pitaacutegoras primeiramente era um tolo desejando regular aqueles inapropriadamente
embriagados em vez de evitaacute-los aleacutem disso recorrendo a esse modo de correccedilatildeo ele aceita
que os auletas tecircm mais poder do que os filoacutesofos248 no que concerne agrave correccedilatildeo dos
caraacuteteres249 [624] E que os Espartanos fazem guerra ao som do aulo e da lira 250 eacute prova do
que foi dito um pouco antes mas natildeo de que a muacutesica eacute uacutetil251 para a vida Do mesmo modo
que os que carregam fardos ou remam ou cumprem tarefas ldquocantam lamentosrdquo252 para afastar
a mente da agonia do trabalho253 tambeacutem aqueles que usam aulos e saacutelpinges254 em batalhas
inventaram isso natildeo por terem alguma melodia estimulante do pensamento como causa de
coragem viril mas porque ansiavam afastar a si mesmos da agonia e da perturbaccedilatildeo255 ainda
que alguns baacuterbaros256 guerreiem assoprando257 conchas e ressoando tambores258 Entretanto
nada disso incita algueacutem agrave coragem
248 Os auletas sendo muacutesicos praacuteticos seriam inferiores em relaccedilatildeo aos filoacutesofos Na Poliacutetica (1339 B 1341B) Aristoacuteteles afirma que o muacutesico profissional pode ser considerado vulgar e que a praacutetica musical natildeo eacuteproacutepria para o homem livre visto que esta natildeo tem um fim em si mesma Filodemo utiliza o mesmo tipo deargumento contra Dioacutegenes da Babilocircnia cf Filodemo De Mus (IV col 126 35-40 136 10-21)
249 Ethos (ἦθος) diz respeito ao caraacuteter da alma Na Eacutetica a Nicocircmaco (1103A) Aristoacuteteles apresenta duasespeacutecies de virtudes a intelectual e a moral A virtude moral surge do haacutebito ldquodonde forma-se seu nome(ethike) [ἠθική] por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ethos [ἔθος] (haacutebito)rdquo Todos os elementos damuacutesica conteacutem um caraacuteter proacuteprio que eacute transmitido para a alma atraveacutes de um processo de imitaccedilatildeo CfAristides Quintiliano De Mus (218) e Filodemo De Mus (col 99-100)
250 Ver Filodemo De Mus (col 72 43-732 ) 251 A utilidade para a vida eacute o criteacuterio de acordo com o qual o ceacutetico condena algumas artes e natildeo outras Ver
seccedilotildees 41 (p 51-2) e 54252 ldquoKeleuosirdquo comumente significa ldquoincitarrdquo ou ldquodar ordensrdquo De acordo com Delattre (2002 p 425 n 6) agraves
vezes com acompanhamento musical Na Repuacuteblica (390 B) de Platatildeo aparece com o sentido teacutecnico deldquodar a cadecircnciardquo Delattre opta por traduzir o termo pela expressatildeo ldquocadencent leurs mouvementsrdquo
253 Um argumento a favor da muacutesica nesse contexto aparece em Quintiliano Inst (I X 16)254 Em grego ldquosalpinxrdquo instrumento de origem Etrusca parecido com um trompete consistindo de um tubo
reto de bronze ou latatildeo Era utilizado em contextos militares255 Ver Filodemo De Mus (col 69 7-12)256 De acordo com Greaves (1986 p 145 n 65) ldquoisso reflete uma crenccedila da parte de muitos Gregos de que
muitos baacuterbaros ou natildeo-Helenos eram naturalmente inferiores agravequeles de nacionalidade Grega Oargumento aqui eacute de que os baacuterbaros natildeo teriam a capacidade para o espiacuterito viril uma das virtudesrdquo NaPoliacutetica por exemplo Aristoacuteteles afirma que os ldquoHelenos satildeo senhores naturais de baacuterbarosrdquo (AristoacutetelesPol 1252 B)
257 Segundo Beacutelis (apud Delattre 2002 p 427 n 2) ldquoo verbo boukinizein remete agrave bucina trompa de guerrados romanosrdquo
258 Aristides Quintiliano (De mus 26) tambeacutem aborda as questotildees dos baacuterbaros serem civilizados atraveacutes damuacutesica e do uso da saacutelpinge para dar os comandos nas batalhas
102
[625] Tὰ δὲ αὐτὰ λεκτέον καὶ ἐπὶ τοῦ μηνίοντος Ἀχιλλέως καίτοι ἐρωτικοῦ ὄντος καὶ
ἀκρατοῦς οὐ παράδοξον τὴν μουσικὴν σπουδάζεσθαι [626] Nὴ Δί ἀλλὰ καὶ οἱ ἥρωες τὰς
ἑαυτῶν γυναῖκας ᾠδοῖς τισὶν ὡς σώφροσι φύλαξι παρακατετίθεντο καθάπερ ὁ Ἀγαμέμνων
τὴν Κλυταιμνήστραν ταῦτα δὲ ἤδη μυθολογούντων ἐστὶν ἀνδρῶν εἶτα καὶ παρὰ πόδας
αὑτοὺς διελεγχόντων πῶς γάρ εἴπερ μουσικὴ περὶ τῆς τῶν παθῶν ἐπανορθώσεως
ἐπιστεύετο τὸν μὲν Ἀγαμέμνονα ἡ Κλυταιμνήστρα ἐπὶ τῆς ἰδίας ἑστίας κατέκτανεν ὥσπερ
ldquoβοῦν ἐπὶ φάτνῃrdquo εἰς δὲ τοὺς Ὀδυσσέως οἴκους ἡ Πηνελόπη ὄχλον ἄσωτον ἐπιδέχεται
μειρακίων ἀεὶ δὲ τὰς ἐπιθυμίας αὐτῶν ἐλπιδοκοποῦσα καὶ παραύξουσα μοχθηρότερον καὶ
χαλεπώτερον τῆς ἐπὶ Ἴλιον στρατείας τὸν ἐν Ἰθάκῃ πόλεμον ἤγειρε τῷ γήμαντι [627] Kαὶ
μὴν εἰ οὔτε οἱ περὶ τὸν Πλάτωνα μουσικὴν ἀπεδέξαντο ῥητέον οὐ πρὸς εὐδαιμονίαν αὐτὴν
συντείνειν ἐπεὶ καὶ ἄλλοι μὴ λειπόμενοι τῆς τούτων ἀξιοπιστίας καθάπερ οἱ περὶ τὸν
Ἐπίκουρον ἠρνήσαντο ταύτην τὴν ἀντιποίησιν λέγομεν τοὐναντίον αὐτὴν ἀσύμφορον εἶναι
καὶ ἀργήν φίλοινον χρημάτων ἀτημελῆ
103
[625] Isso tambeacutem deve ser dito sobre a ira de Aquiles259 embora seja passional e
incontinente260 natildeo eacute contraacuterio agrave expectativa ele ser ansioso a respeito da muacutesica [626] Mas
por Zeus tambeacutem os heroacuteis confiavam suas mulheres a alguns cantores como guardiotildees da
temperanccedila delas tal como Agamecircnon fez com Clitemnestra Mas essas coisas satildeo mitos
contados pelos homens que imediatamente em seguida contradizem a si mesmos Com
efeito se realmente se acreditava que a muacutesica teria influecircncia na correccedilatildeo dos afetos como
Clitemnestra mataria Agamecircnon em sua proacutepria lareira como se fosse um ldquoboi na
manjedourardquo261 E como Peneacutelope admitiria na casa de Odisseu uma multidatildeo desesperada de
jovens e conduzindo-os a falsas esperanccedilas e aumentando o desejo deles provocaria para seu
marido a guerra em Iacutetaca que foi mais horriacutevel e mais difiacutecil do que a campanha de Troia
[627] Aleacutem disso mesmo se os seguidores de Platatildeo admitiram a muacutesica natildeo se deve dizer
que ela leva agrave felicidade visto que tambeacutem outros que natildeo satildeo inferiores em credibilidade
nessas coisas tal como os seguidores de Epicuro se negaram a assumir essas afirmaccedilotildees262
dizendo pelo contraacuterio que a muacutesica eacute prejudicial e ociosa amante do vinho e
desnecessaacuteria263
259 Cf Homero Iliacuteada (IX 186-9) Segundo Aristides Quintiliano (De Mus 210) o papel da muacutesica naeducaccedilatildeo eacute suficientemente confirmado por Homero ldquoAssim quando Aquiles na Iliacuteada quer se livrar dapaixatildeo por Briseida ele natildeo aparece cantando algo amoroso mas convida sua alma a se tornar virilrelembrando com a ciacutetara as faccedilanhas guerreiras dos antigosrdquo
260 Em grego ldquoacrasiardquo traduz-se por ldquoincontinecircnciardquo ldquofalta de autocontrolerdquo Cf Aristoacuteteles EN (1095 A)261 Homero Odisseia (XI 411)262 Pode-se compreender esse argumento agrave luz de um dos conceitos baacutesicos do ceticismo apresentado no
primeiro Modo de Agripa o conflito das opiniotildees (diaphonia) ldquode acordo com o qual noacutes descobrimos quetanto na vida comum quanto entre os filoacutesofos no que diz respeito a uma determinada questatildeo foialcanccedilado um impasse natildeo resolvido acerca do qual noacutes somos incapazes de alcanccedilar um veredito ()rdquo (HPI 165) Aleacutem disso esse argumento pode ser reportado ao segundo Modo de Enesidemo que aborda asdiferenccedilas entre os seres humanos (em funccedilatildeo das diferenccedilas do corpo e da alma) A esse respeito lemos queldquoa grande indicaccedilatildeo da vasta e ilimitada diferenccedila no intelecto dos seres humanos eacute a inconsistecircncia dasvaacuterias afirmaccedilotildees dos Dogmaacuteticos no que diz respeito agravequilo que pode ser apropriadamente escolhido o quepode ser evitado etcrdquo (HP I 85-6) Sexto Empiacuterico aponta que aquilo que escolhemos e evitamos estaacuteconectado agravequilo que eacute agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos e ldquoquando as mesmas coisas satildeo escolhidaspor algumas pessoas e evitadas por outras eacute loacutegico para noacutes inferir que essas pessoas natildeo satildeo afetadas damesma maneira pelas mesmas coisas visto que se fossem elas iriam do mesmo modo ter escolhido eevitado as mesmas coisasrdquo (HP I 87) O ceacutetico ainda acrescenta que ldquoenquanto os Dogmaacuteticos de maneiraegoiacutesta pretendem que a decisatildeo acerca dos fato deve ser dada a eles acima de todos os outros sereshumanos noacutes sabemos que essa pretensatildeo eacute absurda visto que eles proacuteprios fazem parte da disputa ()rdquo (HPI 89) Assim para o ceacutetico se a mesma coisa neste caso a muacutesica produz um determinado efeito para umou um grupo de seres humanos e natildeo para outros eacute impossiacutevel decidir quem estaacute certo a respeito de comoela eacute por natureza Sobre os Modos ver p 62
263 Euriacutepides Antiacuteope (fr 184 Nauck) Delattre (2002 p 229 n 1) chama atenccedilatildeo para uma relaccedilatildeo comDioacutegenes da Babilocircnia
104
[628] Eὐήθεις δέ εἰσι καὶ οἱ τὴν ἀπὸ ποιητικῆς χρείαν συμπλέκοντες αὐτῇ πρὸς εὐχρηστίαν
ἐπείπερ δύναται μέν τις ὡς καὶ ἐν τῷ πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ἐλέγομεν ἀνωφελῆ διδάσκειν
τὴν ποιητικήν οὐδὲν δὲ ἔλαττον κἀκεῖνο δεικνύναι ὅτι ἡ μὲν μουσικὴ περὶ μέλος
καταγινομένη μόνον τέρπειν πέφυκεν ἡ δὲ ποιητικὴ καὶ περὶ διάνοιαν καταγινομένη δύναται
συνωφελεῖν τε καὶ σωφρονίζειν
[629] Ἀλλ ὁ μὲν πρὸς τὰ ἐγκεχειρημένα λόγος ἐστὶ τοιοῦτος προηγουμένως δὲ
λέγεται καὶ κατὰ μουσικῆς ὡς εἴπερ ἐστὶ χρειώδης καὶ κατὰ τοῦτο λέγεται χρειοῦν παρόσον
μουσικευσάμενος πλεῖον παρὰ τοὺς ἰδιώτας τέρπεται πρὸς μουσικῶν ἀκροαμάτων ἢ
παρόσον οὐκ ἔστιν ἀγαθοὺς γενέσθαι μὴ προπαιδευθέντας ὑπ αὐτῶν [630] ἢ τῷ τὰ αὐτὰ
στοιχεῖα τυγχάνειν τῆς μουσικῆς καὶ τῶν κατὰ φιλοσοφίαν πραγμάτων εἰδήσεως ὁποῖόν τι
καὶ περὶ γραμματικῆς ἀνώτερον ἐλέγομεν ἢ τῷ κατὰ ἁρμονίαν διοικεῖσθαι τὸν κόσμον
καθὼς φάσκουσι Πυθαγορικῶν παῖδες δέεσθαί τε ἡμᾶς τῶν μουσικῶν θεωρημάτων πρὸς
τὴν τῶν ὅλων εἴδησιν ἢ τῷ τὰ ποιὰ μέλη ἠθοποιεῖν τὴν ψυχήν [631] Oὔτε δὲ τῷ τοὺς
μουσικοὺς πλέον τέρπεσθαι παρὰ τοὺς ἰδιώτας ἀπὸ τῶν ἀκροαμάτων λέγοιτ ἂν χρειοῦν ἡ
μουσική πρῶτον μὲν γὰρ οὐκ ἀναγκαία ἰδιώταις ἡ τέρψις καθάπερ αἱ ἐπὶ λιμῷ ἢ δίψει ἢ
κρύει γινόμεναι ὑπὸ πόματος ἢ ἀλέας
105
[628] E tolos satildeo tambeacutem os que ligam a muacutesica aos benefiacutecios do uso da poeacutetica em funccedilatildeo
de sua utilidade visto que - tal como diziacuteamos no Contra os Gramaacuteticos - algueacutem pode
ensinar que a poeacutetica eacute inuacutetil264 e igualmente pode-se mostrar que a muacutesica dizendo
respeito somente agrave melodia produz por natureza somente prazer enquanto a poeacutetica dizendo
respeito ao pensamento pode tanto ser beneacutefica quanto levar agrave temperanccedila265
[629] Esses satildeo os argumentos contra as ideias que foram discutidas Mas a primeira
e principal discussatildeo sobre a muacutesica eacute se de fato ela eacute uacutetil e ela eacute dita uacutetil na medida em que
aqueles que cultivaram o gosto pela muacutesica em comparaccedilatildeo agraves pessoas comuns tecircm mais
prazer com concertos musicais266 ou na medida em que natildeo acontece de os homens virem a
ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicos [630] ou porque acontece dos
elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofia267 (tal
como aquilo que dissemos acima sobre a gramaacutetica268) ou porque o cosmos eacute governado de
acordo com a harmonia - segundo afirmam os aprendizes de Pitaacutegoras269 ndash e noacutes necessitamos
dos teoremas musicais para a conhecimento do todo ou porque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da alma270 [631] Nem a muacutesica deveria ser dita uacutetil porque os muacutesicos tecircm
mais prazer com os concertos do que as pessoas comuns271 Primeiro porque certamente esse
prazer natildeo eacute necessaacuterio272 para as pessoas comuns tal como o prazer que surge da bebida ou
do calor quando se tem fome sede ou frio
264 Cf M I 277-80 onde o mesmo tipo de argumento eacute apresentado contra a utilidade da Gramaacutetica Vertambeacutem M I 296-8
265 Uma das criacuteticas principais de Filodemo a Dioacutegenes da Babilocircnia eacute que ele atribui agraves melodias consideradasdesprovidas de razatildeo os efeitos das poesias que elas acompanham
266 Em nota agrave traduccedilatildeo de Delattre Beacutelis (apud Delattre 2002 p 429 n 4) chama atenccedilatildeo para a traduccedilatildeo dotermo akroama que significa literalmente ldquocoisa ouvidardquo como ldquoconcertordquo ou ldquorecitalrdquo
267 Filodemo tambeacutem aborda a relaccedilatildeo da muacutesica com outras artes e com a Filosofia Ver Filodemo De Mus(col 136-7)
268 No Contra os Gramaacuteticos (M I 72) Sexto aponta que para Ptolomeu a Gramaacutetica natildeo eacute uma arteconjectural (sujeita a acidentes como a navegaccedilatildeo e a medicina) mas eacute semelhante agrave muacutesica e agrave FilosofiaSobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54-5)
269 Filodemo menciona alguns neopitagoacutericos no que diz respeito a esta concepccedilatildeo Ver De Mus (col 145 17)270 Cf Filodemo De Mus (col 38 1-19 e 117 2-42)271 Filodemo De Mus (col 42-3)272 A ideia de que a muacutesica proporciona um prazer natildeo necessaacuterio eacute defendida pelos Epicuristas ver Filodemo
De Mus (col 151 29-31)
106
[632] εἶτα κἂν τῶν ἀναγκαίων ὑπάρχωσι δυνάμεθα χωρὶς μουσικῆς ἐμπειρίας αὐτῶν
ἀπολαύειν νήπια γοῦν ἐμμελοῦς μινυρίσματος κατακούοντα κοιμίζεται καὶ τὰ ἄλογα τῶν
ζῴων ὑπὸ αὐλοῦ καὶ σύριγγος κηλεῖται οἵ τε δελφῖνες ὡς λόγος αὐλῶν μελῳδίαις
τερπόμενοι προσνήχονται τοῖς ἐρεσσομένοις σκάφεσιν ὧν οὐδὲ ὁπότερον ἔοικε μουσικῆς
ἔχειν ἐμπειρίαν ἢ ἔννοιαν [633] Kαὶ διὰ τοῦτο μή ποτε ὃν τρόπον χωρὶς ὀψαρτυτικῆς καὶ
οἰνογευστικῆς ἡδόμεθα ὄψου ἢ οἴνου γευσάμενοι ὧδε καὶ χωρὶς μουσικῆς ἡσθείημεν ἂν
τερπνοῦ μέλους ἀκούσαντες τοῦ μὲν ὅτι τεχνικῶς γίνεται μᾶλλον παρὰ τὸν ἰδιώτην
ἀντιλαμβανoacuteμενοι τοῦ δὲ ἡστικοῦ πάθους μηδὲν πλείω κερδαίνοντες [634] Ὥστε οὐχ
αἱρετὸν μουσικὴ παρόσον τοὺς εἰδήμονας αὐτῆς ἐπὶ πλεῖον τέρπεσθαι συμβέβηκεν καὶ μὴν
οὐδὲ τῷ προοδοποιεῖν τὴν ψυχὴν εἰς σοφίαν ἀνάπαλιν γὰρ ἀντικόπτει καὶ ἀντιβαίνει πρὸς τὸ
τῆς ἀρετῆς ἐφίεσθαι εὐαγώγους εἰς ἀκολασίαν καὶ λαγνείαν παρασκευάζουσα τοὺς νέους
[635] ἐπείπερ ὁ μουσικευσάμενος
μολπαῖσιν ἡσθεὶς τοῦτ ἀεὶ θηρεύεται
ἀργὸς μὲν οἴκοις καὶ πόλει γενήσεται
φίλοισι τ οὐθείς ἀλλ ἄφαντος οἴχεται
ὅταν γλυκείας ἡδονῆς ἥσσων τις ᾖ
[636] Kατὰ ταὐτὰ δὲ οὐδὲ ἀπὸ τῶν αὐτῶν στοιχείων ὁρμᾶσθαι ταύτην τε καὶ φιλοσοφίαν
εἰσακτέον τὸ καταὐτὴν χρειῶδες ὡς αὐτόθεν ἐστὶ συμφανές λείπεται ἄρα τῷ καθ ἁρμονίαν
τὸν κόσμον διοικεῖσθαι ἢ τῷ ἠθοποιοῖς μέλεσι κεχρῆσθαι χρειώδη πρὸς εὐδαιμονίαν λέγειν
αὐτὴν τυγχάνειν
107
[632] E mesmo que estes venham a ser prazeres necessaacuterios noacutes podemos aproveitaacute-los sem
experiecircncia musical273 Crianccedilas satildeo colocadas para dormir ouvindo um gorjear meloacutedico274 e
os animais irracionais satildeo encantados pelo aulo e pela siacuteringe275 Assim os golfinhos segundo
o relato276 por terem prazer com as melodias dos aulos nadam ao redor dos cascos dos navios
que estatildeo sendo remados mas nenhum deles parece ter experiecircncia ou compreensatildeo musical
[633] E por causa de tais coisas do mesmo modo que sem a arte da culinaacuteria e a arte da
degustaccedilatildeo de vinhos noacutes temos prazer em saborear a comida e o vinho tambeacutem sem a arte
da muacutesica noacutes temos prazer ouvindo melodias prazerosas Embora por um lado os artistas
profissionais no que concerne agraves regras da arte apreendam mais do que as pessoas comuns
por outro eles natildeo recebem nada mais no que diz respeito agrave afecccedilatildeo prazerosa [634] Entatildeo
a muacutesica natildeo eacute escolhida porque os especialistas tecircm mais prazer nela Tambeacutem natildeo eacute
escolhida por preparar a alma de antematildeo para a sabedoria277 Inversamente ela resiste e vai
contra o desejo pela virtude tornando os jovens facilmente conduzidos agrave intemperanccedila e agrave
luxuacuteria278 [635] porque aquele que cultivou o gosto pela muacutesica
ter prazer nas danccedilas ele sempre busca
ele seraacute ocioso em casa e na cidade
natildeo sendo ningueacutem para os amigos invisiacutevel ele vai embora
a qualquer hora quando for vencido pelo doce prazer279
[636] A partir dessas mesmas ideias a utilidade da muacutesica natildeo deve ser introduzida pelo fato
de ambas a muacutesica e a Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos como eacute
imediatamente evidente Resta entatildeo dizer que acontece dela ser uacutetil para a felicidade
porque o cosmos eacute ordenado segundo a harmonia ou porque se usa melodias para a formaccedilatildeo
do caraacuteter
273 Ver seccedilatildeo 52 (p 75-6)274 Platatildeo nas Leis (790 D - E) fala de como as matildees potildeem os bebecircs para dormir cantando para eles Beacutelis
(apud Delattre 2002 p 431 n 4) aponta que essa pode ser uma criacutetica agrave afirmaccedilatildeo de Platatildeo visto que ascrianccedilas natildeo seriam colocadas para dormir soacute pela melodia mas pela sua combinaccedilatildeo com o balanccedilo
275 Em grego ldquosyrinxrdquo Instrumento da famiacutelia dos aerofones semelhante agrave ldquoflauta de Patilderdquo na sua forma maiscomum
276 Esse relato aparece em vaacuterias fontes Ver Euriacutepedes Electra (435) Plutarco Banquete dos Sete Saacutebios (160E-162 B) Heroacutedoto (1 24)
277 Ver seccedilatildeo 52 (p 76-7)278 Ver Filodemo De Mus (col 127 28-30)279 Euriacutepides Antiacuteope (fr 187 Nauck)
108
ὧν τὸ μὲν τελευταῖον ἤδη διαβέβληται ὡς οὐχ ὑπάρχον ἀληθές [637] τὸ δὲ κατὰ ἁρμονίαν
διοικεῖσθαι τὸν κόσμον ποικίλως δείκνυται ψεῦδος εἶτα καὶ ἂν ἀληθὲς ὑπάρχῃ οὐδὲν
τοιοῦτο δύναται πρὸς μακαριότητα καθάπερ οὐδὲ ἡ ἐν τοῖς ὀργάνοις ἁρμονία
Ἀλλὰ τὸ μὲν πρῶτον εἶδος τῆς πρὸς τοὺς μουσικοὺς ἀντιρρήσεως τοιουτότροπόν
ἐστιν [638] τὸ δὲ δεύτερον καὶ τῶν τῆς μουσικῆς ἀρχῶν καθαπτόμενον πραγματικωτέρας
μᾶλλον ἔχεται ζητήσεως οἷον ἐπεὶ ἡ μουσικὴ ἐπιστήμη τίς ἐστιν ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
ἐνρύθμων τε καὶ ἐκρύθμων πάντως ἐὰν δείξωμεν ὅτι οὔτε τὰ μέλη ὑποστατά ἐστιν οὔτε οἱ
ῥυθμοὶ τῶν ὑπαρκτῶν πραγμάτων τυγχάνουσιν ἐσόμεθα παρεστακότες καὶ τὴν μουσικὴν
ἀνυπόστατον λέγωμεν δὲ πρῶτον περὶ μελῶν καὶ τῆς τούτων ὑποστάσεως μικρὸν ἄνωθεν
καταρξάμενοι
[639] Φωνὴ τοίνυν ἐστίν ὡς ἄν τις ἀναμφισβητήτως ἀποδοίη τὸ ἴδιον αἰσθητὸν
ἀκοῆς καθάπερ γὰρ μόνης ὁράσεως ἔργον ἐστὶ τὸ χρωμάτων ἀντιλαμβάνεσθαι καὶ μόνης
ὀσφρήσεως τὸ εὐωδῶν καὶ δυσωδῶν ἀντιποιεῖσθαι καὶ ἤδη γεύσεως τὸ γλυκέων ἢ πικρῶν
αἰσθάνεσθαι οὕτω γένοιτ ἂν ἴδιον αἰσθητὸν ἀκοῆς ἡ φωνή [640] Tῆς δὲ φωνῆς ἡ μέν τίς
ἐστιν ὀξεῖα ἡ δὲ βαρεῖα μεταφορικώτερον ἀπὸ τῶν περὶ τὴν ἁφὴν αἰσθητῶν ἑκατέρου
τούτων λαμβάνοντος τὴν προσηγορίαν καθάπερ γὰρ τὸ κεντοῦν καὶ τέμνον τὴν ἁφὴν ὀξὺ
προσηγόρευσεν ὁ βίος καὶ τὸ θλάσιν ἐμποιοῦν καὶ πιέζον βαρύ τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῆς
φωνῆς τὴν μὲν οἱονεὶ τέμνουσαν τὴν ἀκοὴν ὀξεῖαν τὴν δὲ ὥσπερ θλῶσαν βαρεῖαν [641] καὶ
οὐ ξένον ὥσπερ φαιάν τινα καὶ μέλαιναν καὶ λευκὴν φωνὴν ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ὅρασιν
αἰσθητῶν κεκλήκαμεν ὧδε καὶ ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ἁφὴν ἐχρησάμεθά τισι μεταφοραῖς Ὅταν
μὲν οὖν ἐπἴσης ἐκφέρηται ἡ φωνὴ καὶ ὑπὸ μίαν τάσιν ὡς μηδένα περισπασμὸν γίνεσθαι τῆς
αἰσθήσεως ἤτοι ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἢ τὸ ὀξύτερον τότε ὁ τοιοῦτος ἦχος φθόγγος καλεῖται
παρὸ καὶ οἱ μουσικοὶ ὑπογράφοντές φασι ldquoφθόγγος ἐστὶν ἐμμελοῦς φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν
τάσινrdquo
109
Desses o uacuteltimo jaacute foi desconsiderado como natildeo verdadeiro [637] e que o cosmos eacute
ordenado segundo a harmonia mostra-se falso de varios modos E ainda que porventura isso
fosse verdadeiro tal coisa natildeo tem poder sobre a bem aventuranccedila tal como a harmonia natildeo
tem poder sobre os instrumentos musicais280
De tal tipo eacute o primeiro modo de refutaccedilatildeo contra os muacutesicos [638] jaacute o segundo
atacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais pragmaacutetica281 Por exemplo
visto que a muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e
do que natildeo eacute riacutetmico282 se mostrarmos plenamente que nem as melodias existem283 e nem os
ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existe Falemos
primeiro sobre a melodia e sua existecircncia comeccedilando com algumas questotildees preliminares
[639] Ora o som eacute como algueacutem poderia indisputavelmente definir o sensiacutevel
proacuteprio da audiccedilatildeo284 Pois tal como a tarefa somente da visatildeo eacute apreender as cores e a do
olfato opor as fragracircncias boas e ruins e igualmente a do paladar eacute perceber o doce e o
amargo do mesmo modo o som seria o sensiacutevel proacuteprio do ouvir [640] Dos sons um tipo
eacute grave e outro agudo ambos utilizando metaforicamente nomes com base nos sensiacuteveis
proacuteprios do tato pois assim como as pessoas chamaram o que pica e corta o tato ldquoagudordquo e o
que esmaga e pressiona ldquograverdquo do mesmo modo tambeacutem o som na medida em que o que
corta o ouvir eacute ldquoagudordquo e na medida em que o que esmaga - como se o fizesse - eacute ldquograverdquo
[641] Tambeacutem natildeo eacute estranho que tal como chamamos algum som de cinza preto ou branco
por causa dos objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel da visatildeo assim tambeacutem usamos os objetos do
tato para as metaacuteforas Entatildeo sempre que o som eacute emitido igualmente e na mesma tensatildeo
quando natildeo haacute distraccedilatildeo da percepccedilatildeo tanto em direccedilatildeo ao grave quanto ao agudo entatildeo tal
som eacute chamado ldquonotardquo Para o que tambeacutem os muacutesicos285 definem de maneira geral ldquonota eacute a
incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo286
280 Isso porque a harmonia do cosmos seria inaudiacutevel e o efeito produzido pelos instrumentos eacute audiacutevelAristoacuteteles no De Caelo (290 B - 291 A) apresenta uma refutaccedilatildeo agrave teoria pitagoacuterica da harmonia dasesferas rejeitando a ideia de que a harmonia do cosmos produziria algum tipo de som Sobre a harmoniados instrumentos ver Aristides Quintiliano De Mus (217-9)
281 O termo que deriva de ldquopragmatikosrdquo nesta passagem eacute comumente traduzido ou por ldquopraacuteticordquo ou porldquoteacutecnicordquo O mesmo termo aparece no uacuteltimo paraacutegrafo do texto
282 Definiccedilatildeo proacutexima agrave de Dioacutegenes da Babilocircnia apresentada por Filodemo De Mus (col 34 31-33 e 11234-36)
283 Aquilo que existe substancialmente de maneira independente das nossas representaccedilotildees284 Definiccedilatildeo do som dada por Dioacutegenes da Babilocircnia seguindo a de Aristoacuteteles285 Ou seja os teoacutericos da muacutesica286 Definiccedilatildeo dada por Aristoacutexeno El Harm (115 14-15)
110
[642] Tῶν δὲ φθόγγων οἱ μέν εἰσιν ὁμόφωνοι οἱ δὲ οὐχ ὁμόφωνοι καὶ ὁμόφωνοι μὲν οἱ μὴ
διαφέροντες ἀλλήλων κατὀξύτητα καὶ βαρύτητα οὐχ ὁμόφωνοι δὲ οἱ μὴ οὕτως ἔχοντες
[643] τῶν δὲ ὁμοφώνων ὡς καὶ τῶν οὐχ ὁμοφώνων τινὲς μὲν ὀξεῖς τινὲς δὲ βαρεῖς
καλοῦνται καὶ πάλιν τῶν οὐχ ὁμοφώνων οἱ μὲν διάφωνοι προσαγορεύονται οἱ δὲ σύμφωνοι
καὶ διάφωνοι μὲν οἱ ἀνωμάλως καὶ διεσπασμένως τὴν ἀκοὴν κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ
ὁμαλώτερον καὶ ἀμερίστως [644] Σαφέστερον δὲ μᾶλλον ἔσται τὸ ἑκατέρου γένους ἰδίωμα
τῇ ἀπὸ τῶν πρὸς γεῦσιν ποιοτήτων μεταβάσει χρησαμένων ἡμῶν ὥσπερ τοίνυν τῶν γευστῶν
τὰ μὲν τοιαύτην ἔχει κρᾶσιν ὥστε μονοειδῶς καὶ λείως κινεῖν τὴν αἴσθησιν ὁποῖον τὸ
οἰνόμελι καὶ ὑδρόμελι τὰ δὲ οὐχ ὡσαύτως οὐδὲ ὁμοίως καθάπερ τὸ ὀξύμελι (ἑκάτερον γὰρ
τούτων τῶν μιγμάτων τὴν ἴδιον ἐντυποῖ ποιότητα τῇ γεύσει) οὕτω τῶν φθόγγων διάφωνοι
μέν εἰσιν οἱ ἀνωμάλως τὴν ἀκοὴν καὶ διεσπασμένως κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ ὁμαλώτεροι
ἀλλὰ γὰρ ἡ μὲν διαφορὰ τῶν φθόγγων τοιαύτη τίς ἐστι παρὰ μουσικοῖς [645] περιγράφεται
δέ τινα πρὸς τούτων διαστήματα καθ ἃ καὶ ἡ φωνὴ κινεῖται ἤτοι ἐπὶ τὸ ὀξύτερον
ἀναβαίνουσα ἢ ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἀνιεμένη παρ ἣν αἰτίαν κατὰ τὸ ἀνάλογον τῶν
διαστημάτων τούτων τὰ μὲν σύμφωνα τὰ δὲ διάφωνα προσηγόρευται
111
[642] Mas das notas algumas satildeo homofocircnicas e outras natildeo homofocircnicas287 Homofocircnicas
satildeo as que natildeo diferem umas das outras segundo ldquoagudezardquo e ldquogravidaderdquo e natildeo homofocircnicas
satildeo aquelas que natildeo satildeo desse modo288 [643] Das homofocircnicas como tambeacutem das natildeo
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquoagudasrdquo outras ldquogravesrdquo e novamente das natildeo-
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquodissonantesrdquo e outras ldquoconsonantesrdquo As dissonantes
sendo aquelas que movem a audiccedilatildeo anocircmala e desordenadamente e as consonantes regulada
e continuamente [644] Mas as propriedades de cada gecircnero estaratildeo mais claras quando
tivermos feito a analogia289 com as qualidades do paladar Ora assim como das coisas que
podem ser saboreadas algumas tecircm uma mistura de tal modo que movem a sensaccedilatildeo
uniforme e suavemente tal como o vinho de mel e o hidromel e outras natildeo sendo assim natildeo
a movem similarmente tal como o oximel290 (pois cada uma dessas coisas misturadas
imprime sua proacutepria qualidade ao paladar) do mesmo modo das notas dissonantes satildeo as
que movem o ouvido anocircmala e desordenadamente consonantes as que o movem de maneira
regulada De acordo com os muacutesicos essa eacute entatildeo a diferenccedila entre as notas [645] Aleacutem
disso satildeo definidos por eles alguns intervalos de acordo com os quais o som se move
subindo em direccedilatildeo ao agudo ou descendo em direccedilatildeo ao grave Por isso de modo anaacutelogo
dos intervalos alguns satildeo chamados consonantes e outros dissonantes
287 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 437 n 3) Sexto Empiacuterico deveria ter utilizado o adjetivoldquohomotocircnicasrdquo e natildeo ldquohomofocircnicasrdquo Isso porque os muacutesicos antigos distinguiam entre as notashomofocircnicas (enquanto aquelas que se encontram em oitavas diferentes) e as notas homotocircnicas (as mesmasnotas na mesma oitava)
288 A muacutesica grega antiga tem como elemento primaacuterio de sua constituiccedilatildeo o tetracorde que eacute um conjunto dequatro notas separadas por trecircs graus As notas que formam a quarta justa do tetracorde satildeo ditas sons fixosHavia duas maneiras de se agrupar os tetracordes para se constituir uma escala (sistema) por conjunccedilatildeoformando um heptacorde ou por disjunccedilatildeo formando um octacorde Ambos abrangem um intervalo deoitava a consonacircncia (symphonia)
289 Metabasis eacute um termo relacionado agrave escola empiacuterica de medicina com a qual o ceticismo pirrocircnicoapresenta afinidades e da qual Sexto Empiacuterico foi um dos representantes A medicina empiacuterica funda-se naexperiecircncia e esta se daacute atraveacutes da observaccedilatildeo direta (autopsia ou teresis) pela atenccedilatildeo agrave histoacuteria mdash ou sejaagraves observaccedilotildees anteriormente feitas e registradas por outros mdash e finalmente pela passagem do semelhanteao semelhante (he tou homoiou metabasis) tambeacutem chamada ldquoinduccedilatildeordquo ldquoanalogiardquo ou ldquotransferecircnciardquo CfAllen (2010 p 232)
290 Mistura de mel e vinagre utilizada na medicina na qual cada um dos elementos manteacutem seu saborparticular natildeo gerando um sabor proacuteprio da mistura Cf Delattre (2002 p 439 n 1) A comparaccedilatildeoaparece tambeacutem em contexto musical nos Problemas de Aristoacuteteles ldquo() o composto eacute mais agradaacutevel queo natildeo composto se se adquirir a percepccedilatildeo de ambos os elementos simultaneamente Por conseguinte ovinho eacute mais agradaacutevel que o oximel pelo fato de se combinarem melhor entre si as cousas misturadas pelanatureza do que por noacutesrdquo (Aristoacuteteles Prob 922 A)
112
[646] καὶ σύμφωνα μὲν ὁπόσα ὑπὸ συμφώνων φθόγγων περιέχεται διάφωνα δὲ ὁπόσα ὑπὸ
διαφώνων τῶν δὲ συμφώνων διαστημάτων τὸ μὲν πρῶτον καὶ ἐλάχιστον διὰ τεσσάρων οἱ
μουσικοὶ προσαγορεύουσι τὸ δὲ μετὰ τοῦτο μεῖζον διὰ πέντε καὶ τοῦ διὰ πέντε μεῖζον τὸ διὰ
πασῶν [647] πάλιν τε τῶν διαφώνων διαστημάτων ἐλάχιστον μέν ἐστι καὶ πρῶτον παρ
αὐτοῖς ἡ καλουμένη δίεσις δεύτερον δὲ τὸ ἡμιτόνιον ὅ ἐστι διπλοῦν τῆς διέσεως τρίτον ὁ
τόνος ὅς ἐστι διπλασίων τοῦ ἡμιτονίου [648] Oὐ μὴν ἀλλ ὃν τρόπον ἅπαν διάστημα κατὰ
μουσικὴν ἐν φθόγγοις ἔχει τὴν ὑπόστασι οὕτω καὶ πᾶν ἦθος τὸ δἔστι τι γένος μελῳδίας
καθὰ γὰρ τῶν ἀνθρωπίνων ἠθῶν τινὰ μέν ἐστι σκυθρωπὰ καὶ στιβαρώτερα ὁποῖα τὰ τῶν
ἀρχαίων ἱστοροῦσιν τὰ δὲ εὐένδοτα πρὸς ἔρωτας καὶ οἰνοφλυγίας καὶ ὀδυρμοὺς καὶ
οἰμωγάς οὕτω τὶς μὲν μελῳδία σεμνά τινα καὶ ἀστεῖα ἐμποιεῖ τῇ ψυχῇ κινήματα τὶς δὲ
ταπεινότερα καὶ ἀγεννῆ [649] καλεῖται δὲ κατὰ κοινὸν ἡ τοιουτότροπος μελῳδία τοῖς
μουσικοῖς ἦθος ἀπὸ τοῦ ἤθους εἶναι ποιητική καθάπερ καὶ τὸ χλωρὸν δέος τὸ χλωροποιόν
καὶ τὸ ldquoνότοι βαρυήκοοι ἀχλυώδεις καρηβαρικοὶ νωθροὶ διαλυτικοίrdquo ἀντὶ τοῦ τούτων
δραστικοί [650] Tῆς δὲ κοινῆς μελῳδίας ταύτης τὸ μέν τι χρῶμα λέγεται τὸ δὲ ἁρμονία τὸ
δὲ διάτονον ὧν ἡ μὲν ἁρμονία αὐστηροῦ τινος ἤθους καὶ σεμνότητος κατασκευαστική πως
ὑπῆρχεν τὸ δὲ χρῶμα λιγυρόν τί ἐστι καὶ θρηνῶδες τὸ δὲ διάτονον ἔντραχυ καὶ ὑπάγροικον
113
[646] Os consonantes satildeo todos aqueles contidos pelas notas consonantes e os dissonantes os
contidos pelas notas dissonantes Dos intervalos consonantes os muacutesicos chamam o primeiro
e menor de quarta o maior depois desse de quinta e o maior que o de quinta eles chamam de
oitava [647] Novamente dos intervalos dissonantes o primeiro e menor eacute chamado entre os
muacutesicos de diacuteese291 o segundo eacute o semitom que eacute o dobro da diesis o terceiro eacute o tom o qual
eacute o dobro do semitom [648] Contudo natildeo apenas todo intervalo em muacutesica tem sua
existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de melodia Pois
tal como dos caracteres humanos alguns satildeo mais graves e mais fortes (como contam que
eram os caracteres dos antigos) outros satildeo facilmente suscetiacuteveis ao erotismo e agrave embriaguez
agraves lamentaccedilotildees e agraves reclamaccedilotildees Do mesmo modo uma melodia produz movimentos nobres
e refinados na alma outra produz movimentos mais baixos e soacuterdidos292 [649] Uma melodia
de tal tipo eacute comumente chamada caraacuteter pelos muacutesicos por ser capaz de produzir caraacuteter
como tambeacutem o medo eacute chamado de paacutelido293 por sua capacidade de empalidecer e tambeacutem
considera-se ldquoos ventos do sul difiacuteceis de se ouvir enevoados causadores de dor de cabeccedila
indolentes e relaxantesrdquo294 em vez de consideraacute-los causas desses efeitos [650] Dessa
melodia comum295 uma eacute dita ldquocromaacuteticardquo296 outra ldquoharmoniardquo297 e outra ldquodiatocircnicardquo298
Destas a harmonia eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um
caraacuteter claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseiro299
291 O menor intervalo da escala de acordo com o gecircnero Assim na escala diatocircnica a diesis corresponde a umsemitom e na enarmocircnica a um quarto de tom Cf Aristoacutexeno El Harm (21)
292 Filodemo De Mus (col 116 21-36)293 Cf Homero Iliacuteada (VII 479)294 Hipoacutecrates Aforismos (III 5) A citaccedilatildeo de Hipoacutecrates eacute literal Entretanto no contexto do aforismo na obra
de Hipoacutecrates natildeo haacute espaccedilo para a confusatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito apontada por Sexto EmpiacutericoClaramente os ventos do sul satildeo apresentados como causa dos efeitos citados
295 Nos dois sons intermediaacuterios (sons moacuteveis) do tetracorde as entonaccedilotildees diferem segundo o ldquogecircnerordquo doacorde A variaccedilatildeo das entonaccedilotildees dos sons moacuteveis caracteriza os trecircs gecircneros de progressatildeo meloacutedica damuacutesica grega o diatocircnico (tom ndash tom - semitom) o cromaacutetico (terccedila menor ndash semitom - semitom) e oenarmocircnico (terccedila maior ndash frac14 de tom ndash frac14 de tom)
296 Sexto Empiacuterico utiliza o termo ldquokhromardquo (que significa primeiramente ldquocorrdquo) para se referir agravequilo quedesde o seacuteculo IV aC era comumente chamado ldquoto khromatikonrdquo referindo-se ao gecircnero cromaacutetico
297 O termo ldquoharmoniardquo designa tambeacutem um dos gecircneros meloacutedicos mais conhecido como enarmocircnico298 Beacutelis (apud Delattre 2002 p 441 n 6) chama atenccedilatildeo para o fato de que desde a eacutepoca de Aristoacutexeno as
escalas eram listadas da menor para a maior (enarmocircnica cromaacutetica e diatocircnica) no entanto essa ordemaparece curiosamente deturpada por Sexto Empiacuterico tanto que a explicaccedilatildeo que se segue eacute apresentada naordem tradicional e natildeo na ordem que foi anunciada Sobre os gecircneros ver Aristoacutexeno El Harm (246-52)
299 Cf Euclides Introduccedilatildeo harmocircnica (3 7)
114
[651] ἀλλὰ δὴ πάλιν τὸ μὲν ἁρμονικὸν μέλος τῶν μελῳδουμένων ἀδιαίρετόν ἐστι τὸ δὲ
διάτονον καὶ τὸ χρῶμα ἰδικωτέρας τινὰς εἶχε διαφοράς δύο μὲν τὸ διάτονον τήν τε τοῦ
μαλακοῦ διατόνου καλουμένην καὶ τὴν τοῦ συντόνου τρεῖς δὲ τὸ χρῶμα τὸ μὲν γάρ τι αὐτοῦ
τονικὸν καλεῖται τὸ δὲ ἡμιτόνιον τὸ δὲ μαλακόν
[652] Πλὴν ἐκ τούτων συμφανὲς ὅτι πᾶσα ἡ κατὰ μελῳδίας θεωρία παρὰ τοῖς
μουσικοῖς οὐκ ἐν ἄλλῳ τινὶ τὴν ὑπόστασιν εἶχεν εἰ μὴ τοῖς φθόγγοις καὶ διὰ τοῦτο
ἀναιρουμένων αὐτῶν τὸ μηδὲν ἔσται ἡ μουσική πῶς οὖν καὶ ἐρεῖ τις ὅτι οὐκ εἰσὶ φθόγγοι ἐκ
τοῦ φωνὴν αὐτοὺς κατὰ γένος ὑπάρχειν φήσομεν καὶ τὴν φωνὴν ἀνύπαρκτον ἡμῖν ἐν τοῖς
σκεπτικοῖς ὑπομνήμασι δεδεῖχθαι ἀπὸ τῆς τῶν δογματικῶν μαρτυρίας [653] Oἵ τε γὰρ ἀπὸ
τῆς Κυρήνης φιλόσοφοι μόνα φασὶν ὑπάρχειν τὰ πάθη ἄλλο δὲ οὐδέν ὅθεν καὶ τὴν φωνὴν
μὴ οὖσαν πάθος ἀλλὰ πάθους ποιητικήν μὴ γίγνεσθαι τῶν ὑπαρκτῶν οἵ γέ τοι περὶ τὸν
Δημόκριτον καὶ Πλάτωνα πᾶν αἰσθητὸν ἀναιροῦντες συναναιροῦσι καὶ τὴν φωνήν αἰσθητόν
τι δοκοῦσαν πρᾶγμα ὑπάρχειν [654] καὶ γὰρ ἄλλως εἰ ἔστι φωνή ἤτοι σῶμά ἐστιν ἢ
ἀσώματον οὔτε δὲ σῶμά ἐστιν ὡς οἱ Περιπατητικοὶ διὰ πολλῶν διδάσκουσιν οὔτε
ἀσώματος ὡς οἱ ἀπὸ τῆς Στοᾶς οὐκ ἄρα ἔστι φωνή
115
[651] Novamente das melodias que satildeo cantadas a enarmocircnica eacute invariaacutevel jaacute a diatocircnica e
a cromaacutetica comportam algumas variaccedilotildees especiacuteficas A diatocircnica tem duas a chamada
diatocircnica suave e a intensa A cromaacutetica tem trecircs delas uma eacute chamada tocircnica outra
semitocircnica e outra suave300
[652] Aleacutem disso a partir dessas coisas eacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos
sobre a melodia natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notas Por isso destruindo
as notas a muacutesica seraacute nada Como entatildeo algueacutem declararaacute que as notas natildeo existem Noacutes
diremos a partir do fato das notas existirem conforme o gecircnero do som e noacutes mostramos em
nossas observaccedilotildees ceacuteticas301 a partir dos testemunhos dos dogmaacuteticos que o som natildeo existe
[653] Com efeito os filoacutesofos Cirenaicos302 dizem que apenas existem as afecccedilotildees mais
nada por essa razatildeo o som natildeo sendo uma afecccedilatildeo mas produtor de afecccedilatildeo natildeo vem a ser
algo existente Os disciacutepulos de Demoacutecrito e Platatildeo destruindo todos os objetos sensiacuteveis
destruiacuteram ao mesmo tempo o som303 que se supotildee ser um objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel304
[654] Aleacutem disso se o som existe ou ele eacute corpoacutereo ou incorpoacutereo nem eacute corpoacutereo tal
como os Peripateacuteticos tanto ensinam nem incorpoacutereo tal como ensinam os Estoicos305 Logo
natildeo existe som
300 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 443 n 1) trata-se aqui de uma maacute compreensatildeo de SextoEmpiacuterico em relaccedilatildeo a uma passagem de Aristoacutexeno A afirmaccedilatildeo diz respeito agrave distribuiccedilatildeo e ao tamanhodos intervalos em cada escala Enquanto na enarmocircnica haacute apenas uma possibilidade de construccedilatildeo deintervalos na cromaacutetica e na diatocircnica haacute vaacuterias
301 Para Richard Bett (2013 p 177) esse parece ser o modo que Sexto faz referecircncia agraves obras hoje conhecidascomo Contra os Loacutegicos Contra os Fiacutesicos e Contra os Eacuteticos isso pode ser observado a partir de outrasreferecircncias (ver M I 26 29) Essa passagem especificamente parece fazer referecircncia ao Contra os Loacutegicosonde Sexto tambeacutem argumenta contra a existecircncia do som Cf M VIII 131
302 Muito embora os Cirenaicos assim como os ceacuteticos considerem que apenas as afecccedilotildees satildeo apreensiacuteveisenquanto os ceacuteticos consideram a tranquilidade da alma como objetivo de sua escola os Cirenaicosconsideram o prazer da percepccedilatildeo sensiacutevel Aleacutem disso eles satildeo dogmaacuteticos por sustentarem firmemente acrenccedila de que os objetos externos agrave percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo inapreensiacuteveis Cf HP I 215 Ver seccedilatildeo 41
303 A mesma questatildeo aparece no Contra os Loacutegicos (M VIII 56) onde Sexto acusa Demoacutecrito e Platatildeo derejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel e com isso confundirem natildeo soacute a verdade sobre as coisas que satildeo mastambeacutem os conceitos sobre elas Isso porque de acordo com Sexto (M VIII 6) Platatildeo e Demoacutecritosupunham que ldquoapenas as coisas inteligiacuteveis satildeo verdadeirasrdquo Demoacutecrito por considerar que nadaperceptiacutevel existe por natureza e Platatildeo por considerar que as coisas perceptiacuteveis estatildeo sempre vindo a sermas nunca satildeo efetivamente
304 Sobre os Cirenaicos no Contra os Loacutegicos (Cf M VII 191) o mesmo tipo de argumento aparecerelacionado ao paladar
305 No Contra os Gramaacuteticos (M I 155) Sexto Empiacuterico aponta uma distinccedilatildeo feita por alguns gramaacuteticos arespeito das partes corpoacuterea e incorpoacuterea do discurso O som de uma palavra seria a parte corpoacutereaenquanto o significado seria incorpoacutereo
116
[655] Ἀλλὧδέ τις κὰκείνως ἐπιχειρήσειε λέγειν ὡς εἰ μὴ ἔστι ψυχή οὐδὲ αἰσθήσεις μέρη
γὰρ ταύτης ὑπῆρχον εἰ δὲ μή εἰσιν αἱ αἰσθήσεις οὐδὲ τὰ αἰσθητά πρὸς αἰσθήσεις γὰρ ἡ
τούτων ὑπόστασις νοεῖται εἰ δὲ μὴ αἰσθητά οὐδὲ φωνή εἶδος γάρ τι τῶν αἰσθητῶν ὑπῆρχεν
ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ψυχή καθὼς ἐν τοῖς περὶ αὐτῆς ὑπομνήμασιν ἐδείκνυμεν οὐκ ἄρα ἔστι
φωνή [656] Kαὶ μὴν εἰ μήτε βραχεῖά ἐστι φωνὴ μήτε μακρά οὐκ ἔστι φωνή οὔτε δὲ
βραχεῖά ἐστιν οὔτε μακρὰ φωνή ὡς ἐν τοῖς πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ὑπεμνήσαμεν περὶ
συλλαβῆς καὶ λέξεως ζητοῦντες πρὸς τούτους οὐκ ἄρα ἔστι φωνή [657] Πρὸς τούτοις ἡ
φωνὴ οὔτε ἐν ἀποτελέσματι οὔτε ἐν ὑποστάσει νοεῖται ἀλλ ἐν γενέσει καὶ χρονικῇ
παρεκτάσει τὸ δὲ ἐν γενέσει νοούμενον γίνεται οὐδέπω δ ἔστιν ὥσπερ οὐδὲ οἰκία γινομένη
ἢ ναῦς καὶ ἄλλα παμπληθῆ εἶναι λέγεται τοίνυν οὐθέν ἐστι φωνή [658] καὶ ἄλλοις δὲ
συχνοῖς εἰς τοῦτο ἔνεστι λόγοις χρῆσθαι περὶ ὧν ὡς ἔφην ἐν τοῖς Πυρρωνείοις
ὑπομνηματιζόμενοι διεξῄειμεν νυνὶ δὲ φωνῆς μὴ οὔσης οὐδὲ φθόγγος ἔστιν ὃς ἐλέγετο
φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν τάσιν φθόγγου δὲ μὴ ὄντος οὐδὲ διάστημα μουσικὸν καθέστηκεν οὐ
συμφωνία οὐ μελῳδία οὐ τὰ ἐκ τούτων γένη διὰ τοῦτο οὐδὲ μουσική ἐπιστήμη γὰρ ἐλέγετο
ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
[659] Ὅθεν ἀπ ἄλλης ἀρχῆς ὑποδεικτέον ὅτι κἂν τούτων ἀποστῶμεν διὰ τὴν
ἐγχειρηθησομένην ἐπὶ τῆς ῥυθμοποιίας ἀπορίαν ἀνυπόστατος καθέστηκεν ἡ μουσική εἰ γὰρ
μηδέν ἐστι ῥυθμός οὐδὲ ἐπιστήμη τις ἔσται περὶ ῥυθμοῦ ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ῥυθμός ὡς
παραστήσομεν οὐκ ἄρα ἔστι τις ἐπιστήμη περὶ ῥυθμοῦ [660] Ὡς γὰρ πολλάκις εἰρήκαμεν
ῥυθμὸς σύστημά ἐστιν ἐκ ποδῶν ὁ δὲ ποῦς τὸ συνεστὼς ἐξ ἄρσεως καὶ θέσεως ἡ δὲ ἆρσις
καὶ ἡ θέσις ἐν ποσότητι χρόνου θεωρεῖται ὧν τινὰς μὲν ἐπεῖχεν ἡ θέσις τινὰς δὲ ἡ ἆρσις
χρόνους καθάπερ ἐκ μὲν στοιχείων συλλαβαὶ ἐκ δὲ συλλαβῶν λέξεις συντίθενται οὕτως ἐκ
μὲν τῶν χρόνων οἱ πόδες ἐκ δὲ τῶν ποδῶν οἱ ῥυθμοὶ γίνονται
117
[655] Alguma outra pessoa pode tentar dizer que tal como natildeo existe alma natildeo existem
sentidos pois estes existem enquanto parte daquela E se natildeo existem sentidos natildeo existem
os sensiacuteveis pois a existecircncia destes eacute concebida em relaccedilatildeo aos sentidos E se natildeo haacute
objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo haacute som pois ele existe enquanto um tipo de objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Mas a alma eacute nada tal como mostramos nas observaccedilotildees306 a respeito
dela logo natildeo existe som [656] Tambeacutem se o som natildeo eacute curto nem longo natildeo existe som
o som natildeo eacute curto nem longo tal como observamos no Contra os Gramaacuteticos307 em nossa
investigaccedilatildeo sobre siacutelaba e palavra Logo natildeo existe som [657] Aleacutem disso o som nem eacute
concebido como um efeito nem como substacircncia mas como algo que vem a ser e que se
estende no tempo aquilo que eacute concebido como algo que vem a ser estaacute vindo a ser e ainda
natildeo existe assim como natildeo soacute uma casa ou uma nau que estatildeo vindo a ser mas uma
multitude de coisas natildeo satildeo ditas existentes Portanto o som eacute nada308 [658] Mas existem
muitos argumentos que podem ser usados para isso os quais como eu disse foram
completamente relatados em nossas observaccedilotildees pirrocircnicas309 Agora natildeo existindo som
tambeacutem natildeo existe nota a qual era dita ldquoa incidecircncia do som em uma tensatildeordquo natildeo existindo
nota natildeo se estabelece nenhum intervalo musical nem consonacircncia nem melodia nem os
gecircneros delas Por isso natildeo existe muacutesica visto que ela foi dita ciecircncia do meloacutedico e do natildeo
meloacutedico
[659] Dado isso deve-se indicar a partir de outro princiacutepio que mesmo que nos
afastemos dessas questotildees a muacutesica se estabelece como natildeo-existente atraveacutes da aporia que
seraacute discutida em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo riacutetmica Pois se o ritmo eacute nada natildeo existiraacute a ciecircncia
do que eacute o ritmo mas de fato o ritmo eacute nada tal como seraacute mostrado logo natildeo existe essa
ciecircncia do ritmo [660] De fato tal como dissemos muitas vezes ritmo eacute um sistema
composto de peacutes e o peacute eacute composto de aacutersis (levantamento) e theacutesis (abaixamento) Aacutersis e
theacutesis satildeo considerados uma quantidade de tempo dos quais aacutersis ocupa alguns tempos e
theacutesis outros Assim como as siacutelabas satildeo compostas de elementos e as palavras de siacutelabas
tambeacutem os peacutes satildeo compostos de tempos e os ritmos vecircm a ser a partir dos peacutes310
306 Ou eacute uma obra perdida ou Sexto faz referecircncia a algumas passagens de suas obras que abordam a mesmaquestatildeo Ver M X 284 HP II 31 e III 186
307 Cf M I 124-130308 O mesmo argumento aparece em M VIII 131 Ver M VI 53309 Ver nota 306310 Na liacutengua e na muacutesica grega a submissatildeo agrave riacutetmica do texto ldquose deve ao fato de a pronuacutencia e a prosoacutedia
estarem fundamentadas nas duraccedilotildees das siacutelabasrdquo (Reinach 2011 [1890] p 77) Na muacutesica o ritmo eramarcado pelo movimento corporal de levantar e abaixar o peacute (ndash ᴗ ᴗ ndash ndash e ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ por exemplo equivalem auma batida de dois tempos e um levantamento de dois tempos) Visto que a divisatildeo riacutetmica se daacute a partir dadivisatildeo silaacutebica natildeo podemos comparar a pulsaccedilatildeo da muacutesica moderna (com maior intensidade no primeiro
118
[661] Ἐὰν οὖν δείξωμεν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος ἕξομεν συναποδεδειγμένον ὅτι οὐδὲ πόδες
ὑπάρξουσιν διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ οἱ ῥυθμοί ἐξ ἐκείνων τὴν σύστασιν λαμβάνοντες ᾧ
ἀκολουθήσει τὸ μηδὲ ἐπιστήμην εἶναί τινα περὶ ῥυθμούς πῶς οὖν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος
ἤδη μὲν παρεστήσαμεν ἐν τοῖς Πυρρωνείοις οὐδὲν δὲ ἧττον καὶ τὰ νῦν παραστήσομεν ἐπὶ
ποσόν [662] Eἰ γὰρ ἔστι τι χρόνος ἤτοι πεπέρασται ἢ ἄπειρός ἐστιν οὔτε δὲ πεπέρασται
ἐπεὶ ἐροῦμέν ποτε γεγονέναι χρόνον ὅτε χρόνος οὐκ ἦν καὶ ἔσεσθαί ποτε χρόνον ὅτε χρόνος
οὐκ ἔσται οὔτε ἄπειρος καθέστηκεν ἔστι γάρ τι αὐτοῦ παρῳχηκὸς καὶ ἐνεστὼς καὶ μέλλον
ὧν ἑκάτερον εἰ μὲν οὐκ ἔστιν πεπέρασται ὁ χρόνος εἰ δ ἔστιν ἔσται ἐν τῷ παρόντι καὶ ὁ
παρῳχηκὼς καὶ ὁ μέλλων ὅπερ ἄτοπον οὐκ ἄρα ἔστι χρόνος [663] Tό γε μὴν ἐξ
ἀνυπάρκτων συνεστὼς ἀνύπαρκτόν ἐστιν ὁ δὲ χρόνος ἔκ τε τοῦ παρῳχημένου καὶ μηκέτ
ὄντος καὶ ἐκ τοῦ μέλλοντος μηδέπω δὲ ὄντος συνεστὼς ἀνύπαρκτος ἔσται [664] Ἄλλως τε
εἰ μὲν ἀμερής ἐστιν ὁ χρόνος πῶς τὸ μέν τι αὐτοῦ παρῳχημένον τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον
λέγομεν εἰ δὲ μεριστός ἐστιν ἐπεὶ πᾶν τὸ μεριστὸν ὑπό τινος αὐτοῦ μέρους καταμετρεῖται
ὡς πῆχυς μὲν ὑπὸ παλαιστοῦ ὁ παλαιστὴς δὲ ὑπὸ δακτύλου δεήσει καὶ αὐτὸν ὑπό τινος τῶν
αὐτοῦ μερῶν καταμετρεῖσθαι [665] οὔτε δὲ τῷ ἐνεστῶτι δυνατὸν καταμετρεῖν τοὺς ἄλλους
χρόνους ἐπείπερ ὁ γινόμενος καὶ ὁ ἐνεστὼς χρόνος ὁ αὐτὸς ἔσται κατ αὐτοὺς παρῳχημένος
καὶ μέλλων παρῳχημένος μὲν ὅτι τὸν παρῳχημένον καταμετρεῖ χρόνον μέλλων δὲ ὅτι τὸν
μέλλοντα ὅπερ ἄτοπον οὐ τοίνυν τινὶ τῶν λειπομένων δυοῖν τὸν ἐνεστῶτα καταμετρητέον
δι ἣν αἰτίαν οὐδὲ ταύτῃ λεκτέον εἶναί τινα χρόνον [666] Πρὸς τούτοις ὁ χρόνος τριμερής
ἐστι καὶ τὸ μὲν ἔχει παρῳχηκὸς τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον ὧν τὸ μὲν παρῳχημένον οὐκέτι
ἔστιν τὸ δὲ μέλλον οὔπω ἔστιν τὸ δὲ ἐνεστὼς ἤτοι ἀμερές ἐστιν ἢ μεριστόν ἀλλ ἀμερὲς μὲν
οὐκ ἂν εἴη ἐν ἀμερεῖ μὲν γὰρ οὐδὲν δύναται γίνεσθαι μεριστόν ὥς φησι Τίμων οἷον τὸ
γίνεσθαι τὸ φθείρεσθαι
tempo do compasso) com a batida de peacute na muacutesica grega aleacutem disso os ritmos comeccedilam tanto com a batidaquanto com a elevaccedilatildeo de peacute
119
[661] Entatildeo se tivermos mostrado que o tempo eacute nada noacutes teremos concomitantemente
mostrado que natildeo existem peacutes e a partir disso que os ritmos natildeo existem visto que eles satildeo
compostos de peacutes Consequentemente disso se seguiraacute que natildeo haacute ciecircncia do ritmo Mas
como Que o tempo natildeo existe jaacute foi estabelecido nas Pirronianas311 mas nem por isso
deixaremos de estabelececirc-lo brevemente tambeacutem agora [662] Se existe algum tempo ou ele
eacute limitado ou ilimitado Ele natildeo eacute limitado pois se fosse diriacuteamos que em algum momento
houve um tempo em que o tempo natildeo existia e que em algum momento haveraacute um tempo em
que natildeo existiraacute o tempo Ele tambeacutem natildeo eacute considerado ilimitado pois algo dele eacute passado e
presente e futuro e se cada um deles natildeo existir o tempo eacute limitado e se existir tanto o
passado quanto o futuro existiratildeo ao mesmo tempo no presente o que eacute absurdo312 Logo natildeo
existe o tempo [663] E ainda aquilo que eacute composto de inexistentes eacute inexistente O tempo
sendo composto de passado que natildeo existe mais e de futuro que ainda natildeo existe seraacute
inexistente313 [664] Aleacutem disso se o tempo eacute indivisiacutevel como dizemos que o passado o
presente e o futuro satildeo parte dele Se ele eacute divisiacutevel visto que tudo que eacute divisiacutevel eacute medido
por uma parte de si mesmo (como o antebraccedilo pela palma e a palma pelo dedo) seraacute
necessaacuterio que o tempo seja medido por uma de suas proacuteprias partes [665] Mas natildeo eacute
possiacutevel medir os outros tempos pelo presente visto que o tempo presente e que vem a ser
seraacute ele mesmo tanto passado quanto futuro Seraacute passado porque mede o tempo passado e
futuro porque mede o tempo futuro o que eacute absurdo Portanto tambeacutem o presente natildeo pode
ser medido por um dos tempos restantes Por essa razatildeo natildeo se pode dizer existir algum
tempo314 [666] Aleacutem disso o tempo eacute tripartido e uma parte eacute passado outra presente outra
futuro Destas o passado natildeo eacute mais o futuro ainda natildeo eacute e o presente ou eacute divisiacutevel ou
indivisiacutevel Mas ele natildeo seraacute indivisiacutevel pois como diz Timon no indivisiacutevel nada divisiacutevel
pode vir a ser tal como o devir e o perecer315
311 Refere-se possivelmente agraves passagens sobre o tema encontradas em outros escritos ou agrave obra perdidamencionada em M VI 58 Os mesmos argumentos contra o conceito de tempo apresentados no Contra osMuacutesicos aparecem de maneira breve nas Hipotiposes Pirronianas (HP III 136-150) e mais aprofundada noContra os Fiacutesicos (M X 189-214)
312 Ver especificamente HP III 140-1 e M X 189313 Cf HP III 142 e M X 192314 Cf HP III 143 e M X 193-6315 Cf HP III 144 e M X 197 No Contra os Fiacutesicos o mesmo fragmento de Timon eacute mencionado
120
[667] Kαὶ ἄλλως εἴπερ ἀμερές ἐστι τὸ ἐνεστὼς τοῦ χρόνου οὔτε ἀρχὴν ἔχει ἀφ ἧς ἄρχεται
οὔτε πέρας ἐφ ὃ καταλήγει διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ μέσον καὶ οὕτως οὐκ ἔσται ὁ ἐνεστὼς χρόνος
εἰ δὲ μεριστός ἐστιν εἰ μὲν εἰς τοὺς μὴ ὄντας χρόνους μερίζεται οὐκ ἔσται χρόνος εἰ δ εἰς
τοὺς ὄντας χρόνους οὐκ ἔσται ὅλος ὁ χρόνος ἀλλὰ τῶν μερῶν αὐτοῦ τινὰ μὲν ἔσται τινὰ δὲ
οὐκ ἔσται τοίνυν οὐδέν ἐστι χρόνος διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ πόδες οὐδὲ ῥυθμοί οὐδ ἡ περὶ τοὺς
ῥυθμοὺς ἐπιστήμη
[668] Τοσαῦτα πραγματικῶς καὶ πρὸς τὰς τῆς μουσικῆς εἰπόντες ἀρχὰς ἐν τοσούτοις
τὴν πρὸς τὰ μαθήματα διέξοδον ἀπαρτίζομεν
121
[667] Por outro lado se a parte presente do tempo eacute indivisiacutevel ela natildeo tem um princiacutepio
onde ela comeccedila nem um limite no qual ela termina e por isso tambeacutem natildeo tem um meio
Assim natildeo haveraacute o tempo presente Se ele for divisiacutevel pelos tempos que natildeo satildeo natildeo
haveraacute tempo e se for divisiacutevel pelos tempos que natildeo existem o tempo natildeo existiraacute inteiro
mas algumas partes dele existiratildeo e algumas natildeo316 Portanto o tempo eacute nada e por isso nem
os peacutes nem os ritmos nem a ciecircncia acerca dos ritmos [existem]317
[668] Tendo dito tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica
noacutes encerramos nossa discussatildeo contra as disciplinas
316 Cf M X 198-200317 Argumento baseado no segundo Modo de Agripa
122
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Elaboramos nossa traduccedilatildeo e nossos comentaacuterios ao Contra os Muacutesicos de Sexto
Empiacuterico visando explicaacute-lo tanto no que diz respeito aos interesses da musicologia quanto
aos estudos do ceticismo pirrocircnico tendo em vista a escassez de ediccedilotildees que faccedilam referecircncia
a essa obra no Brasil buscando auxiliar sua compreensatildeo enquanto fonte sobre o papel da
Muacutesica na Antiguidade
Tomamos como ponto de partida a dicotomia entre teoria e praacutetica musical tal como
apresentada na criacutetica ceacutetica agrave teoria musical da Antiguidade O termo mousike designou
enquanto fenocircmeno sonoro tanto o conjunto que englobava palavra harmonia e ritmo
quanto puramente a arte dos sons Enquanto conceito metafiacutesico a mousike foi considerada
sob uma perspectiva matemaacutetica a ordem encontrada na muacutesica sendo derivada das relaccedilotildees
matemaacuteticas que subjazem tambeacutem agrave ordem do cosmos
A mousike era considerada uacutetil para a sociedade e necessaacuteria agrave educaccedilatildeo porque se
acreditava que ela teria o poder de alterar o caraacuteter do ouvinte por recuperar a harmonia da
alma ao imitar a harmonia do universo Mas a presenccedila da muacutesica na sociedade natildeo
implicava no incentivo indiscriminado de sua praacutetica Contrariamente para Platatildeo sua
praacutetica deveria ser restrita e regulada por leis e para Aristoacuteteles a muacutesica enquanto uma das
Artes Liberais deveria ser ensinada com a finalidade de desenvolver a capacidade de avaliar
a boa muacutesica e fruiacute-la de maneira correta a praacutetica musical enquanto parte desse
aprendizado consistia apenas em um meio jamais em um fim
Foi Aristoacutexeno quem abordou a mousike enquanto ciecircncia autocircnoma voltando-se agraves
relaccedilotildees entre os sons e natildeo mais agrave metafiacutesica (e consequentemente agrave teoria do ethos)
Mesmo mantendo um discurso considerado dogmaacutetico do ponto de vista ceacutetico Aristoacutexeno
pode ser considerado um dos precursores318 da questatildeo da autonomia da muacutesica enfatizando
o fenocircmeno sonoro como ponto de partida para a teoria musical que para ele estava deveras
descolada da praacutetica de seu tempo Essa questatildeo tambeacutem aparece em Filodemo como uma
reaccedilatildeo agrave supervalorizaccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo moral da sociedade Filodemo
ainda que de maneira dogmaacutetica questiona a utilidade da muacutesica em funccedilatildeo do seu suposto
poder de alterar o caraacuteter do ouvinte e com isso contribuir para a felicidade humana para
ele ela natildeo proporciona mais do que o simples prazer
No Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico constata-se que a criacutetica que se daacute por318 O registro mais antigo a que temos acesso que aborda a questatildeo da autonomia da muacutesica no pensamento
grego eacute o Papiro de Hibeh
123
essas duas vias (epistemoloacutegica e eacutetica) natildeo estaacute especificamente vinculada a uma defesa da
autonomia da muacutesica mas antes apresenta-se como uma refutaccedilatildeo a um certo modo de se
elaborar teorias a respeito das coisas
Observamos que na Antiguidade as artes fundadas na razatildeo entre elas a mousike
eram levadas em consideraccedilatildeo apenas por sua funccedilatildeo propedecircutica para a Filosofia Essa
subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia que permaneceu presente na Enkyklios Paideia do
periacuteodo imperial subsidia a elaboraccedilatildeo do Contra os Professores destinado justamente a
essas a discutir essas tekhnai Sexto parte dessa concepccedilatildeo das tekhnai como subordinadas agrave
Filosofia porque essa teria sido a visatildeo dominante dos pensadores ndash por ele considerados
dogmaacuteticos ndash de sua eacutepoca
Ao considerar que a investigaccedilatildeo das disciplinas Estudos Ciacuteclicos se daacute depois da
investigaccedilatildeo da filosofia visando ali tambeacutem encontrar a verdade Sexto Empiacuterico nega agrave
filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdade Nesse sentido Sexto abre a
possibilidade para se considerar as tekhnai em dois sentidos enquanto tekhnai teoacutericas
dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e enquanto praacuteticas autocircnomas sejam dogmaacuteticas ou
natildeo Desse modo seu ataque abre espaccedilo para se pensar a possibilidade da autonomia das
tekhnai em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Em nossa interpretaccedilatildeo sobre a finalidade do ceticismo pirrocircnico consideramos que o
meacutetodo argumentativo ceacutetico visa mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e
sua precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe externamente
agraves nossas representaccedilotildees Sob essa perspectiva no que diz respeito agraves tekhnai
compartilhamos da visatildeo de Pellegrin de que ldquoo tratado Contra os Muacutesicos demonstra bem
que natildeo se trata em ultima anaacutelise de chegar a uma forccedila igual de argumentos opostos mas
antes de condenar a abordagem dogmaacutetica dos teoacutericos da muacutesicardquo (Pellegrin 2002 p 46-7)
Sob essa perspectiva o que Sexto Empiacuterico condena em cada uma das disciplinas ldquoeacute o desvio
dogmaacutetico que acompanha quase sempre sua incontestaacutevel utilidade praacuteticardquo (Pellegrin 2002
p 19) Esse desvio estaria situado natildeo na praacutetica das tekhnai mas antes no discurso sobre
elas em funccedilatildeo da ldquotentaccedilatildeo dos homens das artes pela teoriardquo (Pellegrin 2002 p 20) ou da
tentaccedilatildeo dos filoacutesofos em relaccedilatildeo a ela
Se a refutaccedilatildeo ceacutetica se propotildee a tarefa de mostrar a inconsistecircncia teoacuterica de cada
uma das tekhnai em funccedilatildeo da pretensatildeo de verdade dos discursos dogmaacuteticos dos
professores no caso da muacutesica eacute a teoria musical sob seus aspectos teacutecnicos e em funccedilatildeo de
sua utilidade que deve ser questionada
124
Assim no Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico concentra sua argumentaccedilatildeo contra as
teorias dogmaacuteticas que consideram a muacutesica uacutetil porque se o sentido fundamental de uma
tekhnai se daacute em funccedilatildeo de sua utilidade ao se mostrar que a muacutesica natildeo tem as propriedades
a ela atribuiacutedas ela se tornaria inuacutetil e com isso seu estatuto de tekhne ficaria comprometido
Aleacutem disso Sexto desconstroacutei os conceitos baacutesicos sobre os quais a teoria musical estaacute
baseada mostrando a inconsistecircncia ou ausecircncia de fundamento de toda a teoria musical
Essa condenaccedilatildeo agrave conduta dogmaacutetica em relaccedilatildeo agraves tekhnai se daacute porque como
vimos haacute um sentido em que as tekhnai natildeo satildeo condenadas pelo ceacutetico Pelo contraacuterio
enquanto parte do criteacuterio praacutetico pirrocircnico a possibilidade do exerciacutecio de uma tekhne livre
de dogmatismo eacute fundamental para a coerecircncia dessa filosofia
Enquanto disciplina da Enkyklios Paideia a teoria musical eacute refutada por ser ldquoserva
de primeira ordemrdquo da Filosofia mas por outro lado as artes aprovadas pelo ceacutetico estatildeo
ligadas agrave experiecircncia (empeiria) que para ele natildeo depende das demonstraccedilotildees racionais
proacuteprias da ciecircncia para se estabelecer Por isso a muacutesica enquanto ldquoexperiecircncia em
instrumentosrdquo ou seja a muacutesica praacutetica natildeo eacute refutada
No Contra os Muacutesicos a teoria musical eacute refutada sobretudo em funccedilatildeo da
associaccedilatildeo da utilidade da muacutesica ao seu pretenso poder de afetar a alma do ouvinte Se esse
suposto poder natildeo estaacute na melodia mas apenas em nossa opiniatildeo ao se eliminar a crenccedila
adicional de que a muacutesica teria certos atributos por natureza restaria apenas a muacutesica praacutetica
executada pelo instrumentista independentemente da funccedilatildeo atribuiacuteda a ela pelos teoacutericos
A refutaccedilatildeo ceacutetica agraves teorias musicais da Antiguidade apresenta-se como uma criacutetica
de modo algum ultrapassada justamente porque nos faz revisitar importantes questotildees da
esteacutetica musical A contraposiccedilatildeo entre proposiccedilotildees acerca do que eacute a muacutesica de seu papel na
sociedade explicita a limitaccedilatildeo do debate a dois principais modos possiacuteveis de compreendecirc-la
(representado na histoacuteria recente pela oposiccedilatildeo entre idealismo e formalismo) e ao mesmo
tempo coloca em xeque a dicotomia (e frequente hierarquizaccedilatildeo) entre teoria e praacutetica
musical presente ainda hoje no pensamento daqueles que trabalham com o ensino de
muacutesica
Se considerarmos a argumentaccedilatildeo ceacutetica como uma mostra do dogmatismo que
permeia as mais diversas teses de toda a teoria sobre muacutesica e ainda se fizermos um
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo e transpusermos para a aacuterea da muacutesica as bases daquilo que
possivelmente seria uma tekhne natildeo-dogmaacutetica de acordo com o meacutetodo ceacutetico eacute possiacutevel
vislumbrar uma tekhne musical onde o discurso surja e emane da praacutetica e natildeo o contraacuterio
125
(Ora se todo o conhecimento musical estudado hoje surgiu inevitavelmente da experiecircncia
sendo apenas posteriormente formalizado em teorias isso natildeo seria uma grande inovaccedilatildeo)
A atualidade das questotildees suscitadas no combate ao dogmatismo das disciplinas dos
Estudos Ciacuteclicos ndash que deixando de lado a ascensatildeo e queda das mais variadas verdades ao
longo dos seacuteculos satildeo as mesmas disciplinas que ainda compotildeem nosso curriacuteculo ndash revela o
ainda natildeo superado abismo entre teoria e praacutetica que nossos meacutetodos de ensino-aprendizado
frequentemente impotildeem Sob essa oacutetica se jaacute descartamos as teses pitagoacutericas de uma muacutesica
inaudiacutevel se a muacutesica existe ‒ para noacutes ‒ enquanto um fenocircmeno sonoro a refutaccedilatildeo de
Sexto Empiacuterico faz lembrar que sem a praacutetica (ou ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo) a muacutesica
simplesmente ldquonatildeo existerdquo e por conseguinte qualquer teoria a respeito dela tambeacutem natildeo
126
REFEREcircNCIAS
EMPIRICUS Sextus Against the Professors Prous Mathematikous Traduccedilatildeo de R GBury Cambridge Harvard University Press 1933 (Loeb Classical Library)
_________________ Contra los Profesores Traduccedilatildeo de Jorge Bergua Cavero MadridGredos Editorial 1997
________ Against the Logicians Traduccedilatildeo de Richard Bett New York CambridgeUniversity Press 2005
DELATTRE D Contre les musiciens In PELLEGRIN (Org) Sextus Empiricus Contreles professeurs Paris Eacuteditions du Seuil 2002
GREAVES D D Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ Against the musicians Editedand translated with introduction and notes London University of Nebraska Press 1986
ALLEN J Pyrronism and medicine In BETT R (Org) The Cambridge companion toancient scepticism Cambridge Cambridge University Press 2010
ANDERSON W D Ethos and Education in Greek Music Cambridge Harvard UniversityPress 1966
ANNAS J BARNES J The Modes of Scepticism Ancient Texts and ModernInterpretations Cambridge Cambridge University Press 1985
ARISTOPHANES The Clouds Traduccedilatildeo de Jeffrey Henderson Cambridge HarvardUniversity Press 1998 (Loeb Classical Library)
ARISTOacuteTELES On the Heavens De Caelo Traduccedilatildeo de W K C Guthrie CambridgeHarvard University Press 1939 (Loeb Classical Edition)
____________ Poeacutetica Traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa daMoeda 2003
____________ Poliacutetica Traduccedilatildeo de Antoacutenio Campelo Amaral e Carlos de CarvalhoGomes Lisboa Vega 1998
____________ Problemas Musicais Traduccedilatildeo de Maria Luiza Roque Brasiacutelia Thesaurus2001
____________ The Nicomachean Ethics Traduccedilatildeo de David Ross Britain OxfordUniversity Press 1998
BARKER A Greek Musical Writings vol I of the Musician and his Art BritainCambridge University Press 1984
127
__________ Greek Musical Writings vol II Harmonic and Acoustic Theory BritainCambridge University Press 1989
__________ The science of harmonics in classical Greece Cambridge CambridgeUniversity Press 2007
BARNES J Scepticism and the Arts In RJ Hankinson (Org) Method Medicine andMetaphysics Studies in the Philosophy of Ancient Science (Special Issue of Apeiron 21) p53ndash77 1988
BEacuteLIS A Aristoxegravene de Tarente et Aristote Le Traiteacute drsquoharmonique Paris Klincksieck1986
_______ Les nuances dans le Traiteacute dharmonique dAristoxegravene de Tarente Revue desEtudes Grecques XCV p 54-73 1982
BETT R A Sceptic Looks at Art (but not Very Closely) Sextus Empiricus on MusicInternational Journal for the Study of Skepticism 3 p 155ndash181 2013
BOWMAN W D Philosophical Perspectives on Music Oxford Oxford University Press1998
BROCHARD V Os Ceacuteticos Gregos Traduccedilatildeo de Jaimir Conte Satildeo Paulo OdysseusEditora 2009
BYCHKOV O V SHEPPARD A Greek and Roman Aesthetics Cambridge CambridgeUniversity Press 2010
CASTANHEIRA C P De Institutione Musica de Boeacutecio Livro 1 traduccedilatildeo e comentaacuterios154f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Estudos Literaacuterios) - Universidade Federal de MinasGerais 2009
CORREcircA P C Harmonia mito e muacutesica na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Humanitas 2008
DELATTRE D Preacutesence de LrsquoEacutepicurisme dans le Contre les grammariens et le Contre lesmusiciens de Sextus Empiricus In DELATTRE J (Org) Sur le Contre les professeurs deSextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p 47ndash65
___________ Philodegraveme de Gadara Sur la musique 2 vols Paris Les Belles Lettres2007
DESBORDES F Le scepticisme et les lsquoarts libeacuterauxrsquo une eacutetude de Sextus Empiricus AdvMath I-VI In A-J Voelke (Org) Le scepticisme antique perspectives historiques etsysteacutematiques Actes du Colloque international sur le scepticisme antique Universiteacute deLausanne 1-3 juin 1988 (Cahiers de la revue de theacuteologie et de philosophie 15) GenevaLausanne and Neuchacirctel Revue de Theacutelologie et de Philosophie 1990 p 167ndash79
DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker (6th ed) Revised with additions and indexby W Kranz Berlin Weidman 1951-2
128
EPICURO Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Lorencini e EnzoDel Carratore Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
FLORIDI L Sextus Empiricus The Transmission and Recovery of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 2002
FUBINI E Esteacutetica da Muacutesica Lisboa Ediccedilotildees 70 2012
GIGANTE M Scetticismo e Epicureismo Per lavviamento di un discorso storiograficoNapoli Bibliopolis 1981
HADOT I Arts libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Paris EacutetudesAugustiniennes 1984
HADOT P O que eacute Filosofia antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008
HANSLICK E Do Belo Musical Traduccedilatildeo Artur Mouratildeo Covilhaacute LusoSofia 2011
HIPPOCRATES Aphorisms (Vol IV) Traduccedilatildeo de W H S Jones Cambridge HarvardUniversity Press 1931 (Loeb Classical Library)
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
________ Odisseia Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
LIPPMAN E A A History of Western Musical Aesthetics Lincoln University ofNebraska 1992
_____________ Musical thought in Ancient Greece New York Da Capo Press 1964
____________ The Place of Music in the System of Liberal Arts In J LaRue and othersAspects of Medieval and Renaissance Music a Birthday Offering to Gustave Reese NewYork 1966 p 545ndash59
MATES B The Skeptic Way Sextus Empiricusrsquos Outlines of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 1996
MATHIESEN T L Apolos Lyre greek music and music theory in antiquity and the middleages Londres University of Nebraska Press 1999
MARROU H Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Editora Herder 1966
MOUTSOPOULOS E La mousique dan loeuvres de Platon Paris Presses Universitairesde France 1959
PELLEGRIN P Introduction In ______ (Org) Sextus Empiricus Contre les professeurs
129
Paris Eacuteditions du Seuil 2002 p 9ndash47
_____________ De lrsquouniteacute du scepticisme sextien In DELATTRE J (Org) Sur le Contreles professeurs de Sextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p35ndash45
PEREIRA A R A esteacutetica musical em Aristoacutexeno de Tarento Hvmanitas Lisboa VolXLVII Universidade Nova de Lisboa 1995
_____________ A mousikeacute das origens ao drama de Euriacutepides Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2001
_____________ Poleacutemica acerca da mousikeacute no Adversus Musicos de Sexto EmpiacutericoHvmanitas Lisboa vol XLVIII Universidade Nova de Lisboa 1996
PHILO On mating with the preliminary studies De Congressu (Vol IV) Traduccedilatildeo F HColson e G H Whitaker Cambridge Harvard University Press 1939 (Loeb ClassicalLibrary)
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa FundaccedilatildeoCalouste Gulbenkian 1980
________ Fedro In Diaacutelogos III Trad intro e notas Lledoacute Intildeigo Madrid EditorialGredos 1988
________ Leis Traduccedilatildeo e notas Carlos Humberto Gomes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004
________ Eutidemo In Diaacutelogos II Traduccedilatildeo F J Olivieri Madrid Editorial Gredos1983
________ Timeu In Diaacutelogos VI Trad intro e notas Francisco Lisi Madrid EditorialGredos 1992
________ Menexeno In Diaacutelogos II Trad intro e notas E Acosta Meacutendez MadridEditorial Gredos 1983
PLUTARCO De virtute morali (Moralia Vol 6) Traduccedilatildeo de W C Helmbold) CambridgeHarvard University Press 1936 (Loeb Classical Library)
PLUTARCO Sobre a Muacutesica In SOARES C ROCHA R Plutarco Obras Morais Sobreo afecto aos filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo de Roosevelt Rocha Coimbra Centro deEstudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010
POPKIN R H Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Traduccedilatildeo de DaniloMarcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000
PORCHAT PEREIRA O ldquoA autocriacutetica da razatildeo no mundo antigo In Waldomiro Joseacute SilvaFilho (Org) O Ceticismo e a possibilidade da Filosofia Injuiacute Ed Unijuiacute 2005
130
___________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
QUINTILIANO Institutio Oratoria Traduccedilatildeo de H E Butles Cambridge HarvardUniversity Press 1930 (Loeb Classical Library)
REYES P R Sexto Empiacuterico y la mousikeacute EMERITA - Revista de Linguistica y FilologiacuteaClaacutesica (EM) ndash LXXII 1 p 95-119 2004
ROCHA R Uma introduccedilatildeo agrave teoria musical na antiguidade claacutessica Via LitteraeAnaacutepolis v 1 n 1 p 138-164 juldez 2009
SPINELLI E Pyrrhonism and the specialized sciences In BETT R (Org) TheCambridge companion to ancient scepticism Cambridge Cambridge University Press2010
TARTAKIEWICZ W Objectivity and Subjectivity in the History of Aesthetics Philosophyand Phenomenological Research Vol 24 No 2 (Dec 1963) pp 157-173 1963
Thesaurus Linguae Graecae Compilaccedilatildeo de todos os textos em prosa ou verso em grego dosseacutecsVIII aC ateacute VI dC in httpwwwtlguciedu
TOMAacuteS L Ouvir o loacutegos muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
________ Vozes dissonantes precursores da autonomia da muacutesica na antiguidade InDUARTE R e SAFATLE V Ensaios sobre muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo AssociaccedilatildeoEditorial Humanitas 2007
VITRUacuteVIO The Ten Books on Architecture Trad Morris Hicky Morgan CambridgeHarvard University Press London Humphrey Milford Oxford University Press 1914
WEST M L Ancient Greek Music New York Oxford University Press 1992
WILKINSON L P Philodemus on Ethos in Music The Classical Quarterly Vol 32 No34 (Jul - Oct 1938) pp 174-181
WOODWARD L H Diogenes of Babylon A Stoic on Music and Ethics Dissertaccedilatildeo(Master of Philosophy in Classics) - UCL 2009
131
GLOSSAacuteRIO
aisthesis (αἴσθησις) ndash sentidos percepccedilatildeo sensiacutevelaisthetos (αἰσθητός) ndash objeto da percepccedilatildeo sensiacutevelaletes (ἀλήτης) ndash verdadeiroanagke (ἀνάγκη) ndash necessidadeandreia (ἀνδρέια) ndash bravura coragemanomalia (ἀνωμαλία) ndash anomalia antirresis (ἀντίρρησις) ndash refutaccedilatildeoanyparktos (ἀνύπαρκτος) ndash irreal natildeo-existenteanypostatos (ἀνυπόστατος) ndash irreal natildeo-existenteaporia (ἀπορία) ndash aporiaarete (ἀρήτη) ndash excelecircncia virtudeataraxia (ἀταραξία) ndash tranquilidade (da alma)azetetos (ἀζήτητος) ndash natildeo-investigaacutevelbarys (βαρύς) ndash gravebios (βίος) ndash vida vida comumdia pason (διὰ πασῶν) ndash intevalo de oitavadia pente (διὰ πέντε) ndash intervalo de quintadia tettaron (διὰ τεττάρων) ndash intervalo de quartadiabebaiomai (διαβεβαιῦμαι) ndash sustentar firmementedianoia (διάνοια) ndash pensamento intelectodiastema (διάστημα) ndash intervalodiatonos (διάτονος) ndash diatocircnico (gecircnero)diaphonia (διαφωνία) ndash discordacircncia disputa controveacutersiadiaphonos (διάφωνος) ndash dissonante (muacutesica)diesis (δίεσις) ndash o menor intervalo na escaladogma (δόγμα) ndash dogma crenccedila opiniatildeodoxa (δόξα) ndash opiniatildeodynamis (δύναμις) ndash capacidade habilidade poder disposiccedilatildeo ethos (ἔθος) ndash haacutebito costumeethos (ἦθος) ndash caraacuteter disposiccedilatildeoeidesis (εἴδησις) ndash conhecimentoekmeles (ἐκμελής) ndash desafinado dissonanteektos hupokeimenon (ἐκτograveς ὑποκείμενον) ndash aquilo que existe externamente (agrave nossa percepccedilatildeo) emmeles (ἐμμελής) ndash afinado harmoniosoempeiria (ἐμπειρία) ndash experiecircncia enkyklios paideia (ἐγκύκλιος παιδεία) ndash educaccedilatildeo ciacuteclicaennoia (ἔννοια) ndash conceito concepccedilatildeoepisteme (ἐπιστήμη) ndash ciecircnciaepokhe (ἐποχή) ndash suspensatildeo de juiacutezoeudaimonia (εὐδαιμονία) ndash felicidade prosperidade boa fortunaharmonia (ἁρμονία) ndash harmonia enarmocircnico (gecircnero)hemitonion (ἡμιτόνιον) ndash semitomhomophonos (ὁμόφωνος) ndash na mesma nota em uniacutessono Opp σύμφωνος (em concordacircncia)hypostasis (Ὑπόστασις) ndash existecircncia substacircnciaidiotes (ἰδιώτης) ndash pessoas comunsisostheneia (ἰσοσθένεια) ndash equipolecircncia igual forccedila
132
katastello (καταστέλλω) ndash refrear tranquilizarkhreo (χρεώ) ndash utilidadekhroma (χρῶμα) ndash cromaacutetico (gecircnero)khronos (χρόνος) ndash tempologike tekhne (λογική τέχνη) ndash arte racionallogos (λόγος) ndash razatildeo argumento discursomathema (μάθημα) ndash ensinamento disciplinamelodia (μελῳδία) ndash canto muacutesica melodiamimesis (μίμεσις) ndash imitaccedilatildeonoos (νόος) ndash menteorganikos (ὀργανικός) ndash instrumento instrumentaloxus (Ὀξύς) ndash agudopathos (πάθος) ndash afecccedilatildeophainomenon (φαινόμενον) ndash aquilo que aparece fenocircmenophone (φωνή) ndash somphthonnos (φθόγγος) ndash notarythmos (ῥυθμός) ndash ritmostoikheion (στοιχεῖον) ndash elementosymphonos (σύμφωνος) ndash consonantesystema (σύστημα) ndash sistemasophronizo (σωφρονίζω) ndash regular moderarsophrosyne (σωφροσύνη) ndash temperanccedila tasis (τάσις) ndash tensatildeo altura da voztekhne (τέχνη) ndash arte teacutecnicatekhnites (τεχνίτες) ndash artistas artiacutefices especialistas profissionaistheoria (θεωρία) ndash teoria tonos (τόνος) ndash tomtropos (τρόπος) ndash modo zeteo (ζητέω) ndash investigar
Aos que sustentam firmemente a dicotomia entre o pensar e o fazer artiacutestico
AGRADECIMENTOS
Ao professor Roosevelt Rocha pela orientaccedilatildeo por sua postura (praacutetica e direta) naconduccedilatildeo de nossas reuniotildees pelo incentivo a esse projeto e pela incriacutevel paciecircncia
Ao professor Luiz Eva com quem pude estudar a Filosofia ceacutetica do segundo ano agravemonografia agradeccedilo pelos ldquohieroacuteglifosrdquo de suas correccedilotildees a partir dos quais aprendi aestruturar minhas ideias e esclarececirc-las no papel
Ao professor Bernardo Brandatildeo por encorajar o estudo do grego antigo tratando-ocomo a liacutengua mais simples do mundo e pelo projeto inicial de traduccedilatildeo do Contra osMuacutesicos E ao Professor Pedro Ipiranga pelas primeiras letras gregas
Agrave professora Lia Tomaacutes pela pertinecircncia de seus comentaacuterios pela indicaccedilatildeo debibliografia e pelo empreacutestimo de livros fundamentais para essa pesquisa
Ao professor Roberto Bolzani pela dedicada anaacutelise dessa dissertaccedilatildeoAos amigos professor Paulo Vieira Neto pelos cafeacutes filosoacuteficos ao longo desses
anos professor Benito Maeso pelo estaacutegio em docecircncia com a turma de monstrinhos (nomelhor sentido da palavra) e pelas orientaccedilotildees de botequim Ana Carolina Freire pelasrevisotildees e inuacutemeros conselhos que sempre terminam com um ldquonada temardquo Aos colegasfilosofantes Marcelo Gustavo Raphael Eduardo Bruno Gustavo Paiva e principalmenteao grande amigo Wagner Bitencourt
Agrave turma do mestrado pelo carinho com que todos me receberam Especialmente aoVicente pelo incentivo e pela parceria nos trabalhos de anaacutelise ao Adriano pelas conversasao longo da Rua XV ao Elder pelo seu incansaacutevel espiacuterito criacutetico agrave Renata pelas agradaacuteveistardes no cafeacute agrave Lilian e agrave Flora pelo apoio e preciosos conselhos
Agrave Denise Drechsel e agrave Vera Lucia Barbosa pelo carinho e entusiasmo com queaceitaram o trabalho de revisatildeo dessa dissertaccedilatildeo
Aos colegas do Coro da UFPR pela companhia nas tardes de traduccedilatildeo e revisatildeoAo Maestro Alvaro Nadolny pela dedicaccedilatildeo em ensinar arte muito aleacutem da teacutecnica
pelo incentivo agraves mudanccedilas em meu caminho pelos inuacutemeros conselhos que ele (ldquonatildeordquo) daacutee principalmente por me ensinar (no sentido mais profundo que se possa entender) quemuacutesica eacute para o outro
Ao Hermes (namorado noivo e marido durante esses dois anos de mestrado) por seuamor sua muacutesica e por me mostrar o mundo de outro jeito fazendo de mim algueacutem melhor
Agrave minha matildee Gloacuteria (principalmente pelo seu bom-senso infaliacutevel) e ao meu paiJunior (especialmente por pensar ndash sempre ndash fora da caixinha) por apoiaremincondicionalmente todas as (boas) ideias mirabolantes de seus filhos
Ao meu irmatildeo Matheo pelo carinho pela paciecircncia absurda e pelos trocadilhos ruinsque divertiram meus dias enquanto moramos juntos
Por fim aos professores do PPG - Muacutesica por acreditarem no potencial desse projetoespecialmente agrave professora Silvana Scarinci e ao professor Danilo Ramos
Ao secretaacuterio Gabriel pelo profissionalismo com que exerce sua funccedilatildeo Agrave CAPES pelo suporte financeiro agrave realizaccedilatildeo dessa pesquisa
Por amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar por meio da argumentaccedilatildeo na medida do possiacutevel
o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticos
Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas III 280
RESUMO
O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico eacute uma importante fonte sobre o papel da muacutesica naAntiguidade Nesta obra o filoacutesofo ceacutetico refuta a teoria musical tanto sob a perspectiva eacuteticandash questionando sua utilidade quanto sob a perspectiva teacutecnica ndash apresentando argumentoscontra conceitos fundamentais da ciecircncia musical como o de melodia e o de ritmo Arefutaccedilatildeo da teoria musical compartilha de um objetivo mais amplo da Filosofia ceacutetica asaber o combate ao dogmatismo na Filosofia e nas disciplinas que compunham os EstudosCiacuteclicos O presente trabalho consiste na traduccedilatildeo comentada do Contra os Muacutesicos Emnosso comentaacuterio agrave obra buscamos reunir as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeodessa obra sob a perspectiva filosoacutefica e a perspectiva musicoloacutegica Partimos da divisatildeohieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical e em funccedilatildeo disso apresentamos um panoramageral da teoria musical na Antiguidade segundo duas perspectivas o papel psicagoacutegico damuacutesica e os aspectos teacutecnicos da ciecircncia musical Enfatizamos por um lado a importacircncia dateoria do ethos musical no pensamento filosoacutefico de Platatildeo e de Aristoacuteteles e por outro aconcepccedilatildeo de teoria musical enquanto ciecircncia autocircnoma desenvolvida por Aristoacutexeno Aleacutemdisso devido agrave sua semelhanccedila com o Contra os Muacutesicos apresentamos a criacutetica ao papeleacutetico da muacutesica elaborada pelo filoacutesofo epicurista Filodemo Buscamos em seguida explicara mousike enquanto uma das artes que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos que privilegiando oacircmbito teoacuterico constituiacuteam ainda uma propedecircutica agrave Filosofia Depois disso situamos aobra no acircmbito da Filosofia ceacutetica mostrando que em todos os livros do Contra osProfessores o ceacutetico parte de uma dicotomia entre arte teoacuterica e praacutetica e que sua refutaccedilatildeodiz respeito apenas agrave precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de sustentar teorias sobre cada uma das tekhnaiPor fim analisamos em detalhe os argumentos que compotildeem o Contra os Muacutesicosmostrando que estes refutam somente o acircmbito teoacuterico da muacutesica abrindo espaccedilo para umareflexatildeo a respeito do valor da praacutetica musical na cultura grega antiga
Palavras-chave Muacutesica Grega Antiga Ceticismo Ethos tekhne Sexto Empiacuterico Estudos Ciacuteclicos
ABSTRACT
Sextus Empiricus work called Against the Musicians is an important source about music inthe Ancient Greece In this book the skeptic attempts to refute musical theory of that timeson the ethical way ndash questioning its utility as well as on the technical perspective ndash arguingagainst fundamental concepts of this science such as melody and rhythm The refutation ofmusical theory is part of a broader goal in Sextus work - and on the Skeptical Philosophyproject as a whole to oppose dogmatism in philosophy and in the Cyclical Studies subjectsOur work consists of a translation and a commentary on Against the Musicians Thecommentary aims to present the necessary tools for an interpretation of Against the Musiciansin philosophical and musicolgical terms We followed the hierarchycal division betweenmusical theory and practice as a starting point and present music theory in Ancient times bytwo perspectives musics psychagogic role and technical aspects of music science Weemphasized the importance of the theory of musical ethos in Platos and Aristotlesphilosophy Aristoxenus development of music theory as an autonomous science andPhilodemus critic regarding musics ethical role An effort was made to explain mousike asone of the arts of the Cyclical Studies These favoured the theorical range also constituting apropedeutic to Philosophy After that we put the work into its philosophical context byshowing that the whole Against the Professors assumes a dichotomy between theorical andpractical art and that the refutation concerns only the dogmatic precipitancy to firmly mantaintheories about each one of the tekhnai At last a detailed analysis was made on the argumentsthat make up the Against the Musicians showing that these arguments extends just to thetheorical part of music enabling us to reflect upon the value of musical practice
Keywords Ancient Greek Music Skepticism Ethos Tekhne Sextus Empiricus Cyclical Studies
LISTA DE ABREVIATURAS
Aristides Quintiliano De mus ndash De Musica
AristoacutetelesEN ndash Eacutetica a NicocircmacoMet ndash MetafiacutesicaPol ndash PoliacuteticaProb ndash Problemas Musicais
AristoacutexenoEl Harm ndash Elementa Harmonica
Boeacutecio Inst ndash De Institutione Musica
Filodemo De mus ndash De musica
PlatatildeoRep ndash RepuacuteblicaEuth ndash EutidemoTi ndash Timeu
Plutarco De mus ndash De Musica
QuintilianoInst ndash Institutione Oratoria
Sexto Empiacuterico1
HP ndash Hipotiposes PirronianasM I - VI ndash Contra os Professores (Adversus Mathematicos)M I ndash Contra os GramaacuteticosM II ndash Contra os RetoacutericosM III ndash Contra os GeocircmetrasM IV ndash Contra os AritmeacuteticosM V ndash Contra os AstroacutelogosM VI ndash Contra os MuacutesicosM VII ndash XI ndash Contra os DogmaacuteticosM VII ndash VIII ndash Contra os LoacutegicosM IX ndash X ndash Contra os FiacutesicosM XI ndash Contra os Eacuteticos
1 Os livros agrupados sob o tiacutetulo Contra os Dogmaacuteticos foram numerados erroneamente como umacontinuaccedilatildeo dos seis livros que compotildeem o Contra os Professores Em funccedilatildeo de sua praticidademanteremos essa abreviaccedilatildeo
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
1017
3 MOUSIKE 2031 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO 2032 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA 22321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo 23322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles 2833 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO 3534 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO 414 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS NO CONTRA OS PROFESSORES 4641 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO NA FILOSOFIA E NAS ARTES 4742 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS 5243 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES 59431 O modelo argumentativo da obra 6144 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO 665 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS 6951 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6) 69511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo 69512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica 7152 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37) 7353 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68) 806 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISREFEREcircNCIASGLOSSAacuteRIO
867122126131
10
1 INTRODUCcedilAtildeO
Ateacute o seacuteculo V de nossa era a praacutetica e a teoria musical2 eram duas vertentes
completamente distintas3 A praacutetica musical restringia-se agrave execuccedilatildeo do instrumento
considerava-se que esta natildeo fazia uso do intelecto e por isso era colocada em um niacutevel
inferior em relaccedilatildeo agrave teoria Boeacutecio4 por exemplo afirma que haacute trecircs classes de muacutesicos
uma delas eacute formada por aqueles que executam os instrumentos considerada como
desprovida de reflexatildeo a segunda eacute a dos poetas que compotildeem as canccedilotildees por um certo
instinto natural e a terceira e mais elevada eacute a dos que julgam os ritmos e melodias das
canccedilotildees
A teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmoloacutegico
da ciecircncia musical quanto seu sentido teacutecnico relacionado ao estudo da harmonike da
riacutetmica e da meacutetrica Aleacutem disso os estudiosos da muacutesica estavam preocupados com o papel
eacutetico da muacutesica no que diz respeito agraves suas caracteriacutesticas terapecircuticas e ao seu poder de
formar e determinar o caraacuteter5 e o comportamento do ouvinte Este aspecto da muacutesica estava
estritamente ligado agrave paideia6 grega
No Contra os Muacutesicos uacuteltimo livro da obra intitulada Contra os Professores Sexto
Empiacuterico7 filoacutesofo ceacutetico do seacuteculo II dC dirige sua criacutetica agrave teoria musical que segundo
ele era considerada por muitos mais completa que a praacutetica musical8 Sua refutaccedilatildeo dirige-
se aos acircmbitos eacutetico e epistemoloacutegico da teoria musical Seu meacutetodo consiste em apresentar
algumas definiccedilotildees difundidas sobre a muacutesica e argumentar mostrando que elas natildeo satildeo
necessariamente vaacutelidas Na primeira parte do texto a muacutesica eacute discutida em termos de sua
utilidade para se alcanccedilar a felicidade Se por um lado ela eacute dita uacutetil para a felicidade humana
2 A expressatildeo ldquoteoria musicalrdquo eacute utilizada aqui em sentido amplo ou seja abrangendo os aspectos eacutetico eteacutecnico da muacutesica Ver Tomaacutes (2002 p 18-22)
3 Cf Tomaacutes (2002 p43)4 Cf Boeacutecio Inst (480-524)5 O termo grego traduzido por ldquocaraacuteterrdquo ao longo deste texto eacute ἦθος (ethos) e estaacute ligado agrave virtude moral que
se desenvolve na alma atraveacutes do haacutebito em grego ἔθος (ethos) De acordo com Aristoacuteteles (EN 1103 A) onome dessa virtude moral (ἠθική ndash ethike) surge por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ldquohaacutebitordquo (ethos ndashἔθος) Essa modificaccedilatildeo consiste na utilizaccedilatildeo do ldquoηrdquo (eta) no lugar do ldquoεrdquo (epsilon) Ao longo do textoutilizamos a transliteraccedilatildeo ldquoethosrdquo para ἦθος (caraacuteter)
6 O termo paideia ldquodesigna a experiecircncia cultural e eacutetica grega ele natildeo eacute de nenhum modo limitado agraveeducaccedilatildeo em seu sentido formalrdquo (Anderson 1966 p 2)
7 A obra de Sexto Empiacuterico eacute ainda pouco estudada em relaccedilatildeo agraves suas contribuiccedilotildees ao pensamentofilosoacutefico - sobretudo sua influecircncia na Filosofia moderna Dentre os textos que chegaram ateacute noacutes estatildeo asHipotiposes Pirronianas o Contra os Dogmaacuteticos e o Contra os Professores
8 Os argumentos acerca do valor da muacutesica refutados por Sexto satildeo parecidos com os argumentos queaparecem nas obras de Quintiliano e de Plutarco A refutaccedilatildeo contra o valor eacutetico e filosoacutefico da muacutesica porsua vez estaacute muito proacutexima da obra de Filodemo de Gadara (seacuteculo I aC) A principal fonte da teoriamusical apresentada por Sexto eacute a obra de Aristoacutexeno havendo tambeacutem paralelos com a obra de AristoacutetelesCf Greaves (1986 p 24-36)
11
em funccedilatildeo do poder de mover a alma podendo com isso alterar o caraacuteter do ouvinte por
outro Sexto apresenta diversos argumentos e exemplos que contrariam essa tese mostrando
que sendo as artes consideradas como tal em funccedilatildeo de sua utilidade e se a muacutesica for inuacutetil
ela deixa de ser uma arte Na segunda parte Sexto refuta diretamente os fundamentos da
ciecircncia musical a saber os conceitos de melodia e de ritmo atacando os conceitos de som e
de tempo Ao colocar em duacutevida os seus fundamentos o autor compromete todos os conceitos
teacutecnicos da ciecircncia da muacutesica que dependem deles9
No que diz respeito ao estudo da muacutesica antiga no Contra os Muacutesicos condensam-se
em poucas paacuteginas algumas das principais visotildees acerca da muacutesica na Antiguidade Junto do
Papiro de Hibeh10 e do De Musica de Filodemo11 esta eacute uma das raras obras onde a teoria
musical eacute abordada sob uma perspectiva criacutetica condenando as ideias difundidas entre a
maioria dos pensadores do periacuteodo a respeito do papel da muacutesica sendo por isso uma fonte
importante para os estudos sobre Muacutesica Antiga
Considerando-se a escassez de publicaccedilotildees que faccedilam referecircncia ao Contra os
Muacutesicos a traduccedilatildeo do texto grego apresentada neste trabalho primeira completa em liacutengua
portuguesa eacute acompanhada de um estudo que abrange algumas das principais teorias
musicais da Antiguidade e o contexto filosoacutefico da obra a fim de possibilitar a compreensatildeo
do Contra os Muacutesicos tanto sob a perspectiva filosoacutefica quanto sob a perspectiva
musicoloacutegica As notas agrave traduccedilatildeo aleacutem de esclarecerem questotildees especiacuteficas do texto
pontuam as relaccedilotildees entre os temas discutidos por Sexto Empiacuterico e outros textos importantes
sobre Muacutesica Grega Antiga
Nosso estudo comeccedila pelo modo como o conceito de mousike foi compreendido ao
9 Tal modelo argumentativo pode soar como um contrassenso agravequeles que natildeo estatildeo familiarizados com aFilosofia ceacutetica Em funccedilatildeo disso para se compreender o sentido dessa criacutetica eacute preciso abordar o Contraos Muacutesicos agrave luz dos objetivos do ceticismo pirrocircnico
10 O Papiro de Hibeh critica a ideia de que a muacutesica tem poderes eacuteticos e expressivos Nele haacute um discursoque foi proferido no Egito por um orador ateniense provavelmente na eacutepoca de Platatildeo De acordo comBarker (1989 p 183) o Papiro conteacutem um discurso dirigido contra os muacutesicos estruturado em trecircsargumentos O primeiro diz respeito agrave falta de base dos muacutesicos praacuteticos o segundo questiona a doutrina doethos e o terceiro aborda a falaacutecia existente entre as bases teoacutericas e a performance musical O oradorprocura refutar a noccedilatildeo de que algumas melodias nos fazem ser justos outras razoaacuteveis outras corretosoutras bravos e outras mais covardes Para refutar essa ideia ele afirma que ldquoas pessoas que vivem naaacuterea de Termoacutepilas cuja muacutesica eacute diatocircnica satildeo mais corajosas que os traacutegicos que cantam exclusivamentemelodias enarmocircnicas embora se pretendesse que esse gecircnero produzisse coragem Similarmente eleafirma muacutesica cromaacutetica natildeo produz covardiardquo (Lippman 1975 p 113) Adotando um tom retoacuterico eleataca a qualificaccedilatildeo daqueles que sustentam noccedilotildees sobre a influecircncia musical considerando que eles natildeosatildeo especialistas nem em muacutesica nem em argumentaccedilatildeo O orador os critica por tocarem mal e afirmaremcoisas ridiacuteculas como quando dizem que ldquocertas melodias satildeo relacionadas ao loureiro e outras agrave herardquoSegundo Lippman ldquoa referecircncia aos siacutembolos de Apolo e Dioniacutesio serve aqui para satirizar a descriccedilatildeo dasmelodias como eacuteticas e orgiaacutesticas A oraccedilatildeo expressa uma atitude cientiacutefica do especialista em muacutesica e eacuteaparentemente direcionada contra os filoacutesofosrdquo (Lippman 1975 p 114)
11 Sobre o De Musica de Filodemo ver seccedilatildeo 34
12
longo da Antiguidade tendo em vista evidenciar a dicotomia entre teoria e praacutetica musical e
as perspectivas eacutetica e teacutecnica abarcadas pela teoria Partimos da relaccedilatildeo entre o significado
cosmoloacutegico da teoria musical para os pitagoacutericos e o seu papel na educaccedilatildeo em funccedilatildeo da
teoria do ethos tal como formulada por Daacutemon Iremos nos ater inicialmente agrave exposiccedilatildeo
das ideias sobre a muacutesica apresentadas na Filosofia de Platatildeo e na discussatildeo dessas ideias
na Poliacutetica de Aristoacuteteles Mesmo sendo cronologicamente distantes da eacutepoca de Sexto
Empiacuterico concentramo-nos nessas ideias porque elas estatildeo invariavelmente presentes em
boa parte das obras posteriores
O pensamento musical de Platatildeo permanece ateacute hoje o arqueacutetipo para todas asconsideraccedilotildees acerca da doutrina musical da Antiguidade e deve ter influenciadoqualquer autor que escreveu sobre o tema que viveu depois do seacuteculo IV aC Platatildeofoi um dos primeiros se natildeo realmente o primeiro que escreveu longamente acercada muacutesica (Woodward 2009 p 102)
Enquanto Platatildeo enfatiza as raiacutezes pitagoacutericas de sua teoria musical e ao mesmo
tempo por incorporar as teorias damonianas a respeito do ethos musical manteacutem uma
posiccedilatildeo bastante restritiva no que diz respeito ao papel da muacutesica na sociedade Aristoacuteteles
limita-se a colocar em discussatildeo as diversas opiniotildees a respeito do papel da muacutesica
(dispensando as questotildees metafiacutesicas) voltando-se sobretudo aos efeitos do fenocircmeno
sonoro observaacuteveis no ouvinte O modo como Aristoacuteteles conduz sua investigaccedilatildeo a respeito
da muacutesica abre espaccedilo para que mais tarde seu disciacutepulo Aristoacutexeno mude o paradigma da
teoria musical
Em seguida concentramo-nos no pensamento musical de Aristoacutexeno e de Filodemo
Embora o nosso foco nesses autores se decirc em funccedilatildeo do uso de suas teorias no Contra os
Muacutesicos (ainda que ambos sejam criticados pelo ceacutetico) eacute importante destacar que na
historiografia musical Aristoacutexeno e Filodemo satildeo colocados ao lado de Sexto Empiacuterico no
que diz respeito a questatildeo da autonomia da muacutesica na Antiguidade
Esse conjunto de autores tem em comum o rompimento com as ideias difundidas e
sustentadas por Platatildeo e Aristoacuteteles rejeitando a relevacircncia dos possiacuteveis significados sociais
poliacuteticos ou matemaacuteticos da muacutesica Observa-se que apoacutes seacuteculos de domiacutenio da perspectiva
platocircnico-aristoteacutelica no que concerne agrave heteronomia do significado da muacutesica o pensamento
desses autores converge com uma visatildeo que considera a muacutesica enquanto forma autocircnoma12
12 A respeito da autonomia da muacutesica tal como aparece em Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico Bowmanconsidera que ldquoeles desafiam a ideia de que a muacutesica contribui de maneira significativa para coisas como ocaraacuteter humano mas sem avanccedilar ateacute a afirmaccedilatildeo da autossuficiecircncia musical Natildeo antes do surgimento dachamada muacutesica absoluta seacuteculos depois pode comeccedilar a emergir um verdadeiro formalismordquo(Bowmann 1998 p 136)
13
surgida no debate esteacutetico Iluminista a partir dos seacuteculos XVIII-XIX solidificada em 1854
com a publicaccedilatildeo da obra ldquoDo Belo Musicalrdquo de Eduard Hanslick13
Embora por diferentes razotildees Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico suspeitavamdas tentativas filosoacuteficas de conectar muacutesica ao que eles consideravam questotildeesextramusicais Na realidade fique com o que eacute dado ao ouvido com os fatosmusicais foi o que cada um argumentou Evidentemente nenhum deles visualizouuma gama de valores intrinsecamente musicais mas apenas procurou estreitar oacircmbito da relevacircncia musical para excluir coisas que sob sua perspectiva natildeotinham nada a ver com muacutesica (Bowmann 12112 p 140)
Aristoacutexeno promoveu uma sistematizaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica privilegiando seus
aspectos teacutecnicos que foi tomada como paradigma nos seacuteculos posteriores Enquanto a
harmonike para os pitagoacutericos era o estudo das relaccedilotildees matemaacuteticas ligadas agrave metafiacutesica na
medida em que a muacutesica passa a ser considerada a partir do proacuteprio fenocircmeno sonoro a
ciecircncia harmocircnica muda seu escopo a ponto de ser tomada como objeto de uma ciecircncia
autocircnoma14 Entretanto mesmo desvinculado do acircmbito considerado mais elevado do
conhecimento que eacute a metafiacutesica o estudo teoacuterico do fenocircmeno sonoro manteacutem-se em uma
posiccedilatildeo hieraacuterquica elevada em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical15 Tal sistema dogmaacutetico do ponto
de vista ceacutetico eacute refutado na segunda parte do Contra os Muacutesicos e por isso merece aqui
nossa atenccedilatildeo
Encerramos o primeiro capiacutetulo apresentando a refutaccedilatildeo do filoacutesofo epicurista
Filodemo agrave ideia de que a muacutesica eacute uacutetil em funccedilatildeo de ter por natureza o poder de afetar o
caraacuteter do ouvinte Ele rejeita a teoria do ethos musical afirmando que se a muacutesica tem algum
efeito em nossa alma isso se daacute em funccedilatildeo daquilo que noacutes associamos a ela que por si
mesma natildeo tem poder algum sobre nossa alma a natildeo ser o de distraiacute-la Essa criacutetica ao papel
eacutetico da muacutesica eacute muito parecida com aquela que eacute adotada por Sexto Empiacuterico que
apresenta argumentos semelhantes aos do De Musica em sua argumentaccedilatildeo Entretanto como
veremos nem por isso os epicuristas estatildeo livres de serem considerados dogmaacuteticos pelo
ceacutetico16
13 A perspectiva defendida por Hanslick conhecida como ldquoformalistardquo sustenta ldquoa crenccedila de que acompreensatildeo da natureza da muacutesica e de seu valor natildeo eacute encontrada em seus efeitos nos vislumbres que elapermite nos sentimentos que desperta ou ainda nas conexotildees com qualquer coisa fora dela mesma Seuvalor sob essa visatildeo eacute estritamente seu estritamente intriacutenseco localizado inteiramente dentro de umdomiacutenio puramente musicalrdquo (Bowman 1998 p 133)
