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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
RODRIGO SOUZA FONTES DE SALLES GRAÇA
IMAGENS DA MODERNIDADE EM WALTER BENJAMIN
CURITIBA
2009
IMAGENS DA MODERNIDADE EM WALTER BENJAMIN
RODRIGO SOUZA FONTES DE SALLES GRAÇA
IMAGENS DA MODERNIDADE EM WALTER BENJAMIN
Monografia apresentado à disciplina Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica HH067.
Orientador: Professor Doutor José Roberto
Braga Portella
CURITIBA
2009
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INDÍCE
INTRODUÇÃO 05
1 DESENCANTAMENTO E FRAGMENTAÇÃO: CONTEXTO INTELECTUAL ALEMÃO 08
1.1 ROMANTISMO ANTICAPITALISTA E A ELITE ACADEMICA 08
1.2 KULTUR E ZIVILISATION 11
1.3 ENSAIOS DE WALTER BENJAMIN DA DÉCADA DE 1930 16
2 WALTER BENJAMIN: POSSÍVEIS REFERÊNCIAS DA MODERNIDADE 19
2.1 TÉCNICA E TEMPORALIDADE 19
2.2 AURA E O DECLINÍO DA FOTOGRAFIA 22
2.3 CINEMA E FOTOGRAFIA: FRAGMENTAÇÃO 24
2.4 CONFORMAÇÃO E DECLINÍO DA TRADIÇÃO 28
3 MODERNIDADE “ENCANTADA” 32
3.1 AURA “ARTIFICIAL”: FASCISMO E TÉCNICA 36
3.2 FASCISMO ALEMÃO: KULTUR E TÉCNICA 40
3.3 ENCANTAMENTO BURGUÊS 43
3.4 FILOSOFIA DA VIDA: EXPERIÊNCIA “VERDADEIRA” 47
4 CONCLUSÃO 53
REFERÊNCIAS 54
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INTRODUÇÃO
A presente monografia desenvolve-se observando a persistência da temática da Modernidade enquanto fio
condutor de um conjunto determinado de ensaios redigidos na década de 1930, pelo filósofo alemão Walter
Benjamin (1892-1940). Os ensaios abordados são os seguintes: “Pequena História da Fotografia” (1931), “Obra de
Arte na era da sua Reprodutibilidade Técnica” 1 (1935/36), “O Narrador” (1936), “Teorias do Fascismo Alemão”
(1930), “Experiência e Pobreza” (1933), “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1939/40). As análises objetivam
destacar nos ensaios citados a construção interna dos referenciais de Modernidade, tendo-se em vista a relação
destes as posições decisivas assumidas pelo pensamento conservador alemão - e suas influências externas - nas
primeiras décadas do século XX. Como apontam Michael Löwy, Fritz Ringer e Richard Wolin2, neste contexto,
tais posições convergem fundamentalmente na crítica da Modernidade enquanto Zivilisation.
Podemos destacar brevemente este contexto. Em meio ao desenvolvimento industrial repentino observado
na Alemanha desde 18703, sobretudo membros da elite acadêmica e aqueles pertencentes aos círculos literários,
identificaram o desenvolvimento técnico, a ciência positivista, o comércio e o meio urbano enquanto elementos
relativos à Zivilisation, “superficiais” e “sem alma”. Destacam-se inseridos neste quadro referencial autores
diversos, desde os sociólogos Max Weber e Georg Simmel, até os poetas Stefan George e Rainer Maria Rilke.
Comumente encontraríamos ainda contraposto à Zivilisation o termo Kultur, agregador das referências à
“totalidade espiritual” e ao “conhecimento profundo”, o qual adquirira gradativamente sentido nacionalista4. Com
isso, os ensaios de Walter Benjamin da década de 1930, são analisados tendo-se em vista a possível aproximação
entre a abordagem da Modernidade presente nestes e a disseminada crítica da Zivilisation.
De todo modo, pode-se observar que o posicionamento de Benjamin frente aos fenômenos relativos à
Modernidade não permanecerá de forma alguma estável. Ora encontramos em seus ensaios a celebração da
Modernidade, ora certo pesar nostálgico frente ao declínio de estruturas sociais tradicionais. Poder-se-ia, por
exemplo, contrastar o ensaio “Experiência e Pobreza” (1933) em sua aclamação à humanidade desprovida de
1 Ao menos quatro versões do ensaio, sendo publicado apenas a versão francesa na revista do Instituto para Pesquisa Social. Aqui se utilizará, sobretudo, a 1ª e a 3ª versão alemã traduzida para o português. Ver: PALHARES, Taisa. Aura: a Crise da Arte em Walter
Benjamin. São Paulo: Editora Barracuda, 2006.p., 116.; KOTHE, Flavio. Benjamin e Adorno. Confrontos. São Paulo: Ática, 1978. p. 34. 2 Ver: LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. A Evolução Política de Lukács. São Paulo: Lech, 1969. p.19. RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins Alemães: A comunidade Acadêmica Alemã, 1890-1933. p.,11. WOLIN, Rollin. Introduction to Revisited Edtion. In: Walter Benjamn – And Aesthetic Of Redemption. London: University of California Press, 1994. 3 RINGER, Fritz. Op. Cit. p. 53 4ELIAS, Nobert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do Habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 130 - 131.
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tradição, ao “Sobre alguns Temas em Baudelaire” (1939), onde o autor pondera de forma incisivamente trágica a
respeito da Modernidade.
No multifacetário histórico da recepção das obras de Benjamin, as interpretações a respeito destas
oscilações são variáveis. Rainer Rochlitz argumenta que a partir de 1936, Benjamin gradativamente abandonara o
modernismo exacerbado assumindo posição radicalmente oposta5. Já Fernando Gatti aponta não haver em absoluto
contradições entre o modernismo técnico expresso em “Obra de Arte...” e àquele encontrado posteriormente em
“Sobre alguns temas em Baudelaire” 6. E ainda, John McCole que destaca o momento “destrutivo”, encontrado em
“Experiência e Pobreza” e também, o “conservador”, esboçado em “O Narrador” (1936) como inerentes ao
pensamento de Benjamin, em sua concepção de declínio da tradição7.
A abordagem aqui desenvolvida se faz próxima à perspectiva desses dois últimos autores, no sentido de
não se interpretar no pensamento de Benjamin uma dissociação radical entre suas propostas de “experiência da
modernidade” 8 e aquelas mais próximas à fundamentação romântica. Antes, busca-se observar as oscilações de
seu pensamento sob o referencial da Zivilisation, tendo ainda em vista, em um segundo momento, a extensão deste
como paradigma do posicionamento critico do autor frente a determinadas grupos e correntes de pensamento.
Seriam estes a burguesia, a denominada “Filosofia da Vida” e o fascismo. Em particular, busca-se destacar a
critica de Benjamin ao fascismo alemão tendo-se em vista, suas observações a propósito da transferência da
técnica para o linguajar da Kultur.
O itinerário proposto nos três capítulos seguintes visa uma revisão dos referenciais de Modernidade
presente em determinados ensaios de Benjamin da década de 1930, observando em suas facetas diversas, a sua
possível aproximação a crítica da Zivilsiation.
No primeiro capítulo descrevemos brevemente o contexto intelectual alemão de finais do século XIX e das
primeiras décadas do século XX, apresentando os principais grupos sociais e suas reflexões. Estabelece-se ainda
uma introdução aos ensaios da década de 1930 de Walter Benjamin, em vista a uma primeira aproximação deste às
problemáticas identificadas no contexto intelectual alemão.
No segundo capítulo são abordados os ensaios “Pequena História da Fotografia” (1931), “Obra de Arte na
Era da sua Reprodutibilidade Técnica”(1935/36) e “O Narrador”(1936) destacando-se os conceitos e referenciais 5 “Em, 1936, alguns meses depois de ter redigido a primeira versão do ensaio sobre ‘A obra de arte’, ele prepara, portanto, um ultimo desvio, relativamente menos brutal do que aquele que o levará contudo,a defender teses diametralmente opostas àquelas que determinam a radicalidade de ‘A obra de arte’.” ROCHILITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Bauru: EDUSC, 2003.p. 242. 6 Ver: GATTI, Luciano. O foco da critica: Arte e Verdade na Correspondência entre Adorno e Benjamin. Campinas, SP :[s. n.], 2008.p. 224. 7“His seeming ambivalece was not mere oscillation but, rather, na ongoing experiment: in allowing perspective usually justaposed, as ‘radical’ and ‘conservative’, Elightende’ and ‘traditionalist’, to converge in his work, he challenged accept paradigsms of cultural criticsm” McCOLE J. Walter Benjamin and the Antinomies of Tradition. New York: Cornell University Press, 1993. p. 10 8 ELIAS, Nobert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do Habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 130 - 131.
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relativos a temática da Modernidade, buscando a possível aproximação destes ao modelo de crítica da
Zivilisation.
No terceiro capítulo novamente serão abordados “Pequena História da Fotografia” , “Obra de Arte na Era
da Sua Reprodutibilidade Técnica”, o “Teorias do Fascismo Alemão”(1930), o “Experiência e Pobreza”(1933) e
“Sobre Alguns Temas em Baudelaire” (1939/40) destacando a questão da Modernidade, a partir do
posicionamento crítico de Benjamin frente ao fascismo, à burguesia e a denominada “Filosofia da Vida”.
8
1. DESENCANTAMENTO E FRAGMENTAÇÃO: CONTEXTO INTELECTUAL ALEMÃO
O presente capítulo se propõe a apresentar brevemente o contexto intelectual alemão de finais do século
XIX e início do século XX, observando as categorias fundamentais nas quais se objetivaram as discussões da
época. Busca-se, por fim, apresentar as possíveis inserções de Walter Benjamin neste contexto.
1.1 Romantismo anticapitalista e a elite acadêmica
No contexto da Alemanha de finais do século XIX e XX a industrialização e o advento das grandes
cidades se tornara uma das principais temáticas exploradas entre a elite culta. O pano de fundo da industrialização
e do desenvolvimento abrupto do capitalismo torna melhor compreensível estas referências. Podemos observá-los
nos seguintes dados utilizados por Fritz Ringer em sua obra “O Declínio dos Mandarins alemães” 9:
A população dos Estados alemães saltou cerca de 42,5 milhões, em 1875 para aproximadamente 68 milhões em 1915. Em 1871, mais ou menos 64% dos alemães viviam em comunidades de menos de dois mil habitantes. Esse número decresceu lentamente até 1890; mas então caiu vertiginosamente para 40% por volta de 1910. Nesse ínterim, a proporção de alemães empregados na agricultura e no serviço florestal diminuiu de 42% em 1882, para 34% em 1907. Fábricas e minas tomaram o lugar das fazendas. Em 1882, a indústria pesada alemã empregava 356 mil operários, cerca de 1,12 milhão.10
Michael Löwy destaca ainda o impacto da rápida industrialização na Europa Central como um todo
(Alemanha, Áustria, Hungria e Tchecoslováquia):
A rapidez a brutalidade, a intensidade e o poder esmagador dessa industrialização subvertem as sociedades da Europa central, sua estrutura de classes (ascensão da burguesia, formação proletariado), seu sistema político e sua hierarquia de valores.11
Os dois autores acima citados destacam tal processo de industrialização e urbanização súbita justamente
como elementos fundamentais na abordagem da inteligentsia européia de finais do século XIX e início do século
XX.
Fritz Ringer analisa pela denominação mandarim “as opiniões dos professores universitários alemães entre
1890 e 1933, sobretudo no que diz respeito à repentina transformação da Alemanha num país altamente
industrializado” 12. Já Michael Löwy tanto em “Redenção e Utopia” 13, quanto em “Por uma Sociologia do
9 RINGER, Fritz. K. O Declínio dos Mandarins Alemães. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. 10
Ibid., p. 55. 11 LÖWY, Michael. Redenção e Utopia: O judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 31. 12 RINGER, F. K. Op. Cit., p. 20. 13 LÖWY, Michael. Redenção e Utopia... 1989. p. 31.
9
intelectual Revolucionário” 14, observa a aproximação de determinados intelectuais pela denominação romantismo
anticapitalista, definindo esta como “uma visão de mundo caracterizada por uma crítica mais ou menos radical da
civilização industrial-burguesa em nome de valores sociais, culturais, éticos ou religiosos pré-capitalistas. ” 15
Nesta categoria Michael Löwy inclui os mandarins (elite acadêmica) apresentados por Fritz Ringer enquanto um
dos principais grupos sociais representante.
Um dos núcleos principais de disseminação desta visão de mundo seria o Círculo do sociólogo Max Weber
em Heidelberg. Neste se reuniram filósofos como os “jovens” György Lukács e Ernst Bloch, o já consagrado Karl
Jaspers, o sociólogo Gerog Simmel, além de outros. 16
Max Weber, referência intelectual fundamental para esta geração de finais do século XIX e início do século
XX, em obras como “Ciência e Política como Vocação” expressa postura próxima àquela identificada sob o signo
da visão de mundo romântico capitalista. É neste sentido que Löwy destaca em Weber certa resignação e
pessimismo transparecido frente ao processo de industrialização e o advento das grandes Metrópoles. O
desencantamento do mundo diagnosticado por Max Weber na Modernidade, é ainda tomado por Löwy como
referencial na constatação do retorno a religiosidade no romantismo anticapitalista17, sobretudo em Ernst Bloch e
Gÿorgy Lukács durante a década de 1910.18
Fritz Ringer retoma também três destes freqüentadores do Círculo de Max Weber de Heidelberg,
incluindo-os no tipo ideal mandarim. Seriam estes: o sociólogo Ferdinand Tönnies, o próprio Max Weber e
novamente Georg Simmel.
Identificando-os e aproximando-os como formatadoras da sociologia moderna alemã, Ringer incorre sobre
aspectos semelhantes àqueles destacados por Löwy:
A moderna sociologia alemã era filha legítima do modernismo mandarim; não pode ser entendida separada dessa ascendência. Refletiu a atitude tipicamente pessimista dos mandarins diante das condições sociais modernas. Lidou com os efeitos destrutivos do capitalismo sobre as formas pré-capitalista de organização social. Registrou os resultados desagradáveis desse processo na vida política e cultural e levantou algumas questões inquietantes a respeito do homem e da mulher na sociedade moderna. 19
Nesse sentido, destaca-se a obra de Tonnïes “Comunidade e Sociedade” (1887) em sua distinção entre duas
modalidades de vínculo social: a comunal (gemeinchaftilich) e a societária (gesellschaftlich) 20. Comunidades de
aldeias, clãs, associações religiosas, e relações de amizade incluir-se-iam naquela primeira categoria enquanto que
14 LÖWY, M. Por uma sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo: LECH, 1979. 15 LÖWY, M. Redenção e Utopia... 1989. p. 25. 16 LÖWY, M. Por uma sociologia... 1979. p. 29. 17 LÖWY, M. Por uma sociologia... 1979. p. 32. 18
Ibid., p. 20. 19 RINGER, F. K. Op. Cit., p. 159. 20 Ibid., p., 162.