14 Nesta pesquisa natildeo nos ateremos agraves diferenccedilas teacutecnicas entre os dois modos de abordar a ciecircncia harmocircnica15 A observaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical eacute fundamental para a compreensatildeo da
refutaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave ciecircncia da muacutesica16 Eles satildeo considerados dogmaacuteticos porque sustentam firmemente a tese de que a muacutesica natildeo eacute uacutetil para a
felicidade A relaccedilatildeo entre as ideias apresentadas por Filodemo no De Musica e a primeira parte do Contraos Muacutesicos seraacute analisada na seccedilatildeo 52
14
Dado o panorama histoacuterico do conceito de mousike apresentado no capiacutetulo inicial que
teve como intuito evidenciar sua amplitude e esclarecer as diversas facetas do conceito que
estaacute em jogo precisamos nos voltar ainda agrave filosofia ceacutetica para compreendermos as razotildees
pelas quais a mousike tal como eacute comumente concebida eacute refutada por Sexto Empiacuterico
A Filosofia tradicionalmente eacute relacionada agrave busca pela verdade e quando falamos
em Filosofia antiga associamos rapidamente essa busca a filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles
Mas ainda na Antiguidade houve quem desconfiasse da possibilidade de se apreender a
verdade sobre as coisas O ceticismo pirrocircnico eacute uma dessas correntes filosoacuteficas que
questionam tal possibilidade Primeiramente deve-se enfatizar que o termo ldquoceticismordquo natildeo
tem a ver com descrenccedila mas com investigaccedilatildeo do grego skepsis17 Tomando uma definiccedilatildeo
apresentada por Brochard (2009 p 20) o verdadeiro ceacutetico ldquoeacute aquele que de propoacutesito
deliberado e por razotildees gerais duvida de tudo exceto dos fenocircmenos e se contenta com a
duacutevidardquo18
De acordo com Sexto Empiacuterico o ceticismo pirrocircnico tem por objetivo o combate agrave
precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de se sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe na
realidade externamente agraves nossas representaccedilotildees O ceacutetico observa que as vaacuterias teorias
desenvolvidas pelos filoacutesofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que natildeo
haacute um criteacuterio que nos permita distinguir qual delas eacute verdadeira Em funccedilatildeo disso para cada
afirmaccedilatildeo dogmaacutetica ele apresenta uma afirmaccedilatildeo oposta e o igual peso das teorias colocadas
em oposiccedilatildeo leva-o a um estado de suspensatildeo do juiacutezo19
Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Ciacuteclicos20 os ceacuteticos
tambeacutem se depararam com uma postura dogmaacutetica Sexto Empiacuterico propotildee um ataque agraves
bases de cada uma das disciplinas (mathemata) ensinadas pelos especialistas O Contra os
17 Para uma introduccedilatildeo geral ao Ceticismo Antigo ver Brochard (2009)18 O ceticismo pirrocircnico eacute assim nomeado ldquoa partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de
forma mais significativa do que seus predecessoresrdquo (HP I 3) Pirro (360 ndash 270 aC) contemporacircneo deAlexandre Magno e de Aristoacuteteles eacute tomado como fundador dessa tradiccedilatildeo ceacutetica natildeo deixou nada escritomas seu modo de vida e seus ensinamentos serviram como base para essa corrente do ceticismo Oceticismo pirrocircnico foi desenvolvido posteriormente sobretudo por meacutedicos a partir do primeiro seacuteculo daEra Cristatilde A obra de Sexto Empiacuterico eacute uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrocircnico Sobre suabiografia pouco se sabe Supotildee-se a partir de seus escritos que ele foi um meacutedico da escola empiacuterica demedicina e que viveu provavelmente por volta da segunda metade do seacuteculo II dC mas natildeo se sabe ondeCf Floridi (2002 p 3-7) Sobre Pirro ver Brochard (2009 p 65-88) sobre a escola ceacutetica ver Brochard(2009 p 235-247)
19 A obra principal de Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas eacute dividida em trecircs livros o primeiro visafazer uma apresentaccedilatildeo geral do que eacute o ceticismo (HP I) e os seguintes procuram ldquofazer objeccedilotildees a cadaparte da assim chamada Filosofiardquo (HP I 6) As partes da Filosofia a que Sexto se refere satildeo a Loacutegica (HPII) a Fiacutesica (HP III 1-167) e a Eacutetica (HP III 168-281) Elas tambeacutem satildeo abordadas no Contra osDogmaacuteticos composto pelos livros Contra os Loacutegicos (M VII-VIII) Contra os Fiacutesicos (M IX-X) e Contraos Eacuteticos (M XI)
20 Os Estudos Ciacuteclicos eram o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educaccedilatildeo propedecircutica para aFilosofia Ver seccedilatildeo 42
15
Professores (M I-VI) destina-se aos professores dessas disciplinas21 que faziam parte dos
Estudos Ciacuteclicos entre elas a muacutesica Mas Sexto natildeo nos daacute indicaccedilotildees muito precisas a
respeito do que satildeo para ele os Estudos Ciacuteclicos porque sua exposiccedilatildeo ldquodirige-se agravequeles
que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nessas questotildeesrdquo (M I 7) Em funccedilatildeo disso exploramos
o significado dessa expressatildeo em outras fontes do periacuteodo mostrando seu papel fundamental
para a compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves tekhnai tendo em vistao que os Estudos
Ciacuteclicos abrangem especificamente o sentido de tekhne que Sexto Empiacuterico potildee em jogo
Para compreendermos os motivos que levam Sexto Empiacuterico a empreender um ataque
(quase fervoroso) agraves disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos teremos de observar o Contra os
Professores sob uma dupla perspectiva Por um lado devemos atentar ao fato de que os
conteuacutedos discutidos natildeo satildeo refutados por si mesmos mas enquanto disciplinas que fazem
parte de um ciclo de Estudos ensinadas de acordo com determinados meacutetodos e crenccedilas Por
outro devemos observar os motivos pelos quais a refutaccedilatildeo a essas disciplinas faz-se
necessaacuteria dentro do ceticismo
Sexto Empiacuterico parece lidar com uma dicotomia entre teoria e praacutetica do conhecimento
teacutecnico na Antiguidade22 Ele parte da definiccedilatildeo23 de tekhne enquanto um conhecimento que
seja uacutetil para a vida Sua refutaccedilatildeo eacute direcionada exclusivamente ao acircmbito teoacuterico porque
este para ele estaacute impregnado de dogmatismo e natildeo parece cumprir os requisitos da
definiccedilatildeo de tekhne aprovada pelo ceacutetico visto que haacute um sentido ligado ao criteacuterio de accedilatildeo
deste em que o conhecimento teacutecnico natildeo eacute considerado dogmaacutetico Buscamos explicar
como o ceacutetico refuta as tekhnai no Contra os Professores como um todo e porque ele faz isso
a fim de resgatar por fim a originalidade do pensamento ceacutetico em relaccedilatildeo agraves tekhnai Ele
considera vaacutelido apenas o acircmbito praacutetico de cada uma das tekhnai justamente aquele que era
colocado em um niacutevel inferior pelos pensadores da Antiguidade
Na terceira seccedilatildeo analisamos de modo detalhado o texto do Contra os Muacutesicos
Partimos da distinccedilatildeo entre os sentidos de muacutesica que Sexto Empiacuterico apresenta Opotildee teoria
e praacutetica musical e restringe sua criacutetica agrave primeira Seu texto abrange dois aspectos da teoria
musical para os quais ele utiliza tambeacutem dois tipos de argumentaccedilatildeo No que diz respeito ao
primeiro a discussatildeo acerca da utilidade da muacutesica investigamos o uso que Sexto Empiacuterico
21 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido por ldquoensinamentordquo ldquoconteuacutedo de aprendizadordquo ldquodisciplinardquo Nestetexto utilizamos tambeacutem os termos ldquociecircncias especializadasrdquo (expressatildeo que aparece tambeacutem na traduccedilatildeode Bury) e ldquoartesrdquo porque mathemata nesse caso satildeo os ensinamentos a respeito de determinadas ciecircnciasou artes
22 Essa hierarquia entre teoria e praacutetica pode ser observada em todas as aacutereas do conhecimento especializado23 A definiccedilatildeo de uma tekhne em funccedilatildeo de sua utilidade eacute bastante comum Sexto Empiacuterico parte
assumidamente da definiccedilatildeo dada pelos filoacutesofos estoicos que eacute muito parecida com a de Aristoacuteteles Ver p54
16
faz de argumentos que satildeo semelhantes aos de Filodemo e sustentamos a tese de que mesmo
ao tratar da utilidade da muacutesica o ceacutetico permanece dentro do escopo da teoria musical No
que concerne agrave segunda parte da obra apresentamos alguns conceitos teacutecnicos da ciecircncia
harmocircnica que satildeo refutados pelo autor e buscamos explicar os argumentos utilizados Por
fim evidenciamos que o interesse ceacutetico natildeo estava de modo algum voltado agraves questotildees
musicais mas ao combate agrave precipitaccedilatildeo dos dogmaacuteticos em afirmar teses sobre a natureza da
muacutesica
Texto grego e traduccedilatildeo
Eacute escasso o nuacutemero de traduccedilotildees modernas do Contra os Professores Temos a
espanhola de J B Cavero a italiana de A Russo a francesa de D Delattre e a inglesa de R
G Bury24 Especificamente do Contra os Muacutesicos haacute uma traduccedilatildeo parcial em liacutengua
portuguesa no artigo de A R Pereira (1996) uma francesa de C Ruelle e uma em liacutengua
inglesa de D D Greaves
A ediccedilatildeo elaborada por Greaves apresenta a traduccedilatildeo comentada da obra e uma
introduccedilatildeo que abrange as principais fontes de Sexto Empiacuterico Aleacutem disso as notas de
rodapeacute da versatildeo relacionam os argumentos do autor com as suas fontes servindo como
referecircncia para o presente trabalho
Para nossa traduccedilatildeo tomamos como base a ediccedilatildeo do texto grego tal como
apresentada por Greaves devido ao seu extenso trabalho de comparaccedilatildeo de manuscritos As
exceccedilotildees satildeo informadas em notas agrave traduccedilatildeo
24 Sobre a transmissatildeo da obra de Sexto Empiacuterico manuscritos e ediccedilotildees latinas ver Floridi (2002)
17
2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
21 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
O Contra os Muacutesicos inicia com a distinccedilatildeo entre os sentidos teoacuterico praacutetico e
metafoacuterico do termo ldquomuacutesicardquo Ele eacute utilizado no sentido teoacuterico enquanto ldquociecircncia que lida
com melodias notas e composiccedilatildeo riacutetmica e coisas semelhantesrdquo (M VI 1) praacutetico em
relaccedilatildeo agrave habilidade na execuccedilatildeo de instrumentos tal como quando chamamos
instrumentistas de ldquomuacutesicosrdquo e por fim no sentido metafoacuterico tomado como adjetivo
quando algo eacute considerado ldquomusicalrdquo Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma
Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute apenas nesse sentido que ele pretende refutar a
muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o mais completordquo (M VI 3)
A refutaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica estrutura-se em dois momentos principais no
primeiro haacute a criacutetica agraves opiniotildees a respeito do papel psicagoacutegico da muacutesica e no segundo a
refutaccedilatildeo de aspectos teacutecnicos da teoria musical25
22 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
No que concerne agrave discussatildeo sobre a utilidade da muacutesica Sexto argumenta contra as
opiniotildees comuns acerca dela concentrando-se sobretudo na refutaccedilatildeo agrave teoria do ethos
musical semelhante agravequela feita pelos epicuristas que a consideravam um conteuacutedo natildeo
necessaacuterio para atingir a felicidade (eudaimonia)
221 As opiniotildees comuns acerca da utilidade da muacutesica (sect 7-18) e sua refutaccedilatildeo (sect 19-28)
a) O autor apresenta exemplos que podem ser encontrados em diversas fontes da
Antiguidade sobre o modo como a muacutesica afeta a alma Esses exemplos estatildeo ligados agrave
teoria do ethos musical e defendem a utilidade da muacutesica para refrear as paixotildees e promover a
virtude
b) Contra isso ele faz uma refutaccedilatildeo geral agrave ideia de que a muacutesica tem uma
25 Cf Greaves (1986 p 19-24)
18
capacidade inerente de afetar a alma e em seguida refuta especificamente cada um dos
exemplos mencionados
222 A utilidade da muacutesica em relaccedilatildeo agrave paideia agrave Filosofia e ao ethos (sect 29-30) e sua
refutaccedilatildeo (sect 31-37)
a) Sexto apresenta argumentos a respeito da importacircncia da muacutesica em sua relaccedilatildeo
com a paideia a Filosofia e novamente o ethos tratando da relaccedilatildeo entre a muacutesica e a
Filosofia do papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes da relaccedilatildeo entre a harmonia e
a ordem do cosmos da necessidade da educaccedilatildeo musical e da inerecircncia das qualidades eacuteticas
na melodia (sect 29-30)
b) Para tais argumentos eacute apresentada uma contra-argumentaccedilatildeo que visa refutar a
necessidade dessas relaccedilotildees (sect31-37)
23 REFUTACcedilAtildeO AOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
Sexto Empiacuterico apresenta alguns dos principais conceitos da teoria musical e
argumenta contra a existecircncia dos seus princiacutepios baacutesicos
231 Os conceitos de som nota intervalo ethos (sect 38-51) e argumentaccedilatildeo contra a existecircncia
do som (sect 52-58)
a) Sexto aborda a melodia (sect 38-51) partindo de uma definiccedilatildeo de muacutesica (sect 38)
muito semelhante agrave de Aristoacutexeno Aquele distingue entre um som musical e um som natildeo
musical Ao conceito de melodia estatildeo ligados os de intervalo e de ethos Sexto considera que
o ldquocaraacuteter eacute um certo gecircnero de melodiardquo (M VI 48) e visto que os intervalos nascem da
uniatildeo das notas o caraacuteter tambeacutem surge delas
b) Visto que natildeo haacute caraacuteter (ethos) musical sem notas e as notas satildeo ldquosom meloacutedicordquo
Sexto para refutar os conceitos da teoria musical argumenta contra a existecircncia do som
19
232 A ciecircncia do ritmo e os argumentos contra a existecircncia do tempo (sect 59-68)
a) Apresentaccedilatildeo do conceito de ritmo enquanto quantidade de tempo
b) Para refutar sua existecircncia Sexto apresenta algumas definiccedilotildees que entram em
conflito com aquela apresentada primeiro tendo em vista que o conceito de tempo estaacute
contido na definiccedilatildeo de ritmo26 Se o tempo natildeo pode ser definido deixam de ser vaacutelidos
todos os conceitos de teoria musical que dependem deste conceito
26 No que concerne ao ethos riacutetmico a melodia tal como tratada por Sexto jaacute abrange tambeacutem o ritmo Dessemodo a negaccedilatildeo do ethos na melodia implica a negaccedilatildeo dos ethe riacutetmicos
20
3 MOUSIKE
31 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO
O conceito de mousike estaacute presente nas mais diversas aacutereas do pensamento na
Antiguidade como a medicina astronomia religiatildeo filosofia poesia meacutetrica danccedila e
pedagogia
O termo na verdade deriva da palavra Mousa e para os antigos gregos durantemuito tempo ele designou um complexo de faculdades espirituais e intelectuais quehoje noacutes chamamos de lsquoartesrsquo e que estavam sob o patronato das Musas emespecial a poesia liacuterica que era uma mescla daquilo que noacutes entendemos por muacutesicae poesia (Rocha 2009 p 139)
Inicialmente enquanto fenocircmeno sensiacutevel a mousike abrangia palavra harmonia e
ritmo (Platatildeo Rep 398 C) e natildeo havia uma palavra que designasse exclusivamente a ldquoarte
dos sonsrdquo (o termo soacute passou a ter esse significado no seacuteculo IV aC) Aleacutem disso a mousike
era abordada tambeacutem sob uma perspectiva metafiacutesica
Se consideramos o conceito de mousike como um desses conceitos de grandeamplitude podemos supor sua compreensatildeo em duas instacircncias no acircmbitoparticular quando se referindo agraves especificidades da linguagem musical e geralultrapassando esse niacutevel e se entrelaccedilando aos significados de outros conceitos demesmo patamar como harmonia cosmos e logos (Tomaacutes 2002 p38)
O conceito de mousike deve ser compreendido sob essas duas perspectivas enquanto
fenocircmeno sonoro (palavra harmonia e ritmo e depois especificamente arte dos sons) e
enquanto conceito metafiacutesico ldquodaiacute que ele natildeo enuncie apenas o que soa mas tambeacutem
aquilo que permite o soar ou seja as leis de organizaccedilatildeo um princiacutepio universal que
subsume toda particularidaderdquo (Tomaacutes 2002 p 38)
A teorizaccedilatildeo sobre a mousike comeccedila com a escola pitagoacuterica no seacuteculo VI aC Para
os pitagoacutericos27 a teoria musical em seu sentido lato tem significado cosmoloacutegico abrange
as leis de organizaccedilatildeo o princiacutepio universal que rege o cosmos e natildeo estaacute diretamente ligada
ao fenocircmeno sonoro Em seu sentido estrito trata-se do fenocircmeno sonoro que imita no
27 Eacute importante enfatizar que o termo ldquopitagoacutericosrdquo abrange um conjunto de ideias que natildeo diz respeitoestritamente a Pitaacutegoras e seus seguidores mas nomeia teoacutericos que no que concerne agrave harmonike tinhamldquocertas visotildees e atitudes em comumrdquo Cf Barker (1989 p 5)
21
mundo fenomecircnico a harmonia que rege todo o cosmos28
Nos fragmentos de Filolau de Crotona filoacutesofo da escola pitagoacuterica do seacuteculo V aC
lemos que a ldquoHarmonia vem a ser em todos os sentidos a partir dos opostos pois harmonia eacute
uniatildeo das coisas heterogecircneas e concordacircncia das coisas que estatildeo em desacordordquo29 Teacuteon de
Esmirna apresenta a mesma definiccedilatildeo referindo-se aos ldquoPitagoacutericos os quais foram em
muitas coisas seguidos por Platatildeordquo definindo a mousike com os mesmos conceitos de
harmonia30
Anderson (1966 p 37) chama atenccedilatildeo para um dos excertos de Filolau que segundo
ele mostra ldquoa importacircncia da teoria do Nuacutemero na explicaccedilatildeo da muacutesica e todas outras
atividadesrdquo
O Nuacutemero ajustando todas as coisas dentro da alma atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevelas faz reconheciacuteveis e comparaacuteveis umas com as outras Vocecirc pode ver a naturezado Nuacutemero e seu poder em accedilatildeo natildeo soacute na existecircncia supernatural e divinamastambeacutem em todas as atividades e palavras humanas ambos atraveacutes de todaproduccedilatildeo teacutecnica e tambeacutem na Muacutesica31
As investigaccedilotildees a respeito da muacutesica feitas pelos pitagoacutericos natildeo estavam
diretamente voltadas ao fenocircmeno sonoro As pesquisas acerca da harmonike ligam-se agraves
ideias de que ldquoo universo eacute ordenado que a perfeiccedilatildeo da alma humana depende de sua
apreensatildeo e de assimilar a si proacutepria a essa ordem e que a chave para uma compreensatildeo de
sua natureza reside no Nuacutemerordquo (Barker 1989 p6)
A mousike enquanto fenocircmeno sonoro soacute entra em discussatildeo para os pitagoacutericos
porque as relaccedilotildees intervalares percebidas podem ser expressas tambeacutem em foacutermulas
numeacutericas simples De acordo com Barker
Assim essas relaccedilotildees harmocircnicas fundamentais correspondem a relaccedilotildeesmatemaacuteticas fundamentais e evidentemente elegantes e incentivam a ideia de quetodos os intervalos propriamente harmocircnicos recebem seu status musical por causade suas propriedades matemaacuteticas (hellip) A ordem encontrada na muacutesica eacute umaordem matemaacutetica os princiacutepios da coerecircncia de um sistema harmocircnico coordenadosatildeo princiacutepios matemaacuteticos E visto que esses satildeo princiacutepios que geram uma belezaperceptiacutevel e um sistema de organizaccedilatildeo satisfatoacuterio talvez sejam essas mesmasrelaccedilotildees matemaacuteticas ou alguma extensatildeo delas que subjazem agrave admiraacutevel ordem
28 Cf Tomaacutes (2002 p 17)29 Filolau eacute citado em Nicocircmaco Introductio Arithmetica (II 191 TLG) ldquoἁρμονία δὲ πάντως ἐξ ἐναντίων
γίνεται ἔστι γὰρ ἁρμονία πολυμιγέων ἕνωσις καὶ δίχα φρονεόντων συμφρόνησιςrdquo30 Teacuteon de Esmirna De utilitate mathematicae (p 12 10 TLG) ldquoκαὶ οἱ Πυθαγορικοὶ δέ οἷς πολλαχῆι ἕπεται
Πλάτων τὴν μουσικήν φασιν ἐναντίων συναρμογὴν καὶ τῶν πολλῶν ἕνωσιν καὶ τῶν δίχα φρονούντωνσυμφρόνησινrdquo
31 Fr 44 B 11 (DK) apud Anderson (1966 p 37)
22
do cosmos e agrave ordem agrave qual a alma humana pode aspirar (Barker 1989 p 6)32 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA
Apesar da conexatildeo entre muacutesica e metafiacutesica implicada no conceito de mimesis de
acordo com Lippman (1975 p 88) ldquoo pensamento antigo estaacute focado antes nos valores
poliacuteticos e educacionais da muacutesica sonora do que na sua ontologiardquo Embora ambas estejam
baseadas em uma concepccedilatildeo ampla de mousike enquanto a metafiacutesica da harmonia privilegia
o estudo da harmonike o papel psicagoacutegico32 da muacutesica estaacute estritamente ligado ao fenocircmeno
sensiacutevel e por isso ligado ao conceito de mousike enquanto palavra harmonia e ritmo33
No que diz respeito ao papel da muacutesica na educaccedilatildeo grega muito embora os relatos
apareccedilam na literatura grega desde Homero34 foi com Daacutemon que a teoria sobre o papel
psicagoacutegico da muacutesica ganhou forma De acordo com Anderson
em grande parte a histoacuteria do ethos na Greacutecia eacute ela mesma um enigma masencontramos sugestotildees da teoria em autores do seacuteculo V Daacutemon natildeo inventou ateoria do ethos ele a expandiu e codificou a um grau notaacutevel e talvez incomparaacutevel(Anderson 1966 p 42)
A respeito da teoria atribuiacuteda a ele temos apenas testemunhos posteriores Daacutemon eacute
considerado um sofista do final do seacuteculo V aC para ele ldquomuacutesica e danccedila surgem
necessariamente quando a alma eacute movida de algum modo muacutesicas e danccedilas belas e livres
criam uma alma semelhante e as de tipo contraacuterio criam um tipo contraacuterio de almardquo 35 Cada
tipo de muacutesica variando em suas harmoniai e ritmos tem o poder de representar diferentes
qualidades do caraacuteter virtudes e viacutecios36 Por isso segundo os relatos de Platatildeo e Ateneu
32 Conceito formado a partir dos termos psykhe (alma) e agoge (caminho) psicagogia significa literalmenteldquoconduccedilatildeo da almardquo Em Luciano por exemplo o termo estaacute ligado agrave conduccedilatildeo dos mortos para o HadesEm rituais religiosos significa encantar conduzir as almas dos mortos e dos vivos O conceito de psicagogiano contexto educacional aparece no Fedro de Platatildeo ligado agrave retoacuterica Primeiramente Soacutecrates pergunta sea arte da oratoacuteria natildeo seria uma psicagogia ldquoum modo de conduzir as almas por intermeacutedio do discursordquo(Platatildeo Fedro 261 A) Ao que ele afirma que ldquovisto que a funccedilatildeo proacutepria do discurso eacute a de ser um modode conduzir as almas uma psicagogia aquele que quer ser um dia um orador de talento devenecessariamente saber da alma as formas que tem ()rdquo (Platatildeo Fedro 271 C-D) Do mesmo modotambeacutem a mousike teria o poder de conduzir a alma Segundo Moutsopoulos (1959 p 259) ldquoo mecanismopelo qual a muacutesica se introduz na alma exposto no Timeu ilustra o modo de acordo com o qual Platatildeo soba influecircncia das doutrinas hipocraacuteticas considera o ritmo dos movimentos corporais como provocador deum apaziguamento alegre agrave alma excitada ou em estado de distuacuterbiordquo No que diz respeito agrave muacutesica apsicagogia eacute o ldquoresultado exercido sobre a alma pelo bom ritmo e pela simetriardquo (Moutsopoulos 1959 p261) Ver Platatildeo Timeu (80 A-B) a respeito da muacutesica Goacutergias (82 B) a respeito da poesia Para maisreferecircncias ver Moutsopoulos (1959 p 259-61)
33 Cf Tomaacutes (2002 p 41) Lippman (1975 p 87-90)34 Cf Homero Iliacuteada (I 472 601) Odisseia (VIII 44-45 XXII 344)35 Fr 37 B 6 apud Anderson (1966 p 42)36 Cf Aristoacutefanes Tesmoforiantes (146) Aristides Quintiliano De Mus (8025)
23
para Daacutemon a muacutesica tem poder moral e as mudanccedilas na muacutesica produzem mudanccedilas nas
estruturas sociais e poliacuteticas37
Se a muacutesica eacute considerada resultado de certo movimento da alma eacute a natureza da
alma que determina a natureza dos movimentos que ela cria e daqueles com os quais ela teraacute
afinidade quando forem ouvidos (Cf Barker 1984 p 169)38 Sobre isso Aristides
Quintiliano considera que nas harmoniai transmitidas por Daacutemon as alteraccedilotildees nas
sequecircncias de notas acontecem porque cada harmonia diferente era uacutetil39 de acordo com o
caraacuteter de cada alma particular
Tais ideias sobretudo no que diz respeito ao poder da muacutesica e sua funccedilatildeo na
sociedade satildeo levadas agraves uacuteltimas consequecircncias na Repuacuteblica de Platatildeo40
deve-se ter cuidado com a mudanccedila para um novo gecircnero musical que pode pocircrtudo em risco Eacute que nunca se abalam os gecircneros musicais sem abalar as mais altasleis da cidade como Dacircmon afirma e eu creio (Platatildeo Rep 424 C)
321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo
Na obra de Platatildeo pode-se observar a estreita relaccedilatildeo entre os dois sentidos do
conceito de mousike O filoacutesofo tal como os pitagoacutericos considera a harmonike sob uma
perspectiva matemaacutetica desvinculada do fenocircmeno sonoro Natildeo obstante o conceito
metafiacutesico de harmonia eacute a chave para a compreensatildeo da teoria do ethos em sua relaccedilatildeo com
a educaccedilatildeo A muacutesica teria o poder de recuperar a harmonia da alma porque imita a harmonia
divina do universo nas almas dos mortais A muacutesica por sua relaccedilatildeo com a harmonia eacute a arte
que tem influecircncia direta no caraacuteter (ethos) do ouvinte penetrando no iacutentimo de sua alma
Platatildeo ocupa-se do desenvolvimento de uma paideia que tem o objetivo de harmonizar a
alma Daiacute a importacircncia para Platatildeo de definir na Repuacuteblica e nas Leis qual o ethos de cada
37 Platatildeo Rep (424 C) Ateneu (628 C)38 A explicaccedilatildeo de como essa mudanccedila acontece se baseia na ideia de que harmoniai de diferentes ethe satildeo
produzidas pela mudanccedila de posiccedilatildeo das notas intermediaacuterias do tetracorde de acordo com a finalidade quese classificava como feminina ou masculina
39 O conceito de utilidade eacute central para a compreensatildeo da mousike enquanto uma das disciplinas dos EstudosCiacuteclicos e tambeacutem para a compreensatildeo da refutaccedilatildeo ceacutetica ao papel psicagoacutegico da muacutesica
40 Embora os reflexos da teoria damoniana do ethos sejam evidentes na obra de Platatildeo segundo Anderson(1966 p 40) ldquomostra-se muito difiacutecil infelizmente lidar com a noccedilatildeo de similaridade enquanto um meioefetivo de construir o caraacuteter atraveacutes da melodia Enquanto alguma conexatildeo com a mimesis parece ser certahaacute boas razotildees para se tratar a similaridade (homoiotes) como um princiacutepio originalmente damonianoligeiramente diferente da mimesis platocircnica que o incorporourdquo A delimitaccedilatildeo das particularidades da teoriade Daacutemon que foram absorvidas por Platatildeo foge ao escopo de nossa investigaccedilatildeo
24
harmonia e de cada ritmo41
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta o tipo de educaccedilatildeo que algueacutem deve receber antes de
estudar Filosofia As ciecircncias matemaacuteticas que devem ser ensinadas satildeo aritmeacutetica
geometria astronomia e harmonike42 Essa uacuteltima tem uma relaccedilatildeo estreita com a concepccedilatildeo
pitagoacuterica43 Nesse sentido para Platatildeo qualquer arte quando privada do nuacutemero e da
medida eacute deixada agrave mercecirc dos sentidos e segundo ele a muacutesica eacute um claro exemplo disso 44
Eacute esse para ele o caso dos teoacutericos empiristas que em oposiccedilatildeo aos pitagoacutericos tomavam
somente o fenocircmeno sonoro como base para a ciecircncia musical medindo uns pelos outros os
acordes e os sons que satildeo ouvidos45
Assim como para os pitagoacutericos para Platatildeo a harmonike estaacute ligada agrave astronomia e
soacute diz respeito agrave muacutesica na medida em que os intervalos musicais podem ser descritos como
relaccedilotildees matemaacuteticas
Eacute provaacutevel que assim como os olhos foram moldados para a astronomia os ouvidosforam formados para o movimento harmocircnico e as proacuteprias ciecircncias satildeo irmatildes umada outra tal como afirmam os Pitagoacutericos e noacutes oacute Glaacuteucon concordamos (PlatatildeoRep 530 D)
Mesmo assim segundo Barker o estudo da harmonike eacute fundamental para a
compreensatildeo dos efeitos da muacutesica
O propoacutesito da harmonike na Repuacuteblica Livro VII e no Timeu eacute nos guiar emdireccedilatildeo agrave compreensatildeo dos princiacutepios que governam a estrutura da realidade comoum todo e fornecer uma forma de entendimento que iraacute nos ajudar a restaurarnossas proacuteprias almas distorcidas agrave sua perfeiccedilatildeo original (Barker 2007 p 311)
Embora a ciecircncia harmocircnica seja um estudo abstrato distante do fenocircmeno sonoro e
por isso mais elevado satildeo os efeitos da muacutesica na alma do homem e consequentemente na
sociedade que tambeacutem para Platatildeo importam na vida praacutetica
No Timeu o filoacutesofo relaciona estruturas harmocircnicas agrave constituiccedilatildeo do universo e da
41 A Repuacuteblica e as Leis satildeo as principais fontes sobre o papel psicagoacutegico da muacutesica na Filosofia de PlatatildeoEssas obras tratam de uma sociedade ideal e muitas das coisas condenadas por Platatildeo faziam parte darealidade de sua eacutepoca Assim eacute tanto a partir das teorias discutidas por Platatildeo (o pitagorismo e a teoria doethos musical) quanto em funccedilatildeo de suas criacuteticas agrave muacutesica de seu tempo que podemos compreenderquestotildees importantes sobre o papel da muacutesica e a relevacircncia da teoria do ethos musical
42 Satildeo essas as disciplinas que vieram a compor os Estudos Ciacuteclicos ainda na Antiguidade e posteriormenteo quadrivium das Artes Liberais Ver seccedilatildeo 42
43 Muito embora no livro VII Platatildeo critique os pitagoacutericos por natildeo abstraiacuterem o suficiente do acircmbito sonoro44 Cf Platatildeo Filebo (55 E ndash 56 A)45 Cf Platatildeo Rep (531 A) Aristoacutexeno algum tempo depois estabeleceu uma teoria musical baseada no
fenocircmeno sonoro mas com um rigor cientiacutefico muito maior do que o dos empiricistas criticados por Platatildeo
25
alma humana A muacutesica (enquanto fenocircmeno sonoro) foi dada para noacutes pelas Musas em
funccedilatildeo da harmonia que se move de maneira anaacuteloga agraves nossas almas e natildeo em funccedilatildeo do
prazer irracional tal como de acordo com o autor se considerava em sua eacutepoca A muacutesica
serviria para auxiliar o movimento da alma em direccedilatildeo agrave ordem e agrave concordacircncia quando
essa tivesse perdido sua harmonia46
Se a muacutesica tem essa relaccedilatildeo direta com o movimento da alma uma muacutesica ruim
levaria agrave discordacircncia e confusatildeo na alma Por oposiccedilatildeo quando os sons satildeo executados
harmonicamente eles ldquoproporcionam prazer (hedone) aos brutos e felicidade (euphrosyne)
aos inteligentes porque nos movimentos mortais se produz uma imitaccedilatildeo da harmonia
divinardquo (Platatildeo Ti 80B)47 De acordo com Barker as combinaccedilotildees musicais de sons ldquonatildeo
podem dar prazer [intelectual] agraves pessoas que falham em apreciar a conexatildeo desses padrotildees
sonoros com a harmonia da Alma do Mundordquo (Barker 2007 p 326)
Contudo o prazer irracional ou intelectual natildeo eacute o que define o ethos musical Os
homens tecircm prazer com as muacutesicas a que eles estatildeo acostumados Acontece que a alma eacute
suscetiacutevel agraves melodias sejam ldquoboasrdquo ou ldquoruinsrdquo Para o filoacutesofo a muacutesica que produz prazer
irracional aquela que ldquodesarmonizardquo a alma faz os homens piores Jaacute a muacutesica que
harmoniza a alma produz homens melhores48
Se para Platatildeo ldquoa verdadeira funccedilatildeo de toda educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento da alma e
harmonizaccedilatildeo de seus elementosrdquo (Barker 1984 p 127) ela deve abranger o corpo e a alma
Por isso na Repuacuteblica Platatildeo divide-a em duas partes a saber a ginaacutestica e a mousike
(enquanto veiacuteculo da poesia)
Depois da muacutesica eacute na ginaacutestica que se deve educar os jovens (hellip) A mim natildeo meparece ser o corpo por perfeito que seja que pela sua excelecircncia49 torne a almaboa mas pelo contraacuterio a alma boa pela sua excelecircncia permite ao corpo ser omelhor possiacutevel (Platatildeo Rep 403 C - D)
Platatildeo define a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne) como os objetivos
eacuteticos da educaccedilatildeo50 A educaccedilatildeo pela muacutesica e pela ginaacutestica natildeo tem como finalidade o
corpo mas se daacute em funccedilatildeo da alma A ginaacutestica gera no homem certa rusticidade que
46 Cf Platatildeo Ti (47 C - E) Anderson (1966 p 60)47 Podemos distinguir entre hedone como o prazer irracional e euphrosyne (traduzido aqui por ldquofelicidaderdquo)
enquanto prazer intelectual 48 Cf Platatildeo Leis (802 C - D) Ti (43 A ndash 44 C) Ver tambeacutem Barker (1984 p 124)49 ldquoExcelecircnciardquo traduz ldquoareterdquo comumente traduzido tambeacutem por ldquovirtuderdquo50 O desenvolvimento de tais virtudes na alma por meio da muacutesica seraacute alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica na primeira
parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37)
26
quando bem educada vem a ser bravura e a muacutesica certa brandura que bem educada tem
uma natureza filosoacutefica sendo temperada e ordenada51 Essas qualidades satildeo consideradas
necessaacuterias e devem ser harmonizadas A alma que as potildee em harmonia eacute considerada
temperante e corajosa e a que natildeo as potildee eacute covarde e ruacutestica
No que concerne agrave muacutesica ao discutir a educaccedilatildeo no livro III da Repuacuteblica Platatildeo
apresenta o modo como as harmoniai e os ritmos refletem diferentes disposiccedilotildees da alma e
afirma em funccedilatildeo disso seu poder de afetar o desenvolvimento do caraacuteter Cada harmonia
determina um padratildeo de afinaccedilatildeo para o instrumento e para a voz que traz consigo certos
atributos eacuteticos ldquoimitando disposiccedilotildees psicoloacutegicas desejaacuteveis ou indesejaacuteveis e moldando a
alma do ouvinte de acordo com elasrdquo (Barker 2007 p 309)
Em vista desse poder da muacutesica toda praacutetica musical que pudesse corromper a alma
deveria ser banida Tais restriccedilotildees relacionam-se aos compositores considerados ldquomodernosrdquo
na eacutepoca em que Platatildeo vivia52 Nas Leis o filoacutesofo condena os compositores que misturam
palavras melodias e ritmos de caraacuteteres opostos imitam sons diversos afastam o ritmo da
melodia53 (recitando os textos dentro de uma meacutetrica mas sem um contorno meloacutedico) e
afastam o ritmo e a melodia da palavra (praacutetica de muacutesica instrumental) Em suma eles usam
os instrumentos musicais para outros propoacutesitos aleacutem do acompanhamento da danccedila e do
canto e o uso que fazem dos instrumentos eacute considerado vulgar e inculto
Essas caracteriacutesticas da ldquomuacutesica novardquo satildeo repetidamente condenadas pelos que
escreveram sobre muacutesica ao longo dos seacuteculos seguintes em vista da idealizaccedilatildeo de uma
muacutesica ldquopurardquo que remete ao periacuteodo arcaico Segundo Barker
todas as complexidades sutis e sofisticaccedilotildees agradaacuteveis esteticamente introduzidasna muacutesica pelos compositores ldquomodernosrdquo devem ser rejeitadas em favor de umasimplicidade nobre que supotildee-se que tenha caracterizado a muacutesica de uma era deouro perdida (Barker 2007 p 309)
As criacuteticas de Platatildeo visavam combater a ideia de que a muacutesica estaacute mais ligada ao
prazer individual do que aos valores morais tradicionais uma alusatildeo direta agrave muacutesica de seu
periacuteodo que era considerada hedonista lasciva e virtuosiacutestica Natildeo que o prazer fosse
absolutamente condenado por Platatildeo O prazer eacute considerado um acompanhamento
51 A questatildeo da relaccedilatildeo entre muacutesica e filosofia eacute utilizada por Sexto Empiacuterico para refutar a utilidade damuacutesica Cf M VI 13 36
52 Sexto Empiacuterico retoma essa oposiccedilatildeo entre muacutesica antiga e moderna Cf M VI 14-553 Platatildeo enfatiza a importacircncia da palavra em relaccedilatildeo ao ritmo e agrave melodia advertindo que ldquodevem forccedilar-se
os peacutes e a melodia a seguirem as palavras e natildeo estas agravequelesrdquo (Platatildeo Rep 400 A)
27
importante da muacutesica mas apenas enquanto subordinado agrave finalidade moral54
Eacute por isso que Platatildeo adverte na Repuacuteblica que os cuidadores da cidade devem zelar
para que a educaccedilatildeo natildeo venha a se corromper ldquoque a tenham sob vigilacircncia em todas as
situaccedilotildees para que natildeo haja inovaccedilotildees contra as regras estabelecidas na ginaacutestica nem na
muacutesicardquo (Platatildeo Rep 424 B) Tambeacutem nas Leis o filoacutesofo considera que
visto que ela [a muacutesica] eacute mais estimada do que as outras representaccedilotildees ela requerum tratamento mais cuidadoso entre todas Qualquer um que cometa um engano emrelaccedilatildeo a ela seria muito prejudicado por adotar preferencialmente disposiccedilotildeesruins () (Platatildeo Leis 669 B - C)
O legislador deveraacute distinguir quais satildeo as canccedilotildees adequadas para os homens e para
as mulheres e combinaacute-las aos ritmos e harmoniai adequados ldquoPois seria terriacutevel para o
canto estar errado em toda sua harmonia ou para o ritmo em todo seu ritmo se ele [o
legislador] designasse harmoniai e ritmos que fossem inadequados para as canccedilotildeesrdquo (Platatildeo
Leis 802 E)
Devido agrave estreita relaccedilatildeo entre muacutesica e paideia focada no desenvolvimento moral do
cidadatildeos Platatildeo apresenta especificamente quais harmoniai e ritmos satildeo permitidos e quais
devem ser banidos As harmonias que devem ser evitadas satildeo as ldquochorosasrdquo como ldquoa
mixoliacutedia a sintonoliacutedia e outras que tais (hellip) Portanto essas satildeo as que se deve excluir
visto que satildeo inuacuteteis para as mulheres que conveacutem que sejam honestas para jaacute natildeo falar dos
homensrdquo (Platatildeo Rep 398 E) Aleacutem disso as harmonias lacircnguidas (adequadas aos
banquetes) satildeo as harmonias jocircnia e liacutedia Estas satildeo consideradas efeminadas e tambeacutem
devem ser evitadas
As harmonias que devem ser preservadas na Repuacuteblica em funccedilatildeo de seu poder de
provocar bravura e temperanccedila satildeo a doacuterica pela capacidade de imitar a voz e as inflexotildees
de um homem valente na guerra e em toda a accedilatildeo violenta e a friacutegia que imitaria
aquele que se encontra em atos paciacuteficos natildeo violentos mas voluntaacuterios que usa dorogo e da persuasatildeo (hellip) ou pelo contraacuterio se submete aos outros quando lhepedem o ensinam ou persuadem e tendo assim procedido a seu gosto semsobranceria se comporta com bom senso e moderaccedilatildeo em todas estascircunstacircncias (Platatildeo Rep 399 B - C)
Platatildeo dispensa a fabricaccedilatildeo de instrumentos apropriados para muitas harmonias
ldquologo natildeo teremos de sustentar artiacutefices para fabricarem harpas triacutegonos e toda a espeacutecie de
54 Cf Lippman (1975 p 114) Essa diferenccedila jaacute foi abordada acima (nota 47)
28
instrumentos de muitas cordas e de muitas harmoniasrdquo (Platatildeo Rep 399 C ndash D) Tambeacutem
proiacutebe o uso do aulo por ser aquele que emite o maior nuacutemero de sons De acordo com
Platatildeo satildeo uacuteteis na cidade a lira e a ciacutetara e nos campos a siringe preferindo ldquoApolo e os
instrumentos de Apolo a Maacutersias55 e os seus instrumentosrdquo (Platatildeo Rep 399 E) Fazendo
essas coisas descritas acima afirma Platatildeo ldquopurificamos de novo a cidade que haacute pouco
diziacuteamos estar efeminadardquo (Platatildeo Rep 399 E)
Aleacutem disso Platatildeo determina os ritmos adequados agrave Repuacuteblica buscando observar
ldquoquais satildeo os correspondentes a uma vida ordenada e corajosardquo (Platatildeo Rep 399 E) Para
falar dos ritmos Platatildeo recorre a Daacutemon e os classifica de acordo com suas qualidades eacuteticas
distinguindo aqueles que satildeo ldquoadequados agrave baixeza agrave insolecircncia agrave loucura e aos outros
defeitos e os ritmos que devem deixar-se aos seus contraacuteriosrdquo (Platatildeo Rep 400 B)
Se a muacutesica tem o poder de mover a alma alterando-a em direccedilatildeo ao caos ou agrave ordem
a educaccedilatildeo musical eacute considerada no pensamento Platocircnico fundamental para restaurar a
harmonia na alma movendo o caraacuteter do ouvinte em direccedilatildeo agrave excelecircncia moral
Em suma para Platatildeo ldquoa educaccedilatildeo pela muacutesica eacute capital porque o ritmo e a harmonia
penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente trazendo consigo a perfeiccedilatildeo e
tornando aquela perfeita (hellip)rdquo (Platatildeo Rep 401 D) Por isso
aquele que foi educado nela [na muacutesica] como devia sentiria mais agudamente asomissotildees e imperfeiccedilotildees no trabalho56 ou na conformaccedilatildeo natural e suportando-asmal e com razatildeo honraria as coisas belas e acolhendo-as jubilosamente na suaalma com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito57 (Platatildeo Rep 401E)
322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica Aristoacuteteles discute as definiccedilotildees apresentadas por Platatildeo na Repuacuteblica e
nas Leis Mas enquanto as consideraccedilotildees deste tomam como ponto de partida as teorias
pitagoacutericas a respeito da mousike (focada em princiacutepios matemaacuteticos) para desta teoria
musical extrair as consequecircncias eacuteticas que determinam seu papel na sociedade aquele natildeo se
55 Maacutersias teria sido um auleta friacutegio que desafiou Apolo para uma competiccedilatildeo musical56 O termo traduzido por ldquotrabalhordquo deriva da palavra grega ldquodemiourgeordquo e estaacute ligado neste caso
especificamente agrave praacutetica das artes manuais 57 No texto grego aparece a expressatildeo ldquokalos te kagathosrdquo que significa ldquobelo e bomrdquo O tradutor da ediccedilatildeo de
referecircncia preferiu utilizar o termo ldquoperfeitordquo porque no seacuteculo V aC ldquobelo e bomrdquo traduzia o ideal deperfeiccedilatildeo fiacutesica e moral grego Ver Platatildeo Rep (p 133 n 68 ediccedilatildeo de referecircncia)
29
preocupa na Poliacutetica em determinar as relaccedilotildees entre muacutesica e matemaacutetica ou astronomia
mas como concentra a discussatildeo nos efeitos do fenocircmeno sonoro observados na sociedade
Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo questotildees acuacutesticas a fisiologia da voz e a fisiologia e
psicologia do ouvir Nesse sentido para abordar o papel da muacutesica na educaccedilatildeo o filoacutesofo
observa as experiecircncias humanas ― as opiniotildees os gostos e costumes ― e extrai daiacute um
conhecimento praacutetico distinto da ciecircncia das causas primeiras
Essa cisatildeo entre a visatildeo metafiacutesica do conceito de mousike e sua concepccedilatildeo enquanto
fenocircmeno sonoro aparece nas divergecircncias entre Platatildeo e Aristoacuteteles como resultado de uma
diferenccedila fundamental entre suas concepccedilotildees metafiacutesicas58 Observa-se a partir disso uma
mudanccedila radical no estatuto do conceito de harmonia As verdades a respeito da muacutesica
estavam ligadas ao fato desta ser um reflexo sonoro harmonioso dos nuacutemeros silenciosos que
eram a realidade uacuteltima Por isso para Platatildeo a ciecircncia musical natildeo dizia respeito ao
fenocircmeno musical visto que os proacuteprios fenocircmenos enquanto sujeitos agrave accedilatildeo do tempo satildeo
imperfeitos
No que diz respeito agrave harmonia Aristoacuteteles discorda radicalmente de Platatildeo Ele
rejeita as ideias platocircnicas e a importacircncia do nuacutemero A esse respeito Lippman chama a
atenccedilatildeo para o fato de que a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute
em um grau consideraacutevel uma polecircmica contra as concepccedilotildees pitagoacutericas eplatocircnicas Os Objetos Matemaacuteticos sustenta Aristoacuteteles natildeo podem existirenquanto substacircncias distintas tanto nas coisas sensiacuteveis quanto separados delaseles podem ser separados apenas em pensamento (Lippman 1975 p 116)
Muito embora a harmonia tambeacutem caracterize a concepccedilatildeo de homem na Filosofia de
Aristoacuteteles59 ele ldquonatildeo acredita na harmonia platocircnica do cosmos ou da alma nem acredita
que a presenccedila das mesmas relaccedilotildees matemaacuteticas em dois fenocircmenos tem qualquer
sustentaccedilatildeo real na interconexatildeo ou na natureza desses fenocircmenosrdquo (Lippman 1975 p 118)
A rejeiccedilatildeo da metafiacutesica da harmonia sendo parte vital de uma elaborada rejeiccedilatildeo do
idealismo platocircnico tem como consequecircncia a libertaccedilatildeo da muacutesica da necessidade de uma
ontologia o que faz com que o interesse no proacuteprio fenocircmeno sonoro aumente60 A
58 Enquanto a verdade para Platatildeo eacute algo transcendente para Aristoacuteteles natildeo haacute uma realidade aleacutem doproacuteprio mundo o sensiacutevel deixa de ser engano e passa a ser ponto de partida legiacutetimo para o conhecimento
59 As concepccedilotildees harmocircnicas de Aristoacuteteles satildeo encontradas na fiacutesica na matemaacutetica e nas ciecircncias praacuteticas eprodutivas Cf Lippman (1975 p 117) A harmonia eacute considerada inerente aos oacutergatildeos do sentido enquantoeles correspondem agrave natureza dos objetos sensiacuteveis A beleza fiacutesica e a excelecircncia corporal tambeacutem se datildeodevido agrave harmonia Jaacute a alma nem eacute harmocircnica nem conteacutem harmonia ou nuacutemero Cf Lippman (1975 p120)
60 Cf Lippman (1975 p 115)
30
investigaccedilatildeo especializada e cientiacutefica da muacutesica no pensamento aristoteacutelico faz com que
cada vez mais os atributos do som se tornem importantes
Natildeo obstante no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Aristoacuteteles ainda
reserva a ela um papel importante Todavia sua atuaccedilatildeo na alma deixa de ser um reflexo do
cosmos Para o filoacutesofo a muacutesica surge de uma capacidade humana inata61 Sob essa
perspectiva a mimesis perde seu sentido quase pejorativo de coacutepia imperfeita e passa a ser
considerada uma atitude natural do homem atraveacutes da qual ele aprende Para Aristoacuteteles as
artes mimeacuteticas satildeo as artes ligadas tambeacutem agrave criaccedilatildeo Tal concepccedilatildeo culmina em uma
postura muito menos restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica
Suas observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave muacutesica na Poliacutetica tecircm como ponto de partida as
opiniotildees comuns acerca da muacutesica a praacutetica musical de sua eacutepoca e a educaccedilatildeo musical
comum Tomando a descriccedilatildeo de Barker
A tarefa do filoacutesofo eacute examinar minuciosamente e organizar certa evidecircncia mostrarda maneira mais clara possiacutevel as tensotildees inerentes a ela e se ele puder desativaacute-las mostrando como visotildees opostas podem ser reinterpretadas e relacionadasharmoniosamente enquanto partes diferentes ou aspectos de uma aspiraccedilatildeo comumagrave felicidade e excelecircncia humana (Barker 1984 p 170)62
Das atividades que os homens exercem algumas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo
dignas As atividades necessaacuterias e uacuteteis existem em funccedilatildeo das atividades honrosas
(Aristoacuteteles Pol 1333 A 30) A educaccedilatildeo tem em vista as virtudes que devem ser
desenvolvidas na alma e por isso deve ser uma preocupaccedilatildeo constante do legislador A
questatildeo da educaccedilatildeo dos jovens na eacutepoca de Aristoacuteteles de acordo com o filoacutesofo
tem presentemente gerado controveacutersia na medida em que nem todos estatildeo deacordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos no que se refere agrave virtude eno que diz respeito agrave vida melhor Tambeacutem natildeo eacute evidente se eacute mais adequado que aeducaccedilatildeo vise as capacidades intelectuais ou o caraacuteter da alma (Aristoacuteteles Pol1337 A 30)63
Discute-se diz Aristoacuteteles se a educaccedilatildeo deve visar o que eacute uacutetil para a vida o que eacute
61 Cf Lippman (1975 p 138)62 Note-se que o procedimento de Aristoacuteteles eacute semelhante ao que Sexto Empiacuterico descreve em relaccedilatildeo ao
ceticismo Mas enquanto Aristoacuteteles busca harmonizar as opiniotildees opostas o ceacutetico as toma comoferramenta para gerar a suspensatildeo de juiacutezo que tambeacutem levaria em uacuteltima instacircncia agrave felicidade
63 Aqui por caraacuteter da alma Aristoacuteteles designa as disposiccedilotildees psicoloacutegicas que formam o caraacuteter doindiviacuteduo O termo no original eacute ethos
31
adequado agrave praacutetica da virtude ou ateacute mesmo aquilo que natildeo tem utilidade64 Aleacutem disso
distingue-se entre quais satildeo tarefas adequadas aos homens livres e natildeo-livres Em vista desses
aspectos a educaccedilatildeo eacute discutida na Poliacutetica
Aristoacuteteles (Pol 1337 B 1339 B) considera a muacutesica um dos ramos da educaccedilatildeo
mas questiona sua utilidade O filoacutesofo apresenta duas opiniotildees acerca da utilidade da
muacutesica que ela natildeo eacute necessaacuteria nem uacutetil agrave vida na cidade mas eacute uacutetil enquanto diversatildeo no
tempo de lazer Seu papel na educaccedilatildeo se restringiria a isso ldquodiversatildeo proacutepria aos homens
livresrdquo
Para o filoacutesofo os homens livres podem se ocupar dos Estudos Liberais65 Mas um
estudo demasiado intensivo desses saberes poderia vir a provocar efeitos nocivos pois o
cidadatildeo passaria a enxergar melhor a parte do que o todo Isso porque Aristoacuteteles considera
sobretudo a finalidade em vista da qual se realiza determinada atividade A praacutetica eventual
das atividades ligadas aos Estudos Liberais eacute permitida desde que com finalidade em si
mesma e natildeo em funccedilatildeo de outros
Para Aristoacuteteles os Estudos Liberais satildeo compostos pela Gramaacutetica Ginaacutestica
Muacutesica e Desenho Entre essas disciplinas apenas a muacutesica pode ser questionada em termos
de sua utilidade Tal como Platatildeo Aristoacuteteles tambeacutem tece consideraccedilotildees a respeito da
finalidade hedonista da muacutesica que era cultivada em sua eacutepoca Todavia enquanto Platatildeo em
funccedilatildeo dos princiacutepios filosoacuteficos que estatildeo na base das ideias apresentadas na Repuacuteblica
subsume o prazer da muacutesica agrave sua finalidade eacutetica para Aristoacuteteles o prazer eacute colocado ao
lado dos objetivos morais do ensino da muacutesica ldquoenquanto um efeito musical coordenadordquo
(Lippman 1975 p 114)
Aristoacuteteles considera que a muacutesica participa da educaccedilatildeo da diversatildeo e do
entretenimento Em funccedilatildeo da sua agradabilidade ela leva ao relaxamento que eacute o objetivo da
diversatildeo (poder terapecircutico) aleacutem disso ela serve ao entretenimento visto que esse tem que
ser elevado e apraziacutevel No que diz respeito agrave educaccedilatildeo o filoacutesofo considera que deve-se
orientar bem o oacutecio que eacute mais elevado que o trabalho Eacute nesse sentido que para ele a
muacutesica foi inserida por muitos na educaccedilatildeo
O esquema eacutetico de Aristoacuteteles concebe que a melhor vida eacute a vida de accedilotildeesvirtuosas nessa a natureza do homem enquanto um composto de corpo e alma seexpressa mais completamente Menos valiosos satildeo os jogos o entretenimento e a
64 Para Platatildeo como jaacute foi exposto a educaccedilatildeo deve se concentrar nos conhecimentos matemaacuteticosaritmeacutetica geometria astronomia harmonike
65 Ver seccedilatildeo 42
32
apreciaccedilatildeo da arte pois estes natildeo satildeo despropositados mas servem agrave finalidade derenovaccedilatildeo da habilidade para o trabalho De mais alto valor do que a accedilatildeo virtuosapor outro lado eacute a contemplaccedilatildeo teoreacutetica (Lippman 1975 p 124)
Ao indagar se a muacutesica contribui para a formaccedilatildeo do caraacuteter e da alma Aristoacuteteles
considera que a prova de sua influecircncia eacute revelada nas melodias de Olimpo66 A esse respeito
o filoacutesofo considera que
Todos satildeo unacircnimes em considerar que essas melodias provocam entusiasmo nasalmas ora o entusiasmo eacute uma afecccedilatildeo do caraacuteter da alma Aleacutem do mais e mesmonatildeo contando com os ritmos e as melodias todo o tipo de imitaccedilatildeo provocasentimentos homoacutelogos nos ouvintes Ora sucedendo ser a muacutesica do domiacutenio dascoisas agradaacuteveis (e consistindo a virtude em experimentar com retidatildeo alegriaamor ou oacutedio) eacute evidente que nada eacute mais necessaacuterio aprender e tornar haacutebito doque julgar com retidatildeo e alegrar-se com costumes dignos e belas accedilotildees (AristoacutetelesPol 1340 A 5-15)
A audiccedilatildeo eacute a uacutenica das sensaccedilotildees que se assemelha67 agraves disposiccedilotildees morais Os
ritmos e melodias satildeo imitaccedilotildees da natureza68 de certas disposiccedilotildees morais como a coacutelera e a
mansidatildeo a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne)69 ao que ele acrescenta que ldquoa
praacutetica prova-o bem visto que o nosso estado de espiacuterito se altera consoante a muacutesica que
escutamosrdquo (Aristoacuteteles Pol 1340 A 20)
Para Aristoacuteteles ldquonas proacuteprias melodias haacute imitaccedilatildeo (mimesis) do caraacuteter (ethos)rdquo70 e
isso se evidencia pela diferente natureza de cada uma das harmoniai Consequentemente
quem as ouve eacute afetado de maneira diferente de acordo com as suas diversas formas
Com efeito umas [harmoniai] deixam-nos mais melancoacutelicos e graves comoacontece com a mixoliacutedia outras enfraquecem o espiacuterito como as lacircnguidas outrasincutem um estado de espiacuterito intermeacutedio e circunspecto como parece ser apanaacutegioda harmonia doacuterica porquanto jaacute a friacutegia induz o entusiasmo (Aristoacuteteles Pol1340 A 40 ndash B 5)
Isso ocorre tambeacutem em relaccedilatildeo aos ritmos Uns satildeo mais calmos e outros mais
movimentados e entre esses uns satildeo dignos e outros vulgares O filoacutesofo toma como
evidente que a muacutesica pode alterar o caraacuteter e por isso considera que esta deve ser aplicada agrave
educaccedilatildeo dos jovens pois ela se adapta agrave natureza deles que tecircm dificuldade para tolerar
66 Muacutesico friacutegio do seacuteculo VII aC67 Cf Aristoacuteteles Prob (27 29)68 Enquanto para Platatildeo a imitaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo a algo que estaacute fora do nosso mundo para Aristoacuteteles
ela se daacute dentro do mundo69 As mesmas virtudes que aparecem na obra de PlatatildeoVer p 25 2770 A muacutesica instrumental para os peripateacuteticos tambeacutem afeta o caraacuteter Nos Problemas Musicais lemos que
ldquomesmo se uma melodia natildeo tiver palavras tem todavia caraacuteter moralrdquo (Aristoacuteteles Prob 27 37-8)
33
ensinamentos natildeo suavizados pelo prazer71
As melodias satildeo divididas segundo Aristoacuteteles de acordo com o estabelecido por
determinados filoacutesofos em eacuteticas praacuteticas e entusiaacutesticas Natildeo se deve excluir nenhuma
harmonia visto que cada uma delas tem uma funccedilatildeo na sociedade Na Poeacutetica (1447 A 28
1459 B 37) o modo doacuterico corresponde a uma melodia eacutetica que suscita virtude o hipofriacutegio
a uma melodia energeacutetica que incita a atividade praacutetica e o friacutegio a uma melodia exaltada que
suscita um estado emocional freneacutetico
Enquanto as harmoniai eacuteticas destinam-se agrave educaccedilatildeo do homem livre as praacuteticas e as
entusiaacutesticas podem ser ouvidas por eles somente quando executadas por outros Para a
educaccedilatildeo ldquoimporta usar melodias eacuteticas e harmonias da mesma espeacutecierdquo Admitindo a
opiniatildeo de Platatildeo Aristoacuteteles assume que a harmonia doacuterica eacute desse tipo ldquotodos concordam
que eacute o mais sereno de todos e que possui um caraacuteter mais virilrdquo
Aristoacuteteles critica a instruccedilatildeo teacutecnica que se destina aos concursos porque eacute feita com
uma finalidade exterior a ela mesma e por isso natildeo eacute digna de homens livres Entretanto
diferentemente de Platatildeo o filoacutesofo natildeo considera que se deve abolir completamente os
concursos e espetaacuteculos Mas que utilizando as melodias cataacuterticas esses concursos deveriam
ser propiciados aos homens comuns pois ldquoeacute devido agrave corrupccedilatildeo das harmonias
(especialmente as de tom agudo e dissonantes) que as suas almas se encontram desviadas da
iacutendole naturalrdquo (Aristoacuteteles Pol 1342 A 20)
Nesse sentido o filoacutesofo condena a fala de Soacutecrates na Repuacuteblica onde haacute a recusa do
aulo entre os instrumentos considerando que este por ser excitante pode ser usado para se
produzir o efeito cataacutertico Ainda assim Aristoacuteteles rejeita o uso do aulo na educaccedilatildeo visto
que ele impede o uso da palavra (Aristoacuteteles Pol 1341 B) Do mesmo modo ele considera a
harmonia friacutegia vaacutelida visto que esta eacute em relaccedilatildeo agraves harmoniai o que o aulo eacute em relaccedilatildeo
aos instrumentos ldquoambos satildeo de teor orgiaacutestico e incutem a paixatildeordquo sendo utilizados com
frequecircncia juntos
Aleacutem disso Aristoacuteteles critica Soacutecrates por banir as harmoniai lacircnguidas em funccedilatildeo
de elas provocarem fadiga (na Repuacuteblica essas satildeo a jocircnia e a liacutedia) tendo em vista que na
velhice esse gecircnero de melodia deve ser praticado pois em decorrecircncia da idade os idosos
natildeo conseguem alcanccedilar os tons agudos Por fim Aristoacuteteles contrariando Platatildeo conclui
que a harmonia mais adequada aos jovens parece ser a liacutedia
Para Lippman um dos grandes meacuteritos de Aristoacuteteles reside no modo detalhado como
71 Ver M VI 7
34
ele aborda os princiacutepios que regem o uso da muacutesica Haacute uma ampla consideraccedilatildeo dos fatores
variados que influenciam a questatildeo ldquoo que parece errado de um ponto de vista Aristoacuteteles
mostra pode ser vaacutelido de outrordquo (Lippman 1975 p 126)
O ensino da muacutesica deve ser conduzido de maneira cuidadosa devendo ser enfatizado
com relaccedilatildeo agrave escuta e natildeo agrave praacutetica instrumental muito embora seja necessaacuterio que o
aprendiz participe da praacutetica musical A experiecircncia em instrumentos natildeo eacute o objetivo da
educaccedilatildeo musical pois a praacutetica de uma arte eacute uma atividade improacutepria para o homem livre
A praacutetica musical visa gerar uma familiaridade com a muacutesica tendo em vista o
desenvolvimento da capacidade de fazer bons julgamentos acerca dela Assim uma boa
educaccedilatildeo musical na infacircncia tornaria o indiviacuteduo apto a mais tarde avaliar a boa muacutesica e
fruiacute-la corretamente
Seria bom que esta aprendizagem natildeo fizesse penar como os que se preparam paraconcursos de profissionais72 nem se esperasse das obras realizadas o brilho e ovirtuosismo atingidos pelos que se apresentam nesses concursos nomeadamentenos relativos agrave educaccedilatildeo a muacutesica deveria ser estudada na medida suficiente parapossibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum damuacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns animais(Aristoacuteteles Pol 1341 A 10-17)73
Aristoacuteteles eacute muito menos restritivo que Platatildeo a respeito da muacutesica que pode ser
executada na polis A distinccedilatildeo entre o papel educativo e o prazer que a muacutesica proporciona
enquanto aspectos coordenados e natildeo mais dependentes permite que a muacutesica seja em certas
ocasiotildees apreciada por ela mesma
Diferentemente de Platatildeo no entanto Aristoacuteteles natildeo tem uma baixa consideraccedilatildeopela imitaccedilatildeo ele natildeo estaacute preocupado com seu afastamento da realidade masconsidera pelo contraacuterio que ela eacute natural para o homem que ela o ensina e que daacutea ele prazer Assim eacute dada agrave arte uma base na natureza humana e ela eacute consideradacomo eacutetica e prazerosa de maneira inerente nosso prazer nela entretanto natildeo se daacutedevido agraves suas propriedades sensiacuteveis mas em funccedilatildeo de um prazer no aprendizado(Lippman 1975 p 123-4)
O conceito de mimesis embora despido de seu caraacuteter metafiacutesico permanece central
72 O termo grego ldquotekhnikousrdquo traduzido aqui por ldquoprofissionaisrdquo pode significar tambeacutem ldquoespecialistasrdquo ouldquoteacutecnicosrdquo
73 Essa passagem eacute esclarecedora a respeito da relaccedilatildeo entre os projetos pedagoacutegicos aristoteacutelico e platocircnicoAmbos estatildeo preocupados em educar uma elite que saiba apreciar a muacutesica dita de caraacuteter elevado Maistarde Aristoacutexeno seguindo os passos de seu mestre tambeacutem propotildee que o estudo da muacutesica deve prepararpara uma capacidade de julgamento a respeito da praacutetica musical de seu tempo que eacute considerada vulgarEssa visatildeo natildeo sofre muitas alteraccedilotildees nos seacuteculos seguintes (como mostramos na seccedilatildeo 44 a respeito dosEstudos Ciacuteclicos)
35
no pensamento aristoteacutelico no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Ao
considerar a mimesis enquanto fenocircmeno natural da vida humana a arte (e especificamente a
muacutesica) passa a ser por si mesma eacutetica e prazerosa
No que concerne agraves ideias pitagoacutericas e platocircnicas a respeito da relaccedilatildeo da alma
humana com a harmonia Aristoacuteteles limita-se a dizer que ldquoparece que em noacutes existe algo que
se assemelha a harmonia e ritmo e eacute nesse sentido que alguns saacutebios referem que a alma eacute
harmonia outros que tem harmoniardquo (Aristoacuteteles Pol 1340 B 15) Aristoacuteteles todavia
restringe sua abordagem ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo excluindo do escopo da teoria musical a
questatildeo a respeito do seu estatuto ontoloacutegico Nesse sentido
a imitaccedilatildeo eacute tanto mantida quanto alterada Seu modelo permanece sendo a accedilatildeohumana e o caraacuteter incluindo agora ateacute o que eacute feio mas ao inveacutes de se voltar agravescoisas individuais ela procura sua natureza ideal e geral um processo um tantodiferente no entanto da revelaccedilatildeo de uma realidade eterna por traacutes delas (Lippman1975 p 138)
Ao desvincular o conceito de mimesis (que estaacute na base da teoria do ethos musical) de
suas raiacutezes metafiacutesicas Aristoacuteteles abre caminho para que a muacutesica enquanto fenocircmeno
sonoro adquira uma maior autonomia visto que as alteraccedilotildees que ela promove no caraacuteter do
ouvinte natildeo dependem mais da harmonia do cosmos mas do proacuteprio fenocircmeno sonoro em
sua relaccedilatildeo com a alma humana
33 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA
DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO
Eacute a partir do ponto de vista dos filoacutesofos peripateacuteticos que um dos mais renomados
disciacutepulos de Aristoacuteteles Aristoacutexeno74 promove uma sistematizaccedilatildeo da teoria musical
considerando-a enquanto uma ciecircncia autocircnoma desvinculada dos pressupostos metafiacutesicos
que a subjugavam anteriormente A teoria musical de Aristoacutexeno rompe com a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica de modo que a partir dela a ciecircncia da muacutesica natildeo empresta seus princiacutepios
baacutesicos da matemaacutetica e da fiacutesica mas parte de seu proacuteprio objeto de investigaccedilatildeo De acordo
com Aristoacutexeno a harmonike enquanto parte da muacutesica eacute baseada nos dados que satildeo
apreendidos atraveacutes da audiccedilatildeo Segundo Barker
74 As traduccedilotildees dos trechos da obra de Aristoacutexeno foram feitas a partir da comparaccedilatildeo das traduccedilotildees de Barker(1989) e de Roosevelt Rocha (natildeo publicada) com o texto grego dos Elementa Harmonica (TLG)
36
Sua tarefa eacute exibir a ordem interna do fenocircmeno perceptivo analisar os padrotildeessistemaacuteticos dentro dos quais ela eacute organizada mostrar como a exigecircncia de que asnotas devem caber em certo padratildeo de organizaccedilatildeo mdashse elas devem ser apreendidascomo meloacutedicas mdash explica porque algumas sequecircncias possiacuteveis de alturas formamuma melodia enquanto outras natildeo e por uacuteltimo apresentar todas as regras quegovernam a forma meloacutedica enquanto algo que flui de um grupo coordenado deprinciacutepios que descrevem uma uacutenica e determinada essecircncia a do proacuteprioldquomeloacutedicordquo ou do ldquoafinadordquo75 (Barker 1989 p 4)
Nascido em meados do seacuteculo IV aC Aristoacutexeno de Tarento estudou composiccedilatildeo e
performance musical mas focou seus estudos na Filosofia e na teoria musical
Apoacutes ter recebido de seu pai o muacutesico Espiacutentaro suas primeiras liccedilotildees musicaisAristoacutexeno seguiu os ensinamentos de um Pitagoacuterico (hellip) depois disso ele recebeuliccedilotildees de Aristoacuteteles e adquiriu entre os disciacutepulos do mestre uma reputaccedilatildeosuficiente para pretender sucedecirc-lo na direccedilatildeo da escola (Beacutelis 1986 p 10)
Aristoacutexeno passou um tempo consideraacutevel com os Pitagoacutericos antes de entrar para o
Liceu e se tornar aprendiz de Aristoacuteteles por volta de 330 aC o que provocou uma grande
mudanccedila no seu modo de pensar Apesar de ele ter deixado o Liceu depois deste ter sido
assumido por Teofrasto (porque ele proacuteprio almejava substituir Aristoacuteteles) Aristoacutexeno
permaneceu fiel aos ensinamentos aristoteacutelicos declarando-se ldquodecidido a aplicar os
princiacutepios metodoloacutegicos herdados do Estagiritardquo (Beacutelis 1986 p 11)
Seus escritos sobre teoria musical satildeo inspirados na concepccedilatildeo aristoteacutelica de
conhecimento De acordo com Annie Beacutelis Aristoacutexeno busca fundar uma ciecircncia nova e
autecircntica ldquoaquilo que ele chama legitimamente de ciecircncia harmocircnica uma disciplina
rigorosa e que esgota a totalidade dos objetos que dela dependemrdquo (Beacutelis 1986 p 170) Sua
influecircncia pode ser percebida pelo fato de que no periacuteodo Romano ele era citado
simplesmente como ldquoo muacutesicordquo76
Aristoacutexeno apresenta a ldquociecircncia acerca da melodiardquo77 ou seja a ciecircncia musical como
dividida em muitas partes A disciplina harmocircnica eacute entre elas ldquoa primeira e tem funccedilatildeo
elementar De fato ela eacute a primeira das disciplinas teoreacuteticas cuja magnitude eacute tatildeo grande
que se estende ateacute a teoria dos sistemas (systemata) e dos tons (tonos)rdquo (Aristoacutexeno El
75 Essa definiccedilatildeo eacute usada por Sexto Empiacuterico na segunda parte do Contra os Muacutesicos Ver M VI 3876 Sua relevacircncia no periacuteodo romano pode ser indicativa do motivo pelo qual Sexto Empiacuterico o utiliza como
paradigma de muacutesico e sua teoria como paradigma de ciecircncia musical Sexto Empiacuterico pretende combater asvisotildees mais comuns a respeito da teoria musical e Aristoacutexeno eacute por sua vez considerado ldquoo muacutesicordquo no quediz respeito agrave ciecircncia musical Nesse sentido satildeo os aspectos teacutecnicos da teoria musical de acordo com opensamento de Aristoacutexeno que satildeo combatidos
77 ldquoMelodiardquo traduz ldquoto melosrdquo Aqui tem um sentido amplo que inclui melodia ritmo e palavra
37
Harm 11)
As questotildees de tipo mais elevado que satildeo consideradas jaacute quando a muacutesica praacutetica(poietike)78 utiliza os sistemas e os tons natildeo mais pertencem a ela mas agrave ciecircnciaque compreende essa e as outras ciecircncias atraveacutes das quais considera-se tudo quediz respeito agrave muacutesica Eacute isso que diz respeito ao muacutesico (Aristoacutexeno El Harm12)
Diante dessas definiccedilotildees o primeiro recorte que se faz eacute o de que a harmonike natildeo faz
parte do acircmbito praacutetico A harmonike eacute apresentada como parte de uma ciecircncia mais ampla
que envolve o estudo de tudo que tem a ver com muacutesica
A ciecircncia harmocircnica divide-se em sete partes a saber mdash a discussatildeo das notas
intervalos gecircneros sistemas tons modulaccedilatildeo e a uacuteltima estaacute ligada agrave proacutepria composiccedilatildeo
meloacutedica79 As notas satildeo a base para a composiccedilatildeo de melodias
visto que muitas formas de melodias de todos os tipos vecircm a ser em notas que satildeoelas proacuteprias as mesmas e imutaacuteveis eacute evidente que sua variedade depende do usoque eacute dado agraves notas e isto noacutes chamamos composiccedilatildeo meloacutedica Portanto a ciecircncialigada agrave afinaccedilatildeo harmocircnica depois de percorrer as partes que foram mencionadasatinge sua finalidade aqui (Aristoacutexeno El Harm 238 20)80
A composiccedilatildeo de melodias (melopoiia) aparece como finalidade da harmonike
Todavia tal finalidade natildeo parece estar ligada agrave ldquopraacutetica composicionalrdquo (poietike) mas
antes ao conhecimento dos princiacutepios baacutesicos que a norteiam A harmonike natildeo eacute da ordem
da tekhne mas eacute uma teoria Tambeacutem de acordo com Beacutelis eacute evidente que Aristoacutexeno a
distingue tambeacutem da ldquopoeacuteticardquo que cria e da muacutesica ldquopraacuteticardquo que utiliza o material
musical81 Segundo a comentadora Aristoacutexeno
(hellip) definitivamente distingue em todo caso a teoria da poeacutetica a harmonike elediz eacute a primeira disciplina teoreacutetica ela natildeo se estende aleacutem do que concerne oconhecimento dos sistemas de tons (noacutes utilizamos essa expressatildeo como umatalho) mas ela investiga as questotildees mais elevadas que haacute enquanto a poeacuteticautiliza os sistemas e os tons natildeo lhe pertencendo mais (Beacutelis 1986 p 171)
78 O termo ldquopoietikerdquo inclui os aspectos praacuteticos da composiccedilatildeo estaacute ligado ao proacuteprio fazer musical VerBarker (2007 p 139) e Beacutelis (1986 p 171)
79 Discutimos o uso dessa definiccedilatildeo em Sexto Empiacuterico na seccedilotildees 511 e 5380 Para Aristoacutexeno as notas estatildeo na base da ciecircncia dos sons Eacute nesse sentido que Sexto Empiacuterico ataca o
conceito de som contido na definiccedilatildeo de nota Se a nota eacute a ldquoincidecircncia de um som em uma tensatildeordquo se natildeohaacute uma definiccedilatildeo do conceito de som natildeo haacute definiccedilatildeo do conceito de nota Ver M VI 52 Assim se amuacutesica eacute baseada nas notas e as notas no som ao mostrar a inconsistecircncia do conceito de som (mostrando asua ldquoinexistecircnciardquo) destroacutei-se tambeacutem toda a muacutesica
81 Ver Beacutelis (1986 p 187 n 4)
38
Pode-se considerar que cada gecircnero meloacutedico eacute um tipo de composiccedilatildeo Aristoacutexeno
apresenta como escopo de suas exposiccedilotildees o sentido em que cada tipo de composiccedilatildeo tem
um efeito (de acordo com sua proacutepria ressalva isso se a muacutesica tiver esse poder)
No momento importa frisar que Aristoacutexeno define como objeto de seus discursos
cada uma das composiccedilotildees meloacutedicas que segundo a interpretaccedilatildeo de Barker (2007 p 232)
ldquonatildeo satildeo composiccedilotildees individuais mas estilos de composiccedilatildeordquo82 Assim a harmonike teria
como finalidade natildeo a praacutetica composicional mas a compreensatildeo dos estilos de composiccedilatildeo
Tal interpretaccedilatildeo eacute corroborada tambeacutem pela seguinte passagem do segundo livro dos
Elementa Harmonica
Alguns imaginam que essa ciecircncia eacute de grande significacircncia alguns deles supondoateacute mesmo que ouvir a um discurso sobre harmonike iraacute fazecirc-los natildeo apenasmuacutesicos mas tambeacutem melhores quanto ao caraacuteter Essas pessoas ouviram mal osdiscursos nas nossas exposiccedilotildees ldquoo que tentamos fazer eacute mostrar para cada tipo decomposiccedilatildeo meloacutedica (ton melopoiion hekasten) e para a muacutesica em geral que tal etal tipo prejudica o caraacuteter enquanto tal e tal tipo eacute uacutetilrdquo e natildeo tendo ouvido issoeles tambeacutem natildeo ouviram nossa qualificaccedilatildeo ldquona medida em que a muacutesica pode seruacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30)
Acerca desta passagem resta assinalar que no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre os tipos
de composiccedilatildeo meloacutedica e seu efeito no ouvinte de fato Aristoacutexeno eacute bastante reticente ao
tratar da relaccedilatildeo entre muacutesica e virtude
Aristoacutexeno se dedica a corrigir dois excessos alguns imaginam por saberem osrudimentos da harmonike que satildeo muacutesicos por completo mas tambeacutem que setornaram moralmente melhores Outros ao contraacuterio relegaram esta ciecircncia a umaposiccedilatildeo despreziacutevel se contentando em ignoraacute-la Optando pela posiccedilatildeo do meioAristoacutexeno sustenta que a harmonike natildeo eacute mais que uma parte do saber do muacutesicoem si ela natildeo tem efeito moral seus ouvintes aparentemente natildeo apreenderam seupropoacutesito sobre os tipos de melopeia dos quais alguns foram qualificadosprejudiciais e outros uacuteteis (hellip) (Beacutelis 1986 p 97)
Aleacutem disso segundo Beacutelis ldquoAristoacutexeno provavelmente mostrou o valor musical de
uma e outra melopeia quer dizer tal e tal forma de combinaccedilatildeo de sons onde certos ouvintes
acreditaram reconhecer o valor moral das tonalidadesrdquo (Beacutelis 1986 p 172) mas este natildeo
constitui o foco principal de sua teoria
Como apresentamos cabe agravequele que eacute chamado ldquomuacutesicordquo dominar muitas
disciplinas ldquoA harmonike eacute apenas uma parte da habilidade do muacutesico tal como satildeo as
82 Para uma discussatildeo apurada dessa questatildeo ver Barker (2007 cap 9)
39
ciecircncias do ritmo da meacutetrica e dos instrumentosrdquo83 (Aristoacutexeno El Harm 232)
A harmonike eacute designada como ciecircncia mas como uma ciecircncia particular que seraacuteum elo de um conjunto cientiacutefico Esboccedila-se jaacute uma teoria do saber musical porinteiro onde a exigecircncia de rigor pesa sobre todas as partes do saber que o muacutesicodeve dominar para merecer seu tiacutetulo de mousikos (Beacutelis 1986 p 171)
Conhecer os diversos ramos da ciecircncia da muacutesica natildeo significa praticar muacutesica Se
satildeo esses conhecimentos (da harmonike do ritmo da meacutetrica e dos instrumentos) que
Aristoacutexeno atribui ao muacutesico ldquomuacutesicordquo aqui natildeo diz respeito ao muacutesico praacutetico mas agravequele
que estuda a muacutesica como um todo De acordo com Barker
quando usado sem qualificaccedilatildeo e no contexto de uma compreensatildeo que envolvetodos os acircmbitos da muacutesica o termo mousikos eacute mais naturalmente lido em umsentido amplo indicando uma pessoa de uma ampla e sofisticada cultura musicalindependentemente de eles serem tambeacutem especialistas em algum ramo da arte(Barker 2007 p 140)
Assim para Aristoacutexeno o muacutesico natildeo eacute em primeira instacircncia aquele que pratica a
arte da muacutesica mas sim aquele que estudou todas as aacutereas da ciecircncia musical possuindo os
conhecimentos necessaacuterios para compreendecirc-la e com isso emitir juiacutezos criacuteticos a respeito
da muacutesica praacutetica Nesse sentido para fazer um julgamento adequado de uma peccedila musical o
muacutesico deve observar os trecircs elementos baacutesicos que a compotildeem as notas a duraccedilatildeo riacutetmica e
a siacutelaba A percepccedilatildeo e o pensamento (dianoia) devem estar um ao lado do outro na formaccedilatildeo
do julgamento
Eacute evidente que compreender melodias eacute uma questatildeo de seguir as coisas com aaudiccedilatildeo e a razatildeo na medida em que elas vem a ser no que diz respeito a todas assuas distinccedilotildees pois eacute em um processo de vir a ser que consiste a melodia comosatildeo tambeacutem todas as outras partes da muacutesica A compreensatildeo da muacutesica vem deduas coisas percepccedilatildeo e memoacuteria pois noacutes temos que apreender o que estaacute vindo aser e lembrar o que veio a ser (Aristoacutexeno El Harm 238-9)
O objetivo da investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute a compreensatildeo84 (Aristoacutexeno El Harm 41 15-
83 Organike aparece aqui junto agrave episteme Jaacute na introduccedilatildeo do Contra os Muacutesicos episteme eacute oposta agraveempeiria e a organike aparece ligada a essa uacuteltima Ver seccedilatildeo 51
84 Ao explicar que o conceito de harmonike supera a mera notaccedilatildeo Aristoacutexeno argumenta que ldquonotaccedilatildeo natildeo eacutenem mesmo uma parte dela a menos que escrever metros seja tambeacutem uma parte da ciecircncia do metro Masse isso se aplica aqui ndash que aquele que pode escrever o metro jacircmbico natildeo eacute necessariamente aquele quemelhor compreende o que o jacircmbico realmente eacute ndash se aplica tambeacutem agraves melodiasrdquo (Aristoacutexeno El Harm239) Nesse sentido a notaccedilatildeo natildeo participa da investigaccedilatildeo cientiacutefica que compreende apenas o acircmbitoteoacuterico Isso corrobora com a ideia de que a ciecircncia musical natildeo abrange a execuccedilatildeo de instrumentos ou apraacutetica composicional
40
6) Em funccedilatildeo disso ldquoo saber harmocircnico natildeo se reduziraacute mais a mediccedilatildeo de intervalos nem agrave
assimilaccedilatildeo das relaccedilotildees numeacutericasrdquo (Beacutelis 1986 p 172) A compreensatildeo pode e deve ser
usada para instruir aqueles que julgam a muacutesica que eacute executada na praacutetica a fim de garantir
que ela seja executada de maneira correta85 A ideia de que o conhecimento teacutecnico deve ser
adquirido para que se possa julgar as peccedilas que satildeo executadas jaacute aparece tambeacutem em
Platatildeo86 Para o filoacutesofo eacute preciso apreender o que eacute correto acerca da peccedila para se julgar
uma muacutesica de maneira inteligente tendo desenvolvido uma percepccedilatildeo aguccedilada e uma
compreensatildeo dos ritmos e das harmonias
Segundo Beacutelis
os dois autores rejeitam com um mesmo desprezo o leigo que eles opunham aoconhecedor quando trata-se de julgar uma muacutesica ou sentir prazer com ela (hellip) Domesmo modo Aristoacutexeno distingue o leigo do conhecedor uacutenico qualificado parajulgar a beleza de uma aacuteria e acusa certos harmonicistas de lisonjear os leigos aofazer da notaccedilatildeo das canccedilotildees o termo do aprendizado da harmonia (Beacutelis 1986 p99)87
O conhecedor da muacutesica eacute para ambos aquele que tem as habilidades necessaacuterias ao
julgamento de uma peccedila musical sendo a harmonike uma dessas habilidades Tambeacutem na
Poliacutetica a muacutesica eacute situada entre as disciplinas que fazem parte da educaccedilatildeo liberal destinada
agrave formaccedilatildeo de uma elite intelectual Para Aristoacuteteles como apontamos anteriormente o
objetivo da participaccedilatildeo dos jovens na praacutetica musical eacute desenvolvimento da capacidade de
julgar peccedilas musicais Desse modo a muacutesica poderia ser praticada na juventude ndash como
forma de entretenimento e ainda assim sob um controle riacutegido de quais melodias ritmos e
instrumentos podem ser utilizados ndash mas ao atingirem a idade adulta devem abster-se da
praacutetica mantendo como resultado desse aprendizado a capacidade de julgar e fruir das coisas
de maneira correta
como para ajuizar eacute necessaacuterio que se participe da execuccedilatildeo as crianccedilas devempraticar a muacutesica desde tenra idade Chegados agrave idade avanccedilada devem pocirc-la agraveparte pois eacute devido agrave aprendizagem na infacircncia que poderatildeo mais tarde avaliar aboa muacutesica e fruiacute-la corretamente (Aristoacuteteles Pol 1340 B 35)
85 Enquanto para filoacutesofos como Platatildeo a correccedilatildeo tem uma funccedilatildeo moral para Aristoacutexeno diz respeito aestar de acordo com o conhecimento cientiacutefico
86 Platatildeo Leis 670 BndashC Ti 70 A-B87 Contudo haacute uma diferenccedila fundamental entre Platatildeo e Aristoacutexeno no que diz respeito ao efeito da muacutesica na
alma ldquoEacute verdade que ele [Aristoacutexeno] reconhece que a muacutesica afeta a alma que certas melopeias satildeo uacuteteise outras prejudiciais mas natildeo admite que a harmonia possa de qualquer modo incitar a virtuderdquo (Beacutelis1984 p 100)
41
Aristoacuteteles propocircs ainda que as habilidades teacutecnicas musicais deveriam ser estudadas
ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave
parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns
animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A)
Se eacute difiacutecil ligar Aristoacuteteles a esta ou aquela escola de muacutesica - apesar de algunstextos que se mostram bem proacuteximos das ideias pitagoacutericas - natildeo haacute duacutevidas aocontraacuterio que ele toma partido dos tradicionalistas que reprovam as inovaccedilotildeesintroduzidas pelos virtuosos na praacutetica musical (Beacutelis 1986 p 56)
Aristoacutexeno tambeacutem manteacutem o conservadorismo de seus antecessores (Platatildeo e
Aristoacuteteles) no que diz respeito ao ldquocultordquo agrave muacutesica do passado em oposiccedilatildeo ao virtuosismo
de seus contemporacircneos O conhecimento da arte da combinaccedilatildeo das notas a harmonike
seria um dos conhecimentos necessaacuterios agrave Educaccedilatildeo Liberal que se contrapotildee ao gosto do
senso comum
Segundo Barker o texto de Aristoacutexeno revela uma progressiva divisatildeo entre o gosto
popular do periacuteodo (disseminado nas disputas entre muacutesicos profissionais que satildeo
mencionadas por Platatildeo e Aristoacuteteles) e o gosto dos intelectuais do seacuteculo IV aC Para eles
a capacidade de se elevar acima do amor das massas pelo virtuosismo e pelosefeitos melodramaacuteticos e formar julgamentos musicais sobre uma base esteacutetica eintelectualmente sofisticada se tornou um marco de seu status superior Na medidaem que ele representa a teoria harmocircnica como um dos instrumentos essenciais naldquocaixa de ferramentas intelectuaisrdquo daquele que julga Aristoacutexeno estaacute continuandoo projeto de resgataacute-la das matildeos do mero ldquoartesatildeordquo com o qual ela havia comeccediladoe recomendando-a agrave atenccedilatildeo das cultas classes superiores para as quais em temposanteriores ela teria parecido tatildeo irrelevante quanto aprender a cozinhar (Barker2007 p 234)
Se por um lado Aristoacutexeno daacute um passo diferente em relaccedilatildeo aos seus antecessores
circunscrevendo a ciecircncia musical ao acircmbito sonoro por outro em seu conservadorismo ele
manteacutem ainda uma cisatildeo entre teoria e praacutetica musical e uma divisatildeo hieraacuterquica entre aquele
que pratica e aquele que julga a arte musical
34 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO
Se muito se teorizou na Antiguidade a respeito da importacircncia da muacutesica na
sociedade houve por outro lado um filoacutesofo que dedicou-se agrave refutaccedilatildeo das opiniotildees sobre
42
muacutesica difundidas em sua eacutepoca Filodemo de Gadara88 filoacutesofo epicurista do primeiro
seacuteculo aC (c 110 ndash 40) em sua obra intitulada De Musica dedica-se a refutar as
consideraccedilotildees favoraacuteveis do filoacutesofo estoico89 Dioacutegenes da Babilocircnia a respeito do papel da
muacutesica
O meacutetodo de Filodemo consiste em apresentar as afirmaccedilotildees de seu oponente e em
seguida criticar cada uma delas90 A discussatildeo sobre muacutesica apresentada nessa obra natildeo diz
respeito agrave questotildees teacutecnicas musicais tal como podemos observar na obra de Aristoacutexeno
mas somente agraves questotildees relacionadas ao ensino da muacutesica ao seu papel moral e educacional
devido ao modo como esta afetaria a alma tal como Platatildeo e Aristoacuteteles a abordaram91
Dioacutegenes da Babilocircnia92 viveu entre 240 ndash 152 aC Embora natildeo tenhamos acesso aos
seus escritos apenas a fragmentos citados por outros autores considera-se que ele reformulou
as posiccedilotildees de seus antecessores a tal ponto que sua visatildeo veio a ser a ortodoxa de sua escola
nos seacuteculos II e I aC Segundo Woodward (2009 p 13) ldquoo fato de que Dioacutegenes seja o
principal oponente de Filodemo no De Retorica e tambeacutem no De Musica IV pareceria
sustentar essa sugestatildeordquo De acordo com Delattre
certamente se Dioacutegenes por sua vez agindo dessa maneira natildeo fazia nada mais doque se inscrever na jaacute longa tradiccedilatildeo que via na muacutesica uma insubstituiacutevelpropedecircutica para a virtude o que parece contudo ter distinguido claramente nossoEstoico de todos os seus antecessores desde Pitaacutegoras eacute uma vontade bem marcadade fundamentar cientificamente isto eacute com base em uma teoria coerente dasensaccedilatildeo e do conhecimento as crenccedilas e prejulgamentos repetidos aqui e ali depoisdo seacuteculo VI aC (Delattre 2007 p 3)
A preocupaccedilatildeo fundamental do estoico parece ter sido sobretudo a de afirmar a
eficaacutecia eacutetico-psicoloacutegica da muacutesica para o que ele buscou fundar uma ciecircncia ldquo() uma
verdadeira psicologia musical caracterizada por leis imutaacuteveis necessaacuterias e universaisrdquo
(Delattre 2007 p 16)93
88 Para as citaccedilotildees do De Musica nossa traduccedilatildeo parte da versatildeo francesa de Delattre (2007)89 Note-se que os filoacutesofos epicuristas foram tambeacutem o principal alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica em outras questotildees90 Tal como no caso de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos podemos apenas conjecturar a respeito de sua
visatildeo positiva sobre o tema91 Estima-se que a refutaccedilatildeo de Filodemo agraves afirmaccedilotildees de Dioacutegenes sobre a muacutesica seja tambeacutem uma defesa
contra as acusaccedilotildees de ignoracircncia difundidas contra a escola epicurista Essas acusaccedilotildees deram-se sobretudoem funccedilatildeo da criacutetica epicurista aos Estudos Ciacuteclicos Tais acusaccedilotildees satildeo reafirmadas por Sexto Empiacuterico noinicio do Contra os Professores Cf Woodward (2009 p 12 222)
92 Note-se que os filoacutesofos Estoicos figuram entre os principais alvos da refutaccedilatildeo ceacutetica Dioacutegenes foi pupilode Crisipo um dos principais pensadores desta doutrina que figura entre aqueles que tambeacutem satildeo refutadospor Sexto Empiacuterico
93 Tudo se passa como se Dioacutegenes pretendesse reunir em suas teorias a um soacute tempo as preocupaccedilotildeespsicagoacutegicas de Platatildeo e o rigor cientiacutefico de Aristoacutexeno
43
Entre as teses sobre muacutesica apresentadas por Dioacutegenes a sua relaccedilatildeo com a eacutetica eacute
colocada em primeiro plano o estoico defende que a muacutesica estaacute em estreita relaccedilatildeo com o
belo e com o bem considerando assim como Platatildeo que a muacutesica teria o poder de
harmonizar as partes da alma e aleacutem disso que sua utilidade estaacute ligada ao lazer mas que
natildeo se deve exercitaacute-la ao niacutevel profissional94
Dioacutegenes defende a utilidade da muacutesica sob duas perspectivas Por um lado o ensino
da muacutesica eacute importante desde a infacircncia para a aquisiccedilatildeo das virtudes e por outro a muacutesica
ldquomais que o desenho daacute ao ser humano e desenvolve nele o senso de beleza puro e
desinteressadordquo (Filodemo De mus col 27)
A respeito do poder da muacutesica sobre o caraacuteter do ouvinte Dioacutegenes teria afirmado
reiterando aquilo que jaacute era bem estabelecido por todos de sua eacutepoca que ldquoo fato de que as
melodias recebem qualificativos eacuteticos prova que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticasrdquo
(Filodemo De mus col 19)95
As afirmaccedilotildees de Dioacutegenes satildeo a um soacute tempo histoacutericas e demonstrativas Deste
modo para Delattre Dioacutegenes se coloca sem o saber como representante de uma cultura
livresca vasta ldquomas que sobrecarrega o leitor em um acuacutemulo de provas cuja credibilidade e
confianccedila eram geralmente pouco confiaacuteveis e que poderiam de maneira definitiva ocultar a
realidade musical e moral contemporacircnea de Dioacutegenesrdquo (Delattre 2007 p 18) De fato as
autoridades filosoacuteficas e literaacuterias a que ele recorre datam de um outro periacuteodo ao qual a sua
realidade musical jaacute natildeo corresponde
Assim para Dioacutegenes o muacutesico torna-se essencialmente um especialista nos efeitospsicoloacutegicos e eacuteticos que satildeo suscetiacuteveis de produzir as diferentes gamas ritmos emelodias Desse modo o estoico perde totalmente de vista nessa atividade (que oepicurista chama de delirante) a uacutenica noccedilatildeo que vale para um disciacutepulo deEpicuro a do prazer musical (Delattre 2007 p 16)
Ora para Filodemo
todas as tentativas de teorizar a psicologia musical satildeo vatildes Eacute por essa razatildeoprecisamente que o muacutesico em busca de um saber que lhe permita reconhecerdistintamente as disposiccedilotildees nas quais se encontram os oacutergatildeos sensoriais quaissejam elas estaacute em busca de uma ciecircncia do inexistente (Filodemo De Mus col117 3-10)96
94 Ver Filodemo De Mus (col 6-12)95 Essa proposiccedilatildeo exemplifica o tipo de posicionamento estoico que o ceacutetico considera dogmaacutetico pois daacute
ares de verdade a uma mera suposiccedilatildeo O fato de que as melodias recebem qualificativos eacuteticos natildeo provaapenas exemplifica a crenccedila que as pessoas tecircm de que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticas
96 Observa-se aqui uma argumentaccedilatildeo anaacuteloga agravequela que aparece na segunda parte do Contra os Muacutesicos
44
O pensamento estoico eacute refutado por Filodemo porque para os estoicos a sensaccedilatildeo eacute
dotada de inteligibilidade sendo o veiacuteculo do conhecimento imediato da realidade97 Segundo
Woodward (2009 p 18) ldquoa muacutesica portanto requereria alguma qualidade racional para ter
qualquer valor psicoloacutegico para o estoico visto que a alma teria de (a) entender a impressatildeo
racional para poder (b) dar assentimento ou rejeitar a proposiccedilatildeo colocadardquo Entretanto para
Filodemo a ideia estoica de atribuir logos ao sentido da audiccedilatildeo seria absurda visto que de
acordo com a filosofia epicurista o mesmo som atinge qualquer ouvinte de modo anaacutelogo e a
ele satildeo acrescentadas qualidades pelo proacuteprio ouvinte de acordo com suas experiecircncias
particulares
Toda a concepccedilatildeo de que a muacutesica pode afetar a alma diretamente aleacutem dos sinaisde misticismo pitagoacuterico entra em conflito com a concepccedilatildeo epicurista depercepccedilatildeo De acordo com Epicuro todos os sentidos satildeo semelhantes no seumeacutetodo de operaccedilatildeo o som natildeo tem propriedades peculiares Aleacutem disso todasensaccedilatildeo eacute por si mesma desprovida de significado cognitivo (hellip) Portanto elanatildeo tem physei [por natureza] efeito cognitivo pois os sons natildeo adquiremsignificado ateacute que a doxa [opiniatildeo] entre em accedilatildeo e se natildeo haacute efeito cognitivonatildeo haacute efeito eacutetico pois afecccedilotildees e moral soacute podem ser influenciadas por meioscognitivos () (Wilkinson 1938 p 178)
Em funccedilatildeo disso o som natildeo teria a capacidade de mover a alma atraveacutes da imitaccedilatildeo
A melodia sendo irracional nem potildee a alma em movimento quando ela estaacute em repouso
nem leva a alma agrave condiccedilatildeo natural de seu caraacuteter e tambeacutem natildeo a acalma quando ela estaacute
agitada Movendo-se em qualquer direccedilatildeo aleacutem disso tambeacutem natildeo pode transformaacute-la
diminuindo ou intensificando uma disposiccedilatildeo existente
pois a muacutesica natildeo eacute algo capaz de imitar como alguns98 imaginam em sonho nem eacuteverdade que ndash como nosso adversaacuterio ltpretendegt - apresentando semelhanccedilas decaraacuteteres que natildeo tecircm de modo algum o poder de imitar ela faccedila aparecer todas asqualidades de caraacuteteres de modo que haja entre elas a da magnificecircncia e a dabaixeza a da coragem e a da ausecircncia de coragem a da reserva e a da audaacutecia natildeomais do que aquilo que pode a arte da culinaacuteria (Filodemo De Mus col 117)
O proacuteximo passo de Filodemo eacute sustentar que tais qualidades satildeo erroneamente
atribuiacutedas agrave muacutesica porque Dioacutegenes (e consequentemente todos aqueles com quem ele97 A representaccedilatildeo traz nela a sua evidecircncia (que exige que se decirc o assentimento) O assentimento a uma
representaccedilatildeo verdadeira eacute um ato voluntaacuterio da mente isso eacute o que os estoicos chamam ldquoapreensatildeordquo Oassentimento a uma sensaccedilatildeo assim como toda accedilatildeo eacute um ato voluntaacuterio As impressotildees humanas satildeodesde sua ocorrecircncia racionais por isso eacute necessaacuterio o assentimento antes da impressatildeo inicial conduzir agraveaccedilatildeo
98 Referecircncia a Platatildeo (Leis 699 B-E) atribuiacuteda a Dioacutegenes por Filodemo (De Mus col 51) Ver Delattre(2007 p 214 n 5)
45
concorda) confunde muacutesica e poesia Tendo em vista que Dioacutegenes rejeitava a muacutesica
instrumental de seu tempo os poderes atribuiacutedos agrave muacutesica por Dioacutegenes dizem respeito agrave
mousike no sentido antigo do termo ou seja a uniatildeo entre melodia ritmo e texto poeacutetico
Muito embora de acordo com o sistema estoico o proacuteprio som tenha logos por conseguinte
um significado e o poder de mover a alma do ouvinte
Jaacute para Filodemo os compositores de muacutesica instrumental assim nomeados natildeo soacute
por ele mas no uso comum de seu tempo e tambeacutem por Aristoacutexeno emitem sons desprovidos
de significaccedilatildeo tanto quando tocam peccedilas instrumentais quanto acompanhando o canto
A discordacircncia fundamental aqui eacute entre o conceito de mousike enquanto melodia
ritmo e palavra e o de mousike enquanto ldquoarte dos sonsrdquo Filodemo toma isso como ponto de
partida sustentando que os efeitos que a muacutesica exerce na alma do ouvinte se datildeo em funccedilatildeo
do significado das palavras e que o som por si mesmo natildeo tem significado algum sendo
desprovido de razatildeo (logos) Nesse sentido ele considera que
se Simonides e Piacutendaro foram muacutesicos eles foram tambeacutem poetas que enquantomuacutesicos compuseram melodias desprovidas de significaccedilatildeo e por outro ladoenquanto poetas compuseram as palavras e que se satildeo uacuteteis (talvez natildeo sejammesmo a partir deste ponto de vista ou muito pouco) elas natildeo satildeo uacuteteis apenas paraos muacutesicos ou mais uacuteteis para os muacutesicos mas satildeo igualmente uacuteteis para todas aspessoas educadas (Filodemo De Mus col 143 20-40)99
Assim de acordo com Wilkinson (1938 p 175-6) ldquoenquanto um muacutesico no sentido
antigo pode ter um efeito moral nomeadamente atraveacutes de suas palavras no novo e restrito
sentido ele natildeo pode ter nenhum Ele natildeo pode excitar ou acalmar nenhuma sensaccedilatildeo em
particularrdquo
Segundo Filodemo a muacutesica natildeo tem nenhum ethos intriacutenseco As qualidades dos
modos musicais natildeo se datildeo a partir da sensaccedilatildeo mas da opiniatildeo ldquoNessas condiccedilotildees no que
diz respeito agraves muacutesicas enarmocircnica e cromaacutetica natildeo eacute pela sua percepccedilatildeo qualitativa da qual
a razatildeo natildeo participa mas pelas opiniotildees formadas a partir dela que as pessoas entram em
desacordordquo (Filodemo De Mus col 116 10-20) Para o filoacutesofo epicurista se as pessoas
reagem de maneiras diferentes ao mesmo tipo de muacutesica isso se daacute em funccedilatildeo de sua
experiecircncia de vida e cultura Nesse sentido a muacutesica natildeo teria nenhum papel educacional
poderia ser prazerosa e a sua valoraccedilatildeo dependeria apenas do contexto e das associaccedilotildees de
ideias feitas pelos seus ouvintes
99 A relaccedilatildeo entre muacutesica e poesia eacute retomada por Sexto Empiacuterico em M VI 28 e a questatildeo da utilidade em MVI 33
46
4 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
NO CONTRA OS PROFESSORES
O Contra os Muacutesicos sexto livro do Contra os Professores insere-se em uma
proposta maior de Sexto Empiacuterico que tem como objetivo refutar os ensinamentos
(mathemata) que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos (enkyklios paideia) Na introduccedilatildeo do
Contra os Professores Sexto Empiacuterico explica que a refutaccedilatildeo agraves disciplinas dos Estudos
Ciacuteclicos se daacute porque os ceacuteticos100