10
as relações comerciais, as associações de negócios, conformariam a segunda21. Na valoração de Tonnïes, desta
primeira categoria podemos observar certo tom nostálgico em relação ao advento do capitalismo e do processo de
industrialização22. Ringer enfatiza no pensamento de Tönnies aspecto similar àquele destacado em Weber: o
advento dos “novos” modelos sociais se faz compreendidos enquanto fenômenos inevitáveis, não havendo desta
forma a apologia ao puro e simples retorno a modelos sociais pré-modernos. 23
Também em Georg Simmel, encontramos abordagens semelhantes àquelas desenvolvidas por Tönnies,
sobretudo na caracterização das relações sociais envolvendo dinheiro. As abordagens deste seriam ainda apontadas
como modelo típico de análise do capitalismo entre a elite acadêmica deste período24. Observa-se nas seguintes
observações de Ringer, que Simmel enfatiza a “impessoalidade” e a “liberdade” nas relações sociais sob o
capitalismo:
Os homens não precisam viver uns ao lado dos outros para fazer um negócio. Podem escolher sua residência e seus parceiros com mais liberdade. Mesmo a propriedade torna-se uma abstração, pois as pessoas não precisam sequer conhecer-se para terem junta de um mesmo bem. Qualquer indivíduo pode participar de uma associação voluntária, mediante uma simples contribuição em dinheiro, sem amarrar toda sua pessoa ao grupo (...). A vida em grupo é ‘racionalizada’. É criada uma sociedade relativamente livre, mas também mais ou menos ‘atomizada’.
25
Poder-se-ia afirmar, portanto, que a própria sociologia alemã desenvolvida em finais do século XIX e
início do século XX transparecia em suas categorias e temas inquietações frente às mudanças operadas pela
industrialização e pelo capitalismo na Alemanha e na Europa Central das primeiras décadas do século XX. Sem
dúvida entre os seus colegas acadêmicos Georg Simmel, Ferdinnand Tönnies e Max Weber, estariam dentre
aqueles que menos se esvaeceram em tonalidades excessivamente emotivas frente ao advento da Modernidade, da
mesma forma que assumiram posturas políticas mais afastadas do conservadorismo de autores contemporâneos
como Oswald Spengler e Werner Sombart. Neste sentido, Ringer classifica-os enquanto “mandarins modernistas”
em contraposição aos “mandarins ortodoxos” 26. De todo modo, tanto um quanto outro grupo específico
partilharam de certo pessimismo frente às transformações sociais observadas em seu contexto.
1.2. Zivilisation e Kultur
21 Ibid., p.161. 22 Ibid., p.159. 23 Ibid. p. 161. 24 RINGER, F. K. Op. Cit., p. 168. 25 Ibid. Id. 26 “Sombart, Simmel, Wiese e Alfred Weber foram indivíduos extremamente talentosos. Simmel, Wiese e Weber se alinhavam ao lado dos modernistas radicais, o segmento mais criativo da comunidade mandarim. Sombart, por volta de 1911, estava mudando rapidamente de posição; todavia, mesmo depois de 1914, distinguia-se da arraia miúda da maioria ortodoxa por usa extraordinária agilidade mental”. Ibid. p.250.
11
As abordagens de Fritz Ringer e Michael Löwy revelam ainda nos discursos de intelectuais alemães ou
centro-europeus elementos estruturantes similares. Dessa forma ambos apontam para a diferenciação entre Kultur
e Zivilisation – já contempladas nas pesquisas do sociólogo Nobert Elias - como definidoras da construção
discursiva de intelectuais de finais do século XIX e início do XX. Podemos, brevemente, destacar o
desenvolvimento destes termos no contexto alemão.
Segundo Nobert Elias a oposição Kultur e Zivilisation no contexto alemão, desenvolveu-se nos século
XVIII a partir de uma série de redes associativas aonde intelectuais alemães, pertencentes à classe média emalã,
estabeleceram uma antítese entre os dois termos: de um lado estaria a Zivilisation entendida como modos da Corte,
regida pela valoração da polidez social e outras práticas de influência francesa; do outro, o termo Kultur entendido
como formação “espiritual profunda”, “abrangente” e “totalizante dos individuo”.27 Se em um primeiro momento
esses termos estabeleceram a diferenciação entre grupos sociais germânicos, em um segundo momento passam a
definir grupos nacionais, sendo Kultur referente à “tradição germânica”, enquanto Zivilisation passa a referir-se a
elementos identificados como “estrangeiros”, destacadamente ingleses e franceses28.
Acrescentasse que o termo Zivilisation, já em finais do século XIX e início do XX, passa a referir-se não
somente a comportamentos sociais concebidos como meramente superficiais, mas também ao conhecimento
definido como prático e mundano. Em particular Ringer destaca esta dicotomia no campo do conhecimento,
enquanto modelo utilizado por parte da elite intelectual alemã (os denominados Mandarins) para desclassificar
formas de conhecimento entendidas como fragmentários e utilitarista, vinculados à outros meios modernos de
solapar a totalidade da Kultur:
Todos os desenvolvimentos modernos pareciam levar na mesma direção: o declínio do idealismo e o ingresso das ‘massas’ no ensino superior, o positivismo e a ameaça aos padrões acadêmicos, o realismo na política externa e o realismo enquanto orientação intelectual e literária, o materialismo popular e o materialismo científico.29
De um lado encontra-se o positivismo e o conhecimento utilitarista e técnico enquanto formas de
conhecimentos superficiais oriundos da França e da Inglaterra·; do outro, opondo-lhe, situa-se a totalidade
27 “Cortesia, submissão, boas maneiras, por um lado, e educação sólida e preferência pela virtude antes da honra por outro: a literatura alemã da segunda metade do século XVIII abunda dessas antíteses” . ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p.,42. 28 “Com a lenta ascensão da burguesia alemã, de classe de segunda categoria para depositária da consciência nacional e, finalmente- muito mais tarde e com reservas – para a classe governante, de uma classe que, no inicio, foi obrigada a se ver ou legitimar principalmente se contrastando com a classe superior aristocrática de corte e, em seguida, definindo-se contra nações concorrentes, a antítese entre Kultur e Zivilisation, com todo seus significados correlatos muda em significação e função: de antítese primariamente social, torna-se primariamente nacional”. Ibid. p. 42. 29 RINGER, F. K. Op. Cit., p. 252
12
idealista do “Geist” 30 como conhecimento completo. Com isso, junto à formação “espiritual profunda” coloca-se
tanto o conhecimento como “totalidade” quanto o ideal de “comunidade”- abordagens características do
romantismo anticapitalista - como elemento constitutivos da Kultur. Em contraposição, defini-se como
pertencente a Zivilisation, formas de conhecimento definidos como “superficiais” e “especializado”, conformando
assim elementos correspondente à uma sociedade compreendida como fragmentária, regida pela tecnologia e pelo
comércio.