a respeito das disciplinas (mathemata) tiveram a mesma experiecircncia que tiveram noque diz respeito agrave Filosofia como um todo Pois tal como eles se aproximaram daFilosofia com o desejo de alcanccedilar a verdade mas quando se depararam com oconflito da igual forccedila das opiniotildees e com a anomalia das coisas suspenderam ojuiacutezo - assim tambeacutem no caso das disciplinas [dos Estudos Ciacuteclicos] quando elespuseram-se a dominaacute-las visando tambeacutem aqui aprender a verdade elesencontraram dificuldades natildeo menos seacuterias que eles natildeo omitiram Do mesmomodo noacutes tambeacutem seguiremos o mesmo meacutetodo que eles e buscaremos natildeo emespiacuterito de controveacutersia selecionar e apresentar os argumentos fundamentais contraos professores (M I 6-7)
Infelizmente o autor natildeo daacute indicaccedilotildees precisas do que sejam as enkyklia mathemata
porque sua refutaccedilatildeo dirige-se agravequeles que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nelas Apesar da
breve menccedilatildeo de Sexto consideramos tal como fundamental para se compreender o sentido
em que cada uma das disciplinas - entre elas a muacutesica - eacute refutada
Entretanto em algumas traduccedilotildees e comentaacuterios ao Contra os Professores a expressatildeo
enkyklia mathemata eacute ou simplesmente igualada a ldquoArtes Liberaisrdquo ou traduzida como
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo101 Por sua imprecisatildeo e brevidade tais definiccedilotildees comprometem a
compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo do Contra os Professores e consequentemente
obscurecem o papel dessa refutaccedilatildeo na filosofia ceacutetica pirrocircnica
Em funccedilatildeo disso antes de analisarmos o Contra os Muacutesicos cabem ainda algumas
etapas Primeiramente eacute preciso compreender em que consiste o ceticismo pirrocircnico seus
meacutetodos e seus objetivos A partir disso poderemos observar a relaccedilatildeo entre o objeto
100 Para as citaccedilotildees do Contra os Professores (exceto M VI) utilizamos as traduccedilotildees de Bury (1933) e Cavero(1997) como referecircncia adaptando-as de acordo com o texto grego quando julgamos necessaacuterio
101 Observe-se as seguintes ediccedilotildees Cavero (1997 p 7-8) simplesmente iguala as expressotildees grega e latinaGreaves (1986 p 18) limita-se a apresentar os livros do Adversus Mathematikous descrevendo-os comouma ldquorefutaccedilatildeo dos mathematikoi (ou professores) das seis disciplinas conhecidas como Estudos Ciacuteclicos eque constituiacuteam o curriacuteculo baacutesico da educaccedilatildeo antigardquo Bury (1933 p 6-7) explica em uma nota agrave suatraduccedilatildeo que as enkyklia mathemata satildeo ldquoos conteuacutedos da educaccedilatildeo geral preacute-profissional que inclui aastronomia geometria muacutesica gramaacutetica e retoacutericardquo Dentre as ediccedilotildees que utilizamos como referecircncia aediccedilatildeo de Pellegrin (2002) eacute a uacutenica que em sua introduccedilatildeo aprofunda o tema
47
principal da refutaccedilatildeo ceacutetica a Filosofia e o tipo de conhecimento refutado no Contra os
Professores as artes (tekhnai) Para isso aprofundaremos o sentido da Enkyklios Paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico chamando atenccedilatildeo para a presenccedila constante da mousike enquanto
uma das disciplinas que a compotildeem
Tendo claro o objeto ao qual a refutaccedilatildeo se dirige poderemos nos ater agraves
peculiaridades do estilo argumentativo utilizado por Sexto Empiacuterico para a refutaccedilatildeo das
mathemata Com isso por fim teremos as ferramentas necessaacuterias para no uacuteltimo capiacutetulo
compreendermos o sentido dos argumentos que Sexto Empiacuterico utiliza para refutar a mousike
no Contra os Muacutesicos
41 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO
NA FILOSOFIA E NAS ARTES
ldquoPor amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar atraveacutes da argumentaccedilatildeo na medida do
possiacutevel o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticosrdquo (HP III 280)102 Nas Hipotiposes
Pirronianas o ceticismo pirrocircnico eacute apresentado por Sexto Empiacuterico como uma habilidade
de opor phenomena e noumena (objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel e objetos do pensamento)103 O
igual peso (isostheneia) das coisas e afirmaccedilotildees colocadas em oposiccedilatildeo gera segundo Sexto
um estado de suspensatildeo do juiacutezo (epokhe) - ldquoum estado mental por meio do qual nem
afirmamos nem negamosrdquo (HP I 10) Isso no que diz respeito ao que se relaciona agrave opiniatildeo
(doxa) leva agrave tranquilidade da alma (ataraxia) Visto que haacute acontecimentos inevitaacuteveis
tendo observado as perturbaccedilotildees adicionais geradas pela crenccedila de que algo eacute bom ou mau
por natureza essa praacutetica visa eliminar tal crenccedila adicional promovendo assim afecccedilotildees
moderadas (metriopatheia) (HP I 30)
O princiacutepio (arkhe) causal do ceticismo eacute a busca pela tranquilidade da alma Como
explica Sexto
ldquoHomens de talentordquo perturbados com as anomalias nas coisas e confusos acercade quais mereciam assentimento esforccedilaram-se em descobrir o que eacute verdadeiro e o
102 Para as citaccedilotildees das Hipotiposes Pirronianas de Sexto Empiacuterico traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir daediccedilatildeo de Mates (1996)
103 Note-se que neste momento ldquota phainomenardquo e ldquota noumenardquo devem ser compreendidos de modo estritoos primeiros satildeo objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel enquanto os segundos satildeo objetos do pensamento Maisadiante ldquoto phainomenonrdquo ou seja aquilo que aparece incluiraacute tanto os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevelquanto os objetos do pensamento
48
que eacute falso nelas esperando que ao esclarecer isso atingiriam a tranquilidade daalma (HP I 12)
Todavia para o ceacutetico durante cada investigaccedilatildeo sobre as coisas encontra-se
afirmaccedilotildees inconsistentes entre si Segundo Sexto para esses ldquohomens de talentordquo nenhuma
das afirmaccedilotildees eacute mais passiacutevel de credibilidade do que a outra e na falta de um criteacuterio que
permita o assentimento a uma das afirmaccedilotildees seria uma atitude precipitada assumir uma
delas como verdadeira Essa impossibilidade de decidir leva agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca
daquilo que se estava investigando Desse modo embora pretendesse atingir a tranquilidade
da alma por meio da busca pela verdade o ceacutetico acaba por obtecirc-la ao suspender o juiacutezo
acerca dela
Segundo Sexto acontece ao ceacutetico o mesmo que aconteceu ao pintor Apeles
Conta-se que certa vez quando ele estava pintando um cavalo e desejavarepresentar a espuma do cavalo ele falhou de tal modo que desistiu e jogou suaesponja na pintura - a esponja na qual ele limpava as tintas do pincel ndash e ao atingira pintura a esponja produziu o efeito desejado (HP I 28)
Do mesmo modo o surgimento do ceticismo se daacute como que por acaso e a
tranquilidade da alma segue a suspensatildeo do juiacutezo ldquoassim como a sombra segue o corpordquo (HP
I 29)
O ainda futuro ceacutetico quer evitar a precipitaccedilatildeo de dizer-se conhecedor da verdade ao
assentir de modo arbitraacuterio com algo que natildeo seja evidente Quando o ceacutetico descobre que a
praacutetica de opor a cada sentenccedila outra de igual forccedila leva agrave suspensatildeo de juiacutezo toma essa
praacutetica como princiacutepio do ceticismo visto que ela parece acabar com o dogmatismo104
Quanto ao dogmatismo eacute importante salientar que no pirronismo natildeo haacute diferenccedila
entre ldquodogmatizarrdquo e ldquoacreditarrdquo Quando o ceacutetico diz que natildeo dogmatiza ele estaacute dizendo
em outras palavras que natildeo sustenta crenccedila
O predicado ldquoverdadeirordquo aplica-se primeiramente a proposiccedilotildees que se pretendeque descrevam objetos externos (to ektos hypokeimenon) e estados de coisas eldquocrenccedilardquo refere-se a uma atitude afirmativa forte e estaacutevel em relaccedilatildeo a essasproposiccedilotildees (Mates 1996 p 6)
Nesse sentido mais estreito105 do termo ldquodogmardquo estaacute ligado a questotildees investigaacuteveis
104 ldquoAqueles que acreditam terem encontrado a verdade satildeo os Dogmaacuteticos ndash por exemplo os seguidores deAristoacuteteles e Epicuro os Estoicos e outrosrdquo (HP I 3)
105 O sentido mais amplo de dogma diz respeito a ldquoalgo com que algueacutem meramente concordardquo - como umasentenccedila que descreve uma afecccedilatildeo determinada ndash e nesse sentido segundo o autor pode-se dizer que o
49
sobre a ldquoexistecircncia e natureza daquilo que se supotildee ser independente das nossas impressotildees
subjetivas pensamentos e sensaccedilotildeesrdquo106 (Mates 1996 p 7) Eacute sobre isso que por meio da
argumentaccedilatildeo o ceacutetico suspende o juiacutezo
Para o ceacutetico dogmaacutetico eacute aquele que pretende demonstrar que aquilo que lhe aparece
eacute o modo como de fato as coisas realmente satildeo e que busca formular teorias sobre o
fenocircmeno teorias que teriam apreendido a verdade a realidade das coisas Desse modo a
suspensatildeo de juiacutezo estaacute voltada agraves asserccedilotildees dogmaacuteticas e natildeo agraves coisas dizendo respeito agrave
afirmaccedilatildeo da conformidade entre o ser e o aparecer De acordo com Porchat
A Filosofia claacutessica distinguira como se sabe entre o ser e o aparecer transpondometafisicamente a distinccedilatildeo corriqueira entre as aparecircncias enganosas das coisas esua manifestaccedilatildeo correta e ordinaacuteria Ela privilegiou o ser como necessaacuterio eestaacutevel desqualificando o aparecer porque instaacutevel e contingente Por vezesentendeu o aparecer como manifestaccedilatildeo do ser ainda que superficial mas commaior frequecircncia o pensou como aparecircncia enganosa que dissimulava o ser e oocultava (Porchat 1993 p 179)
Portanto nas Hipotiposes Pirronianas a argumentaccedilatildeo ceacutetica visa produzir a
suspensatildeo de juiacutezo ao mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e sua
precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente107 crenccedilas a respeito daquilo que existe na realidade
externamente agraves nossas representaccedilotildees
Se por um lado o ceacutetico critica os discursos dogmaacuteticos por outro ele pretende que
seu proacuteprio discurso expresse apenas a admissatildeo de uma afecccedilatildeo (pathos) involuntaacuteria o
estado presente de sua alma em relaccedilatildeo ao fenocircmeno Por isso as sentenccedilas proferidas pelo
ceacutetico satildeo ditas ldquonatildeo investigaacuteveisrdquo (azetetos) ldquoA questatildeo sobre sua veracidade ou falsidade
natildeo se colocardquo (Mates 1996 p 6)108 visto que dizem respeito apenas ao fenocircmeno
Mesmo assim os filoacutesofos ditos dogmaacuteticos consideram que uma vez
suspendido o juiacutezo interrompe-se tambeacutem a possibilidade de accedilatildeo no mundo e por isso
ceacutetico emite doxai sem se comprometer com um criteacuterio de verdade106 Satildeo essas as caracteriacutesticas que Sexto observa no conceito de mousike refutado no Contra os Muacutesicos
Veremos que ele constata que atribui-se poderes agrave muacutesica por natureza A refutaccedilatildeo de Sexto tende amostrar que os poderes que se considera inerentes a ela dependem natildeo de sua natureza mas de nossasrepresentaccedilotildees
107 Atenccedilatildeo ao uso do termo grego ldquodiabebaiomairdquo que significa ldquoassegurarrdquo ldquoafirmar energicamenterdquo juntoao sentido dogmaacutetico de crenccedila Cf Mates (1996 p 60)
108 Para que o discurso do ceacutetico seja coerente com a sua finalidade ndash a de promover a suspensatildeo de juiacutezovisando obter a tranquilidade da alma - as sentenccedilas que o constituem ldquonatildeo devem ser tomadas comoverdadeirasrdquo (Mates 1996 p 255) Por isso o discurso ceacutetico seraacute considerado natildeo-assertivo ldquoAsserccedilatildeordquoem sentido amplo abrange qualquer ldquoexpressatildeo indicando afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e em sentido estrito dizrespeito apenas a expressotildees afirmativas A ldquonatildeo-asserccedilatildeordquo eacute uma afecccedilatildeo em vista da qual o ceacutetico diraacute quenatildeo afirma ou nega qualquer coisa no que diz respeito agraves ldquodeclaraccedilotildees dogmaacuteticas acerca daquilo que eacute natildeo-evidenterdquo (HP I 193)
50
acusam o ceacutetico de que sua postura levaria agrave inaccedilatildeo (apraxia)109 A resposta dos ceacuteticos
pirrocircnicos ao contra-argumento da inaccedilatildeo eacute dada com a proposiccedilatildeo de um criteacuterio de accedilatildeo
desvinculado do criteacuterio que o ceticismo ataca Nesse sentido o pirrocircnico distingue entre dois
tipos de criteacuterio aquele ligado agrave ldquocrenccedila sobre a existecircncia e a natildeo existecircnciardquo ou seja aquilo
que chamamos ldquocriteacuterio de verdaderdquo ao qual estatildeo voltadas as suas objeccedilotildees e por outro
lado o criteacuterio de accedilatildeo a partir do qual ldquona conduccedilatildeo da vida diaacuteria noacutes fazemos algumas
coisas e natildeo outrasrdquo (HP I 21)
Isso significa que o ceacutetico natildeo soacute limita seu discurso agravequilo que lhe aparece mas toma
o proacuteprio aparecer como criteacuterio de suas accedilotildees O fenocircmeno por se basear em uma afecccedilatildeo
involuntaacuteria nunca eacute posto em duacutevida pelo ceacutetico para ele natildeo eacute preciso ultrapassar o
acircmbito do fenocircmeno dizendo o que as coisas realmente satildeo para se viver no mundo Afinal
nas palavras de Sexto ldquoimagino que ningueacutem dispute sobre se o objeto externo aparece desse
modo ou daquele mas antes sobre se ele eacute tal como parece serrdquo (HP I 22) ou seja a duacutevida
se daacute a respeito da conformidade entre o ser e o aparecer Basear-se no fenocircmeno eacute
excetuando essa duacutevida sustentar suas decisotildees naquilo que estaacute aleacutem do escopo da
suspensatildeo do juiacutezo e natildeo eacute passiacutevel de duacutevida
Isso que natildeo podemos rejeitar que se oferece irrecusavelmente agrave nossasensibilidade e entendimento ndash se nos permitimos lanccedilar matildeo de uma terminologiafilosoacutefica consagrada ndash eacute o que os ceacuteticos chamamos de fenocircmeno (tophainomenon o que aparece) O que nos aparece se nos impotildee com necessidade aele natildeo podemos senatildeo assentir eacute absolutamente inquestionaacutevel em seu aparecerQue as coisas nos apareccedilam como aparecem independe de nossa deliberaccedilatildeo ouescolha natildeo se prende a uma decisatildeo de nossa vontade O que nos aparece natildeo eacuteenquanto tal objeto de investigaccedilatildeo precisamente porque natildeo pode ser objeto deduacutevida Natildeo haacute sentido em argumentar contra o aparecer do que aparece talargumentaccedilatildeo seria ineficaz e absurda (Porchat 1993 p 176)
Sexto Empiacuterico apresenta os desdobramentos do criteacuterio praacutetico baseado em quatro
aspectos principais
no que concerne agravequilo que aparece entatildeo noacutes [ceacuteticos] vivemos sem crenccedilas masde acordo com a vida comum visto que natildeo podemos ser totalmente inativos Eesse regime da vida comum parece ser quaacutedruplo uma parte tem a ver com aorientaccedilatildeo da natureza outra com a compulsatildeo das afecccedilotildees outra com aquilo quenos eacute apresentado pelas leis e pelos costumes e a quarta com a instruccedilatildeo nas artes[tekhnai] (HP I 23)
109 Tal questionamento se daacute porque a epistemologia estoica implica que se decirc assentimento voluntaacuterio agravesrepresentaccedilotildees para que se possa tomar decisotildees a respeito delas
51
Segundo a proacutepria explicaccedilatildeo de Sexto a parte do criteacuterio de accedilatildeo que diz repeito agrave
orientaccedilatildeo da natureza eacute aquela pela qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo epensamento a compulsatildeo das afecccedilotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva agrave comidae a sede nos faz beber o seguir os costumes e leis eacute aquela pela qual noacutes aceitamosque ser piedoso na conduccedilatildeo da vida eacute bom e ser impiedoso eacute ruim e a instruccedilatildeo nasartes eacute aquela pela qual noacutes natildeo somos inativos em qualquer funccedilatildeo adquirida (HP I24)
Ao que ele acrescenta ainda ao final ldquoe dizemos todas essas coisas sem crenccedilardquo (HP
I 24) reforccedilando que tal criteacuterio eacute tomado de maneira independente da existecircncia ou natildeo
existecircncia daquilo que estaacute por traacutes dele
A pergunta que o contra-argumento da inaccedilatildeo nos coloca eacute como vive o ceacutetico a
partir disso A adoccedilatildeo do criteacuterio praacutetico poderia ser um indiacutecio de que ele pretende retornar
ao senso comum e viver ldquosem Filosofiardquo muito embora como afirma Brochard esse retorno
seja ldquoum retorno muito pouco ingecircnuo agrave ingenuidade primitivardquo (Brochard 2009 p 362)
Mas o que seria esse retorno agrave vida comum Seria simplesmente viver seguindo a multidatildeo
A esse respeito Sexto diz que ldquoqualquer um que diga que noacutes devemos dar assentimento agrave
maioria estaacute fazendo uma proposta infantilrdquo (HP I 89)110 Segundo Porchat ldquoa visatildeo de
mundo de um ceacutetico se conforma obviamente como a visatildeo do mundo de qualquer homem agrave
sua experiecircncia passada e agrave sua formaccedilatildeo cultural ela se constroacutei a partir de sua vivecircncia do
fenocircmeno e lhe estaacute intimamente associadardquo (Porchat 1993 p 198)
Tal como um filoacutesofo dogmaacutetico que para fazer uso de seus sentidos e de sua
inteligecircncia natildeo precisa dar a prova ontoloacutegica de sua existecircncia tambeacutem para o ceacutetico natildeo
haacute porque deixar de agir por natildeo assumir uma posiccedilatildeo a respeito das questotildees acerca da
existecircncia ou natildeo das coisas Natildeo eacute preciso sustentar a verdade de conceitos filosoacuteficos para
ao se sentir fome ir em busca de alimento Aleacutem disso assim como um filoacutesofo que nos
apresenta uma Filosofia moral baseada em princiacutepios racionais natildeo vive necessariamente de
acordo com a Filosofia que formula mas muitas vezes simplesmente obedece agraves leis e aos
costumes de seu paiacutes sem verificar sua validade ou veracidade o ceacutetico segue as leis e
costumes enquanto aquilo que lhe aparece como sendo o caso
Desse modo natildeo soacute o ceacutetico mas tambeacutem o filoacutesofo dogmaacutetico no que concerne agrave
vida praacutetica simplesmente vivem de acordo com aquilo que lhes aparece sem precisar
ultrapassar a esfera fenomecircnica e dizer o que as coisas realmente satildeo Eacute sob essa perspectiva
110 No Contra os Muacutesicos Sexto dedica-se a refutar as opiniotildees sobre muacutesica ldquorepetidas costumeiramente pelamaioriardquo (M VI 7)
52
que o ceacutetico pretende natildeo precisar sustentar crenccedilas a respeito das coisas para poder viver no
mundo Em suma eacute tendo em vista a conduccedilatildeo da vida que o ceacutetico adota o criteacuterio praacutetico
Visto que a instruccedilatildeo nas artes faz parte do criteacuterio praacutetico o combate ao dogmatismo
tambeacutem nessa aacuterea eacute essencial ao funcionamento do ceticismo Eacute nesse sentido que o Contra
os Professores parece ter uma funccedilatildeo peculiar dentre as obras de Sexto Natildeo obstante os
livros que o compotildeem satildeo destinados natildeo a qualquer tipo de ensino teacutecnico mas apenas
agravequeles das disciplinas dos chamados Estudos Ciacuteclicos Como veremos a delimitaccedilatildeo do
escopo dessa criacutetica se daacute em funccedilatildeo do dogmatismo observado nos conteuacutedos e meacutetodos
relacionados a esse sistema de ensino
42 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
A expressatildeo Enkyklios Paideia tem uma origem antiga na histoacuteria da educaccedilatildeo na
Greacutecia mas eacute importante frisar que ela muda de significado entre o periacuteodo claacutessico e o
imperial Os chamados Estudos Ciacuteclicos na Greacutecia arcaica tinham uma conotaccedilatildeo praacutetica
inicialmente centrada na mousike Kyklios nesse caso parece remeter agrave danccedila circular
realizada pelo coro Todavia essa educaccedilatildeo musical (naquele sentido amplo de mousike) foi
perdendo espaccedilo para a retoacuterica e para a Filosofia Em Platatildeo (Teeteto 172 C - 177 C) por
exemplo observa-se a rejeiccedilatildeo das ocupaccedilotildees praacuteticas (consideradas servis) Tambeacutem em
Aristoacuteteles observamos as recomendaccedilotildees e as reservas em relaccedilatildeo agrave praacutetica das atividades
que deveriam fazer parte da educaccedilatildeo do homem livre A enkyklios paideia deixa a muacutesica
praticamente de lado e permanece centrada na retoacuterica dialeacutetica e gramaacutetica111 De acordo
com Lippman ldquoesse processo comeccedila durante o curso do seacuteculo V aC a desintegraccedilatildeo da
composta arte da muacutesica acompanhada pela efervescecircncia poliacutetica e o crescimento de uma
cultura com uma mentalidade retoacuterica provoca a desmusicalizaccedilatildeo da educaccedilatildeordquo (Lippman
1966 552)
A partir disso a chamada Enkyklios Paideia expande seu escopo incorporando um
significado mais geral Na obra de Aristoacuteteles112 aparecem tambeacutem as expressotildees ldquoenkyklia
philosophematardquo e ldquota enkykliardquo que provavelmente equivalem agrave expressatildeo ldquoexoterikoi
logoirdquo designando ldquoum desenvolvimento ou uma obra que natildeo tem um caraacuteter
111 Disciplinas que vieram a compor o trivium das chamadas Artes Liberais na Idade Meacutedia112 Ver Aristoacuteteles De Caelo (279 A) EN (1096 A)
53
especificamente filosoacutefico mas se situa em um niacutevel inferior e preparatoacuteriordquo (Hadot 1984 p
264) Reforccedilamos que essas expressotildees que remetem agrave Enkyklios Paideia no periacuteodo
heleniacutestico natildeo tecircm o mesmo significado que teratildeo no periacuteodo imperial
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta as disciplinas matemaacuteticas que tinham funccedilatildeo
preparatoacuteria para se atingir a Filosofia A lista das disciplinas inclui aritmeacutetica geometria
astronomia e muacutesica113 Platatildeo eacute herdeiro de uma tradiccedilatildeo pitagoacuterica segundo a qual ldquoas
ciecircncias matemaacuteticas estatildeo relacionadas porque lidam com as duas formas primaacuterias do ser
(que podemos tomar como a multiplicidade e a extensatildeo)rdquo (Lippman 1966 p 545) O
filoacutesofo ressalta o papel eacutetico das mathemata e sublinha o caraacuteter abstrato e ideal de cada
uma O pitagoacuterico Arquitas de Tarento tambeacutem coloca a muacutesica no uacuteltimo lugar da lista o
que indica seu status mais elevado
Enquanto uma das mathemata a muacutesica era estudada em seu aspecto mais abstrato a
ciecircncia harmocircnica em funccedilatildeo de sua conexatildeo direta com a astronomia Como jaacute foi
enfatizado as mathemata ldquonatildeo dizem respeito ao uso praacutetico nem a objetos da experiecircnciardquo
(Lippman 1966 p 547) Por isso em seu tratado pedagoacutegico destinado a preparar o
estudante para a leitura de Platatildeo Teon de Smirna afirma que natildeo haacute necessidade da muacutesica
instrumental mas que o interesse estaacute voltado agrave compreensatildeo da harmonia e da muacutesica
celestial
Na obra de Aristoacuteteles a muacutesica aparece em uma lista bastante semelhante114 remetida
agraves eleutherai tekhnai (artes liberais) ou seja agraves artes destinadas agrave educaccedilatildeo do homem livre
A mousike enquanto disciplina do ensino eacute denominada com diversas outras disciplinas
pelo termo tekhne (arte ou teacutecnica) De acordo com Pellegrin
depois do seacuteculo V aC desenvolveu-se uma literatura ldquoteacutecnicardquo constituiacuteda detratados codificando a praacutetica de numerosos domiacutenios desde a equitaccedilatildeo e aculinaacuteria ateacute a estrateacutegia e a arte poliacutetica Aleacutem disso as disciplinas que noacutesconsiderariacuteamos cientiacuteficas como a geometria a aritmeacutetica ou teacutecnico-cientiacuteficascomo a medicina eram comumente chamadas tekhnai Este haacutebito de transmitir umsavoir-faire racionalmente exposto eacute com certeza uma reaproximaccedilatildeo do tipo deracionalidade que foi aplicada agrave aacuterea cultural grega com o estabelecimento dascidades No domiacutenio das artes como em outras aacutereas a praacutetica rotineira e atransmissatildeo tradicional no interior das linhagens deram lugar a uma abordagemuniversal normatizada e tirando sua forccedila da constriccedilatildeo do raciociacutenio (Pellegrin2002 p 14)115
113 Essas disciplinas compotildeem o conjunto que veio a ser o quadrivium das Artes Liberais na Idade Meacutedia114 Ver seccedilatildeo 322 p 31115 Deve-se destacar o papel dos Sofistas no desenvolvimento desse tipo de literatura teacutecnica Os Sofistas num
certo sentido foram aqueles que profissionalizaram o ensino Hiacutepias um dos Sofistas que aparece nosdiaacutelogos de Platatildeo defendia um ensino que permitisse que se fosse ldquocapaz de falar sobre qualquer coisa e dearrostar quem quer que seja em qualquer assuntordquo (Marrou 1966 p 94) Segundo Platatildeo (Protaacutegoras 218
54
Para fins de nosso estudo tomamos como paradigma do que seja uma tekhne a
definiccedilatildeo atribuiacuteda aos estoicos apresentada e refutada pelo proacuteprio Sexto Empiacuterico no
Contra os Professores ldquotoda tekhne eacute um sistema composto de apreensotildees exercidas
conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10)116
Cabe pontuar que tanto para Aristoacuteteles quanto para os Estoicos tanto a ciecircncia
quanto a teacutecnica partem dos sentidos A diferenccedila de acordo com essas duas correntes
filosoacuteficas natildeo estaacute no modo como o conhecimento se daacute mas nos objetos aos quais a
ciecircncia e a teacutecnica se dirigem117 Aristoacuteteles daacute agrave tekhne um sentido e um papel bastante
precisos Na Metafiacutesica o filoacutesofo distingue os homens dos animais dizendo que os homens
ldquose elevam agrave arte (tekhne) e ao raciociacutenio (logismos) a arte e a ciecircncia (episteme) procedem
natildeo do acaso (tykhe) mas da experiecircncia (empeiria)rdquo (Aristoacuteteles Met 980 B 25)
Experiecircncia que eacute constituiacuteda pela uniatildeo da sensaccedilatildeo ndash nosso primeiro contato com o mundo
ndash com a memoacuteria de repetidas sensaccedilotildees
Natildeo obstante para Aristoacuteteles soacute haacute arte e ciecircncia quando haacute algum juiacutezo sobre algo
universal ldquoa arte se gera quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia nasce uma noccedilatildeo
uacutenica concernente aos casos semelhantesrdquo (Aristoacuteteles Met A 1 981 A 5) Eacute nesse sentido
que na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a tekhne como ldquohaacutebito produtivo acompanhado
pelo logos verdadeirordquo (Aristoacuteteles EN 1140 A 10)
Na Filosofia aristoteacutelica o conhecimento teacutecnico aproxima-se da ciecircncia porque
ambos estatildeo preocupados com o logos e nesse sentido com aquilo que haacute de universal nas
relaccedilotildees de causa e efeito A diferenccedila sob essa perspectiva eacute apenas a de que a ciecircncia diz
respeito agrave busca do conhecimento das ldquocausas primeirasrdquo (que existem necessariamente na
natureza) e a teacutecnica tem por objeto a forma de um produto contingente
Aristoacuteteles apresenta a tekhne como uma forma de saber verdadeiro constituiacuteda por
E) Hiacutepias exigia de seus alunos um estudo soacutelido das quatro ciecircncias elaboradas desde os pitagoacutericos116 Essa definiccedilatildeo estoica de tekhne enquanto ldquosistema composto de apreensotildeesrdquo pode ser encontrada em vaacuterios
trechos da obra de Sexto Empiacuterico Em um trecho das Hipotiposes que trata da possibilidade do aprendizadolemos que ldquoEles [os estoicos] dizem que uma arte eacute um sistema de apreensotildees exercidas conjuntamente naparte superior da almardquo (HP III 188) e tambeacutem que ldquoa arte eacute um sistema de apreensotildees e que umaapreensatildeo eacute um assentimento a uma representaccedilatildeo apreensivardquo (HP III 240) Essa noccedilatildeo eacute tomada na obrade Sexto Empiacuterico como paradigma daquilo que eacute assumido pelos filoacutesofos chamados dogmaacuteticos Arelaccedilatildeo entre o conceito de tekhne e a noccedilatildeo de utilidade eacute fundamental para a compreensatildeo da criacutetica deSexto Empiacuterico agrave mousike enquanto uma das enkyklia mathemata
117 A sensaccedilatildeo eacute algo bastante diferente para um e para outro No pensamento de Aristoacuteteles ainda natildeo haacute aquestatildeo da correspondecircncia entre a representaccedilatildeo e o objeto representado questatildeo que na Filosofia estoicafaz com que o problema da verdade seja colocado jaacute nesse momento Para um estoico se natildeo haacute um criteacuteriode verdade que valide as suas representaccedilotildees natildeo eacute possiacutevel o raciociacutenio
55
juiacutezos universais e suscetiacutevel de ser transmitida por um ensinamento racional118 Por isso de
acordo com Pellegrin
sob essa perspectiva aristoteacutelica as tekhnai natildeo tecircm nenhuma razatildeo para sair dodegrau teoacuterico da Filosofia entendida como sistema total de saber mesmo seevidentemente nem todos os teacutecnicos satildeo filoacutesofos e nem todos os filoacutesofos satildeoteacutecnicos (Pellegrin 2002 p 15)
O uso dessas artes baseadas no raciociacutenio (logikai ou enkyklioi tekhnai) como
propedecircutica para a Filosofia tornou-se de maneiras diferentes lugar comum nas escolas
filosoacuteficas estoica peripateacutetica e platocircnica (Hadot 1984 p 273) Essa subordinaccedilatildeo da
tekhne agrave Filosofia constitui uma das caracteriacutesticas do que veio a ser a Enkyklios Paideia no
periacuteodo imperial
Em Arts Libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Ilsetraut Hadot apresenta as
ocorrecircncias da expressatildeo ldquoenkyklios paideiardquo em autores importantes do periacuteodo imperial
Tal pesquisa eacute referecircncia para a compreensatildeo do que satildeo as enkyklia mathemata refutadas por
Sexto Empiacuterico
Na eacutepoca de Sexto Empiacuterico o adjetivo enkyklios (ciacuteclico) construiacutedo a partir de
kyklos (ciacuterculo) deixa de significar um ldquolargo ciacuterculordquo de estudos ligado agrave vulgarizaccedilatildeo do
conhecimento e aparece nas expressotildees ldquoencyclios disciplinardquo e ldquoenkyklios paideiardquo do
periacuteodo imperial designando
um curriacuteculo de estudos unificado pelo meacutetodo e pela estrutura que se devepercorrer e concluir para se ter uma educaccedilatildeo completa eacute uma espeacutecie de ldquociclordquopelo qual as ciecircncias que o constituem podem por sua vez ser chamadas ldquociacuteclicasrdquoMas este ldquociclordquo natildeo se refere a um nuacutemero limitado tal como o das ldquosete artesrdquopor exemplo mas corresponde agrave ideia de unidade interior e de completude119 (Hadot1984 p 268)
Esclarecedor a esse respeito eacute o texto de Vitruacutevio autor latino do seacuteculo I aC De
acordo com Vitruacutevio ldquoarquitetura eacute uma ciecircncia composta de muitas disciplinas e adornada
com tipos variados de aprendizado ()rdquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1) Para ele ldquoos
objetos de todas as ciecircncias (disciplinas) satildeo conectados por uma estreita comunidade pois a
encyclios disciplina eacute formada por todas as suas partes como um corpo uacutenicordquo (Hadot 1984
118 Sobre a relaccedilatildeo entre ciecircncia e arte em Aristoacuteteles ver Met (1028 B) e EN (1141 A)119 Nesse sentido a traduccedilatildeo da expressatildeo ldquota enkyklia mathematardquo a que Sexto se refere por ldquoArtes Liberaisrdquo
(da Idade Meacutedia) eacute uma aproximaccedilatildeo muito pouco precisa Sexto de fato menciona as eleutherai tekhnaiuma vez todavia essa expressatildeo possivelmente remete mais ao sentido em que Aristoacuteteles a emprega doque agraves Artes Liberais da Idade Meacutedia
56
p 265) O autor descreve sua proacutepria instruccedilatildeo do seguinte modo
agradeccedilo aos meus pais pela sua aprovaccedilatildeo a essa lei Ateniense e por terem cuidadopara que eu fosse instruiacutedo em uma arte e uma arte de tal natureza que natildeo possaser levada agrave perfeiccedilatildeo sem literatura e uma educaccedilatildeo ciacuteclica em todas asdisciplinas Portanto graccedilas agrave atenccedilatildeo dos meus pais e agrave instruccedilatildeo que me foi dadapor meus professores eu obtive uma variada gama de conhecimentos (hellip)(Vitruacutevio VI pref 4 grifo nosso)120
O caraacuteter teoacuterico do estudo das enkyklia mathemata eacute enfatizado na seguinte
passagem do De Architetura onde o autor exemplifica a ideia de que todas as artes satildeo
compostas de teoria e praacutetica121
Uma dessas a realizaccedilatildeo do trabalho eacute proacutepria aos homens treinados no conteuacutedoindividual enquanto a outra a teoria eacute comum a todos os estudiosos por exemplopara meacutedicos e muacutesicos a batida riacutetmica do pulso e seu movimento meacutetrico Masse haacute uma ferida a ser curada ou um homem doente a ser salvo do perigo o muacutesiconatildeo seraacute chamado pois a ocupaccedilatildeo seraacute apropriada para o meacutedico Assim tambeacutemno caso de um instrumento musical natildeo seraacute o meacutedico mas o muacutesico que iraacute afinaro instrumento de modo que os ouvidos possam encontrar o devido prazer em suascordas Os astrocircnomos do mesmo modo tecircm um acircmbito comum de discussatildeo comos muacutesicos no que diz respeito agrave harmonia das estrelas e agrave concordacircncia musical nasteacutetrades e triacuteades [dos intervalos] de quarta e de quinta e com os geocircmetras noconteuacutedo da visatildeo (em grego logos optikos) e em todas as outras ciecircncias muitospontos talvez todos satildeo comuns no que diz respeito agrave sua discussatildeo (Vitruacutevio DeArchitetura I 1 15-6)
Enkyklios parece exprimir a ideia de que se deve estudar todas as disciplinas para
praticar uma porque elas implicam-se mutuamente Daiacute que Vitruacutevio apresente no primeiro
livro do De Architetura todos os saberes necessaacuterios a um bom arquiteto Entre esses saberes
estatildeo as disciplinas listadas com frequecircncia como a muacutesica a geometria e a astronomia
A descriccedilatildeo de Ciacutecero dessa relaccedilatildeo ldquociacuteclicardquo entre as ciecircncias remete ao
pensamento platocircnico em que ldquotodos os conteuacutedos doutrinais das artes liberais e humanas
satildeo mantidos unidos por um tipo de conexatildeo uacutenicardquo (Hadot 1984 p 265) onde se pode
observar um ldquotipo de concordacircncia e harmonia admiraacuteveis entre todas as ciecircnciasrdquo (idem)
Quintiliano que viveu entre I aC e I dC em seu Instituitione Oratoria tambeacutem
recomenda o estudo daquilo que ldquoos Gregos chamaram Enkyklios Paideiardquo (Quintiliano
Inst I X 1) O autor apresenta vaacuterios argumentos a favor das mathemata platocircnicas120 Para as citaccedilotildees de Vitruacutevio utilizamos a traduccedilatildeo em liacutengua inglesa de Morgan (1914) com algumas
adaptaccedilotildees baseadas no texto latino121 De acordo com Vitruacutevio na arquitetura ldquoa praacutetica eacute o exerciacutecio contiacutenuo e regular do emprego onde o
trabalho manual eacute executado com qualquer material necessaacuterio de acordo com o design de um desenhoTeoria por outro lado eacute a habilidade de demonstrar e explicar os resultados da destreza nos princiacutepios daproporccedilatildeordquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1)
57
sobretudo no que diz respeito agrave importacircncia do estudo da muacutesica122 ao que ele conclui que a
muacutesica eacute ldquoum elemento necessaacuterio agrave educaccedilatildeo do oradorrdquo (Quintiliano Inst I X 33)
Suas observaccedilotildees fazem referecircncia principalmente agrave autoridade de Pitaacutegoras e agrave de
Platatildeo Quintiliano recomenda esses estudos ldquonatildeo apenas por sua habilidade de afiar o
espiacuterito mas tambeacutem por seu valor filosoacuteficordquo (Hadot 1984 p 267) Nesse sentido nota-se
aqui uma retomada do papel propedecircutico das disciplinas matemaacuteticas platocircnicas agora
agrupadas dentro do conjunto da Enkyklios Paideia
Sobre esse caraacuteter ciacuteclico das artes fundadas na razatildeo Hadot tambeacutem chama atenccedilatildeo
para um comentaacuterio de Quintiliano a Dioniacutesio o Traacutecio (gramaacutetico do seacuteculo II aC)
enkyklioi satildeo as artes que alguns chamam de logikai [fundadas na razatildeo] como aastronomia a geometria a muacutesica a filosofia a medicina a gramaacutetica a retoacutericaChamam-nas enkuklioi porque o especialista (ho tekhnites) deve ao percorrer todasintroduzir em sua arte o que ele encontrou de uacutetil em cada uma delas (QuintilianoInst 1 X 6-7)
Na distinccedilatildeo entre as logikai tekhnai por oposiccedilatildeo as praktikai tekhnai Dioniacutesio
coloca a muacutesica entre as disciplinas fundadas na razatildeo Tambeacutem Galeno meacutedico grego do
seacuteculo II dC apresenta o mesmo tipo de oposiccedilatildeo e coloca entre as artes fundadas na razatildeo a
medicina a retoacuterica a muacutesica a geometria a aritmeacutetica o caacutelculo a astronomia a gramaacutetica
e o direito Galeno opotildee essas disciplinas agraves artes praacuteticas ou artes manuais (keironaktikai ou
banausoi tekhnai)123
Em diversos autores encontra-se as disciplinas fundadas na razatildeo sendo consideradas
como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes (tekhnai) De acordo com Hadot nesse
vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar as ldquoartes
fundadas na razatildeordquo124 em oposiccedilatildeo agraves artes manuais ou praacuteticas
Entre todos esses pensadores Filo de Alexandria no seacuteculo I dC talvez seja quem
melhor resume as caracteriacutesticas das enkyklia mathemata tal como Sexto parece compreendecirc-
la Seu pensamento reuacutene ldquointerpretaccedilotildees alegoacutericas do antigo testamento da Filosofia grega
e especialmente da Filosofia platocircnica contemporacircnea que havia sido enriquecida de
numerosos elementos doutrinais de proveniecircncia estoica e peripateacuteticardquo (Hadot 1984 p
282) No tratado De Congressu Filo introduz a Enkyklios Paideia personificada na figura de
122 Ver Quintiliano Inst (I X 9-33)123 Ver Galeno Protreptique aux arts (5 7)124 Tal distinccedilatildeo eacute encontrada no Contra os Muacutesicos na apresentaccedilatildeo dos sentidos do termo muacutesica (M VI 1)
O sentido de muacutesica refutado por Sexto eacute intitulado episteme por oposiccedilatildeo agrave chamada organiken empeiriaque designa a praacutetica musical
58
Agar125 como o caminho para a virtude
devemos compreender que grandes temas requerem grandes introduccedilotildees e o maiorde todos os temas eacute a virtude pois ela lida com o maior dos conteuacutedos que eacute atotalidade da vida humana Naturalmente a virtude implica uma introduccedilatildeo que natildeoseja menor que o estudo da gramaacutetica da geometria da astronomia da retoacuterica damuacutesica e de todos os outros estudos fundados no raciociacutenio (Filo De Congressu11)
Em Filo reencontramos a ideia de que as artes fundadas no raciociacutenio recebem seus
princiacutepios da Filosofia que eacute considerada por sua vez uma ciecircncia natildeo-hipoteacutetica e
inabalaacutevel Ao mesmo tempo tal panorama apresenta as enkyklia mathemata novamente
como um caminho enquanto ensino propedecircutico para se alcanccedilar a Filosofia Aqui destaca-
se a relaccedilatildeo hieraacuterquica entre esses conhecimentos os Estudos Ciacuteclicos como caminho para a
Filosofia e esta como caminho para a Sabedoria
Filo tambeacutem retoma outra expressatildeo cara ao nosso estudo ele iguala a Enkyklios
Paideia e a Enkyklios Mousike ou seja o ciacuterculo de atividades dedicadas agraves Musas Nesse
caso reencontramos aquele significado amplo do termo mousike ligado agrave cultura126
Haacute homens grosseiros e homens cultos aqueles que satildeo dedicados agrave harmonia dalira e das Musas e aqueles que danccedilam no coro do ciacuterculo de atividades dedicadasagraves Musas [hoi lteggtkekhoreukotes tei egkuklioi mousikei] os segundos tecircm maisrecursos para se desenvolver que os primeiros pois por assim dizer quase desdesua infacircncia eles satildeo inundados por discursos que defendem a firmeza oautocontrole e todas as virtudes (Filo De Mutatione Nominus 229 apud Hadot1984 p 286)
Eacute importante lembrar que sob a perspectiva do platonismo ldquoenkyklia mathematardquo
natildeo significa educaccedilatildeo usual tal como aparecia em Aristoacuteteles Nesse sentido embora os
termos eleutherai tekhnai e enkyklios paideia natildeo tenham o mesmo escopo o que haacute de
comum entre a enkyklios paideia do periacuteodo imperial as eleutherai tekhnai aristoteacutelicas e a
educaccedilatildeo matemaacutetica platocircnica eacute o seu caraacuteter que poderiacuteamos chamar elitizado Em funccedilatildeo
disso
natildeo eacute possiacutevel traduzir por ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteria habitualrdquo a expressatildeo enkuklios
125 Agar eacute o escravo egiacutepcio de Sarah mulher de Abraatildeo Abraatildeo simboliza o ldquointelecto amante doconhecimento e da virtuderdquo e Sarah representa a proacutepria virtude a Filosofia a ciecircncia e a sabedoria No DeCongressu para poder se unir a Sarah (ou seja para atingir a sabedoria) Abraatildeo deve primeiro unir-se aAgar
126 Esse significado estaacute relacionado agravequele modo considerado por Sexto Empiacuterico como menos apropriado emque os homens usam o termo muacutesica (M VI 2)
59
paideia empregada a toda hora no texto citado [de Vitruacutevio] mesmo se lembrarmosque tal educaccedilatildeo ordinaacuteria era reservada apenas a uma minoria eacute preferiacutevel traduzira expressatildeo por cultura completa (Hadot 1984 p 267)
Enquanto o conceito de artes liberais (eleutherai tekhnai) no periacuteodo imperial diz
respeito a todas as artes dignas de serem praticadas pelos homens livres abrangendo
atividades intelectuais ou de cunho mais praacutetico (tal como a caccedila e a ginaacutestica por exemplo)
o conceito de Enkyklios Paideia abrange as artes fundadas no raciociacutenio (logikai tekhnai)
enquanto um conjunto de ciecircncias que compotildeem um sistema teoacuterico unificado A
compreensatildeo dessa diferenccedila eacute fundamental para esclarecer o caraacuteter teoacuterico das disciplinas
dos Estudos Ciacuteclicos que Sexto propotildee refutar
Eacute dentro desse contexto que a muacutesica enquanto uma das mathemata que compotildeem a
enkyklios paideia aparece em todas as listas do periacuteodo imperial reunidas por Hadot
Aristides Quintiliano ilustra muito bem o caraacuteter teoacuterico e propedecircutico das mathemata
especificamente na relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia ao final de seu tratado sobre a muacutesica
Logo na medida em que eacute a principal companheira e colaboradora desta ndash me refiroagrave Filosofia ndash deve-se praticar e ensinar a muacutesica de modo completo e considerandoa relaccedilatildeo que existe entre ambas como a que existe entre os pequenos misteacuterios emrelaccedilatildeo aos misteacuterios maiores deve-se atribuir a cada uma a dignidade e a honraoportunas e deve-se estreitar sua uniatildeo por ser a mais conveniente e legiacutetima Comefeito a Filosofia eacute a culminaccedilatildeo de todo o conhecimento e a muacutesica eacute educaccedilatildeopreliminar (Aristides Quintiliano De Mus III 27)
Assim eacute enquanto parte de um sistema de conhecimento voltado ao acircmbito teoacuterico
que a muacutesica eacute listada como uma das mathemata refutadas no Contra os Professores A
muacutesica enquanto logikon tekhne permanece como uma propedecircutica para a Filosofia
43 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES
A lista das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos apresentada por Sexto Empiacuterico eacute
surpreendentemente parecida com a lista canocircnica das sete Artes Liberais estabelecida por
Santo Agostinho constituiacuteda pelo trivium (gramaacutetica retoacuterica dialeacutetica) e pelo quadrivium
(geometria aritmeacutetica astronomia muacutesica) Aleacutem disso o autor refere-se a essas disciplinas
como eleutherai tekhnai uma vez em sua obra (M II 57) Contudo tal referecircncia natildeo eacute razatildeo
suficiente para se supor que Sexto Empiacuterico considera as enkyklia mathemata e as eleutherai
tekhnai exatamente a mesma coisa ou que as compreenda segundo o seu significado a partir
60
de Santo Agostinho127 Tais interpretaccedilotildees mostram-se anacrocircnicas sob duas perspectivas
tanto quando se iguala as enkyklia mathemata ao seu sentido no periacuteodo claacutessico (de
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo tal como aparece em Aristoacuteteles) quanto ao se atribuir agrave lista de Sexto
um sentido posterior a ela
Apesar da inegaacutevel proximidade da lista de Sexto Empiacuterico com o trivium e o
quadrivium parece-nos muito mais razoaacutevel pensar tal como Pellegrin que ldquoSexto ataca um
modo de proceder que eacute dominante em sua eacutepoca ou pelo menos que ele considera como
mais completo que os outrosrdquo (Pellegrin 2002 p 30 grifo nosso) A lista das enkyklia
mathemata apresentada por Sexto Empiacuterico aproxima-se ndash muito ndash da lista de disciplinas de
Filo de Alexandria (gramaacutetica geometria ndash abrangendo possivelmente a aritmeacutetica ndash
astronomia retoacuterica e muacutesica) que estatildeo entre aquelas fundadas no raciociacutenio Nesse sentido
Sexto adotou como ldquomateacuteriardquo sobre a qual exercer sua criacutetica certa imagem das tekhnai daenkyklios paideia como ldquoservasrdquo da Filosofia natildeo porque seja sua convicccedilatildeo pessoal masporque essa seria a posiccedilatildeo dominante dos pensadores dogmaacuteticos de seu tempo (Pellegrin2002 p 32)
Se por um lado Sexto ataca tal perspectiva por ela ser predominante em seu periacuteodo
por outro tal ataque pauta-se em uma possiacutevel autonomia da tekhne em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Apesar do predomiacutenio da ideia de subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia houve ao mesmo
tempo no periacuteodo heleniacutestico uma espeacutecie de divoacutercio entre tekhne e Filosofia Alguns
ramos do conhecimento teacutecnico buscaram desenvolver um princiacutepio de funcionamento
autocircnomo em relaccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas ldquoA partir do momento em que Alexandria
destrona Atenas enquanto centro da vida intelectual grega as ciecircncias e as teacutecnicas ao
menos em seu niacutevel mais elevado natildeo satildeo mais praticadas nas escolas filosoacuteficasrdquo (Pellegrin
2002 p 15)
Observa-se que ao mesmo tempo em que a tekhne passa a ser ldquoestudada por ela
mesmardquo haacute o desenvolvimento de uma reflexatildeo que poderia ser chamada de epistemoloacutegica a
respeito das tekhnai128 O Contra os Professores parece lidar com essas duas posiccedilotildees em
127 Muito embora alguns comentadores o faccedilam Barnes considera a lista de Sexto Empiacuterico como um dosprimeiros aparecimentos da lista das Artes Liberais no sentido medieval Richard Bett (2005 p X)considera a lista das disciplinas apresentada por Sexto Empiacuterico como ldquocorrespondenterdquo agrave lista das seteArtes Liberais do curriacuteculo medieval Conforme apontamos acima (ver nota 101) essa equiparaccedilatildeo parece-nos leviana
128 Esse movimento havia comeccedilado pela medicina Pode-se observar na obra de Hipoacutecrates um esforccedilo de sedefinir o estatuto a aacuterea de atuaccedilatildeo e os meacutetodos da arte meacutedica Hipoacutecrates eacute considerado como aquele queldquolibertou a medicina de sua dependecircncia teoacuterica em relaccedilatildeo agrave Filosofiardquo (Pellegrin 2002 p 16) A relaccedilatildeocom a medicina eacute elucidativa a respeito do conceito de tekhne (aprovado pelo ceacutetico) que toma como base aexperiecircncia desvinculado do conceito de episteme Note-se que os principais representantes do ceticismo no
61
relaccedilatildeo agraves tekhnai ou seja as tekhnai teoacutericas dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e as
tekhnai enquanto praacuteticas autocircnomas dogmaacuteticas ou natildeo129
No Contra os Professores Sexto explicita que a investigaccedilatildeo sobre as mathemata se
daacute depois da investigaccedilatildeo da Filosofia visando ali tambeacutem (tal como na Filosofia) encontrar
a verdade deparando-se contudo com o dogmatismo Com isso o ceacutetico automaticamente
abre espaccedilo para a consideraccedilatildeo de que as tekhnai poderiam deter algum tipo de verdade
independentemente da Filosofia De acordo com Pellegrin ao fazer isso Sexto ldquonega agrave
Filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdaderdquo (Pellegrin 2002 p 32)
A refutaccedilatildeo ceacutetica dirige-se a um certo tipo de tekhne uma concepccedilatildeo especiacutefica
aquela dos professores das mathemata Em contrapartida haacute um sentido natildeo dogmaacutetico em
que as tekhnai natildeo satildeo refutadas130 Essa dicotomia como veremos aparece em relaccedilatildeo a
cada uma das disciplinas discutidas no Contra os Professores
431 O modelo argumentativo da obra
O Contra os Professores apresenta diferenccedilas de estilo argumentativo e de objeto em
relaccedilatildeo aos outros textos de Sexto Empiacuterico No restante de sua obra a Filosofia eacute o objeto da
refutaccedilatildeo ceacutetica e a argumentaccedilatildeo dirigida contra as partes desta culmina na suspensatildeo de
juiacutezo
Pellegrin chama atenccedilatildeo para o fato de que ldquoa situaccedilatildeo da Filosofia e das disciplinas eacute
seacuteculo II dC entre eles o proacuteprio Sexto Empirico eram tambeacutem os principais representantes da escolaempirista de Medicina Essa corrente toma como base o pensamento de Galeno De acordo com Allen oldquoempirismo meacutedico que surgiu no meio do terceiro seacuteculo aC define-se em oposiccedilatildeo a uma disseminadatendecircncia racionalista que seus fundadores detectaram na medicina do seu tempordquo (Allen 2010 p 234) Amedicina empiacuterica partia da observaccedilatildeo do fenocircmeno tendo como meacutetodo natildeo no raciociacutenio mas asistematizaccedilatildeo da experiecircncia Sobre a estreita relaccedilatildeo entre pirronismo e medicina ver Brochard (2009) eAllen (2010)
129 Os fundadores da escola empirista de medicina a compreendiam enquanto praacutetica autocircnoma (desvinculadada episteme mas ainda assim considerada dogmaacutetica pelo ceticismo) Haacute ainda a Escola Metoacutedica demedicina que surge em I aC Tal como os empiristas os metoacutedicos baseavam-se apenas no fenocircmenoTodavia diferentemente daqueles os Metoacutedicos segundo Porchat ldquoaceitaram explicitamente certo uso darazatildeo mas natildeo como fonte de conhecimentos teoacutericos natildeo como propiciadora de uma pretensa passagem doobservaacutevel ao inobservaacutevel que nos poria em condiccedilotildees de explicar os fenocircmenos observadosReconheceram por assim dizer uma razatildeo embutida na proacutepria experiecircnciardquo (Porchat 2007 p 24) EmboraEmpiristas e Metoacutedicos tivessem em comum o fenocircmeno enquanto ponto de partida os Empiristas eramcriticados ldquoporque estes afirmavam dogmaticamente que as entidades ocultas dos racionalistas eraminexistentes ou absolutamente incognosciacuteveisrdquo (Porchat 2005 p 33) E eacute esta a diferenccedila que faz com queSexto Empiacuterico mesmo sendo um meacutedico da escola empirista afirme que o ceticismo estaacute mais proacuteximo daescola metodista de medicina (ver HP I 236)
130 Tal como se observa no criteacuterio praacutetico do ceticismo pirrocircnico Ver acima p 50-1
62
comparaacutevel mas natildeo idecircntica Em relaccedilatildeo agraves disciplinas do aprendizado a questatildeo natildeo eacute
mais a suspensatildeo do assentimento mas a apresentaccedilatildeo de argumentos eficazes contra essas
disciplinasrdquo (Pellegrin 2002 p 11)
As diferenccedilas entre o modelo argumentativo presente no Contra os Professores e o
das outras obras e o desaparecimento da suspensatildeo de juiacutezo (ao menos explicitamente)
levaram alguns comentadores agrave conclusatildeo de que Sexto Empiacuterico teria abandonado o
ceticismo131 Outros consideram que se partimos daquilo que eacute apresentado por Sexto em
outros textos o Contra os Professores cai em contradiccedilatildeo e natildeo escapa ao dogmatismo132
No que diz respeito ao estilo do texto muito embora natildeo haja menccedilatildeo direta agrave
suspensatildeo de juiacutezo eacute impossiacutevel negar a presenccedila massiva dos procedimentos da
argumentaccedilatildeo ceacutetica O discurso ceacutetico eacute pautado em uma seacuterie de argumentos que foram
desenvolvidos pelos ceacuteticos anteriores a Sexto Empiacuterico Nas Hipotiposes Pirronianas (HP I
36-163) Sexto apresenta os argumentos ceacuteticos utilizados para minar as bases teoacutericas dos
especialistas os chamados Modos de Enesidemo e os Modos de Agripa Os Modos ou Tropos
(tropous) como satildeo chamados levam agrave suspensatildeo de juiacutezo ao mostrarem a equipolecircncia das
afirmaccedilotildees acerca das coisas Satildeo consideraccedilotildees baseadas (1) naquele que julga (2) naquilo
que eacute julgado e (3) em ambos133 Os Modos desenvolvidos pelo filoacutesofo Enesidemo (I aC)
segundo a tradiccedilatildeo dos antigos ceacuteticos seriam dez134 Jaacute os Modos de Agripa satildeo um conjunto
de argumentos baseados nos problemas loacutegicos em que incorreriam os argumentos dos
dogmaacuteticos contra os ceacuteticos que satildeo (1) conflito de opiniotildees (2) regresso ao infinito (3)
relatividade (4) hipoacutetese (5) ciacuterculo Estes posteriores aos de Enesidemo visam
131 O principal comentador a defender essa tese eacute Janaacuteček em Sextus Empiricus skeptical methods (1972) Suatese eacute refutada em diversos artigos Ver por exemplo Pellegrin (2002 p 11 ss) Desbordes (1990 p 167ss)
132 Richard Bett em seu artigo La double schizophreacutenie de M I-VI et ses origines historiques (2006)apresenta uma outra explicaccedilatildeo para as diferenccedilas detectadas entre as obras de Sexto Empiacuterico Em sumasegundo ele ldquomuitas pesquisas tentam mostrar que Sexto natildeo se contradiz Entretanto um exame detalhadodo texto mostra claramente que tais tentativas estatildeo fadadas ao fracassordquo Baseado em uma pesquisahistoacuterica Bett considera que a argumentaccedilatildeo do Contra os Professores eacute ldquoresultado de uma falta deadaptaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave sua proacutepria forma posterior do pirronismo dos argumentos que estavamoriginalmente em seu lugar em um periacuteodo anterior e distintordquo (Bett 2006 p 17) O artigo de Pellegrin(2006) retomando sua leitura apresentada na introduccedilatildeo agrave sua ediccedilatildeo do Contra os Professores (2002) eacuteuma resposta a essa visatildeo sustentada por Bett Entretanto em um artigo posterior especificamente sobre oContra os Muacutesicos Bett teria revisto algumas de suas conclusotildees a esse respeito afirmando que ldquopodehaver algumas singularidades no modo como ele [Sexto] apresenta seu material neste livro e em sua obracomo um todo mas as preocupaccedilotildees que muitos (incluindo eu mesmo) expressaram sobre isso natildeo satildeofundamentaisrdquo (Bett 2013 p 168)
133 Tomemos como exemplo o primeiro Modo de Enesidemo acerca da variedade dos animais identificado noseguinte argumento do Contra os Muacutesicos ldquoa mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute demodo algum para os homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitantemas perturbadorardquo (M VI 20)
134 Sobre os Modos de Enesidemo ver Annas amp Barnes (1985)
63
complementaacute-los Para Spinelli (2010 p 259) ldquotodo objeto de investigaccedilatildeo pode ser referido
a esses Modosrdquo
Jaacute no iniacutecio do primeiro livro do Contra os Professores Sexto faz uma refutaccedilatildeo geral
com a pretensatildeo de mostrar que natildeo existem tais ensinamentos Sua argumentaccedilatildeo aborda a
impossibilidade do aprendizado devido agrave inexistecircncia das partes necessaacuterias ao aprendizado
das disciplinas a saber o conteuacutedo ensinado o professor o aprendiz e o meacutetodo de
aprendizado (M I 40)135
Em tal exposiccedilatildeo observa-se a forma dicotocircmica e ldquoem ondasrdquo da argumentaccedilatildeo
ceacutetica ldquotudo eacute A ou B (por exemplo sensiacutevel e inteligiacutevel) poreacutem X (por exemplo os
corpos) natildeo eacute A nem B por conseguinte X natildeo existe e natildeo pode ter a propriedade Y (por
exemplo ser ensinado) e mesmo se supusermos que X eacute A ele natildeo estaacute menos privado de
Yrdquo (Pellegrin 2002 p 11-2)
A argumentaccedilatildeo ceacutetica parte de conceitos considerados dogmaacuteticos (tambeacutem
abordados em outras obras de Sexto136) privilegiando com frequecircncia os conceitos
estoicos137 Quando Sexto argumenta para mostrar a impossibilidade de existecircncia de uma
arte ele parte das noccedilotildees de ldquoconhecimentordquo ldquoverdaderdquo e ldquoexistecircnciardquo daqueles que ele
pretende refutar Em sua contra-argumentaccedilatildeo Sexto assume opiniotildees tatildeo dogmaacuteticas quanto
essas que ele visa refutar Todavia ao contraacuterio daqueles que emitiram essas opiniotildees ele natildeo
pretende assumi-las como verdadeiras mas as utiliza para mostrar o conflito entre as opiniotildees
dos dogmaacuteticos
Assim em todos os livros do Contra os Professores observa-se que o autor
utiliza o arsenal dos tropos particularmente os cinco de Agripa (diaphonia regressoao infinito relatividade hipoacutetese ciacuterculo) e os mesmo dispositivos de ataque aosfundamentos mais abstratos (inexistecircncia da prova aporia dos raciociacutenios sobre otodo e a parte) e frequentemente o equiliacutebrio das opiniotildees a equipolecircnciarealiza-se de fato mesmo se Sexto persiste menos que em outros lugares emrelacionar este resultado agrave realizaccedilatildeo de uma das foacutermulas que ele cuidadosamentecomentou no livro I das Hipotiposes (Desbordes 1990 p 168)
No Contra os Professores satildeo utilizados dois tipos de argumentaccedilatildeo explicitados pelo
proacuteprio ceacutetico De acordo com Sexto Empiacuterico ldquoo caso contra os professores foi exposto
135 O mesmo tema eacute abordado em HP III 238-279136 Cf PH II 37 PH III 38 102 M IX 359 M X 39137 Cf M I 17 20 Exemplo disso eacute o uso da noccedilatildeo estoica de tekhne como paradigma para sua refutaccedilatildeo (ver
p 54) Aleacutem disso especificamente no Contra os Muacutesicos os argumentos a respeito da utilidade da muacutesicasatildeo muito semelhantes aos de Filodemo sendo que muitas das afirmaccedilotildees a favor de sua utilidade satildeoatribuiacutedas diretamente aos estoicos Ver seccedilotildees 34 e 52
64
tanto por Epicuro quanto pelos disciacutepulos de Pirro embora de maneiras diferentesrdquo (M I
1)138 Ao compor sua argumentaccedilatildeo Sexto Empiacuterico
sente-se livre para se apropriar das opiniotildees e conclusotildees dos outros sendodogmaacuteticas ou ceacuteticas sem por essa razatildeo ter que defendecirc-las por si mesmo Issojustifica a presenccedila em M I-VI de diversas vozes entre as quais aleacutem da pirrocircnicae de outras escolas e movimentos filosoacuteficos os epicuristas como jaacute foi notado sesobressaem Isto natildeo eacute de modo algum se usado para propoacutesitos polecircmicos e emfunccedilatildeo da argumentaccedilatildeo incompatiacutevel com o pirronismo (Spinelli 2010 p 256)
De acordo com Desbordes o autor utiliza com propriedade a antilogia retoacuterica em sua
exposiccedilatildeo sobre a utilidade de certas disciplinas Para o comentador no Contra os Muacutesicos
(M VI 4-6)
Sexto assinala a diferenccedila entre essa tradiccedilatildeo [epicurista] e o meacutetodo que ele julgacomo mais propriamente ceacutetico e observando-se de perto essa oposiccedilatildeo eacuteinstrutiva Trata-se com efeito de uma dupla oposiccedilatildeo por um lado a proposta eacutedogmaacutetica visando agrave negaccedilatildeo por outro eacute mais aporeacutetica (aporetikoteron)visando a princiacutepio agrave suspensatildeo de juiacutezo aleacutem disso por um lado examina-se osargumentos do adversaacuterio de outro ataca-se diretamente os fundamentos de suaopiniatildeo (Desbordes 1990 p 168-9)
Sexto Empiacuterico toma o conceito estoico de arte como ldquosistema composto de
apreensotildees exercidas conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10 grifo
nosso) como paradigma do que seja uma tekhne Consequentemente uma parte da refutaccedilatildeo
ceacutetica estaacute voltada agrave utilidade das mathemata Todavia Sexto considera dogmaacuteticos os
argumentos que ele mesmo apresenta para a refutaccedilatildeo da utilidade Embora Sexto critique
sob certa perspectiva tais argumentos ele tambeacutem os toma como parte vaacutelida de sua
argumentaccedilatildeo visto que ele natildeo pretende ocultar qualquer parte da refutaccedilatildeo (ver M VI 6)
No que concerne a essa argumentaccedilatildeo contra a utilidade das tekhnai para Pellegrin
tudo parece indicar que Sexto fala de dois tipos distintos de inutilidade R Bett fazuma boa observaccedilatildeo quando nota que sendo as artes definidas pela sua utilidade osargumentos que atacam sua utilidade satildeo ldquouma variaccedilatildeordquo dos argumentos a favor dasua natildeo existecircncia visto que se ela eacute inuacutetil uma arte deixa de ser uma arte(Pellegrin 2006 p 41)
Mesmo utilizando argumentos semelhantes aos dos epicuristas Sexto Empiacuterico
apresenta no iniacutecio do Contra os Professores uma criacutetica agrave tese dogmaacutetica sustentada por
eles de que os Estudos Ciacuteclicos satildeo ineficazes para se chegar agrave sabedoria Tambeacutem de acordo
138 Sexto Empiacuterico considera que a refutaccedilatildeo agraves artes feita por Epicuro eacute dogmaacutetica por sustentar firmementeque as artes satildeo inuacuteteis aleacutem disso ele sugere que a atitude de Epicuro eacute motivada pela ignoracircncia
65
com Pellegrin apesar dessa ldquorepreensatildeordquo ao meacutetodo epicurista
nas outras passagens ao contraacuterio parece que no que concerne agraves disciplinasteacutecnicas as evidecircncias de sua inutilidade valem pela criacutetica de sua proacutepriaexistecircncia e os argumentos apresentados por certos dogmaacuteticos (os Epicuristas osCirenaicos os Ciacutenicos e outros) satildeo utilizaacuteveis pelo ceacutetico pirrocircnico Os pirrocircnicose certos dogmaacuteticos que tinham posiccedilotildees inconciliaacuteveis sobre a Filosofiaencontram-se adotando uma estrateacutegia comum no que diz respeito agraves disciplinasteacutecnicas a saber arruinar um elemento fundamental neste caso a utilidade A parteldquomais aporeacuteticardquo natildeo faz mais que continuar o trabalho de aniquilaccedilatildeo (Pellegrin2006 p 41)
O segundo tipo de refutaccedilatildeo a argumentaccedilatildeo ldquomais aporeacuteticardquo que aparece no Contra
os Professores conclui pela inexistecircncia dos princiacutepios baacutesicos ou da proacutepria arte em
questatildeo Mas como vimos o ceacutetico visa desestabilizar as teorias daqueles que pretendem ter
apreendido a verdade natildeo provar sua inexistecircncia Segundo Pellegrin os termos utilizados
por Sexto Empiacuterico tal como ldquoanyparktos anypostatos ou asystasos indicam natildeo uma
inexistecircncia no sentido ontoloacutegico mas uma inconsistecircncia ou uma ausecircncia de
fundamentordquo139 (Pellegrin 2006 p42) Eacute nesse sentido que no Contra os Muacutesicos Sexto
afirma por exemplo que ldquoo som natildeo existerdquo
Em vista disso a argumentaccedilatildeo que conclui pela ldquonatildeo-existecircnciardquo dos conceitos
apresentados no Contra os Professores tambeacutem natildeo precisa ser considerada um sinal de
dogmatismo negativo da parte do ceacutetico Se ele utiliza uma argumentaccedilatildeo de caraacuteter
destrutivo eacute antes de tudo para atacar as bases dogmaacuteticas dos conteuacutedos discutidos Nesse
caso o princiacutepio seguido pelo pirrocircnico eacute o de que ele ldquodeve concentrar os disparos de sua
polecircmica contra as bases do edifiacutecio dogmaacutetico visto que somente derrubando-as totalmente
o colapso de todos os outros aspectos teoacutericos que dependem destas bases seraacute tambeacutem
garantidordquo (Spinelli 2010 p 257)
No que diz respeito ao estilo argumentativo parece-nos plausiacutevel assumir que a visatildeo
ceacutetica permanece atuante no Contra os Professores Tal como Pellegrin (2002 p 13)
relacionamos ldquoas diferenccedilas que existem entre o Contra os Professores e os outros tratados agrave
diferenccedila entre seus objetosrdquo Consideramos que tal diferenccedila se daacute ainda em funccedilatildeo dos
proacuteprios interlocutores (os professores) aos quais os livros satildeo destinados Em suma
Sexto fala de outro modo que em suas outras obras porque ele estaacute falando de outracoisa Em M I-VI encontramo-nos com efeito fora do programa da Filosofia ceacutetica
139 Tal distinccedilatildeo eacute fundamental para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo que aparece na segunda parte do Contraos Muacutesicos
66
que Sexto expotildee no iniacutecio das Hipotiposes (I 5-6)140 (hellip) Em M I-VI comeccedila algoque eacute comparaacutevel ao tratamento da Filosofia (hellip) com as intenccedilotildees e a metodologiaceacutetica Sexto aborda um domiacutenio que natildeo eacute mais a Filosofia propriamente dita ()mas que aproxima-se em muitos aspectos da simples experiecircncia da vida cotidiana(Desbordes 1990 p 170)
44 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA
DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO
A refutaccedilatildeo das disciplinas tal como a compreendemos ateacute aqui implica na ideia de
que o dogmatismo natildeo estaacute simplesmente ligado aos juiacutezos filosoacuteficos mas sim e sobretudo
a uma atitude em relaccedilatildeo a uma crenccedila mdash a atitude de sustentar firmemente essa crenccedila141
Sob essa perspectiva o ceacutetico natildeo estaacute preocupado em refutar apenas teses estritamente
filosoacuteficas Ele quer combater toda e qualquer precipitaccedilatildeo dogmaacutetica mostrando que esta
acontece tambeacutem em outras aacutereas do conhecimento tanto em uma dimensatildeo praacutetica da
Filosofia142 quanto no que diz respeito agraves bases do conhecimento teacutecnico
De acordo com Desbordes o que acontece no Contra os Professores eacute uma ldquoreaccedilatildeo de
defesa contra as invasotildees excessivas da especulaccedilatildeordquo (Desbordes 1990 p 171) Segundo o
comentador ldquoo ceticismo aplica-se apenas agraves proposiccedilotildees dogmaacuteticas sobre aquilo que natildeo eacute
evidente Mas encontra-se tambeacutem proposiccedilotildees dogmaacuteticas incompatiacuteveis com as evidecircncias
do senso comum e sobre elas a posiccedilatildeo de Sexto variardquo (idem) Todavia para Desbordes a
oposiccedilatildeo entre uma posiccedilatildeo dogmaacutetica e a afirmaccedilatildeo de uma evidecircncia pode constituir uma
diaphonia que conduziria agrave suspensatildeo de juiacutezo
No Contra os Professores enfatiza-se a diferenccedila entre a vida cotidiana e a
especulaccedilatildeo intelectual Tal diferenccedila foi sublinhada tambeacutem no Contra os Moralistas (M XI
165) ldquoo ceacutetico natildeo conduz sua vida de acordo com o discurso filosoacutefico (ele eacute inativo sob
essa perspectiva) mas de acordo com a observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica ele eacute capaz de escolher isso
e rejeitar aquilordquo
Sob essa perspectiva a da observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica determinar o sentido em que um
conceito seraacute discutido eacute procedimento comum na obra de Sexto Empiacuterico Em todos os
livros do Contra os Professores aparecem definiccedilotildees dos sentidos em que cada uma das Artes
eacute atacada em oposiccedilatildeo agravequilo que eacute preservado de cada uma delas Se por um lado as Artes140 Sexto pontua a conclusatildeo do relato acerca da refutaccedilatildeo ceacutetica agrave Filosofia em M XI 257141 Tendo em vista a interpretaccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico que apresentamos acima Ver seccedilatildeo 41
(especificamente p 48-9)142 Na questatildeo acerca da Arte de Viver abordada em HP III
67
devem ser refutadas em funccedilatildeo de seus aspectos dogmaacuteticos por outro elas devem ser
preservadas na medida em que satildeo uacuteteis natildeo segundo a definiccedilatildeo dogmaacutetica dos estoicos
mas de acordo com o criteacuterio praacutetico do ceacutetico segundo o qual ldquoalgumas artes foram
introduzidas principalmente com o objetivo de evitar coisas prejudiciais outras com o de
descobrir coisas beneacuteficas medicina eacute um exemplo do primeiro tipo sendo uma arte curativa
que alivia a dor e navegaccedilatildeo do segundo tipo pois todos os homens precisam muito da
assitecircncia de outras naccedilotildeesrdquo (M I 51)
Ao longo do Contra os Professores Sexto apresenta o sentido em que cada uma das
artes natildeo eacute refutada
noacutes temos a gramaacutetica baacutesica ou grammatistike (M I 44 49 ss e talvez II 13) mastambeacutem poesia (M I 278 299) ldquoastrometeorologiardquo baseada na observaccedilatildeo dofenocircmeno (M V 1-2) tal como agricultura (M V 2) ou a arte da pilotagem (M I51 II 13 V 2 ver tambeacutem M VIII 203) e tambeacutem talvez escultura e pintura (MI 182) muacutesica enquanto a simples execuccedilatildeo de instrumentos (M VI 1) eobviamente a medicina (M I 51 II 13) e talvez finalmente a Filosofia secompreendida em um sentido genuinamente pirrocircnico (novamente M II 13 mastambeacutem I 280 296 e II 25) (Spinelli 2010 p 258 grifo nosso)
Enquanto parte do criteacuterio praacutetico as artes natildeo podem ser simplesmente eliminadas
por isso a distinccedilatildeo entre arte dogmaacutetica e arte relacionada agrave vida comum eacute essencial para o
ceacutetico De acordo com Spinelli
Sexto parece se dirigir agraves artes ou tekhnai ao inveacutes dos aspectos especiacuteficos doraciociacutenio filosoacutefico e essas tecircm caracteriacutesticas diferentes Embora tambeacutempretenda-se que estejam ancoradas a uma estrutura teoacuterica que visa uma verdadedita incontroversiacutevel a qual eacute objeto das criacuteticas destrutivas de Sexto em vaacuterioslivros de M I-VI parece que elas satildeo para aleacutem disso e especialmente perigosas em outra direccedilatildeo Tais tekhnai de modos diferentes e em diferentes graussatildeo de fato natildeo apenas uma fonte de precipitaccedilatildeo dogmaacutetica no niacutevel do argumentoabstrato mas representam uma ameaccedila agrave uacutenica estrutura de referecircncia moral ecomportamental que o ceacutetico aceita as aparecircncias relacionadas agrave vida comum oukoinos bios (PH I 17) Aqui entatildeo estaacute a explicaccedilatildeo para a dicotomia deaproximaccedilotildees notada anteriormente tal como a estrateacutegica alianccedila temporaacuteria comalgumas criacuteticas Epicuristas acerca da falta de utilidade das Artes LiberaisParticularmente entretanto torna-se mais faacutecil entender as tantas ressalvas feitaspor Sexto em defesa da legitimidade de algumas tekhnai e da possibilidade depraticaacute-las agraves vezes em contraste expliacutecito com as Artes Liberais (Spinelli 2010p 258 grifo nosso)
Em funccedilatildeo disso a diferenccedila entre o meacutetodo utilizado contra a Filosofia e este
utilizado no caso das tekhnai se daacute natildeo soacute porque os objetos refutados satildeo diferentes mas
porque essa diferenccedila eacute fundamental para a coerecircncia interna do ceticismo O Contra os
68
Professores inicia-se com a justificativa de que a refutaccedilatildeo agraves mathemata acontece porque em
relaccedilatildeo a elas o ceacutetico encontrou as mesmas dificuldades que havia encontrado em relaccedilatildeo agrave
Filosofia Dificuldades essas ele explicita ligadas agrave pretensatildeo de verdade dessas disciplinas
ou em outras palavras ao dogmatismo impliacutecito (e muitas vezes expliacutecito) nas afirmaccedilotildees
dos professores das mathemata
Faz-se necessaacuterio para o ceacutetico mostrar a vaidade destes discursos dogmaacuteticos queas artes sustentam sobre elas mesmas e natildeo mostrar que haacute teses opostas de forccedilaigual enunciadas pelos teoacutericos de cada uma dessas artes entre as quais o ceacuteticonatildeo pode escolher (hellip) portanto as ldquodificuldades iguaisrdquo agravequelas encontradas naFilosofia que satildeo aquelas com as quais o ceacutetico se confrontou no que concerne agravesdisciplinas teacutecnicas natildeo satildeo ou pelo menos natildeo principalmente a igualdade dasteses contraditoacuterias e a irregularidade do real Incumbe-se ao ceacutetico mostrar ainconsistecircncia teoacuterica das descriccedilotildees que as artes datildeo a si mesmas (Pellegrin2006 p 43 grifo nosso)
Se o Contra os Professores aparece como uma reaccedilatildeo quase pessoal de Sexto
Empiacuterico ao dogmatismo dos professores das mathemata isso se daacute porque estes dogmatizam
a respeito de uma aacuterea decisiva para a coerecircncia interna da praacutetica ceacutetica O ceacutetico recusa as
teorias a respeito das artes natildeo soacute porque elas partem de premissas natildeo evidentes mas
tambeacutem porque a determinaccedilatildeo da natureza de certos aspectos de uma arte eacute algo
completamente inuacutetil para a sua execuccedilatildeo A possibilidade de execuccedilatildeo de uma arte eacute por sua
vez algo essencial agrave legitimidade do criteacuterio praacutetico e consequentemente para a
legitimidade do proacuteprio ceticismo pirrocircnico
Nesse sentido a suspensatildeo de juiacutezo nunca mencionada no Contra os Professores natildeo
estaacute diretamente em questatildeo Eacute tendo em vista as ldquopretensotildees de uma arte de possuir uma
estrutura teoacuterica e principalmente princiacutepios que Sexto pretende anairein derrubar anular
as disciplinas teacutecnicasrdquo (Pellegrin 2006 p 44)
Se o ceacutetico faz uma distinccedilatildeo entre as tekhnai que ele considera dogmaacuteticas (aquelas
que compunham os Estudos Ciacuteclicos) e as tekhnai de acordo com o criteacuterio praacutetico eacute porque
ele ldquopressente a possiacutevel autonomia de um pensamento teacutecnico (hellip) apenas as tekhnai que
satildeo pode-se dizer servas de primeira ordem da Filosofia teriam o meacuterito de ser atacadas
pelo ceacutetico (Pellegrin 2002 p 34) Por isso podemos concluir junto com Pellegrin que
ldquomesmo quando ele pretende combater outra coisa que a Filosofia Sexto ainda estava
combatendo a sombra da Filosofiardquo (idem)
69
5 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS
O Contra os Muacutesicos comeccedila com a distinccedilatildeo entre alguns sentidos do termo
ldquomuacutesicardquo para definir o escopo da refutaccedilatildeo Tendo definido em que sentido o termo seraacute
refutado Sexto apresenta os dois tipos de argumentaccedilatildeo que seratildeo utilizados O primeiro
conjunto de argumentos sobre a utilidade da muacutesica eacute carregado de exemplos que dialogam
com diversas fontes da Antiguidade o segundo conjunto sobre a teoria musical apresenta os
principais conceitos desta teoria e os refuta Agora que jaacute compreendemos o conceito de
mousike e seu sentido enquanto uma das disciplinas que faziam parte da enkyklios paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico e tendo aleacutem disso apreendido o sentido da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves
tekhnai como um todo cabe ainda tecer algumas consideraccedilotildees diretamente sobre o conteuacutedo
do Contra os Muacutesicos
51 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo
Sexto Empiacuterico distingue trecircs sentidos em que o termo ldquomuacutesicardquo eacute utilizado enquanto
ldquociecircncia acerca das melodias [episteme tis peri melodias] sons e composiccedilatildeo de ritmosrdquo
ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo [he peri organiken empeiria] e ldquosucesso na realizaccedilatildeo de
alguma coisardquo (M VI 1-2) Esse uacuteltimo considerado por Sexto Empiacuterico como menos
apropriado eacute derivado de um sentido amplo de ldquomousikerdquo que inclui todas as artes e ciecircncias
presididas pelas Musas Por isso ldquomusicalrdquo (mousikos) pode ser atribuiacutedo agravequele que eacute
ldquodotado pelas Musas culto refinado eleganterdquo (Tomaacutes 2002 p 40-1)
Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute
apenas nesse sentido que ele pretende refutar a muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o
mais completordquo (M VI 3)
A definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico apresenta pode de fato ser encontrada na obra de
Aristoacutexeno mas como definiccedilatildeo da ciecircncia harmocircnica que eacute uma das partes da muacutesica Para
Aristoacutexeno a muacutesica eacute dividida em quatro partes143 entre elas a harmonike eacute a principal e
143 ldquo() ciecircncia harmocircnica eacute uma parte da competecircncia do muacutesico assim como a riacutetmica a meacutetrica e a
70
por sua vez eacute dividida em sete partes notas intervalos escalas gecircneros sistemas
modulaccedilatildeo e melopeia (Aristoacutexeno El Harm 4410-48) Pela sua definiccedilatildeo de mousike a
partir de uma de suas partes ‒ que eacute a harmonike ‒ nota-se que Sexto Empiacuterico apresenta uma
definiccedilatildeo pouco exata de mousike De acordo com Reyes essa aproximaccedilatildeo entre mousike e
harmonike pode natildeo ser tatildeo imediata ldquotonos eacute um elemento da harmonike enquanto a
rythmopoiia eacute um elemento da mousike melodia pode ser referida por Sexto agrave melopoiia (que
pertence agrave harmonike embora pareccedila ser utilizada aqui para designar o termo geneacuterico
melos)rdquo (Reyes 2004 p 99) A princiacutepio algueacutem poderia simplesmente supor que Sexto
Empiacuterico natildeo domina o assunto Natildeo obstante essa primeira definiccedilatildeo aparece acompanhada
da expressatildeo ldquoe coisas desse tipordquo (kai ta paraplesia katagignomene pragmata) o que abre
espaccedilo para se considerar que a intenccedilatildeo de Sexto Empiacuterico eacute dar uma definiccedilatildeo bastante
geral sobre a muacutesica
O objetivo de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos implica uma refutaccedilatildeo que natildeo
tem uma teoria especiacutefica enquanto alvo mas antes uma perspectiva comum sobre a muacutesica
Nesse sentido a definiccedilatildeo de Aristoacutexeno (enquanto o representante do grupo de teoacutericos
chamados ldquomuacutesicosrdquo) tem caraacuteter paradigmaacutetico a respeito daquilo que se quer discutir visto
que ela eacute tida como a ldquomais completardquo (M VI 3)
Se a muacutesica eacute objeto da refutaccedilatildeo ceacutetica enquanto uma das disciplinas da enkyklios
paideia sua definiccedilatildeo enquanto episteme coloca-a no grupo das ldquoartes baseadas na razatildeordquo144
as logiken tekhnai A mousike enquanto episteme definida por elementos da harmonike eacute
oposta por Sexto Empiacuterico a outro conceito que aparece tambeacutem em Aristoacutetexo a organike
Embora a organike apareccedila como uma das partes da mousike ao lado da harmonike os
autores da tratadiacutestica musical desconsideram a parte praacutetica da muacutesica considerando-a
alogos (irracional)145 A organike enquanto arte praacutetica (pratike tekhne) aparece junto do
termo ldquoempeiriardquo (experiecircncia) destacando o seu caraacuteter praacutetico
Reyes aponta que ldquona eacutepoca de Sexto o oposto agrave harmonike eacute jaacute claramente a
organike (hellip) Os organikoi isto eacute a organike de Sexto nem sequer participa da discussatildeo
dos kriteria em muacutesica tatildeo relevante nessa eacutepocardquo (Reyes 2004 p 100) Tal recorte de
acordo com a cisatildeo entre teoria e praacutetica musical na Antiguidade evidencia que Sexto estaacute
preocupado em refutar a muacutesica enquanto teoria e natildeo como uma arte praacutetica
orgacircnicardquo (Aristoacutexeno El Harm 419-12 traduccedilatildeo Roosevelt Rocha)144 Ver seccedilatildeo 42 (p 57)145 Aristides Quintiliano De Mus (419-20) Cleonides Harm (1793-4 Jan) Anon Bellerm (12)
71
512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica
A argumentaccedilatildeo presente no Contra os Muacutesicos segue o modelo argumentativo
apresentado no capiacutetulo anterior146 e foi dividida explicitamente pelo autor em dois conjuntos
de argumentos e contra-argumentos Tendo definido o objeto a ser refutado a teoria musical
(no sentido amplo do termo147) Sexto Empiacuterico ldquoalinhou sucessivamente argumentos mais
dogmaacuteticos [dogmatikoteron] e em seguida argumentos mais aporeacuteticos [aporetikoteron]rdquo
(Pellegrin 2002 p 46) atribuindo-os inicialmente a ldquounsrdquo e ldquooutrosrdquo Para o ceacutetico
Uns de modo mais dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute umensinamento necessaacuterio para a felicidade mas muito prejudicial e eles seesforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo que eacute dito pelos muacutesicos esustentando que seus argumentos principais eram dignos de negaccedilatildeo Outros de ummodo mais aporeacutetico evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo ao desestabilizar asprincipais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem destruir toda a muacutesica (M VI4-5 grifo nosso)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37) a discussatildeo se daacute a respeito da
utilidade da muacutesica se ela eacute ou natildeo necessaacuteria para a felicidade Isso porque desde Platatildeo
as questotildees esteacuteticas satildeo apresentadas tipicamente em contextos inextricaacuteveis dequestotildees eacuteticas e poliacuteticas mais amplas a beleza estaacute mais intimamente ligada como bem do que noacutes tenderiacuteamos a assumir e as artes satildeo amplamente consideradasem termos de seus efeitos eacuteticos e pedagoacutegicos de seu papel na sociedade etc EPlatatildeo dita o tom a respeito disso para a Filosofia Grega bastante posterior a eleComo veremos os Estoicos parecem tecirc-lo seguido nisso enquanto os Epicuristasque argumentaram contra o poder eticamente transformativo da muacutesica claramentese consideram como desafiando uma visatildeo amplamente sustentada (Bett 2013 p156-7)
Se a discussatildeo das artes estaacute ligada a seu papel pedagoacutegico e poliacutetico a questatildeo da
utilidade da muacutesica eacute um problema eacutetico e natildeo esteacutetico De acordo com Bett os argumentos
eacuteticos apresentados pelo ceacutetico em geral abrangem duas questotildees centrais ldquose algo eacute bom
ou ruim por natureza (hellip) e quais satildeo as consequecircncias praacuteticas de uma resposta afirmativa a
essa questatildeordquo (Bett 2013 p 157) e se existe (tal como afirmavam os Estoicos) ou natildeo uma
Arte de Viver
Enquanto os filoacutesofos e a maioria das pessoas acreditam que a muacutesica pode ser boa
por natureza os filoacutesofos Epicuristas148 satildeo aqueles ldquounsrdquo que ldquode modo mais dogmaacutetico
146 Ver seccedilotildees 43 e 431147 Ver Introduccedilatildeo (p 10) e seccedilatildeo 31148 Mostraremos adiante a relaccedilatildeo estreita entre os argumentos do filoacutesofo epicurista Filodemo e os de Sexto
72
tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute um ensinamento necessaacuterio para a felicidaderdquo (M VI 4)
Ainda que Sexto Empiacuterico atribua explicitamente alguns dos contra-argumentos aos
epicuristas (ver M VI 1927) ele continua considerando que eles satildeo dogmaacuteticos149 visto que
sustentam firmemente a crenccedila150 de que determinadas teses satildeo falsas (HP I 1-10) Nesse
sentido seus argumentos satildeo usados pelo ceacutetico para apresentar um ponto de vista contraacuterio
ao da maioria
Embora os argumentos contra a utilidade da muacutesica recebam mais atenccedilatildeo do ceacutetico
do que os a favor (ateacute porque estes jaacute eram bastante conhecidos por aqueles aos quais o
Contra os Muacutesicos se dirige) consideramos tal como Bett (2013 p 162) que ldquonatildeo eacute difiacutecil
observar isso como um exemplo do procedimento padratildeo de Sexto de justapor argumentos
para conclusotildees opostas visando induzir a suspensatildeo do juiacutezo a respeito de ambos os ladosrdquo
apesar da suspensatildeo do juiacutezo natildeo ser diretamente mencionada ao longo do Contra os
Professores151
Na segunda parte da obra (M VI 38-68) Sexto apresenta brevemente alguns
conceitos da teoria musical (em sentido estrito) especificamente os da ciecircncia harmocircnica de
Aristoacutexeno e contra isso sustenta argumentos contra os princiacutepios baacutesicos da teoria musical
visando mostrar a inexistecircncia dos conceitos a partir dos quais a ciecircncia harmocircnica se
constroacutei152 Nesse ponto natildeo haacute propriamente uma oposiccedilatildeo de argumentos mas basicamente
a apresentaccedilatildeo de alguns conceitos e argumentos destinados a minar a sua possibilidade de
existecircncia153 e com isso a coerecircncia interna de toda a teoria musical
Essa argumentaccedilatildeo inicialmente atribuiacuteda a ldquooutrosrdquo (M VI 6) considerada pelo
ceacutetico como de caraacuteter ldquomais aporeacuteticordquo (aporetikoteron) ou ldquomais em um espiacuterito de
impasserdquo (como Bett traduz) eacute apresentada por Sexto Empiacuterico em primeira pessoa ldquose
mostrarmos que nem as melodias existem e nem os ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos
mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existerdquo (M VI 38 grifo nosso) De acordo com Bett
na habitual terminologia pirrocircnica utilizada por Sexto os propagadores doldquoimpasserdquo (aporia) satildeo os proacuteprios ceacuteticos e aporetikos eacute um dos roacutetulos
Empiacuterico Ver seccedilatildeo 52 (p 74-8)149 A relaccedilatildeo entre ceticismo e epicurismo no Contra os Professores foi abordada na seccedilatildeo 431 (p 64-6)150 Ver p 49151 De fato tal como foi discutido na seccedilatildeo 431 a suspensatildeo de juiacutezo natildeo parece ser o que estaacute em jogo nesta
parte do Contra os Muacutesicos embora os recursos argumentativos sejam os mesmos da argumentaccedilatildeo quevisa levar agrave suspensatildeo
152 Tambeacutem nessa segunda parte pode-se identificar os Modos de Enesidemo e Agripa que estatildeo de acordo como meacutetodo ceacutetico Ver por exemplo M VI 55 67
153 Jaacute explicitamos anteriormente (ver p 65) em que sentido a argumentaccedilatildeo a respeito da natildeo existecircncia podeser compreendida nos escritos pirrocircnicos
73
alternativos para ldquoceacuteticordquo listados no iniacutecio das Hipotiposes Pirronianas (HP I 7)contrariamente ldquodogmaacuteticosrdquo eacute o termo padratildeo de Sexto para aqueles filoacutesofosnatildeo-ceacuteticos dos quais ele anseia se afastar (Bett 2013 p 162)
Visto que o ceticismo pirrocircnico se aproxima da argumentaccedilatildeo chamada ldquoaporeacuteticardquo e
busca combater o dogmatismo torna-se inevitaacutevel questionarmos por que Sexto Empiacuterico
utiliza esses dois tipos de argumentaccedilatildeo se ele claramente daacute preferecircncia ao segundo tipo
Ora apesar de termos apresentado uma explicaccedilatildeo bastante plausiacutevel para o modelo
argumentativo presente em todo o Contra os Professores154 no caso do Contra os Muacutesicos
podemos arriscar ainda uma razatildeo a mais para isso Se como sugerimos155 Sexto Empiacuterico
utiliza argumentos de estilos diferentes tendo em vista o puacuteblico ao qual seus escritos se
dirigem ‒ os Professores das disciplinas das enkyklia mathemata ‒ no caso da muacutesica apesar
de o autor parecer confiar mais no segundo os dois tipos de argumentaccedilatildeo abordam aspectos
diferentes da teoria musical Por um lado temos a discussatildeo a respeito do papel eacutetico
atribuiacutedo agrave muacutesica centrada na questatildeo de sua utilidade para se chegar agrave felicidade e por
outro a discussatildeo epistemoloacutegica que aborda a muacutesica enquanto uma ciecircncia centrada na
coerecircncia das teses defendidas Se a muacutesica foi de fato abordada sob essas duas perspectivas
na Greacutecia Antiga156 natildeo eacute estranho supor que Sexto utilize dois tipos de refutaccedilatildeo
especificamente contra estes dois acircmbitos da teoria musical a fim de abarcar a mousike em
sua totalidade
52 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida
a utilidade da muacutesica compreendida em um sentido amplo ligada agrave possibilidade de produzir
felicidade (eudaimonia) Tal questatildeo estaacute relacionada agrave ideia de que a muacutesica trazia em si o
poder de afetar a alma e o caraacuteter do ouvinte e por isso seria uacutetil
Como destacamos no primeiro capiacutetulo diversas satildeo as questotildees discutidas pelos
filoacutesofos a respeito da muacutesica (como a muacutesica deve ser ensinada o quanto ela deve ou natildeo
ser praticada quais modos satildeo bons e quais natildeo devem ser executados o papel da muacutesica
instrumental o poder da muacutesica de afetar a alma do ouvinte a ponto de alterar o seu caraacuteter
etc) mas a questatildeo em uacuteltima instacircncia eacute a sua utilidade para a vida Platatildeo atribuiu agrave
154 Ver seccedilatildeo 431155 Ver seccedilatildeo 431 (especialmente p 63 65)156 Tal como observamos ao longo da seccedilatildeo 3 a diferenccedila entre as abordagens de Platatildeo e Aristoacuteteles por um
lado e Aristoacutexeno por outro
74
muacutesica um grande valor eacutetico e um papel fundamental na educaccedilatildeo e a maioria dos
pensadores posteriores seguiu esse caminho Sua utilidade para a vida em funccedilatildeo de seu
papel psicagoacutegico foi tomada como ponto de comum acordo entre a maioria dos teoacutericos e
pessoas comuns
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto se propotildee a apresentar ldquoas coisas
sobre a muacutesica repetidas costumeiramente pela maioriardquo (M VI 7) e para refutaacute-las o ceacutetico
utiliza contra-argumentos muito parecidos com os que satildeo encontrados no De Musica de
Filodemo (seccedilatildeo 132) Os argumentos a favor da muacutesica satildeo apresentados de maneira breve
(M VI 7-18) e respondidos na mesma ordem (M VI 19-28) Em seguida Sexto apresenta a
discussatildeo que ele considera ldquoprincipalrdquo aquela que de acordo com ele diz respeito
explicitamente agrave utilidade da muacutesica (M VI 29-37)
De acordo com Bett (2013 p 170) ldquohaacute boas razotildees para crer que a duacutevida de Sexto
Empiacuterico nesta parte do livro vai aleacutem das duas menccedilotildees expliacutecitas aos epicuristas (M VI 19
27)rdquo Isso se deve natildeo soacute agraves semelhanccedilas entre as estruturas do texto ceacutetico e do epicurista
mas tambeacutem porque muitos dos exemplos que observamos no Contra os Muacutesicos aparecem
tambeacutem no De Musica
Dentre os exemplos e argumentos que aparecem em ambos os textos temos a anedota
de Pitaacutegoras (M VI 8 23 e De mus col 39-44) a histoacuteria dos Espartanos guerrearem ao
som do aulo e da lira (M VI 9 24 e De Mus col 72 43-73) Clitemnestra sendo deixada aos
cuidados de um muacutesico (M VI 11-2 26 e De mus col 49 23-7) e Soacutecrates aprendendo a
tocar lira (M VI 13 e De mus col 139 39-40) Aleacutem da semelhanccedila entre os exemplos
mencionados haacute uma seacuterie de afirmaccedilotildees e argumentos a respeito da muacutesica que podem ser
encontrados em ambos os autores
O primeiro argumento a favor da muacutesica apresentado por Sexto Empiacuterico diz respeito
agrave crenccedila de que esta ldquoregula a vida humana e refreia as afecccedilotildees da almardquo (M VI 7) Contra
isso Sexto argumenta que ldquonatildeo eacute prontamente concebiacutevel que por natureza algumas
melodias excitam a alma e outras tranquilizamrdquo (M VI 19) elencando dois argumentos para
isso
O primeiro argumento parte de um exemplo atribuiacutedo nominalmente aos epicuristas
para mostrar que ldquoalgumas melodias musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de
outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada por noacutesrdquo (M VI 20) Natildeo obstante esse exemplo
antecede um raciociacutenio baseado no primeiro Modo de Enesidemo157 Aqui observamos a
157 Sobre os Modos ver p 62 Especificamente sobre essa passagem ver M VI 20 nota 245 agrave nossa traduccedilatildeo
75
ideia de que a influecircncia que alguma melodia possa por ventura ter depende natildeo de sua
natureza mas do modo como aquilo aparece ao ouvinte (ideia compartilhada entre epicuristas
e ceacuteticos) A isso Sexto acrescenta que ldquonatildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica
refreia o pensamento mas porque tem o poder de distrairrdquo (M VI 21 e De Mus col 78 32-
7)
Em seguida tomando os Espartanos e a ira de Aquiles como exemplo Sexto diz que
ldquotal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a ser corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempetordquo (M VI 10) Contra isso o
argumento apresentado eacute novamente o de que a muacutesica faz isso porque distrai a mente (M VI
24 e De mus Col 68 33-40 e tambeacutem col 122 10-1)158
Embora apareccedilam mesclados a tantos outros argumentos tais argumentos abrangem
questotildees muito debatidas ateacute o presente159 merecendo alguma atenccedilatildeo A ideia de que o efeito
natildeo estaacute na muacutesica mas em nossa opiniatildeo eacute absolutamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo a tudo
que era comumente dito sobre muacutesica Enquanto os pitagoacutericos e em seu rastro Platatildeo e
tambeacutem os Estoicos atribuiacuteam um valor objetivo agrave muacutesica considerando seus efeitos fruto de
sua natureza Filodemo e Sexto Empiacuterico datildeo talvez pela primeira vez um tratamento que
poderiacuteamos chamar ldquosubjetivordquo160 agrave muacutesica161 Para o ceticismo isso se daacute porque natildeo temos
acesso aos objetos externos agrave nossa mente e consequentemente natildeo temos acesso agrave natureza
das coisas que por natureza natildeo satildeo boas nem maacutes essa opiniatildeo sendo acrescentada por
noacutes162 Do mesmo modo o efeito da muacutesica na mente humana eacute desvinculado de sua natureza
e o papel atribuiacutedo agrave muacutesica varia de acordo com a situaccedilatildeo e o contexto do ouvinte
dependendo natildeo da natureza da muacutesica mas da nossa opiniatildeo163
O uacuteltimo grupo de argumentos (M VI 29-37) aparece como uma compilaccedilatildeo das
principais alegaccedilotildees a respeito da utilidade da muacutesica seguida da refutaccedilatildeo sextiana164 O
(p 99)158 Para mais paralelos entre as duas obras ver Bett (2013 p 170 - 1)159 Referimo-nos aqui ao debate a respeito da autonomia da muacutesica Ver Introduccedilatildeo (p 12-3)160 O termo ldquosubjetivordquo eacute aqui utilizado com aspas por estar ligado diretamente agrave Filosofia moderna sendo
neste caso anacrocircnico Natildeo obstante o modo como o ceacutetico aborda certos conceitos aproxima-se muitodaquilo que posteriormente foi ligado ao conceito de ldquosubjetividaderdquo
161 Sobre a oposiccedilatildeo entre objetividade e subjetividade no pensamento esteacutetico da Antiguidade verTatarkiewicz (1963)
162 Ver o iniacutecio da seccedilatildeo 41163 Tais conjecturas satildeo reencontradas nas especulaccedilotildees sobre muacutesica apenas no seacuteculo XIX Eduard Hanslick
em O belo musical (1854) defende que a muacutesica natildeo exprime nenhum sentimento sendo completamenteassemacircntica
164 Para Bett (2013 p 174) aqui haacute uma mudanccedila de foco que explicaria o fato desses argumentos natildeo teremparalelos com passagens em Filodemo Entretanto tambeacutem aqui podemos encontrar muitas aproximaccedilotildeescom o texto de Filodemo as quais pontuamos a seguir
76
primeiro apresenta a ideia de que ldquoos que cultivaram o gosto pela muacutesicardquo (M VI 29) tecircm
mais prazer com ela do que as pessoas comuns ao que Sexto Empiacuterico responde que este natildeo
eacute um prazer necessaacuterio (M VI 31)165 e que mesmo que o fosse a experiecircncia musical natildeo eacute
fundamental para isso visto que tambeacutem aqueles que satildeo considerados desprovidos de
experiecircncia ou compreensatildeo musical (os animais e as crianccedilas) parecem ter prazer com a
muacutesica e por fim acrescenta-se que assim como aquele que natildeo eacute instruiacutedo na arte da
culinaacuteria obteacutem o mesmo prazer ao saborear a comida o especialista tem com a muacutesica o
mesmo prazer que o homem comum166 (M VI 33-4 e De Mus col 143 6-12)
Sobre essa discussatildeo Bett (2013 p 174) insinua que Sexto Empiacuterico se contradiz por
discutir a necessidade de ldquoexperiecircncia musicalrdquo visto que ldquoexperiecircncia musicalrdquo era aquilo
que tinha ficado fora do escopo da discussatildeo (ver M VI 1 3) Todavia o que estaacute em jogo
aqui eacute a teoria de que a educaccedilatildeo musical (que inclui a praacutetica musical) deveria acontecer tal
como considera Aristoacuteteles ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas
melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos
escravos crianccedilas e alguns animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A ver tambeacutem Platatildeo Leis 812
B-C)167 A questatildeo aqui eacute que Aristoacuteteles diferencia a fruiccedilatildeo obtida por aquele que eacute educado
musicalmente daquela obtida por seres ldquodesprovidos de razatildeordquo como tipos diferentes de
prazer e defende a utilidade do ensino da muacutesica para que se obtenha o prazer que acompanha
apenas a boa muacutesica A discussatildeo em Sexto restringe-se agrave necessidade da praacutetica musical para
que se obtenha prazer (qualquer que seja168) nas muacutesicas ouvidas ao que se responde que a
praacutetica natildeo eacute necessaacuteria visto que aqueles que natildeo satildeo educados musicalmente tambeacutem
obtecircm prazer nela Contrariamente ao que Bett insinua a questatildeo em pauta eacute novamente a
utilidade do ensino da muacutesica do qual a praacutetica participaria apenas em certa medida
O segundo argumento sobre a utilidade da muacutesica sustenta que ldquonatildeo acontece de os
homens virem a ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicosrdquo (M VI 29) A
discussatildeo aqui diz respeito ao papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes Se a
finalidade da educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento das virtudes e estas satildeo necessaacuterias para a
felicidade visto que a muacutesica eacute considerada por muitos como parte fundamental da165 Tal posiccedilatildeo eacute defendida pelos epicuristas (Filodemo De Mus col 151 29-31)166 Essa analogia com a arte de cozinhar pode ser encontrada tambeacutem na Poliacutetica de Aristoacuteteles (Pol 1039 A)
onde o filoacutesofo questiona a necessidade do aprofundamento na praacutetica musical para que as pessoas possamfruiacute-la corretamente e afirma que concluir essa necessidade seria o mesmo que dizer que para se apreciarboa comida eacute necessaacuterio aprender a cozinhar Tal constataccedilatildeo antecede a proacutexima discussatildeo a respeito nanecessidade da praacutetica musical para sua fruiccedilatildeo
167 Ver p 34 40-1168 Conforme salientamos na primeira seccedilatildeo (p 25) Platatildeo e Aristoacuteteles fazem uma diferenciaccedilatildeo entre tipos de
prazer
77
educaccedilatildeo a muacutesica seria fundamental para o desenvolvimento das virtudes e
consequentemente para se alcanccedilar a felicidade169 Esse eacute um dos aspectos principais da
discussatildeo eacutetica sobre a muacutesica tomado como certo pela maioria dos autores (como
observamos no primeiro capiacutetulo) consequentemente essa eacute tambeacutem uma das principais
teses combatidas por Filodemo
Contra esse segundo argumento Sexto considera que a muacutesica pode conduzir os
jovens agrave intemperanccedila e agrave luxuacuteria (M VI 34-5) tal como tambeacutem aponta Filodemo (De Mus
col 127 28-30) Utilizando um recurso tipicamente ceacutetico Sexto simplesmente aponta que
se ldquoeacute fatordquo que ela leva agrave virtude tambeacutem ldquoeacute fatordquo que ela leva igualmente ao viacutecio
apresentando um exemplo que contraria a tese de que a muacutesica deveria ser valorizada porque
leva agrave virtude
O terceiro argumento que Sexto apresenta consiste na afirmaccedilatildeo de que ldquoacontece de
os elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofiardquo (M
VI 30 e De Mus col 136 10-137170) Contra isso Sexto argumenta que de acordo com
essas ideias tambeacutem natildeo se pode dizer que a utilidade da muacutesica se deve ao fato de esta e a
Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos (M VI 36) Para refutar a tese de que a
Filosofia e a muacutesica tecircm elementos em comum Sexto apenas reporta-se agrave sua refutaccedilatildeo ao
argumento anterior
Em sua anaacutelise Bett limita-se a afirmar que ldquoeacute difiacutecil perceber como essa ideia [a
refutaccedilatildeo apresentada anteriormente] deveria ser transferida para a questatildeo dos elementos
comuns entre muacutesica e Filosofia e que se poderia muito bem suspeitar de alguma ediccedilatildeo
inadequada da parte de Sextordquo (Bett 2013 p 174) De nossa parte suspeitamos da
inadequaccedilatildeo dessa leitura Jaacute em M VI 7 Sexto apresenta a teoria de que a muacutesica produz os
mesmos efeitos que a Filosofia especificamente regular a alma humana e refrear suas
afecccedilotildees mas que o faz com certa ldquopersuasividade encantatoacuteriardquo Ora o problema do
segundo argumento discutido por Sexto eacute justamente o do papel da muacutesica no
desenvolvimento das virtudes que neste caso satildeo as mesmas virtudes que a Filosofia se
propotildee a desenvolver na alma humana Eacute nesse sentido que a refutaccedilatildeo ao argumento
anterior se aplica tambeacutem a este171
Por fim Sexto aponta que a muacutesica eacute considerada uacutetil ldquoporque o cosmos eacute governado
169 Cf Aristoacuteteles Pol (1340 A) e EN (1102 A)170 Filodemo (De Mus col 82-5) tambeacutem apresenta a discussatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre Muacutesica e Filosofia
e seu papel na educaccedilatildeo Para ele eacute a Filosofia que educa natildeo a muacutesica visto que esta sendo (para ele)irracional natildeo pode produzir disposiccedilotildees racionais agrave virtude ou ao viacutecio
171 Sobre isso ver M VI 7 notas 215 217 e 218 agrave nossa traduccedilatildeo (p 91)
78
de acordo com a harmoniardquo (M VI 30)172 e tambeacutem ldquoporque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da almardquo (M VI 30)173 Ao que Sexto Empiacuterico responde que esse uacuteltimo
argumento ldquojaacute foi desconsiderado como natildeo sendo verdadeiro174 e que o cosmos eacute ordenado
segundo a harmonia mostra-se falso de vaacuterios modosrdquo (M VI 36-7) aleacutem disso de acordo
com Sexto mesmo se essa tese fosse verdadeira ldquotal coisa natildeo tem poder sobre a bem-
aventuranccedila tal como a harmonia natildeo tem poder sobre os instrumentos musicaisrdquo visto que a
harmonia do cosmos eacute inaudiacutevel175 (M VI 37 e De Mus col 80)
A proximidade entre os argumentos de Sexto Empiacuterico e os de Filodemo deixa claro
que haacute alguma relaccedilatildeo forte entre os dois textos Contudo se Filodemo serviu de fonte direta
para Sexto Empiacuterico ou se eles usaram fontes em comum eacute uma questatildeo difiacutecil de ser
respondida Embora Sexto e Filodemo tenham estilos bastante diferentes para Bett se
partimos da ediccedilatildeo de Delattre (2007) do De Musica
noacutes temos um texto com um formato notavelmente similar ao modo habitual deSexto proceder e particularmente agravequilo que ele faz nesta parte do Contra osMuacutesicos A exposiccedilatildeo dos argumentos positivos a respeito da utilidade da muacutesicaseguida pelos argumentos negativos que correspondem a eles precisamente namesma ordem (hellip) estaacute muito proacutexima do modo como (se Delattre estaacute certo)Filodemo conduziu seu tratamento deste toacutepico (Bett 2013 p 172-3)
Ainda assim embora os argumentos sejam muito semelhantes Filodemo abordou o
assunto de maneira muito mais ampla e se Sexto utilizou sua obra como fonte direta ele
ldquoresumiu aquilo que pegou de Filodemo e reorganizou para seu proacuteprio usordquo (Bett 2013 p
172) Por fim a diferenccedila fundamental entre os argumentos eacute sua finalidade visto que para o
ceacutetico o epicurista eacute ainda um dogmaacutetico que espera que tomemos suas teses como
verdadeiras enquanto o ceacutetico visa neste caso combater o dogmatismo dos professores de
muacutesica enquanto uma das mathemata176
A respeito da natureza dos argumentos apresentados nesta primeira parte e do objeto
ao qual tais argumentos satildeo dirigidos resta-nos algumas observaccedilotildees Richard Bett sustenta
que Sexto Empiacuterico se contradiz por ter afirmado que soacute iria abordar a teoria musical mas
172 Filodemo (De Mus col 145 17) tambeacutem menciona essa teoria atribuindo-a a alguns neopitagoacutericos173 Essa eacute uma das principais teses atribuiacutedas por Filodemo ao estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (ver Filodemo
De Mus col 23 1-19) contra a qual como foi mostrado anteriormente ele sustenta que se a muacutesica temalgum poder de alterar a alma isso se deve ao seu poder de distrair e agraves opiniotildees que o ouvinte associaposteriormente a esta Ver acima (p 74-5) a discussatildeo dos argumentos de M VI 7 e 19
174 De fato Sexto aborda essa questatildeo inuacutemeras vezes nos paraacutegrafos anteriores Ver especialmente M VI 19-22
175 Ver M VI 37 nota 280 agrave nossa traduccedilatildeo (p 109)176 Ver seccedilatildeo 2
79
que a discussatildeo desta primeira parte do texto gira em torno da praacutetica musical177 Aqui
precisamos ter certa cautela Eacute certo que a definiccedilatildeo inicial de teoria musical natildeo parece
prontamente incluir as questotildees eacuteticas discutidas Todavia do mesmo modo a discussatildeo a
respeito da utilidade da muacutesica natildeo pode ser simplesmente subsumida ao conceito de muacutesica
enquanto ldquoempeiriardquo (experiecircncia) Se o conceito de muacutesica discutido parece estar restrito aos
aspectos teacutecnicos da teoria musical haja vista sua delimitaccedilatildeo ldquoenquanto ciecircncia das
melodias sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipordquo (M VI 1) a definiccedilatildeo de muacutesica
enquanto empeiria restringe-se (de acordo com Sexto) aos ldquomuacutesicos praacuteticosrdquo aqueles que
ldquousam aulos e salteacuteriosrdquo (M VI 1) Assim se a discussatildeo a respeito da utilidade da muacutesica
natildeo pode ser conectada agrave primeira definiccedilatildeo ela tambeacutem natildeo pode ser simplesmente
subsumida agrave segunda
O conceito de empeiria no ceticismo estaacute ligado em geral agraves artes que satildeo
aprovadas pelo ceacutetico Nesse sentido a simples execuccedilatildeo de uma peccedila em um instrumento
natildeo eacute questionada pelo ceacutetico Agora a discussatildeo da primeira parte natildeo diz respeito agrave praacutetica
do instrumentista ser ou natildeo abolida do mundo mas especificamente aborda a utilidade da
muacutesica que enquanto disciplina deveraacute ou natildeo ser ensinada178 em funccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo
para a felicidade
Em suma se o objetivo do Contra os Professores eacute o combate ao dogmatismo em
cada uma das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos embora a discussatildeo sobre a utilidade da
muacutesica natildeo pareccedila cair sob o escopo da definiccedilatildeo de teoria musical inicialmente apresentada
por Sexto ela permanece dentro do acircmbito teoacuterico abrangendo o papel eacutetico pelo qual
muitos autores consideraram a muacutesica uacutetil Se a discussatildeo sobre a utilidade de cada uma das
tekhnai eacute fundamental visto que uma tekhne soacute pode ser considerada como tal em funccedilatildeo de
sua utilidade179 o debate a respeito da utilidade da muacutesica natildeo diz respeito agrave praacutetica musical
(tal como Bett insinua) mas estaacute de acordo com o escopo da discussatildeo e com a finalidade do
Contra os Muacutesicos
53 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
177 Para corroborar com sua afirmaccedilatildeo Bett enfatiza a ligaccedilatildeo entre a discussatildeo sobre a ldquoexperiecircncia musicalrdquo(mousikes empeirias) em M VI 32 e a expressatildeo que parafraseando Bett Sexto originalmente usou paradesignar experiecircncia em instrumentos (organiken empeirian) Cf Bett (2013 p 174)
178 A medida que o ensino abrange praacutetica musical conhecimento teacutecnico ou ainda ldquotreinamento auditivordquo eacutebastante discutiacutevel haja vista as restriccedilotildees agrave praacutetica musical feitas por Platatildeo Aristoacuteteles e Aristoacutexeno
179 Sobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54) e 44
80
A uacuteltima parte do Contra os Muacutesicos diz respeito aos aspectos teacutecnicos da ciecircncia
musical que satildeo refutados por Sexto Empiacuterico Tendo isso em vista apresentamos os
argumentos acompanhados da explicaccedilatildeo de alguns conceitos baacutesicos da harmonike que satildeo
apresentados na segunda parte do Contra os Muacutesicos
Como vimos esse segundo tipo de argumentaccedilatildeo que aparece no Contra os Muacutesicos
(M VI 38-68) ldquoatacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais
pragmaacuteticardquo (pragmatikoteros) (M VI 38) A abordagem da muacutesica sob uma perspectiva
teacutecnica relaciona-se especificamente agrave parte da ciecircncia musical conhecida como harmonike
As definiccedilotildees dos elementos que compotildeem a harmonike apresentadas no Contra os Muacutesicos
reportam-se natildeo a um autor especiacutefico mas a diversas fontes haja vista que Sexto Empiacuterico
parece fazer um ataque geral agrave teoria da muacutesica Natildeo obstante as definiccedilotildees dos conceitos
aproximam-se em diversos momentos das definiccedilotildees apresentadas por Aristoacutexeno
A partir de Aristoacutexeno a harmonike divide-se como exposto acima180 em sete partes
notas intervalos escalas gecircneros sistemas modulaccedilatildeo e composiccedilatildeo de melodias
(Aristoacutexeno El Harm 235-8) Essas partes natildeo satildeo apresentadas ao acaso mas seguem uma
ordem em que a composiccedilatildeo de melodias eacute apresentada como finalidade (telos) e a nota como
elemento baacutesico do qual todas as outras partes dependem
A argumentaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico visa invalidar a teoria da muacutesica a partir da
refutaccedilatildeo de seus princiacutepios baacutesicos A definiccedilatildeo de muacutesica dada nessa etapa eacute a de que ldquoa
muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico181 e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e do que
natildeo eacute riacutetmicordquo (M VI 38)182 Dada esta definiccedilatildeo Sexto parte do pressuposto loacutegico de que se
a melodia e o ritmo natildeo existirem a muacutesica tambeacutem natildeo existe Ora a melodia eacute constituiacuteda
de notas e as notas satildeo constituiacutedas de sons Entatildeo o ceacutetico ataca o conceito de som visto
que eacute a partir deste que se constitui a nota
Segundo Tomaacutes (2002 p 48) para os gregos ldquoo som em sua forma bruta eacute de fato
um existente no tempo e no espaccedilo reais ele eacute um elemento do mundo e natildeo um elemento
moldado na inteligecircnciardquo E eacute em vista dessa concepccedilatildeo de som que compreendemos os
argumentos a respeito da natildeo existecircncia do som183
A definiccedilatildeo de som enquanto ldquoobjeto da percepccedilatildeo sensiacutevel do ouvirrdquo (M VI 39)
180 Ver seccedilotildees 33 e 511181 Emmeles eacute em geral a qualidade daquilo que respeita as leis proacuteprias do melos ou seja diz respeito aos
sons estarem dispostos musicalmente de maneira adequada Cf Reyes (2004 p 101)182 A mesma definiccedilatildeo aparece tambeacutem no Contra os Eacuteticos (M XI 186)183 O sentido da argumentaccedilatildeo contra a existecircncia jaacute foi apresentado na seccedilatildeo 431 (p 65)
81
apresenta o som enquanto objeto sensiacutevel mas ainda natildeo relacionado agrave muacutesica Tal definiccedilatildeo
eacute desenvolvida pelo estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (que compreende o som como ar
percutido)184
A definiccedilatildeo de nota eacute dada a partir da definiccedilatildeo de som uma nota eacute um som emitido
de certa maneira (M VI 41-2) Segundo Sexto Empiacuterico a definiccedilatildeo dada pelos muacutesicos de
maneira geral eacute de que ldquonota eacute a incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo Uma
definiccedilatildeo muito semelhante eacute encontrada em Aristoacutexeno ldquouma nota eacute a incidecircncia do som em
uma tensatildeordquo (Aristoacutexeno El Harm 115)185
Essa definiccedilatildeo de nota eacute seguida por outras definiccedilotildees relacionadas a ela (homofonia e
natildeo homofonia agudo e grave consonacircncia e dissonacircncia) que abrem o caminho para a
definiccedilatildeo de intervalo e a seguir de gecircnero (apresentado no Contra os Muacutesicos diretamente
ligado ao conceito de ethos) Todas essas definiccedilotildees evidenciam a variedade de conceitos da
ciecircncia musical que dependem do conceito de nota e consequentemente do conceito de som
No que diz respeito agrave classificaccedilatildeo dos intervalos segundo o criteacuterio da consonacircncia
essa divisatildeo dos intervalos em consonantes e dissonantes tambeacutem eacute apresentada por
Aristoacutexeno que considera que ldquoa segunda distinccedilatildeo que deve ser feita eacute que alguns intervalos
satildeo consonantes e outros dissonantesrdquo (Aristoacutexeno El Harm 44)186
Visto que a definiccedilatildeo dos gecircneros se daacute a partir de uma relaccedilatildeo intervalar187 Sexto
aborda em seguida os gecircneros de melodias ldquoDesse modo natildeo apenas todo intervalo em
muacutesica tem sua existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de
melodiardquo (M VI 48) Observa-se que a passagem se daacute a partir da relaccedilatildeo dos ethe humanos
com os ethe musicais Segundo Sexto Empiacuterico ldquouma melodia de tal tipo eacute chamada pelos
muacutesicos caraacuteter por ser capaz de produzir caraacuteterrdquo (M VI 49)
Os gecircneros satildeo apresentados por Sexto de acordo com a divisatildeo de Aristoacutexeno Isso
corrobora com a tese de que de acordo com Reyes (2004 p 105) ldquodesde o princiacutepio da era
cristatilde a classificaccedilatildeo aristoxecircnica havia se tornado canocircnica nos escritos teoacutericos devido agrave
enorme influecircncia desse autorrdquo Para Reyes o uso dos gecircneros de acordo com a classificaccedilatildeo
184 Ver Dioacutegenes Laeacutercio Testemonia (VII 55) Para a discussatildeo a respeito das fontes de Sexto Empiacuterico verReyes (2004 p 102)
185 A definiccedilatildeo de nota dada por Aristoacutexeno eacute a base para as definiccedilotildees encontradas tambeacutem em outros autoresda Antiguidade tardia aleacutem de Sexto Empiacuterico Segundo Reyes (2004 p 103) a definiccedilatildeo apresentada porSexto Empiacuterico evidencia que a fonte utilizada por ele natildeo eacute diretamente a obra de Aristoacutexeno pois Sextoacrescenta o adjetivo emmeles que pode ser encontrado em outros autores como Cleoniacutedes Cf Cleoniacutedes(1799-10) Bacchius (14 ou 29215-17 jan) Gaudencius (3297-8 jan) Anon Bellerm (39 48-9)
186 Para as outras definiccedilotildees ver Aristoacutexeno El Harm (44-46)187 A diferenccedila de gecircnero se daacute de acordo com as relaccedilotildees intervalares entre as notas que compotildeem o
tetracorde Ver traduccedilatildeo M VI 42 nota 288 (p 111)
82
de Aristoacutexeno tem duas vertentes ldquopor um lado segue a tendecircncia da eacutepoca (hellip) de adotar a
doutrina aristoxecircnica por outro facilita a intenccedilatildeo de Sexto de tratar os elementos da ciecircncia
musical de um modo nuclear sem entrar em distinccedilotildees sutisrdquo (idem)
Sexto Empiacuterico utiliza inclusive os mesmos termos que Aristoacutexeno para definir os
gecircneros188 Aristoacutexeno define os gecircneros em que a melodia evidentemente se distingue em
trecircs considerando que toda melodia no que diz respeito agrave harmonizaccedilatildeo ou eacute diatocircnica
(diatonon) ou cromaacutetica (khroma) ou enarmocircnica (harmonia)
Muito embora os termos utilizados por Sexto Empiacuterico sejam os mesmo de
Aristoacutexeno aqui se observa um descompasso em relaccedilatildeo ao autor Sexto Empiacuterico apresenta
os mesmos gecircneros que Aristoacutexeno mas atribui a cada um deles um ethos Entretanto
Aristoacutexeno parece ter evitado todo tipo de especulaccedilatildeo sobre os efeitos emocionaisintriacutensecos dos vaacuterios tipos de muacutesica em contraste agrave tradiccedilatildeo vinda de Damon ePlatatildeo Sexto parece aqui se separar da tradiccedilatildeo de Aristoacutexeno e retomar o tipo dequestatildeo apresentada na primeira parte do livro (Bett 2013 p 176)189
Embora Aristoacutexeno tenha restriccedilotildees agraves teorias acerca do poder da muacutesica sobre o
caraacuteter defendidas por Daacutemon Platatildeo e Aristoacuteteles diversos autores ldquooferecem uma
caracterizaccedilatildeo eacutetica dos gecircneros e nesse aspecto Sexto natildeo se diferencia delasrdquo (Reyes
2004 p 106) Tal caracterizaccedilatildeo reforccedila a ideia de que Sexto natildeo estaacute refutando uma tese
especiacutefica mas estaacute preocupado em refutar as principais opiniotildees que faziam parte do ensino
da muacutesica enquanto disciplina da Enkyklios Paideia
No que diz respeito aos ldquogecircneros meloacutedicosrdquo segundo Sexto Empiacuterico das melodias
ldquoa enarmocircnica eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um caraacuteter
claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseirordquo (M VI 50) Tais definiccedilotildees
satildeo segundo Reyes (2004 p 106-9) semelhantes agraves utilizadas por outros autores de tratados
musicais190
188 Reyes (2004 p 105) chama atenccedilatildeo para o fato de que a escrita de Aristoacutexeno emprega a forma antiga deabordar os gecircneros enquanto os escritores contemporacircneos a Sexto Empiacuterico utilizavam os adjetivosdiatonikon khromatikon e enarmonion
189 Note-se que no que diz respeito agrave teoria do ethos musical Aristoacutexeno critica aqueles que acreditam que amuacutesica tem efeito direto sobre o caraacuteter das pessoas dizendo que as pessoas afirmam que um tipo de muacutesicaprejudica o caraacuteter e outro o melhora sem prestarem atenccedilatildeo agrave seguinte qualificaccedilatildeo ldquona medida em que amuacutesica pode ser uacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30) De acordo com Beacutelis essa qualificaccedilatildeo ldquomostrao ceticismo de Aristoacutexeno no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a muacutesica e a moralrdquo (Beacutelis 1986 p 97) Ver p38
190 Eacute interessante notar que as definiccedilotildees do enarmocircnico e do diatocircnico aparecem invertidas em relaccedilatildeo agravequiloque Platatildeo defendia O enarmocircnico eacute classificado por Aristoacutexeno como o mais recente e que exige haacutebitopara ser cantado Ao enarmocircnico satildeo atribuiacutedas as caracteriacutesticas nobres que Platatildeo atribuiacutea ao diatocircnicoObserva-se tambeacutem que enquanto Filodemo omite a definiccedilatildeo do gecircnero diatocircnico muitos autores daAntiguidade tardia atribuem caracteriacutesticas semelhantes ao enarmocircnico e ao diatocircnico Reyes (2004 p 107)
83
As mesmas definiccedilotildees (austeros ou semnos) do ethos do gecircnero enarmocircnico podem
ser encontradas nas obras de Filodemo e de Pseudo-Plutarco191 No que diz respeito ao
cromaacutetico encontra-se definiccedilotildees semelhantes em Dioniacutesio de Helicarnaso e Adrasto Em
ambos os casos Sexto natildeo parece se afastar das definiccedilotildees comumente encontradas na
tradiccedilatildeo No caso do gecircnero diatocircnico Reyes chama atenccedilatildeo para o fato de que Sexto se
limita a uma contraposiccedilatildeo esteacutetica com o gecircnero enarmocircnico O comentador aponta a
caracterizaccedilatildeo esteacutetica do gecircnero diatocircnico como um indiacutecio de que este seria mais recente
que o enarmocircnico o que iria contra a opiniatildeo de Aristoacutexeno
Depois de apresentar os principais conceitos da teoria musical que dependem do
conceito de nota Sexto conclui que ldquoeacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos sobre a melodia
natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notasrdquo (M VI 52) Sexto Empiacuterico busca
desestabilizar a teoria musical apresentando a diaphonia ndash o conflito de opiniotildees ndash nos
discursos filosoacuteficos Visto que as notas existem ldquoconforme o gecircnero do somrdquo (M VI 52) o
autor discute o conceito de som enquanto afecccedilatildeo (pathos) e em seguida discute se o som
existe enquanto algo corpoacutereo ou incorpoacutereo192
O argumento parte da oposiccedilatildeo entre o conceito de som enquanto afecccedilatildeo ou enquanto
produtor de uma afecccedilatildeo e opotildee duas teses filosoacuteficas que consideram como criteacuterio de
verdade respectivamente os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (ou as afecccedilotildees) e os objetos
inteligiacuteveis Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida a tese dos filoacutesofos Cirenaicos de
que soacute existem as afecccedilotildees De acordo com o autor (M VII 191) para os Cirenaicos as
afecccedilotildees (pathe) satildeo o uacutenico criteacuterio de verdade Por outro lado Platatildeo e Demoacutecrito193 tomam
como criteacuterio de verdade natildeo as afecccedilotildees mas apenas as coisas inteligiacuteveis (o som enquanto
existente por si mesmo) A afecccedilatildeo eacute para eles algo distinto do proacuteprio som e nesse sentido
o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo mas produz uma afecccedilatildeo ou seja o som aparece para noacutes enquanto
objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel Platatildeo e Demoacutecrito ao rejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel
(enquanto criteacuterio de verdade) rejeitariam tambeacutem o som tal como eacute compreendido pelos
Cirenaicos194 Com isso Sexto mostra o conflito das opiniotildees acerca das quais natildeo seria
possiacutevel decidir a qual dar assentimento
compreende que esta mudanccedila se deve ao desaparecimento do enarmocircnico enquanto gecircnero praacutetico (talcomo atestam Pseudo-Plutarco e Ptolomeu)
191 Filodemo De Mus (64222) Ps-Plutarco De Mus (1145 A)192 Ver por exemplo Aristides Quintiliano De Mus (520-2) e Ptolomeu Harm (32)193 Ver traduccedilatildeo M VI 53 nota 303 (p 115)194 A explicaccedilatildeo de Reyes (2004 p 103) a respeito deste argumento natildeo eacute muito clara dando a entender que os
Cirenaicos consideravam que o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo Para uma explicaccedilatildeo elucidativa sobre o tema verBett (2013 p 178)
84
O argumento seguinte (M VI 55) apresenta a aporia de que o som natildeo eacute corpoacutereo nem
incorpoacutereo Os Peripateacuteticos satildeo citados como defensores da primeira tese e os Estoicos da
segunda Sexto argumenta que se natildeo existe alma natildeo existe som A partir disso tambeacutem os
sentidos enquanto partes da alma natildeo existem195 e consequentemente tambeacutem natildeo existem
os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (entre eles o som) De acordo com Bett
essa inferecircncia final pode parecer completamente ilegiacutetima se natildeo haacute sentidosentatildeo certamente nenhum objeto eacute percebido pelos sentidos mas disso natildeo se segueque os objetos que noacutes normalmente tomamos como percebidos pelos sentidos natildeoexistam (embora natildeo sejam percebidos) (Bett 2013 p 178)
Mas especificamente no caso do som Aristoacuteteles compreende que o som real (em
oposiccedilatildeo ao som em potecircncia) e a audiccedilatildeo satildeo a mesma coisa Partindo disso Bett considera
que seria possiacutevel (com uma dose de boa vontade) considerar que Sexto parte desse conceito
compreendendo o ldquosomrdquo (phone) como uma ldquoqualidade audiacutevel dos objetosrdquo
Aleacutem disso ldquoo som nem eacute concebido como um efeito nem como substacircncia mas
como algo que vem a ser e que se estende no tempordquo (M VI 57) Assim se natildeo conseguimos
chegar a uma definiccedilatildeo do conceito de tempo o conceito de som enquanto existente no
tempo eacute automaticamente destruiacutedo
Visto que Sexto partiu da definiccedilatildeo de mousike como ciecircncia do que eacute meloacutedico e do
que eacute riacutetmico resta ainda a refutaccedilatildeo da muacutesica enquanto ciecircncia do ritmo Tambeacutem nesse
caso sua refutaccedilatildeo se daacute a partir do conceito mais fundamental presente na definiccedilatildeo de
ritmo Se ldquoritmo eacute um sistema composto de peacutes e o peacute eacute composto de arsis (levantamento) e
thesis (abaixamento)rdquo e ldquoarsis e thesis satildeo considerados uma quantidade de tempordquo (M VI
60) entatildeo o conceito que precisa ser refutado para desestabilizar toda a teoria da muacutesica eacute o
conceito de tempo Para isso Sexto Empiacuterico retoma alguns de seus argumentos contra o
tempo apresentados no Contra os Fiacutesicos196 Em seguida o Contra os Muacutesicos simplesmente
encerra a investigaccedilatildeo ceacutetica a respeito das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos ldquoTendo dito
tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica noacutes encerramos nossa
discussatildeo contra as disciplinasrdquo (M VI 68)
Se observamos o que estaacute em jogo nessa segunda parte do texto composta pelos
argumentos que o proacuteprio autor considera que estatildeo mais de acordo com a corrente ceacutetica197
mais uma vez confirmamos que o ceacutetico natildeo estaacute de modo algum preocupado com o
195 Ver Aristoacuteteles De Anima (425 B 26-8)196 Para referecircncias ver nossa traduccedilatildeo M VI 60-7 notas 311-6 (p 117-120)197 Ver M VI 4-5 e seccedilatildeo 512
85
conceito de muacutesica especificamente mas sim com a criacutetica agrave postura dogmaacutetica da parte dos
professores de muacutesica que sustentam teses contraditoacuterias entre si a respeito dessa arte
86
6 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)
ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ
[61] Ἡ μουσικὴ λέγεται τριχῶς καθ ἕνα μὲν τρόπον ἐπιστήμη τις περὶ μελῳδίας καὶ
φθόγγους καὶ ῥυθμοποιίας καὶ τὰ παραπλήσια καταγινομένη πράγματα καθὸ καὶ
Ἀριστόξενον τὸν Σπινθάρου λέγομεν εἶναι μουσικόν καθ ἕτερον δὲ ἡ περὶ ὀργανικὴν
ἐμπειρίαν ὡς ὅταν τοὺς μὲν αὐλοῖς καὶ ψαλτηρίοις χρωμένους μουσικοὺς ὀνομάζομεν τὰς
δὲ ψαλτρίας μουσικάς ἀλλὰ κυρίως καταὐτὰ τὰ σημαινόμενα καὶ παρὰ πολλοῖς λέγεται
μουσική [62] καταχρηστικώτερον δὲ ἐνίοτε προσαγορεύειν εἰώθαμεν τῷ αὐτῷ ὀνόματι καὶ
τὴν ἔν τινι πράγματι κατόρθωσιν οὕτω γοῦν μεμουσωμένον τι ἔργον φαμέν κἂν ζωγραφίας
μέρος ὑπάρχῃ καὶ μεμουσῶσθαι τὸν ἐν τούτῳ κατορθώσαντα ζωγράφον [63] ἀλλὰ δὴ κατὰ
τοσούτους τρόπους νοουμένης τῆς μουσικῆς πρόκειται νῦν ποιεῖσθαι τὴν ἀντίρρησιν οὐ μὰ
Δία πρὸς ἄλλην τινὰ ἢ πρὸς τὴν κατὰ τὸ πρῶτον νοουμένην σημαινόμενον αὕτη γὰρ καὶ
ἐντελεστάτη παρὰ τὰς ἄλλας μουσικὰς δοκεῖ καθεστηκέναι
87
CONTRA OS MUacuteSICOS
[61] A muacutesica eacute dita de trecircs maneiras Na primeira enquanto ciecircncia198 das melodias
sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipo sentido em que dizemos que Aristoacutexeno199
filho de Espiacutentaro eacute muacutesico Na segunda ela diz respeito agrave experiecircncia200 em instrumentos201
tal como quando nomeamos ldquomuacutesicosrdquo aqueles que usam aulos202 e salteacuterios203 e ldquomusicistasrdquo
aquelas que tocam salteacuterio De maneira apropriada a muacutesica eacute dita de acordo com esses
significados por muitas pessoas [62] De modo menos apropriado agraves vezes costumamos
chamar com o mesmo nome a realizaccedilatildeo bem sucedida de algo Desse modo tambeacutem
dizemos que algo eacute musical204 mesmo sendo parte de uma pintura e que o pintor eacute
ldquomusicalrdquo205 por ter sido bem sucedido nisso [63] Mas sendo a muacutesica concebida dessas
maneiras propotildee-se agora que se faccedila uma refutaccedilatildeo ndash por Zeus ndash natildeo contra qualquer outra
muacutesica senatildeo contra aquela concebida de acordo com o primeiro significado pois essa em
comparaccedilatildeo com os outros significados de muacutesica parece ter se estabelecido como a mais
completa206
198 Encontra-se frequentemente as disciplinas consideradas como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes(tekhnai) Nesse vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar asldquoartes baseadas na razatildeordquo (logiken tekhnai) Ver seccedilatildeo 42
199 Aristoacutexeno disciacutepulo de Aristoacuteteles viveu no seacuteculo IV aC Sua obra teve grande repercussatildeo durante todaa Antiguidade Ele eacute tomado como exemplo de muacutesico na medida em que trata da muacutesica sob umaperspectiva teoacuterica Na parte do texto em que Sexto Empiacuterico refuta conceitos teacutecnicos da muacutesica muitasdas definiccedilotildees satildeo semelhantes agraves do muacutesico Sobre o pensamento musical de Aristoacutexeno ver seccedilatildeo 33
200 O conceito de empeiria eacute comumente utilizado no pirronismo ligado agraves artes que estatildeo de acordo com ocriteacuterio praacutetico e que por isso natildeo satildeo refutadas pelo ceacutetico Ver seccedilotildees 41 e 44
201 A organike enquanto parte da praacutetica musical era frequentemente oposta agrave harmonike que eacute a parte teoacutericada muacutesica e considerada como a mais completa Ver seccedilatildeo 511
202 O mais importante instrumento da famiacutelia dos aerofones De origem oriental o aulo eacute um instrumento desopro ldquocomposto de um tubo (bombyx) feito de junco madeira marfim chifre osso de cervo ou bronzecortado em secccedilotildees ciliacutendricas inseridas umas nas outras com quatro ou cinco furos ( trypemata) sendo queo segundo estava na parte de baixo do tubo O aulo tinha ainda uma ou duas palhetas (glossai ou glottides)no bocal e isso eacute que produzia seu som penetrante e estrondosordquo (Rocha 2009 p 159) Muitas vezes seencontra a traduccedilatildeo de ldquoaulosrdquo por ldquoflautardquo mas essa traduccedilatildeo eacute improacutepria porque a flauta tem um somsuave muito diferente do som do aulo
203 Nome geneacuterico para designar a famiacutelia das harpas (cordas obliacutequas e de comprimento desigual) Osinstrumentos desse gecircnero de origem natildeo grega eram pinccedilados com os dedos nus sem plectro
204 Em grego ldquomemousomenonrdquo O termo remete ao sentido mais amplo de mousike estaacute relacionado agraves artes eciecircncias presididas pelas Musas
205 Nesse sentido amplo de mousike musical (mousikos) eacute o homem bem educado culto206 Eacute a teoria musical natildeo a praacutetica musical considerada pelos pensadores como a mais completa Cf Platatildeo
Rep (530 D-531 C) De acordo com Aristides Quintiliano De Mus (1110) para os antigos filoacutesofos amuacutesica (a teoria musical) ldquonatildeo soacute era apreciada por si mesma mas era tambeacutem extraordinariamenteadmirada por ser uacutetil agraves demais ciecircncias Sob influecircncia pitagoacuterica e platocircnica ele considera que a muacutesicaconteacutem as relaccedilotildees harmocircnicas que compreendem todo o universo por isso ela seria uacutetil para todas as outrasciecircncias
88
[64] τῆς δὲ ἀντιρρήσεως καθάπερ καὶ ἐπὶ γραμματικῆς διττόν ἐστι τὸ εἶδος οἱ μὲν οὖν
δογματικώτερον ἐπεχείρησαν διδάσκειν ὅτι οὐκ ἀναγκαῖόν ἐστι μάθημα πρὸς εὐδαιμονίαν
μουσική ἀλλὰ βλαπτικὸν μᾶλλον καὶ τοῦτο δείκνυσθαι ἔκ τε τοῦ διαβάλλεσθαι τὰ πρὸς τῶν
μουσικῶν λεγόμενα καὶ ἐκ τοῦ τοὺς προηγουμένους λόγους ἀνασκευῆς ἀξιοῦσθαι [65] οἱ δὲ
ἀπορητικώτερον πάσης ἀποστάντες τῆς τοιαύτης ἀντιρρήσεως ἐν τῷ σαλεύειν τὰς ἀρχικὰς
ὑποθέσεις τῶν μουσικῶν ᾠήθησαν καὶ τὴν ὅλην ἀνῃρῆσθαι μουσικήν [66] Ὃθεν καὶ ἡμεῖς
ὑπὲρ τοῦ μὴ δοκεῖν τι τῆς διδασκαλίας χρεωκοπεῖν τὸν ἑκατέρου δόγματος ἢ ἀπορήματος207
χαρακτῆρα κεφαλαιωδέστερον ἐφοδεύσομεν μήτε ἐν τοῖς παρέλκουσιν ὑπερεκπίπτοντες εἰς
μακρὰς διεξόδους μήτε ἐν τοῖς ἀναγκαιοτέροις ὑστεροῦντες πρὸς τὴν τῶν ἐπειγόντων
ἔκθεσιν ἀλλὰ μέσην καὶ μεμετρημένην κατὰ τὸ δυνατὸν ποιούμενοι τὴν διδασκαλίαν
207 Embora Greaves (1986 p 127) opte pelo termo ldquopragmatosrdquo em sua anaacutelise dos manuscritos optamos aquipor manter o termo ldquoaporematosrdquo tal como Delattre (2002 p 415) visto que deste modo a sentenccedila dizrespeito aos tipos de refutaccedilatildeo apresentados anteriormente o dogmaacutetico e o aporeacutetico
89
[64] A refutaccedilatildeo tal como aquela da gramaacutetica se daacute de dois modos208 Uns de modo mais
dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute uma disciplina209 necessaacuteria para a
felicidade210 mas muito prejudicial e eles se esforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo
que eacute dito pelos muacutesicos e sustentando que seus argumentos principais eram dignos de serem
destruiacutedos211 [65] Outros de um modo mais aporeacutetico212 evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo
pensaram que ao desestabilizar as principais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem ter-se
destruiacutedo213 toda a muacutesica [66] Portanto tambeacutem noacutes para que natildeo pareccedilamos minimizar
qualquer coisa da explicaccedilatildeo214 examinaremos metodicamente o caraacuteter principal de cada
uma dessas atitudes ndash a dogmaacutetica e a aporeacutetica Nem de maneira redundante excedendo-nos
em longas descriccedilotildees nem falhando na exposiccedilatildeo daquilo que eacute mais indispensaacutevel mas
criando uma explicaccedilatildeo tatildeo moderada e calculada quanto possiacutevel
208 Tambeacutem no Contra os Gramaacuteticos Sexto Empiacuterico empreende dois tipos de refutaccedilatildeo ele apresentaargumentos mostrando a inutilidade da gramaacutetica e argumenta contra a existecircncia dos princiacutepios queconstituem a ciecircncia das letras
209 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido como ldquodisciplinardquo ldquoconteuacutedordquo ldquoensinamentordquo Ta mathemata satildeoos ensinamentos adquiridos atraveacutes do ensino transmitido pelos mathematikos ou seja pelosprofessoresVer seccedilatildeo 42
210 O termo grego ldquoeudaimoniardquo traduz-se comumente por ldquofelicidaderdquo entretanto essa traduccedilatildeo eacute limitadavisto que identificamos o termo com um certo estado de espiacuterito Eudaimonia na verdade refere-se agraveobtenccedilatildeo daquilo que eacute mais desejaacutevel o sumo bem Para Aristoacuteteles a felicidade eacute uma atividade da almade acordo com a virtude Epicuro considerou o prazer acompanhado da prudecircncia enquanto a principalvirtude como sumo bem tendo definido o prazer como ldquoausecircncia de sofrimentos fiacutesicos e perturbaccedilotildees naalmardquo (Epicuro Carta Sobre a Felicidade p 43) De modo geral o termo eudaimonia remete ao resultadode uma vida virtuosa que regida por determinados princiacutepios de acordo com cada escola filosoacutefica Aeudaimonia (muitas vezes associada agrave tranquilidade da alma) era o principal objetivo das escolas filosoacuteficasdo periacuteodo heleniacutestico combatidas pelos ceacuteticos tal como a epicurista e a estoica Cf Hadot (2008 cap 7)
211 Sexto Empiacuterico refere-se explicitamente aos filoacutesofos epicuristas Segundo Dellatre (2002 p 415 n 1) issose estende tambeacutem aos cirenaicos
212 O termo aporia aparece frequentemente associado ao ceticismo De acordo com Sexto Empiacuterico opensamento ceacutetico eacute chamado tambeacutem de ldquoaporeacuteticordquo Cf HP I 3 210 Ver seccedilotildees 431 (p 62-3) e 512 (p72-3)
213 Sexto Empiacuterico parece se referir aqui agrave proacutepria escola ceacutetica Anairesis indica no ceticismo pirrocircnico asupressatildeo ou destruiccedilatildeo de algum conceito dada enquanto resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica Esse tipo desupressatildeo aparece na segunda parte do texto (sect 38 ndash 68) quando Sexto conclui pela inexistecircncia dosconceitos apresentados Ver seccedilotildees 431 e 512 (p 72-3)
214 ldquoDidaskaliardquo para Sexto Empiacuterico pode designar um ldquoensinamento por demonstraccedilatildeordquo
90
[67] Τάξει δὲ ἀρχέτω πρῶτον τὰ ὑπὲρ μουσικῆς παρὰ τοῖς πολλοῖς εἰωθότα
θρυλεῖσθαι εἴπερ τοίνυν φασί φιλοσοφίαν ἀποδεχόμεθα σωφρονίζουσαν τὸν ἀνθρώπινον
βίον καὶ τὰ ψυχικὰ πάθη καταστέλλουσαν πολλῷ μᾶλλον ἀποδεχόμεθα τὴν μουσικήν ὅτι οὐ
βιαστικώτερον ἐπιτάττουσα ἡμῖν ἀλλὰ μετὰ θελγούσης τινὸς πειθοῦς τῶν αὐτῶν
ἀποτελεσμάτων περιγίνεται ὧνπερ καὶ ἡ φιλοσοφία [68] Ὁ γοῦν Πυθαγόρας μειράκια ὑπὸ
μέθης ἐκβεβακχευμένα ποτὲ θεασάμενος ὡς μηδὲν τῶν μεμηνότων διαφέρειν παρῄνεσε τῷ
συνεπικωμάζοντι τούτοις αὐλητῇ τὸ σπονδεῖον αὐτοῖς ἐπαυλῆσαι μέλος τοῦ δὲ τὸ
προσταχθὲν ποιήσαντος οὕτως αἰφνίδιον μεταβαλεῖν σωφρονισθέντας ὡς εἰ καὶ τὴν ἀρχὴν
ἔνηφον
91
[67] Pela ordem comecemos primeiro com as coisas sobre a muacutesica repetidas
costumeiramente pela maioria Ora se eles dizem admitimos que a Filosofia regula215 a vida
humana e refreia as afecccedilotildees da alma216 mais ainda admitimos que a muacutesica faz isso porque
ela natildeo se impotildee a noacutes de modo violento mas com certa persuasividade encantatoacuteria217 ela
produz os mesmos efeitos que a Filosofia218 [68] Pitaacutegoras certa vez tendo observado que
os jovens em estado de frenesi baacutequico causado pela embriaguez de modo algum diferiam
dos enlouquecidos aconselhou o auleta que estava junto deles na folia a tocar no aulo a
melodia espondaica219 Depois que o auleta fez o que foi ordenado os jovens repentinamente
mudaram e se mostraram temperantes como se tivessem estado soacutebrios desde o iniacutecio220
215 O termo ldquosophronizordquo eacute traduzido ao longo do texto por ldquotemperarrdquo ldquoregularrdquo e ldquomoderarrdquo O verbo estaacuteligado agrave virtude da temperanccedila ou moderaccedilatildeo (sophrosyne) uma das quatro virtudes principais apresentadaspor Platatildeo na Repuacuteblica (427 E) Eacute interessante notar que quando Platatildeo apresenta a virtude da temperanccedilaele a aproxima dos conceitos musicais da consonacircncia (symphonia) e da harmonia apresentando atemperanccedila como ldquouma espeacutecie de ordenaccedilatildeordquo e como ldquoo domiacutenio de certos prazeres e desejosrdquo Cf PlatatildeoRep (430 E)
216 No Fedro Platatildeo aborda a relaccedilatildeo entre as partes da alma fazendo uma analogia da parte racional da almacom a figura de um cocheiro que tenta controlar dois cavalos que representam as partes irracionais da almaDaiacute o papel da Filosofia (atividade da parte racional) de refrear as afecccedilotildees da parte irracional da alma CfPlatatildeo Fedro (253 C ndash 257 B)
217 Na Repuacuteblica (600 E ndash 601 B) Platatildeo afirma que os elementos que compotildeem a muacutesica como a meacutetrica oritmo e o modo tecircm um encantamento que faz um discurso ou qualquer conteuacutedo teacutecnico parecer excelenteembora o poeta natildeo saiba nada mais do que representar aparecircncias Por isso para Platatildeo a execuccedilatildeomusical deve ser muito bem administrada Quando bem utilizada a muacutesica tem o poder de alterar o caraacuteterdo ouvinte e levaacute-lo agrave excelecircncia moral Eacute nesse sentido que ela realizaria o mesmo papel da Filosofia soacuteque de um modo mais agradaacutevel
218 Essa relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia eacute encontrada em diversos textos da Antiguidade Aristides Quintiliano(De mus 2320) apresenta a Filosofia como um objeto de aprendizado (mathesis) que ldquomanteacutem a parteracional [da alma] em sua liberdade natural tornando-a soacutebria e mantendo-a pura atraveacutes da prudecircncia(phronesis)rdquo Jaacute a muacutesica eacute encarregada da parte irracional curando-a e domesticando-a atraveacutes do haacutebitoldquonatildeo permitindo que ela [a alma] cometa excessos nem que seja completamente subjugadardquo ldquoDesde ainfacircncia [a muacutesica] molda o caraacuteter com suas harmoniai e torna o corpo mais melodioso com seus ritmosrdquoIsso poderia se dar de acordo com Aristides Quintiliano porque ldquoa doccedilura dessa atividade encanta suasmentes ou talvez suas almasrdquo Sobre o papel da muacutesica enquanto ensino preliminar para a Filosofia verAristides Quintiliano De mus (32720)Plutarco (De virtute morali 441 E) apresenta essa mesma relaccedilatildeo atribuindo esse conhecimento a Pitaacutegorasque segundo o filoacutesofo teria introduzido o estudo da muacutesica ldquopara encantar e acalmar a almardquo por ternotado que nem todas as partes da alma se submetem agrave razatildeo ldquomas que algumas partes precisam de algumoutro tipo de persuasatildeo para cooperar com elas para moldaacute-las e domesticaacute-las se elas natildeo satildeo para sertotalmente intrataacuteveis e obstinadas ao ensino da Filosofiardquo Ver tambeacutem Platatildeo Euth (290 A)
219 Indica uma melodia apropriada para ocasiotildees religiosas de caraacuteter solene e dominada ritmicamente portempos longos Essas melodias eram compostas no modo doacuterico e consideradas calmantes Cf Platatildeo Ti(47 D) Plutarco De Mus (1135 A)
220 Essa anedota sobre Pitaacutegoras aparece em vaacuterios textos da Antiguidade Cf Filodemo De Mus (col 42 39 ndash44) Quintiliano Inst (110 32) Boeacutecio Inst (11) Plutarco De mus (1146 F)
92
[69] Οἵ τε τῆς Ἑλλάδος ἡγούμενοι καὶ ἐπ ἀνδρείᾳ διαβόητοι Σπαρτιᾶται μουσικῆς ἀεί ποτε
στρατηγούσης αὐτῶν ἐπολέμουν καὶ οἱ ταῖς Σόλωνος χρώμενοι παραινέσεσι πρὸς αὐλὸν καὶ
λύραν παρετάσσοντο ἔνρυθμον ποιούμενοι τὴν ἐνόπλιον κίνησιν [610] Kαὶ μὴν ὥσπερ
σωφρονίζει μὲν τοὺς ἄφρονας ἡ μουσική εἰς ἀνδρείαν δὲ προτρέπει τοὺς δειλοτέρους οὕτω
καὶ παρηγορεῖ τοὺς ὑπ ὀργῆς ἐκκαιομένους ὁρῶμεν γοῦν ὡς καὶ ὁ παρὰ τῷ ποιητῇ μηνίων
Ἀχιλλεὺς καταλαμβάνεται ὑπὸ τῶν ἐξαποσταλέντων πρεσβευτῶν
φρένα τερπόμενος φόρμιγγι λιγείῃ
καλῇ δαιδαλέῃ ἐπὶ δ ἀργύρεον ζυγὸν ἦεν
τὴν ἕλετ ἐξ ἐνάρων πόλιν Ἠετίωνος ὀλέσσας
τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν
ὡς ἂν σαφῶς γινώσκων τὴν μουσικὴν πραγματείαν μάλιστα δυναμένην περιγίνεσθαι τῆς περὶ
αὐτὸν διαθέσεως [611] Kαὶ μὴν διἔθους ἦν καὶ τοῖς ἄλλοις ἥρωσιν εἴ ποτε ἀποδημοῖεν καὶ
μακρὸν πλοῦν στέλλοιντο ὡς πιστοτάτους φύλακας καὶ σωφρονιστῆρας τῶν γυναικῶν
αὑτῶν ἀπολείπειν τοὺς μουσικούς Κλυταιμνήστρᾳ γέ τοι παρῆν ἀοιδός ᾧ πολλὰ ἐπέτελλεν
Ἀγαμέμνων περὶ τῆς κατὰ ταύτην σωφροσύνης [612] ἀλλ ὁ Αἴγισθος πανοῦργος ὢν αὐτίκα
τὸν ἀοιδὸν τοῦτον
ἄγων εἰς νῆσον ἐρήμην
κάλλιπεν οἰωνοῖσιν ἕλωρ καὶ κῦρμα γενέσθαι
εἶθ οὕτως ἀφύλακτον λαβὼν τὴν Κλυταιμνήστραν διέφθειρε προτρεψάμενος αὐτὴν
ἐπιθέσθαι τῇ ἀρχῇ τοῦ Ἀγαμέμνονος
93
[69] Os Espartanos liacutederes da Heacutelade e famosos por sua bravura221 guerreavam sempre sob
o comando da muacutesica222 E aqueles que utilizavam as exortaccedilotildees de Soacutelon223 se colocavam em
ordem de batalha ao som do aulo e da lira fazendo o movimento marcial riacutetmico224 [610]
Tal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a serem corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempeto Vejamos de acordo com o poeta
como Aquiles em sua ira eacute encontrado pelos embaixadores que foram enviados ateacute ele
deleitando seu espiacuterito com a melodiosa foacuterminge
bela obra de arte em cima havia argecircnteo jugo
Escolheu-a dentre os espoacutelios a cidade de Etion tendo destruiacutedo
Com ela ele deleitava seu coraccedilatildeo225
como se ele soubesse claramente que a praacutetica musical eacute sobretudo capaz de prevalecer
sobre sua disposiccedilatildeo [611] Aleacutem disso era haacutebito tambeacutem para outros heroacuteis quando eles
deixavam seus lares e partiam em uma longa navegaccedilatildeo deixar muacutesicos como os mais
confiaacuteveis guardiotildees e responsaacuteveis pela conduta226 de suas mulheres Assim um aedo
acompanhava Clitemnestra ao qual Agamecircnon ordenou muitas coisas a respeito da
temperanccedila dela [612] Mas Egisto sendo perverso rapidamente
conduzindo o aedo para uma ilha deserta o abandonou
para se tornar presa e espoacutelio para os abutres227
entatildeo pegou Clitemnestra jaacute sem vigilacircncia e seduziu-a incitando-a a tomar o poder de
Agamecircnon228
221 ldquoAndreiardquo - traduzido comumente por ldquofortalezardquo ldquocoragemrdquo ldquobravurardquo - denomina tambeacutem uma dasvirtudes a ser cultivada na Repuacuteblica de Platatildeo Quando Platatildeo se refere ao poder da muacutesica de alterar ocaraacuteter do ouvinte esse poder estaacute ligado agraves virtudes da temperanccedila (sophrosyne) e da bravura (andreia)
222 Esse argumento a favor da muacutesica aparece tambeacutem em Quintiliano Inst (I X 14)223 Soacutelon (638 ndash 558 aC) foi um legislador jurista e poeta grego Filodemo tambeacutem apresenta Soacutelon dando
conselhos atraveacutes de elegias morais (poesias monoacutedicas que eram classificadas de acordo com o seuconteuacutedo)
224 As canccedilotildees para a guerra normalmente eram em ritmo creacutetico ou peocircnico ( ndash ᴗ ndash ndash ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ndash ) (Naescansatildeo dos versos as siacutelabas longas satildeo representadas por ldquondashrdquo e as breves por ldquo ᴗ rdquo) Cf West (1992 p15-6) Mathiesen (1999 p 40)
225 Homero Iliacuteada (IX 186-9) A mesma citaccedilatildeo aparece em Plutarco De Mus (1145 E) As traduccedilotildees dostrechos de obras da literatura claacutessica que aparecem neste texto satildeo de nossa autoria em parceria com o profRoosevelt Rocha
226 Utilizamos essa expressatildeo para traduzir o termo ldquosophronisterasrdquo O termo ligado agrave virtude da temperanccedilaassociado agrave conduta das mulheres neste caso diz respeito ao controle do desejo sexual delas
227 Homero Odisseia (III 270-1)228 Cf Filodemo De Mus (col 49 23-7)
94
[613] Oἵ τε μέγα δυνηθέντες ἐν φιλοσοφίᾳ καθάπερ καὶ Πλάτων τὸν σοφὸν ὅμοιόν φασιν
εἶναι τῷ μουσικῷ τὴν ψυχὴν ἡρμοσμένην ἔχοντα καθὸ καὶ Σωκράτης καίπερ βαθυγήρως
ἤδη γεγονὼς οὐκ ᾐδεῖτο πρὸς Λάμπωνα τὸν κιθαριστὴν φοιτῶν καὶ πρὸς τὸν ἐπὶ τούτῳ
ὀνειδίσαντα λέγειν ὅτι κρεῖττόν ἐστιν ὀψιμαθῆ μᾶλλον ἢ ἀμαθῆ διαβάλλεσθαι [614] Oὐ χρὴ
μέντοι φασίν ἀπὸ τῆς νῦν ἐπιτρίπτου καὶ κατεαγυίας μουσικῆς τὴν παλαιὰν διασύρειν ὅτε
καὶ Ἀθηναῖοι πολλὴν πρόνοιαν σωφροσύνης ποιούμενοι καὶ τὴν σεμνότητα τῆς τε μουσικῆς
κατειληφότες ὡς ἀναγκαιότατον αὐτὴν μάθημα τοῖς ἐκγόνοις παρεδίδοσαν [615] καὶ τούτου
μάρτυς ὁ τῆς ἀρχαίας κωμῳδίας ποιητής λέγων
λέξω τοίνυν βίον ὃν ἐξ ἀρχῆς ἐγὼ θνητοῖσι παρεῖχον
πρότερον γὰρ ἔδει παιδὸς φωνὴν γρύσαντος μηδέν ἀκοῦσαι
εἶτα βαδίζειν ἐν ταῖσιν ὁδοῖς εὐτάκτως ἐς κιθαριστοῦ
ὅθεν εἰ καὶ κεκλασμένοις τισὶ μέλεσι νῦν καὶ γυναικώδεσι ῥυθμοῖς θηλύνει τὸν νοῦν ἡ
μουσική οὐδὲν τοῦτο πρὸς τὴν ἀρχαίαν καὶ ἔπανδρον μουσικήν [616] Εἴπερ τε ἡ ποιητικὴ
βιωφελής ἐστι ταύτην δὲ φαίνεται κοσμεῖν ἡ μουσικὴ μερίζουσα καὶ ἐπῳδὸν παρέχουσα
χρειώδης γενήσεται ἡ μουσική ἀμέλει γέ τοι καὶ οἱ ποιηταὶ μελοποιοὶ λέγονται καὶ τὰ
Ὁμήρου ἔπη τὸ πάλαι πρὸς λύραν ᾔδετο
95
[613] Aleacutem disso aqueles muito capazes em Filosofia tal como Platatildeo dizem que o saacutebio eacute
semelhante ao muacutesico pois tem a sua alma harmonizada229 Assim do mesmo modo
Soacutecrates embora jaacute estivesse muito velho natildeo se envergonhava de recorrer a Laacutempon230 o
citarista e para algueacutem que o repreendeu ele disse que eacute melhor ser acusado de aprendiz
tardio do que de ignorante231 [614] Natildeo se deve tambeacutem dizem desprezar a muacutesica antiga
tomando como base a atual232 que eacute vergonhosa e efeminada quando tambeacutem os Atenienses
que devotaram grande atenccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo da conduta compreendendo a dignidade da
muacutesica transmitiram-na para seus descendentes como o ensinamento mais necessaacuterio [615]
Testemunha disso eacute o poeta da Antiga Comeacutedia que diz
Agora contarei da vida a qual em princiacutepio eu dei aos mortais233
Pois primeiramente que natildeo se ouvisse o som de uma crianccedila murmurando
Em seguida que as crianccedilas fossem pelas ruas de maneira ordenada ao encontro do
citarista234
Por essa razatildeo se a muacutesica atual enfraquece a mente com certas melodias fragmentadas e
ritmos efeminados235 isso natildeo tem nada a ver com a muacutesica antiga e viril [616] Aleacutem disso
se a arte poeacutetica eacute uacutetil para a vida e se a muacutesica parece adornaacute-la dividindo-a e produzindo o
canto a muacutesica seraacute necessaacuteria Sem duacutevida tambeacutem os poetas satildeo chamados compositores
de melodia236 e antigamente os versos de Homero eram cantados ao som da lira
229 Cf Platatildeo Rep(410 E 443 D-E 554 E) Timeu (43 A)230 Greaves (1986 p 135 n 35) chama atenccedilatildeo para o fato de que se desconhece a existecircncia de qualquer
muacutesico chamado ldquoLaacutemponrdquo mas que houve um sacerdote do oraacuteculo chamado ldquoLaacutemponrdquo contemporacircneo aSoacutecrates Nos diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates aborda o fato de ser um aprendiz tardio da ciacutetara tendo como seuprofessor de ciacutetara o muacutesico Cono Cf Platatildeo Euth (272 B-C 295 D) No Menexeno (235 E - 236 A) Conotambeacutem eacute mencionado junto do nome ldquoLamprusrdquo professor de muacutesica de Soacutefocles Cf tambeacutem Vida deSoacutefocles (III 19-20)
231 Cf Filodemo De mus (col 139 39-40) Quintiliano Inst (I X 13)232 Platatildeo e Aristoacutefanes criticaram os muacutesicos de seu tempo exaltando os poderes da muacutesica arcaica
Aristoacutefanes sobretudo na comeacutedia As Ratildes faz um apelo agrave tradiccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo gregasatirizando uma disputa entre Euriacutepides enquanto a personificaccedilatildeo do novo muacutesico aberto a todas asinovaccedilotildees e elaboraccedilotildees da chamada nova muacutesica e Eacutesquilo enquanto representante da muacutesica antiga Talsaacutetira ldquonatildeo soacute eacute um apelo agrave tradiccedilatildeo como tambeacutem o testemunho duma profunda ruptura que haviacomeccedilado a produzir-se dentro do acircmbito da cultura musical grega (hellip)rdquo (Pereira 2001 p 259)
233 Telecleides (fr 1) citado em Ateneu Deipnosofistas (VI 268 B) 234 Aristoacutefanes Nuvens (963-4) Na comeacutedia de Aristoacutefanes essa citaccedilatildeo descreve o comportamento
considerado adequado para as crianccedilas de acordo com a antiga educaccedilatildeo ldquoquando a dececircncia era umcostume aceitordquo
235 Ver seccedilatildeo 321 (p 25-6)236 Melopoios
96
[617] ὡσαύτως δὲ καὶ τὰ παρὰ τοῖς τραγικοῖς μέλη καὶ στάσιμα φυσικόν τινα ἐπέχοντα
λόγον ὁποῖά ἐστι τὰ οὕτω λεγόμενα
γαῖα μεγίστη καὶ Διὸς αἰθήρ
ὁ μὲν ἀνθρώπων καὶ θεῶν γενέτωρ
ἡ δ ὑγροβόλους σταγόνας νοτίας
παραδεξαμένη τίκτει θνατούς
τίκτει δὲ βορὰν φῦλά τε θηρῶν
ὅθεν οὐκ ἀδίκως
μήτηρ πάντων νενόμισται
[618] Kαθόλου γὰρ οὐ μόνον χαιρόντων ἐστὶν ἄκουσμα ἀλλ ἐν ὕμνοις καὶ εὐωχίαις καὶ
θεῶν θυσίαις ἡ μουσική διὰ δὲ τοῦτο καὶ ἐπὶ τὸν τῶν ἀγαθῶν ζῆλον τὴν διάνοιαν
προτρέπεται ἀλλὰ καὶ λυπουμένων παρηγόρημα ὅθεν καὶ τοῖς πενθοῦσιν αὐλοὶ μελῳδοῦσιν
οἱ τὴν λύπην αὐτῶν ἐπικουφίζοντες
[619] Τοιαῦτα μὲν ὑπὲρ μουσικῆς λέγεται δὲ πρὸς ταῦτα τὸ μὲν πρῶτον ὅτι οὐκ
ἔστιν ἐκ προχείρου διδόμενον τὸ φύσει τῶν μελῶν τὰ μὲν εἶναι διεγερτικὰ τῆς ψυχῆς τὰ δὲ
κατασταλτικά παρὰ γὰρ τὴν ἡμετέραν δόξαν τὸ τοιοῦτο γίνεται ὥσπερ γὰρ ὁ τῆς βροντῆς
κτύπος καθά φασιν Ἐπικουρείων παῖδες οὐ θεοῦ τινος ἐπιφάνειαν σημαίνει ἀλλὰ τοῖς
ἰδιώταις καὶ δεισιδαίμοσι τοιοῦτος εἶναι δοξάζεται [620] ἐπεὶ καὶ ἄλλων σωμάτων ἐπ ἴσης
ἀλλήλοις προσκρουσάντων ὅμοιως ἀποτελεῖται κτύπος ὥσπερ καὶ μύλου περιαγομένου ἢ
χειρῶν συμπαταγουσῶν τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῶν κατὰ μουσικὴν μελῶν οὐ φύσει τὰ μὲν
τοῖά ἐστι τὰ δὲ τοῖα ἀλλ ὑφ ἡμῶν προσδοξάζεται
97
[617] Tambeacutem eram desse modo as melodias e cantos corais237 dos poetas traacutegicos
mantendo certa relaccedilatildeo natural tal como os ditos assim
Terra Maacutexima e eacuteter de Zeus
que eacute genitor dos homens e dos deuses
e ela que recebendo uacutemidas gotas pluviais
engendra os mortais
e gera o alimento e as raccedilas das feras
Por isso natildeo sem razatildeo
ela eacute considerada matildee de todos238
[618] Pois em geral a muacutesica natildeo eacute apenas um som ouvido em situaccedilotildees alegres mas
tambeacutem eacute ouvida em hinos oraccedilotildees e sacrifiacutecios aos deuses por isso tambeacutem o
pensamento239 eacute incitado ao zelo pelas coisas boas Daiacute tambeacutem eacute um consolo aos
entristecidos por essa razatildeo aos aflitos satildeo tocadas melodias no aulo aliviando a tristeza
deles
[619] Tais satildeo os argumentos a favor da muacutesica Mas diz-se contra essas ideias
primeiro que natildeo eacute prontamente concedido que por natureza240 algumas melodias excitam a
alma e outras tranquilizam241 Com efeito tal coisa eacute contraacuteria agrave nossa opiniatildeo Pois tal como
o estrondo do trovatildeo ndash segundo dizem os aprendizes242 de Epicuro243 ndash natildeo significa a epifania
de algum deus (embora isso seja suposto pelas pessoas comuns e supersticiosas) [620] visto
que outros corpos colidindo uns nos outros igualmente produzem um estrondo similar (como
quando um moinho gira ou quando matildeos batem palmas) do mesmo modo algumas melodias
musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada
por noacutes244
237 Em grego ldquostasimonrdquo Cf Aristoacuteteles Poeacutetica (1452 B) ldquoo estaacutesimo eacute um coral desprovido de anapestos etroqueusrdquo O anapesto eacute usado na entrada do coro composto de duas siacutelabas breves e uma longa ᴗ ᴗ ndash e otroqueu tem a forma ndash ᴗ ndash ᴗ ou ndash ᴗ ndash x e eacute mais adequado para danccedila
238 Euriacutepides (fr 839 Nauck)239 Em grego ldquodianoiardquo eacute um dos termos usados para se referir agrave atividade do intelecto240 Aquilo que eacute dito ldquopor naturezardquo diz respeito ao que existe independentemente de nossas representaccedilotildees
Todavia de acordo com o ceticismo pirrocircnico temos acesso apenas agravequilo que nos aparece por isso natildeopodemos afirmar ou negar algo sobre como as coisas satildeo por elas mesmas ou seja por natureza Ver seccedilatildeo41
241 Cf Filodemo De Mus(col 120)242 Parece haver uma certa ironia no modo como Sexto se refere aos disciacutepulos de Epicuro utilizando o termo
ldquopaidesrdquo (que traduzimos por ldquoaprendizesrdquo) que em grego significa ldquoescravosrdquo ldquoservosrdquo ldquocrianccedilasrdquo243 Tal afirmaccedilatildeo parece se referir a Lucreacutecio De rerum natura (VI 96 ss)244 Para Platatildeo e Aristoacuteteles as melodias tecircm certos caracteres (ethe) por natureza Essa visatildeo foi criticada
tambeacutem por Filodemo (De Mus col 88 e 96) A definiccedilatildeo das melodias pelo termo ldquoethosrdquo se daacute a partir daideia de que as melodias teriam por natureza a capacidade de influenciar na formaccedilatildeo do caraacuteter humanoincitando a alma a accedilotildees boas ou maacutes
98
τὸ αὐτὸ γοῦν μέλος τῶν μὲν ἵππων διεγερτικόν ἐστι τῶν δὲ ἀνθρώπων ἐν θεάτροις
ἀκουόντων οὐδαμῶς καὶ τῶν ἵππων δὲ τάχα οὐ διεγερτικόν ἐστιν ἀλλὰ ταρακτικόν [621]
Eἶτα κἂν τοιαῦτα ᾖ τὰ τῆς μουσικῆς μέλη οὐ διὰ τοῦτο καὶ ἡ μουσικὴ βιωφελὴς καθέστηκεν
οὐ γὰρ ὅτι δύναμιν ἔχει σωφρονιστικήν καταστέλλει τὴν διάνοιαν ἀλλὰ ᾗ περισπαστικήν
παρὸ καὶ ἡσυχασθέντων πως τῶν τοιούτων μελῶν πάλιν ὁ νοῦς ὡς ἂν μὴ θεραπευθεὶς ὑπ
αὐτῶν ἐπὶ τὴν ἀρχῆθεν ἀνακάμπτει διάνοιαν [622] ὅνπερ οὖν τρόπον ὁ ὕπνος ἢ ὁ οἶνος οὐ
λύει τὴν λύπην ἀλλ ὑπερτίθεται κάρον ἐμποιῶν καὶ ἔκλυσιν καὶ λήθην οὕτω τὸ ποιὸν μέλος
οὐ καταστέλλει λυπουμένην ψυχὴν ἢ περὶ ὀργὴν σεσοβημένην τὴν διάνοιαν ἀλλ εἴπερ
περισπᾷ
99
Portanto a mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute de modo algum para os
homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitante mas
perturbadora245 [621] Em segundo lugar ainda que a melodia da muacutesica seja desse modo
tambeacutem natildeo foi devido a isso que a muacutesica se estabeleceu como uacutetil para a vida246 Com
efeito natildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica refreia o pensamento mas porque
tem o poder de distrair Por conseguinte tais melodias tendo sido silenciadas novamente a
mente como se natildeo tivesse sido tratada pela melodia volta imediatamente ao estado de
pensamento inicial [622] Entatildeo do mesmo modo que o sono ou o vinho natildeo dissolve a
tristeza mas a sobrepassa o torpor produzindo enfraquecimento e esquecimento a melodia
desse tipo natildeo tranquiliza a alma entristecida ou o pensamento agitado pela raiva mas se faz
algo os distrai247
245 Esse argumento eacute baseado no primeiro Modo de Enesidemo sobre a variedade dos animais Nele mostra-seque a partir das mesmas coisas natildeo recebemos as mesmas representaccedilotildees por causa das diferenccedilas entre osanimais Segundo Sexto Empiacuterico isso se daacute devido agraves (1) diferenccedilas no modo como os animais satildeoproduzidos (HP I 41-43) agraves (2) diferenccedilas nas estruturas corporais (44-54) e agraves (3) diferenccedilas naspreferecircncias e aversotildees dos animais (55-58) Ao abordar essas diferenccedilas Sexto nunca daacute um exemploconcreto de como as coisas aparecem para os animais pois segundo Annas amp Barnes (1985 p 41) ldquoseuapelo agraves experiecircncias dos animais natildeo supotildee que noacutes humanos podemos saber como eacute ser natildeo-humanordquo Noque diz respeito agrave diferenccedila nas estruturas corporais Sexto argumenta por exemplo que as diferenccedilas nocanal auditivo e na constituiccedilatildeo das orelhas podem afetar o modo como o mesmo som eacute percebido (HP I50) Aleacutem disso no que diz respeito agraves diferentes preferecircncias aquilo que eacute agradaacutevel ao homem pode serdesagradaacutevel ou ateacute mortiacutefero para outro animal Apoacutes apresentar vaacuterios exemplos especiacuteficos acerca dessasdiferenccedilas Sexto conclui que ldquose as mesmas coisas satildeo desagradaacuteveis para alguns mas agradaacuteveis paraoutros e se prazer e desagradabilidade repousam nas representaccedilotildees entatildeo animais diferentes recebemdiferentes representaccedilotildees dos objetos externosrdquo (HP I 58) No caso de uma melodia o mesmo conjunto desons pode ser percebido de maneira diferente pelos homens e pelos animais Mas se os mesmos objetosaparecem de maneiras diferentes em funccedilatildeo das diferenccedilas entre os animais ldquoentatildeo noacutes devemos sercapazes de dizer como um objeto existente parece quando observado por noacutes mas sobre como ele eacute em suanatureza noacutes devemos suspender o juiacutezo Pois noacutes natildeo podemos decidir entre nossas percepccedilotildees e as dosoutros animais sendo noacutes mesmos uma parte da disputardquo (HP I 59) Assim no que diz respeito agrave melodiapara o ceacutetico podemos dizer como ela aparece para noacutes e como ela parece (para noacutes) afetar o cavalo masnatildeo podemos dizer se ela eacute excitante ou natildeo por natureza Ver seccedilotildees 41 e 431 (p 62)
246 A argumentaccedilatildeo a favor da muacutesica pauta-se em sua utilidade para a vida visto que eacute a partir de sua utilidadeque os filoacutesofos abordam a necessidade do ensino da muacutesica A criacutetica de Sexto Empiacuterico tal como a deFilodemo (De Mus col 137-144 e 149) contesta essa utilidade
247 Ver Filodemo De Mus (col 129 1-7)
100
[623] Ὃ τε Πυθαγόρας τὸ μὲν πρῶτον μάταιος ἦν τοὺς μεθύοντας ἀκαίρως σωφρονίζειν
βουλόμενος ἀλλὰ μὴ ἐκκλίνων εἶτα καὶ τούτῳ τῷ τρόπῳ ἐπανορθούμενος αὐτοὺς ὁμολογεῖ
πλεῖόν τι δύνασθαι τῶν φιλοσόφων πρὸς ἐπανόρθωσιν ἠθῶν τοὺς αὐλητάς [624] Tό τε τοὺς
Σπαρτιάτας πρὸς αὐλὸν καὶ λύραν πολεμεῖν τοῦ μικρῷ πρότερον εἰρημένου τεκμήριόν ἐστιν
ἀλλ οὐχὶ τοῦ βιωφελῆ τυγχάνειν τὴν μουσικήν καθάπερ δ οἱ ἀχθοφοροῦντες ἢ ἐρέσσοντες ἢ
ἄλλο τι τῶν ἐπιπόνων δρῶντες ἔργων κελεύουσιν εἰς τὸ ἀνθέλκειν τὸν νοῦν ἀπὸ τῆς κατὰ τὸ
ἔργον βασάνου οὕτω καὶ αὐλοῖς ἢ σάλπιγξιν ἐν πολέμοις χρώμενοι οὐ διὰ τὸ ἔχειν τι τῆς
διανοίας ἐπεγερτικὸν τὸ μέλος καὶ ἀνδρικοῦ λήματος αἴτιον ὑπάρχειν τοῦτο ἐμηχανήσαντο
ἀλλἀπὸ τῆς ἀγωνίας καὶ ταραχῆς ἀνθέλκειν ἑαυτοὺς σπουδάσαντες εἴγε καὶ στρόμβοις τινὲς
τῶν βαρβάρων βουκινίζουσι καὶ τυμπάνοις κτυποῦντες πολεμοῦσιν ἀλλ οὐδὲν τούτων ἐπ
ἀνδρείαν προτρέπεται
101
[623] E Pitaacutegoras primeiramente era um tolo desejando regular aqueles inapropriadamente
embriagados em vez de evitaacute-los aleacutem disso recorrendo a esse modo de correccedilatildeo ele aceita
que os auletas tecircm mais poder do que os filoacutesofos248 no que concerne agrave correccedilatildeo dos
caraacuteteres249 [624] E que os Espartanos fazem guerra ao som do aulo e da lira 250 eacute prova do
que foi dito um pouco antes mas natildeo de que a muacutesica eacute uacutetil251 para a vida Do mesmo modo
que os que carregam fardos ou remam ou cumprem tarefas ldquocantam lamentosrdquo252 para afastar
a mente da agonia do trabalho253 tambeacutem aqueles que usam aulos e saacutelpinges254 em batalhas
inventaram isso natildeo por terem alguma melodia estimulante do pensamento como causa de
coragem viril mas porque ansiavam afastar a si mesmos da agonia e da perturbaccedilatildeo255 ainda
que alguns baacuterbaros256 guerreiem assoprando257 conchas e ressoando tambores258 Entretanto
nada disso incita algueacutem agrave coragem
248 Os auletas sendo muacutesicos praacuteticos seriam inferiores em relaccedilatildeo aos filoacutesofos Na Poliacutetica (1339 B 1341B) Aristoacuteteles afirma que o muacutesico profissional pode ser considerado vulgar e que a praacutetica musical natildeo eacuteproacutepria para o homem livre visto que esta natildeo tem um fim em si mesma Filodemo utiliza o mesmo tipo deargumento contra Dioacutegenes da Babilocircnia cf Filodemo De Mus (IV col 126 35-40 136 10-21)
249 Ethos (ἦθος) diz respeito ao caraacuteter da alma Na Eacutetica a Nicocircmaco (1103A) Aristoacuteteles apresenta duasespeacutecies de virtudes a intelectual e a moral A virtude moral surge do haacutebito ldquodonde forma-se seu nome(ethike) [ἠθική] por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ethos [ἔθος] (haacutebito)rdquo Todos os elementos damuacutesica conteacutem um caraacuteter proacuteprio que eacute transmitido para a alma atraveacutes de um processo de imitaccedilatildeo CfAristides Quintiliano De Mus (218) e Filodemo De Mus (col 99-100)
250 Ver Filodemo De Mus (col 72 43-732 ) 251 A utilidade para a vida eacute o criteacuterio de acordo com o qual o ceacutetico condena algumas artes e natildeo outras Ver
seccedilotildees 41 (p 51-2) e 54252 ldquoKeleuosirdquo comumente significa ldquoincitarrdquo ou ldquodar ordensrdquo De acordo com Delattre (2002 p 425 n 6) agraves
vezes com acompanhamento musical Na Repuacuteblica (390 B) de Platatildeo aparece com o sentido teacutecnico deldquodar a cadecircnciardquo Delattre opta por traduzir o termo pela expressatildeo ldquocadencent leurs mouvementsrdquo
253 Um argumento a favor da muacutesica nesse contexto aparece em Quintiliano Inst (I X 16)254 Em grego ldquosalpinxrdquo instrumento de origem Etrusca parecido com um trompete consistindo de um tubo
reto de bronze ou latatildeo Era utilizado em contextos militares255 Ver Filodemo De Mus (col 69 7-12)256 De acordo com Greaves (1986 p 145 n 65) ldquoisso reflete uma crenccedila da parte de muitos Gregos de que
muitos baacuterbaros ou natildeo-Helenos eram naturalmente inferiores agravequeles de nacionalidade Grega Oargumento aqui eacute de que os baacuterbaros natildeo teriam a capacidade para o espiacuterito viril uma das virtudesrdquo NaPoliacutetica por exemplo Aristoacuteteles afirma que os ldquoHelenos satildeo senhores naturais de baacuterbarosrdquo (AristoacutetelesPol 1252 B)
257 Segundo Beacutelis (apud Delattre 2002 p 427 n 2) ldquoo verbo boukinizein remete agrave bucina trompa de guerrados romanosrdquo
258 Aristides Quintiliano (De mus 26) tambeacutem aborda as questotildees dos baacuterbaros serem civilizados atraveacutes damuacutesica e do uso da saacutelpinge para dar os comandos nas batalhas
102
[625] Tὰ δὲ αὐτὰ λεκτέον καὶ ἐπὶ τοῦ μηνίοντος Ἀχιλλέως καίτοι ἐρωτικοῦ ὄντος καὶ
ἀκρατοῦς οὐ παράδοξον τὴν μουσικὴν σπουδάζεσθαι [626] Nὴ Δί ἀλλὰ καὶ οἱ ἥρωες τὰς
ἑαυτῶν γυναῖκας ᾠδοῖς τισὶν ὡς σώφροσι φύλαξι παρακατετίθεντο καθάπερ ὁ Ἀγαμέμνων
τὴν Κλυταιμνήστραν ταῦτα δὲ ἤδη μυθολογούντων ἐστὶν ἀνδρῶν εἶτα καὶ παρὰ πόδας
αὑτοὺς διελεγχόντων πῶς γάρ εἴπερ μουσικὴ περὶ τῆς τῶν παθῶν ἐπανορθώσεως
ἐπιστεύετο τὸν μὲν Ἀγαμέμνονα ἡ Κλυταιμνήστρα ἐπὶ τῆς ἰδίας ἑστίας κατέκτανεν ὥσπερ
ldquoβοῦν ἐπὶ φάτνῃrdquo εἰς δὲ τοὺς Ὀδυσσέως οἴκους ἡ Πηνελόπη ὄχλον ἄσωτον ἐπιδέχεται
μειρακίων ἀεὶ δὲ τὰς ἐπιθυμίας αὐτῶν ἐλπιδοκοποῦσα καὶ παραύξουσα μοχθηρότερον καὶ
χαλεπώτερον τῆς ἐπὶ Ἴλιον στρατείας τὸν ἐν Ἰθάκῃ πόλεμον ἤγειρε τῷ γήμαντι [627] Kαὶ
μὴν εἰ οὔτε οἱ περὶ τὸν Πλάτωνα μουσικὴν ἀπεδέξαντο ῥητέον οὐ πρὸς εὐδαιμονίαν αὐτὴν
συντείνειν ἐπεὶ καὶ ἄλλοι μὴ λειπόμενοι τῆς τούτων ἀξιοπιστίας καθάπερ οἱ περὶ τὸν
Ἐπίκουρον ἠρνήσαντο ταύτην τὴν ἀντιποίησιν λέγομεν τοὐναντίον αὐτὴν ἀσύμφορον εἶναι
καὶ ἀργήν φίλοινον χρημάτων ἀτημελῆ
103
[625] Isso tambeacutem deve ser dito sobre a ira de Aquiles259 embora seja passional e
incontinente260 natildeo eacute contraacuterio agrave expectativa ele ser ansioso a respeito da muacutesica [626] Mas
por Zeus tambeacutem os heroacuteis confiavam suas mulheres a alguns cantores como guardiotildees da
temperanccedila delas tal como Agamecircnon fez com Clitemnestra Mas essas coisas satildeo mitos
contados pelos homens que imediatamente em seguida contradizem a si mesmos Com
efeito se realmente se acreditava que a muacutesica teria influecircncia na correccedilatildeo dos afetos como
Clitemnestra mataria Agamecircnon em sua proacutepria lareira como se fosse um ldquoboi na
manjedourardquo261 E como Peneacutelope admitiria na casa de Odisseu uma multidatildeo desesperada de
jovens e conduzindo-os a falsas esperanccedilas e aumentando o desejo deles provocaria para seu
marido a guerra em Iacutetaca que foi mais horriacutevel e mais difiacutecil do que a campanha de Troia
[627] Aleacutem disso mesmo se os seguidores de Platatildeo admitiram a muacutesica natildeo se deve dizer
que ela leva agrave felicidade visto que tambeacutem outros que natildeo satildeo inferiores em credibilidade
nessas coisas tal como os seguidores de Epicuro se negaram a assumir essas afirmaccedilotildees262
dizendo pelo contraacuterio que a muacutesica eacute prejudicial e ociosa amante do vinho e
desnecessaacuteria263
259 Cf Homero Iliacuteada (IX 186-9) Segundo Aristides Quintiliano (De Mus 210) o papel da muacutesica naeducaccedilatildeo eacute suficientemente confirmado por Homero ldquoAssim quando Aquiles na Iliacuteada quer se livrar dapaixatildeo por Briseida ele natildeo aparece cantando algo amoroso mas convida sua alma a se tornar virilrelembrando com a ciacutetara as faccedilanhas guerreiras dos antigosrdquo
260 Em grego ldquoacrasiardquo traduz-se por ldquoincontinecircnciardquo ldquofalta de autocontrolerdquo Cf Aristoacuteteles EN (1095 A)261 Homero Odisseia (XI 411)262 Pode-se compreender esse argumento agrave luz de um dos conceitos baacutesicos do ceticismo apresentado no
primeiro Modo de Agripa o conflito das opiniotildees (diaphonia) ldquode acordo com o qual noacutes descobrimos quetanto na vida comum quanto entre os filoacutesofos no que diz respeito a uma determinada questatildeo foialcanccedilado um impasse natildeo resolvido acerca do qual noacutes somos incapazes de alcanccedilar um veredito ()rdquo (HPI 165) Aleacutem disso esse argumento pode ser reportado ao segundo Modo de Enesidemo que aborda asdiferenccedilas entre os seres humanos (em funccedilatildeo das diferenccedilas do corpo e da alma) A esse respeito lemos queldquoa grande indicaccedilatildeo da vasta e ilimitada diferenccedila no intelecto dos seres humanos eacute a inconsistecircncia dasvaacuterias afirmaccedilotildees dos Dogmaacuteticos no que diz respeito agravequilo que pode ser apropriadamente escolhido o quepode ser evitado etcrdquo (HP I 85-6) Sexto Empiacuterico aponta que aquilo que escolhemos e evitamos estaacuteconectado agravequilo que eacute agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos e ldquoquando as mesmas coisas satildeo escolhidaspor algumas pessoas e evitadas por outras eacute loacutegico para noacutes inferir que essas pessoas natildeo satildeo afetadas damesma maneira pelas mesmas coisas visto que se fossem elas iriam do mesmo modo ter escolhido eevitado as mesmas coisasrdquo (HP I 87) O ceacutetico ainda acrescenta que ldquoenquanto os Dogmaacuteticos de maneiraegoiacutesta pretendem que a decisatildeo acerca dos fato deve ser dada a eles acima de todos os outros sereshumanos noacutes sabemos que essa pretensatildeo eacute absurda visto que eles proacuteprios fazem parte da disputa ()rdquo (HPI 89) Assim para o ceacutetico se a mesma coisa neste caso a muacutesica produz um determinado efeito para umou um grupo de seres humanos e natildeo para outros eacute impossiacutevel decidir quem estaacute certo a respeito de comoela eacute por natureza Sobre os Modos ver p 62
263 Euriacutepides Antiacuteope (fr 184 Nauck) Delattre (2002 p 229 n 1) chama atenccedilatildeo para uma relaccedilatildeo comDioacutegenes da Babilocircnia
104
[628] Eὐήθεις δέ εἰσι καὶ οἱ τὴν ἀπὸ ποιητικῆς χρείαν συμπλέκοντες αὐτῇ πρὸς εὐχρηστίαν
ἐπείπερ δύναται μέν τις ὡς καὶ ἐν τῷ πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ἐλέγομεν ἀνωφελῆ διδάσκειν
τὴν ποιητικήν οὐδὲν δὲ ἔλαττον κἀκεῖνο δεικνύναι ὅτι ἡ μὲν μουσικὴ περὶ μέλος
καταγινομένη μόνον τέρπειν πέφυκεν ἡ δὲ ποιητικὴ καὶ περὶ διάνοιαν καταγινομένη δύναται
συνωφελεῖν τε καὶ σωφρονίζειν
[629] Ἀλλ ὁ μὲν πρὸς τὰ ἐγκεχειρημένα λόγος ἐστὶ τοιοῦτος προηγουμένως δὲ
λέγεται καὶ κατὰ μουσικῆς ὡς εἴπερ ἐστὶ χρειώδης καὶ κατὰ τοῦτο λέγεται χρειοῦν παρόσον
μουσικευσάμενος πλεῖον παρὰ τοὺς ἰδιώτας τέρπεται πρὸς μουσικῶν ἀκροαμάτων ἢ
παρόσον οὐκ ἔστιν ἀγαθοὺς γενέσθαι μὴ προπαιδευθέντας ὑπ αὐτῶν [630] ἢ τῷ τὰ αὐτὰ
στοιχεῖα τυγχάνειν τῆς μουσικῆς καὶ τῶν κατὰ φιλοσοφίαν πραγμάτων εἰδήσεως ὁποῖόν τι
καὶ περὶ γραμματικῆς ἀνώτερον ἐλέγομεν ἢ τῷ κατὰ ἁρμονίαν διοικεῖσθαι τὸν κόσμον
καθὼς φάσκουσι Πυθαγορικῶν παῖδες δέεσθαί τε ἡμᾶς τῶν μουσικῶν θεωρημάτων πρὸς
τὴν τῶν ὅλων εἴδησιν ἢ τῷ τὰ ποιὰ μέλη ἠθοποιεῖν τὴν ψυχήν [631] Oὔτε δὲ τῷ τοὺς
μουσικοὺς πλέον τέρπεσθαι παρὰ τοὺς ἰδιώτας ἀπὸ τῶν ἀκροαμάτων λέγοιτ ἂν χρειοῦν ἡ
μουσική πρῶτον μὲν γὰρ οὐκ ἀναγκαία ἰδιώταις ἡ τέρψις καθάπερ αἱ ἐπὶ λιμῷ ἢ δίψει ἢ
κρύει γινόμεναι ὑπὸ πόματος ἢ ἀλέας
105
[628] E tolos satildeo tambeacutem os que ligam a muacutesica aos benefiacutecios do uso da poeacutetica em funccedilatildeo
de sua utilidade visto que - tal como diziacuteamos no Contra os Gramaacuteticos - algueacutem pode
ensinar que a poeacutetica eacute inuacutetil264 e igualmente pode-se mostrar que a muacutesica dizendo
respeito somente agrave melodia produz por natureza somente prazer enquanto a poeacutetica dizendo
respeito ao pensamento pode tanto ser beneacutefica quanto levar agrave temperanccedila265
[629] Esses satildeo os argumentos contra as ideias que foram discutidas Mas a primeira
e principal discussatildeo sobre a muacutesica eacute se de fato ela eacute uacutetil e ela eacute dita uacutetil na medida em que
aqueles que cultivaram o gosto pela muacutesica em comparaccedilatildeo agraves pessoas comuns tecircm mais
prazer com concertos musicais266 ou na medida em que natildeo acontece de os homens virem a
ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicos [630] ou porque acontece dos
elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofia267 (tal
como aquilo que dissemos acima sobre a gramaacutetica268) ou porque o cosmos eacute governado de
acordo com a harmonia - segundo afirmam os aprendizes de Pitaacutegoras269 ndash e noacutes necessitamos
dos teoremas musicais para a conhecimento do todo ou porque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da alma270 [631] Nem a muacutesica deveria ser dita uacutetil porque os muacutesicos tecircm
mais prazer com os concertos do que as pessoas comuns271 Primeiro porque certamente esse
prazer natildeo eacute necessaacuterio272 para as pessoas comuns tal como o prazer que surge da bebida ou
do calor quando se tem fome sede ou frio
264 Cf M I 277-80 onde o mesmo tipo de argumento eacute apresentado contra a utilidade da Gramaacutetica Vertambeacutem M I 296-8
265 Uma das criacuteticas principais de Filodemo a Dioacutegenes da Babilocircnia eacute que ele atribui agraves melodias consideradasdesprovidas de razatildeo os efeitos das poesias que elas acompanham
266 Em nota agrave traduccedilatildeo de Delattre Beacutelis (apud Delattre 2002 p 429 n 4) chama atenccedilatildeo para a traduccedilatildeo dotermo akroama que significa literalmente ldquocoisa ouvidardquo como ldquoconcertordquo ou ldquorecitalrdquo
267 Filodemo tambeacutem aborda a relaccedilatildeo da muacutesica com outras artes e com a Filosofia Ver Filodemo De Mus(col 136-7)
268 No Contra os Gramaacuteticos (M I 72) Sexto aponta que para Ptolomeu a Gramaacutetica natildeo eacute uma arteconjectural (sujeita a acidentes como a navegaccedilatildeo e a medicina) mas eacute semelhante agrave muacutesica e agrave FilosofiaSobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54-5)
269 Filodemo menciona alguns neopitagoacutericos no que diz respeito a esta concepccedilatildeo Ver De Mus (col 145 17)270 Cf Filodemo De Mus (col 38 1-19 e 117 2-42)271 Filodemo De Mus (col 42-3)272 A ideia de que a muacutesica proporciona um prazer natildeo necessaacuterio eacute defendida pelos Epicuristas ver Filodemo
De Mus (col 151 29-31)
106
[632] εἶτα κἂν τῶν ἀναγκαίων ὑπάρχωσι δυνάμεθα χωρὶς μουσικῆς ἐμπειρίας αὐτῶν
ἀπολαύειν νήπια γοῦν ἐμμελοῦς μινυρίσματος κατακούοντα κοιμίζεται καὶ τὰ ἄλογα τῶν
ζῴων ὑπὸ αὐλοῦ καὶ σύριγγος κηλεῖται οἵ τε δελφῖνες ὡς λόγος αὐλῶν μελῳδίαις
τερπόμενοι προσνήχονται τοῖς ἐρεσσομένοις σκάφεσιν ὧν οὐδὲ ὁπότερον ἔοικε μουσικῆς
ἔχειν ἐμπειρίαν ἢ ἔννοιαν [633] Kαὶ διὰ τοῦτο μή ποτε ὃν τρόπον χωρὶς ὀψαρτυτικῆς καὶ
οἰνογευστικῆς ἡδόμεθα ὄψου ἢ οἴνου γευσάμενοι ὧδε καὶ χωρὶς μουσικῆς ἡσθείημεν ἂν
τερπνοῦ μέλους ἀκούσαντες τοῦ μὲν ὅτι τεχνικῶς γίνεται μᾶλλον παρὰ τὸν ἰδιώτην
ἀντιλαμβανoacuteμενοι τοῦ δὲ ἡστικοῦ πάθους μηδὲν πλείω κερδαίνοντες [634] Ὥστε οὐχ
αἱρετὸν μουσικὴ παρόσον τοὺς εἰδήμονας αὐτῆς ἐπὶ πλεῖον τέρπεσθαι συμβέβηκεν καὶ μὴν
οὐδὲ τῷ προοδοποιεῖν τὴν ψυχὴν εἰς σοφίαν ἀνάπαλιν γὰρ ἀντικόπτει καὶ ἀντιβαίνει πρὸς τὸ
τῆς ἀρετῆς ἐφίεσθαι εὐαγώγους εἰς ἀκολασίαν καὶ λαγνείαν παρασκευάζουσα τοὺς νέους
[635] ἐπείπερ ὁ μουσικευσάμενος
μολπαῖσιν ἡσθεὶς τοῦτ ἀεὶ θηρεύεται
ἀργὸς μὲν οἴκοις καὶ πόλει γενήσεται
φίλοισι τ οὐθείς ἀλλ ἄφαντος οἴχεται
ὅταν γλυκείας ἡδονῆς ἥσσων τις ᾖ
[636] Kατὰ ταὐτὰ δὲ οὐδὲ ἀπὸ τῶν αὐτῶν στοιχείων ὁρμᾶσθαι ταύτην τε καὶ φιλοσοφίαν
εἰσακτέον τὸ καταὐτὴν χρειῶδες ὡς αὐτόθεν ἐστὶ συμφανές λείπεται ἄρα τῷ καθ ἁρμονίαν
τὸν κόσμον διοικεῖσθαι ἢ τῷ ἠθοποιοῖς μέλεσι κεχρῆσθαι χρειώδη πρὸς εὐδαιμονίαν λέγειν
αὐτὴν τυγχάνειν
107
[632] E mesmo que estes venham a ser prazeres necessaacuterios noacutes podemos aproveitaacute-los sem
experiecircncia musical273 Crianccedilas satildeo colocadas para dormir ouvindo um gorjear meloacutedico274 e
os animais irracionais satildeo encantados pelo aulo e pela siacuteringe275 Assim os golfinhos segundo
o relato276 por terem prazer com as melodias dos aulos nadam ao redor dos cascos dos navios
que estatildeo sendo remados mas nenhum deles parece ter experiecircncia ou compreensatildeo musical
[633] E por causa de tais coisas do mesmo modo que sem a arte da culinaacuteria e a arte da
degustaccedilatildeo de vinhos noacutes temos prazer em saborear a comida e o vinho tambeacutem sem a arte
da muacutesica noacutes temos prazer ouvindo melodias prazerosas Embora por um lado os artistas
profissionais no que concerne agraves regras da arte apreendam mais do que as pessoas comuns
por outro eles natildeo recebem nada mais no que diz respeito agrave afecccedilatildeo prazerosa [634] Entatildeo
a muacutesica natildeo eacute escolhida porque os especialistas tecircm mais prazer nela Tambeacutem natildeo eacute
escolhida por preparar a alma de antematildeo para a sabedoria277 Inversamente ela resiste e vai
contra o desejo pela virtude tornando os jovens facilmente conduzidos agrave intemperanccedila e agrave
luxuacuteria278 [635] porque aquele que cultivou o gosto pela muacutesica
ter prazer nas danccedilas ele sempre busca
ele seraacute ocioso em casa e na cidade
natildeo sendo ningueacutem para os amigos invisiacutevel ele vai embora
a qualquer hora quando for vencido pelo doce prazer279
[636] A partir dessas mesmas ideias a utilidade da muacutesica natildeo deve ser introduzida pelo fato
de ambas a muacutesica e a Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos como eacute
imediatamente evidente Resta entatildeo dizer que acontece dela ser uacutetil para a felicidade
porque o cosmos eacute ordenado segundo a harmonia ou porque se usa melodias para a formaccedilatildeo
do caraacuteter
273 Ver seccedilatildeo 52 (p 75-6)274 Platatildeo nas Leis (790 D - E) fala de como as matildees potildeem os bebecircs para dormir cantando para eles Beacutelis
(apud Delattre 2002 p 431 n 4) aponta que essa pode ser uma criacutetica agrave afirmaccedilatildeo de Platatildeo visto que ascrianccedilas natildeo seriam colocadas para dormir soacute pela melodia mas pela sua combinaccedilatildeo com o balanccedilo
275 Em grego ldquosyrinxrdquo Instrumento da famiacutelia dos aerofones semelhante agrave ldquoflauta de Patilderdquo na sua forma maiscomum
276 Esse relato aparece em vaacuterias fontes Ver Euriacutepedes Electra (435) Plutarco Banquete dos Sete Saacutebios (160E-162 B) Heroacutedoto (1 24)
277 Ver seccedilatildeo 52 (p 76-7)278 Ver Filodemo De Mus (col 127 28-30)279 Euriacutepides Antiacuteope (fr 187 Nauck)
108
ὧν τὸ μὲν τελευταῖον ἤδη διαβέβληται ὡς οὐχ ὑπάρχον ἀληθές [637] τὸ δὲ κατὰ ἁρμονίαν
διοικεῖσθαι τὸν κόσμον ποικίλως δείκνυται ψεῦδος εἶτα καὶ ἂν ἀληθὲς ὑπάρχῃ οὐδὲν
τοιοῦτο δύναται πρὸς μακαριότητα καθάπερ οὐδὲ ἡ ἐν τοῖς ὀργάνοις ἁρμονία
Ἀλλὰ τὸ μὲν πρῶτον εἶδος τῆς πρὸς τοὺς μουσικοὺς ἀντιρρήσεως τοιουτότροπόν
ἐστιν [638] τὸ δὲ δεύτερον καὶ τῶν τῆς μουσικῆς ἀρχῶν καθαπτόμενον πραγματικωτέρας
μᾶλλον ἔχεται ζητήσεως οἷον ἐπεὶ ἡ μουσικὴ ἐπιστήμη τίς ἐστιν ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
ἐνρύθμων τε καὶ ἐκρύθμων πάντως ἐὰν δείξωμεν ὅτι οὔτε τὰ μέλη ὑποστατά ἐστιν οὔτε οἱ
ῥυθμοὶ τῶν ὑπαρκτῶν πραγμάτων τυγχάνουσιν ἐσόμεθα παρεστακότες καὶ τὴν μουσικὴν
ἀνυπόστατον λέγωμεν δὲ πρῶτον περὶ μελῶν καὶ τῆς τούτων ὑποστάσεως μικρὸν ἄνωθεν
καταρξάμενοι
[639] Φωνὴ τοίνυν ἐστίν ὡς ἄν τις ἀναμφισβητήτως ἀποδοίη τὸ ἴδιον αἰσθητὸν
ἀκοῆς καθάπερ γὰρ μόνης ὁράσεως ἔργον ἐστὶ τὸ χρωμάτων ἀντιλαμβάνεσθαι καὶ μόνης
ὀσφρήσεως τὸ εὐωδῶν καὶ δυσωδῶν ἀντιποιεῖσθαι καὶ ἤδη γεύσεως τὸ γλυκέων ἢ πικρῶν
αἰσθάνεσθαι οὕτω γένοιτ ἂν ἴδιον αἰσθητὸν ἀκοῆς ἡ φωνή [640] Tῆς δὲ φωνῆς ἡ μέν τίς
ἐστιν ὀξεῖα ἡ δὲ βαρεῖα μεταφορικώτερον ἀπὸ τῶν περὶ τὴν ἁφὴν αἰσθητῶν ἑκατέρου
τούτων λαμβάνοντος τὴν προσηγορίαν καθάπερ γὰρ τὸ κεντοῦν καὶ τέμνον τὴν ἁφὴν ὀξὺ
προσηγόρευσεν ὁ βίος καὶ τὸ θλάσιν ἐμποιοῦν καὶ πιέζον βαρύ τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῆς
φωνῆς τὴν μὲν οἱονεὶ τέμνουσαν τὴν ἀκοὴν ὀξεῖαν τὴν δὲ ὥσπερ θλῶσαν βαρεῖαν [641] καὶ
οὐ ξένον ὥσπερ φαιάν τινα καὶ μέλαιναν καὶ λευκὴν φωνὴν ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ὅρασιν
αἰσθητῶν κεκλήκαμεν ὧδε καὶ ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ἁφὴν ἐχρησάμεθά τισι μεταφοραῖς Ὅταν
μὲν οὖν ἐπἴσης ἐκφέρηται ἡ φωνὴ καὶ ὑπὸ μίαν τάσιν ὡς μηδένα περισπασμὸν γίνεσθαι τῆς
αἰσθήσεως ἤτοι ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἢ τὸ ὀξύτερον τότε ὁ τοιοῦτος ἦχος φθόγγος καλεῖται
παρὸ καὶ οἱ μουσικοὶ ὑπογράφοντές φασι ldquoφθόγγος ἐστὶν ἐμμελοῦς φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν
τάσινrdquo
109
Desses o uacuteltimo jaacute foi desconsiderado como natildeo verdadeiro [637] e que o cosmos eacute
ordenado segundo a harmonia mostra-se falso de varios modos E ainda que porventura isso
fosse verdadeiro tal coisa natildeo tem poder sobre a bem aventuranccedila tal como a harmonia natildeo
tem poder sobre os instrumentos musicais280
De tal tipo eacute o primeiro modo de refutaccedilatildeo contra os muacutesicos [638] jaacute o segundo
atacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais pragmaacutetica281 Por exemplo
visto que a muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e
do que natildeo eacute riacutetmico282 se mostrarmos plenamente que nem as melodias existem283 e nem os
ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existe Falemos
primeiro sobre a melodia e sua existecircncia comeccedilando com algumas questotildees preliminares
[639] Ora o som eacute como algueacutem poderia indisputavelmente definir o sensiacutevel
proacuteprio da audiccedilatildeo284 Pois tal como a tarefa somente da visatildeo eacute apreender as cores e a do
olfato opor as fragracircncias boas e ruins e igualmente a do paladar eacute perceber o doce e o
amargo do mesmo modo o som seria o sensiacutevel proacuteprio do ouvir [640] Dos sons um tipo
eacute grave e outro agudo ambos utilizando metaforicamente nomes com base nos sensiacuteveis
proacuteprios do tato pois assim como as pessoas chamaram o que pica e corta o tato ldquoagudordquo e o
que esmaga e pressiona ldquograverdquo do mesmo modo tambeacutem o som na medida em que o que
corta o ouvir eacute ldquoagudordquo e na medida em que o que esmaga - como se o fizesse - eacute ldquograverdquo
[641] Tambeacutem natildeo eacute estranho que tal como chamamos algum som de cinza preto ou branco
por causa dos objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel da visatildeo assim tambeacutem usamos os objetos do
tato para as metaacuteforas Entatildeo sempre que o som eacute emitido igualmente e na mesma tensatildeo
quando natildeo haacute distraccedilatildeo da percepccedilatildeo tanto em direccedilatildeo ao grave quanto ao agudo entatildeo tal
som eacute chamado ldquonotardquo Para o que tambeacutem os muacutesicos285 definem de maneira geral ldquonota eacute a
incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo286
280 Isso porque a harmonia do cosmos seria inaudiacutevel e o efeito produzido pelos instrumentos eacute audiacutevelAristoacuteteles no De Caelo (290 B - 291 A) apresenta uma refutaccedilatildeo agrave teoria pitagoacuterica da harmonia dasesferas rejeitando a ideia de que a harmonia do cosmos produziria algum tipo de som Sobre a harmoniados instrumentos ver Aristides Quintiliano De Mus (217-9)
281 O termo que deriva de ldquopragmatikosrdquo nesta passagem eacute comumente traduzido ou por ldquopraacuteticordquo ou porldquoteacutecnicordquo O mesmo termo aparece no uacuteltimo paraacutegrafo do texto
282 Definiccedilatildeo proacutexima agrave de Dioacutegenes da Babilocircnia apresentada por Filodemo De Mus (col 34 31-33 e 11234-36)
283 Aquilo que existe substancialmente de maneira independente das nossas representaccedilotildees284 Definiccedilatildeo do som dada por Dioacutegenes da Babilocircnia seguindo a de Aristoacuteteles285 Ou seja os teoacutericos da muacutesica286 Definiccedilatildeo dada por Aristoacutexeno El Harm (115 14-15)
110
[642] Tῶν δὲ φθόγγων οἱ μέν εἰσιν ὁμόφωνοι οἱ δὲ οὐχ ὁμόφωνοι καὶ ὁμόφωνοι μὲν οἱ μὴ
διαφέροντες ἀλλήλων κατὀξύτητα καὶ βαρύτητα οὐχ ὁμόφωνοι δὲ οἱ μὴ οὕτως ἔχοντες
[643] τῶν δὲ ὁμοφώνων ὡς καὶ τῶν οὐχ ὁμοφώνων τινὲς μὲν ὀξεῖς τινὲς δὲ βαρεῖς
καλοῦνται καὶ πάλιν τῶν οὐχ ὁμοφώνων οἱ μὲν διάφωνοι προσαγορεύονται οἱ δὲ σύμφωνοι
καὶ διάφωνοι μὲν οἱ ἀνωμάλως καὶ διεσπασμένως τὴν ἀκοὴν κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ
ὁμαλώτερον καὶ ἀμερίστως [644] Σαφέστερον δὲ μᾶλλον ἔσται τὸ ἑκατέρου γένους ἰδίωμα
τῇ ἀπὸ τῶν πρὸς γεῦσιν ποιοτήτων μεταβάσει χρησαμένων ἡμῶν ὥσπερ τοίνυν τῶν γευστῶν
τὰ μὲν τοιαύτην ἔχει κρᾶσιν ὥστε μονοειδῶς καὶ λείως κινεῖν τὴν αἴσθησιν ὁποῖον τὸ
οἰνόμελι καὶ ὑδρόμελι τὰ δὲ οὐχ ὡσαύτως οὐδὲ ὁμοίως καθάπερ τὸ ὀξύμελι (ἑκάτερον γὰρ
τούτων τῶν μιγμάτων τὴν ἴδιον ἐντυποῖ ποιότητα τῇ γεύσει) οὕτω τῶν φθόγγων διάφωνοι
μέν εἰσιν οἱ ἀνωμάλως τὴν ἀκοὴν καὶ διεσπασμένως κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ ὁμαλώτεροι
ἀλλὰ γὰρ ἡ μὲν διαφορὰ τῶν φθόγγων τοιαύτη τίς ἐστι παρὰ μουσικοῖς [645] περιγράφεται
δέ τινα πρὸς τούτων διαστήματα καθ ἃ καὶ ἡ φωνὴ κινεῖται ἤτοι ἐπὶ τὸ ὀξύτερον
ἀναβαίνουσα ἢ ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἀνιεμένη παρ ἣν αἰτίαν κατὰ τὸ ἀνάλογον τῶν
διαστημάτων τούτων τὰ μὲν σύμφωνα τὰ δὲ διάφωνα προσηγόρευται
111
[642] Mas das notas algumas satildeo homofocircnicas e outras natildeo homofocircnicas287 Homofocircnicas
satildeo as que natildeo diferem umas das outras segundo ldquoagudezardquo e ldquogravidaderdquo e natildeo homofocircnicas
satildeo aquelas que natildeo satildeo desse modo288 [643] Das homofocircnicas como tambeacutem das natildeo
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquoagudasrdquo outras ldquogravesrdquo e novamente das natildeo-
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquodissonantesrdquo e outras ldquoconsonantesrdquo As dissonantes
sendo aquelas que movem a audiccedilatildeo anocircmala e desordenadamente e as consonantes regulada
e continuamente [644] Mas as propriedades de cada gecircnero estaratildeo mais claras quando
tivermos feito a analogia289 com as qualidades do paladar Ora assim como das coisas que
podem ser saboreadas algumas tecircm uma mistura de tal modo que movem a sensaccedilatildeo
uniforme e suavemente tal como o vinho de mel e o hidromel e outras natildeo sendo assim natildeo
a movem similarmente tal como o oximel290 (pois cada uma dessas coisas misturadas
imprime sua proacutepria qualidade ao paladar) do mesmo modo das notas dissonantes satildeo as
que movem o ouvido anocircmala e desordenadamente consonantes as que o movem de maneira
regulada De acordo com os muacutesicos essa eacute entatildeo a diferenccedila entre as notas [645] Aleacutem
disso satildeo definidos por eles alguns intervalos de acordo com os quais o som se move
subindo em direccedilatildeo ao agudo ou descendo em direccedilatildeo ao grave Por isso de modo anaacutelogo
dos intervalos alguns satildeo chamados consonantes e outros dissonantes
287 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 437 n 3) Sexto Empiacuterico deveria ter utilizado o adjetivoldquohomotocircnicasrdquo e natildeo ldquohomofocircnicasrdquo Isso porque os muacutesicos antigos distinguiam entre as notashomofocircnicas (enquanto aquelas que se encontram em oitavas diferentes) e as notas homotocircnicas (as mesmasnotas na mesma oitava)
288 A muacutesica grega antiga tem como elemento primaacuterio de sua constituiccedilatildeo o tetracorde que eacute um conjunto dequatro notas separadas por trecircs graus As notas que formam a quarta justa do tetracorde satildeo ditas sons fixosHavia duas maneiras de se agrupar os tetracordes para se constituir uma escala (sistema) por conjunccedilatildeoformando um heptacorde ou por disjunccedilatildeo formando um octacorde Ambos abrangem um intervalo deoitava a consonacircncia (symphonia)
289 Metabasis eacute um termo relacionado agrave escola empiacuterica de medicina com a qual o ceticismo pirrocircnicoapresenta afinidades e da qual Sexto Empiacuterico foi um dos representantes A medicina empiacuterica funda-se naexperiecircncia e esta se daacute atraveacutes da observaccedilatildeo direta (autopsia ou teresis) pela atenccedilatildeo agrave histoacuteria mdash ou sejaagraves observaccedilotildees anteriormente feitas e registradas por outros mdash e finalmente pela passagem do semelhanteao semelhante (he tou homoiou metabasis) tambeacutem chamada ldquoinduccedilatildeordquo ldquoanalogiardquo ou ldquotransferecircnciardquo CfAllen (2010 p 232)
290 Mistura de mel e vinagre utilizada na medicina na qual cada um dos elementos manteacutem seu saborparticular natildeo gerando um sabor proacuteprio da mistura Cf Delattre (2002 p 439 n 1) A comparaccedilatildeoaparece tambeacutem em contexto musical nos Problemas de Aristoacuteteles ldquo() o composto eacute mais agradaacutevel queo natildeo composto se se adquirir a percepccedilatildeo de ambos os elementos simultaneamente Por conseguinte ovinho eacute mais agradaacutevel que o oximel pelo fato de se combinarem melhor entre si as cousas misturadas pelanatureza do que por noacutesrdquo (Aristoacuteteles Prob 922 A)
112
[646] καὶ σύμφωνα μὲν ὁπόσα ὑπὸ συμφώνων φθόγγων περιέχεται διάφωνα δὲ ὁπόσα ὑπὸ
διαφώνων τῶν δὲ συμφώνων διαστημάτων τὸ μὲν πρῶτον καὶ ἐλάχιστον διὰ τεσσάρων οἱ
μουσικοὶ προσαγορεύουσι τὸ δὲ μετὰ τοῦτο μεῖζον διὰ πέντε καὶ τοῦ διὰ πέντε μεῖζον τὸ διὰ
πασῶν [647] πάλιν τε τῶν διαφώνων διαστημάτων ἐλάχιστον μέν ἐστι καὶ πρῶτον παρ
αὐτοῖς ἡ καλουμένη δίεσις δεύτερον δὲ τὸ ἡμιτόνιον ὅ ἐστι διπλοῦν τῆς διέσεως τρίτον ὁ
τόνος ὅς ἐστι διπλασίων τοῦ ἡμιτονίου [648] Oὐ μὴν ἀλλ ὃν τρόπον ἅπαν διάστημα κατὰ
μουσικὴν ἐν φθόγγοις ἔχει τὴν ὑπόστασι οὕτω καὶ πᾶν ἦθος τὸ δἔστι τι γένος μελῳδίας
καθὰ γὰρ τῶν ἀνθρωπίνων ἠθῶν τινὰ μέν ἐστι σκυθρωπὰ καὶ στιβαρώτερα ὁποῖα τὰ τῶν
ἀρχαίων ἱστοροῦσιν τὰ δὲ εὐένδοτα πρὸς ἔρωτας καὶ οἰνοφλυγίας καὶ ὀδυρμοὺς καὶ
οἰμωγάς οὕτω τὶς μὲν μελῳδία σεμνά τινα καὶ ἀστεῖα ἐμποιεῖ τῇ ψυχῇ κινήματα τὶς δὲ
ταπεινότερα καὶ ἀγεννῆ [649] καλεῖται δὲ κατὰ κοινὸν ἡ τοιουτότροπος μελῳδία τοῖς
μουσικοῖς ἦθος ἀπὸ τοῦ ἤθους εἶναι ποιητική καθάπερ καὶ τὸ χλωρὸν δέος τὸ χλωροποιόν
καὶ τὸ ldquoνότοι βαρυήκοοι ἀχλυώδεις καρηβαρικοὶ νωθροὶ διαλυτικοίrdquo ἀντὶ τοῦ τούτων
δραστικοί [650] Tῆς δὲ κοινῆς μελῳδίας ταύτης τὸ μέν τι χρῶμα λέγεται τὸ δὲ ἁρμονία τὸ
δὲ διάτονον ὧν ἡ μὲν ἁρμονία αὐστηροῦ τινος ἤθους καὶ σεμνότητος κατασκευαστική πως
ὑπῆρχεν τὸ δὲ χρῶμα λιγυρόν τί ἐστι καὶ θρηνῶδες τὸ δὲ διάτονον ἔντραχυ καὶ ὑπάγροικον
113
[646] Os consonantes satildeo todos aqueles contidos pelas notas consonantes e os dissonantes os
contidos pelas notas dissonantes Dos intervalos consonantes os muacutesicos chamam o primeiro
e menor de quarta o maior depois desse de quinta e o maior que o de quinta eles chamam de
oitava [647] Novamente dos intervalos dissonantes o primeiro e menor eacute chamado entre os
muacutesicos de diacuteese291 o segundo eacute o semitom que eacute o dobro da diesis o terceiro eacute o tom o qual
eacute o dobro do semitom [648] Contudo natildeo apenas todo intervalo em muacutesica tem sua
existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de melodia Pois
tal como dos caracteres humanos alguns satildeo mais graves e mais fortes (como contam que
eram os caracteres dos antigos) outros satildeo facilmente suscetiacuteveis ao erotismo e agrave embriaguez
agraves lamentaccedilotildees e agraves reclamaccedilotildees Do mesmo modo uma melodia produz movimentos nobres
e refinados na alma outra produz movimentos mais baixos e soacuterdidos292 [649] Uma melodia
de tal tipo eacute comumente chamada caraacuteter pelos muacutesicos por ser capaz de produzir caraacuteter
como tambeacutem o medo eacute chamado de paacutelido293 por sua capacidade de empalidecer e tambeacutem
considera-se ldquoos ventos do sul difiacuteceis de se ouvir enevoados causadores de dor de cabeccedila
indolentes e relaxantesrdquo294 em vez de consideraacute-los causas desses efeitos [650] Dessa
melodia comum295 uma eacute dita ldquocromaacuteticardquo296 outra ldquoharmoniardquo297 e outra ldquodiatocircnicardquo298
Destas a harmonia eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um
caraacuteter claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseiro299
291 O menor intervalo da escala de acordo com o gecircnero Assim na escala diatocircnica a diesis corresponde a umsemitom e na enarmocircnica a um quarto de tom Cf Aristoacutexeno El Harm (21)
292 Filodemo De Mus (col 116 21-36)293 Cf Homero Iliacuteada (VII 479)294 Hipoacutecrates Aforismos (III 5) A citaccedilatildeo de Hipoacutecrates eacute literal Entretanto no contexto do aforismo na obra
de Hipoacutecrates natildeo haacute espaccedilo para a confusatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito apontada por Sexto EmpiacutericoClaramente os ventos do sul satildeo apresentados como causa dos efeitos citados
295 Nos dois sons intermediaacuterios (sons moacuteveis) do tetracorde as entonaccedilotildees diferem segundo o ldquogecircnerordquo doacorde A variaccedilatildeo das entonaccedilotildees dos sons moacuteveis caracteriza os trecircs gecircneros de progressatildeo meloacutedica damuacutesica grega o diatocircnico (tom ndash tom - semitom) o cromaacutetico (terccedila menor ndash semitom - semitom) e oenarmocircnico (terccedila maior ndash frac14 de tom ndash frac14 de tom)
296 Sexto Empiacuterico utiliza o termo ldquokhromardquo (que significa primeiramente ldquocorrdquo) para se referir agravequilo quedesde o seacuteculo IV aC era comumente chamado ldquoto khromatikonrdquo referindo-se ao gecircnero cromaacutetico
297 O termo ldquoharmoniardquo designa tambeacutem um dos gecircneros meloacutedicos mais conhecido como enarmocircnico298 Beacutelis (apud Delattre 2002 p 441 n 6) chama atenccedilatildeo para o fato de que desde a eacutepoca de Aristoacutexeno as
escalas eram listadas da menor para a maior (enarmocircnica cromaacutetica e diatocircnica) no entanto essa ordemaparece curiosamente deturpada por Sexto Empiacuterico tanto que a explicaccedilatildeo que se segue eacute apresentada naordem tradicional e natildeo na ordem que foi anunciada Sobre os gecircneros ver Aristoacutexeno El Harm (246-52)
299 Cf Euclides Introduccedilatildeo harmocircnica (3 7)
114
[651] ἀλλὰ δὴ πάλιν τὸ μὲν ἁρμονικὸν μέλος τῶν μελῳδουμένων ἀδιαίρετόν ἐστι τὸ δὲ
διάτονον καὶ τὸ χρῶμα ἰδικωτέρας τινὰς εἶχε διαφοράς δύο μὲν τὸ διάτονον τήν τε τοῦ
μαλακοῦ διατόνου καλουμένην καὶ τὴν τοῦ συντόνου τρεῖς δὲ τὸ χρῶμα τὸ μὲν γάρ τι αὐτοῦ
τονικὸν καλεῖται τὸ δὲ ἡμιτόνιον τὸ δὲ μαλακόν
[652] Πλὴν ἐκ τούτων συμφανὲς ὅτι πᾶσα ἡ κατὰ μελῳδίας θεωρία παρὰ τοῖς
μουσικοῖς οὐκ ἐν ἄλλῳ τινὶ τὴν ὑπόστασιν εἶχεν εἰ μὴ τοῖς φθόγγοις καὶ διὰ τοῦτο
ἀναιρουμένων αὐτῶν τὸ μηδὲν ἔσται ἡ μουσική πῶς οὖν καὶ ἐρεῖ τις ὅτι οὐκ εἰσὶ φθόγγοι ἐκ
τοῦ φωνὴν αὐτοὺς κατὰ γένος ὑπάρχειν φήσομεν καὶ τὴν φωνὴν ἀνύπαρκτον ἡμῖν ἐν τοῖς
σκεπτικοῖς ὑπομνήμασι δεδεῖχθαι ἀπὸ τῆς τῶν δογματικῶν μαρτυρίας [653] Oἵ τε γὰρ ἀπὸ
τῆς Κυρήνης φιλόσοφοι μόνα φασὶν ὑπάρχειν τὰ πάθη ἄλλο δὲ οὐδέν ὅθεν καὶ τὴν φωνὴν
μὴ οὖσαν πάθος ἀλλὰ πάθους ποιητικήν μὴ γίγνεσθαι τῶν ὑπαρκτῶν οἵ γέ τοι περὶ τὸν
Δημόκριτον καὶ Πλάτωνα πᾶν αἰσθητὸν ἀναιροῦντες συναναιροῦσι καὶ τὴν φωνήν αἰσθητόν
τι δοκοῦσαν πρᾶγμα ὑπάρχειν [654] καὶ γὰρ ἄλλως εἰ ἔστι φωνή ἤτοι σῶμά ἐστιν ἢ
ἀσώματον οὔτε δὲ σῶμά ἐστιν ὡς οἱ Περιπατητικοὶ διὰ πολλῶν διδάσκουσιν οὔτε
ἀσώματος ὡς οἱ ἀπὸ τῆς Στοᾶς οὐκ ἄρα ἔστι φωνή
115
[651] Novamente das melodias que satildeo cantadas a enarmocircnica eacute invariaacutevel jaacute a diatocircnica e
a cromaacutetica comportam algumas variaccedilotildees especiacuteficas A diatocircnica tem duas a chamada
diatocircnica suave e a intensa A cromaacutetica tem trecircs delas uma eacute chamada tocircnica outra
semitocircnica e outra suave300
[652] Aleacutem disso a partir dessas coisas eacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos
sobre a melodia natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notas Por isso destruindo
as notas a muacutesica seraacute nada Como entatildeo algueacutem declararaacute que as notas natildeo existem Noacutes
diremos a partir do fato das notas existirem conforme o gecircnero do som e noacutes mostramos em
nossas observaccedilotildees ceacuteticas301 a partir dos testemunhos dos dogmaacuteticos que o som natildeo existe
[653] Com efeito os filoacutesofos Cirenaicos302 dizem que apenas existem as afecccedilotildees mais
nada por essa razatildeo o som natildeo sendo uma afecccedilatildeo mas produtor de afecccedilatildeo natildeo vem a ser
algo existente Os disciacutepulos de Demoacutecrito e Platatildeo destruindo todos os objetos sensiacuteveis
destruiacuteram ao mesmo tempo o som303 que se supotildee ser um objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel304
[654] Aleacutem disso se o som existe ou ele eacute corpoacutereo ou incorpoacutereo nem eacute corpoacutereo tal
como os Peripateacuteticos tanto ensinam nem incorpoacutereo tal como ensinam os Estoicos305 Logo
natildeo existe som
300 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 443 n 1) trata-se aqui de uma maacute compreensatildeo de SextoEmpiacuterico em relaccedilatildeo a uma passagem de Aristoacutexeno A afirmaccedilatildeo diz respeito agrave distribuiccedilatildeo e ao tamanhodos intervalos em cada escala Enquanto na enarmocircnica haacute apenas uma possibilidade de construccedilatildeo deintervalos na cromaacutetica e na diatocircnica haacute vaacuterias
301 Para Richard Bett (2013 p 177) esse parece ser o modo que Sexto faz referecircncia agraves obras hoje conhecidascomo Contra os Loacutegicos Contra os Fiacutesicos e Contra os Eacuteticos isso pode ser observado a partir de outrasreferecircncias (ver M I 26 29) Essa passagem especificamente parece fazer referecircncia ao Contra os Loacutegicosonde Sexto tambeacutem argumenta contra a existecircncia do som Cf M VIII 131
302 Muito embora os Cirenaicos assim como os ceacuteticos considerem que apenas as afecccedilotildees satildeo apreensiacuteveisenquanto os ceacuteticos consideram a tranquilidade da alma como objetivo de sua escola os Cirenaicosconsideram o prazer da percepccedilatildeo sensiacutevel Aleacutem disso eles satildeo dogmaacuteticos por sustentarem firmemente acrenccedila de que os objetos externos agrave percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo inapreensiacuteveis Cf HP I 215 Ver seccedilatildeo 41