Seria, todavia, importante notar que esta modalidade de crítica e dicotomia permanecera mesmo quando
não se encontrava expresso nacionalismo exacerbado. Dessa forma, autores já citados como Ferdinand Tonnies,
Georg Simmel e Max Weber, os filósofos Karl Jasper, Oswald Spengler e o sociólogo Alfred Weber, entre outros,
partilharam de referenciais comuns na crítica ao processo de modernização.
De forma geral, segundo Michael Löwy, o romantismo anticapitalista seria renovado através deste mesmo
campo de significação:
Aparece no início do século (XX), uma nova versão do romance anticapitalista, sobretudo universitário, do qual o letimotif central é a oposição entre Kultur e Zivilisation. Enquanto Kultur define uma esfera caracterizada por valores éticos, estético e políticos, um estilo de vida pessoal, um universo espiritual “interior”, “natural”, “orgânico”, tipicamente alemão, Zivilisation designa o progresso material, técnico-econômico, “exterior”, “artificial”, de origem anglo-francesa.31
Podemos, nos referir a toda uma geração de intelectuais que partilhara destas categorias. Dentre eles
podemos citar - para além dos já referidos- autores um tanto quanto contrastantes entre si: o escritor Thomas
Mann, o filósofo Martin Heidegger, o revolucionário Gustav Landauer, o poeta Stefan George, além de outros.
Peter Gay também viria a destacar a presença desse campo de significação disseminado para além da elite
acadêmica alemã. O autor refere-se à presença dos Movimentos de Juventude, antes e durante a República de
Weimar (1918 – 1933) em sua defesa “romântica” da Natureza e do passado pré-industrial da Alemanha. Seus
líderes expressavam este ideal alinhados a crítica da Zivilisation: “Inúmeros dos líderes da juventude aclamavam e
idealizavam, romantizavam a Alemanha medieval como um refúgio do comercialismo e da fragmentação”32
Os círculos literários de finais do século XIX e início do século XX, formados em tornos dos poetas Stefan
George e Rainer Maria Rilke também partilharam em grande medida os ideários da “totalidade” espiritual da
Kultur em contrapartida à Zivilisation. Em particular as releituras do poeta alemão do século XIX, Hölderlin,
simbolizavam este apelo a “totalidade” contra a “fragmentação”:
30 Ibid., p. 248. 31 Ibid., p. 19. 32 GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978. p. 92
13
E aí, na verdade estava o segredo do apelo de Hölderlin a uma Alemanha do século XX, acossada e confusa; Höldërlin foi dos primeiros a declarar pessimistamente o que viria a ser um lugar comum poético, filosófico e político – que o mundo moderno estava fragmentando o homem, desintegrando-o, alienando-o de sua sociedade e de sua natureza mais íntima.33
As referências encontradas no contexto intelectual da Viena dos primeiras décadas do século XX
conduzem às mesmas inquietações expressas nos termos da oposição Kultur/Zivilisation. Jacques Le Rider refere-
se neste sentido ao filosofo Ludwig Wittgenstein:
Em seu projeto para a Gramática Filosófica, depois de ter declarado sua ‘antipatia’ em relação à tendência dominante da civilização (Zivilisation) européia e americana, Wittgenstein compara a cultura(Kultur) com uma grande organização que reservaria a todos um lugar, de tal forma que todas as atividades individuais reforçariam a coesão do conjunto.34
Portanto, pode se afirmar que para ampla parcela da elite culta na Alemanha e na Europa Central, de finais
do século XIX e início do século XX, entre as questões redigidas e discutidas consta fundamentalmente a crítica
ao desenvolvimento técnico, à sociedade de massa, à urbanização, às ciências positivas e outros fenômenos
tornados afins. A referência crítica à Zivilisation sintetizaria esta postura. Poderíamos observar de forma mais
pontual as possibilidades de abordagem a partir deste referencial.
Fritz Ringer, em sua análise da elite acadêmica alemã do período entre 1890 e 1933, ressaltara as críticas
destes intelectuais à Modernidade/Zivilisation enquanto manifestação de um grupo social frente ao declínio de sua
posição privilegiada. Desta forma, a elite acadêmica alemã, enquanto grupo cuja projeção social se fizera possível
a partir de condições históricas esboçadas entre o declínio do sistema político-econômico feudal e o
desenvolvimento exacerbado do capitalismo35, observara a partir do surto abrupto de industrialização e de
capitalização na Alemanha, o declínio de seu prestígio social concomitante ao advento de novas instâncias de
poder. Em outras palavras: se até finais do século XIX os mandarins constituíram-se enquanto lideranças
“espirituais” reconhecidas socialmente pelo seu saber “profundo” e seu ideal de formação (Bildung)36, o advento
da Modernidade diminuiu não apenas seu espaço político de atuação, mas também sua relevância social:
À medida que se aproximam a plena industrialização e a urbanização, é provável que ricos empresários e trabalhadores das indústrias contestem a liderança da elite culta (...). Líderes de partidos, capitalistas e técnicos usurparão sua liderança.
37 33
Ibid., p. 75 34 RIDER, Le J. A Modernidade Vienense: e as crises de identidade.Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993. p.,490. 35“Caracteristicamente, de acordo com minhas estipulações heurísticas, somente em determinadas condições é que os mandarins a ter um papel predominante em sua sociedade. (...). Florescem entre o nível fundamental agrário da organização econômica e a plena industrialização. Nesse estágio intermediário, a posse de somas significativas de capital líquido ainda não se disseminou nem se tornou amplamente aceita como qualificação de status social e os títulos hereditários baseados na posse da terra, embora ainda seja relevantes não são pré-requisitos indispensáveis.” 35 RINGER, F. K. O Declínio dos Mandarins Alemães. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 23. 36 “O próprio ideal de educação dos mandarins, desenvolvido como a antítese direta ao conhecimento prático, vinha expresso nas palavras bildung (formação, educação) e Kultur”. RINGER, F, Op. Cit. p. 95. 37 Ibid. p. 28.
14
As hostilidades contra o desenvolvimento técnico, positivismo, urbanização e outros elementos tornados
afins no termo Zivilisation, representam na elite acadêmica manifestações racionais e emotivas contra o declínio
de seus privilégios e prestígio político-sociais.38
Já Nobert Elias como fora apontado, enfatizara a aquisição gradual do sentido estritamente nacionalista do
termo Kultur em finais do século XIX e início do XX. Segundo Elias, o “nós – imagem” germânico havia se
sobreposto aos ideais humanistas que antes se encontravam expressos no uso do termo Kultur39, demarcando ainda
a Zivilisation enquanto contraposição relativa à Inglaterra e à França.
Por fim, Michael Löwy, apontando a crítica da Zivilisation enquanto referência fundamental do
romantismo anticapitalista, descarta explicitamente não apenas o referencial estritamente nacionalista desta, como
também aponta para um aspecto fundamental: o hermafroditismo ideológico. Segundo Löwe, tanto intelectuais
conservadores, quanto esquerdistas, poderiam assumir - como alguns assim fizeram - por referencial fundamental
o modelo da crítica da Zivilisation inscrito no romantismo anticapitalista. Daí podermos encontrar aproximados
filósofos marxistas, como Georgy Lukács, e conservadores, como Oswald Spengler.
Em vista a este panorama interpretativo da crítica da Modernidade/Zivilsation, buscamos estabelecer
determinadas balizas na abordagem dos ensaios da década de 1930 de Walter Benjamin.