303 A mesma questatildeo aparece no Contra os Loacutegicos (M VIII 56) onde Sexto acusa Demoacutecrito e Platatildeo derejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel e com isso confundirem natildeo soacute a verdade sobre as coisas que satildeo mastambeacutem os conceitos sobre elas Isso porque de acordo com Sexto (M VIII 6) Platatildeo e Demoacutecritosupunham que ldquoapenas as coisas inteligiacuteveis satildeo verdadeirasrdquo Demoacutecrito por considerar que nadaperceptiacutevel existe por natureza e Platatildeo por considerar que as coisas perceptiacuteveis estatildeo sempre vindo a sermas nunca satildeo efetivamente
304 Sobre os Cirenaicos no Contra os Loacutegicos (Cf M VII 191) o mesmo tipo de argumento aparecerelacionado ao paladar
305 No Contra os Gramaacuteticos (M I 155) Sexto Empiacuterico aponta uma distinccedilatildeo feita por alguns gramaacuteticos arespeito das partes corpoacuterea e incorpoacuterea do discurso O som de uma palavra seria a parte corpoacutereaenquanto o significado seria incorpoacutereo
116
[655] Ἀλλὧδέ τις κὰκείνως ἐπιχειρήσειε λέγειν ὡς εἰ μὴ ἔστι ψυχή οὐδὲ αἰσθήσεις μέρη
γὰρ ταύτης ὑπῆρχον εἰ δὲ μή εἰσιν αἱ αἰσθήσεις οὐδὲ τὰ αἰσθητά πρὸς αἰσθήσεις γὰρ ἡ
τούτων ὑπόστασις νοεῖται εἰ δὲ μὴ αἰσθητά οὐδὲ φωνή εἶδος γάρ τι τῶν αἰσθητῶν ὑπῆρχεν
ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ψυχή καθὼς ἐν τοῖς περὶ αὐτῆς ὑπομνήμασιν ἐδείκνυμεν οὐκ ἄρα ἔστι
φωνή [656] Kαὶ μὴν εἰ μήτε βραχεῖά ἐστι φωνὴ μήτε μακρά οὐκ ἔστι φωνή οὔτε δὲ
βραχεῖά ἐστιν οὔτε μακρὰ φωνή ὡς ἐν τοῖς πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ὑπεμνήσαμεν περὶ
συλλαβῆς καὶ λέξεως ζητοῦντες πρὸς τούτους οὐκ ἄρα ἔστι φωνή [657] Πρὸς τούτοις ἡ
φωνὴ οὔτε ἐν ἀποτελέσματι οὔτε ἐν ὑποστάσει νοεῖται ἀλλ ἐν γενέσει καὶ χρονικῇ
παρεκτάσει τὸ δὲ ἐν γενέσει νοούμενον γίνεται οὐδέπω δ ἔστιν ὥσπερ οὐδὲ οἰκία γινομένη
ἢ ναῦς καὶ ἄλλα παμπληθῆ εἶναι λέγεται τοίνυν οὐθέν ἐστι φωνή [658] καὶ ἄλλοις δὲ
συχνοῖς εἰς τοῦτο ἔνεστι λόγοις χρῆσθαι περὶ ὧν ὡς ἔφην ἐν τοῖς Πυρρωνείοις
ὑπομνηματιζόμενοι διεξῄειμεν νυνὶ δὲ φωνῆς μὴ οὔσης οὐδὲ φθόγγος ἔστιν ὃς ἐλέγετο
φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν τάσιν φθόγγου δὲ μὴ ὄντος οὐδὲ διάστημα μουσικὸν καθέστηκεν οὐ
συμφωνία οὐ μελῳδία οὐ τὰ ἐκ τούτων γένη διὰ τοῦτο οὐδὲ μουσική ἐπιστήμη γὰρ ἐλέγετο
ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
[659] Ὅθεν ἀπ ἄλλης ἀρχῆς ὑποδεικτέον ὅτι κἂν τούτων ἀποστῶμεν διὰ τὴν
ἐγχειρηθησομένην ἐπὶ τῆς ῥυθμοποιίας ἀπορίαν ἀνυπόστατος καθέστηκεν ἡ μουσική εἰ γὰρ
μηδέν ἐστι ῥυθμός οὐδὲ ἐπιστήμη τις ἔσται περὶ ῥυθμοῦ ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ῥυθμός ὡς
παραστήσομεν οὐκ ἄρα ἔστι τις ἐπιστήμη περὶ ῥυθμοῦ [660] Ὡς γὰρ πολλάκις εἰρήκαμεν
ῥυθμὸς σύστημά ἐστιν ἐκ ποδῶν ὁ δὲ ποῦς τὸ συνεστὼς ἐξ ἄρσεως καὶ θέσεως ἡ δὲ ἆρσις
καὶ ἡ θέσις ἐν ποσότητι χρόνου θεωρεῖται ὧν τινὰς μὲν ἐπεῖχεν ἡ θέσις τινὰς δὲ ἡ ἆρσις
χρόνους καθάπερ ἐκ μὲν στοιχείων συλλαβαὶ ἐκ δὲ συλλαβῶν λέξεις συντίθενται οὕτως ἐκ
μὲν τῶν χρόνων οἱ πόδες ἐκ δὲ τῶν ποδῶν οἱ ῥυθμοὶ γίνονται
117
[655] Alguma outra pessoa pode tentar dizer que tal como natildeo existe alma natildeo existem
sentidos pois estes existem enquanto parte daquela E se natildeo existem sentidos natildeo existem
os sensiacuteveis pois a existecircncia destes eacute concebida em relaccedilatildeo aos sentidos E se natildeo haacute
objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo haacute som pois ele existe enquanto um tipo de objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Mas a alma eacute nada tal como mostramos nas observaccedilotildees306 a respeito
dela logo natildeo existe som [656] Tambeacutem se o som natildeo eacute curto nem longo natildeo existe som
o som natildeo eacute curto nem longo tal como observamos no Contra os Gramaacuteticos307 em nossa
investigaccedilatildeo sobre siacutelaba e palavra Logo natildeo existe som [657] Aleacutem disso o som nem eacute
concebido como um efeito nem como substacircncia mas como algo que vem a ser e que se
estende no tempo aquilo que eacute concebido como algo que vem a ser estaacute vindo a ser e ainda
natildeo existe assim como natildeo soacute uma casa ou uma nau que estatildeo vindo a ser mas uma
multitude de coisas natildeo satildeo ditas existentes Portanto o som eacute nada308 [658] Mas existem
muitos argumentos que podem ser usados para isso os quais como eu disse foram
completamente relatados em nossas observaccedilotildees pirrocircnicas309 Agora natildeo existindo som
tambeacutem natildeo existe nota a qual era dita ldquoa incidecircncia do som em uma tensatildeordquo natildeo existindo
nota natildeo se estabelece nenhum intervalo musical nem consonacircncia nem melodia nem os
gecircneros delas Por isso natildeo existe muacutesica visto que ela foi dita ciecircncia do meloacutedico e do natildeo
meloacutedico
[659] Dado isso deve-se indicar a partir de outro princiacutepio que mesmo que nos
afastemos dessas questotildees a muacutesica se estabelece como natildeo-existente atraveacutes da aporia que
seraacute discutida em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo riacutetmica Pois se o ritmo eacute nada natildeo existiraacute a ciecircncia
do que eacute o ritmo mas de fato o ritmo eacute nada tal como seraacute mostrado logo natildeo existe essa
ciecircncia do ritmo [660] De fato tal como dissemos muitas vezes ritmo eacute um sistema
composto de peacutes e o peacute eacute composto de aacutersis (levantamento) e theacutesis (abaixamento) Aacutersis e
theacutesis satildeo considerados uma quantidade de tempo dos quais aacutersis ocupa alguns tempos e
theacutesis outros Assim como as siacutelabas satildeo compostas de elementos e as palavras de siacutelabas
tambeacutem os peacutes satildeo compostos de tempos e os ritmos vecircm a ser a partir dos peacutes310
306 Ou eacute uma obra perdida ou Sexto faz referecircncia a algumas passagens de suas obras que abordam a mesmaquestatildeo Ver M X 284 HP II 31 e III 186
307 Cf M I 124-130308 O mesmo argumento aparece em M VIII 131 Ver M VI 53309 Ver nota 306310 Na liacutengua e na muacutesica grega a submissatildeo agrave riacutetmica do texto ldquose deve ao fato de a pronuacutencia e a prosoacutedia
estarem fundamentadas nas duraccedilotildees das siacutelabasrdquo (Reinach 2011 [1890] p 77) Na muacutesica o ritmo eramarcado pelo movimento corporal de levantar e abaixar o peacute (ndash ᴗ ᴗ ndash ndash e ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ por exemplo equivalem auma batida de dois tempos e um levantamento de dois tempos) Visto que a divisatildeo riacutetmica se daacute a partir dadivisatildeo silaacutebica natildeo podemos comparar a pulsaccedilatildeo da muacutesica moderna (com maior intensidade no primeiro
118
[661] Ἐὰν οὖν δείξωμεν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος ἕξομεν συναποδεδειγμένον ὅτι οὐδὲ πόδες
ὑπάρξουσιν διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ οἱ ῥυθμοί ἐξ ἐκείνων τὴν σύστασιν λαμβάνοντες ᾧ
ἀκολουθήσει τὸ μηδὲ ἐπιστήμην εἶναί τινα περὶ ῥυθμούς πῶς οὖν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος
ἤδη μὲν παρεστήσαμεν ἐν τοῖς Πυρρωνείοις οὐδὲν δὲ ἧττον καὶ τὰ νῦν παραστήσομεν ἐπὶ
ποσόν [662] Eἰ γὰρ ἔστι τι χρόνος ἤτοι πεπέρασται ἢ ἄπειρός ἐστιν οὔτε δὲ πεπέρασται
ἐπεὶ ἐροῦμέν ποτε γεγονέναι χρόνον ὅτε χρόνος οὐκ ἦν καὶ ἔσεσθαί ποτε χρόνον ὅτε χρόνος
οὐκ ἔσται οὔτε ἄπειρος καθέστηκεν ἔστι γάρ τι αὐτοῦ παρῳχηκὸς καὶ ἐνεστὼς καὶ μέλλον
ὧν ἑκάτερον εἰ μὲν οὐκ ἔστιν πεπέρασται ὁ χρόνος εἰ δ ἔστιν ἔσται ἐν τῷ παρόντι καὶ ὁ
παρῳχηκὼς καὶ ὁ μέλλων ὅπερ ἄτοπον οὐκ ἄρα ἔστι χρόνος [663] Tό γε μὴν ἐξ
ἀνυπάρκτων συνεστὼς ἀνύπαρκτόν ἐστιν ὁ δὲ χρόνος ἔκ τε τοῦ παρῳχημένου καὶ μηκέτ
ὄντος καὶ ἐκ τοῦ μέλλοντος μηδέπω δὲ ὄντος συνεστὼς ἀνύπαρκτος ἔσται [664] Ἄλλως τε
εἰ μὲν ἀμερής ἐστιν ὁ χρόνος πῶς τὸ μέν τι αὐτοῦ παρῳχημένον τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον
λέγομεν εἰ δὲ μεριστός ἐστιν ἐπεὶ πᾶν τὸ μεριστὸν ὑπό τινος αὐτοῦ μέρους καταμετρεῖται
ὡς πῆχυς μὲν ὑπὸ παλαιστοῦ ὁ παλαιστὴς δὲ ὑπὸ δακτύλου δεήσει καὶ αὐτὸν ὑπό τινος τῶν
αὐτοῦ μερῶν καταμετρεῖσθαι [665] οὔτε δὲ τῷ ἐνεστῶτι δυνατὸν καταμετρεῖν τοὺς ἄλλους
χρόνους ἐπείπερ ὁ γινόμενος καὶ ὁ ἐνεστὼς χρόνος ὁ αὐτὸς ἔσται κατ αὐτοὺς παρῳχημένος
καὶ μέλλων παρῳχημένος μὲν ὅτι τὸν παρῳχημένον καταμετρεῖ χρόνον μέλλων δὲ ὅτι τὸν
μέλλοντα ὅπερ ἄτοπον οὐ τοίνυν τινὶ τῶν λειπομένων δυοῖν τὸν ἐνεστῶτα καταμετρητέον
δι ἣν αἰτίαν οὐδὲ ταύτῃ λεκτέον εἶναί τινα χρόνον [666] Πρὸς τούτοις ὁ χρόνος τριμερής
ἐστι καὶ τὸ μὲν ἔχει παρῳχηκὸς τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον ὧν τὸ μὲν παρῳχημένον οὐκέτι
ἔστιν τὸ δὲ μέλλον οὔπω ἔστιν τὸ δὲ ἐνεστὼς ἤτοι ἀμερές ἐστιν ἢ μεριστόν ἀλλ ἀμερὲς μὲν
οὐκ ἂν εἴη ἐν ἀμερεῖ μὲν γὰρ οὐδὲν δύναται γίνεσθαι μεριστόν ὥς φησι Τίμων οἷον τὸ
γίνεσθαι τὸ φθείρεσθαι
tempo do compasso) com a batida de peacute na muacutesica grega aleacutem disso os ritmos comeccedilam tanto com a batidaquanto com a elevaccedilatildeo de peacute
119
[661] Entatildeo se tivermos mostrado que o tempo eacute nada noacutes teremos concomitantemente
mostrado que natildeo existem peacutes e a partir disso que os ritmos natildeo existem visto que eles satildeo
compostos de peacutes Consequentemente disso se seguiraacute que natildeo haacute ciecircncia do ritmo Mas
como Que o tempo natildeo existe jaacute foi estabelecido nas Pirronianas311 mas nem por isso
deixaremos de estabelececirc-lo brevemente tambeacutem agora [662] Se existe algum tempo ou ele
eacute limitado ou ilimitado Ele natildeo eacute limitado pois se fosse diriacuteamos que em algum momento
houve um tempo em que o tempo natildeo existia e que em algum momento haveraacute um tempo em
que natildeo existiraacute o tempo Ele tambeacutem natildeo eacute considerado ilimitado pois algo dele eacute passado e
presente e futuro e se cada um deles natildeo existir o tempo eacute limitado e se existir tanto o
passado quanto o futuro existiratildeo ao mesmo tempo no presente o que eacute absurdo312 Logo natildeo
existe o tempo [663] E ainda aquilo que eacute composto de inexistentes eacute inexistente O tempo
sendo composto de passado que natildeo existe mais e de futuro que ainda natildeo existe seraacute
inexistente313 [664] Aleacutem disso se o tempo eacute indivisiacutevel como dizemos que o passado o
presente e o futuro satildeo parte dele Se ele eacute divisiacutevel visto que tudo que eacute divisiacutevel eacute medido
por uma parte de si mesmo (como o antebraccedilo pela palma e a palma pelo dedo) seraacute
necessaacuterio que o tempo seja medido por uma de suas proacuteprias partes [665] Mas natildeo eacute
possiacutevel medir os outros tempos pelo presente visto que o tempo presente e que vem a ser
seraacute ele mesmo tanto passado quanto futuro Seraacute passado porque mede o tempo passado e
futuro porque mede o tempo futuro o que eacute absurdo Portanto tambeacutem o presente natildeo pode
ser medido por um dos tempos restantes Por essa razatildeo natildeo se pode dizer existir algum
tempo314 [666] Aleacutem disso o tempo eacute tripartido e uma parte eacute passado outra presente outra
futuro Destas o passado natildeo eacute mais o futuro ainda natildeo eacute e o presente ou eacute divisiacutevel ou
indivisiacutevel Mas ele natildeo seraacute indivisiacutevel pois como diz Timon no indivisiacutevel nada divisiacutevel
pode vir a ser tal como o devir e o perecer315
311 Refere-se possivelmente agraves passagens sobre o tema encontradas em outros escritos ou agrave obra perdidamencionada em M VI 58 Os mesmos argumentos contra o conceito de tempo apresentados no Contra osMuacutesicos aparecem de maneira breve nas Hipotiposes Pirronianas (HP III 136-150) e mais aprofundada noContra os Fiacutesicos (M X 189-214)
312 Ver especificamente HP III 140-1 e M X 189313 Cf HP III 142 e M X 192314 Cf HP III 143 e M X 193-6315 Cf HP III 144 e M X 197 No Contra os Fiacutesicos o mesmo fragmento de Timon eacute mencionado
120
[667] Kαὶ ἄλλως εἴπερ ἀμερές ἐστι τὸ ἐνεστὼς τοῦ χρόνου οὔτε ἀρχὴν ἔχει ἀφ ἧς ἄρχεται
οὔτε πέρας ἐφ ὃ καταλήγει διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ μέσον καὶ οὕτως οὐκ ἔσται ὁ ἐνεστὼς χρόνος
εἰ δὲ μεριστός ἐστιν εἰ μὲν εἰς τοὺς μὴ ὄντας χρόνους μερίζεται οὐκ ἔσται χρόνος εἰ δ εἰς
τοὺς ὄντας χρόνους οὐκ ἔσται ὅλος ὁ χρόνος ἀλλὰ τῶν μερῶν αὐτοῦ τινὰ μὲν ἔσται τινὰ δὲ
οὐκ ἔσται τοίνυν οὐδέν ἐστι χρόνος διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ πόδες οὐδὲ ῥυθμοί οὐδ ἡ περὶ τοὺς
ῥυθμοὺς ἐπιστήμη
[668] Τοσαῦτα πραγματικῶς καὶ πρὸς τὰς τῆς μουσικῆς εἰπόντες ἀρχὰς ἐν τοσούτοις
τὴν πρὸς τὰ μαθήματα διέξοδον ἀπαρτίζομεν
121
[667] Por outro lado se a parte presente do tempo eacute indivisiacutevel ela natildeo tem um princiacutepio
onde ela comeccedila nem um limite no qual ela termina e por isso tambeacutem natildeo tem um meio
Assim natildeo haveraacute o tempo presente Se ele for divisiacutevel pelos tempos que natildeo satildeo natildeo
haveraacute tempo e se for divisiacutevel pelos tempos que natildeo existem o tempo natildeo existiraacute inteiro
mas algumas partes dele existiratildeo e algumas natildeo316 Portanto o tempo eacute nada e por isso nem
os peacutes nem os ritmos nem a ciecircncia acerca dos ritmos [existem]317
[668] Tendo dito tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica
noacutes encerramos nossa discussatildeo contra as disciplinas
316 Cf M X 198-200317 Argumento baseado no segundo Modo de Agripa
122
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Elaboramos nossa traduccedilatildeo e nossos comentaacuterios ao Contra os Muacutesicos de Sexto
Empiacuterico visando explicaacute-lo tanto no que diz respeito aos interesses da musicologia quanto
aos estudos do ceticismo pirrocircnico tendo em vista a escassez de ediccedilotildees que faccedilam referecircncia
a essa obra no Brasil buscando auxiliar sua compreensatildeo enquanto fonte sobre o papel da
Muacutesica na Antiguidade
Tomamos como ponto de partida a dicotomia entre teoria e praacutetica musical tal como
apresentada na criacutetica ceacutetica agrave teoria musical da Antiguidade O termo mousike designou
enquanto fenocircmeno sonoro tanto o conjunto que englobava palavra harmonia e ritmo
quanto puramente a arte dos sons Enquanto conceito metafiacutesico a mousike foi considerada
sob uma perspectiva matemaacutetica a ordem encontrada na muacutesica sendo derivada das relaccedilotildees
matemaacuteticas que subjazem tambeacutem agrave ordem do cosmos
A mousike era considerada uacutetil para a sociedade e necessaacuteria agrave educaccedilatildeo porque se
acreditava que ela teria o poder de alterar o caraacuteter do ouvinte por recuperar a harmonia da
alma ao imitar a harmonia do universo Mas a presenccedila da muacutesica na sociedade natildeo
implicava no incentivo indiscriminado de sua praacutetica Contrariamente para Platatildeo sua
praacutetica deveria ser restrita e regulada por leis e para Aristoacuteteles a muacutesica enquanto uma das
Artes Liberais deveria ser ensinada com a finalidade de desenvolver a capacidade de avaliar
a boa muacutesica e fruiacute-la de maneira correta a praacutetica musical enquanto parte desse
aprendizado consistia apenas em um meio jamais em um fim
Foi Aristoacutexeno quem abordou a mousike enquanto ciecircncia autocircnoma voltando-se agraves
relaccedilotildees entre os sons e natildeo mais agrave metafiacutesica (e consequentemente agrave teoria do ethos)
Mesmo mantendo um discurso considerado dogmaacutetico do ponto de vista ceacutetico Aristoacutexeno
pode ser considerado um dos precursores318 da questatildeo da autonomia da muacutesica enfatizando
o fenocircmeno sonoro como ponto de partida para a teoria musical que para ele estava deveras
descolada da praacutetica de seu tempo Essa questatildeo tambeacutem aparece em Filodemo como uma
reaccedilatildeo agrave supervalorizaccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo moral da sociedade Filodemo
ainda que de maneira dogmaacutetica questiona a utilidade da muacutesica em funccedilatildeo do seu suposto
poder de alterar o caraacuteter do ouvinte e com isso contribuir para a felicidade humana para
ele ela natildeo proporciona mais do que o simples prazer
No Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico constata-se que a criacutetica que se daacute por318 O registro mais antigo a que temos acesso que aborda a questatildeo da autonomia da muacutesica no pensamento
grego eacute o Papiro de Hibeh
123
essas duas vias (epistemoloacutegica e eacutetica) natildeo estaacute especificamente vinculada a uma defesa da
autonomia da muacutesica mas antes apresenta-se como uma refutaccedilatildeo a um certo modo de se
elaborar teorias a respeito das coisas
Observamos que na Antiguidade as artes fundadas na razatildeo entre elas a mousike
eram levadas em consideraccedilatildeo apenas por sua funccedilatildeo propedecircutica para a Filosofia Essa
subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia que permaneceu presente na Enkyklios Paideia do
periacuteodo imperial subsidia a elaboraccedilatildeo do Contra os Professores destinado justamente a
essas a discutir essas tekhnai Sexto parte dessa concepccedilatildeo das tekhnai como subordinadas agrave
Filosofia porque essa teria sido a visatildeo dominante dos pensadores ndash por ele considerados
dogmaacuteticos ndash de sua eacutepoca
Ao considerar que a investigaccedilatildeo das disciplinas Estudos Ciacuteclicos se daacute depois da
investigaccedilatildeo da filosofia visando ali tambeacutem encontrar a verdade Sexto Empiacuterico nega agrave
filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdade Nesse sentido Sexto abre a
possibilidade para se considerar as tekhnai em dois sentidos enquanto tekhnai teoacutericas
dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e enquanto praacuteticas autocircnomas sejam dogmaacuteticas ou
natildeo Desse modo seu ataque abre espaccedilo para se pensar a possibilidade da autonomia das
tekhnai em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Em nossa interpretaccedilatildeo sobre a finalidade do ceticismo pirrocircnico consideramos que o
meacutetodo argumentativo ceacutetico visa mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e
sua precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe externamente
agraves nossas representaccedilotildees Sob essa perspectiva no que diz respeito agraves tekhnai
compartilhamos da visatildeo de Pellegrin de que ldquoo tratado Contra os Muacutesicos demonstra bem
que natildeo se trata em ultima anaacutelise de chegar a uma forccedila igual de argumentos opostos mas
antes de condenar a abordagem dogmaacutetica dos teoacutericos da muacutesicardquo (Pellegrin 2002 p 46-7)
Sob essa perspectiva o que Sexto Empiacuterico condena em cada uma das disciplinas ldquoeacute o desvio
dogmaacutetico que acompanha quase sempre sua incontestaacutevel utilidade praacuteticardquo (Pellegrin 2002
p 19) Esse desvio estaria situado natildeo na praacutetica das tekhnai mas antes no discurso sobre
elas em funccedilatildeo da ldquotentaccedilatildeo dos homens das artes pela teoriardquo (Pellegrin 2002 p 20) ou da
tentaccedilatildeo dos filoacutesofos em relaccedilatildeo a ela
Se a refutaccedilatildeo ceacutetica se propotildee a tarefa de mostrar a inconsistecircncia teoacuterica de cada
uma das tekhnai em funccedilatildeo da pretensatildeo de verdade dos discursos dogmaacuteticos dos
professores no caso da muacutesica eacute a teoria musical sob seus aspectos teacutecnicos e em funccedilatildeo de
sua utilidade que deve ser questionada
124
Assim no Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico concentra sua argumentaccedilatildeo contra as
teorias dogmaacuteticas que consideram a muacutesica uacutetil porque se o sentido fundamental de uma
tekhnai se daacute em funccedilatildeo de sua utilidade ao se mostrar que a muacutesica natildeo tem as propriedades
a ela atribuiacutedas ela se tornaria inuacutetil e com isso seu estatuto de tekhne ficaria comprometido
Aleacutem disso Sexto desconstroacutei os conceitos baacutesicos sobre os quais a teoria musical estaacute
baseada mostrando a inconsistecircncia ou ausecircncia de fundamento de toda a teoria musical
Essa condenaccedilatildeo agrave conduta dogmaacutetica em relaccedilatildeo agraves tekhnai se daacute porque como
vimos haacute um sentido em que as tekhnai natildeo satildeo condenadas pelo ceacutetico Pelo contraacuterio
enquanto parte do criteacuterio praacutetico pirrocircnico a possibilidade do exerciacutecio de uma tekhne livre
de dogmatismo eacute fundamental para a coerecircncia dessa filosofia
Enquanto disciplina da Enkyklios Paideia a teoria musical eacute refutada por ser ldquoserva
de primeira ordemrdquo da Filosofia mas por outro lado as artes aprovadas pelo ceacutetico estatildeo
ligadas agrave experiecircncia (empeiria) que para ele natildeo depende das demonstraccedilotildees racionais
proacuteprias da ciecircncia para se estabelecer Por isso a muacutesica enquanto ldquoexperiecircncia em
instrumentosrdquo ou seja a muacutesica praacutetica natildeo eacute refutada
No Contra os Muacutesicos a teoria musical eacute refutada sobretudo em funccedilatildeo da
associaccedilatildeo da utilidade da muacutesica ao seu pretenso poder de afetar a alma do ouvinte Se esse
suposto poder natildeo estaacute na melodia mas apenas em nossa opiniatildeo ao se eliminar a crenccedila
adicional de que a muacutesica teria certos atributos por natureza restaria apenas a muacutesica praacutetica
executada pelo instrumentista independentemente da funccedilatildeo atribuiacuteda a ela pelos teoacutericos
A refutaccedilatildeo ceacutetica agraves teorias musicais da Antiguidade apresenta-se como uma criacutetica
de modo algum ultrapassada justamente porque nos faz revisitar importantes questotildees da
esteacutetica musical A contraposiccedilatildeo entre proposiccedilotildees acerca do que eacute a muacutesica de seu papel na
sociedade explicita a limitaccedilatildeo do debate a dois principais modos possiacuteveis de compreendecirc-la
(representado na histoacuteria recente pela oposiccedilatildeo entre idealismo e formalismo) e ao mesmo
tempo coloca em xeque a dicotomia (e frequente hierarquizaccedilatildeo) entre teoria e praacutetica
musical presente ainda hoje no pensamento daqueles que trabalham com o ensino de
muacutesica
Se considerarmos a argumentaccedilatildeo ceacutetica como uma mostra do dogmatismo que
permeia as mais diversas teses de toda a teoria sobre muacutesica e ainda se fizermos um
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo e transpusermos para a aacuterea da muacutesica as bases daquilo que
possivelmente seria uma tekhne natildeo-dogmaacutetica de acordo com o meacutetodo ceacutetico eacute possiacutevel
vislumbrar uma tekhne musical onde o discurso surja e emane da praacutetica e natildeo o contraacuterio
125
(Ora se todo o conhecimento musical estudado hoje surgiu inevitavelmente da experiecircncia
sendo apenas posteriormente formalizado em teorias isso natildeo seria uma grande inovaccedilatildeo)
A atualidade das questotildees suscitadas no combate ao dogmatismo das disciplinas dos
Estudos Ciacuteclicos ndash que deixando de lado a ascensatildeo e queda das mais variadas verdades ao
longo dos seacuteculos satildeo as mesmas disciplinas que ainda compotildeem nosso curriacuteculo ndash revela o
ainda natildeo superado abismo entre teoria e praacutetica que nossos meacutetodos de ensino-aprendizado
frequentemente impotildeem Sob essa oacutetica se jaacute descartamos as teses pitagoacutericas de uma muacutesica
inaudiacutevel se a muacutesica existe ‒ para noacutes ‒ enquanto um fenocircmeno sonoro a refutaccedilatildeo de
Sexto Empiacuterico faz lembrar que sem a praacutetica (ou ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo) a muacutesica
simplesmente ldquonatildeo existerdquo e por conseguinte qualquer teoria a respeito dela tambeacutem natildeo
126
REFEREcircNCIAS
EMPIRICUS Sextus Against the Professors Prous Mathematikous Traduccedilatildeo de R GBury Cambridge Harvard University Press 1933 (Loeb Classical Library)
_________________ Contra los Profesores Traduccedilatildeo de Jorge Bergua Cavero MadridGredos Editorial 1997
________ Against the Logicians Traduccedilatildeo de Richard Bett New York CambridgeUniversity Press 2005
DELATTRE D Contre les musiciens In PELLEGRIN (Org) Sextus Empiricus Contreles professeurs Paris Eacuteditions du Seuil 2002
GREAVES D D Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ Against the musicians Editedand translated with introduction and notes London University of Nebraska Press 1986
ALLEN J Pyrronism and medicine In BETT R (Org) The Cambridge companion toancient scepticism Cambridge Cambridge University Press 2010
ANDERSON W D Ethos and Education in Greek Music Cambridge Harvard UniversityPress 1966
ANNAS J BARNES J The Modes of Scepticism Ancient Texts and ModernInterpretations Cambridge Cambridge University Press 1985
ARISTOPHANES The Clouds Traduccedilatildeo de Jeffrey Henderson Cambridge HarvardUniversity Press 1998 (Loeb Classical Library)
ARISTOacuteTELES On the Heavens De Caelo Traduccedilatildeo de W K C Guthrie CambridgeHarvard University Press 1939 (Loeb Classical Edition)
____________ Poeacutetica Traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa daMoeda 2003
____________ Poliacutetica Traduccedilatildeo de Antoacutenio Campelo Amaral e Carlos de CarvalhoGomes Lisboa Vega 1998
____________ Problemas Musicais Traduccedilatildeo de Maria Luiza Roque Brasiacutelia Thesaurus2001
____________ The Nicomachean Ethics Traduccedilatildeo de David Ross Britain OxfordUniversity Press 1998
BARKER A Greek Musical Writings vol I of the Musician and his Art BritainCambridge University Press 1984
127
__________ Greek Musical Writings vol II Harmonic and Acoustic Theory BritainCambridge University Press 1989
__________ The science of harmonics in classical Greece Cambridge CambridgeUniversity Press 2007
BARNES J Scepticism and the Arts In RJ Hankinson (Org) Method Medicine andMetaphysics Studies in the Philosophy of Ancient Science (Special Issue of Apeiron 21) p53ndash77 1988
BEacuteLIS A Aristoxegravene de Tarente et Aristote Le Traiteacute drsquoharmonique Paris Klincksieck1986
_______ Les nuances dans le Traiteacute dharmonique dAristoxegravene de Tarente Revue desEtudes Grecques XCV p 54-73 1982
BETT R A Sceptic Looks at Art (but not Very Closely) Sextus Empiricus on MusicInternational Journal for the Study of Skepticism 3 p 155ndash181 2013
BOWMAN W D Philosophical Perspectives on Music Oxford Oxford University Press1998
BROCHARD V Os Ceacuteticos Gregos Traduccedilatildeo de Jaimir Conte Satildeo Paulo OdysseusEditora 2009
BYCHKOV O V SHEPPARD A Greek and Roman Aesthetics Cambridge CambridgeUniversity Press 2010
CASTANHEIRA C P De Institutione Musica de Boeacutecio Livro 1 traduccedilatildeo e comentaacuterios154f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Estudos Literaacuterios) - Universidade Federal de MinasGerais 2009
CORREcircA P C Harmonia mito e muacutesica na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Humanitas 2008
DELATTRE D Preacutesence de LrsquoEacutepicurisme dans le Contre les grammariens et le Contre lesmusiciens de Sextus Empiricus In DELATTRE J (Org) Sur le Contre les professeurs deSextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p 47ndash65
___________ Philodegraveme de Gadara Sur la musique 2 vols Paris Les Belles Lettres2007
DESBORDES F Le scepticisme et les lsquoarts libeacuterauxrsquo une eacutetude de Sextus Empiricus AdvMath I-VI In A-J Voelke (Org) Le scepticisme antique perspectives historiques etsysteacutematiques Actes du Colloque international sur le scepticisme antique Universiteacute deLausanne 1-3 juin 1988 (Cahiers de la revue de theacuteologie et de philosophie 15) GenevaLausanne and Neuchacirctel Revue de Theacutelologie et de Philosophie 1990 p 167ndash79
DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker (6th ed) Revised with additions and indexby W Kranz Berlin Weidman 1951-2
128
EPICURO Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Lorencini e EnzoDel Carratore Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
FLORIDI L Sextus Empiricus The Transmission and Recovery of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 2002
FUBINI E Esteacutetica da Muacutesica Lisboa Ediccedilotildees 70 2012
GIGANTE M Scetticismo e Epicureismo Per lavviamento di un discorso storiograficoNapoli Bibliopolis 1981
HADOT I Arts libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Paris EacutetudesAugustiniennes 1984
HADOT P O que eacute Filosofia antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008
HANSLICK E Do Belo Musical Traduccedilatildeo Artur Mouratildeo Covilhaacute LusoSofia 2011
HIPPOCRATES Aphorisms (Vol IV) Traduccedilatildeo de W H S Jones Cambridge HarvardUniversity Press 1931 (Loeb Classical Library)
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
________ Odisseia Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
LIPPMAN E A A History of Western Musical Aesthetics Lincoln University ofNebraska 1992
_____________ Musical thought in Ancient Greece New York Da Capo Press 1964
____________ The Place of Music in the System of Liberal Arts In J LaRue and othersAspects of Medieval and Renaissance Music a Birthday Offering to Gustave Reese NewYork 1966 p 545ndash59
MATES B The Skeptic Way Sextus Empiricusrsquos Outlines of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 1996
MATHIESEN T L Apolos Lyre greek music and music theory in antiquity and the middleages Londres University of Nebraska Press 1999
MARROU H Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Editora Herder 1966
MOUTSOPOULOS E La mousique dan loeuvres de Platon Paris Presses Universitairesde France 1959
PELLEGRIN P Introduction In ______ (Org) Sextus Empiricus Contre les professeurs
129
Paris Eacuteditions du Seuil 2002 p 9ndash47
_____________ De lrsquouniteacute du scepticisme sextien In DELATTRE J (Org) Sur le Contreles professeurs de Sextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p35ndash45
PEREIRA A R A esteacutetica musical em Aristoacutexeno de Tarento Hvmanitas Lisboa VolXLVII Universidade Nova de Lisboa 1995
_____________ A mousikeacute das origens ao drama de Euriacutepides Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2001
_____________ Poleacutemica acerca da mousikeacute no Adversus Musicos de Sexto EmpiacutericoHvmanitas Lisboa vol XLVIII Universidade Nova de Lisboa 1996
PHILO On mating with the preliminary studies De Congressu (Vol IV) Traduccedilatildeo F HColson e G H Whitaker Cambridge Harvard University Press 1939 (Loeb ClassicalLibrary)
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa FundaccedilatildeoCalouste Gulbenkian 1980
________ Fedro In Diaacutelogos III Trad intro e notas Lledoacute Intildeigo Madrid EditorialGredos 1988
________ Leis Traduccedilatildeo e notas Carlos Humberto Gomes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004
________ Eutidemo In Diaacutelogos II Traduccedilatildeo F J Olivieri Madrid Editorial Gredos1983
________ Timeu In Diaacutelogos VI Trad intro e notas Francisco Lisi Madrid EditorialGredos 1992
________ Menexeno In Diaacutelogos II Trad intro e notas E Acosta Meacutendez MadridEditorial Gredos 1983
PLUTARCO De virtute morali (Moralia Vol 6) Traduccedilatildeo de W C Helmbold) CambridgeHarvard University Press 1936 (Loeb Classical Library)
PLUTARCO Sobre a Muacutesica In SOARES C ROCHA R Plutarco Obras Morais Sobreo afecto aos filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo de Roosevelt Rocha Coimbra Centro deEstudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010
POPKIN R H Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Traduccedilatildeo de DaniloMarcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000
PORCHAT PEREIRA O ldquoA autocriacutetica da razatildeo no mundo antigo In Waldomiro Joseacute SilvaFilho (Org) O Ceticismo e a possibilidade da Filosofia Injuiacute Ed Unijuiacute 2005
130
___________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
QUINTILIANO Institutio Oratoria Traduccedilatildeo de H E Butles Cambridge HarvardUniversity Press 1930 (Loeb Classical Library)
REYES P R Sexto Empiacuterico y la mousikeacute EMERITA - Revista de Linguistica y FilologiacuteaClaacutesica (EM) ndash LXXII 1 p 95-119 2004
ROCHA R Uma introduccedilatildeo agrave teoria musical na antiguidade claacutessica Via LitteraeAnaacutepolis v 1 n 1 p 138-164 juldez 2009
SPINELLI E Pyrrhonism and the specialized sciences In BETT R (Org) TheCambridge companion to ancient scepticism Cambridge Cambridge University Press2010
TARTAKIEWICZ W Objectivity and Subjectivity in the History of Aesthetics Philosophyand Phenomenological Research Vol 24 No 2 (Dec 1963) pp 157-173 1963
Thesaurus Linguae Graecae Compilaccedilatildeo de todos os textos em prosa ou verso em grego dosseacutecsVIII aC ateacute VI dC in httpwwwtlguciedu
TOMAacuteS L Ouvir o loacutegos muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
________ Vozes dissonantes precursores da autonomia da muacutesica na antiguidade InDUARTE R e SAFATLE V Ensaios sobre muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo AssociaccedilatildeoEditorial Humanitas 2007
VITRUacuteVIO The Ten Books on Architecture Trad Morris Hicky Morgan CambridgeHarvard University Press London Humphrey Milford Oxford University Press 1914
WEST M L Ancient Greek Music New York Oxford University Press 1992
WILKINSON L P Philodemus on Ethos in Music The Classical Quarterly Vol 32 No34 (Jul - Oct 1938) pp 174-181
WOODWARD L H Diogenes of Babylon A Stoic on Music and Ethics Dissertaccedilatildeo(Master of Philosophy in Classics) - UCL 2009
131
GLOSSAacuteRIO
aisthesis (αἴσθησις) ndash sentidos percepccedilatildeo sensiacutevelaisthetos (αἰσθητός) ndash objeto da percepccedilatildeo sensiacutevelaletes (ἀλήτης) ndash verdadeiroanagke (ἀνάγκη) ndash necessidadeandreia (ἀνδρέια) ndash bravura coragemanomalia (ἀνωμαλία) ndash anomalia antirresis (ἀντίρρησις) ndash refutaccedilatildeoanyparktos (ἀνύπαρκτος) ndash irreal natildeo-existenteanypostatos (ἀνυπόστατος) ndash irreal natildeo-existenteaporia (ἀπορία) ndash aporiaarete (ἀρήτη) ndash excelecircncia virtudeataraxia (ἀταραξία) ndash tranquilidade (da alma)azetetos (ἀζήτητος) ndash natildeo-investigaacutevelbarys (βαρύς) ndash gravebios (βίος) ndash vida vida comumdia pason (διὰ πασῶν) ndash intevalo de oitavadia pente (διὰ πέντε) ndash intervalo de quintadia tettaron (διὰ τεττάρων) ndash intervalo de quartadiabebaiomai (διαβεβαιῦμαι) ndash sustentar firmementedianoia (διάνοια) ndash pensamento intelectodiastema (διάστημα) ndash intervalodiatonos (διάτονος) ndash diatocircnico (gecircnero)diaphonia (διαφωνία) ndash discordacircncia disputa controveacutersiadiaphonos (διάφωνος) ndash dissonante (muacutesica)diesis (δίεσις) ndash o menor intervalo na escaladogma (δόγμα) ndash dogma crenccedila opiniatildeodoxa (δόξα) ndash opiniatildeodynamis (δύναμις) ndash capacidade habilidade poder disposiccedilatildeo ethos (ἔθος) ndash haacutebito costumeethos (ἦθος) ndash caraacuteter disposiccedilatildeoeidesis (εἴδησις) ndash conhecimentoekmeles (ἐκμελής) ndash desafinado dissonanteektos hupokeimenon (ἐκτograveς ὑποκείμενον) ndash aquilo que existe externamente (agrave nossa percepccedilatildeo) emmeles (ἐμμελής) ndash afinado harmoniosoempeiria (ἐμπειρία) ndash experiecircncia enkyklios paideia (ἐγκύκλιος παιδεία) ndash educaccedilatildeo ciacuteclicaennoia (ἔννοια) ndash conceito concepccedilatildeoepisteme (ἐπιστήμη) ndash ciecircnciaepokhe (ἐποχή) ndash suspensatildeo de juiacutezoeudaimonia (εὐδαιμονία) ndash felicidade prosperidade boa fortunaharmonia (ἁρμονία) ndash harmonia enarmocircnico (gecircnero)hemitonion (ἡμιτόνιον) ndash semitomhomophonos (ὁμόφωνος) ndash na mesma nota em uniacutessono Opp σύμφωνος (em concordacircncia)hypostasis (Ὑπόστασις) ndash existecircncia substacircnciaidiotes (ἰδιώτης) ndash pessoas comunsisostheneia (ἰσοσθένεια) ndash equipolecircncia igual forccedila
132
katastello (καταστέλλω) ndash refrear tranquilizarkhreo (χρεώ) ndash utilidadekhroma (χρῶμα) ndash cromaacutetico (gecircnero)khronos (χρόνος) ndash tempologike tekhne (λογική τέχνη) ndash arte racionallogos (λόγος) ndash razatildeo argumento discursomathema (μάθημα) ndash ensinamento disciplinamelodia (μελῳδία) ndash canto muacutesica melodiamimesis (μίμεσις) ndash imitaccedilatildeonoos (νόος) ndash menteorganikos (ὀργανικός) ndash instrumento instrumentaloxus (Ὀξύς) ndash agudopathos (πάθος) ndash afecccedilatildeophainomenon (φαινόμενον) ndash aquilo que aparece fenocircmenophone (φωνή) ndash somphthonnos (φθόγγος) ndash notarythmos (ῥυθμός) ndash ritmostoikheion (στοιχεῖον) ndash elementosymphonos (σύμφωνος) ndash consonantesystema (σύστημα) ndash sistemasophronizo (σωφρονίζω) ndash regular moderarsophrosyne (σωφροσύνη) ndash temperanccedila tasis (τάσις) ndash tensatildeo altura da voztekhne (τέχνη) ndash arte teacutecnicatekhnites (τεχνίτες) ndash artistas artiacutefices especialistas profissionaistheoria (θεωρία) ndash teoria tonos (τόνος) ndash tomtropos (τρόπος) ndash modo zeteo (ζητέω) ndash investigar
AGRADECIMENTOS
Ao professor Roosevelt Rocha pela orientaccedilatildeo por sua postura (praacutetica e direta) naconduccedilatildeo de nossas reuniotildees pelo incentivo a esse projeto e pela incriacutevel paciecircncia
Ao professor Luiz Eva com quem pude estudar a Filosofia ceacutetica do segundo ano agravemonografia agradeccedilo pelos ldquohieroacuteglifosrdquo de suas correccedilotildees a partir dos quais aprendi aestruturar minhas ideias e esclarececirc-las no papel
Ao professor Bernardo Brandatildeo por encorajar o estudo do grego antigo tratando-ocomo a liacutengua mais simples do mundo e pelo projeto inicial de traduccedilatildeo do Contra osMuacutesicos E ao Professor Pedro Ipiranga pelas primeiras letras gregas
Agrave professora Lia Tomaacutes pela pertinecircncia de seus comentaacuterios pela indicaccedilatildeo debibliografia e pelo empreacutestimo de livros fundamentais para essa pesquisa
Ao professor Roberto Bolzani pela dedicada anaacutelise dessa dissertaccedilatildeoAos amigos professor Paulo Vieira Neto pelos cafeacutes filosoacuteficos ao longo desses
anos professor Benito Maeso pelo estaacutegio em docecircncia com a turma de monstrinhos (nomelhor sentido da palavra) e pelas orientaccedilotildees de botequim Ana Carolina Freire pelasrevisotildees e inuacutemeros conselhos que sempre terminam com um ldquonada temardquo Aos colegasfilosofantes Marcelo Gustavo Raphael Eduardo Bruno Gustavo Paiva e principalmenteao grande amigo Wagner Bitencourt
Agrave turma do mestrado pelo carinho com que todos me receberam Especialmente aoVicente pelo incentivo e pela parceria nos trabalhos de anaacutelise ao Adriano pelas conversasao longo da Rua XV ao Elder pelo seu incansaacutevel espiacuterito criacutetico agrave Renata pelas agradaacuteveistardes no cafeacute agrave Lilian e agrave Flora pelo apoio e preciosos conselhos
Agrave Denise Drechsel e agrave Vera Lucia Barbosa pelo carinho e entusiasmo com queaceitaram o trabalho de revisatildeo dessa dissertaccedilatildeo
Aos colegas do Coro da UFPR pela companhia nas tardes de traduccedilatildeo e revisatildeoAo Maestro Alvaro Nadolny pela dedicaccedilatildeo em ensinar arte muito aleacutem da teacutecnica
pelo incentivo agraves mudanccedilas em meu caminho pelos inuacutemeros conselhos que ele (ldquonatildeordquo) daacutee principalmente por me ensinar (no sentido mais profundo que se possa entender) quemuacutesica eacute para o outro
Ao Hermes (namorado noivo e marido durante esses dois anos de mestrado) por seuamor sua muacutesica e por me mostrar o mundo de outro jeito fazendo de mim algueacutem melhor
Agrave minha matildee Gloacuteria (principalmente pelo seu bom-senso infaliacutevel) e ao meu paiJunior (especialmente por pensar ndash sempre ndash fora da caixinha) por apoiaremincondicionalmente todas as (boas) ideias mirabolantes de seus filhos
Ao meu irmatildeo Matheo pelo carinho pela paciecircncia absurda e pelos trocadilhos ruinsque divertiram meus dias enquanto moramos juntos
Por fim aos professores do PPG - Muacutesica por acreditarem no potencial desse projetoespecialmente agrave professora Silvana Scarinci e ao professor Danilo Ramos
Ao secretaacuterio Gabriel pelo profissionalismo com que exerce sua funccedilatildeo Agrave CAPES pelo suporte financeiro agrave realizaccedilatildeo dessa pesquisa
Por amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar por meio da argumentaccedilatildeo na medida do possiacutevel
o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticos
Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas III 280
RESUMO
O Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico eacute uma importante fonte sobre o papel da muacutesica naAntiguidade Nesta obra o filoacutesofo ceacutetico refuta a teoria musical tanto sob a perspectiva eacuteticandash questionando sua utilidade quanto sob a perspectiva teacutecnica ndash apresentando argumentoscontra conceitos fundamentais da ciecircncia musical como o de melodia e o de ritmo Arefutaccedilatildeo da teoria musical compartilha de um objetivo mais amplo da Filosofia ceacutetica asaber o combate ao dogmatismo na Filosofia e nas disciplinas que compunham os EstudosCiacuteclicos O presente trabalho consiste na traduccedilatildeo comentada do Contra os Muacutesicos Emnosso comentaacuterio agrave obra buscamos reunir as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeodessa obra sob a perspectiva filosoacutefica e a perspectiva musicoloacutegica Partimos da divisatildeohieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical e em funccedilatildeo disso apresentamos um panoramageral da teoria musical na Antiguidade segundo duas perspectivas o papel psicagoacutegico damuacutesica e os aspectos teacutecnicos da ciecircncia musical Enfatizamos por um lado a importacircncia dateoria do ethos musical no pensamento filosoacutefico de Platatildeo e de Aristoacuteteles e por outro aconcepccedilatildeo de teoria musical enquanto ciecircncia autocircnoma desenvolvida por Aristoacutexeno Aleacutemdisso devido agrave sua semelhanccedila com o Contra os Muacutesicos apresentamos a criacutetica ao papeleacutetico da muacutesica elaborada pelo filoacutesofo epicurista Filodemo Buscamos em seguida explicara mousike enquanto uma das artes que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos que privilegiando oacircmbito teoacuterico constituiacuteam ainda uma propedecircutica agrave Filosofia Depois disso situamos aobra no acircmbito da Filosofia ceacutetica mostrando que em todos os livros do Contra osProfessores o ceacutetico parte de uma dicotomia entre arte teoacuterica e praacutetica e que sua refutaccedilatildeodiz respeito apenas agrave precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de sustentar teorias sobre cada uma das tekhnaiPor fim analisamos em detalhe os argumentos que compotildeem o Contra os Muacutesicosmostrando que estes refutam somente o acircmbito teoacuterico da muacutesica abrindo espaccedilo para umareflexatildeo a respeito do valor da praacutetica musical na cultura grega antiga
Palavras-chave Muacutesica Grega Antiga Ceticismo Ethos tekhne Sexto Empiacuterico Estudos Ciacuteclicos
ABSTRACT
Sextus Empiricus work called Against the Musicians is an important source about music inthe Ancient Greece In this book the skeptic attempts to refute musical theory of that timeson the ethical way ndash questioning its utility as well as on the technical perspective ndash arguingagainst fundamental concepts of this science such as melody and rhythm The refutation ofmusical theory is part of a broader goal in Sextus work - and on the Skeptical Philosophyproject as a whole to oppose dogmatism in philosophy and in the Cyclical Studies subjectsOur work consists of a translation and a commentary on Against the Musicians Thecommentary aims to present the necessary tools for an interpretation of Against the Musiciansin philosophical and musicolgical terms We followed the hierarchycal division betweenmusical theory and practice as a starting point and present music theory in Ancient times bytwo perspectives musics psychagogic role and technical aspects of music science Weemphasized the importance of the theory of musical ethos in Platos and Aristotlesphilosophy Aristoxenus development of music theory as an autonomous science andPhilodemus critic regarding musics ethical role An effort was made to explain mousike asone of the arts of the Cyclical Studies These favoured the theorical range also constituting apropedeutic to Philosophy After that we put the work into its philosophical context byshowing that the whole Against the Professors assumes a dichotomy between theorical andpractical art and that the refutation concerns only the dogmatic precipitancy to firmly mantaintheories about each one of the tekhnai At last a detailed analysis was made on the argumentsthat make up the Against the Musicians showing that these arguments extends just to thetheorical part of music enabling us to reflect upon the value of musical practice
Keywords Ancient Greek Music Skepticism Ethos Tekhne Sextus Empiricus Cyclical Studies
LISTA DE ABREVIATURAS
Aristides Quintiliano De mus ndash De Musica
AristoacutetelesEN ndash Eacutetica a NicocircmacoMet ndash MetafiacutesicaPol ndash PoliacuteticaProb ndash Problemas Musicais
AristoacutexenoEl Harm ndash Elementa Harmonica
Boeacutecio Inst ndash De Institutione Musica
Filodemo De mus ndash De musica
PlatatildeoRep ndash RepuacuteblicaEuth ndash EutidemoTi ndash Timeu
Plutarco De mus ndash De Musica
QuintilianoInst ndash Institutione Oratoria
Sexto Empiacuterico1
HP ndash Hipotiposes PirronianasM I - VI ndash Contra os Professores (Adversus Mathematicos)M I ndash Contra os GramaacuteticosM II ndash Contra os RetoacutericosM III ndash Contra os GeocircmetrasM IV ndash Contra os AritmeacuteticosM V ndash Contra os AstroacutelogosM VI ndash Contra os MuacutesicosM VII ndash XI ndash Contra os DogmaacuteticosM VII ndash VIII ndash Contra os LoacutegicosM IX ndash X ndash Contra os FiacutesicosM XI ndash Contra os Eacuteticos
1 Os livros agrupados sob o tiacutetulo Contra os Dogmaacuteticos foram numerados erroneamente como umacontinuaccedilatildeo dos seis livros que compotildeem o Contra os Professores Em funccedilatildeo de sua praticidademanteremos essa abreviaccedilatildeo
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
1017
3 MOUSIKE 2031 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO 2032 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA 22321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo 23322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles 2833 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO 3534 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO 414 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS NO CONTRA OS PROFESSORES 4641 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO NA FILOSOFIA E NAS ARTES 4742 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS 5243 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES 59431 O modelo argumentativo da obra 6144 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO 665 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS 6951 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6) 69511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo 69512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica 7152 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37) 7353 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68) 806 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISREFEREcircNCIASGLOSSAacuteRIO
867122126131
10
1 INTRODUCcedilAtildeO
Ateacute o seacuteculo V de nossa era a praacutetica e a teoria musical2 eram duas vertentes
completamente distintas3 A praacutetica musical restringia-se agrave execuccedilatildeo do instrumento
considerava-se que esta natildeo fazia uso do intelecto e por isso era colocada em um niacutevel
inferior em relaccedilatildeo agrave teoria Boeacutecio4 por exemplo afirma que haacute trecircs classes de muacutesicos
uma delas eacute formada por aqueles que executam os instrumentos considerada como
desprovida de reflexatildeo a segunda eacute a dos poetas que compotildeem as canccedilotildees por um certo
instinto natural e a terceira e mais elevada eacute a dos que julgam os ritmos e melodias das
canccedilotildees
A teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmoloacutegico
da ciecircncia musical quanto seu sentido teacutecnico relacionado ao estudo da harmonike da
riacutetmica e da meacutetrica Aleacutem disso os estudiosos da muacutesica estavam preocupados com o papel
eacutetico da muacutesica no que diz respeito agraves suas caracteriacutesticas terapecircuticas e ao seu poder de
formar e determinar o caraacuteter5 e o comportamento do ouvinte Este aspecto da muacutesica estava
estritamente ligado agrave paideia6 grega
No Contra os Muacutesicos uacuteltimo livro da obra intitulada Contra os Professores Sexto
Empiacuterico7 filoacutesofo ceacutetico do seacuteculo II dC dirige sua criacutetica agrave teoria musical que segundo
ele era considerada por muitos mais completa que a praacutetica musical8 Sua refutaccedilatildeo dirige-
se aos acircmbitos eacutetico e epistemoloacutegico da teoria musical Seu meacutetodo consiste em apresentar
algumas definiccedilotildees difundidas sobre a muacutesica e argumentar mostrando que elas natildeo satildeo
necessariamente vaacutelidas Na primeira parte do texto a muacutesica eacute discutida em termos de sua
utilidade para se alcanccedilar a felicidade Se por um lado ela eacute dita uacutetil para a felicidade humana
2 A expressatildeo ldquoteoria musicalrdquo eacute utilizada aqui em sentido amplo ou seja abrangendo os aspectos eacutetico eteacutecnico da muacutesica Ver Tomaacutes (2002 p 18-22)
3 Cf Tomaacutes (2002 p43)4 Cf Boeacutecio Inst (480-524)5 O termo grego traduzido por ldquocaraacuteterrdquo ao longo deste texto eacute ἦθος (ethos) e estaacute ligado agrave virtude moral que
se desenvolve na alma atraveacutes do haacutebito em grego ἔθος (ethos) De acordo com Aristoacuteteles (EN 1103 A) onome dessa virtude moral (ἠθική ndash ethike) surge por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ldquohaacutebitordquo (ethos ndashἔθος) Essa modificaccedilatildeo consiste na utilizaccedilatildeo do ldquoηrdquo (eta) no lugar do ldquoεrdquo (epsilon) Ao longo do textoutilizamos a transliteraccedilatildeo ldquoethosrdquo para ἦθος (caraacuteter)
6 O termo paideia ldquodesigna a experiecircncia cultural e eacutetica grega ele natildeo eacute de nenhum modo limitado agraveeducaccedilatildeo em seu sentido formalrdquo (Anderson 1966 p 2)
7 A obra de Sexto Empiacuterico eacute ainda pouco estudada em relaccedilatildeo agraves suas contribuiccedilotildees ao pensamentofilosoacutefico - sobretudo sua influecircncia na Filosofia moderna Dentre os textos que chegaram ateacute noacutes estatildeo asHipotiposes Pirronianas o Contra os Dogmaacuteticos e o Contra os Professores
8 Os argumentos acerca do valor da muacutesica refutados por Sexto satildeo parecidos com os argumentos queaparecem nas obras de Quintiliano e de Plutarco A refutaccedilatildeo contra o valor eacutetico e filosoacutefico da muacutesica porsua vez estaacute muito proacutexima da obra de Filodemo de Gadara (seacuteculo I aC) A principal fonte da teoriamusical apresentada por Sexto eacute a obra de Aristoacutexeno havendo tambeacutem paralelos com a obra de AristoacutetelesCf Greaves (1986 p 24-36)
11
em funccedilatildeo do poder de mover a alma podendo com isso alterar o caraacuteter do ouvinte por
outro Sexto apresenta diversos argumentos e exemplos que contrariam essa tese mostrando
que sendo as artes consideradas como tal em funccedilatildeo de sua utilidade e se a muacutesica for inuacutetil
ela deixa de ser uma arte Na segunda parte Sexto refuta diretamente os fundamentos da
ciecircncia musical a saber os conceitos de melodia e de ritmo atacando os conceitos de som e
de tempo Ao colocar em duacutevida os seus fundamentos o autor compromete todos os conceitos
teacutecnicos da ciecircncia da muacutesica que dependem deles9
No que diz respeito ao estudo da muacutesica antiga no Contra os Muacutesicos condensam-se
em poucas paacuteginas algumas das principais visotildees acerca da muacutesica na Antiguidade Junto do
Papiro de Hibeh10 e do De Musica de Filodemo11 esta eacute uma das raras obras onde a teoria
musical eacute abordada sob uma perspectiva criacutetica condenando as ideias difundidas entre a
maioria dos pensadores do periacuteodo a respeito do papel da muacutesica sendo por isso uma fonte
importante para os estudos sobre Muacutesica Antiga
Considerando-se a escassez de publicaccedilotildees que faccedilam referecircncia ao Contra os
Muacutesicos a traduccedilatildeo do texto grego apresentada neste trabalho primeira completa em liacutengua
portuguesa eacute acompanhada de um estudo que abrange algumas das principais teorias
musicais da Antiguidade e o contexto filosoacutefico da obra a fim de possibilitar a compreensatildeo
do Contra os Muacutesicos tanto sob a perspectiva filosoacutefica quanto sob a perspectiva
musicoloacutegica As notas agrave traduccedilatildeo aleacutem de esclarecerem questotildees especiacuteficas do texto
pontuam as relaccedilotildees entre os temas discutidos por Sexto Empiacuterico e outros textos importantes
sobre Muacutesica Grega Antiga
Nosso estudo comeccedila pelo modo como o conceito de mousike foi compreendido ao
9 Tal modelo argumentativo pode soar como um contrassenso agravequeles que natildeo estatildeo familiarizados com aFilosofia ceacutetica Em funccedilatildeo disso para se compreender o sentido dessa criacutetica eacute preciso abordar o Contraos Muacutesicos agrave luz dos objetivos do ceticismo pirrocircnico
10 O Papiro de Hibeh critica a ideia de que a muacutesica tem poderes eacuteticos e expressivos Nele haacute um discursoque foi proferido no Egito por um orador ateniense provavelmente na eacutepoca de Platatildeo De acordo comBarker (1989 p 183) o Papiro conteacutem um discurso dirigido contra os muacutesicos estruturado em trecircsargumentos O primeiro diz respeito agrave falta de base dos muacutesicos praacuteticos o segundo questiona a doutrina doethos e o terceiro aborda a falaacutecia existente entre as bases teoacutericas e a performance musical O oradorprocura refutar a noccedilatildeo de que algumas melodias nos fazem ser justos outras razoaacuteveis outras corretosoutras bravos e outras mais covardes Para refutar essa ideia ele afirma que ldquoas pessoas que vivem naaacuterea de Termoacutepilas cuja muacutesica eacute diatocircnica satildeo mais corajosas que os traacutegicos que cantam exclusivamentemelodias enarmocircnicas embora se pretendesse que esse gecircnero produzisse coragem Similarmente eleafirma muacutesica cromaacutetica natildeo produz covardiardquo (Lippman 1975 p 113) Adotando um tom retoacuterico eleataca a qualificaccedilatildeo daqueles que sustentam noccedilotildees sobre a influecircncia musical considerando que eles natildeosatildeo especialistas nem em muacutesica nem em argumentaccedilatildeo O orador os critica por tocarem mal e afirmaremcoisas ridiacuteculas como quando dizem que ldquocertas melodias satildeo relacionadas ao loureiro e outras agrave herardquoSegundo Lippman ldquoa referecircncia aos siacutembolos de Apolo e Dioniacutesio serve aqui para satirizar a descriccedilatildeo dasmelodias como eacuteticas e orgiaacutesticas A oraccedilatildeo expressa uma atitude cientiacutefica do especialista em muacutesica e eacuteaparentemente direcionada contra os filoacutesofosrdquo (Lippman 1975 p 114)
11 Sobre o De Musica de Filodemo ver seccedilatildeo 34
12
longo da Antiguidade tendo em vista evidenciar a dicotomia entre teoria e praacutetica musical e
as perspectivas eacutetica e teacutecnica abarcadas pela teoria Partimos da relaccedilatildeo entre o significado
cosmoloacutegico da teoria musical para os pitagoacutericos e o seu papel na educaccedilatildeo em funccedilatildeo da
teoria do ethos tal como formulada por Daacutemon Iremos nos ater inicialmente agrave exposiccedilatildeo
das ideias sobre a muacutesica apresentadas na Filosofia de Platatildeo e na discussatildeo dessas ideias
na Poliacutetica de Aristoacuteteles Mesmo sendo cronologicamente distantes da eacutepoca de Sexto
Empiacuterico concentramo-nos nessas ideias porque elas estatildeo invariavelmente presentes em
boa parte das obras posteriores
O pensamento musical de Platatildeo permanece ateacute hoje o arqueacutetipo para todas asconsideraccedilotildees acerca da doutrina musical da Antiguidade e deve ter influenciadoqualquer autor que escreveu sobre o tema que viveu depois do seacuteculo IV aC Platatildeofoi um dos primeiros se natildeo realmente o primeiro que escreveu longamente acercada muacutesica (Woodward 2009 p 102)
Enquanto Platatildeo enfatiza as raiacutezes pitagoacutericas de sua teoria musical e ao mesmo
tempo por incorporar as teorias damonianas a respeito do ethos musical manteacutem uma
posiccedilatildeo bastante restritiva no que diz respeito ao papel da muacutesica na sociedade Aristoacuteteles
limita-se a colocar em discussatildeo as diversas opiniotildees a respeito do papel da muacutesica
(dispensando as questotildees metafiacutesicas) voltando-se sobretudo aos efeitos do fenocircmeno
sonoro observaacuteveis no ouvinte O modo como Aristoacuteteles conduz sua investigaccedilatildeo a respeito
da muacutesica abre espaccedilo para que mais tarde seu disciacutepulo Aristoacutexeno mude o paradigma da
teoria musical
Em seguida concentramo-nos no pensamento musical de Aristoacutexeno e de Filodemo
Embora o nosso foco nesses autores se decirc em funccedilatildeo do uso de suas teorias no Contra os
Muacutesicos (ainda que ambos sejam criticados pelo ceacutetico) eacute importante destacar que na
historiografia musical Aristoacutexeno e Filodemo satildeo colocados ao lado de Sexto Empiacuterico no
que diz respeito a questatildeo da autonomia da muacutesica na Antiguidade
Esse conjunto de autores tem em comum o rompimento com as ideias difundidas e
sustentadas por Platatildeo e Aristoacuteteles rejeitando a relevacircncia dos possiacuteveis significados sociais
poliacuteticos ou matemaacuteticos da muacutesica Observa-se que apoacutes seacuteculos de domiacutenio da perspectiva
platocircnico-aristoteacutelica no que concerne agrave heteronomia do significado da muacutesica o pensamento
desses autores converge com uma visatildeo que considera a muacutesica enquanto forma autocircnoma12
12 A respeito da autonomia da muacutesica tal como aparece em Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico Bowmanconsidera que ldquoeles desafiam a ideia de que a muacutesica contribui de maneira significativa para coisas como ocaraacuteter humano mas sem avanccedilar ateacute a afirmaccedilatildeo da autossuficiecircncia musical Natildeo antes do surgimento dachamada muacutesica absoluta seacuteculos depois pode comeccedilar a emergir um verdadeiro formalismordquo(Bowmann 1998 p 136)
13
surgida no debate esteacutetico Iluminista a partir dos seacuteculos XVIII-XIX solidificada em 1854
com a publicaccedilatildeo da obra ldquoDo Belo Musicalrdquo de Eduard Hanslick13
Embora por diferentes razotildees Aristoacutexeno Filodemo e Sexto Empiacuterico suspeitavamdas tentativas filosoacuteficas de conectar muacutesica ao que eles consideravam questotildeesextramusicais Na realidade fique com o que eacute dado ao ouvido com os fatosmusicais foi o que cada um argumentou Evidentemente nenhum deles visualizouuma gama de valores intrinsecamente musicais mas apenas procurou estreitar oacircmbito da relevacircncia musical para excluir coisas que sob sua perspectiva natildeotinham nada a ver com muacutesica (Bowmann 12112 p 140)
Aristoacutexeno promoveu uma sistematizaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica privilegiando seus
aspectos teacutecnicos que foi tomada como paradigma nos seacuteculos posteriores Enquanto a
harmonike para os pitagoacutericos era o estudo das relaccedilotildees matemaacuteticas ligadas agrave metafiacutesica na
medida em que a muacutesica passa a ser considerada a partir do proacuteprio fenocircmeno sonoro a
ciecircncia harmocircnica muda seu escopo a ponto de ser tomada como objeto de uma ciecircncia
autocircnoma14 Entretanto mesmo desvinculado do acircmbito considerado mais elevado do
conhecimento que eacute a metafiacutesica o estudo teoacuterico do fenocircmeno sonoro manteacutem-se em uma
posiccedilatildeo hieraacuterquica elevada em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical15 Tal sistema dogmaacutetico do ponto
de vista ceacutetico eacute refutado na segunda parte do Contra os Muacutesicos e por isso merece aqui
nossa atenccedilatildeo
Encerramos o primeiro capiacutetulo apresentando a refutaccedilatildeo do filoacutesofo epicurista
Filodemo agrave ideia de que a muacutesica eacute uacutetil em funccedilatildeo de ter por natureza o poder de afetar o
caraacuteter do ouvinte Ele rejeita a teoria do ethos musical afirmando que se a muacutesica tem algum
efeito em nossa alma isso se daacute em funccedilatildeo daquilo que noacutes associamos a ela que por si
mesma natildeo tem poder algum sobre nossa alma a natildeo ser o de distraiacute-la Essa criacutetica ao papel
eacutetico da muacutesica eacute muito parecida com aquela que eacute adotada por Sexto Empiacuterico que
apresenta argumentos semelhantes aos do De Musica em sua argumentaccedilatildeo Entretanto como
veremos nem por isso os epicuristas estatildeo livres de serem considerados dogmaacuteticos pelo
ceacutetico16
13 A perspectiva defendida por Hanslick conhecida como ldquoformalistardquo sustenta ldquoa crenccedila de que acompreensatildeo da natureza da muacutesica e de seu valor natildeo eacute encontrada em seus efeitos nos vislumbres que elapermite nos sentimentos que desperta ou ainda nas conexotildees com qualquer coisa fora dela mesma Seuvalor sob essa visatildeo eacute estritamente seu estritamente intriacutenseco localizado inteiramente dentro de umdomiacutenio puramente musicalrdquo (Bowman 1998 p 133)
14 Nesta pesquisa natildeo nos ateremos agraves diferenccedilas teacutecnicas entre os dois modos de abordar a ciecircncia harmocircnica15 A observaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre teoria e praacutetica musical eacute fundamental para a compreensatildeo da
refutaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave ciecircncia da muacutesica16 Eles satildeo considerados dogmaacuteticos porque sustentam firmemente a tese de que a muacutesica natildeo eacute uacutetil para a
felicidade A relaccedilatildeo entre as ideias apresentadas por Filodemo no De Musica e a primeira parte do Contraos Muacutesicos seraacute analisada na seccedilatildeo 52
14
Dado o panorama histoacuterico do conceito de mousike apresentado no capiacutetulo inicial que
teve como intuito evidenciar sua amplitude e esclarecer as diversas facetas do conceito que
estaacute em jogo precisamos nos voltar ainda agrave filosofia ceacutetica para compreendermos as razotildees
pelas quais a mousike tal como eacute comumente concebida eacute refutada por Sexto Empiacuterico
A Filosofia tradicionalmente eacute relacionada agrave busca pela verdade e quando falamos
em Filosofia antiga associamos rapidamente essa busca a filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles
Mas ainda na Antiguidade houve quem desconfiasse da possibilidade de se apreender a
verdade sobre as coisas O ceticismo pirrocircnico eacute uma dessas correntes filosoacuteficas que
questionam tal possibilidade Primeiramente deve-se enfatizar que o termo ldquoceticismordquo natildeo
tem a ver com descrenccedila mas com investigaccedilatildeo do grego skepsis17 Tomando uma definiccedilatildeo
apresentada por Brochard (2009 p 20) o verdadeiro ceacutetico ldquoeacute aquele que de propoacutesito
deliberado e por razotildees gerais duvida de tudo exceto dos fenocircmenos e se contenta com a
duacutevidardquo18
De acordo com Sexto Empiacuterico o ceticismo pirrocircnico tem por objetivo o combate agrave
precipitaccedilatildeo dogmaacutetica de se sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe na
realidade externamente agraves nossas representaccedilotildees O ceacutetico observa que as vaacuterias teorias
desenvolvidas pelos filoacutesofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que natildeo
haacute um criteacuterio que nos permita distinguir qual delas eacute verdadeira Em funccedilatildeo disso para cada
afirmaccedilatildeo dogmaacutetica ele apresenta uma afirmaccedilatildeo oposta e o igual peso das teorias colocadas
em oposiccedilatildeo leva-o a um estado de suspensatildeo do juiacutezo19
Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Ciacuteclicos20 os ceacuteticos
tambeacutem se depararam com uma postura dogmaacutetica Sexto Empiacuterico propotildee um ataque agraves
bases de cada uma das disciplinas (mathemata) ensinadas pelos especialistas O Contra os
17 Para uma introduccedilatildeo geral ao Ceticismo Antigo ver Brochard (2009)18 O ceticismo pirrocircnico eacute assim nomeado ldquoa partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de
forma mais significativa do que seus predecessoresrdquo (HP I 3) Pirro (360 ndash 270 aC) contemporacircneo deAlexandre Magno e de Aristoacuteteles eacute tomado como fundador dessa tradiccedilatildeo ceacutetica natildeo deixou nada escritomas seu modo de vida e seus ensinamentos serviram como base para essa corrente do ceticismo Oceticismo pirrocircnico foi desenvolvido posteriormente sobretudo por meacutedicos a partir do primeiro seacuteculo daEra Cristatilde A obra de Sexto Empiacuterico eacute uma das principais fontes sobre o ceticismo pirrocircnico Sobre suabiografia pouco se sabe Supotildee-se a partir de seus escritos que ele foi um meacutedico da escola empiacuterica demedicina e que viveu provavelmente por volta da segunda metade do seacuteculo II dC mas natildeo se sabe ondeCf Floridi (2002 p 3-7) Sobre Pirro ver Brochard (2009 p 65-88) sobre a escola ceacutetica ver Brochard(2009 p 235-247)
19 A obra principal de Sexto Empiacuterico Hipotiposes Pirronianas eacute dividida em trecircs livros o primeiro visafazer uma apresentaccedilatildeo geral do que eacute o ceticismo (HP I) e os seguintes procuram ldquofazer objeccedilotildees a cadaparte da assim chamada Filosofiardquo (HP I 6) As partes da Filosofia a que Sexto se refere satildeo a Loacutegica (HPII) a Fiacutesica (HP III 1-167) e a Eacutetica (HP III 168-281) Elas tambeacutem satildeo abordadas no Contra osDogmaacuteticos composto pelos livros Contra os Loacutegicos (M VII-VIII) Contra os Fiacutesicos (M IX-X) e Contraos Eacuteticos (M XI)
20 Os Estudos Ciacuteclicos eram o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educaccedilatildeo propedecircutica para aFilosofia Ver seccedilatildeo 42
15
Professores (M I-VI) destina-se aos professores dessas disciplinas21 que faziam parte dos
Estudos Ciacuteclicos entre elas a muacutesica Mas Sexto natildeo nos daacute indicaccedilotildees muito precisas a
respeito do que satildeo para ele os Estudos Ciacuteclicos porque sua exposiccedilatildeo ldquodirige-se agravequeles
que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nessas questotildeesrdquo (M I 7) Em funccedilatildeo disso exploramos
o significado dessa expressatildeo em outras fontes do periacuteodo mostrando seu papel fundamental
para a compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves tekhnai tendo em vistao que os Estudos
Ciacuteclicos abrangem especificamente o sentido de tekhne que Sexto Empiacuterico potildee em jogo
Para compreendermos os motivos que levam Sexto Empiacuterico a empreender um ataque
(quase fervoroso) agraves disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos teremos de observar o Contra os
Professores sob uma dupla perspectiva Por um lado devemos atentar ao fato de que os
conteuacutedos discutidos natildeo satildeo refutados por si mesmos mas enquanto disciplinas que fazem
parte de um ciclo de Estudos ensinadas de acordo com determinados meacutetodos e crenccedilas Por
outro devemos observar os motivos pelos quais a refutaccedilatildeo a essas disciplinas faz-se
necessaacuteria dentro do ceticismo
Sexto Empiacuterico parece lidar com uma dicotomia entre teoria e praacutetica do conhecimento
teacutecnico na Antiguidade22 Ele parte da definiccedilatildeo23 de tekhne enquanto um conhecimento que
seja uacutetil para a vida Sua refutaccedilatildeo eacute direcionada exclusivamente ao acircmbito teoacuterico porque
este para ele estaacute impregnado de dogmatismo e natildeo parece cumprir os requisitos da
definiccedilatildeo de tekhne aprovada pelo ceacutetico visto que haacute um sentido ligado ao criteacuterio de accedilatildeo
deste em que o conhecimento teacutecnico natildeo eacute considerado dogmaacutetico Buscamos explicar
como o ceacutetico refuta as tekhnai no Contra os Professores como um todo e porque ele faz isso
a fim de resgatar por fim a originalidade do pensamento ceacutetico em relaccedilatildeo agraves tekhnai Ele
considera vaacutelido apenas o acircmbito praacutetico de cada uma das tekhnai justamente aquele que era
colocado em um niacutevel inferior pelos pensadores da Antiguidade
Na terceira seccedilatildeo analisamos de modo detalhado o texto do Contra os Muacutesicos
Partimos da distinccedilatildeo entre os sentidos de muacutesica que Sexto Empiacuterico apresenta Opotildee teoria
e praacutetica musical e restringe sua criacutetica agrave primeira Seu texto abrange dois aspectos da teoria
musical para os quais ele utiliza tambeacutem dois tipos de argumentaccedilatildeo No que diz respeito ao
primeiro a discussatildeo acerca da utilidade da muacutesica investigamos o uso que Sexto Empiacuterico
21 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido por ldquoensinamentordquo ldquoconteuacutedo de aprendizadordquo ldquodisciplinardquo Nestetexto utilizamos tambeacutem os termos ldquociecircncias especializadasrdquo (expressatildeo que aparece tambeacutem na traduccedilatildeode Bury) e ldquoartesrdquo porque mathemata nesse caso satildeo os ensinamentos a respeito de determinadas ciecircnciasou artes
22 Essa hierarquia entre teoria e praacutetica pode ser observada em todas as aacutereas do conhecimento especializado23 A definiccedilatildeo de uma tekhne em funccedilatildeo de sua utilidade eacute bastante comum Sexto Empiacuterico parte
assumidamente da definiccedilatildeo dada pelos filoacutesofos estoicos que eacute muito parecida com a de Aristoacuteteles Ver p54
16
faz de argumentos que satildeo semelhantes aos de Filodemo e sustentamos a tese de que mesmo
ao tratar da utilidade da muacutesica o ceacutetico permanece dentro do escopo da teoria musical No
que concerne agrave segunda parte da obra apresentamos alguns conceitos teacutecnicos da ciecircncia
harmocircnica que satildeo refutados pelo autor e buscamos explicar os argumentos utilizados Por
fim evidenciamos que o interesse ceacutetico natildeo estava de modo algum voltado agraves questotildees
musicais mas ao combate agrave precipitaccedilatildeo dos dogmaacuteticos em afirmar teses sobre a natureza da
muacutesica
Texto grego e traduccedilatildeo
Eacute escasso o nuacutemero de traduccedilotildees modernas do Contra os Professores Temos a
espanhola de J B Cavero a italiana de A Russo a francesa de D Delattre e a inglesa de R
G Bury24 Especificamente do Contra os Muacutesicos haacute uma traduccedilatildeo parcial em liacutengua
portuguesa no artigo de A R Pereira (1996) uma francesa de C Ruelle e uma em liacutengua
inglesa de D D Greaves
A ediccedilatildeo elaborada por Greaves apresenta a traduccedilatildeo comentada da obra e uma
introduccedilatildeo que abrange as principais fontes de Sexto Empiacuterico Aleacutem disso as notas de
rodapeacute da versatildeo relacionam os argumentos do autor com as suas fontes servindo como
referecircncia para o presente trabalho
Para nossa traduccedilatildeo tomamos como base a ediccedilatildeo do texto grego tal como
apresentada por Greaves devido ao seu extenso trabalho de comparaccedilatildeo de manuscritos As
exceccedilotildees satildeo informadas em notas agrave traduccedilatildeo
24 Sobre a transmissatildeo da obra de Sexto Empiacuterico manuscritos e ediccedilotildees latinas ver Floridi (2002)
17
2 ESTRUTURA DO CONTRA OS MUacuteSICOS
21 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
O Contra os Muacutesicos inicia com a distinccedilatildeo entre os sentidos teoacuterico praacutetico e
metafoacuterico do termo ldquomuacutesicardquo Ele eacute utilizado no sentido teoacuterico enquanto ldquociecircncia que lida
com melodias notas e composiccedilatildeo riacutetmica e coisas semelhantesrdquo (M VI 1) praacutetico em
relaccedilatildeo agrave habilidade na execuccedilatildeo de instrumentos tal como quando chamamos
instrumentistas de ldquomuacutesicosrdquo e por fim no sentido metafoacuterico tomado como adjetivo
quando algo eacute considerado ldquomusicalrdquo Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma
Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute apenas nesse sentido que ele pretende refutar a
muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o mais completordquo (M VI 3)
A refutaccedilatildeo da ciecircncia da muacutesica estrutura-se em dois momentos principais no
primeiro haacute a criacutetica agraves opiniotildees a respeito do papel psicagoacutegico da muacutesica e no segundo a
refutaccedilatildeo de aspectos teacutecnicos da teoria musical25
22 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
No que concerne agrave discussatildeo sobre a utilidade da muacutesica Sexto argumenta contra as
opiniotildees comuns acerca dela concentrando-se sobretudo na refutaccedilatildeo agrave teoria do ethos
musical semelhante agravequela feita pelos epicuristas que a consideravam um conteuacutedo natildeo
necessaacuterio para atingir a felicidade (eudaimonia)
221 As opiniotildees comuns acerca da utilidade da muacutesica (sect 7-18) e sua refutaccedilatildeo (sect 19-28)
a) O autor apresenta exemplos que podem ser encontrados em diversas fontes da
Antiguidade sobre o modo como a muacutesica afeta a alma Esses exemplos estatildeo ligados agrave
teoria do ethos musical e defendem a utilidade da muacutesica para refrear as paixotildees e promover a
virtude
b) Contra isso ele faz uma refutaccedilatildeo geral agrave ideia de que a muacutesica tem uma
25 Cf Greaves (1986 p 19-24)
18
capacidade inerente de afetar a alma e em seguida refuta especificamente cada um dos
exemplos mencionados
222 A utilidade da muacutesica em relaccedilatildeo agrave paideia agrave Filosofia e ao ethos (sect 29-30) e sua
refutaccedilatildeo (sect 31-37)
a) Sexto apresenta argumentos a respeito da importacircncia da muacutesica em sua relaccedilatildeo
com a paideia a Filosofia e novamente o ethos tratando da relaccedilatildeo entre a muacutesica e a
Filosofia do papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes da relaccedilatildeo entre a harmonia e
a ordem do cosmos da necessidade da educaccedilatildeo musical e da inerecircncia das qualidades eacuteticas
na melodia (sect 29-30)
b) Para tais argumentos eacute apresentada uma contra-argumentaccedilatildeo que visa refutar a
necessidade dessas relaccedilotildees (sect31-37)
23 REFUTACcedilAtildeO AOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
Sexto Empiacuterico apresenta alguns dos principais conceitos da teoria musical e
argumenta contra a existecircncia dos seus princiacutepios baacutesicos
231 Os conceitos de som nota intervalo ethos (sect 38-51) e argumentaccedilatildeo contra a existecircncia
do som (sect 52-58)
a) Sexto aborda a melodia (sect 38-51) partindo de uma definiccedilatildeo de muacutesica (sect 38)
muito semelhante agrave de Aristoacutexeno Aquele distingue entre um som musical e um som natildeo
musical Ao conceito de melodia estatildeo ligados os de intervalo e de ethos Sexto considera que
o ldquocaraacuteter eacute um certo gecircnero de melodiardquo (M VI 48) e visto que os intervalos nascem da
uniatildeo das notas o caraacuteter tambeacutem surge delas
b) Visto que natildeo haacute caraacuteter (ethos) musical sem notas e as notas satildeo ldquosom meloacutedicordquo
Sexto para refutar os conceitos da teoria musical argumenta contra a existecircncia do som
19
232 A ciecircncia do ritmo e os argumentos contra a existecircncia do tempo (sect 59-68)
a) Apresentaccedilatildeo do conceito de ritmo enquanto quantidade de tempo
b) Para refutar sua existecircncia Sexto apresenta algumas definiccedilotildees que entram em
conflito com aquela apresentada primeiro tendo em vista que o conceito de tempo estaacute
contido na definiccedilatildeo de ritmo26 Se o tempo natildeo pode ser definido deixam de ser vaacutelidos
todos os conceitos de teoria musical que dependem deste conceito
26 No que concerne ao ethos riacutetmico a melodia tal como tratada por Sexto jaacute abrange tambeacutem o ritmo Dessemodo a negaccedilatildeo do ethos na melodia implica a negaccedilatildeo dos ethe riacutetmicos
20
3 MOUSIKE
31 DO CONCEITO METAFIacuteSICO AO FENOcircMENO SONORO
O conceito de mousike estaacute presente nas mais diversas aacutereas do pensamento na
Antiguidade como a medicina astronomia religiatildeo filosofia poesia meacutetrica danccedila e
pedagogia
O termo na verdade deriva da palavra Mousa e para os antigos gregos durantemuito tempo ele designou um complexo de faculdades espirituais e intelectuais quehoje noacutes chamamos de lsquoartesrsquo e que estavam sob o patronato das Musas emespecial a poesia liacuterica que era uma mescla daquilo que noacutes entendemos por muacutesicae poesia (Rocha 2009 p 139)
Inicialmente enquanto fenocircmeno sensiacutevel a mousike abrangia palavra harmonia e
ritmo (Platatildeo Rep 398 C) e natildeo havia uma palavra que designasse exclusivamente a ldquoarte
dos sonsrdquo (o termo soacute passou a ter esse significado no seacuteculo IV aC) Aleacutem disso a mousike
era abordada tambeacutem sob uma perspectiva metafiacutesica
Se consideramos o conceito de mousike como um desses conceitos de grandeamplitude podemos supor sua compreensatildeo em duas instacircncias no acircmbitoparticular quando se referindo agraves especificidades da linguagem musical e geralultrapassando esse niacutevel e se entrelaccedilando aos significados de outros conceitos demesmo patamar como harmonia cosmos e logos (Tomaacutes 2002 p38)
O conceito de mousike deve ser compreendido sob essas duas perspectivas enquanto
fenocircmeno sonoro (palavra harmonia e ritmo e depois especificamente arte dos sons) e
enquanto conceito metafiacutesico ldquodaiacute que ele natildeo enuncie apenas o que soa mas tambeacutem
aquilo que permite o soar ou seja as leis de organizaccedilatildeo um princiacutepio universal que
subsume toda particularidaderdquo (Tomaacutes 2002 p 38)
A teorizaccedilatildeo sobre a mousike comeccedila com a escola pitagoacuterica no seacuteculo VI aC Para
os pitagoacutericos27 a teoria musical em seu sentido lato tem significado cosmoloacutegico abrange
as leis de organizaccedilatildeo o princiacutepio universal que rege o cosmos e natildeo estaacute diretamente ligada
ao fenocircmeno sonoro Em seu sentido estrito trata-se do fenocircmeno sonoro que imita no
27 Eacute importante enfatizar que o termo ldquopitagoacutericosrdquo abrange um conjunto de ideias que natildeo diz respeitoestritamente a Pitaacutegoras e seus seguidores mas nomeia teoacutericos que no que concerne agrave harmonike tinhamldquocertas visotildees e atitudes em comumrdquo Cf Barker (1989 p 5)
21
mundo fenomecircnico a harmonia que rege todo o cosmos28
Nos fragmentos de Filolau de Crotona filoacutesofo da escola pitagoacuterica do seacuteculo V aC
lemos que a ldquoHarmonia vem a ser em todos os sentidos a partir dos opostos pois harmonia eacute
uniatildeo das coisas heterogecircneas e concordacircncia das coisas que estatildeo em desacordordquo29 Teacuteon de
Esmirna apresenta a mesma definiccedilatildeo referindo-se aos ldquoPitagoacutericos os quais foram em
muitas coisas seguidos por Platatildeordquo definindo a mousike com os mesmos conceitos de
harmonia30
Anderson (1966 p 37) chama atenccedilatildeo para um dos excertos de Filolau que segundo
ele mostra ldquoa importacircncia da teoria do Nuacutemero na explicaccedilatildeo da muacutesica e todas outras
atividadesrdquo
O Nuacutemero ajustando todas as coisas dentro da alma atraveacutes da percepccedilatildeo sensiacutevelas faz reconheciacuteveis e comparaacuteveis umas com as outras Vocecirc pode ver a naturezado Nuacutemero e seu poder em accedilatildeo natildeo soacute na existecircncia supernatural e divinamastambeacutem em todas as atividades e palavras humanas ambos atraveacutes de todaproduccedilatildeo teacutecnica e tambeacutem na Muacutesica31
As investigaccedilotildees a respeito da muacutesica feitas pelos pitagoacutericos natildeo estavam
diretamente voltadas ao fenocircmeno sonoro As pesquisas acerca da harmonike ligam-se agraves
ideias de que ldquoo universo eacute ordenado que a perfeiccedilatildeo da alma humana depende de sua
apreensatildeo e de assimilar a si proacutepria a essa ordem e que a chave para uma compreensatildeo de
sua natureza reside no Nuacutemerordquo (Barker 1989 p6)
A mousike enquanto fenocircmeno sonoro soacute entra em discussatildeo para os pitagoacutericos
porque as relaccedilotildees intervalares percebidas podem ser expressas tambeacutem em foacutermulas
numeacutericas simples De acordo com Barker
Assim essas relaccedilotildees harmocircnicas fundamentais correspondem a relaccedilotildeesmatemaacuteticas fundamentais e evidentemente elegantes e incentivam a ideia de quetodos os intervalos propriamente harmocircnicos recebem seu status musical por causade suas propriedades matemaacuteticas (hellip) A ordem encontrada na muacutesica eacute umaordem matemaacutetica os princiacutepios da coerecircncia de um sistema harmocircnico coordenadosatildeo princiacutepios matemaacuteticos E visto que esses satildeo princiacutepios que geram uma belezaperceptiacutevel e um sistema de organizaccedilatildeo satisfatoacuterio talvez sejam essas mesmasrelaccedilotildees matemaacuteticas ou alguma extensatildeo delas que subjazem agrave admiraacutevel ordem
28 Cf Tomaacutes (2002 p 17)29 Filolau eacute citado em Nicocircmaco Introductio Arithmetica (II 191 TLG) ldquoἁρμονία δὲ πάντως ἐξ ἐναντίων
γίνεται ἔστι γὰρ ἁρμονία πολυμιγέων ἕνωσις καὶ δίχα φρονεόντων συμφρόνησιςrdquo30 Teacuteon de Esmirna De utilitate mathematicae (p 12 10 TLG) ldquoκαὶ οἱ Πυθαγορικοὶ δέ οἷς πολλαχῆι ἕπεται
Πλάτων τὴν μουσικήν φασιν ἐναντίων συναρμογὴν καὶ τῶν πολλῶν ἕνωσιν καὶ τῶν δίχα φρονούντωνσυμφρόνησινrdquo
31 Fr 44 B 11 (DK) apud Anderson (1966 p 37)
22
do cosmos e agrave ordem agrave qual a alma humana pode aspirar (Barker 1989 p 6)32 A TEORIA DO ETHOS MUSICAL E O PAPEL DA MOUSIKE NA PAIDEIA GREGA
Apesar da conexatildeo entre muacutesica e metafiacutesica implicada no conceito de mimesis de
acordo com Lippman (1975 p 88) ldquoo pensamento antigo estaacute focado antes nos valores
poliacuteticos e educacionais da muacutesica sonora do que na sua ontologiardquo Embora ambas estejam
baseadas em uma concepccedilatildeo ampla de mousike enquanto a metafiacutesica da harmonia privilegia
o estudo da harmonike o papel psicagoacutegico32 da muacutesica estaacute estritamente ligado ao fenocircmeno
sensiacutevel e por isso ligado ao conceito de mousike enquanto palavra harmonia e ritmo33
No que diz respeito ao papel da muacutesica na educaccedilatildeo grega muito embora os relatos
apareccedilam na literatura grega desde Homero34 foi com Daacutemon que a teoria sobre o papel
psicagoacutegico da muacutesica ganhou forma De acordo com Anderson
em grande parte a histoacuteria do ethos na Greacutecia eacute ela mesma um enigma masencontramos sugestotildees da teoria em autores do seacuteculo V Daacutemon natildeo inventou ateoria do ethos ele a expandiu e codificou a um grau notaacutevel e talvez incomparaacutevel(Anderson 1966 p 42)
A respeito da teoria atribuiacuteda a ele temos apenas testemunhos posteriores Daacutemon eacute
considerado um sofista do final do seacuteculo V aC para ele ldquomuacutesica e danccedila surgem
necessariamente quando a alma eacute movida de algum modo muacutesicas e danccedilas belas e livres
criam uma alma semelhante e as de tipo contraacuterio criam um tipo contraacuterio de almardquo 35 Cada
tipo de muacutesica variando em suas harmoniai e ritmos tem o poder de representar diferentes
qualidades do caraacuteter virtudes e viacutecios36 Por isso segundo os relatos de Platatildeo e Ateneu
32 Conceito formado a partir dos termos psykhe (alma) e agoge (caminho) psicagogia significa literalmenteldquoconduccedilatildeo da almardquo Em Luciano por exemplo o termo estaacute ligado agrave conduccedilatildeo dos mortos para o HadesEm rituais religiosos significa encantar conduzir as almas dos mortos e dos vivos O conceito de psicagogiano contexto educacional aparece no Fedro de Platatildeo ligado agrave retoacuterica Primeiramente Soacutecrates pergunta sea arte da oratoacuteria natildeo seria uma psicagogia ldquoum modo de conduzir as almas por intermeacutedio do discursordquo(Platatildeo Fedro 261 A) Ao que ele afirma que ldquovisto que a funccedilatildeo proacutepria do discurso eacute a de ser um modode conduzir as almas uma psicagogia aquele que quer ser um dia um orador de talento devenecessariamente saber da alma as formas que tem ()rdquo (Platatildeo Fedro 271 C-D) Do mesmo modotambeacutem a mousike teria o poder de conduzir a alma Segundo Moutsopoulos (1959 p 259) ldquoo mecanismopelo qual a muacutesica se introduz na alma exposto no Timeu ilustra o modo de acordo com o qual Platatildeo soba influecircncia das doutrinas hipocraacuteticas considera o ritmo dos movimentos corporais como provocador deum apaziguamento alegre agrave alma excitada ou em estado de distuacuterbiordquo No que diz respeito agrave muacutesica apsicagogia eacute o ldquoresultado exercido sobre a alma pelo bom ritmo e pela simetriardquo (Moutsopoulos 1959 p261) Ver Platatildeo Timeu (80 A-B) a respeito da muacutesica Goacutergias (82 B) a respeito da poesia Para maisreferecircncias ver Moutsopoulos (1959 p 259-61)
33 Cf Tomaacutes (2002 p 41) Lippman (1975 p 87-90)34 Cf Homero Iliacuteada (I 472 601) Odisseia (VIII 44-45 XXII 344)35 Fr 37 B 6 apud Anderson (1966 p 42)36 Cf Aristoacutefanes Tesmoforiantes (146) Aristides Quintiliano De Mus (8025)
23
para Daacutemon a muacutesica tem poder moral e as mudanccedilas na muacutesica produzem mudanccedilas nas
estruturas sociais e poliacuteticas37
Se a muacutesica eacute considerada resultado de certo movimento da alma eacute a natureza da
alma que determina a natureza dos movimentos que ela cria e daqueles com os quais ela teraacute
afinidade quando forem ouvidos (Cf Barker 1984 p 169)38 Sobre isso Aristides
Quintiliano considera que nas harmoniai transmitidas por Daacutemon as alteraccedilotildees nas
sequecircncias de notas acontecem porque cada harmonia diferente era uacutetil39 de acordo com o
caraacuteter de cada alma particular
Tais ideias sobretudo no que diz respeito ao poder da muacutesica e sua funccedilatildeo na
sociedade satildeo levadas agraves uacuteltimas consequecircncias na Repuacuteblica de Platatildeo40
deve-se ter cuidado com a mudanccedila para um novo gecircnero musical que pode pocircrtudo em risco Eacute que nunca se abalam os gecircneros musicais sem abalar as mais altasleis da cidade como Dacircmon afirma e eu creio (Platatildeo Rep 424 C)
321 A harmonizaccedilatildeo da alma atraveacutes da muacutesica na Repuacuteblica de Platatildeo
Na obra de Platatildeo pode-se observar a estreita relaccedilatildeo entre os dois sentidos do
conceito de mousike O filoacutesofo tal como os pitagoacutericos considera a harmonike sob uma
perspectiva matemaacutetica desvinculada do fenocircmeno sonoro Natildeo obstante o conceito
metafiacutesico de harmonia eacute a chave para a compreensatildeo da teoria do ethos em sua relaccedilatildeo com
a educaccedilatildeo A muacutesica teria o poder de recuperar a harmonia da alma porque imita a harmonia
divina do universo nas almas dos mortais A muacutesica por sua relaccedilatildeo com a harmonia eacute a arte
que tem influecircncia direta no caraacuteter (ethos) do ouvinte penetrando no iacutentimo de sua alma
Platatildeo ocupa-se do desenvolvimento de uma paideia que tem o objetivo de harmonizar a
alma Daiacute a importacircncia para Platatildeo de definir na Repuacuteblica e nas Leis qual o ethos de cada
37 Platatildeo Rep (424 C) Ateneu (628 C)38 A explicaccedilatildeo de como essa mudanccedila acontece se baseia na ideia de que harmoniai de diferentes ethe satildeo
produzidas pela mudanccedila de posiccedilatildeo das notas intermediaacuterias do tetracorde de acordo com a finalidade quese classificava como feminina ou masculina
39 O conceito de utilidade eacute central para a compreensatildeo da mousike enquanto uma das disciplinas dos EstudosCiacuteclicos e tambeacutem para a compreensatildeo da refutaccedilatildeo ceacutetica ao papel psicagoacutegico da muacutesica
40 Embora os reflexos da teoria damoniana do ethos sejam evidentes na obra de Platatildeo segundo Anderson(1966 p 40) ldquomostra-se muito difiacutecil infelizmente lidar com a noccedilatildeo de similaridade enquanto um meioefetivo de construir o caraacuteter atraveacutes da melodia Enquanto alguma conexatildeo com a mimesis parece ser certahaacute boas razotildees para se tratar a similaridade (homoiotes) como um princiacutepio originalmente damonianoligeiramente diferente da mimesis platocircnica que o incorporourdquo A delimitaccedilatildeo das particularidades da teoriade Daacutemon que foram absorvidas por Platatildeo foge ao escopo de nossa investigaccedilatildeo
24
harmonia e de cada ritmo41
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta o tipo de educaccedilatildeo que algueacutem deve receber antes de
estudar Filosofia As ciecircncias matemaacuteticas que devem ser ensinadas satildeo aritmeacutetica
geometria astronomia e harmonike42 Essa uacuteltima tem uma relaccedilatildeo estreita com a concepccedilatildeo
pitagoacuterica43 Nesse sentido para Platatildeo qualquer arte quando privada do nuacutemero e da
medida eacute deixada agrave mercecirc dos sentidos e segundo ele a muacutesica eacute um claro exemplo disso 44
Eacute esse para ele o caso dos teoacutericos empiristas que em oposiccedilatildeo aos pitagoacutericos tomavam
somente o fenocircmeno sonoro como base para a ciecircncia musical medindo uns pelos outros os
acordes e os sons que satildeo ouvidos45
Assim como para os pitagoacutericos para Platatildeo a harmonike estaacute ligada agrave astronomia e
soacute diz respeito agrave muacutesica na medida em que os intervalos musicais podem ser descritos como
relaccedilotildees matemaacuteticas
Eacute provaacutevel que assim como os olhos foram moldados para a astronomia os ouvidosforam formados para o movimento harmocircnico e as proacuteprias ciecircncias satildeo irmatildes umada outra tal como afirmam os Pitagoacutericos e noacutes oacute Glaacuteucon concordamos (PlatatildeoRep 530 D)
Mesmo assim segundo Barker o estudo da harmonike eacute fundamental para a
compreensatildeo dos efeitos da muacutesica
O propoacutesito da harmonike na Repuacuteblica Livro VII e no Timeu eacute nos guiar emdireccedilatildeo agrave compreensatildeo dos princiacutepios que governam a estrutura da realidade comoum todo e fornecer uma forma de entendimento que iraacute nos ajudar a restaurarnossas proacuteprias almas distorcidas agrave sua perfeiccedilatildeo original (Barker 2007 p 311)
Embora a ciecircncia harmocircnica seja um estudo abstrato distante do fenocircmeno sonoro e
por isso mais elevado satildeo os efeitos da muacutesica na alma do homem e consequentemente na
sociedade que tambeacutem para Platatildeo importam na vida praacutetica
No Timeu o filoacutesofo relaciona estruturas harmocircnicas agrave constituiccedilatildeo do universo e da
41 A Repuacuteblica e as Leis satildeo as principais fontes sobre o papel psicagoacutegico da muacutesica na Filosofia de PlatatildeoEssas obras tratam de uma sociedade ideal e muitas das coisas condenadas por Platatildeo faziam parte darealidade de sua eacutepoca Assim eacute tanto a partir das teorias discutidas por Platatildeo (o pitagorismo e a teoria doethos musical) quanto em funccedilatildeo de suas criacuteticas agrave muacutesica de seu tempo que podemos compreenderquestotildees importantes sobre o papel da muacutesica e a relevacircncia da teoria do ethos musical
42 Satildeo essas as disciplinas que vieram a compor os Estudos Ciacuteclicos ainda na Antiguidade e posteriormenteo quadrivium das Artes Liberais Ver seccedilatildeo 42
43 Muito embora no livro VII Platatildeo critique os pitagoacutericos por natildeo abstraiacuterem o suficiente do acircmbito sonoro44 Cf Platatildeo Filebo (55 E ndash 56 A)45 Cf Platatildeo Rep (531 A) Aristoacutexeno algum tempo depois estabeleceu uma teoria musical baseada no
fenocircmeno sonoro mas com um rigor cientiacutefico muito maior do que o dos empiricistas criticados por Platatildeo
25
alma humana A muacutesica (enquanto fenocircmeno sonoro) foi dada para noacutes pelas Musas em
funccedilatildeo da harmonia que se move de maneira anaacuteloga agraves nossas almas e natildeo em funccedilatildeo do
prazer irracional tal como de acordo com o autor se considerava em sua eacutepoca A muacutesica
serviria para auxiliar o movimento da alma em direccedilatildeo agrave ordem e agrave concordacircncia quando
essa tivesse perdido sua harmonia46
Se a muacutesica tem essa relaccedilatildeo direta com o movimento da alma uma muacutesica ruim
levaria agrave discordacircncia e confusatildeo na alma Por oposiccedilatildeo quando os sons satildeo executados
harmonicamente eles ldquoproporcionam prazer (hedone) aos brutos e felicidade (euphrosyne)
aos inteligentes porque nos movimentos mortais se produz uma imitaccedilatildeo da harmonia
divinardquo (Platatildeo Ti 80B)47 De acordo com Barker as combinaccedilotildees musicais de sons ldquonatildeo
podem dar prazer [intelectual] agraves pessoas que falham em apreciar a conexatildeo desses padrotildees
sonoros com a harmonia da Alma do Mundordquo (Barker 2007 p 326)
Contudo o prazer irracional ou intelectual natildeo eacute o que define o ethos musical Os
homens tecircm prazer com as muacutesicas a que eles estatildeo acostumados Acontece que a alma eacute
suscetiacutevel agraves melodias sejam ldquoboasrdquo ou ldquoruinsrdquo Para o filoacutesofo a muacutesica que produz prazer
irracional aquela que ldquodesarmonizardquo a alma faz os homens piores Jaacute a muacutesica que
harmoniza a alma produz homens melhores48
Se para Platatildeo ldquoa verdadeira funccedilatildeo de toda educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento da alma e
harmonizaccedilatildeo de seus elementosrdquo (Barker 1984 p 127) ela deve abranger o corpo e a alma
Por isso na Repuacuteblica Platatildeo divide-a em duas partes a saber a ginaacutestica e a mousike
(enquanto veiacuteculo da poesia)
Depois da muacutesica eacute na ginaacutestica que se deve educar os jovens (hellip) A mim natildeo meparece ser o corpo por perfeito que seja que pela sua excelecircncia49 torne a almaboa mas pelo contraacuterio a alma boa pela sua excelecircncia permite ao corpo ser omelhor possiacutevel (Platatildeo Rep 403 C - D)
Platatildeo define a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne) como os objetivos
eacuteticos da educaccedilatildeo50 A educaccedilatildeo pela muacutesica e pela ginaacutestica natildeo tem como finalidade o
corpo mas se daacute em funccedilatildeo da alma A ginaacutestica gera no homem certa rusticidade que
46 Cf Platatildeo Ti (47 C - E) Anderson (1966 p 60)47 Podemos distinguir entre hedone como o prazer irracional e euphrosyne (traduzido aqui por ldquofelicidaderdquo)
enquanto prazer intelectual 48 Cf Platatildeo Leis (802 C - D) Ti (43 A ndash 44 C) Ver tambeacutem Barker (1984 p 124)49 ldquoExcelecircnciardquo traduz ldquoareterdquo comumente traduzido tambeacutem por ldquovirtuderdquo50 O desenvolvimento de tais virtudes na alma por meio da muacutesica seraacute alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica na primeira
parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37)
26
quando bem educada vem a ser bravura e a muacutesica certa brandura que bem educada tem
uma natureza filosoacutefica sendo temperada e ordenada51 Essas qualidades satildeo consideradas
necessaacuterias e devem ser harmonizadas A alma que as potildee em harmonia eacute considerada
temperante e corajosa e a que natildeo as potildee eacute covarde e ruacutestica
No que concerne agrave muacutesica ao discutir a educaccedilatildeo no livro III da Repuacuteblica Platatildeo
apresenta o modo como as harmoniai e os ritmos refletem diferentes disposiccedilotildees da alma e
afirma em funccedilatildeo disso seu poder de afetar o desenvolvimento do caraacuteter Cada harmonia
determina um padratildeo de afinaccedilatildeo para o instrumento e para a voz que traz consigo certos
atributos eacuteticos ldquoimitando disposiccedilotildees psicoloacutegicas desejaacuteveis ou indesejaacuteveis e moldando a
alma do ouvinte de acordo com elasrdquo (Barker 2007 p 309)
Em vista desse poder da muacutesica toda praacutetica musical que pudesse corromper a alma
deveria ser banida Tais restriccedilotildees relacionam-se aos compositores considerados ldquomodernosrdquo
na eacutepoca em que Platatildeo vivia52 Nas Leis o filoacutesofo condena os compositores que misturam
palavras melodias e ritmos de caraacuteteres opostos imitam sons diversos afastam o ritmo da
melodia53 (recitando os textos dentro de uma meacutetrica mas sem um contorno meloacutedico) e
afastam o ritmo e a melodia da palavra (praacutetica de muacutesica instrumental) Em suma eles usam
os instrumentos musicais para outros propoacutesitos aleacutem do acompanhamento da danccedila e do
canto e o uso que fazem dos instrumentos eacute considerado vulgar e inculto
Essas caracteriacutesticas da ldquomuacutesica novardquo satildeo repetidamente condenadas pelos que
escreveram sobre muacutesica ao longo dos seacuteculos seguintes em vista da idealizaccedilatildeo de uma
muacutesica ldquopurardquo que remete ao periacuteodo arcaico Segundo Barker
todas as complexidades sutis e sofisticaccedilotildees agradaacuteveis esteticamente introduzidasna muacutesica pelos compositores ldquomodernosrdquo devem ser rejeitadas em favor de umasimplicidade nobre que supotildee-se que tenha caracterizado a muacutesica de uma era deouro perdida (Barker 2007 p 309)
As criacuteticas de Platatildeo visavam combater a ideia de que a muacutesica estaacute mais ligada ao
prazer individual do que aos valores morais tradicionais uma alusatildeo direta agrave muacutesica de seu
periacuteodo que era considerada hedonista lasciva e virtuosiacutestica Natildeo que o prazer fosse
absolutamente condenado por Platatildeo O prazer eacute considerado um acompanhamento
51 A questatildeo da relaccedilatildeo entre muacutesica e filosofia eacute utilizada por Sexto Empiacuterico para refutar a utilidade damuacutesica Cf M VI 13 36
52 Sexto Empiacuterico retoma essa oposiccedilatildeo entre muacutesica antiga e moderna Cf M VI 14-553 Platatildeo enfatiza a importacircncia da palavra em relaccedilatildeo ao ritmo e agrave melodia advertindo que ldquodevem forccedilar-se