Primeiro nos afastamos da concepção da crítica da Modernidade/Zivilisation enquanto manifestação
estritamente ideológica da elite acadêmica alemã. De acordo com John McCole e Jürgen Habermas esta
perspectiva teria impedido Ringer de observar a influência do pessimismo mandarim na esquerda alemã, e em a
particular “Escola de Frankfurt” de Theodor Adorno, Max Horkheimer e do próprio Walter Benjamin. 40
Segundo, buscamos ressaltar a da critica da Zivilisation, enquanto referencial não necessariamente atrelado
ao nacionalismo germânico, apesar de encontrar--se presente em grande quantidade de autores. .Terceiro, se como
afirma Michael Löwe, a crítica da Zivilisation inserida no romantismo anticapitalista portava certo
38 “Alfred Weber tocou no cerne do problema quando lamentou o reduzido impacto dos intelectuais alemães sobre seu país. Todo o seu raciocínio baseou-se na tradicional distinção entre conhecimento enquanto sabedoria e conhecimento enquanto mera análise técnica. Sem essa antítese a teoria da decadência cultural teria continuado a ser um enigma. A questão é que os mandarins nunca se contentaram em cultivar seus próprios jardins. Consideravam-se uma casta sacerdotal e pretendiam definir os valores para uma população camponesa.”Ibid., p.252. 39 “(...) em fins do século XIX e começos do atual, quando o termo ‘cultura’ foi cada vez mais usado na acepção de ‘cultura nacional’, as conotações humanistas e morais, numa etapa inicial de sua carreira, passaram a segundo plano e finalmente desapareceram. É possível que tenha sido precisamente esse gradual mas completo desaparecimento de conotações humanistas ou morais, somado à ênfase no passado (...) o que ajudou a difusão do termo ‘cultura’, mais ou menos no sentido que adquirira como símbolo da ‘nós-imagem’ de seções fortemente nacionalistas e conservadoras das classes médias alemãs, entre ciências sociais como antropologia social e sociologia.” ELIAS, Nobert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do Habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 130 - 131. 40 “In an comment on the relationship between the Frankfurt School’s criticism and the antimodernism cultural pessimism of the German mandarins, Jürgen Habermas once proposed that ‘hidden in the German mandarins’ culturally conservative frame of reference there might be experiences worked through and questions posed which, in an appropriate frame of reference could be reformulated and claim systematic interest’”. McCOLE J. Walter Benjamin and the Antinomies of Tradition. New York: Cornell University Press, 1993. p. 24.
15
hermafroditismo ideológico, buscaremos ressaltá-lo como possibilidade de aproximação do pensamento de Walter
Benjamin ao pensamento conservador alemão.
Nesta perspectiva destacamos dois termos fundamentais para abordagem aproximativa da crítica da
Zivilisation aos ensaios de Walter Benjamin.
O primeiro seria o de desencantamento do mundo, conhecida expressão difundida pelo sociólogo Max
Weber, sobretudo a partir de 191941. Buscamos sintetizar através desta referência constante dos intelectuais desta
geração ao declínio das esferas “espirituais”, “transcendentais” ou “mágicas” com o desenvolvimento da
Zivilisation. Propomo-nos ainda a abordar tal termo no sentido da racionalização como domínio, tal como expressa
Weber.42
O segundo, seria fragmentação, termo utilizado neste contexto para referir-se a desagregação dos laços
sociais “orgânicos” de comunidade, dos referenciais coletivos, do conhecimento “total”, e por fim, da
“totalidade” da “esfera espiritual”. Tal noção de fragmentação pode ser observado ainda na referência de
Simmel a dissociação operada na Zivilisation entre o espírito subjetivo e o espírito objetivo:
O desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se pela preponderância daquilo que se pode denominar espírito objetivo sobre o espírito subjetivo, isto é, tanto na linguagem como no direito, tanto na técnica de produção como na arte, tanto na ciência como nos objetos do âmbito doméstico encarna-se uma soma de espírito, cujo crescimento diário é acompanhado à distância cada vez maior e de modo muito incompleto pelo desenvolvimento espiritual dos sujeitos.43
A Modernidade/Zivilisation enquanto fragmentação , seria portanto, perspectiva que resumiria abordagem
de autores diversos dessa geração, como já podemos observar.
Desta forma buscaremos destacar nos ensaios da década de 1930 de Benjamin, as possibilidades em
aproximar a sua abordagem Modernidade daquela referenciada na crítica da Zivilsation. Observemos
primeiramente um plano geral dos ensaios da década de 1930 de Walter Benjamin.
41“O destino de nosso tempo que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo levou os homens a banirem da vida publica os valores supremos e mais sublimes. Tais valores encontraram refúgio na transcendência da vida mística ou na fraternidade das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados. Nada há de fortuito no fato de que a arte mais eminente de nosso tempo é intima e não monumental, nem no fato de que hoje só nos pequenos círculos comunitários, no contacto do homem a homem, em pianíssimo, se encontra algo que poderia corresponder ao pneuma profético que abrasava comunidades antigas e as mantinha solidárias.” WEBER, M. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Editora Cultrix, 2004. p.59. 42 Ibid. p. 30. 43 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro: v. 11, n. 2, Oct. 2005.p.588.
16
1.3. Ensaios de Walter Benjamin da década de 1930.
Não sem razão tem-se a impressão de que a produção intelectual de Walter Benjamin se dera de forma
dispersa. Poderíamos citar poucas de suas obras acabadas que constituiriam grandes volumes ou expressariam seus
conceitos e problemáticas de forma menos esparsa. Dentre eles estariam sobretudo as sua teses de doutorado:
“Crítica do Romantismo Alemão” (1919) e a renegada tese de livre docência “Origens dos Drama Barroco
Alemão” (1925). Poderíamos ainda incluir “Infância em Berlim” (1934) e o “Rua de Mão de única” (1926-28),
enquanto projetos unitários, ainda que compostos por aforismos e fragmentos.
De todo modo em relação à produção intelectual de Benjamin é ainda certo que nos depararemos com mais
freqüência com inúmeros ensaios publicados em revistas e jornais variados, os quais aparentemente atenderiam
cada qual a uma demanda específica. Poderíamos citar, por exemplo, o verbete sobre “Goethe” encomendado pela
enciclopédia da URSS em 1927, ou então “O Narrador”, encomendado em 1935 pela revista suíça Orient und
Okzident como ensaio de apresentação do escritor russo Niocolai Leskov.
A partir de 1934, haveria publicações constantes na revista do Instituto de Pesquisa Social, sem que no
entanto, tal rotina se traduzisse em plena autonomia do autor na formulação de seus ensaios - o que pode ser
observado nos conflitos com os editores responsáveis, Theodor Adorno e Max Horkheimer. Contudo, apesar do
caráter aparentemente esparso das publicações de Benjamin - impressão que abre margem, em um primeiro golpe
de vista, a interpretações de que a produção intelectual do autor seria deficiente - podemos ter em vista outra
hipótese. Esta se refere aos escritos da década de 1930, cujo pano de fundo se encontra num projeto de Benjamin,
o qual, até a década de 1980, era conhecido pelo público em geral, incluindo o brasileiro, apenas através de
referências encontradas nas cartas do autor e em comentários tecidos por especialistas. Tal projeto é o lançado no
Brasil recentemente sob o título “Passagens”. 44
As “Passagens” foram iniciadas em 1927, com o seu desenvolvimento se estendendo por toda a década de
1930, sem ter sido concluído por Benjamin. O imenso “canteiro de obras” relegado pelo autor compõe-se
basicamente de fragmentos, sendo o Paris, Capital do Século XIX (1935) e os ensaios sobre Charles Baudelaire
de 1938/39/40 os únicos textos acabados, destinados diretamente a obra maior. Todavia, ainda que em seu
caráter inacabado, o projeto de Benjamin encontra-se relacionado a alguns de seus ensaios publicados durante a
década de 1930. Observemos as declarações de Benjamin em carta à Gershom Sholem, a respeito de um dos seus
ensaios mais conhecidos atualmente:
Este trabalho aparecerá primeiro em francês – talvez no fim do ano. (...) O título é ‘A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica”. O grande livro [Projeto das Passagens] foi posto de lado em favor do
44 BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
17
novo trabalho, que está estreitamente vinculado àquele quanto ao método, mas não de todo no que diz respeito ao objeto.45
Se tomarmos ainda os ensaios sobre Charles Baudelaire em vista a seu pertencimento às “Passagens”
encontraremos outras relações entre o “grande livro” e os ensaios da década de 1930. Conceitos como experiência
(Erfahrung) e aura diretamente abordados em “Sobre alguns Temas em Baudelaire” (1939/40), e implicitamente
encontrados nos três partes do artigo sobre Baudelaire (“A Bohemia”, “O Flâneur”, “A Modernidade”) – o
Instituto de Pesquisa Social havia renegado sua publicação em 1938 -, retomam problemáticas e conceitos já
abordados em ensaios como “Pequena História da Fotografia” (1931), “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”
(1936). Jeanne-Marie Gagnebin enfatiza essas relações a partir da égide de uma “arqueologia da modernidade”:
Esta “arqueologia da modernidade”’ que os ensaios sobre Baudelaire e o livro inacabado das Passagens se propõem a descrever, Benjamin já tinha começado a fundamentá-lo em toda sua reflexão anterior a respeito do declínio da experiência no sentido pleno da Erfahrung, e, conjuntamente, do fim da narração tradicional. Esse tema, que o preocupa desde seus primeiros escritos, torna-se no decorrer do anos 30 [1930], uma parte inerente de sua reflexão sobre as transformações estéticas que chegam à maturação no início do século XX e subvertem a produção cultural, artística e política.46
Tendo em vista estes apontamentos podemos melhor compreender as “Passagens” e os ensaios da década
de 1930 não tanto enquanto fragmentos isolados, mas sim enquanto escritos inter-relacionados. Sob signo
semelhante a da compreensão da Metrópole Moderna, Wille Bolle aborda uma série de textos-ensaios de Benjamin
denominados “Fisiognomina da Metrópole Moderna” 47:
Esse projeto nasceu com o livro Contramão (1925-1928) e teve continuidade com o Diário de Moscou (1926-1927) e os primeiros esboços das “Passagens Parisienses (1927-1929); ganhou novos impulsos com a série radiofônica Metrópole Berlim (1929-1930), a Crônica berlinense (1932) e a Infância em Berlim por volta de 1900 (1932 -1938); e cativou o autor até o fim de sua vida, sempre às voltas com a Obra das Passagens (1927-1940).48
Portanto, quando Benjamin redige seus ensaios na década de 1930, a temática da Modernidade já se
encontra em grande medida contemplado em seus textos precedentes. Haja vista esta predominância da temática
da Modernidade em seus ensaios, podemos apontar que Benjamin partilhara de problemáticas fundamentais
difundidas no contexto intelectual alemão do início do século XX. Poderíamos, com isso, de forma mais direta nos
questionar em que medida a abordagem da Modernidade empreendida por Benjamin admite certa afinidade com
àquela esboçada pela elite acadêmica e pelos círculos literários na Alemanha nesse mesmo período.
45 SHOLEM, G. Correspondência. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. p. 240. 46 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 63. 47 BOLLE, W. Fisiognomia da Metrópole Moderna: A representação da História em Walter Benjamin. São Paulo: Editora USP, 1994. 48
Ibidem, p., 271-272.
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Primeiramente, cabe de antemão ressaltar que Benjamin, apesar de não poder ser classificado enquanto
membro da elite acadêmica alemã – tendo em vista o fato anteriormente mencionado de que sua tese de livre
docência, “Origens do Drama Barroco Alemão”, apresentada à Universidade de Frankfurt em 1925, havia sido
renegada, terminando de antemão as suas pretensões em seguir carreira acadêmica - também partilhara, segundo as
referências de Löwy, da visão de mundo romântica. 49
De fato, em ensaios da década de 1930, sobretudo em “O Narrador” (1936), encontramos críticas ao
capitalismo e à industrialização a partir de referências a modelos de organização social pré-capitalistas. Podemos
ter ainda em vista o artigo publicado s em 1935 sobre Bachofen, autor do século XIX, referência entre a esquerda e
a direita romântica. Todavia queda-se ainda um tanto quanto limitada a categoria de romantismo anticapitalista se
nos propusermos a analisar ensaios como “Obra de Arte...” , na qual encontramos exacerbado propostas estéticas
inteiramente modernistas. Cabe neste caso a sugestão de Nelson Brissac Peixoto, de que além do romântismoo
anticapitalista, a “experiência” da Modernidade, se fizera ponto de partida fundamental das reflexões de autores
dessa geração. 50
No entanto, ainda assim ensaios como “Obra de arte...” (1936) e “O Narrador” (1936) se mostram de forma
um tanto quanto paradoxais: num encontramos aparentemente a defesa da sociedade tecnológica, no outro
ponderar-se nostalgicamente a respeito do declínio de estruturas tradicionais de produção; Num os meios técnicos
apontam para emancipação da sociedade humana, noutro significa apenas o decréscimo de experiências
comunitárias. Os exemplos antagônico destes dois ensaios poderiam ainda se seguir alongadamente.
Contudo, se a Modernidade constituísse ainda enquanto temática central observada tanto num quanto
noutro ensaio, ainda se sustentam as questõers: Benjamin, em sua postura variável frente à Modernidade, se
encontraria aproximado a crítica da Zivilisation,? Ou então: de que forma o desenvolvimento técnico, o advento da
sociedade de massa e urbanização representados por Benjamin poderiam se encontrar aproximados à critica da
Zivilsiation? Os dois capítulos seguintes abordam esta problemática ora focando faceta romântica, ora
modernista do autor.
49 “O ponto de partida desse percurso singular, como para muitos dos jovens judeus alemães de sua geração, é a cultura romântica (...).” LÖWY, Michael. Redenção e Utopia: O judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 86. 50 “Embora originados da crítica cultural e do anticapitalismo romântico, iriam [Georgy Lukács e Ernst Bloch], iriam também, embora desigualmente, ter por ponto de partida todos os fenômenos e as experiências constitutivas da modernidade.” PEIXOTO, Nelson B. A sedução da barbárie: O Marxismo na Modernidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p.30.
19
2. Walter Benjamin: Possíveis referências da Modernidade
Se por um lado as questões da percepção e da sociedade fragmentária na Modernidade já haviam sido
desenvolvidas de forma explícita em “Rua de Mão Única” (1926) e outros ensaios de fins da década de 1920, a
partir de 1931 o conceito de aura passa a concentrar parte dos referenciais de Benjamin a respeito desta temática.