os peacutes e a melodia a seguirem as palavras e natildeo estas agravequelesrdquo (Platatildeo Rep 400 A)
27
importante da muacutesica mas apenas enquanto subordinado agrave finalidade moral54
Eacute por isso que Platatildeo adverte na Repuacuteblica que os cuidadores da cidade devem zelar
para que a educaccedilatildeo natildeo venha a se corromper ldquoque a tenham sob vigilacircncia em todas as
situaccedilotildees para que natildeo haja inovaccedilotildees contra as regras estabelecidas na ginaacutestica nem na
muacutesicardquo (Platatildeo Rep 424 B) Tambeacutem nas Leis o filoacutesofo considera que
visto que ela [a muacutesica] eacute mais estimada do que as outras representaccedilotildees ela requerum tratamento mais cuidadoso entre todas Qualquer um que cometa um engano emrelaccedilatildeo a ela seria muito prejudicado por adotar preferencialmente disposiccedilotildeesruins () (Platatildeo Leis 669 B - C)
O legislador deveraacute distinguir quais satildeo as canccedilotildees adequadas para os homens e para
as mulheres e combinaacute-las aos ritmos e harmoniai adequados ldquoPois seria terriacutevel para o
canto estar errado em toda sua harmonia ou para o ritmo em todo seu ritmo se ele [o
legislador] designasse harmoniai e ritmos que fossem inadequados para as canccedilotildeesrdquo (Platatildeo
Leis 802 E)
Devido agrave estreita relaccedilatildeo entre muacutesica e paideia focada no desenvolvimento moral do
cidadatildeos Platatildeo apresenta especificamente quais harmoniai e ritmos satildeo permitidos e quais
devem ser banidos As harmonias que devem ser evitadas satildeo as ldquochorosasrdquo como ldquoa
mixoliacutedia a sintonoliacutedia e outras que tais (hellip) Portanto essas satildeo as que se deve excluir
visto que satildeo inuacuteteis para as mulheres que conveacutem que sejam honestas para jaacute natildeo falar dos
homensrdquo (Platatildeo Rep 398 E) Aleacutem disso as harmonias lacircnguidas (adequadas aos
banquetes) satildeo as harmonias jocircnia e liacutedia Estas satildeo consideradas efeminadas e tambeacutem
devem ser evitadas
As harmonias que devem ser preservadas na Repuacuteblica em funccedilatildeo de seu poder de
provocar bravura e temperanccedila satildeo a doacuterica pela capacidade de imitar a voz e as inflexotildees
de um homem valente na guerra e em toda a accedilatildeo violenta e a friacutegia que imitaria
aquele que se encontra em atos paciacuteficos natildeo violentos mas voluntaacuterios que usa dorogo e da persuasatildeo (hellip) ou pelo contraacuterio se submete aos outros quando lhepedem o ensinam ou persuadem e tendo assim procedido a seu gosto semsobranceria se comporta com bom senso e moderaccedilatildeo em todas estascircunstacircncias (Platatildeo Rep 399 B - C)
Platatildeo dispensa a fabricaccedilatildeo de instrumentos apropriados para muitas harmonias
ldquologo natildeo teremos de sustentar artiacutefices para fabricarem harpas triacutegonos e toda a espeacutecie de
54 Cf Lippman (1975 p 114) Essa diferenccedila jaacute foi abordada acima (nota 47)
28
instrumentos de muitas cordas e de muitas harmoniasrdquo (Platatildeo Rep 399 C ndash D) Tambeacutem
proiacutebe o uso do aulo por ser aquele que emite o maior nuacutemero de sons De acordo com
Platatildeo satildeo uacuteteis na cidade a lira e a ciacutetara e nos campos a siringe preferindo ldquoApolo e os
instrumentos de Apolo a Maacutersias55 e os seus instrumentosrdquo (Platatildeo Rep 399 E) Fazendo
essas coisas descritas acima afirma Platatildeo ldquopurificamos de novo a cidade que haacute pouco
diziacuteamos estar efeminadardquo (Platatildeo Rep 399 E)
Aleacutem disso Platatildeo determina os ritmos adequados agrave Repuacuteblica buscando observar
ldquoquais satildeo os correspondentes a uma vida ordenada e corajosardquo (Platatildeo Rep 399 E) Para
falar dos ritmos Platatildeo recorre a Daacutemon e os classifica de acordo com suas qualidades eacuteticas
distinguindo aqueles que satildeo ldquoadequados agrave baixeza agrave insolecircncia agrave loucura e aos outros
defeitos e os ritmos que devem deixar-se aos seus contraacuteriosrdquo (Platatildeo Rep 400 B)
Se a muacutesica tem o poder de mover a alma alterando-a em direccedilatildeo ao caos ou agrave ordem
a educaccedilatildeo musical eacute considerada no pensamento Platocircnico fundamental para restaurar a
harmonia na alma movendo o caraacuteter do ouvinte em direccedilatildeo agrave excelecircncia moral
Em suma para Platatildeo ldquoa educaccedilatildeo pela muacutesica eacute capital porque o ritmo e a harmonia
penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente trazendo consigo a perfeiccedilatildeo e
tornando aquela perfeita (hellip)rdquo (Platatildeo Rep 401 D) Por isso
aquele que foi educado nela [na muacutesica] como devia sentiria mais agudamente asomissotildees e imperfeiccedilotildees no trabalho56 ou na conformaccedilatildeo natural e suportando-asmal e com razatildeo honraria as coisas belas e acolhendo-as jubilosamente na suaalma com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito57 (Platatildeo Rep 401E)
322 A flexibilizaccedilatildeo do papel da mousike na Poliacutetica de Aristoacuteteles
Na Poliacutetica Aristoacuteteles discute as definiccedilotildees apresentadas por Platatildeo na Repuacuteblica e
nas Leis Mas enquanto as consideraccedilotildees deste tomam como ponto de partida as teorias
pitagoacutericas a respeito da mousike (focada em princiacutepios matemaacuteticos) para desta teoria
musical extrair as consequecircncias eacuteticas que determinam seu papel na sociedade aquele natildeo se
55 Maacutersias teria sido um auleta friacutegio que desafiou Apolo para uma competiccedilatildeo musical56 O termo traduzido por ldquotrabalhordquo deriva da palavra grega ldquodemiourgeordquo e estaacute ligado neste caso
especificamente agrave praacutetica das artes manuais 57 No texto grego aparece a expressatildeo ldquokalos te kagathosrdquo que significa ldquobelo e bomrdquo O tradutor da ediccedilatildeo de
referecircncia preferiu utilizar o termo ldquoperfeitordquo porque no seacuteculo V aC ldquobelo e bomrdquo traduzia o ideal deperfeiccedilatildeo fiacutesica e moral grego Ver Platatildeo Rep (p 133 n 68 ediccedilatildeo de referecircncia)
29
preocupa na Poliacutetica em determinar as relaccedilotildees entre muacutesica e matemaacutetica ou astronomia
mas como concentra a discussatildeo nos efeitos do fenocircmeno sonoro observados na sociedade
Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo questotildees acuacutesticas a fisiologia da voz e a fisiologia e
psicologia do ouvir Nesse sentido para abordar o papel da muacutesica na educaccedilatildeo o filoacutesofo
observa as experiecircncias humanas ― as opiniotildees os gostos e costumes ― e extrai daiacute um
conhecimento praacutetico distinto da ciecircncia das causas primeiras
Essa cisatildeo entre a visatildeo metafiacutesica do conceito de mousike e sua concepccedilatildeo enquanto
fenocircmeno sonoro aparece nas divergecircncias entre Platatildeo e Aristoacuteteles como resultado de uma
diferenccedila fundamental entre suas concepccedilotildees metafiacutesicas58 Observa-se a partir disso uma
mudanccedila radical no estatuto do conceito de harmonia As verdades a respeito da muacutesica
estavam ligadas ao fato desta ser um reflexo sonoro harmonioso dos nuacutemeros silenciosos que
eram a realidade uacuteltima Por isso para Platatildeo a ciecircncia musical natildeo dizia respeito ao
fenocircmeno musical visto que os proacuteprios fenocircmenos enquanto sujeitos agrave accedilatildeo do tempo satildeo
imperfeitos
No que diz respeito agrave harmonia Aristoacuteteles discorda radicalmente de Platatildeo Ele
rejeita as ideias platocircnicas e a importacircncia do nuacutemero A esse respeito Lippman chama a
atenccedilatildeo para o fato de que a Metafiacutesica de Aristoacuteteles eacute
em um grau consideraacutevel uma polecircmica contra as concepccedilotildees pitagoacutericas eplatocircnicas Os Objetos Matemaacuteticos sustenta Aristoacuteteles natildeo podem existirenquanto substacircncias distintas tanto nas coisas sensiacuteveis quanto separados delaseles podem ser separados apenas em pensamento (Lippman 1975 p 116)
Muito embora a harmonia tambeacutem caracterize a concepccedilatildeo de homem na Filosofia de
Aristoacuteteles59 ele ldquonatildeo acredita na harmonia platocircnica do cosmos ou da alma nem acredita
que a presenccedila das mesmas relaccedilotildees matemaacuteticas em dois fenocircmenos tem qualquer
sustentaccedilatildeo real na interconexatildeo ou na natureza desses fenocircmenosrdquo (Lippman 1975 p 118)
A rejeiccedilatildeo da metafiacutesica da harmonia sendo parte vital de uma elaborada rejeiccedilatildeo do
idealismo platocircnico tem como consequecircncia a libertaccedilatildeo da muacutesica da necessidade de uma
ontologia o que faz com que o interesse no proacuteprio fenocircmeno sonoro aumente60 A
58 Enquanto a verdade para Platatildeo eacute algo transcendente para Aristoacuteteles natildeo haacute uma realidade aleacutem doproacuteprio mundo o sensiacutevel deixa de ser engano e passa a ser ponto de partida legiacutetimo para o conhecimento
59 As concepccedilotildees harmocircnicas de Aristoacuteteles satildeo encontradas na fiacutesica na matemaacutetica e nas ciecircncias praacuteticas eprodutivas Cf Lippman (1975 p 117) A harmonia eacute considerada inerente aos oacutergatildeos do sentido enquantoeles correspondem agrave natureza dos objetos sensiacuteveis A beleza fiacutesica e a excelecircncia corporal tambeacutem se datildeodevido agrave harmonia Jaacute a alma nem eacute harmocircnica nem conteacutem harmonia ou nuacutemero Cf Lippman (1975 p120)
60 Cf Lippman (1975 p 115)
30
investigaccedilatildeo especializada e cientiacutefica da muacutesica no pensamento aristoteacutelico faz com que
cada vez mais os atributos do som se tornem importantes
Natildeo obstante no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Aristoacuteteles ainda
reserva a ela um papel importante Todavia sua atuaccedilatildeo na alma deixa de ser um reflexo do
cosmos Para o filoacutesofo a muacutesica surge de uma capacidade humana inata61 Sob essa
perspectiva a mimesis perde seu sentido quase pejorativo de coacutepia imperfeita e passa a ser
considerada uma atitude natural do homem atraveacutes da qual ele aprende Para Aristoacuteteles as
artes mimeacuteticas satildeo as artes ligadas tambeacutem agrave criaccedilatildeo Tal concepccedilatildeo culmina em uma
postura muito menos restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica
Suas observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave muacutesica na Poliacutetica tecircm como ponto de partida as
opiniotildees comuns acerca da muacutesica a praacutetica musical de sua eacutepoca e a educaccedilatildeo musical
comum Tomando a descriccedilatildeo de Barker
A tarefa do filoacutesofo eacute examinar minuciosamente e organizar certa evidecircncia mostrarda maneira mais clara possiacutevel as tensotildees inerentes a ela e se ele puder desativaacute-las mostrando como visotildees opostas podem ser reinterpretadas e relacionadasharmoniosamente enquanto partes diferentes ou aspectos de uma aspiraccedilatildeo comumagrave felicidade e excelecircncia humana (Barker 1984 p 170)62
Das atividades que os homens exercem algumas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo
dignas As atividades necessaacuterias e uacuteteis existem em funccedilatildeo das atividades honrosas
(Aristoacuteteles Pol 1333 A 30) A educaccedilatildeo tem em vista as virtudes que devem ser
desenvolvidas na alma e por isso deve ser uma preocupaccedilatildeo constante do legislador A
questatildeo da educaccedilatildeo dos jovens na eacutepoca de Aristoacuteteles de acordo com o filoacutesofo
tem presentemente gerado controveacutersia na medida em que nem todos estatildeo deacordo acerca do que deve ser ensinado aos mais novos no que se refere agrave virtude eno que diz respeito agrave vida melhor Tambeacutem natildeo eacute evidente se eacute mais adequado que aeducaccedilatildeo vise as capacidades intelectuais ou o caraacuteter da alma (Aristoacuteteles Pol1337 A 30)63
Discute-se diz Aristoacuteteles se a educaccedilatildeo deve visar o que eacute uacutetil para a vida o que eacute
61 Cf Lippman (1975 p 138)62 Note-se que o procedimento de Aristoacuteteles eacute semelhante ao que Sexto Empiacuterico descreve em relaccedilatildeo ao
ceticismo Mas enquanto Aristoacuteteles busca harmonizar as opiniotildees opostas o ceacutetico as toma comoferramenta para gerar a suspensatildeo de juiacutezo que tambeacutem levaria em uacuteltima instacircncia agrave felicidade
63 Aqui por caraacuteter da alma Aristoacuteteles designa as disposiccedilotildees psicoloacutegicas que formam o caraacuteter doindiviacuteduo O termo no original eacute ethos
31
adequado agrave praacutetica da virtude ou ateacute mesmo aquilo que natildeo tem utilidade64 Aleacutem disso
distingue-se entre quais satildeo tarefas adequadas aos homens livres e natildeo-livres Em vista desses
aspectos a educaccedilatildeo eacute discutida na Poliacutetica
Aristoacuteteles (Pol 1337 B 1339 B) considera a muacutesica um dos ramos da educaccedilatildeo
mas questiona sua utilidade O filoacutesofo apresenta duas opiniotildees acerca da utilidade da
muacutesica que ela natildeo eacute necessaacuteria nem uacutetil agrave vida na cidade mas eacute uacutetil enquanto diversatildeo no
tempo de lazer Seu papel na educaccedilatildeo se restringiria a isso ldquodiversatildeo proacutepria aos homens
livresrdquo
Para o filoacutesofo os homens livres podem se ocupar dos Estudos Liberais65 Mas um
estudo demasiado intensivo desses saberes poderia vir a provocar efeitos nocivos pois o
cidadatildeo passaria a enxergar melhor a parte do que o todo Isso porque Aristoacuteteles considera
sobretudo a finalidade em vista da qual se realiza determinada atividade A praacutetica eventual
das atividades ligadas aos Estudos Liberais eacute permitida desde que com finalidade em si
mesma e natildeo em funccedilatildeo de outros
Para Aristoacuteteles os Estudos Liberais satildeo compostos pela Gramaacutetica Ginaacutestica
Muacutesica e Desenho Entre essas disciplinas apenas a muacutesica pode ser questionada em termos
de sua utilidade Tal como Platatildeo Aristoacuteteles tambeacutem tece consideraccedilotildees a respeito da
finalidade hedonista da muacutesica que era cultivada em sua eacutepoca Todavia enquanto Platatildeo em
funccedilatildeo dos princiacutepios filosoacuteficos que estatildeo na base das ideias apresentadas na Repuacuteblica
subsume o prazer da muacutesica agrave sua finalidade eacutetica para Aristoacuteteles o prazer eacute colocado ao
lado dos objetivos morais do ensino da muacutesica ldquoenquanto um efeito musical coordenadordquo
(Lippman 1975 p 114)
Aristoacuteteles considera que a muacutesica participa da educaccedilatildeo da diversatildeo e do
entretenimento Em funccedilatildeo da sua agradabilidade ela leva ao relaxamento que eacute o objetivo da
diversatildeo (poder terapecircutico) aleacutem disso ela serve ao entretenimento visto que esse tem que
ser elevado e apraziacutevel No que diz respeito agrave educaccedilatildeo o filoacutesofo considera que deve-se
orientar bem o oacutecio que eacute mais elevado que o trabalho Eacute nesse sentido que para ele a
muacutesica foi inserida por muitos na educaccedilatildeo
O esquema eacutetico de Aristoacuteteles concebe que a melhor vida eacute a vida de accedilotildeesvirtuosas nessa a natureza do homem enquanto um composto de corpo e alma seexpressa mais completamente Menos valiosos satildeo os jogos o entretenimento e a
64 Para Platatildeo como jaacute foi exposto a educaccedilatildeo deve se concentrar nos conhecimentos matemaacuteticosaritmeacutetica geometria astronomia harmonike
65 Ver seccedilatildeo 42
32
apreciaccedilatildeo da arte pois estes natildeo satildeo despropositados mas servem agrave finalidade derenovaccedilatildeo da habilidade para o trabalho De mais alto valor do que a accedilatildeo virtuosapor outro lado eacute a contemplaccedilatildeo teoreacutetica (Lippman 1975 p 124)
Ao indagar se a muacutesica contribui para a formaccedilatildeo do caraacuteter e da alma Aristoacuteteles
considera que a prova de sua influecircncia eacute revelada nas melodias de Olimpo66 A esse respeito
o filoacutesofo considera que
Todos satildeo unacircnimes em considerar que essas melodias provocam entusiasmo nasalmas ora o entusiasmo eacute uma afecccedilatildeo do caraacuteter da alma Aleacutem do mais e mesmonatildeo contando com os ritmos e as melodias todo o tipo de imitaccedilatildeo provocasentimentos homoacutelogos nos ouvintes Ora sucedendo ser a muacutesica do domiacutenio dascoisas agradaacuteveis (e consistindo a virtude em experimentar com retidatildeo alegriaamor ou oacutedio) eacute evidente que nada eacute mais necessaacuterio aprender e tornar haacutebito doque julgar com retidatildeo e alegrar-se com costumes dignos e belas accedilotildees (AristoacutetelesPol 1340 A 5-15)
A audiccedilatildeo eacute a uacutenica das sensaccedilotildees que se assemelha67 agraves disposiccedilotildees morais Os
ritmos e melodias satildeo imitaccedilotildees da natureza68 de certas disposiccedilotildees morais como a coacutelera e a
mansidatildeo a bravura (andreia) e a temperanccedila (sophrosyne)69 ao que ele acrescenta que ldquoa
praacutetica prova-o bem visto que o nosso estado de espiacuterito se altera consoante a muacutesica que
escutamosrdquo (Aristoacuteteles Pol 1340 A 20)
Para Aristoacuteteles ldquonas proacuteprias melodias haacute imitaccedilatildeo (mimesis) do caraacuteter (ethos)rdquo70 e
isso se evidencia pela diferente natureza de cada uma das harmoniai Consequentemente
quem as ouve eacute afetado de maneira diferente de acordo com as suas diversas formas
Com efeito umas [harmoniai] deixam-nos mais melancoacutelicos e graves comoacontece com a mixoliacutedia outras enfraquecem o espiacuterito como as lacircnguidas outrasincutem um estado de espiacuterito intermeacutedio e circunspecto como parece ser apanaacutegioda harmonia doacuterica porquanto jaacute a friacutegia induz o entusiasmo (Aristoacuteteles Pol1340 A 40 ndash B 5)
Isso ocorre tambeacutem em relaccedilatildeo aos ritmos Uns satildeo mais calmos e outros mais
movimentados e entre esses uns satildeo dignos e outros vulgares O filoacutesofo toma como
evidente que a muacutesica pode alterar o caraacuteter e por isso considera que esta deve ser aplicada agrave
educaccedilatildeo dos jovens pois ela se adapta agrave natureza deles que tecircm dificuldade para tolerar
66 Muacutesico friacutegio do seacuteculo VII aC67 Cf Aristoacuteteles Prob (27 29)68 Enquanto para Platatildeo a imitaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo a algo que estaacute fora do nosso mundo para Aristoacuteteles
ela se daacute dentro do mundo69 As mesmas virtudes que aparecem na obra de PlatatildeoVer p 25 2770 A muacutesica instrumental para os peripateacuteticos tambeacutem afeta o caraacuteter Nos Problemas Musicais lemos que
ldquomesmo se uma melodia natildeo tiver palavras tem todavia caraacuteter moralrdquo (Aristoacuteteles Prob 27 37-8)
33
ensinamentos natildeo suavizados pelo prazer71
As melodias satildeo divididas segundo Aristoacuteteles de acordo com o estabelecido por
determinados filoacutesofos em eacuteticas praacuteticas e entusiaacutesticas Natildeo se deve excluir nenhuma
harmonia visto que cada uma delas tem uma funccedilatildeo na sociedade Na Poeacutetica (1447 A 28
1459 B 37) o modo doacuterico corresponde a uma melodia eacutetica que suscita virtude o hipofriacutegio
a uma melodia energeacutetica que incita a atividade praacutetica e o friacutegio a uma melodia exaltada que
suscita um estado emocional freneacutetico
Enquanto as harmoniai eacuteticas destinam-se agrave educaccedilatildeo do homem livre as praacuteticas e as
entusiaacutesticas podem ser ouvidas por eles somente quando executadas por outros Para a
educaccedilatildeo ldquoimporta usar melodias eacuteticas e harmonias da mesma espeacutecierdquo Admitindo a
opiniatildeo de Platatildeo Aristoacuteteles assume que a harmonia doacuterica eacute desse tipo ldquotodos concordam
que eacute o mais sereno de todos e que possui um caraacuteter mais virilrdquo
Aristoacuteteles critica a instruccedilatildeo teacutecnica que se destina aos concursos porque eacute feita com
uma finalidade exterior a ela mesma e por isso natildeo eacute digna de homens livres Entretanto
diferentemente de Platatildeo o filoacutesofo natildeo considera que se deve abolir completamente os
concursos e espetaacuteculos Mas que utilizando as melodias cataacuterticas esses concursos deveriam
ser propiciados aos homens comuns pois ldquoeacute devido agrave corrupccedilatildeo das harmonias
(especialmente as de tom agudo e dissonantes) que as suas almas se encontram desviadas da
iacutendole naturalrdquo (Aristoacuteteles Pol 1342 A 20)
Nesse sentido o filoacutesofo condena a fala de Soacutecrates na Repuacuteblica onde haacute a recusa do
aulo entre os instrumentos considerando que este por ser excitante pode ser usado para se
produzir o efeito cataacutertico Ainda assim Aristoacuteteles rejeita o uso do aulo na educaccedilatildeo visto
que ele impede o uso da palavra (Aristoacuteteles Pol 1341 B) Do mesmo modo ele considera a
harmonia friacutegia vaacutelida visto que esta eacute em relaccedilatildeo agraves harmoniai o que o aulo eacute em relaccedilatildeo
aos instrumentos ldquoambos satildeo de teor orgiaacutestico e incutem a paixatildeordquo sendo utilizados com
frequecircncia juntos
Aleacutem disso Aristoacuteteles critica Soacutecrates por banir as harmoniai lacircnguidas em funccedilatildeo
de elas provocarem fadiga (na Repuacuteblica essas satildeo a jocircnia e a liacutedia) tendo em vista que na
velhice esse gecircnero de melodia deve ser praticado pois em decorrecircncia da idade os idosos
natildeo conseguem alcanccedilar os tons agudos Por fim Aristoacuteteles contrariando Platatildeo conclui
que a harmonia mais adequada aos jovens parece ser a liacutedia
Para Lippman um dos grandes meacuteritos de Aristoacuteteles reside no modo detalhado como
71 Ver M VI 7
34
ele aborda os princiacutepios que regem o uso da muacutesica Haacute uma ampla consideraccedilatildeo dos fatores
variados que influenciam a questatildeo ldquoo que parece errado de um ponto de vista Aristoacuteteles
mostra pode ser vaacutelido de outrordquo (Lippman 1975 p 126)
O ensino da muacutesica deve ser conduzido de maneira cuidadosa devendo ser enfatizado
com relaccedilatildeo agrave escuta e natildeo agrave praacutetica instrumental muito embora seja necessaacuterio que o
aprendiz participe da praacutetica musical A experiecircncia em instrumentos natildeo eacute o objetivo da
educaccedilatildeo musical pois a praacutetica de uma arte eacute uma atividade improacutepria para o homem livre
A praacutetica musical visa gerar uma familiaridade com a muacutesica tendo em vista o
desenvolvimento da capacidade de fazer bons julgamentos acerca dela Assim uma boa
educaccedilatildeo musical na infacircncia tornaria o indiviacuteduo apto a mais tarde avaliar a boa muacutesica e
fruiacute-la corretamente
Seria bom que esta aprendizagem natildeo fizesse penar como os que se preparam paraconcursos de profissionais72 nem se esperasse das obras realizadas o brilho e ovirtuosismo atingidos pelos que se apresentam nesses concursos nomeadamentenos relativos agrave educaccedilatildeo a muacutesica deveria ser estudada na medida suficiente parapossibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum damuacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns animais(Aristoacuteteles Pol 1341 A 10-17)73
Aristoacuteteles eacute muito menos restritivo que Platatildeo a respeito da muacutesica que pode ser
executada na polis A distinccedilatildeo entre o papel educativo e o prazer que a muacutesica proporciona
enquanto aspectos coordenados e natildeo mais dependentes permite que a muacutesica seja em certas
ocasiotildees apreciada por ela mesma
Diferentemente de Platatildeo no entanto Aristoacuteteles natildeo tem uma baixa consideraccedilatildeopela imitaccedilatildeo ele natildeo estaacute preocupado com seu afastamento da realidade masconsidera pelo contraacuterio que ela eacute natural para o homem que ela o ensina e que daacutea ele prazer Assim eacute dada agrave arte uma base na natureza humana e ela eacute consideradacomo eacutetica e prazerosa de maneira inerente nosso prazer nela entretanto natildeo se daacutedevido agraves suas propriedades sensiacuteveis mas em funccedilatildeo de um prazer no aprendizado(Lippman 1975 p 123-4)
O conceito de mimesis embora despido de seu caraacuteter metafiacutesico permanece central
72 O termo grego ldquotekhnikousrdquo traduzido aqui por ldquoprofissionaisrdquo pode significar tambeacutem ldquoespecialistasrdquo ouldquoteacutecnicosrdquo
73 Essa passagem eacute esclarecedora a respeito da relaccedilatildeo entre os projetos pedagoacutegicos aristoteacutelico e platocircnicoAmbos estatildeo preocupados em educar uma elite que saiba apreciar a muacutesica dita de caraacuteter elevado Maistarde Aristoacutexeno seguindo os passos de seu mestre tambeacutem propotildee que o estudo da muacutesica deve prepararpara uma capacidade de julgamento a respeito da praacutetica musical de seu tempo que eacute considerada vulgarEssa visatildeo natildeo sofre muitas alteraccedilotildees nos seacuteculos seguintes (como mostramos na seccedilatildeo 44 a respeito dosEstudos Ciacuteclicos)
35
no pensamento aristoteacutelico no que diz respeito ao papel psicagoacutegico da muacutesica Ao
considerar a mimesis enquanto fenocircmeno natural da vida humana a arte (e especificamente a
muacutesica) passa a ser por si mesma eacutetica e prazerosa
No que concerne agraves ideias pitagoacutericas e platocircnicas a respeito da relaccedilatildeo da alma
humana com a harmonia Aristoacuteteles limita-se a dizer que ldquoparece que em noacutes existe algo que
se assemelha a harmonia e ritmo e eacute nesse sentido que alguns saacutebios referem que a alma eacute
harmonia outros que tem harmoniardquo (Aristoacuteteles Pol 1340 B 15) Aristoacuteteles todavia
restringe sua abordagem ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo excluindo do escopo da teoria musical a
questatildeo a respeito do seu estatuto ontoloacutegico Nesse sentido
a imitaccedilatildeo eacute tanto mantida quanto alterada Seu modelo permanece sendo a accedilatildeohumana e o caraacuteter incluindo agora ateacute o que eacute feio mas ao inveacutes de se voltar agravescoisas individuais ela procura sua natureza ideal e geral um processo um tantodiferente no entanto da revelaccedilatildeo de uma realidade eterna por traacutes delas (Lippman1975 p 138)
Ao desvincular o conceito de mimesis (que estaacute na base da teoria do ethos musical) de
suas raiacutezes metafiacutesicas Aristoacuteteles abre caminho para que a muacutesica enquanto fenocircmeno
sonoro adquira uma maior autonomia visto que as alteraccedilotildees que ela promove no caraacuteter do
ouvinte natildeo dependem mais da harmonia do cosmos mas do proacuteprio fenocircmeno sonoro em
sua relaccedilatildeo com a alma humana
33 A MUacuteSICA ENQUANTO CIEcircNCIA DA MELODIA NOS ELEMENTA HARMONICA
DE ARISTOacuteXENO O MUacuteSICO
Eacute a partir do ponto de vista dos filoacutesofos peripateacuteticos que um dos mais renomados
disciacutepulos de Aristoacuteteles Aristoacutexeno74 promove uma sistematizaccedilatildeo da teoria musical
considerando-a enquanto uma ciecircncia autocircnoma desvinculada dos pressupostos metafiacutesicos
que a subjugavam anteriormente A teoria musical de Aristoacutexeno rompe com a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica de modo que a partir dela a ciecircncia da muacutesica natildeo empresta seus princiacutepios
baacutesicos da matemaacutetica e da fiacutesica mas parte de seu proacuteprio objeto de investigaccedilatildeo De acordo
com Aristoacutexeno a harmonike enquanto parte da muacutesica eacute baseada nos dados que satildeo
apreendidos atraveacutes da audiccedilatildeo Segundo Barker
74 As traduccedilotildees dos trechos da obra de Aristoacutexeno foram feitas a partir da comparaccedilatildeo das traduccedilotildees de Barker(1989) e de Roosevelt Rocha (natildeo publicada) com o texto grego dos Elementa Harmonica (TLG)
36
Sua tarefa eacute exibir a ordem interna do fenocircmeno perceptivo analisar os padrotildeessistemaacuteticos dentro dos quais ela eacute organizada mostrar como a exigecircncia de que asnotas devem caber em certo padratildeo de organizaccedilatildeo mdashse elas devem ser apreendidascomo meloacutedicas mdash explica porque algumas sequecircncias possiacuteveis de alturas formamuma melodia enquanto outras natildeo e por uacuteltimo apresentar todas as regras quegovernam a forma meloacutedica enquanto algo que flui de um grupo coordenado deprinciacutepios que descrevem uma uacutenica e determinada essecircncia a do proacuteprioldquomeloacutedicordquo ou do ldquoafinadordquo75 (Barker 1989 p 4)
Nascido em meados do seacuteculo IV aC Aristoacutexeno de Tarento estudou composiccedilatildeo e
performance musical mas focou seus estudos na Filosofia e na teoria musical
Apoacutes ter recebido de seu pai o muacutesico Espiacutentaro suas primeiras liccedilotildees musicaisAristoacutexeno seguiu os ensinamentos de um Pitagoacuterico (hellip) depois disso ele recebeuliccedilotildees de Aristoacuteteles e adquiriu entre os disciacutepulos do mestre uma reputaccedilatildeosuficiente para pretender sucedecirc-lo na direccedilatildeo da escola (Beacutelis 1986 p 10)
Aristoacutexeno passou um tempo consideraacutevel com os Pitagoacutericos antes de entrar para o
Liceu e se tornar aprendiz de Aristoacuteteles por volta de 330 aC o que provocou uma grande
mudanccedila no seu modo de pensar Apesar de ele ter deixado o Liceu depois deste ter sido
assumido por Teofrasto (porque ele proacuteprio almejava substituir Aristoacuteteles) Aristoacutexeno
permaneceu fiel aos ensinamentos aristoteacutelicos declarando-se ldquodecidido a aplicar os
princiacutepios metodoloacutegicos herdados do Estagiritardquo (Beacutelis 1986 p 11)
Seus escritos sobre teoria musical satildeo inspirados na concepccedilatildeo aristoteacutelica de
conhecimento De acordo com Annie Beacutelis Aristoacutexeno busca fundar uma ciecircncia nova e
autecircntica ldquoaquilo que ele chama legitimamente de ciecircncia harmocircnica uma disciplina
rigorosa e que esgota a totalidade dos objetos que dela dependemrdquo (Beacutelis 1986 p 170) Sua
influecircncia pode ser percebida pelo fato de que no periacuteodo Romano ele era citado
simplesmente como ldquoo muacutesicordquo76
Aristoacutexeno apresenta a ldquociecircncia acerca da melodiardquo77 ou seja a ciecircncia musical como
dividida em muitas partes A disciplina harmocircnica eacute entre elas ldquoa primeira e tem funccedilatildeo
elementar De fato ela eacute a primeira das disciplinas teoreacuteticas cuja magnitude eacute tatildeo grande
que se estende ateacute a teoria dos sistemas (systemata) e dos tons (tonos)rdquo (Aristoacutexeno El
75 Essa definiccedilatildeo eacute usada por Sexto Empiacuterico na segunda parte do Contra os Muacutesicos Ver M VI 3876 Sua relevacircncia no periacuteodo romano pode ser indicativa do motivo pelo qual Sexto Empiacuterico o utiliza como
paradigma de muacutesico e sua teoria como paradigma de ciecircncia musical Sexto Empiacuterico pretende combater asvisotildees mais comuns a respeito da teoria musical e Aristoacutexeno eacute por sua vez considerado ldquoo muacutesicordquo no quediz respeito agrave ciecircncia musical Nesse sentido satildeo os aspectos teacutecnicos da teoria musical de acordo com opensamento de Aristoacutexeno que satildeo combatidos
77 ldquoMelodiardquo traduz ldquoto melosrdquo Aqui tem um sentido amplo que inclui melodia ritmo e palavra
37
Harm 11)
As questotildees de tipo mais elevado que satildeo consideradas jaacute quando a muacutesica praacutetica(poietike)78 utiliza os sistemas e os tons natildeo mais pertencem a ela mas agrave ciecircnciaque compreende essa e as outras ciecircncias atraveacutes das quais considera-se tudo quediz respeito agrave muacutesica Eacute isso que diz respeito ao muacutesico (Aristoacutexeno El Harm12)
Diante dessas definiccedilotildees o primeiro recorte que se faz eacute o de que a harmonike natildeo faz
parte do acircmbito praacutetico A harmonike eacute apresentada como parte de uma ciecircncia mais ampla
que envolve o estudo de tudo que tem a ver com muacutesica
A ciecircncia harmocircnica divide-se em sete partes a saber mdash a discussatildeo das notas
intervalos gecircneros sistemas tons modulaccedilatildeo e a uacuteltima estaacute ligada agrave proacutepria composiccedilatildeo
meloacutedica79 As notas satildeo a base para a composiccedilatildeo de melodias
visto que muitas formas de melodias de todos os tipos vecircm a ser em notas que satildeoelas proacuteprias as mesmas e imutaacuteveis eacute evidente que sua variedade depende do usoque eacute dado agraves notas e isto noacutes chamamos composiccedilatildeo meloacutedica Portanto a ciecircncialigada agrave afinaccedilatildeo harmocircnica depois de percorrer as partes que foram mencionadasatinge sua finalidade aqui (Aristoacutexeno El Harm 238 20)80
A composiccedilatildeo de melodias (melopoiia) aparece como finalidade da harmonike
Todavia tal finalidade natildeo parece estar ligada agrave ldquopraacutetica composicionalrdquo (poietike) mas
antes ao conhecimento dos princiacutepios baacutesicos que a norteiam A harmonike natildeo eacute da ordem
da tekhne mas eacute uma teoria Tambeacutem de acordo com Beacutelis eacute evidente que Aristoacutexeno a
distingue tambeacutem da ldquopoeacuteticardquo que cria e da muacutesica ldquopraacuteticardquo que utiliza o material
musical81 Segundo a comentadora Aristoacutexeno
(hellip) definitivamente distingue em todo caso a teoria da poeacutetica a harmonike elediz eacute a primeira disciplina teoreacutetica ela natildeo se estende aleacutem do que concerne oconhecimento dos sistemas de tons (noacutes utilizamos essa expressatildeo como umatalho) mas ela investiga as questotildees mais elevadas que haacute enquanto a poeacuteticautiliza os sistemas e os tons natildeo lhe pertencendo mais (Beacutelis 1986 p 171)
78 O termo ldquopoietikerdquo inclui os aspectos praacuteticos da composiccedilatildeo estaacute ligado ao proacuteprio fazer musical VerBarker (2007 p 139) e Beacutelis (1986 p 171)
79 Discutimos o uso dessa definiccedilatildeo em Sexto Empiacuterico na seccedilotildees 511 e 5380 Para Aristoacutexeno as notas estatildeo na base da ciecircncia dos sons Eacute nesse sentido que Sexto Empiacuterico ataca o
conceito de som contido na definiccedilatildeo de nota Se a nota eacute a ldquoincidecircncia de um som em uma tensatildeordquo se natildeohaacute uma definiccedilatildeo do conceito de som natildeo haacute definiccedilatildeo do conceito de nota Ver M VI 52 Assim se amuacutesica eacute baseada nas notas e as notas no som ao mostrar a inconsistecircncia do conceito de som (mostrando asua ldquoinexistecircnciardquo) destroacutei-se tambeacutem toda a muacutesica
81 Ver Beacutelis (1986 p 187 n 4)
38
Pode-se considerar que cada gecircnero meloacutedico eacute um tipo de composiccedilatildeo Aristoacutexeno
apresenta como escopo de suas exposiccedilotildees o sentido em que cada tipo de composiccedilatildeo tem
um efeito (de acordo com sua proacutepria ressalva isso se a muacutesica tiver esse poder)
No momento importa frisar que Aristoacutexeno define como objeto de seus discursos
cada uma das composiccedilotildees meloacutedicas que segundo a interpretaccedilatildeo de Barker (2007 p 232)
ldquonatildeo satildeo composiccedilotildees individuais mas estilos de composiccedilatildeordquo82 Assim a harmonike teria
como finalidade natildeo a praacutetica composicional mas a compreensatildeo dos estilos de composiccedilatildeo
Tal interpretaccedilatildeo eacute corroborada tambeacutem pela seguinte passagem do segundo livro dos
Elementa Harmonica
Alguns imaginam que essa ciecircncia eacute de grande significacircncia alguns deles supondoateacute mesmo que ouvir a um discurso sobre harmonike iraacute fazecirc-los natildeo apenasmuacutesicos mas tambeacutem melhores quanto ao caraacuteter Essas pessoas ouviram mal osdiscursos nas nossas exposiccedilotildees ldquoo que tentamos fazer eacute mostrar para cada tipo decomposiccedilatildeo meloacutedica (ton melopoiion hekasten) e para a muacutesica em geral que tal etal tipo prejudica o caraacuteter enquanto tal e tal tipo eacute uacutetilrdquo e natildeo tendo ouvido issoeles tambeacutem natildeo ouviram nossa qualificaccedilatildeo ldquona medida em que a muacutesica pode seruacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30)
Acerca desta passagem resta assinalar que no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre os tipos
de composiccedilatildeo meloacutedica e seu efeito no ouvinte de fato Aristoacutexeno eacute bastante reticente ao
tratar da relaccedilatildeo entre muacutesica e virtude
Aristoacutexeno se dedica a corrigir dois excessos alguns imaginam por saberem osrudimentos da harmonike que satildeo muacutesicos por completo mas tambeacutem que setornaram moralmente melhores Outros ao contraacuterio relegaram esta ciecircncia a umaposiccedilatildeo despreziacutevel se contentando em ignoraacute-la Optando pela posiccedilatildeo do meioAristoacutexeno sustenta que a harmonike natildeo eacute mais que uma parte do saber do muacutesicoem si ela natildeo tem efeito moral seus ouvintes aparentemente natildeo apreenderam seupropoacutesito sobre os tipos de melopeia dos quais alguns foram qualificadosprejudiciais e outros uacuteteis (hellip) (Beacutelis 1986 p 97)
Aleacutem disso segundo Beacutelis ldquoAristoacutexeno provavelmente mostrou o valor musical de
uma e outra melopeia quer dizer tal e tal forma de combinaccedilatildeo de sons onde certos ouvintes
acreditaram reconhecer o valor moral das tonalidadesrdquo (Beacutelis 1986 p 172) mas este natildeo
constitui o foco principal de sua teoria
Como apresentamos cabe agravequele que eacute chamado ldquomuacutesicordquo dominar muitas
disciplinas ldquoA harmonike eacute apenas uma parte da habilidade do muacutesico tal como satildeo as
82 Para uma discussatildeo apurada dessa questatildeo ver Barker (2007 cap 9)
39
ciecircncias do ritmo da meacutetrica e dos instrumentosrdquo83 (Aristoacutexeno El Harm 232)
A harmonike eacute designada como ciecircncia mas como uma ciecircncia particular que seraacuteum elo de um conjunto cientiacutefico Esboccedila-se jaacute uma teoria do saber musical porinteiro onde a exigecircncia de rigor pesa sobre todas as partes do saber que o muacutesicodeve dominar para merecer seu tiacutetulo de mousikos (Beacutelis 1986 p 171)
Conhecer os diversos ramos da ciecircncia da muacutesica natildeo significa praticar muacutesica Se
satildeo esses conhecimentos (da harmonike do ritmo da meacutetrica e dos instrumentos) que
Aristoacutexeno atribui ao muacutesico ldquomuacutesicordquo aqui natildeo diz respeito ao muacutesico praacutetico mas agravequele
que estuda a muacutesica como um todo De acordo com Barker
quando usado sem qualificaccedilatildeo e no contexto de uma compreensatildeo que envolvetodos os acircmbitos da muacutesica o termo mousikos eacute mais naturalmente lido em umsentido amplo indicando uma pessoa de uma ampla e sofisticada cultura musicalindependentemente de eles serem tambeacutem especialistas em algum ramo da arte(Barker 2007 p 140)
Assim para Aristoacutexeno o muacutesico natildeo eacute em primeira instacircncia aquele que pratica a
arte da muacutesica mas sim aquele que estudou todas as aacutereas da ciecircncia musical possuindo os
conhecimentos necessaacuterios para compreendecirc-la e com isso emitir juiacutezos criacuteticos a respeito
da muacutesica praacutetica Nesse sentido para fazer um julgamento adequado de uma peccedila musical o
muacutesico deve observar os trecircs elementos baacutesicos que a compotildeem as notas a duraccedilatildeo riacutetmica e
a siacutelaba A percepccedilatildeo e o pensamento (dianoia) devem estar um ao lado do outro na formaccedilatildeo
do julgamento
Eacute evidente que compreender melodias eacute uma questatildeo de seguir as coisas com aaudiccedilatildeo e a razatildeo na medida em que elas vem a ser no que diz respeito a todas assuas distinccedilotildees pois eacute em um processo de vir a ser que consiste a melodia comosatildeo tambeacutem todas as outras partes da muacutesica A compreensatildeo da muacutesica vem deduas coisas percepccedilatildeo e memoacuteria pois noacutes temos que apreender o que estaacute vindo aser e lembrar o que veio a ser (Aristoacutexeno El Harm 238-9)
O objetivo da investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute a compreensatildeo84 (Aristoacutexeno El Harm 41 15-
83 Organike aparece aqui junto agrave episteme Jaacute na introduccedilatildeo do Contra os Muacutesicos episteme eacute oposta agraveempeiria e a organike aparece ligada a essa uacuteltima Ver seccedilatildeo 51
84 Ao explicar que o conceito de harmonike supera a mera notaccedilatildeo Aristoacutexeno argumenta que ldquonotaccedilatildeo natildeo eacutenem mesmo uma parte dela a menos que escrever metros seja tambeacutem uma parte da ciecircncia do metro Masse isso se aplica aqui ndash que aquele que pode escrever o metro jacircmbico natildeo eacute necessariamente aquele quemelhor compreende o que o jacircmbico realmente eacute ndash se aplica tambeacutem agraves melodiasrdquo (Aristoacutexeno El Harm239) Nesse sentido a notaccedilatildeo natildeo participa da investigaccedilatildeo cientiacutefica que compreende apenas o acircmbitoteoacuterico Isso corrobora com a ideia de que a ciecircncia musical natildeo abrange a execuccedilatildeo de instrumentos ou apraacutetica composicional
40
6) Em funccedilatildeo disso ldquoo saber harmocircnico natildeo se reduziraacute mais a mediccedilatildeo de intervalos nem agrave
assimilaccedilatildeo das relaccedilotildees numeacutericasrdquo (Beacutelis 1986 p 172) A compreensatildeo pode e deve ser
usada para instruir aqueles que julgam a muacutesica que eacute executada na praacutetica a fim de garantir
que ela seja executada de maneira correta85 A ideia de que o conhecimento teacutecnico deve ser
adquirido para que se possa julgar as peccedilas que satildeo executadas jaacute aparece tambeacutem em
Platatildeo86 Para o filoacutesofo eacute preciso apreender o que eacute correto acerca da peccedila para se julgar
uma muacutesica de maneira inteligente tendo desenvolvido uma percepccedilatildeo aguccedilada e uma
compreensatildeo dos ritmos e das harmonias
Segundo Beacutelis
os dois autores rejeitam com um mesmo desprezo o leigo que eles opunham aoconhecedor quando trata-se de julgar uma muacutesica ou sentir prazer com ela (hellip) Domesmo modo Aristoacutexeno distingue o leigo do conhecedor uacutenico qualificado parajulgar a beleza de uma aacuteria e acusa certos harmonicistas de lisonjear os leigos aofazer da notaccedilatildeo das canccedilotildees o termo do aprendizado da harmonia (Beacutelis 1986 p99)87
O conhecedor da muacutesica eacute para ambos aquele que tem as habilidades necessaacuterias ao
julgamento de uma peccedila musical sendo a harmonike uma dessas habilidades Tambeacutem na
Poliacutetica a muacutesica eacute situada entre as disciplinas que fazem parte da educaccedilatildeo liberal destinada
agrave formaccedilatildeo de uma elite intelectual Para Aristoacuteteles como apontamos anteriormente o
objetivo da participaccedilatildeo dos jovens na praacutetica musical eacute desenvolvimento da capacidade de
julgar peccedilas musicais Desse modo a muacutesica poderia ser praticada na juventude ndash como
forma de entretenimento e ainda assim sob um controle riacutegido de quais melodias ritmos e
instrumentos podem ser utilizados ndash mas ao atingirem a idade adulta devem abster-se da
praacutetica mantendo como resultado desse aprendizado a capacidade de julgar e fruir das coisas
de maneira correta
como para ajuizar eacute necessaacuterio que se participe da execuccedilatildeo as crianccedilas devempraticar a muacutesica desde tenra idade Chegados agrave idade avanccedilada devem pocirc-la agraveparte pois eacute devido agrave aprendizagem na infacircncia que poderatildeo mais tarde avaliar aboa muacutesica e fruiacute-la corretamente (Aristoacuteteles Pol 1340 B 35)
85 Enquanto para filoacutesofos como Platatildeo a correccedilatildeo tem uma funccedilatildeo moral para Aristoacutexeno diz respeito aestar de acordo com o conhecimento cientiacutefico
86 Platatildeo Leis 670 BndashC Ti 70 A-B87 Contudo haacute uma diferenccedila fundamental entre Platatildeo e Aristoacutexeno no que diz respeito ao efeito da muacutesica na
alma ldquoEacute verdade que ele [Aristoacutexeno] reconhece que a muacutesica afeta a alma que certas melopeias satildeo uacuteteise outras prejudiciais mas natildeo admite que a harmonia possa de qualquer modo incitar a virtuderdquo (Beacutelis1984 p 100)
41
Aristoacuteteles propocircs ainda que as habilidades teacutecnicas musicais deveriam ser estudadas
ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas melodias e ritmos sem se limitar agrave
parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos escravos crianccedilas e alguns
animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A)
Se eacute difiacutecil ligar Aristoacuteteles a esta ou aquela escola de muacutesica - apesar de algunstextos que se mostram bem proacuteximos das ideias pitagoacutericas - natildeo haacute duacutevidas aocontraacuterio que ele toma partido dos tradicionalistas que reprovam as inovaccedilotildeesintroduzidas pelos virtuosos na praacutetica musical (Beacutelis 1986 p 56)
Aristoacutexeno tambeacutem manteacutem o conservadorismo de seus antecessores (Platatildeo e
Aristoacuteteles) no que diz respeito ao ldquocultordquo agrave muacutesica do passado em oposiccedilatildeo ao virtuosismo
de seus contemporacircneos O conhecimento da arte da combinaccedilatildeo das notas a harmonike
seria um dos conhecimentos necessaacuterios agrave Educaccedilatildeo Liberal que se contrapotildee ao gosto do
senso comum
Segundo Barker o texto de Aristoacutexeno revela uma progressiva divisatildeo entre o gosto
popular do periacuteodo (disseminado nas disputas entre muacutesicos profissionais que satildeo
mencionadas por Platatildeo e Aristoacuteteles) e o gosto dos intelectuais do seacuteculo IV aC Para eles
a capacidade de se elevar acima do amor das massas pelo virtuosismo e pelosefeitos melodramaacuteticos e formar julgamentos musicais sobre uma base esteacutetica eintelectualmente sofisticada se tornou um marco de seu status superior Na medidaem que ele representa a teoria harmocircnica como um dos instrumentos essenciais naldquocaixa de ferramentas intelectuaisrdquo daquele que julga Aristoacutexeno estaacute continuandoo projeto de resgataacute-la das matildeos do mero ldquoartesatildeordquo com o qual ela havia comeccediladoe recomendando-a agrave atenccedilatildeo das cultas classes superiores para as quais em temposanteriores ela teria parecido tatildeo irrelevante quanto aprender a cozinhar (Barker2007 p 234)
Se por um lado Aristoacutexeno daacute um passo diferente em relaccedilatildeo aos seus antecessores
circunscrevendo a ciecircncia musical ao acircmbito sonoro por outro em seu conservadorismo ele
manteacutem ainda uma cisatildeo entre teoria e praacutetica musical e uma divisatildeo hieraacuterquica entre aquele
que pratica e aquele que julga a arte musical
34 A REFUTACcedilAtildeO AO PAPEL EacuteTICO DA MOUSIKE NO DE MUSICA DE FILODEMO
Se muito se teorizou na Antiguidade a respeito da importacircncia da muacutesica na
sociedade houve por outro lado um filoacutesofo que dedicou-se agrave refutaccedilatildeo das opiniotildees sobre
42
muacutesica difundidas em sua eacutepoca Filodemo de Gadara88 filoacutesofo epicurista do primeiro
seacuteculo aC (c 110 ndash 40) em sua obra intitulada De Musica dedica-se a refutar as
consideraccedilotildees favoraacuteveis do filoacutesofo estoico89 Dioacutegenes da Babilocircnia a respeito do papel da
muacutesica
O meacutetodo de Filodemo consiste em apresentar as afirmaccedilotildees de seu oponente e em
seguida criticar cada uma delas90 A discussatildeo sobre muacutesica apresentada nessa obra natildeo diz
respeito agrave questotildees teacutecnicas musicais tal como podemos observar na obra de Aristoacutexeno
mas somente agraves questotildees relacionadas ao ensino da muacutesica ao seu papel moral e educacional
devido ao modo como esta afetaria a alma tal como Platatildeo e Aristoacuteteles a abordaram91
Dioacutegenes da Babilocircnia92 viveu entre 240 ndash 152 aC Embora natildeo tenhamos acesso aos
seus escritos apenas a fragmentos citados por outros autores considera-se que ele reformulou
as posiccedilotildees de seus antecessores a tal ponto que sua visatildeo veio a ser a ortodoxa de sua escola
nos seacuteculos II e I aC Segundo Woodward (2009 p 13) ldquoo fato de que Dioacutegenes seja o
principal oponente de Filodemo no De Retorica e tambeacutem no De Musica IV pareceria
sustentar essa sugestatildeordquo De acordo com Delattre
certamente se Dioacutegenes por sua vez agindo dessa maneira natildeo fazia nada mais doque se inscrever na jaacute longa tradiccedilatildeo que via na muacutesica uma insubstituiacutevelpropedecircutica para a virtude o que parece contudo ter distinguido claramente nossoEstoico de todos os seus antecessores desde Pitaacutegoras eacute uma vontade bem marcadade fundamentar cientificamente isto eacute com base em uma teoria coerente dasensaccedilatildeo e do conhecimento as crenccedilas e prejulgamentos repetidos aqui e ali depoisdo seacuteculo VI aC (Delattre 2007 p 3)
A preocupaccedilatildeo fundamental do estoico parece ter sido sobretudo a de afirmar a
eficaacutecia eacutetico-psicoloacutegica da muacutesica para o que ele buscou fundar uma ciecircncia ldquo() uma
verdadeira psicologia musical caracterizada por leis imutaacuteveis necessaacuterias e universaisrdquo
(Delattre 2007 p 16)93
88 Para as citaccedilotildees do De Musica nossa traduccedilatildeo parte da versatildeo francesa de Delattre (2007)89 Note-se que os filoacutesofos epicuristas foram tambeacutem o principal alvo da refutaccedilatildeo ceacutetica em outras questotildees90 Tal como no caso de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos podemos apenas conjecturar a respeito de sua
visatildeo positiva sobre o tema91 Estima-se que a refutaccedilatildeo de Filodemo agraves afirmaccedilotildees de Dioacutegenes sobre a muacutesica seja tambeacutem uma defesa
contra as acusaccedilotildees de ignoracircncia difundidas contra a escola epicurista Essas acusaccedilotildees deram-se sobretudoem funccedilatildeo da criacutetica epicurista aos Estudos Ciacuteclicos Tais acusaccedilotildees satildeo reafirmadas por Sexto Empiacuterico noinicio do Contra os Professores Cf Woodward (2009 p 12 222)
92 Note-se que os filoacutesofos Estoicos figuram entre os principais alvos da refutaccedilatildeo ceacutetica Dioacutegenes foi pupilode Crisipo um dos principais pensadores desta doutrina que figura entre aqueles que tambeacutem satildeo refutadospor Sexto Empiacuterico
93 Tudo se passa como se Dioacutegenes pretendesse reunir em suas teorias a um soacute tempo as preocupaccedilotildeespsicagoacutegicas de Platatildeo e o rigor cientiacutefico de Aristoacutexeno
43
Entre as teses sobre muacutesica apresentadas por Dioacutegenes a sua relaccedilatildeo com a eacutetica eacute
colocada em primeiro plano o estoico defende que a muacutesica estaacute em estreita relaccedilatildeo com o
belo e com o bem considerando assim como Platatildeo que a muacutesica teria o poder de
harmonizar as partes da alma e aleacutem disso que sua utilidade estaacute ligada ao lazer mas que
natildeo se deve exercitaacute-la ao niacutevel profissional94
Dioacutegenes defende a utilidade da muacutesica sob duas perspectivas Por um lado o ensino
da muacutesica eacute importante desde a infacircncia para a aquisiccedilatildeo das virtudes e por outro a muacutesica
ldquomais que o desenho daacute ao ser humano e desenvolve nele o senso de beleza puro e
desinteressadordquo (Filodemo De mus col 27)
A respeito do poder da muacutesica sobre o caraacuteter do ouvinte Dioacutegenes teria afirmado
reiterando aquilo que jaacute era bem estabelecido por todos de sua eacutepoca que ldquoo fato de que as
melodias recebem qualificativos eacuteticos prova que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticasrdquo
(Filodemo De mus col 19)95
As afirmaccedilotildees de Dioacutegenes satildeo a um soacute tempo histoacutericas e demonstrativas Deste
modo para Delattre Dioacutegenes se coloca sem o saber como representante de uma cultura
livresca vasta ldquomas que sobrecarrega o leitor em um acuacutemulo de provas cuja credibilidade e
confianccedila eram geralmente pouco confiaacuteveis e que poderiam de maneira definitiva ocultar a
realidade musical e moral contemporacircnea de Dioacutegenesrdquo (Delattre 2007 p 18) De fato as
autoridades filosoacuteficas e literaacuterias a que ele recorre datam de um outro periacuteodo ao qual a sua
realidade musical jaacute natildeo corresponde
Assim para Dioacutegenes o muacutesico torna-se essencialmente um especialista nos efeitospsicoloacutegicos e eacuteticos que satildeo suscetiacuteveis de produzir as diferentes gamas ritmos emelodias Desse modo o estoico perde totalmente de vista nessa atividade (que oepicurista chama de delirante) a uacutenica noccedilatildeo que vale para um disciacutepulo deEpicuro a do prazer musical (Delattre 2007 p 16)
Ora para Filodemo
todas as tentativas de teorizar a psicologia musical satildeo vatildes Eacute por essa razatildeoprecisamente que o muacutesico em busca de um saber que lhe permita reconhecerdistintamente as disposiccedilotildees nas quais se encontram os oacutergatildeos sensoriais quaissejam elas estaacute em busca de uma ciecircncia do inexistente (Filodemo De Mus col117 3-10)96
94 Ver Filodemo De Mus (col 6-12)95 Essa proposiccedilatildeo exemplifica o tipo de posicionamento estoico que o ceacutetico considera dogmaacutetico pois daacute
ares de verdade a uma mera suposiccedilatildeo O fato de que as melodias recebem qualificativos eacuteticos natildeo provaapenas exemplifica a crenccedila que as pessoas tecircm de que a muacutesica traz disposiccedilotildees eacuteticas
96 Observa-se aqui uma argumentaccedilatildeo anaacuteloga agravequela que aparece na segunda parte do Contra os Muacutesicos
44
O pensamento estoico eacute refutado por Filodemo porque para os estoicos a sensaccedilatildeo eacute
dotada de inteligibilidade sendo o veiacuteculo do conhecimento imediato da realidade97 Segundo
Woodward (2009 p 18) ldquoa muacutesica portanto requereria alguma qualidade racional para ter
qualquer valor psicoloacutegico para o estoico visto que a alma teria de (a) entender a impressatildeo
racional para poder (b) dar assentimento ou rejeitar a proposiccedilatildeo colocadardquo Entretanto para
Filodemo a ideia estoica de atribuir logos ao sentido da audiccedilatildeo seria absurda visto que de
acordo com a filosofia epicurista o mesmo som atinge qualquer ouvinte de modo anaacutelogo e a
ele satildeo acrescentadas qualidades pelo proacuteprio ouvinte de acordo com suas experiecircncias
particulares
Toda a concepccedilatildeo de que a muacutesica pode afetar a alma diretamente aleacutem dos sinaisde misticismo pitagoacuterico entra em conflito com a concepccedilatildeo epicurista depercepccedilatildeo De acordo com Epicuro todos os sentidos satildeo semelhantes no seumeacutetodo de operaccedilatildeo o som natildeo tem propriedades peculiares Aleacutem disso todasensaccedilatildeo eacute por si mesma desprovida de significado cognitivo (hellip) Portanto elanatildeo tem physei [por natureza] efeito cognitivo pois os sons natildeo adquiremsignificado ateacute que a doxa [opiniatildeo] entre em accedilatildeo e se natildeo haacute efeito cognitivonatildeo haacute efeito eacutetico pois afecccedilotildees e moral soacute podem ser influenciadas por meioscognitivos () (Wilkinson 1938 p 178)
Em funccedilatildeo disso o som natildeo teria a capacidade de mover a alma atraveacutes da imitaccedilatildeo
A melodia sendo irracional nem potildee a alma em movimento quando ela estaacute em repouso
nem leva a alma agrave condiccedilatildeo natural de seu caraacuteter e tambeacutem natildeo a acalma quando ela estaacute
agitada Movendo-se em qualquer direccedilatildeo aleacutem disso tambeacutem natildeo pode transformaacute-la
diminuindo ou intensificando uma disposiccedilatildeo existente
pois a muacutesica natildeo eacute algo capaz de imitar como alguns98 imaginam em sonho nem eacuteverdade que ndash como nosso adversaacuterio ltpretendegt - apresentando semelhanccedilas decaraacuteteres que natildeo tecircm de modo algum o poder de imitar ela faccedila aparecer todas asqualidades de caraacuteteres de modo que haja entre elas a da magnificecircncia e a dabaixeza a da coragem e a da ausecircncia de coragem a da reserva e a da audaacutecia natildeomais do que aquilo que pode a arte da culinaacuteria (Filodemo De Mus col 117)
O proacuteximo passo de Filodemo eacute sustentar que tais qualidades satildeo erroneamente
atribuiacutedas agrave muacutesica porque Dioacutegenes (e consequentemente todos aqueles com quem ele97 A representaccedilatildeo traz nela a sua evidecircncia (que exige que se decirc o assentimento) O assentimento a uma
representaccedilatildeo verdadeira eacute um ato voluntaacuterio da mente isso eacute o que os estoicos chamam ldquoapreensatildeordquo Oassentimento a uma sensaccedilatildeo assim como toda accedilatildeo eacute um ato voluntaacuterio As impressotildees humanas satildeodesde sua ocorrecircncia racionais por isso eacute necessaacuterio o assentimento antes da impressatildeo inicial conduzir agraveaccedilatildeo
98 Referecircncia a Platatildeo (Leis 699 B-E) atribuiacuteda a Dioacutegenes por Filodemo (De Mus col 51) Ver Delattre(2007 p 214 n 5)
45
concorda) confunde muacutesica e poesia Tendo em vista que Dioacutegenes rejeitava a muacutesica
instrumental de seu tempo os poderes atribuiacutedos agrave muacutesica por Dioacutegenes dizem respeito agrave
mousike no sentido antigo do termo ou seja a uniatildeo entre melodia ritmo e texto poeacutetico
Muito embora de acordo com o sistema estoico o proacuteprio som tenha logos por conseguinte
um significado e o poder de mover a alma do ouvinte
Jaacute para Filodemo os compositores de muacutesica instrumental assim nomeados natildeo soacute
por ele mas no uso comum de seu tempo e tambeacutem por Aristoacutexeno emitem sons desprovidos
de significaccedilatildeo tanto quando tocam peccedilas instrumentais quanto acompanhando o canto
A discordacircncia fundamental aqui eacute entre o conceito de mousike enquanto melodia
ritmo e palavra e o de mousike enquanto ldquoarte dos sonsrdquo Filodemo toma isso como ponto de
partida sustentando que os efeitos que a muacutesica exerce na alma do ouvinte se datildeo em funccedilatildeo
do significado das palavras e que o som por si mesmo natildeo tem significado algum sendo
desprovido de razatildeo (logos) Nesse sentido ele considera que
se Simonides e Piacutendaro foram muacutesicos eles foram tambeacutem poetas que enquantomuacutesicos compuseram melodias desprovidas de significaccedilatildeo e por outro ladoenquanto poetas compuseram as palavras e que se satildeo uacuteteis (talvez natildeo sejammesmo a partir deste ponto de vista ou muito pouco) elas natildeo satildeo uacuteteis apenas paraos muacutesicos ou mais uacuteteis para os muacutesicos mas satildeo igualmente uacuteteis para todas aspessoas educadas (Filodemo De Mus col 143 20-40)99
Assim de acordo com Wilkinson (1938 p 175-6) ldquoenquanto um muacutesico no sentido
antigo pode ter um efeito moral nomeadamente atraveacutes de suas palavras no novo e restrito
sentido ele natildeo pode ter nenhum Ele natildeo pode excitar ou acalmar nenhuma sensaccedilatildeo em
particularrdquo
Segundo Filodemo a muacutesica natildeo tem nenhum ethos intriacutenseco As qualidades dos
modos musicais natildeo se datildeo a partir da sensaccedilatildeo mas da opiniatildeo ldquoNessas condiccedilotildees no que
diz respeito agraves muacutesicas enarmocircnica e cromaacutetica natildeo eacute pela sua percepccedilatildeo qualitativa da qual
a razatildeo natildeo participa mas pelas opiniotildees formadas a partir dela que as pessoas entram em
desacordordquo (Filodemo De Mus col 116 10-20) Para o filoacutesofo epicurista se as pessoas
reagem de maneiras diferentes ao mesmo tipo de muacutesica isso se daacute em funccedilatildeo de sua
experiecircncia de vida e cultura Nesse sentido a muacutesica natildeo teria nenhum papel educacional
poderia ser prazerosa e a sua valoraccedilatildeo dependeria apenas do contexto e das associaccedilotildees de
ideias feitas pelos seus ouvintes
99 A relaccedilatildeo entre muacutesica e poesia eacute retomada por Sexto Empiacuterico em M VI 28 e a questatildeo da utilidade em MVI 33
46
4 O COMBATE AO DOGMATISMO NAS DISCIPLINAS DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
NO CONTRA OS PROFESSORES
O Contra os Muacutesicos sexto livro do Contra os Professores insere-se em uma
proposta maior de Sexto Empiacuterico que tem como objetivo refutar os ensinamentos
(mathemata) que faziam parte dos Estudos Ciacuteclicos (enkyklios paideia) Na introduccedilatildeo do
Contra os Professores Sexto Empiacuterico explica que a refutaccedilatildeo agraves disciplinas dos Estudos
Ciacuteclicos se daacute porque os ceacuteticos100
a respeito das disciplinas (mathemata) tiveram a mesma experiecircncia que tiveram noque diz respeito agrave Filosofia como um todo Pois tal como eles se aproximaram daFilosofia com o desejo de alcanccedilar a verdade mas quando se depararam com oconflito da igual forccedila das opiniotildees e com a anomalia das coisas suspenderam ojuiacutezo - assim tambeacutem no caso das disciplinas [dos Estudos Ciacuteclicos] quando elespuseram-se a dominaacute-las visando tambeacutem aqui aprender a verdade elesencontraram dificuldades natildeo menos seacuterias que eles natildeo omitiram Do mesmomodo noacutes tambeacutem seguiremos o mesmo meacutetodo que eles e buscaremos natildeo emespiacuterito de controveacutersia selecionar e apresentar os argumentos fundamentais contraos professores (M I 6-7)
Infelizmente o autor natildeo daacute indicaccedilotildees precisas do que sejam as enkyklia mathemata
porque sua refutaccedilatildeo dirige-se agravequeles que jaacute satildeo suficientemente instruiacutedos nelas Apesar da
breve menccedilatildeo de Sexto consideramos tal como fundamental para se compreender o sentido
em que cada uma das disciplinas - entre elas a muacutesica - eacute refutada
Entretanto em algumas traduccedilotildees e comentaacuterios ao Contra os Professores a expressatildeo
enkyklia mathemata eacute ou simplesmente igualada a ldquoArtes Liberaisrdquo ou traduzida como
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo101 Por sua imprecisatildeo e brevidade tais definiccedilotildees comprometem a
compreensatildeo do escopo da refutaccedilatildeo do Contra os Professores e consequentemente
obscurecem o papel dessa refutaccedilatildeo na filosofia ceacutetica pirrocircnica
Em funccedilatildeo disso antes de analisarmos o Contra os Muacutesicos cabem ainda algumas
etapas Primeiramente eacute preciso compreender em que consiste o ceticismo pirrocircnico seus
meacutetodos e seus objetivos A partir disso poderemos observar a relaccedilatildeo entre o objeto
100 Para as citaccedilotildees do Contra os Professores (exceto M VI) utilizamos as traduccedilotildees de Bury (1933) e Cavero(1997) como referecircncia adaptando-as de acordo com o texto grego quando julgamos necessaacuterio
101 Observe-se as seguintes ediccedilotildees Cavero (1997 p 7-8) simplesmente iguala as expressotildees grega e latinaGreaves (1986 p 18) limita-se a apresentar os livros do Adversus Mathematikous descrevendo-os comouma ldquorefutaccedilatildeo dos mathematikoi (ou professores) das seis disciplinas conhecidas como Estudos Ciacuteclicos eque constituiacuteam o curriacuteculo baacutesico da educaccedilatildeo antigardquo Bury (1933 p 6-7) explica em uma nota agrave suatraduccedilatildeo que as enkyklia mathemata satildeo ldquoos conteuacutedos da educaccedilatildeo geral preacute-profissional que inclui aastronomia geometria muacutesica gramaacutetica e retoacutericardquo Dentre as ediccedilotildees que utilizamos como referecircncia aediccedilatildeo de Pellegrin (2002) eacute a uacutenica que em sua introduccedilatildeo aprofunda o tema
47
principal da refutaccedilatildeo ceacutetica a Filosofia e o tipo de conhecimento refutado no Contra os
Professores as artes (tekhnai) Para isso aprofundaremos o sentido da Enkyklios Paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico chamando atenccedilatildeo para a presenccedila constante da mousike enquanto
uma das disciplinas que a compotildeem
Tendo claro o objeto ao qual a refutaccedilatildeo se dirige poderemos nos ater agraves
peculiaridades do estilo argumentativo utilizado por Sexto Empiacuterico para a refutaccedilatildeo das
mathemata Com isso por fim teremos as ferramentas necessaacuterias para no uacuteltimo capiacutetulo
compreendermos o sentido dos argumentos que Sexto Empiacuterico utiliza para refutar a mousike
no Contra os Muacutesicos
41 A FINALIDADE DO CETICISMO PIRROcircNICO E O COMBATE AO DOGMATISMO
NA FILOSOFIA E NAS ARTES
ldquoPor amor agrave humanidade o Ceacutetico quer curar atraveacutes da argumentaccedilatildeo na medida do
possiacutevel o orgulho e a precipitaccedilatildeo dos Dogmaacuteticosrdquo (HP III 280)102 Nas Hipotiposes
Pirronianas o ceticismo pirrocircnico eacute apresentado por Sexto Empiacuterico como uma habilidade
de opor phenomena e noumena (objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel e objetos do pensamento)103 O
igual peso (isostheneia) das coisas e afirmaccedilotildees colocadas em oposiccedilatildeo gera segundo Sexto
um estado de suspensatildeo do juiacutezo (epokhe) - ldquoum estado mental por meio do qual nem
afirmamos nem negamosrdquo (HP I 10) Isso no que diz respeito ao que se relaciona agrave opiniatildeo
(doxa) leva agrave tranquilidade da alma (ataraxia) Visto que haacute acontecimentos inevitaacuteveis
tendo observado as perturbaccedilotildees adicionais geradas pela crenccedila de que algo eacute bom ou mau
por natureza essa praacutetica visa eliminar tal crenccedila adicional promovendo assim afecccedilotildees
moderadas (metriopatheia) (HP I 30)
O princiacutepio (arkhe) causal do ceticismo eacute a busca pela tranquilidade da alma Como
explica Sexto
ldquoHomens de talentordquo perturbados com as anomalias nas coisas e confusos acercade quais mereciam assentimento esforccedilaram-se em descobrir o que eacute verdadeiro e o
102 Para as citaccedilotildees das Hipotiposes Pirronianas de Sexto Empiacuterico traduccedilatildeo nossa para o portuguecircs a partir daediccedilatildeo de Mates (1996)
103 Note-se que neste momento ldquota phainomenardquo e ldquota noumenardquo devem ser compreendidos de modo estritoos primeiros satildeo objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel enquanto os segundos satildeo objetos do pensamento Maisadiante ldquoto phainomenonrdquo ou seja aquilo que aparece incluiraacute tanto os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevelquanto os objetos do pensamento
48
que eacute falso nelas esperando que ao esclarecer isso atingiriam a tranquilidade daalma (HP I 12)
Todavia para o ceacutetico durante cada investigaccedilatildeo sobre as coisas encontra-se
afirmaccedilotildees inconsistentes entre si Segundo Sexto para esses ldquohomens de talentordquo nenhuma
das afirmaccedilotildees eacute mais passiacutevel de credibilidade do que a outra e na falta de um criteacuterio que
permita o assentimento a uma das afirmaccedilotildees seria uma atitude precipitada assumir uma
delas como verdadeira Essa impossibilidade de decidir leva agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca
daquilo que se estava investigando Desse modo embora pretendesse atingir a tranquilidade
da alma por meio da busca pela verdade o ceacutetico acaba por obtecirc-la ao suspender o juiacutezo
acerca dela
Segundo Sexto acontece ao ceacutetico o mesmo que aconteceu ao pintor Apeles
Conta-se que certa vez quando ele estava pintando um cavalo e desejavarepresentar a espuma do cavalo ele falhou de tal modo que desistiu e jogou suaesponja na pintura - a esponja na qual ele limpava as tintas do pincel ndash e ao atingira pintura a esponja produziu o efeito desejado (HP I 28)
Do mesmo modo o surgimento do ceticismo se daacute como que por acaso e a
tranquilidade da alma segue a suspensatildeo do juiacutezo ldquoassim como a sombra segue o corpordquo (HP
I 29)
O ainda futuro ceacutetico quer evitar a precipitaccedilatildeo de dizer-se conhecedor da verdade ao
assentir de modo arbitraacuterio com algo que natildeo seja evidente Quando o ceacutetico descobre que a
praacutetica de opor a cada sentenccedila outra de igual forccedila leva agrave suspensatildeo de juiacutezo toma essa
praacutetica como princiacutepio do ceticismo visto que ela parece acabar com o dogmatismo104
Quanto ao dogmatismo eacute importante salientar que no pirronismo natildeo haacute diferenccedila
entre ldquodogmatizarrdquo e ldquoacreditarrdquo Quando o ceacutetico diz que natildeo dogmatiza ele estaacute dizendo
em outras palavras que natildeo sustenta crenccedila
O predicado ldquoverdadeirordquo aplica-se primeiramente a proposiccedilotildees que se pretendeque descrevam objetos externos (to ektos hypokeimenon) e estados de coisas eldquocrenccedilardquo refere-se a uma atitude afirmativa forte e estaacutevel em relaccedilatildeo a essasproposiccedilotildees (Mates 1996 p 6)
Nesse sentido mais estreito105 do termo ldquodogmardquo estaacute ligado a questotildees investigaacuteveis
104 ldquoAqueles que acreditam terem encontrado a verdade satildeo os Dogmaacuteticos ndash por exemplo os seguidores deAristoacuteteles e Epicuro os Estoicos e outrosrdquo (HP I 3)
105 O sentido mais amplo de dogma diz respeito a ldquoalgo com que algueacutem meramente concordardquo - como umasentenccedila que descreve uma afecccedilatildeo determinada ndash e nesse sentido segundo o autor pode-se dizer que o
49
sobre a ldquoexistecircncia e natureza daquilo que se supotildee ser independente das nossas impressotildees
subjetivas pensamentos e sensaccedilotildeesrdquo106 (Mates 1996 p 7) Eacute sobre isso que por meio da
argumentaccedilatildeo o ceacutetico suspende o juiacutezo
Para o ceacutetico dogmaacutetico eacute aquele que pretende demonstrar que aquilo que lhe aparece
eacute o modo como de fato as coisas realmente satildeo e que busca formular teorias sobre o
fenocircmeno teorias que teriam apreendido a verdade a realidade das coisas Desse modo a
suspensatildeo de juiacutezo estaacute voltada agraves asserccedilotildees dogmaacuteticas e natildeo agraves coisas dizendo respeito agrave
afirmaccedilatildeo da conformidade entre o ser e o aparecer De acordo com Porchat
A Filosofia claacutessica distinguira como se sabe entre o ser e o aparecer transpondometafisicamente a distinccedilatildeo corriqueira entre as aparecircncias enganosas das coisas esua manifestaccedilatildeo correta e ordinaacuteria Ela privilegiou o ser como necessaacuterio eestaacutevel desqualificando o aparecer porque instaacutevel e contingente Por vezesentendeu o aparecer como manifestaccedilatildeo do ser ainda que superficial mas commaior frequecircncia o pensou como aparecircncia enganosa que dissimulava o ser e oocultava (Porchat 1993 p 179)
Portanto nas Hipotiposes Pirronianas a argumentaccedilatildeo ceacutetica visa produzir a
suspensatildeo de juiacutezo ao mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e sua
precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente107 crenccedilas a respeito daquilo que existe na realidade
externamente agraves nossas representaccedilotildees
Se por um lado o ceacutetico critica os discursos dogmaacuteticos por outro ele pretende que
seu proacuteprio discurso expresse apenas a admissatildeo de uma afecccedilatildeo (pathos) involuntaacuteria o
estado presente de sua alma em relaccedilatildeo ao fenocircmeno Por isso as sentenccedilas proferidas pelo
ceacutetico satildeo ditas ldquonatildeo investigaacuteveisrdquo (azetetos) ldquoA questatildeo sobre sua veracidade ou falsidade
natildeo se colocardquo (Mates 1996 p 6)108 visto que dizem respeito apenas ao fenocircmeno
Mesmo assim os filoacutesofos ditos dogmaacuteticos consideram que uma vez
suspendido o juiacutezo interrompe-se tambeacutem a possibilidade de accedilatildeo no mundo e por isso
ceacutetico emite doxai sem se comprometer com um criteacuterio de verdade106 Satildeo essas as caracteriacutesticas que Sexto observa no conceito de mousike refutado no Contra os Muacutesicos
Veremos que ele constata que atribui-se poderes agrave muacutesica por natureza A refutaccedilatildeo de Sexto tende amostrar que os poderes que se considera inerentes a ela dependem natildeo de sua natureza mas de nossasrepresentaccedilotildees
107 Atenccedilatildeo ao uso do termo grego ldquodiabebaiomairdquo que significa ldquoassegurarrdquo ldquoafirmar energicamenterdquo juntoao sentido dogmaacutetico de crenccedila Cf Mates (1996 p 60)
108 Para que o discurso do ceacutetico seja coerente com a sua finalidade ndash a de promover a suspensatildeo de juiacutezovisando obter a tranquilidade da alma - as sentenccedilas que o constituem ldquonatildeo devem ser tomadas comoverdadeirasrdquo (Mates 1996 p 255) Por isso o discurso ceacutetico seraacute considerado natildeo-assertivo ldquoAsserccedilatildeordquoem sentido amplo abrange qualquer ldquoexpressatildeo indicando afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e em sentido estrito dizrespeito apenas a expressotildees afirmativas A ldquonatildeo-asserccedilatildeordquo eacute uma afecccedilatildeo em vista da qual o ceacutetico diraacute quenatildeo afirma ou nega qualquer coisa no que diz respeito agraves ldquodeclaraccedilotildees dogmaacuteticas acerca daquilo que eacute natildeo-evidenterdquo (HP I 193)
50
acusam o ceacutetico de que sua postura levaria agrave inaccedilatildeo (apraxia)109 A resposta dos ceacuteticos
pirrocircnicos ao contra-argumento da inaccedilatildeo eacute dada com a proposiccedilatildeo de um criteacuterio de accedilatildeo
desvinculado do criteacuterio que o ceticismo ataca Nesse sentido o pirrocircnico distingue entre dois
tipos de criteacuterio aquele ligado agrave ldquocrenccedila sobre a existecircncia e a natildeo existecircnciardquo ou seja aquilo
que chamamos ldquocriteacuterio de verdaderdquo ao qual estatildeo voltadas as suas objeccedilotildees e por outro
lado o criteacuterio de accedilatildeo a partir do qual ldquona conduccedilatildeo da vida diaacuteria noacutes fazemos algumas
coisas e natildeo outrasrdquo (HP I 21)
Isso significa que o ceacutetico natildeo soacute limita seu discurso agravequilo que lhe aparece mas toma
o proacuteprio aparecer como criteacuterio de suas accedilotildees O fenocircmeno por se basear em uma afecccedilatildeo
involuntaacuteria nunca eacute posto em duacutevida pelo ceacutetico para ele natildeo eacute preciso ultrapassar o
acircmbito do fenocircmeno dizendo o que as coisas realmente satildeo para se viver no mundo Afinal
nas palavras de Sexto ldquoimagino que ningueacutem dispute sobre se o objeto externo aparece desse
modo ou daquele mas antes sobre se ele eacute tal como parece serrdquo (HP I 22) ou seja a duacutevida
se daacute a respeito da conformidade entre o ser e o aparecer Basear-se no fenocircmeno eacute
excetuando essa duacutevida sustentar suas decisotildees naquilo que estaacute aleacutem do escopo da
suspensatildeo do juiacutezo e natildeo eacute passiacutevel de duacutevida
Isso que natildeo podemos rejeitar que se oferece irrecusavelmente agrave nossasensibilidade e entendimento ndash se nos permitimos lanccedilar matildeo de uma terminologiafilosoacutefica consagrada ndash eacute o que os ceacuteticos chamamos de fenocircmeno (tophainomenon o que aparece) O que nos aparece se nos impotildee com necessidade aele natildeo podemos senatildeo assentir eacute absolutamente inquestionaacutevel em seu aparecerQue as coisas nos apareccedilam como aparecem independe de nossa deliberaccedilatildeo ouescolha natildeo se prende a uma decisatildeo de nossa vontade O que nos aparece natildeo eacuteenquanto tal objeto de investigaccedilatildeo precisamente porque natildeo pode ser objeto deduacutevida Natildeo haacute sentido em argumentar contra o aparecer do que aparece talargumentaccedilatildeo seria ineficaz e absurda (Porchat 1993 p 176)
Sexto Empiacuterico apresenta os desdobramentos do criteacuterio praacutetico baseado em quatro
aspectos principais
no que concerne agravequilo que aparece entatildeo noacutes [ceacuteticos] vivemos sem crenccedilas masde acordo com a vida comum visto que natildeo podemos ser totalmente inativos Eesse regime da vida comum parece ser quaacutedruplo uma parte tem a ver com aorientaccedilatildeo da natureza outra com a compulsatildeo das afecccedilotildees outra com aquilo quenos eacute apresentado pelas leis e pelos costumes e a quarta com a instruccedilatildeo nas artes[tekhnai] (HP I 23)
109 Tal questionamento se daacute porque a epistemologia estoica implica que se decirc assentimento voluntaacuterio agravesrepresentaccedilotildees para que se possa tomar decisotildees a respeito delas
51
Segundo a proacutepria explicaccedilatildeo de Sexto a parte do criteacuterio de accedilatildeo que diz repeito agrave
orientaccedilatildeo da natureza eacute aquela pela qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo epensamento a compulsatildeo das afecccedilotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva agrave comidae a sede nos faz beber o seguir os costumes e leis eacute aquela pela qual noacutes aceitamosque ser piedoso na conduccedilatildeo da vida eacute bom e ser impiedoso eacute ruim e a instruccedilatildeo nasartes eacute aquela pela qual noacutes natildeo somos inativos em qualquer funccedilatildeo adquirida (HP I24)
Ao que ele acrescenta ainda ao final ldquoe dizemos todas essas coisas sem crenccedilardquo (HP
I 24) reforccedilando que tal criteacuterio eacute tomado de maneira independente da existecircncia ou natildeo
existecircncia daquilo que estaacute por traacutes dele
A pergunta que o contra-argumento da inaccedilatildeo nos coloca eacute como vive o ceacutetico a
partir disso A adoccedilatildeo do criteacuterio praacutetico poderia ser um indiacutecio de que ele pretende retornar
ao senso comum e viver ldquosem Filosofiardquo muito embora como afirma Brochard esse retorno
seja ldquoum retorno muito pouco ingecircnuo agrave ingenuidade primitivardquo (Brochard 2009 p 362)
Mas o que seria esse retorno agrave vida comum Seria simplesmente viver seguindo a multidatildeo
A esse respeito Sexto diz que ldquoqualquer um que diga que noacutes devemos dar assentimento agrave
maioria estaacute fazendo uma proposta infantilrdquo (HP I 89)110 Segundo Porchat ldquoa visatildeo de
mundo de um ceacutetico se conforma obviamente como a visatildeo do mundo de qualquer homem agrave
sua experiecircncia passada e agrave sua formaccedilatildeo cultural ela se constroacutei a partir de sua vivecircncia do
fenocircmeno e lhe estaacute intimamente associadardquo (Porchat 1993 p 198)
Tal como um filoacutesofo dogmaacutetico que para fazer uso de seus sentidos e de sua
inteligecircncia natildeo precisa dar a prova ontoloacutegica de sua existecircncia tambeacutem para o ceacutetico natildeo
haacute porque deixar de agir por natildeo assumir uma posiccedilatildeo a respeito das questotildees acerca da
existecircncia ou natildeo das coisas Natildeo eacute preciso sustentar a verdade de conceitos filosoacuteficos para
ao se sentir fome ir em busca de alimento Aleacutem disso assim como um filoacutesofo que nos
apresenta uma Filosofia moral baseada em princiacutepios racionais natildeo vive necessariamente de
acordo com a Filosofia que formula mas muitas vezes simplesmente obedece agraves leis e aos
costumes de seu paiacutes sem verificar sua validade ou veracidade o ceacutetico segue as leis e
costumes enquanto aquilo que lhe aparece como sendo o caso
Desse modo natildeo soacute o ceacutetico mas tambeacutem o filoacutesofo dogmaacutetico no que concerne agrave
vida praacutetica simplesmente vivem de acordo com aquilo que lhes aparece sem precisar
ultrapassar a esfera fenomecircnica e dizer o que as coisas realmente satildeo Eacute sob essa perspectiva
110 No Contra os Muacutesicos Sexto dedica-se a refutar as opiniotildees sobre muacutesica ldquorepetidas costumeiramente pelamaioriardquo (M VI 7)
52
que o ceacutetico pretende natildeo precisar sustentar crenccedilas a respeito das coisas para poder viver no
mundo Em suma eacute tendo em vista a conduccedilatildeo da vida que o ceacutetico adota o criteacuterio praacutetico
Visto que a instruccedilatildeo nas artes faz parte do criteacuterio praacutetico o combate ao dogmatismo
tambeacutem nessa aacuterea eacute essencial ao funcionamento do ceticismo Eacute nesse sentido que o Contra
os Professores parece ter uma funccedilatildeo peculiar dentre as obras de Sexto Natildeo obstante os
livros que o compotildeem satildeo destinados natildeo a qualquer tipo de ensino teacutecnico mas apenas
agravequeles das disciplinas dos chamados Estudos Ciacuteclicos Como veremos a delimitaccedilatildeo do
escopo dessa criacutetica se daacute em funccedilatildeo do dogmatismo observado nos conteuacutedos e meacutetodos
relacionados a esse sistema de ensino
42 O CARAacuteTER TEOacuteRICO DOS ESTUDOS CIacuteCLICOS
A expressatildeo Enkyklios Paideia tem uma origem antiga na histoacuteria da educaccedilatildeo na
Greacutecia mas eacute importante frisar que ela muda de significado entre o periacuteodo claacutessico e o
imperial Os chamados Estudos Ciacuteclicos na Greacutecia arcaica tinham uma conotaccedilatildeo praacutetica
inicialmente centrada na mousike Kyklios nesse caso parece remeter agrave danccedila circular
realizada pelo coro Todavia essa educaccedilatildeo musical (naquele sentido amplo de mousike) foi
perdendo espaccedilo para a retoacuterica e para a Filosofia Em Platatildeo (Teeteto 172 C - 177 C) por
exemplo observa-se a rejeiccedilatildeo das ocupaccedilotildees praacuteticas (consideradas servis) Tambeacutem em
Aristoacuteteles observamos as recomendaccedilotildees e as reservas em relaccedilatildeo agrave praacutetica das atividades
que deveriam fazer parte da educaccedilatildeo do homem livre A enkyklios paideia deixa a muacutesica
praticamente de lado e permanece centrada na retoacuterica dialeacutetica e gramaacutetica111 De acordo
com Lippman ldquoesse processo comeccedila durante o curso do seacuteculo V aC a desintegraccedilatildeo da
composta arte da muacutesica acompanhada pela efervescecircncia poliacutetica e o crescimento de uma
cultura com uma mentalidade retoacuterica provoca a desmusicalizaccedilatildeo da educaccedilatildeordquo (Lippman
1966 552)
A partir disso a chamada Enkyklios Paideia expande seu escopo incorporando um
significado mais geral Na obra de Aristoacuteteles112 aparecem tambeacutem as expressotildees ldquoenkyklia
philosophematardquo e ldquota enkykliardquo que provavelmente equivalem agrave expressatildeo ldquoexoterikoi
logoirdquo designando ldquoum desenvolvimento ou uma obra que natildeo tem um caraacuteter
111 Disciplinas que vieram a compor o trivium das chamadas Artes Liberais na Idade Meacutedia112 Ver Aristoacuteteles De Caelo (279 A) EN (1096 A)
53
especificamente filosoacutefico mas se situa em um niacutevel inferior e preparatoacuteriordquo (Hadot 1984 p
264) Reforccedilamos que essas expressotildees que remetem agrave Enkyklios Paideia no periacuteodo
heleniacutestico natildeo tecircm o mesmo significado que teratildeo no periacuteodo imperial
Na Repuacuteblica Platatildeo apresenta as disciplinas matemaacuteticas que tinham funccedilatildeo
preparatoacuteria para se atingir a Filosofia A lista das disciplinas inclui aritmeacutetica geometria
astronomia e muacutesica113 Platatildeo eacute herdeiro de uma tradiccedilatildeo pitagoacuterica segundo a qual ldquoas
ciecircncias matemaacuteticas estatildeo relacionadas porque lidam com as duas formas primaacuterias do ser
(que podemos tomar como a multiplicidade e a extensatildeo)rdquo (Lippman 1966 p 545) O
filoacutesofo ressalta o papel eacutetico das mathemata e sublinha o caraacuteter abstrato e ideal de cada
uma O pitagoacuterico Arquitas de Tarento tambeacutem coloca a muacutesica no uacuteltimo lugar da lista o
que indica seu status mais elevado
Enquanto uma das mathemata a muacutesica era estudada em seu aspecto mais abstrato a
ciecircncia harmocircnica em funccedilatildeo de sua conexatildeo direta com a astronomia Como jaacute foi
enfatizado as mathemata ldquonatildeo dizem respeito ao uso praacutetico nem a objetos da experiecircnciardquo
(Lippman 1966 p 547) Por isso em seu tratado pedagoacutegico destinado a preparar o
estudante para a leitura de Platatildeo Teon de Smirna afirma que natildeo haacute necessidade da muacutesica
instrumental mas que o interesse estaacute voltado agrave compreensatildeo da harmonia e da muacutesica
celestial
Na obra de Aristoacuteteles a muacutesica aparece em uma lista bastante semelhante114 remetida
agraves eleutherai tekhnai (artes liberais) ou seja agraves artes destinadas agrave educaccedilatildeo do homem livre
A mousike enquanto disciplina do ensino eacute denominada com diversas outras disciplinas
pelo termo tekhne (arte ou teacutecnica) De acordo com Pellegrin
depois do seacuteculo V aC desenvolveu-se uma literatura ldquoteacutecnicardquo constituiacuteda detratados codificando a praacutetica de numerosos domiacutenios desde a equitaccedilatildeo e aculinaacuteria ateacute a estrateacutegia e a arte poliacutetica Aleacutem disso as disciplinas que noacutesconsiderariacuteamos cientiacuteficas como a geometria a aritmeacutetica ou teacutecnico-cientiacuteficascomo a medicina eram comumente chamadas tekhnai Este haacutebito de transmitir umsavoir-faire racionalmente exposto eacute com certeza uma reaproximaccedilatildeo do tipo deracionalidade que foi aplicada agrave aacuterea cultural grega com o estabelecimento dascidades No domiacutenio das artes como em outras aacutereas a praacutetica rotineira e atransmissatildeo tradicional no interior das linhagens deram lugar a uma abordagemuniversal normatizada e tirando sua forccedila da constriccedilatildeo do raciociacutenio (Pellegrin2002 p 14)115
113 Essas disciplinas compotildeem o conjunto que veio a ser o quadrivium das Artes Liberais na Idade Meacutedia114 Ver seccedilatildeo 322 p 31115 Deve-se destacar o papel dos Sofistas no desenvolvimento desse tipo de literatura teacutecnica Os Sofistas num
certo sentido foram aqueles que profissionalizaram o ensino Hiacutepias um dos Sofistas que aparece nosdiaacutelogos de Platatildeo defendia um ensino que permitisse que se fosse ldquocapaz de falar sobre qualquer coisa e dearrostar quem quer que seja em qualquer assuntordquo (Marrou 1966 p 94) Segundo Platatildeo (Protaacutegoras 218
54
Para fins de nosso estudo tomamos como paradigma do que seja uma tekhne a
definiccedilatildeo atribuiacuteda aos estoicos apresentada e refutada pelo proacuteprio Sexto Empiacuterico no
Contra os Professores ldquotoda tekhne eacute um sistema composto de apreensotildees exercidas
conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10)116
Cabe pontuar que tanto para Aristoacuteteles quanto para os Estoicos tanto a ciecircncia
quanto a teacutecnica partem dos sentidos A diferenccedila de acordo com essas duas correntes
filosoacuteficas natildeo estaacute no modo como o conhecimento se daacute mas nos objetos aos quais a
ciecircncia e a teacutecnica se dirigem117 Aristoacuteteles daacute agrave tekhne um sentido e um papel bastante
precisos Na Metafiacutesica o filoacutesofo distingue os homens dos animais dizendo que os homens
ldquose elevam agrave arte (tekhne) e ao raciociacutenio (logismos) a arte e a ciecircncia (episteme) procedem
natildeo do acaso (tykhe) mas da experiecircncia (empeiria)rdquo (Aristoacuteteles Met 980 B 25)
Experiecircncia que eacute constituiacuteda pela uniatildeo da sensaccedilatildeo ndash nosso primeiro contato com o mundo
ndash com a memoacuteria de repetidas sensaccedilotildees
Natildeo obstante para Aristoacuteteles soacute haacute arte e ciecircncia quando haacute algum juiacutezo sobre algo
universal ldquoa arte se gera quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia nasce uma noccedilatildeo
uacutenica concernente aos casos semelhantesrdquo (Aristoacuteteles Met A 1 981 A 5) Eacute nesse sentido
que na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles define a tekhne como ldquohaacutebito produtivo acompanhado
pelo logos verdadeirordquo (Aristoacuteteles EN 1140 A 10)
Na Filosofia aristoteacutelica o conhecimento teacutecnico aproxima-se da ciecircncia porque
ambos estatildeo preocupados com o logos e nesse sentido com aquilo que haacute de universal nas
relaccedilotildees de causa e efeito A diferenccedila sob essa perspectiva eacute apenas a de que a ciecircncia diz
respeito agrave busca do conhecimento das ldquocausas primeirasrdquo (que existem necessariamente na
natureza) e a teacutecnica tem por objeto a forma de um produto contingente
Aristoacuteteles apresenta a tekhne como uma forma de saber verdadeiro constituiacuteda por
E) Hiacutepias exigia de seus alunos um estudo soacutelido das quatro ciecircncias elaboradas desde os pitagoacutericos116 Essa definiccedilatildeo estoica de tekhne enquanto ldquosistema composto de apreensotildeesrdquo pode ser encontrada em vaacuterios
trechos da obra de Sexto Empiacuterico Em um trecho das Hipotiposes que trata da possibilidade do aprendizadolemos que ldquoEles [os estoicos] dizem que uma arte eacute um sistema de apreensotildees exercidas conjuntamente naparte superior da almardquo (HP III 188) e tambeacutem que ldquoa arte eacute um sistema de apreensotildees e que umaapreensatildeo eacute um assentimento a uma representaccedilatildeo apreensivardquo (HP III 240) Essa noccedilatildeo eacute tomada na obrade Sexto Empiacuterico como paradigma daquilo que eacute assumido pelos filoacutesofos chamados dogmaacuteticos Arelaccedilatildeo entre o conceito de tekhne e a noccedilatildeo de utilidade eacute fundamental para a compreensatildeo da criacutetica deSexto Empiacuterico agrave mousike enquanto uma das enkyklia mathemata
117 A sensaccedilatildeo eacute algo bastante diferente para um e para outro No pensamento de Aristoacuteteles ainda natildeo haacute aquestatildeo da correspondecircncia entre a representaccedilatildeo e o objeto representado questatildeo que na Filosofia estoicafaz com que o problema da verdade seja colocado jaacute nesse momento Para um estoico se natildeo haacute um criteacuteriode verdade que valide as suas representaccedilotildees natildeo eacute possiacutevel o raciociacutenio
55
juiacutezos universais e suscetiacutevel de ser transmitida por um ensinamento racional118 Por isso de
acordo com Pellegrin
sob essa perspectiva aristoteacutelica as tekhnai natildeo tecircm nenhuma razatildeo para sair dodegrau teoacuterico da Filosofia entendida como sistema total de saber mesmo seevidentemente nem todos os teacutecnicos satildeo filoacutesofos e nem todos os filoacutesofos satildeoteacutecnicos (Pellegrin 2002 p 15)
O uso dessas artes baseadas no raciociacutenio (logikai ou enkyklioi tekhnai) como
propedecircutica para a Filosofia tornou-se de maneiras diferentes lugar comum nas escolas
filosoacuteficas estoica peripateacutetica e platocircnica (Hadot 1984 p 273) Essa subordinaccedilatildeo da
tekhne agrave Filosofia constitui uma das caracteriacutesticas do que veio a ser a Enkyklios Paideia no
periacuteodo imperial
Em Arts Libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Ilsetraut Hadot apresenta as
ocorrecircncias da expressatildeo ldquoenkyklios paideiardquo em autores importantes do periacuteodo imperial
Tal pesquisa eacute referecircncia para a compreensatildeo do que satildeo as enkyklia mathemata refutadas por
Sexto Empiacuterico
Na eacutepoca de Sexto Empiacuterico o adjetivo enkyklios (ciacuteclico) construiacutedo a partir de
kyklos (ciacuterculo) deixa de significar um ldquolargo ciacuterculordquo de estudos ligado agrave vulgarizaccedilatildeo do
conhecimento e aparece nas expressotildees ldquoencyclios disciplinardquo e ldquoenkyklios paideiardquo do
periacuteodo imperial designando
um curriacuteculo de estudos unificado pelo meacutetodo e pela estrutura que se devepercorrer e concluir para se ter uma educaccedilatildeo completa eacute uma espeacutecie de ldquociclordquopelo qual as ciecircncias que o constituem podem por sua vez ser chamadas ldquociacuteclicasrdquoMas este ldquociclordquo natildeo se refere a um nuacutemero limitado tal como o das ldquosete artesrdquopor exemplo mas corresponde agrave ideia de unidade interior e de completude119 (Hadot1984 p 268)
Esclarecedor a esse respeito eacute o texto de Vitruacutevio autor latino do seacuteculo I aC De
acordo com Vitruacutevio ldquoarquitetura eacute uma ciecircncia composta de muitas disciplinas e adornada
com tipos variados de aprendizado ()rdquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1) Para ele ldquoos
objetos de todas as ciecircncias (disciplinas) satildeo conectados por uma estreita comunidade pois a
encyclios disciplina eacute formada por todas as suas partes como um corpo uacutenicordquo (Hadot 1984
118 Sobre a relaccedilatildeo entre ciecircncia e arte em Aristoacuteteles ver Met (1028 B) e EN (1141 A)119 Nesse sentido a traduccedilatildeo da expressatildeo ldquota enkyklia mathematardquo a que Sexto se refere por ldquoArtes Liberaisrdquo
(da Idade Meacutedia) eacute uma aproximaccedilatildeo muito pouco precisa Sexto de fato menciona as eleutherai tekhnaiuma vez todavia essa expressatildeo possivelmente remete mais ao sentido em que Aristoacuteteles a emprega doque agraves Artes Liberais da Idade Meacutedia
56
p 265) O autor descreve sua proacutepria instruccedilatildeo do seguinte modo
agradeccedilo aos meus pais pela sua aprovaccedilatildeo a essa lei Ateniense e por terem cuidadopara que eu fosse instruiacutedo em uma arte e uma arte de tal natureza que natildeo possaser levada agrave perfeiccedilatildeo sem literatura e uma educaccedilatildeo ciacuteclica em todas asdisciplinas Portanto graccedilas agrave atenccedilatildeo dos meus pais e agrave instruccedilatildeo que me foi dadapor meus professores eu obtive uma variada gama de conhecimentos (hellip)(Vitruacutevio VI pref 4 grifo nosso)120
O caraacuteter teoacuterico do estudo das enkyklia mathemata eacute enfatizado na seguinte
passagem do De Architetura onde o autor exemplifica a ideia de que todas as artes satildeo
compostas de teoria e praacutetica121
Uma dessas a realizaccedilatildeo do trabalho eacute proacutepria aos homens treinados no conteuacutedoindividual enquanto a outra a teoria eacute comum a todos os estudiosos por exemplopara meacutedicos e muacutesicos a batida riacutetmica do pulso e seu movimento meacutetrico Masse haacute uma ferida a ser curada ou um homem doente a ser salvo do perigo o muacutesiconatildeo seraacute chamado pois a ocupaccedilatildeo seraacute apropriada para o meacutedico Assim tambeacutemno caso de um instrumento musical natildeo seraacute o meacutedico mas o muacutesico que iraacute afinaro instrumento de modo que os ouvidos possam encontrar o devido prazer em suascordas Os astrocircnomos do mesmo modo tecircm um acircmbito comum de discussatildeo comos muacutesicos no que diz respeito agrave harmonia das estrelas e agrave concordacircncia musical nasteacutetrades e triacuteades [dos intervalos] de quarta e de quinta e com os geocircmetras noconteuacutedo da visatildeo (em grego logos optikos) e em todas as outras ciecircncias muitospontos talvez todos satildeo comuns no que diz respeito agrave sua discussatildeo (Vitruacutevio DeArchitetura I 1 15-6)
Enkyklios parece exprimir a ideia de que se deve estudar todas as disciplinas para
praticar uma porque elas implicam-se mutuamente Daiacute que Vitruacutevio apresente no primeiro
livro do De Architetura todos os saberes necessaacuterios a um bom arquiteto Entre esses saberes
estatildeo as disciplinas listadas com frequecircncia como a muacutesica a geometria e a astronomia
A descriccedilatildeo de Ciacutecero dessa relaccedilatildeo ldquociacuteclicardquo entre as ciecircncias remete ao
pensamento platocircnico em que ldquotodos os conteuacutedos doutrinais das artes liberais e humanas
satildeo mantidos unidos por um tipo de conexatildeo uacutenicardquo (Hadot 1984 p 265) onde se pode
observar um ldquotipo de concordacircncia e harmonia admiraacuteveis entre todas as ciecircnciasrdquo (idem)
Quintiliano que viveu entre I aC e I dC em seu Instituitione Oratoria tambeacutem
recomenda o estudo daquilo que ldquoos Gregos chamaram Enkyklios Paideiardquo (Quintiliano
Inst I X 1) O autor apresenta vaacuterios argumentos a favor das mathemata platocircnicas120 Para as citaccedilotildees de Vitruacutevio utilizamos a traduccedilatildeo em liacutengua inglesa de Morgan (1914) com algumas
adaptaccedilotildees baseadas no texto latino121 De acordo com Vitruacutevio na arquitetura ldquoa praacutetica eacute o exerciacutecio contiacutenuo e regular do emprego onde o
trabalho manual eacute executado com qualquer material necessaacuterio de acordo com o design de um desenhoTeoria por outro lado eacute a habilidade de demonstrar e explicar os resultados da destreza nos princiacutepios daproporccedilatildeordquo (Vitruacutevio De Architetura I 1 1)
57
sobretudo no que diz respeito agrave importacircncia do estudo da muacutesica122 ao que ele conclui que a
muacutesica eacute ldquoum elemento necessaacuterio agrave educaccedilatildeo do oradorrdquo (Quintiliano Inst I X 33)
Suas observaccedilotildees fazem referecircncia principalmente agrave autoridade de Pitaacutegoras e agrave de
Platatildeo Quintiliano recomenda esses estudos ldquonatildeo apenas por sua habilidade de afiar o
espiacuterito mas tambeacutem por seu valor filosoacuteficordquo (Hadot 1984 p 267) Nesse sentido nota-se
aqui uma retomada do papel propedecircutico das disciplinas matemaacuteticas platocircnicas agora
agrupadas dentro do conjunto da Enkyklios Paideia
Sobre esse caraacuteter ciacuteclico das artes fundadas na razatildeo Hadot tambeacutem chama atenccedilatildeo
para um comentaacuterio de Quintiliano a Dioniacutesio o Traacutecio (gramaacutetico do seacuteculo II aC)
enkyklioi satildeo as artes que alguns chamam de logikai [fundadas na razatildeo] como aastronomia a geometria a muacutesica a filosofia a medicina a gramaacutetica a retoacutericaChamam-nas enkuklioi porque o especialista (ho tekhnites) deve ao percorrer todasintroduzir em sua arte o que ele encontrou de uacutetil em cada uma delas (QuintilianoInst 1 X 6-7)
Na distinccedilatildeo entre as logikai tekhnai por oposiccedilatildeo as praktikai tekhnai Dioniacutesio