Sem dúvida em suas obras anteriores, Benjamin já havia implicitamente colocado questões que se desdobrariam na
abordagem deste conceito. “Afinidades Eletivas de Goethe” (1923) e “Origens do Drama Barroco Alemão”
(1925) em seus conceitos de mito, alegoria, e símbolo podem ser relacionados às problemáticas levantadas no
conceito de aura51. No entanto, como observaremos, será através das referências espaços-temporais, que
encontraremos de antemão reflexões fundamentais sobre Modernidade em Benjamin. Observaremos na subseção
seguinte a questão da temporalidade enfatizada por Benjamin a partir da análise do desenvolvimento fotografia do
século XIX.
2.1 Técnica e temporalidade.
Podemos observar de antemão, que a crítica inicial desenvolvida por Benjamin em “Pequena História da
Fotografia” (1931) direcionam-se àquelas análises da fotografia que não dedicaram maior atenção a técnica na
produção artística. O autor cita a seguinte passagem do jornal alemão Leipzinger Anzeiger como exemplo dos
comentários tecidos no século XIX a respeito:
Querer “fixar efêmeras imagens de espelho não é somente uma impossibilidade, mas um projeto sacrilégio. O homem foi feito à semelhança de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum mecanismo humano. No máximo o próprio artista divino, movido por uma inspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses traços ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de suprema solenidade, obedecendo às diretrizes superiores de seu gênio, e sem qualquer artifício mecânico”.
52
Em seguida Benjamin destaca a invalidez desta forma de apreciação da arte frente às modificações técnicas
introduzidas pelas fotografias: “Aqui aparece com todo o peso da sua nulidade, o conceito filisteu de ‘arte’ alheio
à qualquer consideração técnica e que pressente seu próprio fim no advento provocativo da nova técnica”53Neste
sentido, Benjamin busca colocar em evidência a importância da abordagem da técnica na compreensão da
produção e recepção da fotografia, se opondo explicitamente ao discurso conservador da Kultur, que relegara à
técnica aspecto meramente inferior na vida humana.
51 Ver: KOTHE, Flávio Confrontos: Benjamin e Adorno. São Paulo: Ática, 1978.; GATTI, Luciano. O foco da critica: Arte e Verdade na Correspondência entre Adorno e Benjamin. Campinas, SP :[s. n.], 2008. 52 BENJAMIN, W. Pequena história... 1996. p. 92 53 Id.
20
Em “Pequena História da Fotografia” encontramos a indicação de que o aparelho fotográfico, a partir de
sua invenção em 1839 e, ao menos até 1880 54, exigira longa exposição dos retratados no processo de captação das
imagens. São citadas as fotografias de um certo David Octavius Hill, em alusão à longa imobilidade exigida aos
primeiros modelos retratados. O seguinte comentário de Benjamin pode ser observado neste sentido: “O próprio
procedimento técnico levava o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele.”55
Tal perspectiva de durabilidade se estenderia para a ordenação dos elementos das imagens, como por
exemplo, a presença de “grupos incomparáveis formados quando as pessoas se reuniam” 56 na captação das
imagens fotográficas. Outras fases da produção fotográfica também se condicionariam pela limitação técnica.
Desta forma, Benjamin, em referência à fotografia enquanto material acabado ou em processo de acabamento,
toma como exemplo o inventor Daguerre:
Os clichês de Daguerre eram placas de prata, iodadas e expostas na câmera obscura; elas precisavam ser manipuladas em vários sentido, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz favorável, uma imagem cinza-pálida. Eram peças únicas; em média, o preço de uma placa em 1839, era de 25 francos-ouro. Não raro, eram guardadas em estojos, como jóias. 57
Observemos, então, que as condições técnicas tanto não possibilitavam a produção instantânea das
fotografias – menos ainda a sua reprodução ilimitada- quanto também definiam as dificuldades no manejo da
produção e o seu alto custo, fatores responsáveis pela maior valorização material da imagem produzida. A
argumentação de Benjamin, pode-se dizer, converge num sentido: seja no processo de sua produção, seja
enquanto material acabado, as primeiras fotografias se determinavam por uma temporalidade duradoura.
O próprio espaço das imagens fotográficas seria formatado de acordo com a temporalidade distendida
exigida. O autor cita novamente como exemplo o fotógrafo David Octavius Hill:
Muitas imagens de Hill foram produzidas no cemitério de Greyfriars, em Edimburgo. Nada caracteriza melhor esse período primitivo do que a naturalidade com que os modelos aparecem nesse ambiente (...). Mas esse local não teria jamais provocado um efeito tão impressionante se sua escolha não tivesse obedecido a imperativos técnicos. A fraca sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa exposição ao ar livre. Isso por sua vez obrigava o fotógrafo a colocar o modelo num lugar tão retirado como possível.58
Desta forma, ao condicionar a temporalidade da fotografia, a técnica influi também por sobre a seleção do
espaço da imagem. Ou como apresentado na citação: o afastamento para locais em que o retratado pudesse estar
por longo tempo exposto, é conduzido, como observamos, pela necessidade de se contemplar a distensão temporal
exigida pelo aparelho fotográfico. Naqueles cemitérios isolados destacados, encontrar-se-ia o local ideal para
54
Ibid., p.99. 55
Ibid., p 96. 56 Ibid.,p.99. 57 Ibid.,p. 93. 58 BENJAMIN, W. Pequena história...1996. p.95-96.
21
abarcar esta temporalidade distendida exigida. Portanto, nestas fotografias, a própria distensão temporal coincide
com a extensão espacial, ambos elementos em última instância exigidos pelo condicionamento técnico.
Todavia, sobretudo a partir de 1880, a temporalidade da fotografia se modificaria. Tanto a captação de
imagens passaria a ser realizar de maneira mais veloz com o desenvolvimento técnico dos aparelhos fotográficos,
quanto também através da reprodução da imagem possibilitada pelo processo positivo-negativo, viria a estimular a
desvalorização da durabilidade material da fotografia59.
De todo modo, mesmo notando certa importância da técnica nas modificações diagnosticadas na
temporalidade da fotografia – assim como nas conseqüentes alterações na relação do espaço -, esta deve ser
observada como fator referencial de fenômenos mais amplos. Neste sentido, faz-se importante termos em vista,
que Benjamin, observa as inovação técnicas da fotografia atreladas às transformações na sociedade do século
XIX como um todo. A seguinte citação, referenciando o declínio destas primeiras fotografias, explicita esta
relação:
(...) o modelo durante a longa duração da pose, eles por assim dizer, cresciam dentro da imagem, diferentemente do instantâneo, correspondente àquele mundo transformado na qual como observou Krakauer, a questão de saber ‘se um esportista queiram retratá-lo’ vai ser decidida na mesma fração de segundo em que a foto está sendo tirada.60
A suspensão da temporalidade duradoura no declínio das primeiras fotografias, condicionasse tanto pelo
desenvolvimento técnico, quanto por mudanças histórico-sociais correlatas à mudanças no aparelho perceptivo. A
fotografia seria na verdade o índice histórico pelo qual se interpreta tais transformações na sociedade, enquanto o
termo aura, em suas referências espaço-temporais, se torna a baliza central no diagnóstico e avaliação dos
fenômenos relativos à Modernidade. Este sentido histórico amplo atribuído às transformações da fotografia é
referenciado pela especificidade da metodologia de Benjamin:
No momento em que o filósofo escreve sua ‘Pequena História da Fotografia’, o assunto permanece, com algumas exceções, como tema quase que exclusivo de fotógrafos e artistas, abordado principalmente como procedimento formal ou técnico isolado, e não como ‘um fenômeno integrado’ – o traço mais marcante da metodologia benjaminiana de abordagem do meio. 61
Com isso, podemos adiantar que Benjamin demarca no período das primeiras fotografias (1839-
1850/1880), uma sociedade ainda não absorvida em absoluto pelo processo de industrialização e massificação.