coloca a muacutesica entre as disciplinas fundadas na razatildeo Tambeacutem Galeno meacutedico grego do
seacuteculo II dC apresenta o mesmo tipo de oposiccedilatildeo e coloca entre as artes fundadas na razatildeo a
medicina a retoacuterica a muacutesica a geometria a aritmeacutetica o caacutelculo a astronomia a gramaacutetica
e o direito Galeno opotildee essas disciplinas agraves artes praacuteticas ou artes manuais (keironaktikai ou
banausoi tekhnai)123
Em diversos autores encontra-se as disciplinas fundadas na razatildeo sendo consideradas
como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes (tekhnai) De acordo com Hadot nesse
vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar as ldquoartes
fundadas na razatildeordquo124 em oposiccedilatildeo agraves artes manuais ou praacuteticas
Entre todos esses pensadores Filo de Alexandria no seacuteculo I dC talvez seja quem
melhor resume as caracteriacutesticas das enkyklia mathemata tal como Sexto parece compreendecirc-
la Seu pensamento reuacutene ldquointerpretaccedilotildees alegoacutericas do antigo testamento da Filosofia grega
e especialmente da Filosofia platocircnica contemporacircnea que havia sido enriquecida de
numerosos elementos doutrinais de proveniecircncia estoica e peripateacuteticardquo (Hadot 1984 p
282) No tratado De Congressu Filo introduz a Enkyklios Paideia personificada na figura de
122 Ver Quintiliano Inst (I X 9-33)123 Ver Galeno Protreptique aux arts (5 7)124 Tal distinccedilatildeo eacute encontrada no Contra os Muacutesicos na apresentaccedilatildeo dos sentidos do termo muacutesica (M VI 1)
O sentido de muacutesica refutado por Sexto eacute intitulado episteme por oposiccedilatildeo agrave chamada organiken empeiriaque designa a praacutetica musical
58
Agar125 como o caminho para a virtude
devemos compreender que grandes temas requerem grandes introduccedilotildees e o maiorde todos os temas eacute a virtude pois ela lida com o maior dos conteuacutedos que eacute atotalidade da vida humana Naturalmente a virtude implica uma introduccedilatildeo que natildeoseja menor que o estudo da gramaacutetica da geometria da astronomia da retoacuterica damuacutesica e de todos os outros estudos fundados no raciociacutenio (Filo De Congressu11)
Em Filo reencontramos a ideia de que as artes fundadas no raciociacutenio recebem seus
princiacutepios da Filosofia que eacute considerada por sua vez uma ciecircncia natildeo-hipoteacutetica e
inabalaacutevel Ao mesmo tempo tal panorama apresenta as enkyklia mathemata novamente
como um caminho enquanto ensino propedecircutico para se alcanccedilar a Filosofia Aqui destaca-
se a relaccedilatildeo hieraacuterquica entre esses conhecimentos os Estudos Ciacuteclicos como caminho para a
Filosofia e esta como caminho para a Sabedoria
Filo tambeacutem retoma outra expressatildeo cara ao nosso estudo ele iguala a Enkyklios
Paideia e a Enkyklios Mousike ou seja o ciacuterculo de atividades dedicadas agraves Musas Nesse
caso reencontramos aquele significado amplo do termo mousike ligado agrave cultura126
Haacute homens grosseiros e homens cultos aqueles que satildeo dedicados agrave harmonia dalira e das Musas e aqueles que danccedilam no coro do ciacuterculo de atividades dedicadasagraves Musas [hoi lteggtkekhoreukotes tei egkuklioi mousikei] os segundos tecircm maisrecursos para se desenvolver que os primeiros pois por assim dizer quase desdesua infacircncia eles satildeo inundados por discursos que defendem a firmeza oautocontrole e todas as virtudes (Filo De Mutatione Nominus 229 apud Hadot1984 p 286)
Eacute importante lembrar que sob a perspectiva do platonismo ldquoenkyklia mathematardquo
natildeo significa educaccedilatildeo usual tal como aparecia em Aristoacuteteles Nesse sentido embora os
termos eleutherai tekhnai e enkyklios paideia natildeo tenham o mesmo escopo o que haacute de
comum entre a enkyklios paideia do periacuteodo imperial as eleutherai tekhnai aristoteacutelicas e a
educaccedilatildeo matemaacutetica platocircnica eacute o seu caraacuteter que poderiacuteamos chamar elitizado Em funccedilatildeo
disso
natildeo eacute possiacutevel traduzir por ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteria habitualrdquo a expressatildeo enkuklios
125 Agar eacute o escravo egiacutepcio de Sarah mulher de Abraatildeo Abraatildeo simboliza o ldquointelecto amante doconhecimento e da virtuderdquo e Sarah representa a proacutepria virtude a Filosofia a ciecircncia e a sabedoria No DeCongressu para poder se unir a Sarah (ou seja para atingir a sabedoria) Abraatildeo deve primeiro unir-se aAgar
126 Esse significado estaacute relacionado agravequele modo considerado por Sexto Empiacuterico como menos apropriado emque os homens usam o termo muacutesica (M VI 2)
59
paideia empregada a toda hora no texto citado [de Vitruacutevio] mesmo se lembrarmosque tal educaccedilatildeo ordinaacuteria era reservada apenas a uma minoria eacute preferiacutevel traduzira expressatildeo por cultura completa (Hadot 1984 p 267)
Enquanto o conceito de artes liberais (eleutherai tekhnai) no periacuteodo imperial diz
respeito a todas as artes dignas de serem praticadas pelos homens livres abrangendo
atividades intelectuais ou de cunho mais praacutetico (tal como a caccedila e a ginaacutestica por exemplo)
o conceito de Enkyklios Paideia abrange as artes fundadas no raciociacutenio (logikai tekhnai)
enquanto um conjunto de ciecircncias que compotildeem um sistema teoacuterico unificado A
compreensatildeo dessa diferenccedila eacute fundamental para esclarecer o caraacuteter teoacuterico das disciplinas
dos Estudos Ciacuteclicos que Sexto propotildee refutar
Eacute dentro desse contexto que a muacutesica enquanto uma das mathemata que compotildeem a
enkyklios paideia aparece em todas as listas do periacuteodo imperial reunidas por Hadot
Aristides Quintiliano ilustra muito bem o caraacuteter teoacuterico e propedecircutico das mathemata
especificamente na relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia ao final de seu tratado sobre a muacutesica
Logo na medida em que eacute a principal companheira e colaboradora desta ndash me refiroagrave Filosofia ndash deve-se praticar e ensinar a muacutesica de modo completo e considerandoa relaccedilatildeo que existe entre ambas como a que existe entre os pequenos misteacuterios emrelaccedilatildeo aos misteacuterios maiores deve-se atribuir a cada uma a dignidade e a honraoportunas e deve-se estreitar sua uniatildeo por ser a mais conveniente e legiacutetima Comefeito a Filosofia eacute a culminaccedilatildeo de todo o conhecimento e a muacutesica eacute educaccedilatildeopreliminar (Aristides Quintiliano De Mus III 27)
Assim eacute enquanto parte de um sistema de conhecimento voltado ao acircmbito teoacuterico
que a muacutesica eacute listada como uma das mathemata refutadas no Contra os Professores A
muacutesica enquanto logikon tekhne permanece como uma propedecircutica para a Filosofia
43 A REFUTACcedilAtildeO AgraveS DISCIPLINAS NO CONTRA OS PROFESSORES
A lista das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos apresentada por Sexto Empiacuterico eacute
surpreendentemente parecida com a lista canocircnica das sete Artes Liberais estabelecida por
Santo Agostinho constituiacuteda pelo trivium (gramaacutetica retoacuterica dialeacutetica) e pelo quadrivium
(geometria aritmeacutetica astronomia muacutesica) Aleacutem disso o autor refere-se a essas disciplinas
como eleutherai tekhnai uma vez em sua obra (M II 57) Contudo tal referecircncia natildeo eacute razatildeo
suficiente para se supor que Sexto Empiacuterico considera as enkyklia mathemata e as eleutherai
tekhnai exatamente a mesma coisa ou que as compreenda segundo o seu significado a partir
60
de Santo Agostinho127 Tais interpretaccedilotildees mostram-se anacrocircnicas sob duas perspectivas
tanto quando se iguala as enkyklia mathemata ao seu sentido no periacuteodo claacutessico (de
ldquoeducaccedilatildeo ordinaacuteriardquo tal como aparece em Aristoacuteteles) quanto ao se atribuir agrave lista de Sexto
um sentido posterior a ela
Apesar da inegaacutevel proximidade da lista de Sexto Empiacuterico com o trivium e o
quadrivium parece-nos muito mais razoaacutevel pensar tal como Pellegrin que ldquoSexto ataca um
modo de proceder que eacute dominante em sua eacutepoca ou pelo menos que ele considera como
mais completo que os outrosrdquo (Pellegrin 2002 p 30 grifo nosso) A lista das enkyklia
mathemata apresentada por Sexto Empiacuterico aproxima-se ndash muito ndash da lista de disciplinas de
Filo de Alexandria (gramaacutetica geometria ndash abrangendo possivelmente a aritmeacutetica ndash
astronomia retoacuterica e muacutesica) que estatildeo entre aquelas fundadas no raciociacutenio Nesse sentido
Sexto adotou como ldquomateacuteriardquo sobre a qual exercer sua criacutetica certa imagem das tekhnai daenkyklios paideia como ldquoservasrdquo da Filosofia natildeo porque seja sua convicccedilatildeo pessoal masporque essa seria a posiccedilatildeo dominante dos pensadores dogmaacuteticos de seu tempo (Pellegrin2002 p 32)
Se por um lado Sexto ataca tal perspectiva por ela ser predominante em seu periacuteodo
por outro tal ataque pauta-se em uma possiacutevel autonomia da tekhne em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Apesar do predomiacutenio da ideia de subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia houve ao mesmo
tempo no periacuteodo heleniacutestico uma espeacutecie de divoacutercio entre tekhne e Filosofia Alguns
ramos do conhecimento teacutecnico buscaram desenvolver um princiacutepio de funcionamento
autocircnomo em relaccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas ldquoA partir do momento em que Alexandria
destrona Atenas enquanto centro da vida intelectual grega as ciecircncias e as teacutecnicas ao
menos em seu niacutevel mais elevado natildeo satildeo mais praticadas nas escolas filosoacuteficasrdquo (Pellegrin
2002 p 15)
Observa-se que ao mesmo tempo em que a tekhne passa a ser ldquoestudada por ela
mesmardquo haacute o desenvolvimento de uma reflexatildeo que poderia ser chamada de epistemoloacutegica a
respeito das tekhnai128 O Contra os Professores parece lidar com essas duas posiccedilotildees em
127 Muito embora alguns comentadores o faccedilam Barnes considera a lista de Sexto Empiacuterico como um dosprimeiros aparecimentos da lista das Artes Liberais no sentido medieval Richard Bett (2005 p X)considera a lista das disciplinas apresentada por Sexto Empiacuterico como ldquocorrespondenterdquo agrave lista das seteArtes Liberais do curriacuteculo medieval Conforme apontamos acima (ver nota 101) essa equiparaccedilatildeo parece-nos leviana
128 Esse movimento havia comeccedilado pela medicina Pode-se observar na obra de Hipoacutecrates um esforccedilo de sedefinir o estatuto a aacuterea de atuaccedilatildeo e os meacutetodos da arte meacutedica Hipoacutecrates eacute considerado como aquele queldquolibertou a medicina de sua dependecircncia teoacuterica em relaccedilatildeo agrave Filosofiardquo (Pellegrin 2002 p 16) A relaccedilatildeocom a medicina eacute elucidativa a respeito do conceito de tekhne (aprovado pelo ceacutetico) que toma como base aexperiecircncia desvinculado do conceito de episteme Note-se que os principais representantes do ceticismo no
61
relaccedilatildeo agraves tekhnai ou seja as tekhnai teoacutericas dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e as
tekhnai enquanto praacuteticas autocircnomas dogmaacuteticas ou natildeo129
No Contra os Professores Sexto explicita que a investigaccedilatildeo sobre as mathemata se
daacute depois da investigaccedilatildeo da Filosofia visando ali tambeacutem (tal como na Filosofia) encontrar
a verdade deparando-se contudo com o dogmatismo Com isso o ceacutetico automaticamente
abre espaccedilo para a consideraccedilatildeo de que as tekhnai poderiam deter algum tipo de verdade
independentemente da Filosofia De acordo com Pellegrin ao fazer isso Sexto ldquonega agrave
Filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdaderdquo (Pellegrin 2002 p 32)
A refutaccedilatildeo ceacutetica dirige-se a um certo tipo de tekhne uma concepccedilatildeo especiacutefica
aquela dos professores das mathemata Em contrapartida haacute um sentido natildeo dogmaacutetico em
que as tekhnai natildeo satildeo refutadas130 Essa dicotomia como veremos aparece em relaccedilatildeo a
cada uma das disciplinas discutidas no Contra os Professores
431 O modelo argumentativo da obra
O Contra os Professores apresenta diferenccedilas de estilo argumentativo e de objeto em
relaccedilatildeo aos outros textos de Sexto Empiacuterico No restante de sua obra a Filosofia eacute o objeto da
refutaccedilatildeo ceacutetica e a argumentaccedilatildeo dirigida contra as partes desta culmina na suspensatildeo de
juiacutezo
Pellegrin chama atenccedilatildeo para o fato de que ldquoa situaccedilatildeo da Filosofia e das disciplinas eacute
seacuteculo II dC entre eles o proacuteprio Sexto Empirico eram tambeacutem os principais representantes da escolaempirista de Medicina Essa corrente toma como base o pensamento de Galeno De acordo com Allen oldquoempirismo meacutedico que surgiu no meio do terceiro seacuteculo aC define-se em oposiccedilatildeo a uma disseminadatendecircncia racionalista que seus fundadores detectaram na medicina do seu tempordquo (Allen 2010 p 234) Amedicina empiacuterica partia da observaccedilatildeo do fenocircmeno tendo como meacutetodo natildeo no raciociacutenio mas asistematizaccedilatildeo da experiecircncia Sobre a estreita relaccedilatildeo entre pirronismo e medicina ver Brochard (2009) eAllen (2010)
129 Os fundadores da escola empirista de medicina a compreendiam enquanto praacutetica autocircnoma (desvinculadada episteme mas ainda assim considerada dogmaacutetica pelo ceticismo) Haacute ainda a Escola Metoacutedica demedicina que surge em I aC Tal como os empiristas os metoacutedicos baseavam-se apenas no fenocircmenoTodavia diferentemente daqueles os Metoacutedicos segundo Porchat ldquoaceitaram explicitamente certo uso darazatildeo mas natildeo como fonte de conhecimentos teoacutericos natildeo como propiciadora de uma pretensa passagem doobservaacutevel ao inobservaacutevel que nos poria em condiccedilotildees de explicar os fenocircmenos observadosReconheceram por assim dizer uma razatildeo embutida na proacutepria experiecircnciardquo (Porchat 2007 p 24) EmboraEmpiristas e Metoacutedicos tivessem em comum o fenocircmeno enquanto ponto de partida os Empiristas eramcriticados ldquoporque estes afirmavam dogmaticamente que as entidades ocultas dos racionalistas eraminexistentes ou absolutamente incognosciacuteveisrdquo (Porchat 2005 p 33) E eacute esta a diferenccedila que faz com queSexto Empiacuterico mesmo sendo um meacutedico da escola empirista afirme que o ceticismo estaacute mais proacuteximo daescola metodista de medicina (ver HP I 236)
130 Tal como se observa no criteacuterio praacutetico do ceticismo pirrocircnico Ver acima p 50-1
62
comparaacutevel mas natildeo idecircntica Em relaccedilatildeo agraves disciplinas do aprendizado a questatildeo natildeo eacute
mais a suspensatildeo do assentimento mas a apresentaccedilatildeo de argumentos eficazes contra essas
disciplinasrdquo (Pellegrin 2002 p 11)
As diferenccedilas entre o modelo argumentativo presente no Contra os Professores e o
das outras obras e o desaparecimento da suspensatildeo de juiacutezo (ao menos explicitamente)
levaram alguns comentadores agrave conclusatildeo de que Sexto Empiacuterico teria abandonado o
ceticismo131 Outros consideram que se partimos daquilo que eacute apresentado por Sexto em
outros textos o Contra os Professores cai em contradiccedilatildeo e natildeo escapa ao dogmatismo132
No que diz respeito ao estilo do texto muito embora natildeo haja menccedilatildeo direta agrave
suspensatildeo de juiacutezo eacute impossiacutevel negar a presenccedila massiva dos procedimentos da
argumentaccedilatildeo ceacutetica O discurso ceacutetico eacute pautado em uma seacuterie de argumentos que foram
desenvolvidos pelos ceacuteticos anteriores a Sexto Empiacuterico Nas Hipotiposes Pirronianas (HP I
36-163) Sexto apresenta os argumentos ceacuteticos utilizados para minar as bases teoacutericas dos
especialistas os chamados Modos de Enesidemo e os Modos de Agripa Os Modos ou Tropos
(tropous) como satildeo chamados levam agrave suspensatildeo de juiacutezo ao mostrarem a equipolecircncia das
afirmaccedilotildees acerca das coisas Satildeo consideraccedilotildees baseadas (1) naquele que julga (2) naquilo
que eacute julgado e (3) em ambos133 Os Modos desenvolvidos pelo filoacutesofo Enesidemo (I aC)
segundo a tradiccedilatildeo dos antigos ceacuteticos seriam dez134 Jaacute os Modos de Agripa satildeo um conjunto
de argumentos baseados nos problemas loacutegicos em que incorreriam os argumentos dos
dogmaacuteticos contra os ceacuteticos que satildeo (1) conflito de opiniotildees (2) regresso ao infinito (3)
relatividade (4) hipoacutetese (5) ciacuterculo Estes posteriores aos de Enesidemo visam
131 O principal comentador a defender essa tese eacute Janaacuteček em Sextus Empiricus skeptical methods (1972) Suatese eacute refutada em diversos artigos Ver por exemplo Pellegrin (2002 p 11 ss) Desbordes (1990 p 167ss)
132 Richard Bett em seu artigo La double schizophreacutenie de M I-VI et ses origines historiques (2006)apresenta uma outra explicaccedilatildeo para as diferenccedilas detectadas entre as obras de Sexto Empiacuterico Em sumasegundo ele ldquomuitas pesquisas tentam mostrar que Sexto natildeo se contradiz Entretanto um exame detalhadodo texto mostra claramente que tais tentativas estatildeo fadadas ao fracassordquo Baseado em uma pesquisahistoacuterica Bett considera que a argumentaccedilatildeo do Contra os Professores eacute ldquoresultado de uma falta deadaptaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico agrave sua proacutepria forma posterior do pirronismo dos argumentos que estavamoriginalmente em seu lugar em um periacuteodo anterior e distintordquo (Bett 2006 p 17) O artigo de Pellegrin(2006) retomando sua leitura apresentada na introduccedilatildeo agrave sua ediccedilatildeo do Contra os Professores (2002) eacuteuma resposta a essa visatildeo sustentada por Bett Entretanto em um artigo posterior especificamente sobre oContra os Muacutesicos Bett teria revisto algumas de suas conclusotildees a esse respeito afirmando que ldquopodehaver algumas singularidades no modo como ele [Sexto] apresenta seu material neste livro e em sua obracomo um todo mas as preocupaccedilotildees que muitos (incluindo eu mesmo) expressaram sobre isso natildeo satildeofundamentaisrdquo (Bett 2013 p 168)
133 Tomemos como exemplo o primeiro Modo de Enesidemo acerca da variedade dos animais identificado noseguinte argumento do Contra os Muacutesicos ldquoa mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute demodo algum para os homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitantemas perturbadorardquo (M VI 20)
134 Sobre os Modos de Enesidemo ver Annas amp Barnes (1985)
63
complementaacute-los Para Spinelli (2010 p 259) ldquotodo objeto de investigaccedilatildeo pode ser referido
a esses Modosrdquo
Jaacute no iniacutecio do primeiro livro do Contra os Professores Sexto faz uma refutaccedilatildeo geral
com a pretensatildeo de mostrar que natildeo existem tais ensinamentos Sua argumentaccedilatildeo aborda a
impossibilidade do aprendizado devido agrave inexistecircncia das partes necessaacuterias ao aprendizado
das disciplinas a saber o conteuacutedo ensinado o professor o aprendiz e o meacutetodo de
aprendizado (M I 40)135
Em tal exposiccedilatildeo observa-se a forma dicotocircmica e ldquoem ondasrdquo da argumentaccedilatildeo
ceacutetica ldquotudo eacute A ou B (por exemplo sensiacutevel e inteligiacutevel) poreacutem X (por exemplo os
corpos) natildeo eacute A nem B por conseguinte X natildeo existe e natildeo pode ter a propriedade Y (por
exemplo ser ensinado) e mesmo se supusermos que X eacute A ele natildeo estaacute menos privado de
Yrdquo (Pellegrin 2002 p 11-2)
A argumentaccedilatildeo ceacutetica parte de conceitos considerados dogmaacuteticos (tambeacutem
abordados em outras obras de Sexto136) privilegiando com frequecircncia os conceitos
estoicos137 Quando Sexto argumenta para mostrar a impossibilidade de existecircncia de uma
arte ele parte das noccedilotildees de ldquoconhecimentordquo ldquoverdaderdquo e ldquoexistecircnciardquo daqueles que ele
pretende refutar Em sua contra-argumentaccedilatildeo Sexto assume opiniotildees tatildeo dogmaacuteticas quanto
essas que ele visa refutar Todavia ao contraacuterio daqueles que emitiram essas opiniotildees ele natildeo
pretende assumi-las como verdadeiras mas as utiliza para mostrar o conflito entre as opiniotildees
dos dogmaacuteticos
Assim em todos os livros do Contra os Professores observa-se que o autor
utiliza o arsenal dos tropos particularmente os cinco de Agripa (diaphonia regressoao infinito relatividade hipoacutetese ciacuterculo) e os mesmo dispositivos de ataque aosfundamentos mais abstratos (inexistecircncia da prova aporia dos raciociacutenios sobre otodo e a parte) e frequentemente o equiliacutebrio das opiniotildees a equipolecircnciarealiza-se de fato mesmo se Sexto persiste menos que em outros lugares emrelacionar este resultado agrave realizaccedilatildeo de uma das foacutermulas que ele cuidadosamentecomentou no livro I das Hipotiposes (Desbordes 1990 p 168)
No Contra os Professores satildeo utilizados dois tipos de argumentaccedilatildeo explicitados pelo
proacuteprio ceacutetico De acordo com Sexto Empiacuterico ldquoo caso contra os professores foi exposto
135 O mesmo tema eacute abordado em HP III 238-279136 Cf PH II 37 PH III 38 102 M IX 359 M X 39137 Cf M I 17 20 Exemplo disso eacute o uso da noccedilatildeo estoica de tekhne como paradigma para sua refutaccedilatildeo (ver
p 54) Aleacutem disso especificamente no Contra os Muacutesicos os argumentos a respeito da utilidade da muacutesicasatildeo muito semelhantes aos de Filodemo sendo que muitas das afirmaccedilotildees a favor de sua utilidade satildeoatribuiacutedas diretamente aos estoicos Ver seccedilotildees 34 e 52
64
tanto por Epicuro quanto pelos disciacutepulos de Pirro embora de maneiras diferentesrdquo (M I
1)138 Ao compor sua argumentaccedilatildeo Sexto Empiacuterico
sente-se livre para se apropriar das opiniotildees e conclusotildees dos outros sendodogmaacuteticas ou ceacuteticas sem por essa razatildeo ter que defendecirc-las por si mesmo Issojustifica a presenccedila em M I-VI de diversas vozes entre as quais aleacutem da pirrocircnicae de outras escolas e movimentos filosoacuteficos os epicuristas como jaacute foi notado sesobressaem Isto natildeo eacute de modo algum se usado para propoacutesitos polecircmicos e emfunccedilatildeo da argumentaccedilatildeo incompatiacutevel com o pirronismo (Spinelli 2010 p 256)
De acordo com Desbordes o autor utiliza com propriedade a antilogia retoacuterica em sua
exposiccedilatildeo sobre a utilidade de certas disciplinas Para o comentador no Contra os Muacutesicos
(M VI 4-6)
Sexto assinala a diferenccedila entre essa tradiccedilatildeo [epicurista] e o meacutetodo que ele julgacomo mais propriamente ceacutetico e observando-se de perto essa oposiccedilatildeo eacuteinstrutiva Trata-se com efeito de uma dupla oposiccedilatildeo por um lado a proposta eacutedogmaacutetica visando agrave negaccedilatildeo por outro eacute mais aporeacutetica (aporetikoteron)visando a princiacutepio agrave suspensatildeo de juiacutezo aleacutem disso por um lado examina-se osargumentos do adversaacuterio de outro ataca-se diretamente os fundamentos de suaopiniatildeo (Desbordes 1990 p 168-9)
Sexto Empiacuterico toma o conceito estoico de arte como ldquosistema composto de
apreensotildees exercidas conjuntamente direcionadas para um fim uacutetil agrave vidardquo (M II 10 grifo
nosso) como paradigma do que seja uma tekhne Consequentemente uma parte da refutaccedilatildeo
ceacutetica estaacute voltada agrave utilidade das mathemata Todavia Sexto considera dogmaacuteticos os
argumentos que ele mesmo apresenta para a refutaccedilatildeo da utilidade Embora Sexto critique
sob certa perspectiva tais argumentos ele tambeacutem os toma como parte vaacutelida de sua
argumentaccedilatildeo visto que ele natildeo pretende ocultar qualquer parte da refutaccedilatildeo (ver M VI 6)
No que concerne a essa argumentaccedilatildeo contra a utilidade das tekhnai para Pellegrin
tudo parece indicar que Sexto fala de dois tipos distintos de inutilidade R Bett fazuma boa observaccedilatildeo quando nota que sendo as artes definidas pela sua utilidade osargumentos que atacam sua utilidade satildeo ldquouma variaccedilatildeordquo dos argumentos a favor dasua natildeo existecircncia visto que se ela eacute inuacutetil uma arte deixa de ser uma arte(Pellegrin 2006 p 41)
Mesmo utilizando argumentos semelhantes aos dos epicuristas Sexto Empiacuterico
apresenta no iniacutecio do Contra os Professores uma criacutetica agrave tese dogmaacutetica sustentada por
eles de que os Estudos Ciacuteclicos satildeo ineficazes para se chegar agrave sabedoria Tambeacutem de acordo
138 Sexto Empiacuterico considera que a refutaccedilatildeo agraves artes feita por Epicuro eacute dogmaacutetica por sustentar firmementeque as artes satildeo inuacuteteis aleacutem disso ele sugere que a atitude de Epicuro eacute motivada pela ignoracircncia
65
com Pellegrin apesar dessa ldquorepreensatildeordquo ao meacutetodo epicurista
nas outras passagens ao contraacuterio parece que no que concerne agraves disciplinasteacutecnicas as evidecircncias de sua inutilidade valem pela criacutetica de sua proacutepriaexistecircncia e os argumentos apresentados por certos dogmaacuteticos (os Epicuristas osCirenaicos os Ciacutenicos e outros) satildeo utilizaacuteveis pelo ceacutetico pirrocircnico Os pirrocircnicose certos dogmaacuteticos que tinham posiccedilotildees inconciliaacuteveis sobre a Filosofiaencontram-se adotando uma estrateacutegia comum no que diz respeito agraves disciplinasteacutecnicas a saber arruinar um elemento fundamental neste caso a utilidade A parteldquomais aporeacuteticardquo natildeo faz mais que continuar o trabalho de aniquilaccedilatildeo (Pellegrin2006 p 41)
O segundo tipo de refutaccedilatildeo a argumentaccedilatildeo ldquomais aporeacuteticardquo que aparece no Contra
os Professores conclui pela inexistecircncia dos princiacutepios baacutesicos ou da proacutepria arte em
questatildeo Mas como vimos o ceacutetico visa desestabilizar as teorias daqueles que pretendem ter
apreendido a verdade natildeo provar sua inexistecircncia Segundo Pellegrin os termos utilizados
por Sexto Empiacuterico tal como ldquoanyparktos anypostatos ou asystasos indicam natildeo uma
inexistecircncia no sentido ontoloacutegico mas uma inconsistecircncia ou uma ausecircncia de
fundamentordquo139 (Pellegrin 2006 p42) Eacute nesse sentido que no Contra os Muacutesicos Sexto
afirma por exemplo que ldquoo som natildeo existerdquo
Em vista disso a argumentaccedilatildeo que conclui pela ldquonatildeo-existecircnciardquo dos conceitos
apresentados no Contra os Professores tambeacutem natildeo precisa ser considerada um sinal de
dogmatismo negativo da parte do ceacutetico Se ele utiliza uma argumentaccedilatildeo de caraacuteter
destrutivo eacute antes de tudo para atacar as bases dogmaacuteticas dos conteuacutedos discutidos Nesse
caso o princiacutepio seguido pelo pirrocircnico eacute o de que ele ldquodeve concentrar os disparos de sua
polecircmica contra as bases do edifiacutecio dogmaacutetico visto que somente derrubando-as totalmente
o colapso de todos os outros aspectos teoacutericos que dependem destas bases seraacute tambeacutem
garantidordquo (Spinelli 2010 p 257)
No que diz respeito ao estilo argumentativo parece-nos plausiacutevel assumir que a visatildeo
ceacutetica permanece atuante no Contra os Professores Tal como Pellegrin (2002 p 13)
relacionamos ldquoas diferenccedilas que existem entre o Contra os Professores e os outros tratados agrave
diferenccedila entre seus objetosrdquo Consideramos que tal diferenccedila se daacute ainda em funccedilatildeo dos
proacuteprios interlocutores (os professores) aos quais os livros satildeo destinados Em suma
Sexto fala de outro modo que em suas outras obras porque ele estaacute falando de outracoisa Em M I-VI encontramo-nos com efeito fora do programa da Filosofia ceacutetica
139 Tal distinccedilatildeo eacute fundamental para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo que aparece na segunda parte do Contraos Muacutesicos
66
que Sexto expotildee no iniacutecio das Hipotiposes (I 5-6)140 (hellip) Em M I-VI comeccedila algoque eacute comparaacutevel ao tratamento da Filosofia (hellip) com as intenccedilotildees e a metodologiaceacutetica Sexto aborda um domiacutenio que natildeo eacute mais a Filosofia propriamente dita ()mas que aproxima-se em muitos aspectos da simples experiecircncia da vida cotidiana(Desbordes 1990 p 170)
44 A REACcedilAtildeO CONTRA O DOGMATISMO E A IMPORTAcircNCIA DA AUTONOMIA
DAS ARTES PARA O CETICISMO PIRROcircNICO
A refutaccedilatildeo das disciplinas tal como a compreendemos ateacute aqui implica na ideia de
que o dogmatismo natildeo estaacute simplesmente ligado aos juiacutezos filosoacuteficos mas sim e sobretudo
a uma atitude em relaccedilatildeo a uma crenccedila mdash a atitude de sustentar firmemente essa crenccedila141
Sob essa perspectiva o ceacutetico natildeo estaacute preocupado em refutar apenas teses estritamente
filosoacuteficas Ele quer combater toda e qualquer precipitaccedilatildeo dogmaacutetica mostrando que esta
acontece tambeacutem em outras aacutereas do conhecimento tanto em uma dimensatildeo praacutetica da
Filosofia142 quanto no que diz respeito agraves bases do conhecimento teacutecnico
De acordo com Desbordes o que acontece no Contra os Professores eacute uma ldquoreaccedilatildeo de
defesa contra as invasotildees excessivas da especulaccedilatildeordquo (Desbordes 1990 p 171) Segundo o
comentador ldquoo ceticismo aplica-se apenas agraves proposiccedilotildees dogmaacuteticas sobre aquilo que natildeo eacute
evidente Mas encontra-se tambeacutem proposiccedilotildees dogmaacuteticas incompatiacuteveis com as evidecircncias
do senso comum e sobre elas a posiccedilatildeo de Sexto variardquo (idem) Todavia para Desbordes a
oposiccedilatildeo entre uma posiccedilatildeo dogmaacutetica e a afirmaccedilatildeo de uma evidecircncia pode constituir uma
diaphonia que conduziria agrave suspensatildeo de juiacutezo
No Contra os Professores enfatiza-se a diferenccedila entre a vida cotidiana e a
especulaccedilatildeo intelectual Tal diferenccedila foi sublinhada tambeacutem no Contra os Moralistas (M XI
165) ldquoo ceacutetico natildeo conduz sua vida de acordo com o discurso filosoacutefico (ele eacute inativo sob
essa perspectiva) mas de acordo com a observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica ele eacute capaz de escolher isso
e rejeitar aquilordquo
Sob essa perspectiva a da observaccedilatildeo natildeo filosoacutefica determinar o sentido em que um
conceito seraacute discutido eacute procedimento comum na obra de Sexto Empiacuterico Em todos os
livros do Contra os Professores aparecem definiccedilotildees dos sentidos em que cada uma das Artes
eacute atacada em oposiccedilatildeo agravequilo que eacute preservado de cada uma delas Se por um lado as Artes140 Sexto pontua a conclusatildeo do relato acerca da refutaccedilatildeo ceacutetica agrave Filosofia em M XI 257141 Tendo em vista a interpretaccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico que apresentamos acima Ver seccedilatildeo 41
(especificamente p 48-9)142 Na questatildeo acerca da Arte de Viver abordada em HP III
67
devem ser refutadas em funccedilatildeo de seus aspectos dogmaacuteticos por outro elas devem ser
preservadas na medida em que satildeo uacuteteis natildeo segundo a definiccedilatildeo dogmaacutetica dos estoicos
mas de acordo com o criteacuterio praacutetico do ceacutetico segundo o qual ldquoalgumas artes foram
introduzidas principalmente com o objetivo de evitar coisas prejudiciais outras com o de
descobrir coisas beneacuteficas medicina eacute um exemplo do primeiro tipo sendo uma arte curativa
que alivia a dor e navegaccedilatildeo do segundo tipo pois todos os homens precisam muito da
assitecircncia de outras naccedilotildeesrdquo (M I 51)
Ao longo do Contra os Professores Sexto apresenta o sentido em que cada uma das
artes natildeo eacute refutada
noacutes temos a gramaacutetica baacutesica ou grammatistike (M I 44 49 ss e talvez II 13) mastambeacutem poesia (M I 278 299) ldquoastrometeorologiardquo baseada na observaccedilatildeo dofenocircmeno (M V 1-2) tal como agricultura (M V 2) ou a arte da pilotagem (M I51 II 13 V 2 ver tambeacutem M VIII 203) e tambeacutem talvez escultura e pintura (MI 182) muacutesica enquanto a simples execuccedilatildeo de instrumentos (M VI 1) eobviamente a medicina (M I 51 II 13) e talvez finalmente a Filosofia secompreendida em um sentido genuinamente pirrocircnico (novamente M II 13 mastambeacutem I 280 296 e II 25) (Spinelli 2010 p 258 grifo nosso)
Enquanto parte do criteacuterio praacutetico as artes natildeo podem ser simplesmente eliminadas
por isso a distinccedilatildeo entre arte dogmaacutetica e arte relacionada agrave vida comum eacute essencial para o
ceacutetico De acordo com Spinelli
Sexto parece se dirigir agraves artes ou tekhnai ao inveacutes dos aspectos especiacuteficos doraciociacutenio filosoacutefico e essas tecircm caracteriacutesticas diferentes Embora tambeacutempretenda-se que estejam ancoradas a uma estrutura teoacuterica que visa uma verdadedita incontroversiacutevel a qual eacute objeto das criacuteticas destrutivas de Sexto em vaacuterioslivros de M I-VI parece que elas satildeo para aleacutem disso e especialmente perigosas em outra direccedilatildeo Tais tekhnai de modos diferentes e em diferentes graussatildeo de fato natildeo apenas uma fonte de precipitaccedilatildeo dogmaacutetica no niacutevel do argumentoabstrato mas representam uma ameaccedila agrave uacutenica estrutura de referecircncia moral ecomportamental que o ceacutetico aceita as aparecircncias relacionadas agrave vida comum oukoinos bios (PH I 17) Aqui entatildeo estaacute a explicaccedilatildeo para a dicotomia deaproximaccedilotildees notada anteriormente tal como a estrateacutegica alianccedila temporaacuteria comalgumas criacuteticas Epicuristas acerca da falta de utilidade das Artes LiberaisParticularmente entretanto torna-se mais faacutecil entender as tantas ressalvas feitaspor Sexto em defesa da legitimidade de algumas tekhnai e da possibilidade depraticaacute-las agraves vezes em contraste expliacutecito com as Artes Liberais (Spinelli 2010p 258 grifo nosso)
Em funccedilatildeo disso a diferenccedila entre o meacutetodo utilizado contra a Filosofia e este
utilizado no caso das tekhnai se daacute natildeo soacute porque os objetos refutados satildeo diferentes mas
porque essa diferenccedila eacute fundamental para a coerecircncia interna do ceticismo O Contra os
68
Professores inicia-se com a justificativa de que a refutaccedilatildeo agraves mathemata acontece porque em
relaccedilatildeo a elas o ceacutetico encontrou as mesmas dificuldades que havia encontrado em relaccedilatildeo agrave
Filosofia Dificuldades essas ele explicita ligadas agrave pretensatildeo de verdade dessas disciplinas
ou em outras palavras ao dogmatismo impliacutecito (e muitas vezes expliacutecito) nas afirmaccedilotildees
dos professores das mathemata
Faz-se necessaacuterio para o ceacutetico mostrar a vaidade destes discursos dogmaacuteticos queas artes sustentam sobre elas mesmas e natildeo mostrar que haacute teses opostas de forccedilaigual enunciadas pelos teoacutericos de cada uma dessas artes entre as quais o ceacuteticonatildeo pode escolher (hellip) portanto as ldquodificuldades iguaisrdquo agravequelas encontradas naFilosofia que satildeo aquelas com as quais o ceacutetico se confrontou no que concerne agravesdisciplinas teacutecnicas natildeo satildeo ou pelo menos natildeo principalmente a igualdade dasteses contraditoacuterias e a irregularidade do real Incumbe-se ao ceacutetico mostrar ainconsistecircncia teoacuterica das descriccedilotildees que as artes datildeo a si mesmas (Pellegrin2006 p 43 grifo nosso)
Se o Contra os Professores aparece como uma reaccedilatildeo quase pessoal de Sexto
Empiacuterico ao dogmatismo dos professores das mathemata isso se daacute porque estes dogmatizam
a respeito de uma aacuterea decisiva para a coerecircncia interna da praacutetica ceacutetica O ceacutetico recusa as
teorias a respeito das artes natildeo soacute porque elas partem de premissas natildeo evidentes mas
tambeacutem porque a determinaccedilatildeo da natureza de certos aspectos de uma arte eacute algo
completamente inuacutetil para a sua execuccedilatildeo A possibilidade de execuccedilatildeo de uma arte eacute por sua
vez algo essencial agrave legitimidade do criteacuterio praacutetico e consequentemente para a
legitimidade do proacuteprio ceticismo pirrocircnico
Nesse sentido a suspensatildeo de juiacutezo nunca mencionada no Contra os Professores natildeo
estaacute diretamente em questatildeo Eacute tendo em vista as ldquopretensotildees de uma arte de possuir uma
estrutura teoacuterica e principalmente princiacutepios que Sexto pretende anairein derrubar anular
as disciplinas teacutecnicasrdquo (Pellegrin 2006 p 44)
Se o ceacutetico faz uma distinccedilatildeo entre as tekhnai que ele considera dogmaacuteticas (aquelas
que compunham os Estudos Ciacuteclicos) e as tekhnai de acordo com o criteacuterio praacutetico eacute porque
ele ldquopressente a possiacutevel autonomia de um pensamento teacutecnico (hellip) apenas as tekhnai que
satildeo pode-se dizer servas de primeira ordem da Filosofia teriam o meacuterito de ser atacadas
pelo ceacutetico (Pellegrin 2002 p 34) Por isso podemos concluir junto com Pellegrin que
ldquomesmo quando ele pretende combater outra coisa que a Filosofia Sexto ainda estava
combatendo a sombra da Filosofiardquo (idem)
69
5 COMENTAacuteRIO AO CONTRA OS MUacuteSICOS
O Contra os Muacutesicos comeccedila com a distinccedilatildeo entre alguns sentidos do termo
ldquomuacutesicardquo para definir o escopo da refutaccedilatildeo Tendo definido em que sentido o termo seraacute
refutado Sexto apresenta os dois tipos de argumentaccedilatildeo que seratildeo utilizados O primeiro
conjunto de argumentos sobre a utilidade da muacutesica eacute carregado de exemplos que dialogam
com diversas fontes da Antiguidade o segundo conjunto sobre a teoria musical apresenta os
principais conceitos desta teoria e os refuta Agora que jaacute compreendemos o conceito de
mousike e seu sentido enquanto uma das disciplinas que faziam parte da enkyklios paideia na
eacutepoca de Sexto Empiacuterico e tendo aleacutem disso apreendido o sentido da refutaccedilatildeo ceacutetica agraves
tekhnai como um todo cabe ainda tecer algumas consideraccedilotildees diretamente sobre o conteuacutedo
do Contra os Muacutesicos
51 A TEORIA MUSICAL ENQUANTO ALVO DA REFUTACcedilAtildeO CEacuteTICA (sect 1- 6)
511 ldquoA muacutesica eacute dita de trecircs modosrdquo
Sexto Empiacuterico distingue trecircs sentidos em que o termo ldquomuacutesicardquo eacute utilizado enquanto
ldquociecircncia acerca das melodias [episteme tis peri melodias] sons e composiccedilatildeo de ritmosrdquo
ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo [he peri organiken empeiria] e ldquosucesso na realizaccedilatildeo de
alguma coisardquo (M VI 1-2) Esse uacuteltimo considerado por Sexto Empiacuterico como menos
apropriado eacute derivado de um sentido amplo de ldquomousikerdquo que inclui todas as artes e ciecircncias
presididas pelas Musas Por isso ldquomusicalrdquo (mousikos) pode ser atribuiacutedo agravequele que eacute
ldquodotado pelas Musas culto refinado eleganterdquo (Tomaacutes 2002 p 40-1)
Na primeira definiccedilatildeo Sexto Empiacuterico toma Aristoacutexeno como exemplo de muacutesico e eacute
apenas nesse sentido que ele pretende refutar a muacutesica ldquopor ter sido estabelecido como o
mais completordquo (M VI 3)
A definiccedilatildeo que Sexto Empiacuterico apresenta pode de fato ser encontrada na obra de
Aristoacutexeno mas como definiccedilatildeo da ciecircncia harmocircnica que eacute uma das partes da muacutesica Para
Aristoacutexeno a muacutesica eacute dividida em quatro partes143 entre elas a harmonike eacute a principal e
143 ldquo() ciecircncia harmocircnica eacute uma parte da competecircncia do muacutesico assim como a riacutetmica a meacutetrica e a
70
por sua vez eacute dividida em sete partes notas intervalos escalas gecircneros sistemas
modulaccedilatildeo e melopeia (Aristoacutexeno El Harm 4410-48) Pela sua definiccedilatildeo de mousike a
partir de uma de suas partes ‒ que eacute a harmonike ‒ nota-se que Sexto Empiacuterico apresenta uma
definiccedilatildeo pouco exata de mousike De acordo com Reyes essa aproximaccedilatildeo entre mousike e
harmonike pode natildeo ser tatildeo imediata ldquotonos eacute um elemento da harmonike enquanto a
rythmopoiia eacute um elemento da mousike melodia pode ser referida por Sexto agrave melopoiia (que
pertence agrave harmonike embora pareccedila ser utilizada aqui para designar o termo geneacuterico
melos)rdquo (Reyes 2004 p 99) A princiacutepio algueacutem poderia simplesmente supor que Sexto
Empiacuterico natildeo domina o assunto Natildeo obstante essa primeira definiccedilatildeo aparece acompanhada
da expressatildeo ldquoe coisas desse tipordquo (kai ta paraplesia katagignomene pragmata) o que abre
espaccedilo para se considerar que a intenccedilatildeo de Sexto Empiacuterico eacute dar uma definiccedilatildeo bastante
geral sobre a muacutesica
O objetivo de Sexto Empiacuterico no Contra os Muacutesicos implica uma refutaccedilatildeo que natildeo
tem uma teoria especiacutefica enquanto alvo mas antes uma perspectiva comum sobre a muacutesica
Nesse sentido a definiccedilatildeo de Aristoacutexeno (enquanto o representante do grupo de teoacutericos
chamados ldquomuacutesicosrdquo) tem caraacuteter paradigmaacutetico a respeito daquilo que se quer discutir visto
que ela eacute tida como a ldquomais completardquo (M VI 3)
Se a muacutesica eacute objeto da refutaccedilatildeo ceacutetica enquanto uma das disciplinas da enkyklios
paideia sua definiccedilatildeo enquanto episteme coloca-a no grupo das ldquoartes baseadas na razatildeordquo144
as logiken tekhnai A mousike enquanto episteme definida por elementos da harmonike eacute
oposta por Sexto Empiacuterico a outro conceito que aparece tambeacutem em Aristoacutetexo a organike
Embora a organike apareccedila como uma das partes da mousike ao lado da harmonike os
autores da tratadiacutestica musical desconsideram a parte praacutetica da muacutesica considerando-a
alogos (irracional)145 A organike enquanto arte praacutetica (pratike tekhne) aparece junto do
termo ldquoempeiriardquo (experiecircncia) destacando o seu caraacuteter praacutetico
Reyes aponta que ldquona eacutepoca de Sexto o oposto agrave harmonike eacute jaacute claramente a
organike (hellip) Os organikoi isto eacute a organike de Sexto nem sequer participa da discussatildeo
dos kriteria em muacutesica tatildeo relevante nessa eacutepocardquo (Reyes 2004 p 100) Tal recorte de
acordo com a cisatildeo entre teoria e praacutetica musical na Antiguidade evidencia que Sexto estaacute
preocupado em refutar a muacutesica enquanto teoria e natildeo como uma arte praacutetica
orgacircnicardquo (Aristoacutexeno El Harm 419-12 traduccedilatildeo Roosevelt Rocha)144 Ver seccedilatildeo 42 (p 57)145 Aristides Quintiliano De Mus (419-20) Cleonides Harm (1793-4 Jan) Anon Bellerm (12)
71
512 Os dois tipos de refutaccedilatildeo agrave muacutesica teoacuterica perspectivas eacutetica e epistemoloacutegica
A argumentaccedilatildeo presente no Contra os Muacutesicos segue o modelo argumentativo
apresentado no capiacutetulo anterior146 e foi dividida explicitamente pelo autor em dois conjuntos
de argumentos e contra-argumentos Tendo definido o objeto a ser refutado a teoria musical
(no sentido amplo do termo147) Sexto Empiacuterico ldquoalinhou sucessivamente argumentos mais
dogmaacuteticos [dogmatikoteron] e em seguida argumentos mais aporeacuteticos [aporetikoteron]rdquo
(Pellegrin 2002 p 46) atribuindo-os inicialmente a ldquounsrdquo e ldquooutrosrdquo Para o ceacutetico
Uns de modo mais dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute umensinamento necessaacuterio para a felicidade mas muito prejudicial e eles seesforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo que eacute dito pelos muacutesicos esustentando que seus argumentos principais eram dignos de negaccedilatildeo Outros de ummodo mais aporeacutetico evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo ao desestabilizar asprincipais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem destruir toda a muacutesica (M VI4-5 grifo nosso)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos (M VI 7-37) a discussatildeo se daacute a respeito da
utilidade da muacutesica se ela eacute ou natildeo necessaacuteria para a felicidade Isso porque desde Platatildeo
as questotildees esteacuteticas satildeo apresentadas tipicamente em contextos inextricaacuteveis dequestotildees eacuteticas e poliacuteticas mais amplas a beleza estaacute mais intimamente ligada como bem do que noacutes tenderiacuteamos a assumir e as artes satildeo amplamente consideradasem termos de seus efeitos eacuteticos e pedagoacutegicos de seu papel na sociedade etc EPlatatildeo dita o tom a respeito disso para a Filosofia Grega bastante posterior a eleComo veremos os Estoicos parecem tecirc-lo seguido nisso enquanto os Epicuristasque argumentaram contra o poder eticamente transformativo da muacutesica claramentese consideram como desafiando uma visatildeo amplamente sustentada (Bett 2013 p156-7)
Se a discussatildeo das artes estaacute ligada a seu papel pedagoacutegico e poliacutetico a questatildeo da
utilidade da muacutesica eacute um problema eacutetico e natildeo esteacutetico De acordo com Bett os argumentos
eacuteticos apresentados pelo ceacutetico em geral abrangem duas questotildees centrais ldquose algo eacute bom
ou ruim por natureza (hellip) e quais satildeo as consequecircncias praacuteticas de uma resposta afirmativa a
essa questatildeordquo (Bett 2013 p 157) e se existe (tal como afirmavam os Estoicos) ou natildeo uma
Arte de Viver
Enquanto os filoacutesofos e a maioria das pessoas acreditam que a muacutesica pode ser boa
por natureza os filoacutesofos Epicuristas148 satildeo aqueles ldquounsrdquo que ldquode modo mais dogmaacutetico
146 Ver seccedilotildees 43 e 431147 Ver Introduccedilatildeo (p 10) e seccedilatildeo 31148 Mostraremos adiante a relaccedilatildeo estreita entre os argumentos do filoacutesofo epicurista Filodemo e os de Sexto
72
tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute um ensinamento necessaacuterio para a felicidaderdquo (M VI 4)
Ainda que Sexto Empiacuterico atribua explicitamente alguns dos contra-argumentos aos
epicuristas (ver M VI 1927) ele continua considerando que eles satildeo dogmaacuteticos149 visto que
sustentam firmemente a crenccedila150 de que determinadas teses satildeo falsas (HP I 1-10) Nesse
sentido seus argumentos satildeo usados pelo ceacutetico para apresentar um ponto de vista contraacuterio
ao da maioria
Embora os argumentos contra a utilidade da muacutesica recebam mais atenccedilatildeo do ceacutetico
do que os a favor (ateacute porque estes jaacute eram bastante conhecidos por aqueles aos quais o
Contra os Muacutesicos se dirige) consideramos tal como Bett (2013 p 162) que ldquonatildeo eacute difiacutecil
observar isso como um exemplo do procedimento padratildeo de Sexto de justapor argumentos
para conclusotildees opostas visando induzir a suspensatildeo do juiacutezo a respeito de ambos os ladosrdquo
apesar da suspensatildeo do juiacutezo natildeo ser diretamente mencionada ao longo do Contra os
Professores151
Na segunda parte da obra (M VI 38-68) Sexto apresenta brevemente alguns
conceitos da teoria musical (em sentido estrito) especificamente os da ciecircncia harmocircnica de
Aristoacutexeno e contra isso sustenta argumentos contra os princiacutepios baacutesicos da teoria musical
visando mostrar a inexistecircncia dos conceitos a partir dos quais a ciecircncia harmocircnica se
constroacutei152 Nesse ponto natildeo haacute propriamente uma oposiccedilatildeo de argumentos mas basicamente
a apresentaccedilatildeo de alguns conceitos e argumentos destinados a minar a sua possibilidade de
existecircncia153 e com isso a coerecircncia interna de toda a teoria musical
Essa argumentaccedilatildeo inicialmente atribuiacuteda a ldquooutrosrdquo (M VI 6) considerada pelo
ceacutetico como de caraacuteter ldquomais aporeacuteticordquo (aporetikoteron) ou ldquomais em um espiacuterito de
impasserdquo (como Bett traduz) eacute apresentada por Sexto Empiacuterico em primeira pessoa ldquose
mostrarmos que nem as melodias existem e nem os ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos
mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existerdquo (M VI 38 grifo nosso) De acordo com Bett
na habitual terminologia pirrocircnica utilizada por Sexto os propagadores doldquoimpasserdquo (aporia) satildeo os proacuteprios ceacuteticos e aporetikos eacute um dos roacutetulos
Empiacuterico Ver seccedilatildeo 52 (p 74-8)149 A relaccedilatildeo entre ceticismo e epicurismo no Contra os Professores foi abordada na seccedilatildeo 431 (p 64-6)150 Ver p 49151 De fato tal como foi discutido na seccedilatildeo 431 a suspensatildeo de juiacutezo natildeo parece ser o que estaacute em jogo nesta
parte do Contra os Muacutesicos embora os recursos argumentativos sejam os mesmos da argumentaccedilatildeo quevisa levar agrave suspensatildeo
152 Tambeacutem nessa segunda parte pode-se identificar os Modos de Enesidemo e Agripa que estatildeo de acordo como meacutetodo ceacutetico Ver por exemplo M VI 55 67
153 Jaacute explicitamos anteriormente (ver p 65) em que sentido a argumentaccedilatildeo a respeito da natildeo existecircncia podeser compreendida nos escritos pirrocircnicos
73
alternativos para ldquoceacuteticordquo listados no iniacutecio das Hipotiposes Pirronianas (HP I 7)contrariamente ldquodogmaacuteticosrdquo eacute o termo padratildeo de Sexto para aqueles filoacutesofosnatildeo-ceacuteticos dos quais ele anseia se afastar (Bett 2013 p 162)
Visto que o ceticismo pirrocircnico se aproxima da argumentaccedilatildeo chamada ldquoaporeacuteticardquo e
busca combater o dogmatismo torna-se inevitaacutevel questionarmos por que Sexto Empiacuterico
utiliza esses dois tipos de argumentaccedilatildeo se ele claramente daacute preferecircncia ao segundo tipo
Ora apesar de termos apresentado uma explicaccedilatildeo bastante plausiacutevel para o modelo
argumentativo presente em todo o Contra os Professores154 no caso do Contra os Muacutesicos
podemos arriscar ainda uma razatildeo a mais para isso Se como sugerimos155 Sexto Empiacuterico
utiliza argumentos de estilos diferentes tendo em vista o puacuteblico ao qual seus escritos se
dirigem ‒ os Professores das disciplinas das enkyklia mathemata ‒ no caso da muacutesica apesar
de o autor parecer confiar mais no segundo os dois tipos de argumentaccedilatildeo abordam aspectos
diferentes da teoria musical Por um lado temos a discussatildeo a respeito do papel eacutetico
atribuiacutedo agrave muacutesica centrada na questatildeo de sua utilidade para se chegar agrave felicidade e por
outro a discussatildeo epistemoloacutegica que aborda a muacutesica enquanto uma ciecircncia centrada na
coerecircncia das teses defendidas Se a muacutesica foi de fato abordada sob essas duas perspectivas
na Greacutecia Antiga156 natildeo eacute estranho supor que Sexto utilize dois tipos de refutaccedilatildeo
especificamente contra estes dois acircmbitos da teoria musical a fim de abarcar a mousike em
sua totalidade
52 DISCUSSAtildeO DA UTILIDADE DA MUacuteSICA (sect 7-37)
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida
a utilidade da muacutesica compreendida em um sentido amplo ligada agrave possibilidade de produzir
felicidade (eudaimonia) Tal questatildeo estaacute relacionada agrave ideia de que a muacutesica trazia em si o
poder de afetar a alma e o caraacuteter do ouvinte e por isso seria uacutetil
Como destacamos no primeiro capiacutetulo diversas satildeo as questotildees discutidas pelos
filoacutesofos a respeito da muacutesica (como a muacutesica deve ser ensinada o quanto ela deve ou natildeo
ser praticada quais modos satildeo bons e quais natildeo devem ser executados o papel da muacutesica
instrumental o poder da muacutesica de afetar a alma do ouvinte a ponto de alterar o seu caraacuteter
etc) mas a questatildeo em uacuteltima instacircncia eacute a sua utilidade para a vida Platatildeo atribuiu agrave
154 Ver seccedilatildeo 431155 Ver seccedilatildeo 431 (especialmente p 63 65)156 Tal como observamos ao longo da seccedilatildeo 3 a diferenccedila entre as abordagens de Platatildeo e Aristoacuteteles por um
lado e Aristoacutexeno por outro
74
muacutesica um grande valor eacutetico e um papel fundamental na educaccedilatildeo e a maioria dos
pensadores posteriores seguiu esse caminho Sua utilidade para a vida em funccedilatildeo de seu
papel psicagoacutegico foi tomada como ponto de comum acordo entre a maioria dos teoacutericos e
pessoas comuns
Na primeira parte do Contra os Muacutesicos Sexto se propotildee a apresentar ldquoas coisas
sobre a muacutesica repetidas costumeiramente pela maioriardquo (M VI 7) e para refutaacute-las o ceacutetico
utiliza contra-argumentos muito parecidos com os que satildeo encontrados no De Musica de
Filodemo (seccedilatildeo 132) Os argumentos a favor da muacutesica satildeo apresentados de maneira breve
(M VI 7-18) e respondidos na mesma ordem (M VI 19-28) Em seguida Sexto apresenta a
discussatildeo que ele considera ldquoprincipalrdquo aquela que de acordo com ele diz respeito
explicitamente agrave utilidade da muacutesica (M VI 29-37)
De acordo com Bett (2013 p 170) ldquohaacute boas razotildees para crer que a duacutevida de Sexto
Empiacuterico nesta parte do livro vai aleacutem das duas menccedilotildees expliacutecitas aos epicuristas (M VI 19
27)rdquo Isso se deve natildeo soacute agraves semelhanccedilas entre as estruturas do texto ceacutetico e do epicurista
mas tambeacutem porque muitos dos exemplos que observamos no Contra os Muacutesicos aparecem
tambeacutem no De Musica
Dentre os exemplos e argumentos que aparecem em ambos os textos temos a anedota
de Pitaacutegoras (M VI 8 23 e De mus col 39-44) a histoacuteria dos Espartanos guerrearem ao
som do aulo e da lira (M VI 9 24 e De Mus col 72 43-73) Clitemnestra sendo deixada aos
cuidados de um muacutesico (M VI 11-2 26 e De mus col 49 23-7) e Soacutecrates aprendendo a
tocar lira (M VI 13 e De mus col 139 39-40) Aleacutem da semelhanccedila entre os exemplos
mencionados haacute uma seacuterie de afirmaccedilotildees e argumentos a respeito da muacutesica que podem ser
encontrados em ambos os autores
O primeiro argumento a favor da muacutesica apresentado por Sexto Empiacuterico diz respeito
agrave crenccedila de que esta ldquoregula a vida humana e refreia as afecccedilotildees da almardquo (M VI 7) Contra
isso Sexto argumenta que ldquonatildeo eacute prontamente concebiacutevel que por natureza algumas
melodias excitam a alma e outras tranquilizamrdquo (M VI 19) elencando dois argumentos para
isso
O primeiro argumento parte de um exemplo atribuiacutedo nominalmente aos epicuristas
para mostrar que ldquoalgumas melodias musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de
outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada por noacutesrdquo (M VI 20) Natildeo obstante esse exemplo
antecede um raciociacutenio baseado no primeiro Modo de Enesidemo157 Aqui observamos a
157 Sobre os Modos ver p 62 Especificamente sobre essa passagem ver M VI 20 nota 245 agrave nossa traduccedilatildeo
75
ideia de que a influecircncia que alguma melodia possa por ventura ter depende natildeo de sua
natureza mas do modo como aquilo aparece ao ouvinte (ideia compartilhada entre epicuristas
e ceacuteticos) A isso Sexto acrescenta que ldquonatildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica
refreia o pensamento mas porque tem o poder de distrairrdquo (M VI 21 e De Mus col 78 32-
7)
Em seguida tomando os Espartanos e a ira de Aquiles como exemplo Sexto diz que
ldquotal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a ser corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempetordquo (M VI 10) Contra isso o
argumento apresentado eacute novamente o de que a muacutesica faz isso porque distrai a mente (M VI
24 e De mus Col 68 33-40 e tambeacutem col 122 10-1)158
Embora apareccedilam mesclados a tantos outros argumentos tais argumentos abrangem
questotildees muito debatidas ateacute o presente159 merecendo alguma atenccedilatildeo A ideia de que o efeito
natildeo estaacute na muacutesica mas em nossa opiniatildeo eacute absolutamente revolucionaacuteria em relaccedilatildeo a tudo
que era comumente dito sobre muacutesica Enquanto os pitagoacutericos e em seu rastro Platatildeo e
tambeacutem os Estoicos atribuiacuteam um valor objetivo agrave muacutesica considerando seus efeitos fruto de
sua natureza Filodemo e Sexto Empiacuterico datildeo talvez pela primeira vez um tratamento que
poderiacuteamos chamar ldquosubjetivordquo160 agrave muacutesica161 Para o ceticismo isso se daacute porque natildeo temos
acesso aos objetos externos agrave nossa mente e consequentemente natildeo temos acesso agrave natureza
das coisas que por natureza natildeo satildeo boas nem maacutes essa opiniatildeo sendo acrescentada por
noacutes162 Do mesmo modo o efeito da muacutesica na mente humana eacute desvinculado de sua natureza
e o papel atribuiacutedo agrave muacutesica varia de acordo com a situaccedilatildeo e o contexto do ouvinte
dependendo natildeo da natureza da muacutesica mas da nossa opiniatildeo163
O uacuteltimo grupo de argumentos (M VI 29-37) aparece como uma compilaccedilatildeo das
principais alegaccedilotildees a respeito da utilidade da muacutesica seguida da refutaccedilatildeo sextiana164 O
(p 99)158 Para mais paralelos entre as duas obras ver Bett (2013 p 170 - 1)159 Referimo-nos aqui ao debate a respeito da autonomia da muacutesica Ver Introduccedilatildeo (p 12-3)160 O termo ldquosubjetivordquo eacute aqui utilizado com aspas por estar ligado diretamente agrave Filosofia moderna sendo
neste caso anacrocircnico Natildeo obstante o modo como o ceacutetico aborda certos conceitos aproxima-se muitodaquilo que posteriormente foi ligado ao conceito de ldquosubjetividaderdquo
161 Sobre a oposiccedilatildeo entre objetividade e subjetividade no pensamento esteacutetico da Antiguidade verTatarkiewicz (1963)
162 Ver o iniacutecio da seccedilatildeo 41163 Tais conjecturas satildeo reencontradas nas especulaccedilotildees sobre muacutesica apenas no seacuteculo XIX Eduard Hanslick
em O belo musical (1854) defende que a muacutesica natildeo exprime nenhum sentimento sendo completamenteassemacircntica
164 Para Bett (2013 p 174) aqui haacute uma mudanccedila de foco que explicaria o fato desses argumentos natildeo teremparalelos com passagens em Filodemo Entretanto tambeacutem aqui podemos encontrar muitas aproximaccedilotildeescom o texto de Filodemo as quais pontuamos a seguir
76
primeiro apresenta a ideia de que ldquoos que cultivaram o gosto pela muacutesicardquo (M VI 29) tecircm
mais prazer com ela do que as pessoas comuns ao que Sexto Empiacuterico responde que este natildeo
eacute um prazer necessaacuterio (M VI 31)165 e que mesmo que o fosse a experiecircncia musical natildeo eacute
fundamental para isso visto que tambeacutem aqueles que satildeo considerados desprovidos de
experiecircncia ou compreensatildeo musical (os animais e as crianccedilas) parecem ter prazer com a
muacutesica e por fim acrescenta-se que assim como aquele que natildeo eacute instruiacutedo na arte da
culinaacuteria obteacutem o mesmo prazer ao saborear a comida o especialista tem com a muacutesica o
mesmo prazer que o homem comum166 (M VI 33-4 e De Mus col 143 6-12)
Sobre essa discussatildeo Bett (2013 p 174) insinua que Sexto Empiacuterico se contradiz por
discutir a necessidade de ldquoexperiecircncia musicalrdquo visto que ldquoexperiecircncia musicalrdquo era aquilo
que tinha ficado fora do escopo da discussatildeo (ver M VI 1 3) Todavia o que estaacute em jogo
aqui eacute a teoria de que a educaccedilatildeo musical (que inclui a praacutetica musical) deveria acontecer tal
como considera Aristoacuteteles ldquona medida suficiente para possibilitar a fruiccedilatildeo das boas
melodias e ritmos sem se limitar agrave parte comum da muacutesica como acontece com a maioria dos
escravos crianccedilas e alguns animaisrdquo (Aristoacuteteles Pol 1341 A ver tambeacutem Platatildeo Leis 812
B-C)167 A questatildeo aqui eacute que Aristoacuteteles diferencia a fruiccedilatildeo obtida por aquele que eacute educado
musicalmente daquela obtida por seres ldquodesprovidos de razatildeordquo como tipos diferentes de
prazer e defende a utilidade do ensino da muacutesica para que se obtenha o prazer que acompanha
apenas a boa muacutesica A discussatildeo em Sexto restringe-se agrave necessidade da praacutetica musical para
que se obtenha prazer (qualquer que seja168) nas muacutesicas ouvidas ao que se responde que a
praacutetica natildeo eacute necessaacuteria visto que aqueles que natildeo satildeo educados musicalmente tambeacutem
obtecircm prazer nela Contrariamente ao que Bett insinua a questatildeo em pauta eacute novamente a
utilidade do ensino da muacutesica do qual a praacutetica participaria apenas em certa medida
O segundo argumento sobre a utilidade da muacutesica sustenta que ldquonatildeo acontece de os
homens virem a ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicosrdquo (M VI 29) A
discussatildeo aqui diz respeito ao papel da muacutesica no desenvolvimento das virtudes Se a
finalidade da educaccedilatildeo eacute o desenvolvimento das virtudes e estas satildeo necessaacuterias para a
felicidade visto que a muacutesica eacute considerada por muitos como parte fundamental da165 Tal posiccedilatildeo eacute defendida pelos epicuristas (Filodemo De Mus col 151 29-31)166 Essa analogia com a arte de cozinhar pode ser encontrada tambeacutem na Poliacutetica de Aristoacuteteles (Pol 1039 A)
onde o filoacutesofo questiona a necessidade do aprofundamento na praacutetica musical para que as pessoas possamfruiacute-la corretamente e afirma que concluir essa necessidade seria o mesmo que dizer que para se apreciarboa comida eacute necessaacuterio aprender a cozinhar Tal constataccedilatildeo antecede a proacutexima discussatildeo a respeito nanecessidade da praacutetica musical para sua fruiccedilatildeo
167 Ver p 34 40-1168 Conforme salientamos na primeira seccedilatildeo (p 25) Platatildeo e Aristoacuteteles fazem uma diferenciaccedilatildeo entre tipos de
prazer
77
educaccedilatildeo a muacutesica seria fundamental para o desenvolvimento das virtudes e
consequentemente para se alcanccedilar a felicidade169 Esse eacute um dos aspectos principais da
discussatildeo eacutetica sobre a muacutesica tomado como certo pela maioria dos autores (como
observamos no primeiro capiacutetulo) consequentemente essa eacute tambeacutem uma das principais
teses combatidas por Filodemo
Contra esse segundo argumento Sexto considera que a muacutesica pode conduzir os
jovens agrave intemperanccedila e agrave luxuacuteria (M VI 34-5) tal como tambeacutem aponta Filodemo (De Mus
col 127 28-30) Utilizando um recurso tipicamente ceacutetico Sexto simplesmente aponta que
se ldquoeacute fatordquo que ela leva agrave virtude tambeacutem ldquoeacute fatordquo que ela leva igualmente ao viacutecio
apresentando um exemplo que contraria a tese de que a muacutesica deveria ser valorizada porque
leva agrave virtude
O terceiro argumento que Sexto apresenta consiste na afirmaccedilatildeo de que ldquoacontece de
os elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofiardquo (M
VI 30 e De Mus col 136 10-137170) Contra isso Sexto argumenta que de acordo com
essas ideias tambeacutem natildeo se pode dizer que a utilidade da muacutesica se deve ao fato de esta e a
Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos (M VI 36) Para refutar a tese de que a
Filosofia e a muacutesica tecircm elementos em comum Sexto apenas reporta-se agrave sua refutaccedilatildeo ao
argumento anterior
Em sua anaacutelise Bett limita-se a afirmar que ldquoeacute difiacutecil perceber como essa ideia [a
refutaccedilatildeo apresentada anteriormente] deveria ser transferida para a questatildeo dos elementos
comuns entre muacutesica e Filosofia e que se poderia muito bem suspeitar de alguma ediccedilatildeo
inadequada da parte de Sextordquo (Bett 2013 p 174) De nossa parte suspeitamos da
inadequaccedilatildeo dessa leitura Jaacute em M VI 7 Sexto apresenta a teoria de que a muacutesica produz os
mesmos efeitos que a Filosofia especificamente regular a alma humana e refrear suas
afecccedilotildees mas que o faz com certa ldquopersuasividade encantatoacuteriardquo Ora o problema do
segundo argumento discutido por Sexto eacute justamente o do papel da muacutesica no
desenvolvimento das virtudes que neste caso satildeo as mesmas virtudes que a Filosofia se
propotildee a desenvolver na alma humana Eacute nesse sentido que a refutaccedilatildeo ao argumento
anterior se aplica tambeacutem a este171
Por fim Sexto aponta que a muacutesica eacute considerada uacutetil ldquoporque o cosmos eacute governado
169 Cf Aristoacuteteles Pol (1340 A) e EN (1102 A)170 Filodemo (De Mus col 82-5) tambeacutem apresenta a discussatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre Muacutesica e Filosofia
e seu papel na educaccedilatildeo Para ele eacute a Filosofia que educa natildeo a muacutesica visto que esta sendo (para ele)irracional natildeo pode produzir disposiccedilotildees racionais agrave virtude ou ao viacutecio
171 Sobre isso ver M VI 7 notas 215 217 e 218 agrave nossa traduccedilatildeo (p 91)
78
de acordo com a harmoniardquo (M VI 30)172 e tambeacutem ldquoporque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da almardquo (M VI 30)173 Ao que Sexto Empiacuterico responde que esse uacuteltimo
argumento ldquojaacute foi desconsiderado como natildeo sendo verdadeiro174 e que o cosmos eacute ordenado
segundo a harmonia mostra-se falso de vaacuterios modosrdquo (M VI 36-7) aleacutem disso de acordo
com Sexto mesmo se essa tese fosse verdadeira ldquotal coisa natildeo tem poder sobre a bem-
aventuranccedila tal como a harmonia natildeo tem poder sobre os instrumentos musicaisrdquo visto que a
harmonia do cosmos eacute inaudiacutevel175 (M VI 37 e De Mus col 80)
A proximidade entre os argumentos de Sexto Empiacuterico e os de Filodemo deixa claro
que haacute alguma relaccedilatildeo forte entre os dois textos Contudo se Filodemo serviu de fonte direta
para Sexto Empiacuterico ou se eles usaram fontes em comum eacute uma questatildeo difiacutecil de ser
respondida Embora Sexto e Filodemo tenham estilos bastante diferentes para Bett se
partimos da ediccedilatildeo de Delattre (2007) do De Musica
noacutes temos um texto com um formato notavelmente similar ao modo habitual deSexto proceder e particularmente agravequilo que ele faz nesta parte do Contra osMuacutesicos A exposiccedilatildeo dos argumentos positivos a respeito da utilidade da muacutesicaseguida pelos argumentos negativos que correspondem a eles precisamente namesma ordem (hellip) estaacute muito proacutexima do modo como (se Delattre estaacute certo)Filodemo conduziu seu tratamento deste toacutepico (Bett 2013 p 172-3)
Ainda assim embora os argumentos sejam muito semelhantes Filodemo abordou o
assunto de maneira muito mais ampla e se Sexto utilizou sua obra como fonte direta ele
ldquoresumiu aquilo que pegou de Filodemo e reorganizou para seu proacuteprio usordquo (Bett 2013 p
172) Por fim a diferenccedila fundamental entre os argumentos eacute sua finalidade visto que para o
ceacutetico o epicurista eacute ainda um dogmaacutetico que espera que tomemos suas teses como
verdadeiras enquanto o ceacutetico visa neste caso combater o dogmatismo dos professores de
muacutesica enquanto uma das mathemata176
A respeito da natureza dos argumentos apresentados nesta primeira parte e do objeto
ao qual tais argumentos satildeo dirigidos resta-nos algumas observaccedilotildees Richard Bett sustenta
que Sexto Empiacuterico se contradiz por ter afirmado que soacute iria abordar a teoria musical mas
172 Filodemo (De Mus col 145 17) tambeacutem menciona essa teoria atribuindo-a a alguns neopitagoacutericos173 Essa eacute uma das principais teses atribuiacutedas por Filodemo ao estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (ver Filodemo
De Mus col 23 1-19) contra a qual como foi mostrado anteriormente ele sustenta que se a muacutesica temalgum poder de alterar a alma isso se deve ao seu poder de distrair e agraves opiniotildees que o ouvinte associaposteriormente a esta Ver acima (p 74-5) a discussatildeo dos argumentos de M VI 7 e 19
174 De fato Sexto aborda essa questatildeo inuacutemeras vezes nos paraacutegrafos anteriores Ver especialmente M VI 19-22
175 Ver M VI 37 nota 280 agrave nossa traduccedilatildeo (p 109)176 Ver seccedilatildeo 2
79
que a discussatildeo desta primeira parte do texto gira em torno da praacutetica musical177 Aqui
precisamos ter certa cautela Eacute certo que a definiccedilatildeo inicial de teoria musical natildeo parece
prontamente incluir as questotildees eacuteticas discutidas Todavia do mesmo modo a discussatildeo a
respeito da utilidade da muacutesica natildeo pode ser simplesmente subsumida ao conceito de muacutesica
enquanto ldquoempeiriardquo (experiecircncia) Se o conceito de muacutesica discutido parece estar restrito aos
aspectos teacutecnicos da teoria musical haja vista sua delimitaccedilatildeo ldquoenquanto ciecircncia das
melodias sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipordquo (M VI 1) a definiccedilatildeo de muacutesica
enquanto empeiria restringe-se (de acordo com Sexto) aos ldquomuacutesicos praacuteticosrdquo aqueles que
ldquousam aulos e salteacuteriosrdquo (M VI 1) Assim se a discussatildeo a respeito da utilidade da muacutesica
natildeo pode ser conectada agrave primeira definiccedilatildeo ela tambeacutem natildeo pode ser simplesmente
subsumida agrave segunda
O conceito de empeiria no ceticismo estaacute ligado em geral agraves artes que satildeo
aprovadas pelo ceacutetico Nesse sentido a simples execuccedilatildeo de uma peccedila em um instrumento
natildeo eacute questionada pelo ceacutetico Agora a discussatildeo da primeira parte natildeo diz respeito agrave praacutetica
do instrumentista ser ou natildeo abolida do mundo mas especificamente aborda a utilidade da
muacutesica que enquanto disciplina deveraacute ou natildeo ser ensinada178 em funccedilatildeo de sua contribuiccedilatildeo
para a felicidade
Em suma se o objetivo do Contra os Professores eacute o combate ao dogmatismo em
cada uma das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos embora a discussatildeo sobre a utilidade da
muacutesica natildeo pareccedila cair sob o escopo da definiccedilatildeo de teoria musical inicialmente apresentada
por Sexto ela permanece dentro do acircmbito teoacuterico abrangendo o papel eacutetico pelo qual
muitos autores consideraram a muacutesica uacutetil Se a discussatildeo sobre a utilidade de cada uma das
tekhnai eacute fundamental visto que uma tekhne soacute pode ser considerada como tal em funccedilatildeo de
sua utilidade179 o debate a respeito da utilidade da muacutesica natildeo diz respeito agrave praacutetica musical
(tal como Bett insinua) mas estaacute de acordo com o escopo da discussatildeo e com a finalidade do
Contra os Muacutesicos
53 REFUTACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS BAacuteSICOS DA CIEcircNCIA MUSICAL (sect 38-68)
177 Para corroborar com sua afirmaccedilatildeo Bett enfatiza a ligaccedilatildeo entre a discussatildeo sobre a ldquoexperiecircncia musicalrdquo(mousikes empeirias) em M VI 32 e a expressatildeo que parafraseando Bett Sexto originalmente usou paradesignar experiecircncia em instrumentos (organiken empeirian) Cf Bett (2013 p 174)
178 A medida que o ensino abrange praacutetica musical conhecimento teacutecnico ou ainda ldquotreinamento auditivordquo eacutebastante discutiacutevel haja vista as restriccedilotildees agrave praacutetica musical feitas por Platatildeo Aristoacuteteles e Aristoacutexeno
179 Sobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54) e 44
80
A uacuteltima parte do Contra os Muacutesicos diz respeito aos aspectos teacutecnicos da ciecircncia
musical que satildeo refutados por Sexto Empiacuterico Tendo isso em vista apresentamos os
argumentos acompanhados da explicaccedilatildeo de alguns conceitos baacutesicos da harmonike que satildeo
apresentados na segunda parte do Contra os Muacutesicos
Como vimos esse segundo tipo de argumentaccedilatildeo que aparece no Contra os Muacutesicos
(M VI 38-68) ldquoatacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais
pragmaacuteticardquo (pragmatikoteros) (M VI 38) A abordagem da muacutesica sob uma perspectiva
teacutecnica relaciona-se especificamente agrave parte da ciecircncia musical conhecida como harmonike
As definiccedilotildees dos elementos que compotildeem a harmonike apresentadas no Contra os Muacutesicos
reportam-se natildeo a um autor especiacutefico mas a diversas fontes haja vista que Sexto Empiacuterico
parece fazer um ataque geral agrave teoria da muacutesica Natildeo obstante as definiccedilotildees dos conceitos
aproximam-se em diversos momentos das definiccedilotildees apresentadas por Aristoacutexeno
A partir de Aristoacutexeno a harmonike divide-se como exposto acima180 em sete partes
notas intervalos escalas gecircneros sistemas modulaccedilatildeo e composiccedilatildeo de melodias
(Aristoacutexeno El Harm 235-8) Essas partes natildeo satildeo apresentadas ao acaso mas seguem uma
ordem em que a composiccedilatildeo de melodias eacute apresentada como finalidade (telos) e a nota como
elemento baacutesico do qual todas as outras partes dependem
A argumentaccedilatildeo de Sexto Empiacuterico visa invalidar a teoria da muacutesica a partir da
refutaccedilatildeo de seus princiacutepios baacutesicos A definiccedilatildeo de muacutesica dada nessa etapa eacute a de que ldquoa
muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico181 e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e do que
natildeo eacute riacutetmicordquo (M VI 38)182 Dada esta definiccedilatildeo Sexto parte do pressuposto loacutegico de que se
a melodia e o ritmo natildeo existirem a muacutesica tambeacutem natildeo existe Ora a melodia eacute constituiacuteda
de notas e as notas satildeo constituiacutedas de sons Entatildeo o ceacutetico ataca o conceito de som visto
que eacute a partir deste que se constitui a nota
Segundo Tomaacutes (2002 p 48) para os gregos ldquoo som em sua forma bruta eacute de fato
um existente no tempo e no espaccedilo reais ele eacute um elemento do mundo e natildeo um elemento
moldado na inteligecircnciardquo E eacute em vista dessa concepccedilatildeo de som que compreendemos os
argumentos a respeito da natildeo existecircncia do som183
A definiccedilatildeo de som enquanto ldquoobjeto da percepccedilatildeo sensiacutevel do ouvirrdquo (M VI 39)
180 Ver seccedilotildees 33 e 511181 Emmeles eacute em geral a qualidade daquilo que respeita as leis proacuteprias do melos ou seja diz respeito aos
sons estarem dispostos musicalmente de maneira adequada Cf Reyes (2004 p 101)182 A mesma definiccedilatildeo aparece tambeacutem no Contra os Eacuteticos (M XI 186)183 O sentido da argumentaccedilatildeo contra a existecircncia jaacute foi apresentado na seccedilatildeo 431 (p 65)
81
apresenta o som enquanto objeto sensiacutevel mas ainda natildeo relacionado agrave muacutesica Tal definiccedilatildeo
eacute desenvolvida pelo estoico Dioacutegenes da Babilocircnia (que compreende o som como ar
percutido)184
A definiccedilatildeo de nota eacute dada a partir da definiccedilatildeo de som uma nota eacute um som emitido
de certa maneira (M VI 41-2) Segundo Sexto Empiacuterico a definiccedilatildeo dada pelos muacutesicos de
maneira geral eacute de que ldquonota eacute a incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo Uma
definiccedilatildeo muito semelhante eacute encontrada em Aristoacutexeno ldquouma nota eacute a incidecircncia do som em
uma tensatildeordquo (Aristoacutexeno El Harm 115)185
Essa definiccedilatildeo de nota eacute seguida por outras definiccedilotildees relacionadas a ela (homofonia e
natildeo homofonia agudo e grave consonacircncia e dissonacircncia) que abrem o caminho para a
definiccedilatildeo de intervalo e a seguir de gecircnero (apresentado no Contra os Muacutesicos diretamente
ligado ao conceito de ethos) Todas essas definiccedilotildees evidenciam a variedade de conceitos da
ciecircncia musical que dependem do conceito de nota e consequentemente do conceito de som
No que diz respeito agrave classificaccedilatildeo dos intervalos segundo o criteacuterio da consonacircncia
essa divisatildeo dos intervalos em consonantes e dissonantes tambeacutem eacute apresentada por
Aristoacutexeno que considera que ldquoa segunda distinccedilatildeo que deve ser feita eacute que alguns intervalos
satildeo consonantes e outros dissonantesrdquo (Aristoacutexeno El Harm 44)186
Visto que a definiccedilatildeo dos gecircneros se daacute a partir de uma relaccedilatildeo intervalar187 Sexto
aborda em seguida os gecircneros de melodias ldquoDesse modo natildeo apenas todo intervalo em
muacutesica tem sua existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de
melodiardquo (M VI 48) Observa-se que a passagem se daacute a partir da relaccedilatildeo dos ethe humanos
com os ethe musicais Segundo Sexto Empiacuterico ldquouma melodia de tal tipo eacute chamada pelos
muacutesicos caraacuteter por ser capaz de produzir caraacuteterrdquo (M VI 49)
Os gecircneros satildeo apresentados por Sexto de acordo com a divisatildeo de Aristoacutexeno Isso
corrobora com a tese de que de acordo com Reyes (2004 p 105) ldquodesde o princiacutepio da era
cristatilde a classificaccedilatildeo aristoxecircnica havia se tornado canocircnica nos escritos teoacutericos devido agrave
enorme influecircncia desse autorrdquo Para Reyes o uso dos gecircneros de acordo com a classificaccedilatildeo
184 Ver Dioacutegenes Laeacutercio Testemonia (VII 55) Para a discussatildeo a respeito das fontes de Sexto Empiacuterico verReyes (2004 p 102)
185 A definiccedilatildeo de nota dada por Aristoacutexeno eacute a base para as definiccedilotildees encontradas tambeacutem em outros autoresda Antiguidade tardia aleacutem de Sexto Empiacuterico Segundo Reyes (2004 p 103) a definiccedilatildeo apresentada porSexto Empiacuterico evidencia que a fonte utilizada por ele natildeo eacute diretamente a obra de Aristoacutexeno pois Sextoacrescenta o adjetivo emmeles que pode ser encontrado em outros autores como Cleoniacutedes Cf Cleoniacutedes(1799-10) Bacchius (14 ou 29215-17 jan) Gaudencius (3297-8 jan) Anon Bellerm (39 48-9)
186 Para as outras definiccedilotildees ver Aristoacutexeno El Harm (44-46)187 A diferenccedila de gecircnero se daacute de acordo com as relaccedilotildees intervalares entre as notas que compotildeem o
tetracorde Ver traduccedilatildeo M VI 42 nota 288 (p 111)
82
de Aristoacutexeno tem duas vertentes ldquopor um lado segue a tendecircncia da eacutepoca (hellip) de adotar a
doutrina aristoxecircnica por outro facilita a intenccedilatildeo de Sexto de tratar os elementos da ciecircncia
musical de um modo nuclear sem entrar em distinccedilotildees sutisrdquo (idem)
Sexto Empiacuterico utiliza inclusive os mesmos termos que Aristoacutexeno para definir os
gecircneros188 Aristoacutexeno define os gecircneros em que a melodia evidentemente se distingue em
trecircs considerando que toda melodia no que diz respeito agrave harmonizaccedilatildeo ou eacute diatocircnica
(diatonon) ou cromaacutetica (khroma) ou enarmocircnica (harmonia)
Muito embora os termos utilizados por Sexto Empiacuterico sejam os mesmo de
Aristoacutexeno aqui se observa um descompasso em relaccedilatildeo ao autor Sexto Empiacuterico apresenta
os mesmos gecircneros que Aristoacutexeno mas atribui a cada um deles um ethos Entretanto
Aristoacutexeno parece ter evitado todo tipo de especulaccedilatildeo sobre os efeitos emocionaisintriacutensecos dos vaacuterios tipos de muacutesica em contraste agrave tradiccedilatildeo vinda de Damon ePlatatildeo Sexto parece aqui se separar da tradiccedilatildeo de Aristoacutexeno e retomar o tipo dequestatildeo apresentada na primeira parte do livro (Bett 2013 p 176)189
Embora Aristoacutexeno tenha restriccedilotildees agraves teorias acerca do poder da muacutesica sobre o
caraacuteter defendidas por Daacutemon Platatildeo e Aristoacuteteles diversos autores ldquooferecem uma
caracterizaccedilatildeo eacutetica dos gecircneros e nesse aspecto Sexto natildeo se diferencia delasrdquo (Reyes
2004 p 106) Tal caracterizaccedilatildeo reforccedila a ideia de que Sexto natildeo estaacute refutando uma tese
especiacutefica mas estaacute preocupado em refutar as principais opiniotildees que faziam parte do ensino
da muacutesica enquanto disciplina da Enkyklios Paideia
No que diz respeito aos ldquogecircneros meloacutedicosrdquo segundo Sexto Empiacuterico das melodias
ldquoa enarmocircnica eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um caraacuteter
claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseirordquo (M VI 50) Tais definiccedilotildees
satildeo segundo Reyes (2004 p 106-9) semelhantes agraves utilizadas por outros autores de tratados
musicais190
188 Reyes (2004 p 105) chama atenccedilatildeo para o fato de que a escrita de Aristoacutexeno emprega a forma antiga deabordar os gecircneros enquanto os escritores contemporacircneos a Sexto Empiacuterico utilizavam os adjetivosdiatonikon khromatikon e enarmonion
189 Note-se que no que diz respeito agrave teoria do ethos musical Aristoacutexeno critica aqueles que acreditam que amuacutesica tem efeito direto sobre o caraacuteter das pessoas dizendo que as pessoas afirmam que um tipo de muacutesicaprejudica o caraacuteter e outro o melhora sem prestarem atenccedilatildeo agrave seguinte qualificaccedilatildeo ldquona medida em que amuacutesica pode ser uacutetilrdquo (Aristoacutexeno El Harm 231 10-30) De acordo com Beacutelis essa qualificaccedilatildeo ldquomostrao ceticismo de Aristoacutexeno no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a muacutesica e a moralrdquo (Beacutelis 1986 p 97) Ver p38
190 Eacute interessante notar que as definiccedilotildees do enarmocircnico e do diatocircnico aparecem invertidas em relaccedilatildeo agravequiloque Platatildeo defendia O enarmocircnico eacute classificado por Aristoacutexeno como o mais recente e que exige haacutebitopara ser cantado Ao enarmocircnico satildeo atribuiacutedas as caracteriacutesticas nobres que Platatildeo atribuiacutea ao diatocircnicoObserva-se tambeacutem que enquanto Filodemo omite a definiccedilatildeo do gecircnero diatocircnico muitos autores daAntiguidade tardia atribuem caracteriacutesticas semelhantes ao enarmocircnico e ao diatocircnico Reyes (2004 p 107)
83
As mesmas definiccedilotildees (austeros ou semnos) do ethos do gecircnero enarmocircnico podem
ser encontradas nas obras de Filodemo e de Pseudo-Plutarco191 No que diz respeito ao
cromaacutetico encontra-se definiccedilotildees semelhantes em Dioniacutesio de Helicarnaso e Adrasto Em
ambos os casos Sexto natildeo parece se afastar das definiccedilotildees comumente encontradas na
tradiccedilatildeo No caso do gecircnero diatocircnico Reyes chama atenccedilatildeo para o fato de que Sexto se
limita a uma contraposiccedilatildeo esteacutetica com o gecircnero enarmocircnico O comentador aponta a
caracterizaccedilatildeo esteacutetica do gecircnero diatocircnico como um indiacutecio de que este seria mais recente
que o enarmocircnico o que iria contra a opiniatildeo de Aristoacutexeno
Depois de apresentar os principais conceitos da teoria musical que dependem do
conceito de nota Sexto conclui que ldquoeacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos sobre a melodia
natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notasrdquo (M VI 52) Sexto Empiacuterico busca
desestabilizar a teoria musical apresentando a diaphonia ndash o conflito de opiniotildees ndash nos
discursos filosoacuteficos Visto que as notas existem ldquoconforme o gecircnero do somrdquo (M VI 52) o
autor discute o conceito de som enquanto afecccedilatildeo (pathos) e em seguida discute se o som
existe enquanto algo corpoacutereo ou incorpoacutereo192
O argumento parte da oposiccedilatildeo entre o conceito de som enquanto afecccedilatildeo ou enquanto
produtor de uma afecccedilatildeo e opotildee duas teses filosoacuteficas que consideram como criteacuterio de
verdade respectivamente os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (ou as afecccedilotildees) e os objetos
inteligiacuteveis Sexto Empiacuterico toma como ponto de partida a tese dos filoacutesofos Cirenaicos de
que soacute existem as afecccedilotildees De acordo com o autor (M VII 191) para os Cirenaicos as
afecccedilotildees (pathe) satildeo o uacutenico criteacuterio de verdade Por outro lado Platatildeo e Demoacutecrito193 tomam
como criteacuterio de verdade natildeo as afecccedilotildees mas apenas as coisas inteligiacuteveis (o som enquanto
existente por si mesmo) A afecccedilatildeo eacute para eles algo distinto do proacuteprio som e nesse sentido
o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo mas produz uma afecccedilatildeo ou seja o som aparece para noacutes enquanto
objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel Platatildeo e Demoacutecrito ao rejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel
(enquanto criteacuterio de verdade) rejeitariam tambeacutem o som tal como eacute compreendido pelos
Cirenaicos194 Com isso Sexto mostra o conflito das opiniotildees acerca das quais natildeo seria
possiacutevel decidir a qual dar assentimento
compreende que esta mudanccedila se deve ao desaparecimento do enarmocircnico enquanto gecircnero praacutetico (talcomo atestam Pseudo-Plutarco e Ptolomeu)
191 Filodemo De Mus (64222) Ps-Plutarco De Mus (1145 A)192 Ver por exemplo Aristides Quintiliano De Mus (520-2) e Ptolomeu Harm (32)193 Ver traduccedilatildeo M VI 53 nota 303 (p 115)194 A explicaccedilatildeo de Reyes (2004 p 103) a respeito deste argumento natildeo eacute muito clara dando a entender que os
Cirenaicos consideravam que o som natildeo eacute uma afecccedilatildeo Para uma explicaccedilatildeo elucidativa sobre o tema verBett (2013 p 178)
84
O argumento seguinte (M VI 55) apresenta a aporia de que o som natildeo eacute corpoacutereo nem
incorpoacutereo Os Peripateacuteticos satildeo citados como defensores da primeira tese e os Estoicos da
segunda Sexto argumenta que se natildeo existe alma natildeo existe som A partir disso tambeacutem os
sentidos enquanto partes da alma natildeo existem195 e consequentemente tambeacutem natildeo existem
os objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel (entre eles o som) De acordo com Bett
essa inferecircncia final pode parecer completamente ilegiacutetima se natildeo haacute sentidosentatildeo certamente nenhum objeto eacute percebido pelos sentidos mas disso natildeo se segueque os objetos que noacutes normalmente tomamos como percebidos pelos sentidos natildeoexistam (embora natildeo sejam percebidos) (Bett 2013 p 178)
Mas especificamente no caso do som Aristoacuteteles compreende que o som real (em
oposiccedilatildeo ao som em potecircncia) e a audiccedilatildeo satildeo a mesma coisa Partindo disso Bett considera
que seria possiacutevel (com uma dose de boa vontade) considerar que Sexto parte desse conceito
compreendendo o ldquosomrdquo (phone) como uma ldquoqualidade audiacutevel dos objetosrdquo
Aleacutem disso ldquoo som nem eacute concebido como um efeito nem como substacircncia mas
como algo que vem a ser e que se estende no tempordquo (M VI 57) Assim se natildeo conseguimos
chegar a uma definiccedilatildeo do conceito de tempo o conceito de som enquanto existente no
tempo eacute automaticamente destruiacutedo
Visto que Sexto partiu da definiccedilatildeo de mousike como ciecircncia do que eacute meloacutedico e do
que eacute riacutetmico resta ainda a refutaccedilatildeo da muacutesica enquanto ciecircncia do ritmo Tambeacutem nesse
caso sua refutaccedilatildeo se daacute a partir do conceito mais fundamental presente na definiccedilatildeo de
ritmo Se ldquoritmo eacute um sistema composto de peacutes e o peacute eacute composto de arsis (levantamento) e
thesis (abaixamento)rdquo e ldquoarsis e thesis satildeo considerados uma quantidade de tempordquo (M VI
60) entatildeo o conceito que precisa ser refutado para desestabilizar toda a teoria da muacutesica eacute o
conceito de tempo Para isso Sexto Empiacuterico retoma alguns de seus argumentos contra o
tempo apresentados no Contra os Fiacutesicos196 Em seguida o Contra os Muacutesicos simplesmente
encerra a investigaccedilatildeo ceacutetica a respeito das disciplinas dos Estudos Ciacuteclicos ldquoTendo dito
tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica noacutes encerramos nossa
discussatildeo contra as disciplinasrdquo (M VI 68)
Se observamos o que estaacute em jogo nessa segunda parte do texto composta pelos
argumentos que o proacuteprio autor considera que estatildeo mais de acordo com a corrente ceacutetica197
mais uma vez confirmamos que o ceacutetico natildeo estaacute de modo algum preocupado com o
195 Ver Aristoacuteteles De Anima (425 B 26-8)196 Para referecircncias ver nossa traduccedilatildeo M VI 60-7 notas 311-6 (p 117-120)197 Ver M VI 4-5 e seccedilatildeo 512
85
conceito de muacutesica especificamente mas sim com a criacutetica agrave postura dogmaacutetica da parte dos
professores de muacutesica que sustentam teses contraditoacuterias entre si a respeito dessa arte
86
6 CONTRA OS MUacuteSICOS (TEXTO GREGO E TRADUCcedilAtildeO)
ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ
[61] Ἡ μουσικὴ λέγεται τριχῶς καθ ἕνα μὲν τρόπον ἐπιστήμη τις περὶ μελῳδίας καὶ
φθόγγους καὶ ῥυθμοποιίας καὶ τὰ παραπλήσια καταγινομένη πράγματα καθὸ καὶ
Ἀριστόξενον τὸν Σπινθάρου λέγομεν εἶναι μουσικόν καθ ἕτερον δὲ ἡ περὶ ὀργανικὴν
ἐμπειρίαν ὡς ὅταν τοὺς μὲν αὐλοῖς καὶ ψαλτηρίοις χρωμένους μουσικοὺς ὀνομάζομεν τὰς
δὲ ψαλτρίας μουσικάς ἀλλὰ κυρίως καταὐτὰ τὰ σημαινόμενα καὶ παρὰ πολλοῖς λέγεται
μουσική [62] καταχρηστικώτερον δὲ ἐνίοτε προσαγορεύειν εἰώθαμεν τῷ αὐτῷ ὀνόματι καὶ
τὴν ἔν τινι πράγματι κατόρθωσιν οὕτω γοῦν μεμουσωμένον τι ἔργον φαμέν κἂν ζωγραφίας
μέρος ὑπάρχῃ καὶ μεμουσῶσθαι τὸν ἐν τούτῳ κατορθώσαντα ζωγράφον [63] ἀλλὰ δὴ κατὰ
τοσούτους τρόπους νοουμένης τῆς μουσικῆς πρόκειται νῦν ποιεῖσθαι τὴν ἀντίρρησιν οὐ μὰ
Δία πρὸς ἄλλην τινὰ ἢ πρὸς τὴν κατὰ τὸ πρῶτον νοουμένην σημαινόμενον αὕτη γὰρ καὶ
ἐντελεστάτη παρὰ τὰς ἄλλας μουσικὰς δοκεῖ καθεστηκέναι
87
CONTRA OS MUacuteSICOS
[61] A muacutesica eacute dita de trecircs maneiras Na primeira enquanto ciecircncia198 das melodias
sons composiccedilatildeo de ritmos e coisas desse tipo sentido em que dizemos que Aristoacutexeno199
filho de Espiacutentaro eacute muacutesico Na segunda ela diz respeito agrave experiecircncia200 em instrumentos201
tal como quando nomeamos ldquomuacutesicosrdquo aqueles que usam aulos202 e salteacuterios203 e ldquomusicistasrdquo
aquelas que tocam salteacuterio De maneira apropriada a muacutesica eacute dita de acordo com esses
significados por muitas pessoas [62] De modo menos apropriado agraves vezes costumamos
chamar com o mesmo nome a realizaccedilatildeo bem sucedida de algo Desse modo tambeacutem
dizemos que algo eacute musical204 mesmo sendo parte de uma pintura e que o pintor eacute
ldquomusicalrdquo205 por ter sido bem sucedido nisso [63] Mas sendo a muacutesica concebida dessas
maneiras propotildee-se agora que se faccedila uma refutaccedilatildeo ndash por Zeus ndash natildeo contra qualquer outra
muacutesica senatildeo contra aquela concebida de acordo com o primeiro significado pois essa em
comparaccedilatildeo com os outros significados de muacutesica parece ter se estabelecido como a mais
completa206
198 Encontra-se frequentemente as disciplinas consideradas como ciecircncias (epistemai) em oposiccedilatildeo agraves artes(tekhnai) Nesse vocabulaacuterio essa distinccedilatildeo implica no uso do termo ciecircncia (episteme) para designar asldquoartes baseadas na razatildeordquo (logiken tekhnai) Ver seccedilatildeo 42
199 Aristoacutexeno disciacutepulo de Aristoacuteteles viveu no seacuteculo IV aC Sua obra teve grande repercussatildeo durante todaa Antiguidade Ele eacute tomado como exemplo de muacutesico na medida em que trata da muacutesica sob umaperspectiva teoacuterica Na parte do texto em que Sexto Empiacuterico refuta conceitos teacutecnicos da muacutesica muitasdas definiccedilotildees satildeo semelhantes agraves do muacutesico Sobre o pensamento musical de Aristoacutexeno ver seccedilatildeo 33
200 O conceito de empeiria eacute comumente utilizado no pirronismo ligado agraves artes que estatildeo de acordo com ocriteacuterio praacutetico e que por isso natildeo satildeo refutadas pelo ceacutetico Ver seccedilotildees 41 e 44
201 A organike enquanto parte da praacutetica musical era frequentemente oposta agrave harmonike que eacute a parte teoacutericada muacutesica e considerada como a mais completa Ver seccedilatildeo 511
202 O mais importante instrumento da famiacutelia dos aerofones De origem oriental o aulo eacute um instrumento desopro ldquocomposto de um tubo (bombyx) feito de junco madeira marfim chifre osso de cervo ou bronzecortado em secccedilotildees ciliacutendricas inseridas umas nas outras com quatro ou cinco furos ( trypemata) sendo queo segundo estava na parte de baixo do tubo O aulo tinha ainda uma ou duas palhetas (glossai ou glottides)no bocal e isso eacute que produzia seu som penetrante e estrondosordquo (Rocha 2009 p 159) Muitas vezes seencontra a traduccedilatildeo de ldquoaulosrdquo por ldquoflautardquo mas essa traduccedilatildeo eacute improacutepria porque a flauta tem um somsuave muito diferente do som do aulo
203 Nome geneacuterico para designar a famiacutelia das harpas (cordas obliacutequas e de comprimento desigual) Osinstrumentos desse gecircnero de origem natildeo grega eram pinccedilados com os dedos nus sem plectro
204 Em grego ldquomemousomenonrdquo O termo remete ao sentido mais amplo de mousike estaacute relacionado agraves artes eciecircncias presididas pelas Musas
205 Nesse sentido amplo de mousike musical (mousikos) eacute o homem bem educado culto206 Eacute a teoria musical natildeo a praacutetica musical considerada pelos pensadores como a mais completa Cf Platatildeo
Rep (530 D-531 C) De acordo com Aristides Quintiliano De Mus (1110) para os antigos filoacutesofos amuacutesica (a teoria musical) ldquonatildeo soacute era apreciada por si mesma mas era tambeacutem extraordinariamenteadmirada por ser uacutetil agraves demais ciecircncias Sob influecircncia pitagoacuterica e platocircnica ele considera que a muacutesicaconteacutem as relaccedilotildees harmocircnicas que compreendem todo o universo por isso ela seria uacutetil para todas as outrasciecircncias
88
[64] τῆς δὲ ἀντιρρήσεως καθάπερ καὶ ἐπὶ γραμματικῆς διττόν ἐστι τὸ εἶδος οἱ μὲν οὖν
δογματικώτερον ἐπεχείρησαν διδάσκειν ὅτι οὐκ ἀναγκαῖόν ἐστι μάθημα πρὸς εὐδαιμονίαν
μουσική ἀλλὰ βλαπτικὸν μᾶλλον καὶ τοῦτο δείκνυσθαι ἔκ τε τοῦ διαβάλλεσθαι τὰ πρὸς τῶν
μουσικῶν λεγόμενα καὶ ἐκ τοῦ τοὺς προηγουμένους λόγους ἀνασκευῆς ἀξιοῦσθαι [65] οἱ δὲ
ἀπορητικώτερον πάσης ἀποστάντες τῆς τοιαύτης ἀντιρρήσεως ἐν τῷ σαλεύειν τὰς ἀρχικὰς
ὑποθέσεις τῶν μουσικῶν ᾠήθησαν καὶ τὴν ὅλην ἀνῃρῆσθαι μουσικήν [66] Ὃθεν καὶ ἡμεῖς
ὑπὲρ τοῦ μὴ δοκεῖν τι τῆς διδασκαλίας χρεωκοπεῖν τὸν ἑκατέρου δόγματος ἢ ἀπορήματος207
χαρακτῆρα κεφαλαιωδέστερον ἐφοδεύσομεν μήτε ἐν τοῖς παρέλκουσιν ὑπερεκπίπτοντες εἰς
μακρὰς διεξόδους μήτε ἐν τοῖς ἀναγκαιοτέροις ὑστεροῦντες πρὸς τὴν τῶν ἐπειγόντων
ἔκθεσιν ἀλλὰ μέσην καὶ μεμετρημένην κατὰ τὸ δυνατὸν ποιούμενοι τὴν διδασκαλίαν
207 Embora Greaves (1986 p 127) opte pelo termo ldquopragmatosrdquo em sua anaacutelise dos manuscritos optamos aquipor manter o termo ldquoaporematosrdquo tal como Delattre (2002 p 415) visto que deste modo a sentenccedila dizrespeito aos tipos de refutaccedilatildeo apresentados anteriormente o dogmaacutetico e o aporeacutetico
89
[64] A refutaccedilatildeo tal como aquela da gramaacutetica se daacute de dois modos208 Uns de modo mais
dogmaacutetico tentaram ensinar que a muacutesica natildeo eacute uma disciplina209 necessaacuteria para a
felicidade210 mas muito prejudicial e eles se esforccedilaram para mostrar isso atacando aquilo
que eacute dito pelos muacutesicos e sustentando que seus argumentos principais eram dignos de serem
destruiacutedos211 [65] Outros de um modo mais aporeacutetico212 evitando toda refutaccedilatildeo desse tipo
pensaram que ao desestabilizar as principais suposiccedilotildees dos muacutesicos pensaram tambeacutem ter-se
destruiacutedo213 toda a muacutesica [66] Portanto tambeacutem noacutes para que natildeo pareccedilamos minimizar
qualquer coisa da explicaccedilatildeo214 examinaremos metodicamente o caraacuteter principal de cada
uma dessas atitudes ndash a dogmaacutetica e a aporeacutetica Nem de maneira redundante excedendo-nos
em longas descriccedilotildees nem falhando na exposiccedilatildeo daquilo que eacute mais indispensaacutevel mas
criando uma explicaccedilatildeo tatildeo moderada e calculada quanto possiacutevel
208 Tambeacutem no Contra os Gramaacuteticos Sexto Empiacuterico empreende dois tipos de refutaccedilatildeo ele apresentaargumentos mostrando a inutilidade da gramaacutetica e argumenta contra a existecircncia dos princiacutepios queconstituem a ciecircncia das letras
209 O termo ldquomathemardquo pode ser traduzido como ldquodisciplinardquo ldquoconteuacutedordquo ldquoensinamentordquo Ta mathemata satildeoos ensinamentos adquiridos atraveacutes do ensino transmitido pelos mathematikos ou seja pelosprofessoresVer seccedilatildeo 42
210 O termo grego ldquoeudaimoniardquo traduz-se comumente por ldquofelicidaderdquo entretanto essa traduccedilatildeo eacute limitadavisto que identificamos o termo com um certo estado de espiacuterito Eudaimonia na verdade refere-se agraveobtenccedilatildeo daquilo que eacute mais desejaacutevel o sumo bem Para Aristoacuteteles a felicidade eacute uma atividade da almade acordo com a virtude Epicuro considerou o prazer acompanhado da prudecircncia enquanto a principalvirtude como sumo bem tendo definido o prazer como ldquoausecircncia de sofrimentos fiacutesicos e perturbaccedilotildees naalmardquo (Epicuro Carta Sobre a Felicidade p 43) De modo geral o termo eudaimonia remete ao resultadode uma vida virtuosa que regida por determinados princiacutepios de acordo com cada escola filosoacutefica Aeudaimonia (muitas vezes associada agrave tranquilidade da alma) era o principal objetivo das escolas filosoacuteficasdo periacuteodo heleniacutestico combatidas pelos ceacuteticos tal como a epicurista e a estoica Cf Hadot (2008 cap 7)
211 Sexto Empiacuterico refere-se explicitamente aos filoacutesofos epicuristas Segundo Dellatre (2002 p 415 n 1) issose estende tambeacutem aos cirenaicos
212 O termo aporia aparece frequentemente associado ao ceticismo De acordo com Sexto Empiacuterico opensamento ceacutetico eacute chamado tambeacutem de ldquoaporeacuteticordquo Cf HP I 3 210 Ver seccedilotildees 431 (p 62-3) e 512 (p72-3)
213 Sexto Empiacuterico parece se referir aqui agrave proacutepria escola ceacutetica Anairesis indica no ceticismo pirrocircnico asupressatildeo ou destruiccedilatildeo de algum conceito dada enquanto resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica Esse tipo desupressatildeo aparece na segunda parte do texto (sect 38 ndash 68) quando Sexto conclui pela inexistecircncia dosconceitos apresentados Ver seccedilotildees 431 e 512 (p 72-3)
214 ldquoDidaskaliardquo para Sexto Empiacuterico pode designar um ldquoensinamento por demonstraccedilatildeordquo
90
[67] Τάξει δὲ ἀρχέτω πρῶτον τὰ ὑπὲρ μουσικῆς παρὰ τοῖς πολλοῖς εἰωθότα
θρυλεῖσθαι εἴπερ τοίνυν φασί φιλοσοφίαν ἀποδεχόμεθα σωφρονίζουσαν τὸν ἀνθρώπινον
βίον καὶ τὰ ψυχικὰ πάθη καταστέλλουσαν πολλῷ μᾶλλον ἀποδεχόμεθα τὴν μουσικήν ὅτι οὐ
βιαστικώτερον ἐπιτάττουσα ἡμῖν ἀλλὰ μετὰ θελγούσης τινὸς πειθοῦς τῶν αὐτῶν
ἀποτελεσμάτων περιγίνεται ὧνπερ καὶ ἡ φιλοσοφία [68] Ὁ γοῦν Πυθαγόρας μειράκια ὑπὸ
μέθης ἐκβεβακχευμένα ποτὲ θεασάμενος ὡς μηδὲν τῶν μεμηνότων διαφέρειν παρῄνεσε τῷ
συνεπικωμάζοντι τούτοις αὐλητῇ τὸ σπονδεῖον αὐτοῖς ἐπαυλῆσαι μέλος τοῦ δὲ τὸ
προσταχθὲν ποιήσαντος οὕτως αἰφνίδιον μεταβαλεῖν σωφρονισθέντας ὡς εἰ καὶ τὴν ἀρχὴν
ἔνηφον
91
[67] Pela ordem comecemos primeiro com as coisas sobre a muacutesica repetidas
costumeiramente pela maioria Ora se eles dizem admitimos que a Filosofia regula215 a vida
humana e refreia as afecccedilotildees da alma216 mais ainda admitimos que a muacutesica faz isso porque
ela natildeo se impotildee a noacutes de modo violento mas com certa persuasividade encantatoacuteria217 ela
produz os mesmos efeitos que a Filosofia218 [68] Pitaacutegoras certa vez tendo observado que
os jovens em estado de frenesi baacutequico causado pela embriaguez de modo algum diferiam
dos enlouquecidos aconselhou o auleta que estava junto deles na folia a tocar no aulo a
melodia espondaica219 Depois que o auleta fez o que foi ordenado os jovens repentinamente
mudaram e se mostraram temperantes como se tivessem estado soacutebrios desde o iniacutecio220
215 O termo ldquosophronizordquo eacute traduzido ao longo do texto por ldquotemperarrdquo ldquoregularrdquo e ldquomoderarrdquo O verbo estaacuteligado agrave virtude da temperanccedila ou moderaccedilatildeo (sophrosyne) uma das quatro virtudes principais apresentadaspor Platatildeo na Repuacuteblica (427 E) Eacute interessante notar que quando Platatildeo apresenta a virtude da temperanccedilaele a aproxima dos conceitos musicais da consonacircncia (symphonia) e da harmonia apresentando atemperanccedila como ldquouma espeacutecie de ordenaccedilatildeordquo e como ldquoo domiacutenio de certos prazeres e desejosrdquo Cf PlatatildeoRep (430 E)
216 No Fedro Platatildeo aborda a relaccedilatildeo entre as partes da alma fazendo uma analogia da parte racional da almacom a figura de um cocheiro que tenta controlar dois cavalos que representam as partes irracionais da almaDaiacute o papel da Filosofia (atividade da parte racional) de refrear as afecccedilotildees da parte irracional da alma CfPlatatildeo Fedro (253 C ndash 257 B)
217 Na Repuacuteblica (600 E ndash 601 B) Platatildeo afirma que os elementos que compotildeem a muacutesica como a meacutetrica oritmo e o modo tecircm um encantamento que faz um discurso ou qualquer conteuacutedo teacutecnico parecer excelenteembora o poeta natildeo saiba nada mais do que representar aparecircncias Por isso para Platatildeo a execuccedilatildeomusical deve ser muito bem administrada Quando bem utilizada a muacutesica tem o poder de alterar o caraacuteterdo ouvinte e levaacute-lo agrave excelecircncia moral Eacute nesse sentido que ela realizaria o mesmo papel da Filosofia soacuteque de um modo mais agradaacutevel
218 Essa relaccedilatildeo entre muacutesica e Filosofia eacute encontrada em diversos textos da Antiguidade Aristides Quintiliano(De mus 2320) apresenta a Filosofia como um objeto de aprendizado (mathesis) que ldquomanteacutem a parteracional [da alma] em sua liberdade natural tornando-a soacutebria e mantendo-a pura atraveacutes da prudecircncia(phronesis)rdquo Jaacute a muacutesica eacute encarregada da parte irracional curando-a e domesticando-a atraveacutes do haacutebitoldquonatildeo permitindo que ela [a alma] cometa excessos nem que seja completamente subjugadardquo ldquoDesde ainfacircncia [a muacutesica] molda o caraacuteter com suas harmoniai e torna o corpo mais melodioso com seus ritmosrdquoIsso poderia se dar de acordo com Aristides Quintiliano porque ldquoa doccedilura dessa atividade encanta suasmentes ou talvez suas almasrdquo Sobre o papel da muacutesica enquanto ensino preliminar para a Filosofia verAristides Quintiliano De mus (32720)Plutarco (De virtute morali 441 E) apresenta essa mesma relaccedilatildeo atribuindo esse conhecimento a Pitaacutegorasque segundo o filoacutesofo teria introduzido o estudo da muacutesica ldquopara encantar e acalmar a almardquo por ternotado que nem todas as partes da alma se submetem agrave razatildeo ldquomas que algumas partes precisam de algumoutro tipo de persuasatildeo para cooperar com elas para moldaacute-las e domesticaacute-las se elas natildeo satildeo para sertotalmente intrataacuteveis e obstinadas ao ensino da Filosofiardquo Ver tambeacutem Platatildeo Euth (290 A)
219 Indica uma melodia apropriada para ocasiotildees religiosas de caraacuteter solene e dominada ritmicamente portempos longos Essas melodias eram compostas no modo doacuterico e consideradas calmantes Cf Platatildeo Ti(47 D) Plutarco De Mus (1135 A)
220 Essa anedota sobre Pitaacutegoras aparece em vaacuterios textos da Antiguidade Cf Filodemo De Mus (col 42 39 ndash44) Quintiliano Inst (110 32) Boeacutecio Inst (11) Plutarco De mus (1146 F)
92
[69] Οἵ τε τῆς Ἑλλάδος ἡγούμενοι καὶ ἐπ ἀνδρείᾳ διαβόητοι Σπαρτιᾶται μουσικῆς ἀεί ποτε
στρατηγούσης αὐτῶν ἐπολέμουν καὶ οἱ ταῖς Σόλωνος χρώμενοι παραινέσεσι πρὸς αὐλὸν καὶ
λύραν παρετάσσοντο ἔνρυθμον ποιούμενοι τὴν ἐνόπλιον κίνησιν [610] Kαὶ μὴν ὥσπερ
σωφρονίζει μὲν τοὺς ἄφρονας ἡ μουσική εἰς ἀνδρείαν δὲ προτρέπει τοὺς δειλοτέρους οὕτω
καὶ παρηγορεῖ τοὺς ὑπ ὀργῆς ἐκκαιομένους ὁρῶμεν γοῦν ὡς καὶ ὁ παρὰ τῷ ποιητῇ μηνίων
Ἀχιλλεὺς καταλαμβάνεται ὑπὸ τῶν ἐξαποσταλέντων πρεσβευτῶν
φρένα τερπόμενος φόρμιγγι λιγείῃ
καλῇ δαιδαλέῃ ἐπὶ δ ἀργύρεον ζυγὸν ἦεν
τὴν ἕλετ ἐξ ἐνάρων πόλιν Ἠετίωνος ὀλέσσας
τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν
ὡς ἂν σαφῶς γινώσκων τὴν μουσικὴν πραγματείαν μάλιστα δυναμένην περιγίνεσθαι τῆς περὶ
αὐτὸν διαθέσεως [611] Kαὶ μὴν διἔθους ἦν καὶ τοῖς ἄλλοις ἥρωσιν εἴ ποτε ἀποδημοῖεν καὶ
μακρὸν πλοῦν στέλλοιντο ὡς πιστοτάτους φύλακας καὶ σωφρονιστῆρας τῶν γυναικῶν
αὑτῶν ἀπολείπειν τοὺς μουσικούς Κλυταιμνήστρᾳ γέ τοι παρῆν ἀοιδός ᾧ πολλὰ ἐπέτελλεν
Ἀγαμέμνων περὶ τῆς κατὰ ταύτην σωφροσύνης [612] ἀλλ ὁ Αἴγισθος πανοῦργος ὢν αὐτίκα
τὸν ἀοιδὸν τοῦτον
ἄγων εἰς νῆσον ἐρήμην
κάλλιπεν οἰωνοῖσιν ἕλωρ καὶ κῦρμα γενέσθαι
εἶθ οὕτως ἀφύλακτον λαβὼν τὴν Κλυταιμνήστραν διέφθειρε προτρεψάμενος αὐτὴν
ἐπιθέσθαι τῇ ἀρχῇ τοῦ Ἀγαμέμνονος
93
[69] Os Espartanos liacutederes da Heacutelade e famosos por sua bravura221 guerreavam sempre sob
o comando da muacutesica222 E aqueles que utilizavam as exortaccedilotildees de Soacutelon223 se colocavam em
ordem de batalha ao som do aulo e da lira fazendo o movimento marcial riacutetmico224 [610]
Tal como a muacutesica torna temperantes os insensatos e incita os covardes a serem corajosos ela
tambeacutem acalma aqueles que estatildeo inflamados pelo iacutempeto Vejamos de acordo com o poeta
como Aquiles em sua ira eacute encontrado pelos embaixadores que foram enviados ateacute ele
deleitando seu espiacuterito com a melodiosa foacuterminge
bela obra de arte em cima havia argecircnteo jugo
Escolheu-a dentre os espoacutelios a cidade de Etion tendo destruiacutedo
Com ela ele deleitava seu coraccedilatildeo225
como se ele soubesse claramente que a praacutetica musical eacute sobretudo capaz de prevalecer
sobre sua disposiccedilatildeo [611] Aleacutem disso era haacutebito tambeacutem para outros heroacuteis quando eles
deixavam seus lares e partiam em uma longa navegaccedilatildeo deixar muacutesicos como os mais
confiaacuteveis guardiotildees e responsaacuteveis pela conduta226 de suas mulheres Assim um aedo
acompanhava Clitemnestra ao qual Agamecircnon ordenou muitas coisas a respeito da
temperanccedila dela [612] Mas Egisto sendo perverso rapidamente
conduzindo o aedo para uma ilha deserta o abandonou
para se tornar presa e espoacutelio para os abutres227
entatildeo pegou Clitemnestra jaacute sem vigilacircncia e seduziu-a incitando-a a tomar o poder de
Agamecircnon228
221 ldquoAndreiardquo - traduzido comumente por ldquofortalezardquo ldquocoragemrdquo ldquobravurardquo - denomina tambeacutem uma dasvirtudes a ser cultivada na Repuacuteblica de Platatildeo Quando Platatildeo se refere ao poder da muacutesica de alterar ocaraacuteter do ouvinte esse poder estaacute ligado agraves virtudes da temperanccedila (sophrosyne) e da bravura (andreia)
222 Esse argumento a favor da muacutesica aparece tambeacutem em Quintiliano Inst (I X 14)223 Soacutelon (638 ndash 558 aC) foi um legislador jurista e poeta grego Filodemo tambeacutem apresenta Soacutelon dando
conselhos atraveacutes de elegias morais (poesias monoacutedicas que eram classificadas de acordo com o seuconteuacutedo)
224 As canccedilotildees para a guerra normalmente eram em ritmo creacutetico ou peocircnico ( ndash ᴗ ndash ndash ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ ndash ) (Naescansatildeo dos versos as siacutelabas longas satildeo representadas por ldquondashrdquo e as breves por ldquo ᴗ rdquo) Cf West (1992 p15-6) Mathiesen (1999 p 40)
225 Homero Iliacuteada (IX 186-9) A mesma citaccedilatildeo aparece em Plutarco De Mus (1145 E) As traduccedilotildees dostrechos de obras da literatura claacutessica que aparecem neste texto satildeo de nossa autoria em parceria com o profRoosevelt Rocha
226 Utilizamos essa expressatildeo para traduzir o termo ldquosophronisterasrdquo O termo ligado agrave virtude da temperanccedilaassociado agrave conduta das mulheres neste caso diz respeito ao controle do desejo sexual delas
227 Homero Odisseia (III 270-1)228 Cf Filodemo De Mus (col 49 23-7)
94
[613] Oἵ τε μέγα δυνηθέντες ἐν φιλοσοφίᾳ καθάπερ καὶ Πλάτων τὸν σοφὸν ὅμοιόν φασιν
εἶναι τῷ μουσικῷ τὴν ψυχὴν ἡρμοσμένην ἔχοντα καθὸ καὶ Σωκράτης καίπερ βαθυγήρως
ἤδη γεγονὼς οὐκ ᾐδεῖτο πρὸς Λάμπωνα τὸν κιθαριστὴν φοιτῶν καὶ πρὸς τὸν ἐπὶ τούτῳ
ὀνειδίσαντα λέγειν ὅτι κρεῖττόν ἐστιν ὀψιμαθῆ μᾶλλον ἢ ἀμαθῆ διαβάλλεσθαι [614] Oὐ χρὴ
μέντοι φασίν ἀπὸ τῆς νῦν ἐπιτρίπτου καὶ κατεαγυίας μουσικῆς τὴν παλαιὰν διασύρειν ὅτε
καὶ Ἀθηναῖοι πολλὴν πρόνοιαν σωφροσύνης ποιούμενοι καὶ τὴν σεμνότητα τῆς τε μουσικῆς
κατειληφότες ὡς ἀναγκαιότατον αὐτὴν μάθημα τοῖς ἐκγόνοις παρεδίδοσαν [615] καὶ τούτου
μάρτυς ὁ τῆς ἀρχαίας κωμῳδίας ποιητής λέγων
λέξω τοίνυν βίον ὃν ἐξ ἀρχῆς ἐγὼ θνητοῖσι παρεῖχον
πρότερον γὰρ ἔδει παιδὸς φωνὴν γρύσαντος μηδέν ἀκοῦσαι
εἶτα βαδίζειν ἐν ταῖσιν ὁδοῖς εὐτάκτως ἐς κιθαριστοῦ
ὅθεν εἰ καὶ κεκλασμένοις τισὶ μέλεσι νῦν καὶ γυναικώδεσι ῥυθμοῖς θηλύνει τὸν νοῦν ἡ
μουσική οὐδὲν τοῦτο πρὸς τὴν ἀρχαίαν καὶ ἔπανδρον μουσικήν [616] Εἴπερ τε ἡ ποιητικὴ
βιωφελής ἐστι ταύτην δὲ φαίνεται κοσμεῖν ἡ μουσικὴ μερίζουσα καὶ ἐπῳδὸν παρέχουσα
χρειώδης γενήσεται ἡ μουσική ἀμέλει γέ τοι καὶ οἱ ποιηταὶ μελοποιοὶ λέγονται καὶ τὰ
Ὁμήρου ἔπη τὸ πάλαι πρὸς λύραν ᾔδετο
95
[613] Aleacutem disso aqueles muito capazes em Filosofia tal como Platatildeo dizem que o saacutebio eacute
semelhante ao muacutesico pois tem a sua alma harmonizada229 Assim do mesmo modo
Soacutecrates embora jaacute estivesse muito velho natildeo se envergonhava de recorrer a Laacutempon230 o
citarista e para algueacutem que o repreendeu ele disse que eacute melhor ser acusado de aprendiz
tardio do que de ignorante231 [614] Natildeo se deve tambeacutem dizem desprezar a muacutesica antiga
tomando como base a atual232 que eacute vergonhosa e efeminada quando tambeacutem os Atenienses
que devotaram grande atenccedilatildeo agrave moderaccedilatildeo da conduta compreendendo a dignidade da
muacutesica transmitiram-na para seus descendentes como o ensinamento mais necessaacuterio [615]
Testemunha disso eacute o poeta da Antiga Comeacutedia que diz
Agora contarei da vida a qual em princiacutepio eu dei aos mortais233
Pois primeiramente que natildeo se ouvisse o som de uma crianccedila murmurando
Em seguida que as crianccedilas fossem pelas ruas de maneira ordenada ao encontro do
citarista234
Por essa razatildeo se a muacutesica atual enfraquece a mente com certas melodias fragmentadas e
ritmos efeminados235 isso natildeo tem nada a ver com a muacutesica antiga e viril [616] Aleacutem disso
se a arte poeacutetica eacute uacutetil para a vida e se a muacutesica parece adornaacute-la dividindo-a e produzindo o
canto a muacutesica seraacute necessaacuteria Sem duacutevida tambeacutem os poetas satildeo chamados compositores
de melodia236 e antigamente os versos de Homero eram cantados ao som da lira
229 Cf Platatildeo Rep(410 E 443 D-E 554 E) Timeu (43 A)230 Greaves (1986 p 135 n 35) chama atenccedilatildeo para o fato de que se desconhece a existecircncia de qualquer
muacutesico chamado ldquoLaacutemponrdquo mas que houve um sacerdote do oraacuteculo chamado ldquoLaacutemponrdquo contemporacircneo aSoacutecrates Nos diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates aborda o fato de ser um aprendiz tardio da ciacutetara tendo como seuprofessor de ciacutetara o muacutesico Cono Cf Platatildeo Euth (272 B-C 295 D) No Menexeno (235 E - 236 A) Conotambeacutem eacute mencionado junto do nome ldquoLamprusrdquo professor de muacutesica de Soacutefocles Cf tambeacutem Vida deSoacutefocles (III 19-20)
231 Cf Filodemo De mus (col 139 39-40) Quintiliano Inst (I X 13)232 Platatildeo e Aristoacutefanes criticaram os muacutesicos de seu tempo exaltando os poderes da muacutesica arcaica
Aristoacutefanes sobretudo na comeacutedia As Ratildes faz um apelo agrave tradiccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo gregasatirizando uma disputa entre Euriacutepides enquanto a personificaccedilatildeo do novo muacutesico aberto a todas asinovaccedilotildees e elaboraccedilotildees da chamada nova muacutesica e Eacutesquilo enquanto representante da muacutesica antiga Talsaacutetira ldquonatildeo soacute eacute um apelo agrave tradiccedilatildeo como tambeacutem o testemunho duma profunda ruptura que haviacomeccedilado a produzir-se dentro do acircmbito da cultura musical grega (hellip)rdquo (Pereira 2001 p 259)
233 Telecleides (fr 1) citado em Ateneu Deipnosofistas (VI 268 B) 234 Aristoacutefanes Nuvens (963-4) Na comeacutedia de Aristoacutefanes essa citaccedilatildeo descreve o comportamento
considerado adequado para as crianccedilas de acordo com a antiga educaccedilatildeo ldquoquando a dececircncia era umcostume aceitordquo
235 Ver seccedilatildeo 321 (p 25-6)236 Melopoios
96
[617] ὡσαύτως δὲ καὶ τὰ παρὰ τοῖς τραγικοῖς μέλη καὶ στάσιμα φυσικόν τινα ἐπέχοντα
λόγον ὁποῖά ἐστι τὰ οὕτω λεγόμενα
γαῖα μεγίστη καὶ Διὸς αἰθήρ
ὁ μὲν ἀνθρώπων καὶ θεῶν γενέτωρ
ἡ δ ὑγροβόλους σταγόνας νοτίας
παραδεξαμένη τίκτει θνατούς
τίκτει δὲ βορὰν φῦλά τε θηρῶν
ὅθεν οὐκ ἀδίκως
μήτηρ πάντων νενόμισται
[618] Kαθόλου γὰρ οὐ μόνον χαιρόντων ἐστὶν ἄκουσμα ἀλλ ἐν ὕμνοις καὶ εὐωχίαις καὶ
θεῶν θυσίαις ἡ μουσική διὰ δὲ τοῦτο καὶ ἐπὶ τὸν τῶν ἀγαθῶν ζῆλον τὴν διάνοιαν
προτρέπεται ἀλλὰ καὶ λυπουμένων παρηγόρημα ὅθεν καὶ τοῖς πενθοῦσιν αὐλοὶ μελῳδοῦσιν
οἱ τὴν λύπην αὐτῶν ἐπικουφίζοντες
[619] Τοιαῦτα μὲν ὑπὲρ μουσικῆς λέγεται δὲ πρὸς ταῦτα τὸ μὲν πρῶτον ὅτι οὐκ
ἔστιν ἐκ προχείρου διδόμενον τὸ φύσει τῶν μελῶν τὰ μὲν εἶναι διεγερτικὰ τῆς ψυχῆς τὰ δὲ
κατασταλτικά παρὰ γὰρ τὴν ἡμετέραν δόξαν τὸ τοιοῦτο γίνεται ὥσπερ γὰρ ὁ τῆς βροντῆς
κτύπος καθά φασιν Ἐπικουρείων παῖδες οὐ θεοῦ τινος ἐπιφάνειαν σημαίνει ἀλλὰ τοῖς
ἰδιώταις καὶ δεισιδαίμοσι τοιοῦτος εἶναι δοξάζεται [620] ἐπεὶ καὶ ἄλλων σωμάτων ἐπ ἴσης
ἀλλήλοις προσκρουσάντων ὅμοιως ἀποτελεῖται κτύπος ὥσπερ καὶ μύλου περιαγομένου ἢ
χειρῶν συμπαταγουσῶν τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῶν κατὰ μουσικὴν μελῶν οὐ φύσει τὰ μὲν
τοῖά ἐστι τὰ δὲ τοῖα ἀλλ ὑφ ἡμῶν προσδοξάζεται
97
[617] Tambeacutem eram desse modo as melodias e cantos corais237 dos poetas traacutegicos
mantendo certa relaccedilatildeo natural tal como os ditos assim
Terra Maacutexima e eacuteter de Zeus
que eacute genitor dos homens e dos deuses
e ela que recebendo uacutemidas gotas pluviais
engendra os mortais
e gera o alimento e as raccedilas das feras
Por isso natildeo sem razatildeo
ela eacute considerada matildee de todos238
[618] Pois em geral a muacutesica natildeo eacute apenas um som ouvido em situaccedilotildees alegres mas
tambeacutem eacute ouvida em hinos oraccedilotildees e sacrifiacutecios aos deuses por isso tambeacutem o
pensamento239 eacute incitado ao zelo pelas coisas boas Daiacute tambeacutem eacute um consolo aos
entristecidos por essa razatildeo aos aflitos satildeo tocadas melodias no aulo aliviando a tristeza
deles
[619] Tais satildeo os argumentos a favor da muacutesica Mas diz-se contra essas ideias
primeiro que natildeo eacute prontamente concedido que por natureza240 algumas melodias excitam a
alma e outras tranquilizam241 Com efeito tal coisa eacute contraacuteria agrave nossa opiniatildeo Pois tal como
o estrondo do trovatildeo ndash segundo dizem os aprendizes242 de Epicuro243 ndash natildeo significa a epifania
de algum deus (embora isso seja suposto pelas pessoas comuns e supersticiosas) [620] visto
que outros corpos colidindo uns nos outros igualmente produzem um estrondo similar (como
quando um moinho gira ou quando matildeos batem palmas) do mesmo modo algumas melodias
musicais natildeo satildeo naturalmente de um tipo e outras de outro mas essa opiniatildeo eacute acrescentada
por noacutes244
237 Em grego ldquostasimonrdquo Cf Aristoacuteteles Poeacutetica (1452 B) ldquoo estaacutesimo eacute um coral desprovido de anapestos etroqueusrdquo O anapesto eacute usado na entrada do coro composto de duas siacutelabas breves e uma longa ᴗ ᴗ ndash e otroqueu tem a forma ndash ᴗ ndash ᴗ ou ndash ᴗ ndash x e eacute mais adequado para danccedila
238 Euriacutepides (fr 839 Nauck)239 Em grego ldquodianoiardquo eacute um dos termos usados para se referir agrave atividade do intelecto240 Aquilo que eacute dito ldquopor naturezardquo diz respeito ao que existe independentemente de nossas representaccedilotildees
Todavia de acordo com o ceticismo pirrocircnico temos acesso apenas agravequilo que nos aparece por isso natildeopodemos afirmar ou negar algo sobre como as coisas satildeo por elas mesmas ou seja por natureza Ver seccedilatildeo41
241 Cf Filodemo De Mus(col 120)242 Parece haver uma certa ironia no modo como Sexto se refere aos disciacutepulos de Epicuro utilizando o termo
ldquopaidesrdquo (que traduzimos por ldquoaprendizesrdquo) que em grego significa ldquoescravosrdquo ldquoservosrdquo ldquocrianccedilasrdquo243 Tal afirmaccedilatildeo parece se referir a Lucreacutecio De rerum natura (VI 96 ss)244 Para Platatildeo e Aristoacuteteles as melodias tecircm certos caracteres (ethe) por natureza Essa visatildeo foi criticada
tambeacutem por Filodemo (De Mus col 88 e 96) A definiccedilatildeo das melodias pelo termo ldquoethosrdquo se daacute a partir daideia de que as melodias teriam por natureza a capacidade de influenciar na formaccedilatildeo do caraacuteter humanoincitando a alma a accedilotildees boas ou maacutes
98
τὸ αὐτὸ γοῦν μέλος τῶν μὲν ἵππων διεγερτικόν ἐστι τῶν δὲ ἀνθρώπων ἐν θεάτροις
ἀκουόντων οὐδαμῶς καὶ τῶν ἵππων δὲ τάχα οὐ διεγερτικόν ἐστιν ἀλλὰ ταρακτικόν [621]
Eἶτα κἂν τοιαῦτα ᾖ τὰ τῆς μουσικῆς μέλη οὐ διὰ τοῦτο καὶ ἡ μουσικὴ βιωφελὴς καθέστηκεν
οὐ γὰρ ὅτι δύναμιν ἔχει σωφρονιστικήν καταστέλλει τὴν διάνοιαν ἀλλὰ ᾗ περισπαστικήν
παρὸ καὶ ἡσυχασθέντων πως τῶν τοιούτων μελῶν πάλιν ὁ νοῦς ὡς ἂν μὴ θεραπευθεὶς ὑπ
αὐτῶν ἐπὶ τὴν ἀρχῆθεν ἀνακάμπτει διάνοιαν [622] ὅνπερ οὖν τρόπον ὁ ὕπνος ἢ ὁ οἶνος οὐ
λύει τὴν λύπην ἀλλ ὑπερτίθεται κάρον ἐμποιῶν καὶ ἔκλυσιν καὶ λήθην οὕτω τὸ ποιὸν μέλος
οὐ καταστέλλει λυπουμένην ψυχὴν ἢ περὶ ὀργὴν σεσοβημένην τὴν διάνοιαν ἀλλ εἴπερ
περισπᾷ
99
Portanto a mesma melodia eacute excitante para os cavalos mas natildeo o eacute de modo algum para os
homens quando eles a ouvem nos teatros ndash e para os cavalos talvez natildeo seja excitante mas
perturbadora245 [621] Em segundo lugar ainda que a melodia da muacutesica seja desse modo
tambeacutem natildeo foi devido a isso que a muacutesica se estabeleceu como uacutetil para a vida246 Com
efeito natildeo eacute porque tem o poder de regular que a muacutesica refreia o pensamento mas porque
tem o poder de distrair Por conseguinte tais melodias tendo sido silenciadas novamente a
mente como se natildeo tivesse sido tratada pela melodia volta imediatamente ao estado de
pensamento inicial [622] Entatildeo do mesmo modo que o sono ou o vinho natildeo dissolve a
tristeza mas a sobrepassa o torpor produzindo enfraquecimento e esquecimento a melodia
desse tipo natildeo tranquiliza a alma entristecida ou o pensamento agitado pela raiva mas se faz
algo os distrai247
245 Esse argumento eacute baseado no primeiro Modo de Enesidemo sobre a variedade dos animais Nele mostra-seque a partir das mesmas coisas natildeo recebemos as mesmas representaccedilotildees por causa das diferenccedilas entre osanimais Segundo Sexto Empiacuterico isso se daacute devido agraves (1) diferenccedilas no modo como os animais satildeoproduzidos (HP I 41-43) agraves (2) diferenccedilas nas estruturas corporais (44-54) e agraves (3) diferenccedilas naspreferecircncias e aversotildees dos animais (55-58) Ao abordar essas diferenccedilas Sexto nunca daacute um exemploconcreto de como as coisas aparecem para os animais pois segundo Annas amp Barnes (1985 p 41) ldquoseuapelo agraves experiecircncias dos animais natildeo supotildee que noacutes humanos podemos saber como eacute ser natildeo-humanordquo Noque diz respeito agrave diferenccedila nas estruturas corporais Sexto argumenta por exemplo que as diferenccedilas nocanal auditivo e na constituiccedilatildeo das orelhas podem afetar o modo como o mesmo som eacute percebido (HP I50) Aleacutem disso no que diz respeito agraves diferentes preferecircncias aquilo que eacute agradaacutevel ao homem pode serdesagradaacutevel ou ateacute mortiacutefero para outro animal Apoacutes apresentar vaacuterios exemplos especiacuteficos acerca dessasdiferenccedilas Sexto conclui que ldquose as mesmas coisas satildeo desagradaacuteveis para alguns mas agradaacuteveis paraoutros e se prazer e desagradabilidade repousam nas representaccedilotildees entatildeo animais diferentes recebemdiferentes representaccedilotildees dos objetos externosrdquo (HP I 58) No caso de uma melodia o mesmo conjunto desons pode ser percebido de maneira diferente pelos homens e pelos animais Mas se os mesmos objetosaparecem de maneiras diferentes em funccedilatildeo das diferenccedilas entre os animais ldquoentatildeo noacutes devemos sercapazes de dizer como um objeto existente parece quando observado por noacutes mas sobre como ele eacute em suanatureza noacutes devemos suspender o juiacutezo Pois noacutes natildeo podemos decidir entre nossas percepccedilotildees e as dosoutros animais sendo noacutes mesmos uma parte da disputardquo (HP I 59) Assim no que diz respeito agrave melodiapara o ceacutetico podemos dizer como ela aparece para noacutes e como ela parece (para noacutes) afetar o cavalo masnatildeo podemos dizer se ela eacute excitante ou natildeo por natureza Ver seccedilotildees 41 e 431 (p 62)
246 A argumentaccedilatildeo a favor da muacutesica pauta-se em sua utilidade para a vida visto que eacute a partir de sua utilidadeque os filoacutesofos abordam a necessidade do ensino da muacutesica A criacutetica de Sexto Empiacuterico tal como a deFilodemo (De Mus col 137-144 e 149) contesta essa utilidade
247 Ver Filodemo De Mus (col 129 1-7)
100
[623] Ὃ τε Πυθαγόρας τὸ μὲν πρῶτον μάταιος ἦν τοὺς μεθύοντας ἀκαίρως σωφρονίζειν
βουλόμενος ἀλλὰ μὴ ἐκκλίνων εἶτα καὶ τούτῳ τῷ τρόπῳ ἐπανορθούμενος αὐτοὺς ὁμολογεῖ
πλεῖόν τι δύνασθαι τῶν φιλοσόφων πρὸς ἐπανόρθωσιν ἠθῶν τοὺς αὐλητάς [624] Tό τε τοὺς
Σπαρτιάτας πρὸς αὐλὸν καὶ λύραν πολεμεῖν τοῦ μικρῷ πρότερον εἰρημένου τεκμήριόν ἐστιν
ἀλλ οὐχὶ τοῦ βιωφελῆ τυγχάνειν τὴν μουσικήν καθάπερ δ οἱ ἀχθοφοροῦντες ἢ ἐρέσσοντες ἢ
ἄλλο τι τῶν ἐπιπόνων δρῶντες ἔργων κελεύουσιν εἰς τὸ ἀνθέλκειν τὸν νοῦν ἀπὸ τῆς κατὰ τὸ
ἔργον βασάνου οὕτω καὶ αὐλοῖς ἢ σάλπιγξιν ἐν πολέμοις χρώμενοι οὐ διὰ τὸ ἔχειν τι τῆς
διανοίας ἐπεγερτικὸν τὸ μέλος καὶ ἀνδρικοῦ λήματος αἴτιον ὑπάρχειν τοῦτο ἐμηχανήσαντο
ἀλλἀπὸ τῆς ἀγωνίας καὶ ταραχῆς ἀνθέλκειν ἑαυτοὺς σπουδάσαντες εἴγε καὶ στρόμβοις τινὲς
τῶν βαρβάρων βουκινίζουσι καὶ τυμπάνοις κτυποῦντες πολεμοῦσιν ἀλλ οὐδὲν τούτων ἐπ
ἀνδρείαν προτρέπεται
101
[623] E Pitaacutegoras primeiramente era um tolo desejando regular aqueles inapropriadamente
embriagados em vez de evitaacute-los aleacutem disso recorrendo a esse modo de correccedilatildeo ele aceita
que os auletas tecircm mais poder do que os filoacutesofos248 no que concerne agrave correccedilatildeo dos
caraacuteteres249 [624] E que os Espartanos fazem guerra ao som do aulo e da lira 250 eacute prova do
que foi dito um pouco antes mas natildeo de que a muacutesica eacute uacutetil251 para a vida Do mesmo modo
que os que carregam fardos ou remam ou cumprem tarefas ldquocantam lamentosrdquo252 para afastar
a mente da agonia do trabalho253 tambeacutem aqueles que usam aulos e saacutelpinges254 em batalhas
inventaram isso natildeo por terem alguma melodia estimulante do pensamento como causa de
coragem viril mas porque ansiavam afastar a si mesmos da agonia e da perturbaccedilatildeo255 ainda
que alguns baacuterbaros256 guerreiem assoprando257 conchas e ressoando tambores258 Entretanto
nada disso incita algueacutem agrave coragem
248 Os auletas sendo muacutesicos praacuteticos seriam inferiores em relaccedilatildeo aos filoacutesofos Na Poliacutetica (1339 B 1341B) Aristoacuteteles afirma que o muacutesico profissional pode ser considerado vulgar e que a praacutetica musical natildeo eacuteproacutepria para o homem livre visto que esta natildeo tem um fim em si mesma Filodemo utiliza o mesmo tipo deargumento contra Dioacutegenes da Babilocircnia cf Filodemo De Mus (IV col 126 35-40 136 10-21)
249 Ethos (ἦθος) diz respeito ao caraacuteter da alma Na Eacutetica a Nicocircmaco (1103A) Aristoacuteteles apresenta duasespeacutecies de virtudes a intelectual e a moral A virtude moral surge do haacutebito ldquodonde forma-se seu nome(ethike) [ἠθική] por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ethos [ἔθος] (haacutebito)rdquo Todos os elementos damuacutesica conteacutem um caraacuteter proacuteprio que eacute transmitido para a alma atraveacutes de um processo de imitaccedilatildeo CfAristides Quintiliano De Mus (218) e Filodemo De Mus (col 99-100)
250 Ver Filodemo De Mus (col 72 43-732 ) 251 A utilidade para a vida eacute o criteacuterio de acordo com o qual o ceacutetico condena algumas artes e natildeo outras Ver
seccedilotildees 41 (p 51-2) e 54252 ldquoKeleuosirdquo comumente significa ldquoincitarrdquo ou ldquodar ordensrdquo De acordo com Delattre (2002 p 425 n 6) agraves
vezes com acompanhamento musical Na Repuacuteblica (390 B) de Platatildeo aparece com o sentido teacutecnico deldquodar a cadecircnciardquo Delattre opta por traduzir o termo pela expressatildeo ldquocadencent leurs mouvementsrdquo
253 Um argumento a favor da muacutesica nesse contexto aparece em Quintiliano Inst (I X 16)254 Em grego ldquosalpinxrdquo instrumento de origem Etrusca parecido com um trompete consistindo de um tubo
reto de bronze ou latatildeo Era utilizado em contextos militares255 Ver Filodemo De Mus (col 69 7-12)256 De acordo com Greaves (1986 p 145 n 65) ldquoisso reflete uma crenccedila da parte de muitos Gregos de que
muitos baacuterbaros ou natildeo-Helenos eram naturalmente inferiores agravequeles de nacionalidade Grega Oargumento aqui eacute de que os baacuterbaros natildeo teriam a capacidade para o espiacuterito viril uma das virtudesrdquo NaPoliacutetica por exemplo Aristoacuteteles afirma que os ldquoHelenos satildeo senhores naturais de baacuterbarosrdquo (AristoacutetelesPol 1252 B)
257 Segundo Beacutelis (apud Delattre 2002 p 427 n 2) ldquoo verbo boukinizein remete agrave bucina trompa de guerrados romanosrdquo
258 Aristides Quintiliano (De mus 26) tambeacutem aborda as questotildees dos baacuterbaros serem civilizados atraveacutes damuacutesica e do uso da saacutelpinge para dar os comandos nas batalhas
102
[625] Tὰ δὲ αὐτὰ λεκτέον καὶ ἐπὶ τοῦ μηνίοντος Ἀχιλλέως καίτοι ἐρωτικοῦ ὄντος καὶ
ἀκρατοῦς οὐ παράδοξον τὴν μουσικὴν σπουδάζεσθαι [626] Nὴ Δί ἀλλὰ καὶ οἱ ἥρωες τὰς
ἑαυτῶν γυναῖκας ᾠδοῖς τισὶν ὡς σώφροσι φύλαξι παρακατετίθεντο καθάπερ ὁ Ἀγαμέμνων
τὴν Κλυταιμνήστραν ταῦτα δὲ ἤδη μυθολογούντων ἐστὶν ἀνδρῶν εἶτα καὶ παρὰ πόδας
αὑτοὺς διελεγχόντων πῶς γάρ εἴπερ μουσικὴ περὶ τῆς τῶν παθῶν ἐπανορθώσεως
ἐπιστεύετο τὸν μὲν Ἀγαμέμνονα ἡ Κλυταιμνήστρα ἐπὶ τῆς ἰδίας ἑστίας κατέκτανεν ὥσπερ
ldquoβοῦν ἐπὶ φάτνῃrdquo εἰς δὲ τοὺς Ὀδυσσέως οἴκους ἡ Πηνελόπη ὄχλον ἄσωτον ἐπιδέχεται
μειρακίων ἀεὶ δὲ τὰς ἐπιθυμίας αὐτῶν ἐλπιδοκοποῦσα καὶ παραύξουσα μοχθηρότερον καὶ
χαλεπώτερον τῆς ἐπὶ Ἴλιον στρατείας τὸν ἐν Ἰθάκῃ πόλεμον ἤγειρε τῷ γήμαντι [627] Kαὶ
μὴν εἰ οὔτε οἱ περὶ τὸν Πλάτωνα μουσικὴν ἀπεδέξαντο ῥητέον οὐ πρὸς εὐδαιμονίαν αὐτὴν
συντείνειν ἐπεὶ καὶ ἄλλοι μὴ λειπόμενοι τῆς τούτων ἀξιοπιστίας καθάπερ οἱ περὶ τὸν
Ἐπίκουρον ἠρνήσαντο ταύτην τὴν ἀντιποίησιν λέγομεν τοὐναντίον αὐτὴν ἀσύμφορον εἶναι
καὶ ἀργήν φίλοινον χρημάτων ἀτημελῆ
103
[625] Isso tambeacutem deve ser dito sobre a ira de Aquiles259 embora seja passional e
incontinente260 natildeo eacute contraacuterio agrave expectativa ele ser ansioso a respeito da muacutesica [626] Mas
por Zeus tambeacutem os heroacuteis confiavam suas mulheres a alguns cantores como guardiotildees da
temperanccedila delas tal como Agamecircnon fez com Clitemnestra Mas essas coisas satildeo mitos
contados pelos homens que imediatamente em seguida contradizem a si mesmos Com
efeito se realmente se acreditava que a muacutesica teria influecircncia na correccedilatildeo dos afetos como
Clitemnestra mataria Agamecircnon em sua proacutepria lareira como se fosse um ldquoboi na
manjedourardquo261 E como Peneacutelope admitiria na casa de Odisseu uma multidatildeo desesperada de
jovens e conduzindo-os a falsas esperanccedilas e aumentando o desejo deles provocaria para seu
marido a guerra em Iacutetaca que foi mais horriacutevel e mais difiacutecil do que a campanha de Troia
[627] Aleacutem disso mesmo se os seguidores de Platatildeo admitiram a muacutesica natildeo se deve dizer
que ela leva agrave felicidade visto que tambeacutem outros que natildeo satildeo inferiores em credibilidade
nessas coisas tal como os seguidores de Epicuro se negaram a assumir essas afirmaccedilotildees262
dizendo pelo contraacuterio que a muacutesica eacute prejudicial e ociosa amante do vinho e
desnecessaacuteria263
259 Cf Homero Iliacuteada (IX 186-9) Segundo Aristides Quintiliano (De Mus 210) o papel da muacutesica naeducaccedilatildeo eacute suficientemente confirmado por Homero ldquoAssim quando Aquiles na Iliacuteada quer se livrar dapaixatildeo por Briseida ele natildeo aparece cantando algo amoroso mas convida sua alma a se tornar virilrelembrando com a ciacutetara as faccedilanhas guerreiras dos antigosrdquo
260 Em grego ldquoacrasiardquo traduz-se por ldquoincontinecircnciardquo ldquofalta de autocontrolerdquo Cf Aristoacuteteles EN (1095 A)261 Homero Odisseia (XI 411)262 Pode-se compreender esse argumento agrave luz de um dos conceitos baacutesicos do ceticismo apresentado no
primeiro Modo de Agripa o conflito das opiniotildees (diaphonia) ldquode acordo com o qual noacutes descobrimos quetanto na vida comum quanto entre os filoacutesofos no que diz respeito a uma determinada questatildeo foialcanccedilado um impasse natildeo resolvido acerca do qual noacutes somos incapazes de alcanccedilar um veredito ()rdquo (HPI 165) Aleacutem disso esse argumento pode ser reportado ao segundo Modo de Enesidemo que aborda asdiferenccedilas entre os seres humanos (em funccedilatildeo das diferenccedilas do corpo e da alma) A esse respeito lemos queldquoa grande indicaccedilatildeo da vasta e ilimitada diferenccedila no intelecto dos seres humanos eacute a inconsistecircncia dasvaacuterias afirmaccedilotildees dos Dogmaacuteticos no que diz respeito agravequilo que pode ser apropriadamente escolhido o quepode ser evitado etcrdquo (HP I 85-6) Sexto Empiacuterico aponta que aquilo que escolhemos e evitamos estaacuteconectado agravequilo que eacute agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos e ldquoquando as mesmas coisas satildeo escolhidaspor algumas pessoas e evitadas por outras eacute loacutegico para noacutes inferir que essas pessoas natildeo satildeo afetadas damesma maneira pelas mesmas coisas visto que se fossem elas iriam do mesmo modo ter escolhido eevitado as mesmas coisasrdquo (HP I 87) O ceacutetico ainda acrescenta que ldquoenquanto os Dogmaacuteticos de maneiraegoiacutesta pretendem que a decisatildeo acerca dos fato deve ser dada a eles acima de todos os outros sereshumanos noacutes sabemos que essa pretensatildeo eacute absurda visto que eles proacuteprios fazem parte da disputa ()rdquo (HPI 89) Assim para o ceacutetico se a mesma coisa neste caso a muacutesica produz um determinado efeito para umou um grupo de seres humanos e natildeo para outros eacute impossiacutevel decidir quem estaacute certo a respeito de comoela eacute por natureza Sobre os Modos ver p 62
263 Euriacutepides Antiacuteope (fr 184 Nauck) Delattre (2002 p 229 n 1) chama atenccedilatildeo para uma relaccedilatildeo comDioacutegenes da Babilocircnia
104
[628] Eὐήθεις δέ εἰσι καὶ οἱ τὴν ἀπὸ ποιητικῆς χρείαν συμπλέκοντες αὐτῇ πρὸς εὐχρηστίαν
ἐπείπερ δύναται μέν τις ὡς καὶ ἐν τῷ πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ἐλέγομεν ἀνωφελῆ διδάσκειν
τὴν ποιητικήν οὐδὲν δὲ ἔλαττον κἀκεῖνο δεικνύναι ὅτι ἡ μὲν μουσικὴ περὶ μέλος
καταγινομένη μόνον τέρπειν πέφυκεν ἡ δὲ ποιητικὴ καὶ περὶ διάνοιαν καταγινομένη δύναται
συνωφελεῖν τε καὶ σωφρονίζειν
[629] Ἀλλ ὁ μὲν πρὸς τὰ ἐγκεχειρημένα λόγος ἐστὶ τοιοῦτος προηγουμένως δὲ
λέγεται καὶ κατὰ μουσικῆς ὡς εἴπερ ἐστὶ χρειώδης καὶ κατὰ τοῦτο λέγεται χρειοῦν παρόσον
μουσικευσάμενος πλεῖον παρὰ τοὺς ἰδιώτας τέρπεται πρὸς μουσικῶν ἀκροαμάτων ἢ
παρόσον οὐκ ἔστιν ἀγαθοὺς γενέσθαι μὴ προπαιδευθέντας ὑπ αὐτῶν [630] ἢ τῷ τὰ αὐτὰ
στοιχεῖα τυγχάνειν τῆς μουσικῆς καὶ τῶν κατὰ φιλοσοφίαν πραγμάτων εἰδήσεως ὁποῖόν τι
καὶ περὶ γραμματικῆς ἀνώτερον ἐλέγομεν ἢ τῷ κατὰ ἁρμονίαν διοικεῖσθαι τὸν κόσμον
καθὼς φάσκουσι Πυθαγορικῶν παῖδες δέεσθαί τε ἡμᾶς τῶν μουσικῶν θεωρημάτων πρὸς
τὴν τῶν ὅλων εἴδησιν ἢ τῷ τὰ ποιὰ μέλη ἠθοποιεῖν τὴν ψυχήν [631] Oὔτε δὲ τῷ τοὺς
μουσικοὺς πλέον τέρπεσθαι παρὰ τοὺς ἰδιώτας ἀπὸ τῶν ἀκροαμάτων λέγοιτ ἂν χρειοῦν ἡ
μουσική πρῶτον μὲν γὰρ οὐκ ἀναγκαία ἰδιώταις ἡ τέρψις καθάπερ αἱ ἐπὶ λιμῷ ἢ δίψει ἢ
κρύει γινόμεναι ὑπὸ πόματος ἢ ἀλέας
105
[628] E tolos satildeo tambeacutem os que ligam a muacutesica aos benefiacutecios do uso da poeacutetica em funccedilatildeo
de sua utilidade visto que - tal como diziacuteamos no Contra os Gramaacuteticos - algueacutem pode
ensinar que a poeacutetica eacute inuacutetil264 e igualmente pode-se mostrar que a muacutesica dizendo
respeito somente agrave melodia produz por natureza somente prazer enquanto a poeacutetica dizendo
respeito ao pensamento pode tanto ser beneacutefica quanto levar agrave temperanccedila265
[629] Esses satildeo os argumentos contra as ideias que foram discutidas Mas a primeira
e principal discussatildeo sobre a muacutesica eacute se de fato ela eacute uacutetil e ela eacute dita uacutetil na medida em que
aqueles que cultivaram o gosto pela muacutesica em comparaccedilatildeo agraves pessoas comuns tecircm mais
prazer com concertos musicais266 ou na medida em que natildeo acontece de os homens virem a
ser bons sem antes terem sido ensinados por muacutesicos [630] ou porque acontece dos
elementos da muacutesica serem os mesmos do conhecimento dos conteuacutedos da Filosofia267 (tal
como aquilo que dissemos acima sobre a gramaacutetica268) ou porque o cosmos eacute governado de
acordo com a harmonia - segundo afirmam os aprendizes de Pitaacutegoras269 ndash e noacutes necessitamos
dos teoremas musicais para a conhecimento do todo ou porque melodias de certa natureza
moldam o caraacuteter da alma270 [631] Nem a muacutesica deveria ser dita uacutetil porque os muacutesicos tecircm
mais prazer com os concertos do que as pessoas comuns271 Primeiro porque certamente esse
prazer natildeo eacute necessaacuterio272 para as pessoas comuns tal como o prazer que surge da bebida ou
do calor quando se tem fome sede ou frio
264 Cf M I 277-80 onde o mesmo tipo de argumento eacute apresentado contra a utilidade da Gramaacutetica Vertambeacutem M I 296-8
265 Uma das criacuteticas principais de Filodemo a Dioacutegenes da Babilocircnia eacute que ele atribui agraves melodias consideradasdesprovidas de razatildeo os efeitos das poesias que elas acompanham
266 Em nota agrave traduccedilatildeo de Delattre Beacutelis (apud Delattre 2002 p 429 n 4) chama atenccedilatildeo para a traduccedilatildeo dotermo akroama que significa literalmente ldquocoisa ouvidardquo como ldquoconcertordquo ou ldquorecitalrdquo
267 Filodemo tambeacutem aborda a relaccedilatildeo da muacutesica com outras artes e com a Filosofia Ver Filodemo De Mus(col 136-7)
268 No Contra os Gramaacuteticos (M I 72) Sexto aponta que para Ptolomeu a Gramaacutetica natildeo eacute uma arteconjectural (sujeita a acidentes como a navegaccedilatildeo e a medicina) mas eacute semelhante agrave muacutesica e agrave FilosofiaSobre o conceito de tekhne ver seccedilatildeo 42 (p 54-5)
269 Filodemo menciona alguns neopitagoacutericos no que diz respeito a esta concepccedilatildeo Ver De Mus (col 145 17)270 Cf Filodemo De Mus (col 38 1-19 e 117 2-42)271 Filodemo De Mus (col 42-3)272 A ideia de que a muacutesica proporciona um prazer natildeo necessaacuterio eacute defendida pelos Epicuristas ver Filodemo
De Mus (col 151 29-31)
106
[632] εἶτα κἂν τῶν ἀναγκαίων ὑπάρχωσι δυνάμεθα χωρὶς μουσικῆς ἐμπειρίας αὐτῶν
ἀπολαύειν νήπια γοῦν ἐμμελοῦς μινυρίσματος κατακούοντα κοιμίζεται καὶ τὰ ἄλογα τῶν
ζῴων ὑπὸ αὐλοῦ καὶ σύριγγος κηλεῖται οἵ τε δελφῖνες ὡς λόγος αὐλῶν μελῳδίαις
τερπόμενοι προσνήχονται τοῖς ἐρεσσομένοις σκάφεσιν ὧν οὐδὲ ὁπότερον ἔοικε μουσικῆς
ἔχειν ἐμπειρίαν ἢ ἔννοιαν [633] Kαὶ διὰ τοῦτο μή ποτε ὃν τρόπον χωρὶς ὀψαρτυτικῆς καὶ
οἰνογευστικῆς ἡδόμεθα ὄψου ἢ οἴνου γευσάμενοι ὧδε καὶ χωρὶς μουσικῆς ἡσθείημεν ἂν
τερπνοῦ μέλους ἀκούσαντες τοῦ μὲν ὅτι τεχνικῶς γίνεται μᾶλλον παρὰ τὸν ἰδιώτην
ἀντιλαμβανoacuteμενοι τοῦ δὲ ἡστικοῦ πάθους μηδὲν πλείω κερδαίνοντες [634] Ὥστε οὐχ
αἱρετὸν μουσικὴ παρόσον τοὺς εἰδήμονας αὐτῆς ἐπὶ πλεῖον τέρπεσθαι συμβέβηκεν καὶ μὴν
οὐδὲ τῷ προοδοποιεῖν τὴν ψυχὴν εἰς σοφίαν ἀνάπαλιν γὰρ ἀντικόπτει καὶ ἀντιβαίνει πρὸς τὸ
τῆς ἀρετῆς ἐφίεσθαι εὐαγώγους εἰς ἀκολασίαν καὶ λαγνείαν παρασκευάζουσα τοὺς νέους
[635] ἐπείπερ ὁ μουσικευσάμενος
μολπαῖσιν ἡσθεὶς τοῦτ ἀεὶ θηρεύεται
ἀργὸς μὲν οἴκοις καὶ πόλει γενήσεται
φίλοισι τ οὐθείς ἀλλ ἄφαντος οἴχεται
ὅταν γλυκείας ἡδονῆς ἥσσων τις ᾖ
[636] Kατὰ ταὐτὰ δὲ οὐδὲ ἀπὸ τῶν αὐτῶν στοιχείων ὁρμᾶσθαι ταύτην τε καὶ φιλοσοφίαν
εἰσακτέον τὸ καταὐτὴν χρειῶδες ὡς αὐτόθεν ἐστὶ συμφανές λείπεται ἄρα τῷ καθ ἁρμονίαν
τὸν κόσμον διοικεῖσθαι ἢ τῷ ἠθοποιοῖς μέλεσι κεχρῆσθαι χρειώδη πρὸς εὐδαιμονίαν λέγειν
αὐτὴν τυγχάνειν
107
[632] E mesmo que estes venham a ser prazeres necessaacuterios noacutes podemos aproveitaacute-los sem
experiecircncia musical273 Crianccedilas satildeo colocadas para dormir ouvindo um gorjear meloacutedico274 e
os animais irracionais satildeo encantados pelo aulo e pela siacuteringe275 Assim os golfinhos segundo
o relato276 por terem prazer com as melodias dos aulos nadam ao redor dos cascos dos navios
que estatildeo sendo remados mas nenhum deles parece ter experiecircncia ou compreensatildeo musical
[633] E por causa de tais coisas do mesmo modo que sem a arte da culinaacuteria e a arte da
degustaccedilatildeo de vinhos noacutes temos prazer em saborear a comida e o vinho tambeacutem sem a arte
da muacutesica noacutes temos prazer ouvindo melodias prazerosas Embora por um lado os artistas
profissionais no que concerne agraves regras da arte apreendam mais do que as pessoas comuns
por outro eles natildeo recebem nada mais no que diz respeito agrave afecccedilatildeo prazerosa [634] Entatildeo
a muacutesica natildeo eacute escolhida porque os especialistas tecircm mais prazer nela Tambeacutem natildeo eacute
escolhida por preparar a alma de antematildeo para a sabedoria277 Inversamente ela resiste e vai
contra o desejo pela virtude tornando os jovens facilmente conduzidos agrave intemperanccedila e agrave
luxuacuteria278 [635] porque aquele que cultivou o gosto pela muacutesica
ter prazer nas danccedilas ele sempre busca
ele seraacute ocioso em casa e na cidade
natildeo sendo ningueacutem para os amigos invisiacutevel ele vai embora
a qualquer hora quando for vencido pelo doce prazer279
[636] A partir dessas mesmas ideias a utilidade da muacutesica natildeo deve ser introduzida pelo fato
de ambas a muacutesica e a Filosofia serem derivadas dos mesmos elementos como eacute
imediatamente evidente Resta entatildeo dizer que acontece dela ser uacutetil para a felicidade
porque o cosmos eacute ordenado segundo a harmonia ou porque se usa melodias para a formaccedilatildeo
do caraacuteter
273 Ver seccedilatildeo 52 (p 75-6)274 Platatildeo nas Leis (790 D - E) fala de como as matildees potildeem os bebecircs para dormir cantando para eles Beacutelis
(apud Delattre 2002 p 431 n 4) aponta que essa pode ser uma criacutetica agrave afirmaccedilatildeo de Platatildeo visto que ascrianccedilas natildeo seriam colocadas para dormir soacute pela melodia mas pela sua combinaccedilatildeo com o balanccedilo
275 Em grego ldquosyrinxrdquo Instrumento da famiacutelia dos aerofones semelhante agrave ldquoflauta de Patilderdquo na sua forma maiscomum
276 Esse relato aparece em vaacuterias fontes Ver Euriacutepedes Electra (435) Plutarco Banquete dos Sete Saacutebios (160E-162 B) Heroacutedoto (1 24)
277 Ver seccedilatildeo 52 (p 76-7)278 Ver Filodemo De Mus (col 127 28-30)279 Euriacutepides Antiacuteope (fr 187 Nauck)
108
ὧν τὸ μὲν τελευταῖον ἤδη διαβέβληται ὡς οὐχ ὑπάρχον ἀληθές [637] τὸ δὲ κατὰ ἁρμονίαν
διοικεῖσθαι τὸν κόσμον ποικίλως δείκνυται ψεῦδος εἶτα καὶ ἂν ἀληθὲς ὑπάρχῃ οὐδὲν
τοιοῦτο δύναται πρὸς μακαριότητα καθάπερ οὐδὲ ἡ ἐν τοῖς ὀργάνοις ἁρμονία
Ἀλλὰ τὸ μὲν πρῶτον εἶδος τῆς πρὸς τοὺς μουσικοὺς ἀντιρρήσεως τοιουτότροπόν
ἐστιν [638] τὸ δὲ δεύτερον καὶ τῶν τῆς μουσικῆς ἀρχῶν καθαπτόμενον πραγματικωτέρας
μᾶλλον ἔχεται ζητήσεως οἷον ἐπεὶ ἡ μουσικὴ ἐπιστήμη τίς ἐστιν ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
ἐνρύθμων τε καὶ ἐκρύθμων πάντως ἐὰν δείξωμεν ὅτι οὔτε τὰ μέλη ὑποστατά ἐστιν οὔτε οἱ
ῥυθμοὶ τῶν ὑπαρκτῶν πραγμάτων τυγχάνουσιν ἐσόμεθα παρεστακότες καὶ τὴν μουσικὴν
ἀνυπόστατον λέγωμεν δὲ πρῶτον περὶ μελῶν καὶ τῆς τούτων ὑποστάσεως μικρὸν ἄνωθεν
καταρξάμενοι
[639] Φωνὴ τοίνυν ἐστίν ὡς ἄν τις ἀναμφισβητήτως ἀποδοίη τὸ ἴδιον αἰσθητὸν
ἀκοῆς καθάπερ γὰρ μόνης ὁράσεως ἔργον ἐστὶ τὸ χρωμάτων ἀντιλαμβάνεσθαι καὶ μόνης
ὀσφρήσεως τὸ εὐωδῶν καὶ δυσωδῶν ἀντιποιεῖσθαι καὶ ἤδη γεύσεως τὸ γλυκέων ἢ πικρῶν
αἰσθάνεσθαι οὕτω γένοιτ ἂν ἴδιον αἰσθητὸν ἀκοῆς ἡ φωνή [640] Tῆς δὲ φωνῆς ἡ μέν τίς
ἐστιν ὀξεῖα ἡ δὲ βαρεῖα μεταφορικώτερον ἀπὸ τῶν περὶ τὴν ἁφὴν αἰσθητῶν ἑκατέρου
τούτων λαμβάνοντος τὴν προσηγορίαν καθάπερ γὰρ τὸ κεντοῦν καὶ τέμνον τὴν ἁφὴν ὀξὺ
προσηγόρευσεν ὁ βίος καὶ τὸ θλάσιν ἐμποιοῦν καὶ πιέζον βαρύ τὸν αὐτὸν τρόπον καὶ τῆς
φωνῆς τὴν μὲν οἱονεὶ τέμνουσαν τὴν ἀκοὴν ὀξεῖαν τὴν δὲ ὥσπερ θλῶσαν βαρεῖαν [641] καὶ
οὐ ξένον ὥσπερ φαιάν τινα καὶ μέλαιναν καὶ λευκὴν φωνὴν ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ὅρασιν
αἰσθητῶν κεκλήκαμεν ὧδε καὶ ἀπὸ τῶν πρὸς τὴν ἁφὴν ἐχρησάμεθά τισι μεταφοραῖς Ὅταν
μὲν οὖν ἐπἴσης ἐκφέρηται ἡ φωνὴ καὶ ὑπὸ μίαν τάσιν ὡς μηδένα περισπασμὸν γίνεσθαι τῆς
αἰσθήσεως ἤτοι ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἢ τὸ ὀξύτερον τότε ὁ τοιοῦτος ἦχος φθόγγος καλεῖται
παρὸ καὶ οἱ μουσικοὶ ὑπογράφοντές φασι ldquoφθόγγος ἐστὶν ἐμμελοῦς φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν
τάσινrdquo
109
Desses o uacuteltimo jaacute foi desconsiderado como natildeo verdadeiro [637] e que o cosmos eacute
ordenado segundo a harmonia mostra-se falso de varios modos E ainda que porventura isso
fosse verdadeiro tal coisa natildeo tem poder sobre a bem aventuranccedila tal como a harmonia natildeo
tem poder sobre os instrumentos musicais280
De tal tipo eacute o primeiro modo de refutaccedilatildeo contra os muacutesicos [638] jaacute o segundo
atacando os princiacutepios da muacutesica envolve uma investigaccedilatildeo mais pragmaacutetica281 Por exemplo
visto que a muacutesica eacute uma ciecircncia daquilo que eacute meloacutedico e natildeo meloacutedico e do que eacute riacutetmico e
do que natildeo eacute riacutetmico282 se mostrarmos plenamente que nem as melodias existem283 e nem os
ritmos satildeo coisas existentes noacutes teremos mostrado que tambeacutem a muacutesica natildeo existe Falemos
primeiro sobre a melodia e sua existecircncia comeccedilando com algumas questotildees preliminares
[639] Ora o som eacute como algueacutem poderia indisputavelmente definir o sensiacutevel
proacuteprio da audiccedilatildeo284 Pois tal como a tarefa somente da visatildeo eacute apreender as cores e a do
olfato opor as fragracircncias boas e ruins e igualmente a do paladar eacute perceber o doce e o
amargo do mesmo modo o som seria o sensiacutevel proacuteprio do ouvir [640] Dos sons um tipo
eacute grave e outro agudo ambos utilizando metaforicamente nomes com base nos sensiacuteveis
proacuteprios do tato pois assim como as pessoas chamaram o que pica e corta o tato ldquoagudordquo e o
que esmaga e pressiona ldquograverdquo do mesmo modo tambeacutem o som na medida em que o que
corta o ouvir eacute ldquoagudordquo e na medida em que o que esmaga - como se o fizesse - eacute ldquograverdquo
[641] Tambeacutem natildeo eacute estranho que tal como chamamos algum som de cinza preto ou branco
por causa dos objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel da visatildeo assim tambeacutem usamos os objetos do
tato para as metaacuteforas Entatildeo sempre que o som eacute emitido igualmente e na mesma tensatildeo
quando natildeo haacute distraccedilatildeo da percepccedilatildeo tanto em direccedilatildeo ao grave quanto ao agudo entatildeo tal
som eacute chamado ldquonotardquo Para o que tambeacutem os muacutesicos285 definem de maneira geral ldquonota eacute a
incidecircncia de um som meloacutedico em uma tensatildeordquo286
280 Isso porque a harmonia do cosmos seria inaudiacutevel e o efeito produzido pelos instrumentos eacute audiacutevelAristoacuteteles no De Caelo (290 B - 291 A) apresenta uma refutaccedilatildeo agrave teoria pitagoacuterica da harmonia dasesferas rejeitando a ideia de que a harmonia do cosmos produziria algum tipo de som Sobre a harmoniados instrumentos ver Aristides Quintiliano De Mus (217-9)
281 O termo que deriva de ldquopragmatikosrdquo nesta passagem eacute comumente traduzido ou por ldquopraacuteticordquo ou porldquoteacutecnicordquo O mesmo termo aparece no uacuteltimo paraacutegrafo do texto
282 Definiccedilatildeo proacutexima agrave de Dioacutegenes da Babilocircnia apresentada por Filodemo De Mus (col 34 31-33 e 11234-36)
283 Aquilo que existe substancialmente de maneira independente das nossas representaccedilotildees284 Definiccedilatildeo do som dada por Dioacutegenes da Babilocircnia seguindo a de Aristoacuteteles285 Ou seja os teoacutericos da muacutesica286 Definiccedilatildeo dada por Aristoacutexeno El Harm (115 14-15)
110
[642] Tῶν δὲ φθόγγων οἱ μέν εἰσιν ὁμόφωνοι οἱ δὲ οὐχ ὁμόφωνοι καὶ ὁμόφωνοι μὲν οἱ μὴ
διαφέροντες ἀλλήλων κατὀξύτητα καὶ βαρύτητα οὐχ ὁμόφωνοι δὲ οἱ μὴ οὕτως ἔχοντες
[643] τῶν δὲ ὁμοφώνων ὡς καὶ τῶν οὐχ ὁμοφώνων τινὲς μὲν ὀξεῖς τινὲς δὲ βαρεῖς
καλοῦνται καὶ πάλιν τῶν οὐχ ὁμοφώνων οἱ μὲν διάφωνοι προσαγορεύονται οἱ δὲ σύμφωνοι
καὶ διάφωνοι μὲν οἱ ἀνωμάλως καὶ διεσπασμένως τὴν ἀκοὴν κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ
ὁμαλώτερον καὶ ἀμερίστως [644] Σαφέστερον δὲ μᾶλλον ἔσται τὸ ἑκατέρου γένους ἰδίωμα
τῇ ἀπὸ τῶν πρὸς γεῦσιν ποιοτήτων μεταβάσει χρησαμένων ἡμῶν ὥσπερ τοίνυν τῶν γευστῶν
τὰ μὲν τοιαύτην ἔχει κρᾶσιν ὥστε μονοειδῶς καὶ λείως κινεῖν τὴν αἴσθησιν ὁποῖον τὸ
οἰνόμελι καὶ ὑδρόμελι τὰ δὲ οὐχ ὡσαύτως οὐδὲ ὁμοίως καθάπερ τὸ ὀξύμελι (ἑκάτερον γὰρ
τούτων τῶν μιγμάτων τὴν ἴδιον ἐντυποῖ ποιότητα τῇ γεύσει) οὕτω τῶν φθόγγων διάφωνοι
μέν εἰσιν οἱ ἀνωμάλως τὴν ἀκοὴν καὶ διεσπασμένως κινοῦντες σύμφωνοι δὲ οἱ ὁμαλώτεροι
ἀλλὰ γὰρ ἡ μὲν διαφορὰ τῶν φθόγγων τοιαύτη τίς ἐστι παρὰ μουσικοῖς [645] περιγράφεται
δέ τινα πρὸς τούτων διαστήματα καθ ἃ καὶ ἡ φωνὴ κινεῖται ἤτοι ἐπὶ τὸ ὀξύτερον
ἀναβαίνουσα ἢ ἐπὶ τὸ βαρύτερον ἀνιεμένη παρ ἣν αἰτίαν κατὰ τὸ ἀνάλογον τῶν
διαστημάτων τούτων τὰ μὲν σύμφωνα τὰ δὲ διάφωνα προσηγόρευται
111
[642] Mas das notas algumas satildeo homofocircnicas e outras natildeo homofocircnicas287 Homofocircnicas
satildeo as que natildeo diferem umas das outras segundo ldquoagudezardquo e ldquogravidaderdquo e natildeo homofocircnicas
satildeo aquelas que natildeo satildeo desse modo288 [643] Das homofocircnicas como tambeacutem das natildeo
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquoagudasrdquo outras ldquogravesrdquo e novamente das natildeo-
homofocircnicas algumas satildeo chamadas ldquodissonantesrdquo e outras ldquoconsonantesrdquo As dissonantes
sendo aquelas que movem a audiccedilatildeo anocircmala e desordenadamente e as consonantes regulada
e continuamente [644] Mas as propriedades de cada gecircnero estaratildeo mais claras quando
tivermos feito a analogia289 com as qualidades do paladar Ora assim como das coisas que
podem ser saboreadas algumas tecircm uma mistura de tal modo que movem a sensaccedilatildeo
uniforme e suavemente tal como o vinho de mel e o hidromel e outras natildeo sendo assim natildeo
a movem similarmente tal como o oximel290 (pois cada uma dessas coisas misturadas
imprime sua proacutepria qualidade ao paladar) do mesmo modo das notas dissonantes satildeo as
que movem o ouvido anocircmala e desordenadamente consonantes as que o movem de maneira
regulada De acordo com os muacutesicos essa eacute entatildeo a diferenccedila entre as notas [645] Aleacutem
disso satildeo definidos por eles alguns intervalos de acordo com os quais o som se move
subindo em direccedilatildeo ao agudo ou descendo em direccedilatildeo ao grave Por isso de modo anaacutelogo
dos intervalos alguns satildeo chamados consonantes e outros dissonantes
287 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 437 n 3) Sexto Empiacuterico deveria ter utilizado o adjetivoldquohomotocircnicasrdquo e natildeo ldquohomofocircnicasrdquo Isso porque os muacutesicos antigos distinguiam entre as notashomofocircnicas (enquanto aquelas que se encontram em oitavas diferentes) e as notas homotocircnicas (as mesmasnotas na mesma oitava)
288 A muacutesica grega antiga tem como elemento primaacuterio de sua constituiccedilatildeo o tetracorde que eacute um conjunto dequatro notas separadas por trecircs graus As notas que formam a quarta justa do tetracorde satildeo ditas sons fixosHavia duas maneiras de se agrupar os tetracordes para se constituir uma escala (sistema) por conjunccedilatildeoformando um heptacorde ou por disjunccedilatildeo formando um octacorde Ambos abrangem um intervalo deoitava a consonacircncia (symphonia)
289 Metabasis eacute um termo relacionado agrave escola empiacuterica de medicina com a qual o ceticismo pirrocircnicoapresenta afinidades e da qual Sexto Empiacuterico foi um dos representantes A medicina empiacuterica funda-se naexperiecircncia e esta se daacute atraveacutes da observaccedilatildeo direta (autopsia ou teresis) pela atenccedilatildeo agrave histoacuteria mdash ou sejaagraves observaccedilotildees anteriormente feitas e registradas por outros mdash e finalmente pela passagem do semelhanteao semelhante (he tou homoiou metabasis) tambeacutem chamada ldquoinduccedilatildeordquo ldquoanalogiardquo ou ldquotransferecircnciardquo CfAllen (2010 p 232)
290 Mistura de mel e vinagre utilizada na medicina na qual cada um dos elementos manteacutem seu saborparticular natildeo gerando um sabor proacuteprio da mistura Cf Delattre (2002 p 439 n 1) A comparaccedilatildeoaparece tambeacutem em contexto musical nos Problemas de Aristoacuteteles ldquo() o composto eacute mais agradaacutevel queo natildeo composto se se adquirir a percepccedilatildeo de ambos os elementos simultaneamente Por conseguinte ovinho eacute mais agradaacutevel que o oximel pelo fato de se combinarem melhor entre si as cousas misturadas pelanatureza do que por noacutesrdquo (Aristoacuteteles Prob 922 A)
112
[646] καὶ σύμφωνα μὲν ὁπόσα ὑπὸ συμφώνων φθόγγων περιέχεται διάφωνα δὲ ὁπόσα ὑπὸ
διαφώνων τῶν δὲ συμφώνων διαστημάτων τὸ μὲν πρῶτον καὶ ἐλάχιστον διὰ τεσσάρων οἱ
μουσικοὶ προσαγορεύουσι τὸ δὲ μετὰ τοῦτο μεῖζον διὰ πέντε καὶ τοῦ διὰ πέντε μεῖζον τὸ διὰ
πασῶν [647] πάλιν τε τῶν διαφώνων διαστημάτων ἐλάχιστον μέν ἐστι καὶ πρῶτον παρ
αὐτοῖς ἡ καλουμένη δίεσις δεύτερον δὲ τὸ ἡμιτόνιον ὅ ἐστι διπλοῦν τῆς διέσεως τρίτον ὁ
τόνος ὅς ἐστι διπλασίων τοῦ ἡμιτονίου [648] Oὐ μὴν ἀλλ ὃν τρόπον ἅπαν διάστημα κατὰ
μουσικὴν ἐν φθόγγοις ἔχει τὴν ὑπόστασι οὕτω καὶ πᾶν ἦθος τὸ δἔστι τι γένος μελῳδίας
καθὰ γὰρ τῶν ἀνθρωπίνων ἠθῶν τινὰ μέν ἐστι σκυθρωπὰ καὶ στιβαρώτερα ὁποῖα τὰ τῶν
ἀρχαίων ἱστοροῦσιν τὰ δὲ εὐένδοτα πρὸς ἔρωτας καὶ οἰνοφλυγίας καὶ ὀδυρμοὺς καὶ
οἰμωγάς οὕτω τὶς μὲν μελῳδία σεμνά τινα καὶ ἀστεῖα ἐμποιεῖ τῇ ψυχῇ κινήματα τὶς δὲ
ταπεινότερα καὶ ἀγεννῆ [649] καλεῖται δὲ κατὰ κοινὸν ἡ τοιουτότροπος μελῳδία τοῖς
μουσικοῖς ἦθος ἀπὸ τοῦ ἤθους εἶναι ποιητική καθάπερ καὶ τὸ χλωρὸν δέος τὸ χλωροποιόν
καὶ τὸ ldquoνότοι βαρυήκοοι ἀχλυώδεις καρηβαρικοὶ νωθροὶ διαλυτικοίrdquo ἀντὶ τοῦ τούτων
δραστικοί [650] Tῆς δὲ κοινῆς μελῳδίας ταύτης τὸ μέν τι χρῶμα λέγεται τὸ δὲ ἁρμονία τὸ
δὲ διάτονον ὧν ἡ μὲν ἁρμονία αὐστηροῦ τινος ἤθους καὶ σεμνότητος κατασκευαστική πως
ὑπῆρχεν τὸ δὲ χρῶμα λιγυρόν τί ἐστι καὶ θρηνῶδες τὸ δὲ διάτονον ἔντραχυ καὶ ὑπάγροικον
113
[646] Os consonantes satildeo todos aqueles contidos pelas notas consonantes e os dissonantes os
contidos pelas notas dissonantes Dos intervalos consonantes os muacutesicos chamam o primeiro
e menor de quarta o maior depois desse de quinta e o maior que o de quinta eles chamam de
oitava [647] Novamente dos intervalos dissonantes o primeiro e menor eacute chamado entre os
muacutesicos de diacuteese291 o segundo eacute o semitom que eacute o dobro da diesis o terceiro eacute o tom o qual
eacute o dobro do semitom [648] Contudo natildeo apenas todo intervalo em muacutesica tem sua
existecircncia nas notas mas tambeacutem todo caraacuteter Caraacuteter eacute um certo gecircnero de melodia Pois
tal como dos caracteres humanos alguns satildeo mais graves e mais fortes (como contam que
eram os caracteres dos antigos) outros satildeo facilmente suscetiacuteveis ao erotismo e agrave embriaguez
agraves lamentaccedilotildees e agraves reclamaccedilotildees Do mesmo modo uma melodia produz movimentos nobres
e refinados na alma outra produz movimentos mais baixos e soacuterdidos292 [649] Uma melodia
de tal tipo eacute comumente chamada caraacuteter pelos muacutesicos por ser capaz de produzir caraacuteter
como tambeacutem o medo eacute chamado de paacutelido293 por sua capacidade de empalidecer e tambeacutem
considera-se ldquoos ventos do sul difiacuteceis de se ouvir enevoados causadores de dor de cabeccedila
indolentes e relaxantesrdquo294 em vez de consideraacute-los causas desses efeitos [650] Dessa
melodia comum295 uma eacute dita ldquocromaacuteticardquo296 outra ldquoharmoniardquo297 e outra ldquodiatocircnicardquo298
Destas a harmonia eacute de um caraacuteter austero e produtora de dignidade a cromaacutetica eacute de um
caraacuteter claro e pesaroso e a diatocircnica eacute de um caraacuteter aacutespero e grosseiro299
291 O menor intervalo da escala de acordo com o gecircnero Assim na escala diatocircnica a diesis corresponde a umsemitom e na enarmocircnica a um quarto de tom Cf Aristoacutexeno El Harm (21)
292 Filodemo De Mus (col 116 21-36)293 Cf Homero Iliacuteada (VII 479)294 Hipoacutecrates Aforismos (III 5) A citaccedilatildeo de Hipoacutecrates eacute literal Entretanto no contexto do aforismo na obra
de Hipoacutecrates natildeo haacute espaccedilo para a confusatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito apontada por Sexto EmpiacutericoClaramente os ventos do sul satildeo apresentados como causa dos efeitos citados
295 Nos dois sons intermediaacuterios (sons moacuteveis) do tetracorde as entonaccedilotildees diferem segundo o ldquogecircnerordquo doacorde A variaccedilatildeo das entonaccedilotildees dos sons moacuteveis caracteriza os trecircs gecircneros de progressatildeo meloacutedica damuacutesica grega o diatocircnico (tom ndash tom - semitom) o cromaacutetico (terccedila menor ndash semitom - semitom) e oenarmocircnico (terccedila maior ndash frac14 de tom ndash frac14 de tom)
296 Sexto Empiacuterico utiliza o termo ldquokhromardquo (que significa primeiramente ldquocorrdquo) para se referir agravequilo quedesde o seacuteculo IV aC era comumente chamado ldquoto khromatikonrdquo referindo-se ao gecircnero cromaacutetico
297 O termo ldquoharmoniardquo designa tambeacutem um dos gecircneros meloacutedicos mais conhecido como enarmocircnico298 Beacutelis (apud Delattre 2002 p 441 n 6) chama atenccedilatildeo para o fato de que desde a eacutepoca de Aristoacutexeno as
escalas eram listadas da menor para a maior (enarmocircnica cromaacutetica e diatocircnica) no entanto essa ordemaparece curiosamente deturpada por Sexto Empiacuterico tanto que a explicaccedilatildeo que se segue eacute apresentada naordem tradicional e natildeo na ordem que foi anunciada Sobre os gecircneros ver Aristoacutexeno El Harm (246-52)
299 Cf Euclides Introduccedilatildeo harmocircnica (3 7)
114
[651] ἀλλὰ δὴ πάλιν τὸ μὲν ἁρμονικὸν μέλος τῶν μελῳδουμένων ἀδιαίρετόν ἐστι τὸ δὲ
διάτονον καὶ τὸ χρῶμα ἰδικωτέρας τινὰς εἶχε διαφοράς δύο μὲν τὸ διάτονον τήν τε τοῦ
μαλακοῦ διατόνου καλουμένην καὶ τὴν τοῦ συντόνου τρεῖς δὲ τὸ χρῶμα τὸ μὲν γάρ τι αὐτοῦ
τονικὸν καλεῖται τὸ δὲ ἡμιτόνιον τὸ δὲ μαλακόν
[652] Πλὴν ἐκ τούτων συμφανὲς ὅτι πᾶσα ἡ κατὰ μελῳδίας θεωρία παρὰ τοῖς
μουσικοῖς οὐκ ἐν ἄλλῳ τινὶ τὴν ὑπόστασιν εἶχεν εἰ μὴ τοῖς φθόγγοις καὶ διὰ τοῦτο
ἀναιρουμένων αὐτῶν τὸ μηδὲν ἔσται ἡ μουσική πῶς οὖν καὶ ἐρεῖ τις ὅτι οὐκ εἰσὶ φθόγγοι ἐκ
τοῦ φωνὴν αὐτοὺς κατὰ γένος ὑπάρχειν φήσομεν καὶ τὴν φωνὴν ἀνύπαρκτον ἡμῖν ἐν τοῖς
σκεπτικοῖς ὑπομνήμασι δεδεῖχθαι ἀπὸ τῆς τῶν δογματικῶν μαρτυρίας [653] Oἵ τε γὰρ ἀπὸ
τῆς Κυρήνης φιλόσοφοι μόνα φασὶν ὑπάρχειν τὰ πάθη ἄλλο δὲ οὐδέν ὅθεν καὶ τὴν φωνὴν
μὴ οὖσαν πάθος ἀλλὰ πάθους ποιητικήν μὴ γίγνεσθαι τῶν ὑπαρκτῶν οἵ γέ τοι περὶ τὸν
Δημόκριτον καὶ Πλάτωνα πᾶν αἰσθητὸν ἀναιροῦντες συναναιροῦσι καὶ τὴν φωνήν αἰσθητόν
τι δοκοῦσαν πρᾶγμα ὑπάρχειν [654] καὶ γὰρ ἄλλως εἰ ἔστι φωνή ἤτοι σῶμά ἐστιν ἢ
ἀσώματον οὔτε δὲ σῶμά ἐστιν ὡς οἱ Περιπατητικοὶ διὰ πολλῶν διδάσκουσιν οὔτε
ἀσώματος ὡς οἱ ἀπὸ τῆς Στοᾶς οὐκ ἄρα ἔστι φωνή
115
[651] Novamente das melodias que satildeo cantadas a enarmocircnica eacute invariaacutevel jaacute a diatocircnica e
a cromaacutetica comportam algumas variaccedilotildees especiacuteficas A diatocircnica tem duas a chamada
diatocircnica suave e a intensa A cromaacutetica tem trecircs delas uma eacute chamada tocircnica outra
semitocircnica e outra suave300
[652] Aleacutem disso a partir dessas coisas eacute evidente que toda a teoria dos muacutesicos
sobre a melodia natildeo baseia sua existecircncia em outra coisa senatildeo nas notas Por isso destruindo
as notas a muacutesica seraacute nada Como entatildeo algueacutem declararaacute que as notas natildeo existem Noacutes
diremos a partir do fato das notas existirem conforme o gecircnero do som e noacutes mostramos em
nossas observaccedilotildees ceacuteticas301 a partir dos testemunhos dos dogmaacuteticos que o som natildeo existe
[653] Com efeito os filoacutesofos Cirenaicos302 dizem que apenas existem as afecccedilotildees mais
nada por essa razatildeo o som natildeo sendo uma afecccedilatildeo mas produtor de afecccedilatildeo natildeo vem a ser
algo existente Os disciacutepulos de Demoacutecrito e Platatildeo destruindo todos os objetos sensiacuteveis
destruiacuteram ao mesmo tempo o som303 que se supotildee ser um objeto da percepccedilatildeo sensiacutevel304
[654] Aleacutem disso se o som existe ou ele eacute corpoacutereo ou incorpoacutereo nem eacute corpoacutereo tal
como os Peripateacuteticos tanto ensinam nem incorpoacutereo tal como ensinam os Estoicos305 Logo
natildeo existe som
300 De acordo com Beacutelis (apud Delattre 2002 p 443 n 1) trata-se aqui de uma maacute compreensatildeo de SextoEmpiacuterico em relaccedilatildeo a uma passagem de Aristoacutexeno A afirmaccedilatildeo diz respeito agrave distribuiccedilatildeo e ao tamanhodos intervalos em cada escala Enquanto na enarmocircnica haacute apenas uma possibilidade de construccedilatildeo deintervalos na cromaacutetica e na diatocircnica haacute vaacuterias
301 Para Richard Bett (2013 p 177) esse parece ser o modo que Sexto faz referecircncia agraves obras hoje conhecidascomo Contra os Loacutegicos Contra os Fiacutesicos e Contra os Eacuteticos isso pode ser observado a partir de outrasreferecircncias (ver M I 26 29) Essa passagem especificamente parece fazer referecircncia ao Contra os Loacutegicosonde Sexto tambeacutem argumenta contra a existecircncia do som Cf M VIII 131
302 Muito embora os Cirenaicos assim como os ceacuteticos considerem que apenas as afecccedilotildees satildeo apreensiacuteveisenquanto os ceacuteticos consideram a tranquilidade da alma como objetivo de sua escola os Cirenaicosconsideram o prazer da percepccedilatildeo sensiacutevel Aleacutem disso eles satildeo dogmaacuteticos por sustentarem firmemente acrenccedila de que os objetos externos agrave percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo inapreensiacuteveis Cf HP I 215 Ver seccedilatildeo 41
303 A mesma questatildeo aparece no Contra os Loacutegicos (M VIII 56) onde Sexto acusa Demoacutecrito e Platatildeo derejeitarem a percepccedilatildeo sensiacutevel e com isso confundirem natildeo soacute a verdade sobre as coisas que satildeo mastambeacutem os conceitos sobre elas Isso porque de acordo com Sexto (M VIII 6) Platatildeo e Demoacutecritosupunham que ldquoapenas as coisas inteligiacuteveis satildeo verdadeirasrdquo Demoacutecrito por considerar que nadaperceptiacutevel existe por natureza e Platatildeo por considerar que as coisas perceptiacuteveis estatildeo sempre vindo a sermas nunca satildeo efetivamente
304 Sobre os Cirenaicos no Contra os Loacutegicos (Cf M VII 191) o mesmo tipo de argumento aparecerelacionado ao paladar
305 No Contra os Gramaacuteticos (M I 155) Sexto Empiacuterico aponta uma distinccedilatildeo feita por alguns gramaacuteticos arespeito das partes corpoacuterea e incorpoacuterea do discurso O som de uma palavra seria a parte corpoacutereaenquanto o significado seria incorpoacutereo
116
[655] Ἀλλὧδέ τις κὰκείνως ἐπιχειρήσειε λέγειν ὡς εἰ μὴ ἔστι ψυχή οὐδὲ αἰσθήσεις μέρη
γὰρ ταύτης ὑπῆρχον εἰ δὲ μή εἰσιν αἱ αἰσθήσεις οὐδὲ τὰ αἰσθητά πρὸς αἰσθήσεις γὰρ ἡ
τούτων ὑπόστασις νοεῖται εἰ δὲ μὴ αἰσθητά οὐδὲ φωνή εἶδος γάρ τι τῶν αἰσθητῶν ὑπῆρχεν
ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ψυχή καθὼς ἐν τοῖς περὶ αὐτῆς ὑπομνήμασιν ἐδείκνυμεν οὐκ ἄρα ἔστι
φωνή [656] Kαὶ μὴν εἰ μήτε βραχεῖά ἐστι φωνὴ μήτε μακρά οὐκ ἔστι φωνή οὔτε δὲ
βραχεῖά ἐστιν οὔτε μακρὰ φωνή ὡς ἐν τοῖς πρὸς τοὺς γραμματικοὺς ὑπεμνήσαμεν περὶ
συλλαβῆς καὶ λέξεως ζητοῦντες πρὸς τούτους οὐκ ἄρα ἔστι φωνή [657] Πρὸς τούτοις ἡ
φωνὴ οὔτε ἐν ἀποτελέσματι οὔτε ἐν ὑποστάσει νοεῖται ἀλλ ἐν γενέσει καὶ χρονικῇ
παρεκτάσει τὸ δὲ ἐν γενέσει νοούμενον γίνεται οὐδέπω δ ἔστιν ὥσπερ οὐδὲ οἰκία γινομένη
ἢ ναῦς καὶ ἄλλα παμπληθῆ εἶναι λέγεται τοίνυν οὐθέν ἐστι φωνή [658] καὶ ἄλλοις δὲ
συχνοῖς εἰς τοῦτο ἔνεστι λόγοις χρῆσθαι περὶ ὧν ὡς ἔφην ἐν τοῖς Πυρρωνείοις
ὑπομνηματιζόμενοι διεξῄειμεν νυνὶ δὲ φωνῆς μὴ οὔσης οὐδὲ φθόγγος ἔστιν ὃς ἐλέγετο
φωνῆς πτῶσις ὑπὸ μίαν τάσιν φθόγγου δὲ μὴ ὄντος οὐδὲ διάστημα μουσικὸν καθέστηκεν οὐ
συμφωνία οὐ μελῳδία οὐ τὰ ἐκ τούτων γένη διὰ τοῦτο οὐδὲ μουσική ἐπιστήμη γὰρ ἐλέγετο
ἐμμελῶν τε καὶ ἐκμελῶν
[659] Ὅθεν ἀπ ἄλλης ἀρχῆς ὑποδεικτέον ὅτι κἂν τούτων ἀποστῶμεν διὰ τὴν
ἐγχειρηθησομένην ἐπὶ τῆς ῥυθμοποιίας ἀπορίαν ἀνυπόστατος καθέστηκεν ἡ μουσική εἰ γὰρ
μηδέν ἐστι ῥυθμός οὐδὲ ἐπιστήμη τις ἔσται περὶ ῥυθμοῦ ἀλλὰ μὴν οὐδέν ἐστι ῥυθμός ὡς
παραστήσομεν οὐκ ἄρα ἔστι τις ἐπιστήμη περὶ ῥυθμοῦ [660] Ὡς γὰρ πολλάκις εἰρήκαμεν
ῥυθμὸς σύστημά ἐστιν ἐκ ποδῶν ὁ δὲ ποῦς τὸ συνεστὼς ἐξ ἄρσεως καὶ θέσεως ἡ δὲ ἆρσις
καὶ ἡ θέσις ἐν ποσότητι χρόνου θεωρεῖται ὧν τινὰς μὲν ἐπεῖχεν ἡ θέσις τινὰς δὲ ἡ ἆρσις
χρόνους καθάπερ ἐκ μὲν στοιχείων συλλαβαὶ ἐκ δὲ συλλαβῶν λέξεις συντίθενται οὕτως ἐκ
μὲν τῶν χρόνων οἱ πόδες ἐκ δὲ τῶν ποδῶν οἱ ῥυθμοὶ γίνονται
117
[655] Alguma outra pessoa pode tentar dizer que tal como natildeo existe alma natildeo existem
sentidos pois estes existem enquanto parte daquela E se natildeo existem sentidos natildeo existem
os sensiacuteveis pois a existecircncia destes eacute concebida em relaccedilatildeo aos sentidos E se natildeo haacute
objetos da percepccedilatildeo sensiacutevel natildeo haacute som pois ele existe enquanto um tipo de objeto da
percepccedilatildeo sensiacutevel Mas a alma eacute nada tal como mostramos nas observaccedilotildees306 a respeito
dela logo natildeo existe som [656] Tambeacutem se o som natildeo eacute curto nem longo natildeo existe som
o som natildeo eacute curto nem longo tal como observamos no Contra os Gramaacuteticos307 em nossa
investigaccedilatildeo sobre siacutelaba e palavra Logo natildeo existe som [657] Aleacutem disso o som nem eacute
concebido como um efeito nem como substacircncia mas como algo que vem a ser e que se
estende no tempo aquilo que eacute concebido como algo que vem a ser estaacute vindo a ser e ainda
natildeo existe assim como natildeo soacute uma casa ou uma nau que estatildeo vindo a ser mas uma
multitude de coisas natildeo satildeo ditas existentes Portanto o som eacute nada308 [658] Mas existem
muitos argumentos que podem ser usados para isso os quais como eu disse foram
completamente relatados em nossas observaccedilotildees pirrocircnicas309 Agora natildeo existindo som
tambeacutem natildeo existe nota a qual era dita ldquoa incidecircncia do som em uma tensatildeordquo natildeo existindo
nota natildeo se estabelece nenhum intervalo musical nem consonacircncia nem melodia nem os
gecircneros delas Por isso natildeo existe muacutesica visto que ela foi dita ciecircncia do meloacutedico e do natildeo
meloacutedico
[659] Dado isso deve-se indicar a partir de outro princiacutepio que mesmo que nos
afastemos dessas questotildees a muacutesica se estabelece como natildeo-existente atraveacutes da aporia que
seraacute discutida em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo riacutetmica Pois se o ritmo eacute nada natildeo existiraacute a ciecircncia
do que eacute o ritmo mas de fato o ritmo eacute nada tal como seraacute mostrado logo natildeo existe essa
ciecircncia do ritmo [660] De fato tal como dissemos muitas vezes ritmo eacute um sistema
composto de peacutes e o peacute eacute composto de aacutersis (levantamento) e theacutesis (abaixamento) Aacutersis e
theacutesis satildeo considerados uma quantidade de tempo dos quais aacutersis ocupa alguns tempos e
theacutesis outros Assim como as siacutelabas satildeo compostas de elementos e as palavras de siacutelabas
tambeacutem os peacutes satildeo compostos de tempos e os ritmos vecircm a ser a partir dos peacutes310
306 Ou eacute uma obra perdida ou Sexto faz referecircncia a algumas passagens de suas obras que abordam a mesmaquestatildeo Ver M X 284 HP II 31 e III 186
307 Cf M I 124-130308 O mesmo argumento aparece em M VIII 131 Ver M VI 53309 Ver nota 306310 Na liacutengua e na muacutesica grega a submissatildeo agrave riacutetmica do texto ldquose deve ao fato de a pronuacutencia e a prosoacutedia
estarem fundamentadas nas duraccedilotildees das siacutelabasrdquo (Reinach 2011 [1890] p 77) Na muacutesica o ritmo eramarcado pelo movimento corporal de levantar e abaixar o peacute (ndash ᴗ ᴗ ndash ndash e ᴗ ᴗ ᴗ ᴗ por exemplo equivalem auma batida de dois tempos e um levantamento de dois tempos) Visto que a divisatildeo riacutetmica se daacute a partir dadivisatildeo silaacutebica natildeo podemos comparar a pulsaccedilatildeo da muacutesica moderna (com maior intensidade no primeiro
118
[661] Ἐὰν οὖν δείξωμεν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος ἕξομεν συναποδεδειγμένον ὅτι οὐδὲ πόδες
ὑπάρξουσιν διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ οἱ ῥυθμοί ἐξ ἐκείνων τὴν σύστασιν λαμβάνοντες ᾧ
ἀκολουθήσει τὸ μηδὲ ἐπιστήμην εἶναί τινα περὶ ῥυθμούς πῶς οὖν ὅτι οὐδέν ἐστι χρόνος
ἤδη μὲν παρεστήσαμεν ἐν τοῖς Πυρρωνείοις οὐδὲν δὲ ἧττον καὶ τὰ νῦν παραστήσομεν ἐπὶ
ποσόν [662] Eἰ γὰρ ἔστι τι χρόνος ἤτοι πεπέρασται ἢ ἄπειρός ἐστιν οὔτε δὲ πεπέρασται
ἐπεὶ ἐροῦμέν ποτε γεγονέναι χρόνον ὅτε χρόνος οὐκ ἦν καὶ ἔσεσθαί ποτε χρόνον ὅτε χρόνος
οὐκ ἔσται οὔτε ἄπειρος καθέστηκεν ἔστι γάρ τι αὐτοῦ παρῳχηκὸς καὶ ἐνεστὼς καὶ μέλλον
ὧν ἑκάτερον εἰ μὲν οὐκ ἔστιν πεπέρασται ὁ χρόνος εἰ δ ἔστιν ἔσται ἐν τῷ παρόντι καὶ ὁ
παρῳχηκὼς καὶ ὁ μέλλων ὅπερ ἄτοπον οὐκ ἄρα ἔστι χρόνος [663] Tό γε μὴν ἐξ
ἀνυπάρκτων συνεστὼς ἀνύπαρκτόν ἐστιν ὁ δὲ χρόνος ἔκ τε τοῦ παρῳχημένου καὶ μηκέτ
ὄντος καὶ ἐκ τοῦ μέλλοντος μηδέπω δὲ ὄντος συνεστὼς ἀνύπαρκτος ἔσται [664] Ἄλλως τε
εἰ μὲν ἀμερής ἐστιν ὁ χρόνος πῶς τὸ μέν τι αὐτοῦ παρῳχημένον τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον
λέγομεν εἰ δὲ μεριστός ἐστιν ἐπεὶ πᾶν τὸ μεριστὸν ὑπό τινος αὐτοῦ μέρους καταμετρεῖται
ὡς πῆχυς μὲν ὑπὸ παλαιστοῦ ὁ παλαιστὴς δὲ ὑπὸ δακτύλου δεήσει καὶ αὐτὸν ὑπό τινος τῶν
αὐτοῦ μερῶν καταμετρεῖσθαι [665] οὔτε δὲ τῷ ἐνεστῶτι δυνατὸν καταμετρεῖν τοὺς ἄλλους
χρόνους ἐπείπερ ὁ γινόμενος καὶ ὁ ἐνεστὼς χρόνος ὁ αὐτὸς ἔσται κατ αὐτοὺς παρῳχημένος
καὶ μέλλων παρῳχημένος μὲν ὅτι τὸν παρῳχημένον καταμετρεῖ χρόνον μέλλων δὲ ὅτι τὸν
μέλλοντα ὅπερ ἄτοπον οὐ τοίνυν τινὶ τῶν λειπομένων δυοῖν τὸν ἐνεστῶτα καταμετρητέον
δι ἣν αἰτίαν οὐδὲ ταύτῃ λεκτέον εἶναί τινα χρόνον [666] Πρὸς τούτοις ὁ χρόνος τριμερής
ἐστι καὶ τὸ μὲν ἔχει παρῳχηκὸς τὸ δὲ ἐνεστὼς τὸ δὲ μέλλον ὧν τὸ μὲν παρῳχημένον οὐκέτι
ἔστιν τὸ δὲ μέλλον οὔπω ἔστιν τὸ δὲ ἐνεστὼς ἤτοι ἀμερές ἐστιν ἢ μεριστόν ἀλλ ἀμερὲς μὲν
οὐκ ἂν εἴη ἐν ἀμερεῖ μὲν γὰρ οὐδὲν δύναται γίνεσθαι μεριστόν ὥς φησι Τίμων οἷον τὸ
γίνεσθαι τὸ φθείρεσθαι
tempo do compasso) com a batida de peacute na muacutesica grega aleacutem disso os ritmos comeccedilam tanto com a batidaquanto com a elevaccedilatildeo de peacute
119
[661] Entatildeo se tivermos mostrado que o tempo eacute nada noacutes teremos concomitantemente
mostrado que natildeo existem peacutes e a partir disso que os ritmos natildeo existem visto que eles satildeo
compostos de peacutes Consequentemente disso se seguiraacute que natildeo haacute ciecircncia do ritmo Mas
como Que o tempo natildeo existe jaacute foi estabelecido nas Pirronianas311 mas nem por isso
deixaremos de estabelececirc-lo brevemente tambeacutem agora [662] Se existe algum tempo ou ele
eacute limitado ou ilimitado Ele natildeo eacute limitado pois se fosse diriacuteamos que em algum momento
houve um tempo em que o tempo natildeo existia e que em algum momento haveraacute um tempo em
que natildeo existiraacute o tempo Ele tambeacutem natildeo eacute considerado ilimitado pois algo dele eacute passado e
presente e futuro e se cada um deles natildeo existir o tempo eacute limitado e se existir tanto o
passado quanto o futuro existiratildeo ao mesmo tempo no presente o que eacute absurdo312 Logo natildeo
existe o tempo [663] E ainda aquilo que eacute composto de inexistentes eacute inexistente O tempo
sendo composto de passado que natildeo existe mais e de futuro que ainda natildeo existe seraacute
inexistente313 [664] Aleacutem disso se o tempo eacute indivisiacutevel como dizemos que o passado o
presente e o futuro satildeo parte dele Se ele eacute divisiacutevel visto que tudo que eacute divisiacutevel eacute medido
por uma parte de si mesmo (como o antebraccedilo pela palma e a palma pelo dedo) seraacute
necessaacuterio que o tempo seja medido por uma de suas proacuteprias partes [665] Mas natildeo eacute
possiacutevel medir os outros tempos pelo presente visto que o tempo presente e que vem a ser
seraacute ele mesmo tanto passado quanto futuro Seraacute passado porque mede o tempo passado e
futuro porque mede o tempo futuro o que eacute absurdo Portanto tambeacutem o presente natildeo pode
ser medido por um dos tempos restantes Por essa razatildeo natildeo se pode dizer existir algum
tempo314 [666] Aleacutem disso o tempo eacute tripartido e uma parte eacute passado outra presente outra
futuro Destas o passado natildeo eacute mais o futuro ainda natildeo eacute e o presente ou eacute divisiacutevel ou
indivisiacutevel Mas ele natildeo seraacute indivisiacutevel pois como diz Timon no indivisiacutevel nada divisiacutevel
pode vir a ser tal como o devir e o perecer315
311 Refere-se possivelmente agraves passagens sobre o tema encontradas em outros escritos ou agrave obra perdidamencionada em M VI 58 Os mesmos argumentos contra o conceito de tempo apresentados no Contra osMuacutesicos aparecem de maneira breve nas Hipotiposes Pirronianas (HP III 136-150) e mais aprofundada noContra os Fiacutesicos (M X 189-214)
312 Ver especificamente HP III 140-1 e M X 189313 Cf HP III 142 e M X 192314 Cf HP III 143 e M X 193-6315 Cf HP III 144 e M X 197 No Contra os Fiacutesicos o mesmo fragmento de Timon eacute mencionado
120
[667] Kαὶ ἄλλως εἴπερ ἀμερές ἐστι τὸ ἐνεστὼς τοῦ χρόνου οὔτε ἀρχὴν ἔχει ἀφ ἧς ἄρχεται
οὔτε πέρας ἐφ ὃ καταλήγει διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ μέσον καὶ οὕτως οὐκ ἔσται ὁ ἐνεστὼς χρόνος
εἰ δὲ μεριστός ἐστιν εἰ μὲν εἰς τοὺς μὴ ὄντας χρόνους μερίζεται οὐκ ἔσται χρόνος εἰ δ εἰς
τοὺς ὄντας χρόνους οὐκ ἔσται ὅλος ὁ χρόνος ἀλλὰ τῶν μερῶν αὐτοῦ τινὰ μὲν ἔσται τινὰ δὲ
οὐκ ἔσται τοίνυν οὐδέν ἐστι χρόνος διὰ δὲ τοῦτο οὐδὲ πόδες οὐδὲ ῥυθμοί οὐδ ἡ περὶ τοὺς
ῥυθμοὺς ἐπιστήμη
[668] Τοσαῦτα πραγματικῶς καὶ πρὸς τὰς τῆς μουσικῆς εἰπόντες ἀρχὰς ἐν τοσούτοις
τὴν πρὸς τὰ μαθήματα διέξοδον ἀπαρτίζομεν
121
[667] Por outro lado se a parte presente do tempo eacute indivisiacutevel ela natildeo tem um princiacutepio
onde ela comeccedila nem um limite no qual ela termina e por isso tambeacutem natildeo tem um meio
Assim natildeo haveraacute o tempo presente Se ele for divisiacutevel pelos tempos que natildeo satildeo natildeo
haveraacute tempo e se for divisiacutevel pelos tempos que natildeo existem o tempo natildeo existiraacute inteiro
mas algumas partes dele existiratildeo e algumas natildeo316 Portanto o tempo eacute nada e por isso nem
os peacutes nem os ritmos nem a ciecircncia acerca dos ritmos [existem]317
[668] Tendo dito tantas coisas de maneira pragmaacutetica contra os princiacutepios da muacutesica
noacutes encerramos nossa discussatildeo contra as disciplinas
316 Cf M X 198-200317 Argumento baseado no segundo Modo de Agripa
122
7 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Elaboramos nossa traduccedilatildeo e nossos comentaacuterios ao Contra os Muacutesicos de Sexto
Empiacuterico visando explicaacute-lo tanto no que diz respeito aos interesses da musicologia quanto
aos estudos do ceticismo pirrocircnico tendo em vista a escassez de ediccedilotildees que faccedilam referecircncia
a essa obra no Brasil buscando auxiliar sua compreensatildeo enquanto fonte sobre o papel da
Muacutesica na Antiguidade
Tomamos como ponto de partida a dicotomia entre teoria e praacutetica musical tal como
apresentada na criacutetica ceacutetica agrave teoria musical da Antiguidade O termo mousike designou
enquanto fenocircmeno sonoro tanto o conjunto que englobava palavra harmonia e ritmo
quanto puramente a arte dos sons Enquanto conceito metafiacutesico a mousike foi considerada
sob uma perspectiva matemaacutetica a ordem encontrada na muacutesica sendo derivada das relaccedilotildees
matemaacuteticas que subjazem tambeacutem agrave ordem do cosmos
A mousike era considerada uacutetil para a sociedade e necessaacuteria agrave educaccedilatildeo porque se
acreditava que ela teria o poder de alterar o caraacuteter do ouvinte por recuperar a harmonia da
alma ao imitar a harmonia do universo Mas a presenccedila da muacutesica na sociedade natildeo
implicava no incentivo indiscriminado de sua praacutetica Contrariamente para Platatildeo sua
praacutetica deveria ser restrita e regulada por leis e para Aristoacuteteles a muacutesica enquanto uma das
Artes Liberais deveria ser ensinada com a finalidade de desenvolver a capacidade de avaliar
a boa muacutesica e fruiacute-la de maneira correta a praacutetica musical enquanto parte desse
aprendizado consistia apenas em um meio jamais em um fim
Foi Aristoacutexeno quem abordou a mousike enquanto ciecircncia autocircnoma voltando-se agraves
relaccedilotildees entre os sons e natildeo mais agrave metafiacutesica (e consequentemente agrave teoria do ethos)
Mesmo mantendo um discurso considerado dogmaacutetico do ponto de vista ceacutetico Aristoacutexeno
pode ser considerado um dos precursores318 da questatildeo da autonomia da muacutesica enfatizando
o fenocircmeno sonoro como ponto de partida para a teoria musical que para ele estava deveras
descolada da praacutetica de seu tempo Essa questatildeo tambeacutem aparece em Filodemo como uma
reaccedilatildeo agrave supervalorizaccedilatildeo do papel da muacutesica na educaccedilatildeo moral da sociedade Filodemo
ainda que de maneira dogmaacutetica questiona a utilidade da muacutesica em funccedilatildeo do seu suposto
poder de alterar o caraacuteter do ouvinte e com isso contribuir para a felicidade humana para
ele ela natildeo proporciona mais do que o simples prazer
No Contra os Muacutesicos de Sexto Empiacuterico constata-se que a criacutetica que se daacute por318 O registro mais antigo a que temos acesso que aborda a questatildeo da autonomia da muacutesica no pensamento
grego eacute o Papiro de Hibeh
123
essas duas vias (epistemoloacutegica e eacutetica) natildeo estaacute especificamente vinculada a uma defesa da
autonomia da muacutesica mas antes apresenta-se como uma refutaccedilatildeo a um certo modo de se
elaborar teorias a respeito das coisas
Observamos que na Antiguidade as artes fundadas na razatildeo entre elas a mousike
eram levadas em consideraccedilatildeo apenas por sua funccedilatildeo propedecircutica para a Filosofia Essa
subordinaccedilatildeo das tekhnai agrave Filosofia que permaneceu presente na Enkyklios Paideia do
periacuteodo imperial subsidia a elaboraccedilatildeo do Contra os Professores destinado justamente a
essas a discutir essas tekhnai Sexto parte dessa concepccedilatildeo das tekhnai como subordinadas agrave
Filosofia porque essa teria sido a visatildeo dominante dos pensadores ndash por ele considerados
dogmaacuteticos ndash de sua eacutepoca
Ao considerar que a investigaccedilatildeo das disciplinas Estudos Ciacuteclicos se daacute depois da
investigaccedilatildeo da filosofia visando ali tambeacutem encontrar a verdade Sexto Empiacuterico nega agrave
filosofia o monopoacutelio da investigaccedilatildeo e da obtenccedilatildeo da verdade Nesse sentido Sexto abre a
possibilidade para se considerar as tekhnai em dois sentidos enquanto tekhnai teoacutericas
dependentes dos princiacutepios filosoacuteficos e enquanto praacuteticas autocircnomas sejam dogmaacuteticas ou
natildeo Desse modo seu ataque abre espaccedilo para se pensar a possibilidade da autonomia das
tekhnai em relaccedilatildeo agrave Filosofia
Em nossa interpretaccedilatildeo sobre a finalidade do ceticismo pirrocircnico consideramos que o
meacutetodo argumentativo ceacutetico visa mostrar a fragilidade das demonstraccedilotildees dos dogmaacuteticos e
sua precipitaccedilatildeo em sustentar firmemente crenccedilas a respeito daquilo que existe externamente
agraves nossas representaccedilotildees Sob essa perspectiva no que diz respeito agraves tekhnai
compartilhamos da visatildeo de Pellegrin de que ldquoo tratado Contra os Muacutesicos demonstra bem
que natildeo se trata em ultima anaacutelise de chegar a uma forccedila igual de argumentos opostos mas
antes de condenar a abordagem dogmaacutetica dos teoacutericos da muacutesicardquo (Pellegrin 2002 p 46-7)
Sob essa perspectiva o que Sexto Empiacuterico condena em cada uma das disciplinas ldquoeacute o desvio
dogmaacutetico que acompanha quase sempre sua incontestaacutevel utilidade praacuteticardquo (Pellegrin 2002
p 19) Esse desvio estaria situado natildeo na praacutetica das tekhnai mas antes no discurso sobre
elas em funccedilatildeo da ldquotentaccedilatildeo dos homens das artes pela teoriardquo (Pellegrin 2002 p 20) ou da
tentaccedilatildeo dos filoacutesofos em relaccedilatildeo a ela
Se a refutaccedilatildeo ceacutetica se propotildee a tarefa de mostrar a inconsistecircncia teoacuterica de cada
uma das tekhnai em funccedilatildeo da pretensatildeo de verdade dos discursos dogmaacuteticos dos
professores no caso da muacutesica eacute a teoria musical sob seus aspectos teacutecnicos e em funccedilatildeo de
sua utilidade que deve ser questionada
124
Assim no Contra os Muacutesicos Sexto Empiacuterico concentra sua argumentaccedilatildeo contra as
teorias dogmaacuteticas que consideram a muacutesica uacutetil porque se o sentido fundamental de uma
tekhnai se daacute em funccedilatildeo de sua utilidade ao se mostrar que a muacutesica natildeo tem as propriedades
a ela atribuiacutedas ela se tornaria inuacutetil e com isso seu estatuto de tekhne ficaria comprometido
Aleacutem disso Sexto desconstroacutei os conceitos baacutesicos sobre os quais a teoria musical estaacute
baseada mostrando a inconsistecircncia ou ausecircncia de fundamento de toda a teoria musical
Essa condenaccedilatildeo agrave conduta dogmaacutetica em relaccedilatildeo agraves tekhnai se daacute porque como
vimos haacute um sentido em que as tekhnai natildeo satildeo condenadas pelo ceacutetico Pelo contraacuterio
enquanto parte do criteacuterio praacutetico pirrocircnico a possibilidade do exerciacutecio de uma tekhne livre
de dogmatismo eacute fundamental para a coerecircncia dessa filosofia
Enquanto disciplina da Enkyklios Paideia a teoria musical eacute refutada por ser ldquoserva
de primeira ordemrdquo da Filosofia mas por outro lado as artes aprovadas pelo ceacutetico estatildeo
ligadas agrave experiecircncia (empeiria) que para ele natildeo depende das demonstraccedilotildees racionais
proacuteprias da ciecircncia para se estabelecer Por isso a muacutesica enquanto ldquoexperiecircncia em
instrumentosrdquo ou seja a muacutesica praacutetica natildeo eacute refutada
No Contra os Muacutesicos a teoria musical eacute refutada sobretudo em funccedilatildeo da
associaccedilatildeo da utilidade da muacutesica ao seu pretenso poder de afetar a alma do ouvinte Se esse
suposto poder natildeo estaacute na melodia mas apenas em nossa opiniatildeo ao se eliminar a crenccedila
adicional de que a muacutesica teria certos atributos por natureza restaria apenas a muacutesica praacutetica
executada pelo instrumentista independentemente da funccedilatildeo atribuiacuteda a ela pelos teoacutericos
A refutaccedilatildeo ceacutetica agraves teorias musicais da Antiguidade apresenta-se como uma criacutetica
de modo algum ultrapassada justamente porque nos faz revisitar importantes questotildees da
esteacutetica musical A contraposiccedilatildeo entre proposiccedilotildees acerca do que eacute a muacutesica de seu papel na
sociedade explicita a limitaccedilatildeo do debate a dois principais modos possiacuteveis de compreendecirc-la
(representado na histoacuteria recente pela oposiccedilatildeo entre idealismo e formalismo) e ao mesmo
tempo coloca em xeque a dicotomia (e frequente hierarquizaccedilatildeo) entre teoria e praacutetica
musical presente ainda hoje no pensamento daqueles que trabalham com o ensino de
muacutesica
Se considerarmos a argumentaccedilatildeo ceacutetica como uma mostra do dogmatismo que
permeia as mais diversas teses de toda a teoria sobre muacutesica e ainda se fizermos um
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo e transpusermos para a aacuterea da muacutesica as bases daquilo que
possivelmente seria uma tekhne natildeo-dogmaacutetica de acordo com o meacutetodo ceacutetico eacute possiacutevel
vislumbrar uma tekhne musical onde o discurso surja e emane da praacutetica e natildeo o contraacuterio
125
(Ora se todo o conhecimento musical estudado hoje surgiu inevitavelmente da experiecircncia
sendo apenas posteriormente formalizado em teorias isso natildeo seria uma grande inovaccedilatildeo)
A atualidade das questotildees suscitadas no combate ao dogmatismo das disciplinas dos
Estudos Ciacuteclicos ndash que deixando de lado a ascensatildeo e queda das mais variadas verdades ao
longo dos seacuteculos satildeo as mesmas disciplinas que ainda compotildeem nosso curriacuteculo ndash revela o
ainda natildeo superado abismo entre teoria e praacutetica que nossos meacutetodos de ensino-aprendizado
frequentemente impotildeem Sob essa oacutetica se jaacute descartamos as teses pitagoacutericas de uma muacutesica
inaudiacutevel se a muacutesica existe ‒ para noacutes ‒ enquanto um fenocircmeno sonoro a refutaccedilatildeo de
Sexto Empiacuterico faz lembrar que sem a praacutetica (ou ldquoexperiecircncia em instrumentosrdquo) a muacutesica
simplesmente ldquonatildeo existerdquo e por conseguinte qualquer teoria a respeito dela tambeacutem natildeo
126
REFEREcircNCIAS
EMPIRICUS Sextus Against the Professors Prous Mathematikous Traduccedilatildeo de R GBury Cambridge Harvard University Press 1933 (Loeb Classical Library)
_________________ Contra los Profesores Traduccedilatildeo de Jorge Bergua Cavero MadridGredos Editorial 1997
________ Against the Logicians Traduccedilatildeo de Richard Bett New York CambridgeUniversity Press 2005
DELATTRE D Contre les musiciens In PELLEGRIN (Org) Sextus Empiricus Contreles professeurs Paris Eacuteditions du Seuil 2002
GREAVES D D Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ Against the musicians Editedand translated with introduction and notes London University of Nebraska Press 1986
ALLEN J Pyrronism and medicine In BETT R (Org) The Cambridge companion toancient scepticism Cambridge Cambridge University Press 2010
ANDERSON W D Ethos and Education in Greek Music Cambridge Harvard UniversityPress 1966
ANNAS J BARNES J The Modes of Scepticism Ancient Texts and ModernInterpretations Cambridge Cambridge University Press 1985
ARISTOPHANES The Clouds Traduccedilatildeo de Jeffrey Henderson Cambridge HarvardUniversity Press 1998 (Loeb Classical Library)
ARISTOacuteTELES On the Heavens De Caelo Traduccedilatildeo de W K C Guthrie CambridgeHarvard University Press 1939 (Loeb Classical Edition)
____________ Poeacutetica Traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa daMoeda 2003
____________ Poliacutetica Traduccedilatildeo de Antoacutenio Campelo Amaral e Carlos de CarvalhoGomes Lisboa Vega 1998
____________ Problemas Musicais Traduccedilatildeo de Maria Luiza Roque Brasiacutelia Thesaurus2001
____________ The Nicomachean Ethics Traduccedilatildeo de David Ross Britain OxfordUniversity Press 1998
BARKER A Greek Musical Writings vol I of the Musician and his Art BritainCambridge University Press 1984
127
__________ Greek Musical Writings vol II Harmonic and Acoustic Theory BritainCambridge University Press 1989
__________ The science of harmonics in classical Greece Cambridge CambridgeUniversity Press 2007
BARNES J Scepticism and the Arts In RJ Hankinson (Org) Method Medicine andMetaphysics Studies in the Philosophy of Ancient Science (Special Issue of Apeiron 21) p53ndash77 1988
BEacuteLIS A Aristoxegravene de Tarente et Aristote Le Traiteacute drsquoharmonique Paris Klincksieck1986
_______ Les nuances dans le Traiteacute dharmonique dAristoxegravene de Tarente Revue desEtudes Grecques XCV p 54-73 1982
BETT R A Sceptic Looks at Art (but not Very Closely) Sextus Empiricus on MusicInternational Journal for the Study of Skepticism 3 p 155ndash181 2013
BOWMAN W D Philosophical Perspectives on Music Oxford Oxford University Press1998
BROCHARD V Os Ceacuteticos Gregos Traduccedilatildeo de Jaimir Conte Satildeo Paulo OdysseusEditora 2009
BYCHKOV O V SHEPPARD A Greek and Roman Aesthetics Cambridge CambridgeUniversity Press 2010
CASTANHEIRA C P De Institutione Musica de Boeacutecio Livro 1 traduccedilatildeo e comentaacuterios154f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Estudos Literaacuterios) - Universidade Federal de MinasGerais 2009
CORREcircA P C Harmonia mito e muacutesica na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Humanitas 2008
DELATTRE D Preacutesence de LrsquoEacutepicurisme dans le Contre les grammariens et le Contre lesmusiciens de Sextus Empiricus In DELATTRE J (Org) Sur le Contre les professeurs deSextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p 47ndash65
___________ Philodegraveme de Gadara Sur la musique 2 vols Paris Les Belles Lettres2007
DESBORDES F Le scepticisme et les lsquoarts libeacuterauxrsquo une eacutetude de Sextus Empiricus AdvMath I-VI In A-J Voelke (Org) Le scepticisme antique perspectives historiques etsysteacutematiques Actes du Colloque international sur le scepticisme antique Universiteacute deLausanne 1-3 juin 1988 (Cahiers de la revue de theacuteologie et de philosophie 15) GenevaLausanne and Neuchacirctel Revue de Theacutelologie et de Philosophie 1990 p 167ndash79
DIELS H Die Fragmente der Vorsokratiker (6th ed) Revised with additions and indexby W Kranz Berlin Weidman 1951-2
128
EPICURO Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Lorencini e EnzoDel Carratore Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
FLORIDI L Sextus Empiricus The Transmission and Recovery of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 2002
FUBINI E Esteacutetica da Muacutesica Lisboa Ediccedilotildees 70 2012
GIGANTE M Scetticismo e Epicureismo Per lavviamento di un discorso storiograficoNapoli Bibliopolis 1981
HADOT I Arts libeacuteraux et philosophie dans la penseacutee antique Paris EacutetudesAugustiniennes 1984
HADOT P O que eacute Filosofia antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008
HANSLICK E Do Belo Musical Traduccedilatildeo Artur Mouratildeo Covilhaacute LusoSofia 2011
HIPPOCRATES Aphorisms (Vol IV) Traduccedilatildeo de W H S Jones Cambridge HarvardUniversity Press 1931 (Loeb Classical Library)
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
________ Odisseia Traduccedilatildeo Carlos Alberto Nunes Satildeo Paulo Melhoramentos 1962
JAEGER W Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
LIPPMAN E A A History of Western Musical Aesthetics Lincoln University ofNebraska 1992
_____________ Musical thought in Ancient Greece New York Da Capo Press 1964
____________ The Place of Music in the System of Liberal Arts In J LaRue and othersAspects of Medieval and Renaissance Music a Birthday Offering to Gustave Reese NewYork 1966 p 545ndash59
MATES B The Skeptic Way Sextus Empiricusrsquos Outlines of Pyrrhonism New YorkOxford University Press 1996
MATHIESEN T L Apolos Lyre greek music and music theory in antiquity and the middleages Londres University of Nebraska Press 1999
MARROU H Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Editora Herder 1966
MOUTSOPOULOS E La mousique dan loeuvres de Platon Paris Presses Universitairesde France 1959
PELLEGRIN P Introduction In ______ (Org) Sextus Empiricus Contre les professeurs
129
Paris Eacuteditions du Seuil 2002 p 9ndash47
_____________ De lrsquouniteacute du scepticisme sextien In DELATTRE J (Org) Sur le Contreles professeurs de Sextus Empiricus Lille Universiteacute Charles-de-Gaulle-Lille 3 2006 p35ndash45
PEREIRA A R A esteacutetica musical em Aristoacutexeno de Tarento Hvmanitas Lisboa VolXLVII Universidade Nova de Lisboa 1995
_____________ A mousikeacute das origens ao drama de Euriacutepides Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2001
_____________ Poleacutemica acerca da mousikeacute no Adversus Musicos de Sexto EmpiacutericoHvmanitas Lisboa vol XLVIII Universidade Nova de Lisboa 1996
PHILO On mating with the preliminary studies De Congressu (Vol IV) Traduccedilatildeo F HColson e G H Whitaker Cambridge Harvard University Press 1939 (Loeb ClassicalLibrary)
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa FundaccedilatildeoCalouste Gulbenkian 1980
________ Fedro In Diaacutelogos III Trad intro e notas Lledoacute Intildeigo Madrid EditorialGredos 1988
________ Leis Traduccedilatildeo e notas Carlos Humberto Gomes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004
________ Eutidemo In Diaacutelogos II Traduccedilatildeo F J Olivieri Madrid Editorial Gredos1983
________ Timeu In Diaacutelogos VI Trad intro e notas Francisco Lisi Madrid EditorialGredos 1992
________ Menexeno In Diaacutelogos II Trad intro e notas E Acosta Meacutendez MadridEditorial Gredos 1983
PLUTARCO De virtute morali (Moralia Vol 6) Traduccedilatildeo de W C Helmbold) CambridgeHarvard University Press 1936 (Loeb Classical Library)
PLUTARCO Sobre a Muacutesica In SOARES C ROCHA R Plutarco Obras Morais Sobreo afecto aos filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo de Roosevelt Rocha Coimbra Centro deEstudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010
POPKIN R H Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Traduccedilatildeo de DaniloMarcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000
PORCHAT PEREIRA O ldquoA autocriacutetica da razatildeo no mundo antigo In Waldomiro Joseacute SilvaFilho (Org) O Ceticismo e a possibilidade da Filosofia Injuiacute Ed Unijuiacute 2005
130
___________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
QUINTILIANO Institutio Oratoria Traduccedilatildeo de H E Butles Cambridge HarvardUniversity Press 1930 (Loeb Classical Library)
REYES P R Sexto Empiacuterico y la mousikeacute EMERITA - Revista de Linguistica y FilologiacuteaClaacutesica (EM) ndash LXXII 1 p 95-119 2004
ROCHA R Uma introduccedilatildeo agrave teoria musical na antiguidade claacutessica Via LitteraeAnaacutepolis v 1 n 1 p 138-164 juldez 2009
SPINELLI E Pyrrhonism and the specialized sciences In BETT R (Org) TheCambridge companion to ancient scepticism Cambridge Cambridge University Press2010
TARTAKIEWICZ W Objectivity and Subjectivity in the History of Aesthetics Philosophyand Phenomenological Research Vol 24 No 2 (Dec 1963) pp 157-173 1963
Thesaurus Linguae Graecae Compilaccedilatildeo de todos os textos em prosa ou verso em grego dosseacutecsVIII aC ateacute VI dC in httpwwwtlguciedu
TOMAacuteS L Ouvir o loacutegos muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo Editora UNESP 2002
________ Vozes dissonantes precursores da autonomia da muacutesica na antiguidade InDUARTE R e SAFATLE V Ensaios sobre muacutesica e Filosofia Satildeo Paulo AssociaccedilatildeoEditorial Humanitas 2007
VITRUacuteVIO The Ten Books on Architecture Trad Morris Hicky Morgan CambridgeHarvard University Press London Humphrey Milford Oxford University Press 1914
WEST M L Ancient Greek Music New York Oxford University Press 1992
WILKINSON L P Philodemus on Ethos in Music The Classical Quarterly Vol 32 No34 (Jul - Oct 1938) pp 174-181
WOODWARD L H Diogenes of Babylon A Stoic on Music and Ethics Dissertaccedilatildeo(Master of Philosophy in Classics) - UCL 2009
131
GLOSSAacuteRIO
aisthesis (αἴσθησις) ndash sentidos percepccedilatildeo sensiacutevelaisthetos (αἰσθητός) ndash objeto da percepccedilatildeo sensiacutevelaletes (ἀλήτης) ndash verdadeiroanagke (ἀνάγκη) ndash necessidadeandreia (ἀνδρέια) ndash bravura coragemanomalia (ἀνωμαλία) ndash anomalia antirresis (ἀντίρρησις) ndash refutaccedilatildeoanyparktos (ἀνύπαρκτος) ndash irreal natildeo-existenteanypostatos (ἀνυπόστατος) ndash irreal natildeo-existenteaporia (ἀπορία) ndash aporiaarete (ἀρήτη) ndash excelecircncia virtudeataraxia (ἀταραξία) ndash tranquilidade (da alma)azetetos (ἀζήτητος) ndash natildeo-investigaacutevelbarys (βαρύς) ndash gravebios (βίος) ndash vida vida comumdia pason (διὰ πασῶν) ndash intevalo de oitavadia pente (διὰ πέντε) ndash intervalo de quintadia tettaron (διὰ τεττάρων) ndash intervalo de quartadiabebaiomai (διαβεβαιῦμαι) ndash sustentar firmementedianoia (διάνοια) ndash pensamento intelectodiastema (διάστημα) ndash intervalodiatonos (διάτονος) ndash diatocircnico (gecircnero)diaphonia (διαφωνία) ndash discordacircncia disputa controveacutersiadiaphonos (διάφωνος) ndash dissonante (muacutesica)diesis (δίεσις) ndash o menor intervalo na escaladogma (δόγμα) ndash dogma crenccedila opiniatildeodoxa (δόξα) ndash opiniatildeodynamis (δύναμις) ndash capacidade habilidade poder disposiccedilatildeo ethos (ἔθος) ndash haacutebito costumeethos (ἦθος) ndash caraacuteter disposiccedilatildeoeidesis (εἴδησις) ndash conhecimentoekmeles (ἐκμελής) ndash desafinado dissonanteektos hupokeimenon (ἐκτograveς ὑποκείμενον) ndash aquilo que existe externamente (agrave nossa percepccedilatildeo) emmeles (ἐμμελής) ndash afinado harmoniosoempeiria (ἐμπειρία) ndash experiecircncia enkyklios paideia (ἐγκύκλιος παιδεία) ndash educaccedilatildeo ciacuteclicaennoia (ἔννοια) ndash conceito concepccedilatildeoepisteme (ἐπιστήμη) ndash ciecircnciaepokhe (ἐποχή) ndash suspensatildeo de juiacutezoeudaimonia (εὐδαιμονία) ndash felicidade prosperidade boa fortunaharmonia (ἁρμονία) ndash harmonia enarmocircnico (gecircnero)hemitonion (ἡμιτόνιον) ndash semitomhomophonos (ὁμόφωνος) ndash na mesma nota em uniacutessono Opp σύμφωνος (em concordacircncia)hypostasis (Ὑπόστασις) ndash existecircncia substacircnciaidiotes (ἰδιώτης) ndash pessoas comunsisostheneia (ἰσοσθένεια) ndash equipolecircncia igual forccedila
132
katastello (καταστέλλω) ndash refrear tranquilizarkhreo (χρεώ) ndash utilidadekhroma (χρῶμα) ndash cromaacutetico (gecircnero)khronos (χρόνος) ndash tempologike tekhne (λογική τέχνη) ndash arte racionallogos (λόγος) ndash razatildeo argumento discursomathema (μάθημα) ndash ensinamento disciplinamelodia (μελῳδία) ndash canto muacutesica melodiamimesis (μίμεσις) ndash imitaccedilatildeonoos (νόος) ndash menteorganikos (ὀργανικός) ndash instrumento instrumentaloxus (Ὀξύς) ndash agudopathos (πάθος) ndash afecccedilatildeophainomenon (φαινόμενον) ndash aquilo que aparece fenocircmenophone (φωνή) ndash somphthonnos (φθόγγος) ndash notarythmos (ῥυθμός) ndash ritmostoikheion (στοιχεῖον) ndash elementosymphonos (σύμφωνος) ndash consonantesystema (σύστημα) ndash sistemasophronizo (σωφρονίζω) ndash regular moderarsophrosyne (σωφροσύνη) ndash temperanccedila tasis (τάσις) ndash tensatildeo altura da voztekhne (τέχνη) ndash arte teacutecnicatekhnites (τεχνίτες) ndash artistas artiacutefices especialistas profissionaistheoria (θεωρία) ndash teoria tonos (τόνος) ndash tomtropos (τρόπος) ndash modo zeteo (ζητέω) ndash investigar