59 “No entanto, tudo isso muda a partir de 1880 com os aperfeiçoamento que permitem a reprodutibilidade cada vez mais rápida e em maior escala da fotografia(por exemplo, através do avanço do processo negativo-positivo) e conseqüentemente, sua banalização/massificação; a diminuição do tempo de exposição, até a conquista dos instantâneos, que modificam totalmente a relação com tempo;(...)” PALHARES, Taisa. Aura: a Crise da Arte em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Barracuda, 2006.p. 33 60 BENJAMIN, W. Pequena história...1996. p. 96. 61 Ibid., p. 26
22
Nesta ainda subsistiria aquilo que o autor denominara aura. As relações sócio-históricos presentes neste declínios
serão delineadas na próxima seção.
2.2 Aura e o declínio da fotografia
As primeiras referências diretas ao termo aura são feitas em “Pequena História da Fotografia” a partir da
constatação de sua existência e declínio na fotografia. Todavia, tais caracterizações inicialmente postuladas, não se
limitam à ordenação de atributos qualitativos de fotografias do século XIX. Antes, como já referido, a abordagem
do declínio da aura alterna entre explanações técnicas e histórico-sociais, estabelecendo através destas o contraste
entre as primeiras fotografias ditas auráticas, e aquelas produzidas num período já próximo a 1880.
Neste sentido, é interessante ressaltar determinados trechos em que a preocupação discursiva do autor em
articular estes dois fatores explicativos aparece. Observemos a seguinte passagem na qual Benjamin toma como
exemplo uma fotografia do escritor Franz Kafka quando criança:
Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido. Havia uma aura em torno deles, um meio que atravessado por seu olhar lhes dava uma sensação de plenitude e segurança. Mais uma vez existe para isso um equivalente técnico: o continuum absoluto da luz mais clara à sombra escura. 62
Nesta passagem, uma periodização é esboçada a partir da abordagem comparativa entre as fotografias.
Dentro desta periodização um ‘tempo anterior’ é evocado através da alusão às primeiras fotografias - “em que os
homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e perdido” - para em seguida
apresentar o seu correspondente técnico - “o continuum absoluto da luz mais clara à sombra escura”.
Observemos, que desta forma a interpretação fisionômica das imagens fotográficas é complementado pela análise
técnica da fotografia, e vice-versa.
Desta forma a aura enfatizada no trecho como “um meio que estimula transparecer segurança e plenitude
no olhar dos retratados”, refere-se não somente a um tipo de fotografia específica, mas também a um período
histórico determinado do qual a fotografia torna-se médium-de-reflexão. 63
A seqüência do ensaio torna mais clara esta perspectiva ao descrever a aura nas primeiras fotografias:
É nesse círculo de vapor que às vezes circunscreve, de modo belo e significativo, o oval hoje antiquado da foto. Por isso salientar nesses incunábulos da fotografia sua ‘perfeição técnica’ ou seu ‘bom gosto’ é um erro
62 BENJAMIN, W. Pequena história da fotografia. In: Obras Escolhidas Vol. I: Magia e Técnica, Arte e Política.. São Paulo: Brasilense, 1996. p. 98. 63 “(...)Na sua pequena construção/montagem da história da fotografia, Benjamin analisa simultaneamente seu objeto como histórico e como médium-de-reflexão: está interessado em algo mais do que a história da fotografia; antes deseja compreender as questões históricas ou filosóficas por elas suscitado(...)”.PALHARES, Taisa. Op. Cit. p. 25.
23
de interpretação. Essas imagens nasceram num espaço em que cada cliente via no fotógrafo, antes de tudo um técnico da nova escola, e em cada fotógrafo via no cliente o membro de uma classe ascendente, dotado de uma aura que se refugiava até nas sobrecasacas até nas dobras da sobrecasaca ou da gravata lavallière. 64
A aura, em sua última aparição, diz respeito a uma época - primeira metade do século XIX - na qual a
burguesia, se encontrava em processo de ascensão social, acompanhada assim pelos novos produtores de imagens
e pelo desenvolvimento técnico subjacente. Neste sentido, o declínio da aura é percebido como um processo
histórico composto por relações interdependentes. O discurso de Benjamin articula estas esferas históricas
destacadas, estabelecendo na aura o ponto convergente da construção do diagnóstico.
Na seguinte passagem o autor aponta a invenção de uma nova objetiva através da qual se exclui das
fotografias o continnum da luz mais clara por sobre a sombra mais escura, elemento característico nas primeiras
fotografias: “(...) essa mesma aura que fora expulsa das imagens graças à eliminação da sombra por meio de
objetivas de maior intensidade luminosa, da mesma forma que ela fora expulsa da realidade, graças à
degenerescência da burguesia imperialista.” 65
Seguindo esta argumentação de Benjamin, podemos observar que a luz da ótica que agora invade partes do
objeto antes imersas na penumbra, indica um movimento de sobreposição técnica do aparelho fotográfico. Este
rompe um certo mistério componente da aura, da mesma forma que, o triunfo da burguesia em sua fase
Imperialista – segundo a tese histórico-sociológica de Benjamin – culmina na decadência ético-moral desta. 66
Cabe a questão: poderíamos destacar desde já o declínio da aura enquanto processo de
fragmentação/desencantamento, tal como se encontra comumente expresso no contexto intelectual alemão da
crítica à Modernidade/Zivilisation?
Podemos notar através das referências ao declínio do espaço-tempo dilatado e do mistério das primeiras
fotografias, processos sociais semelhantes àqueles descrito por Max Weber, Georg Simmel, Oswald Spengler e
outros intelectuais do início do século XX. Em realidade as modificações diagnosticadas na fotografia, expressam
transformações operadas na sociedade do século XIX e XX como um todo, sendo a Modernidade,relativa ao
desenvolvimento técnico , o advento da sociedade de massa e o processo de urbanização, o referencial que
resumiria estas transformações.
A presença de certo tom nostálgico, que por vezes dita as referências de Benjamin a um “tempo anterior” à
consumação das transformações da Modernidade, indicam a proximidade do autor ao contexto alemão da crítica a
Zivilsiation.
64BENJAMIN, W. Pequena história...1996. p.99. 65 Idem.
24
Tais referências pesarosas ao declínio deste “tempo anterior” já se encontram expressas em relação à
fotografia do jovem Kafka. De todo modo, seria no rosto humano presente nas primeiras fotografias, que
Benjamin observaria o ultimo vestígio deste “tempo anterior”:
Mas na fotografia surge algo de estranho e novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não extinguir-se na ‘arte’.67
Portanto, nas primeiras fotografias o rosto humano denotaria ainda certo aspecto misterioso e irredutível,
cujo declínio nas fotografias subseqüentes intencionou-se ocultar - daí encontrarmos nas fotografias do jovem
Kafka o cenário repleto de cortinas, colunas e palmeiras, artifícios forjados visando o desvio de foco do rosto
“emudecido”. A aura verdadeira aparece de todo modo aproximada tanto daquela singularidade expressiva
captada no rosto humano, quanto da temporalidade duradoura. Desta forma, como no modelo da crítica à
Zivilisation, na qual o advento da sociedade de massa e o desenvolvimento técnico culminam no desencantamento
do mundo, as fotografias, sobretudo a partir de 1880, expressando a intensificação do ritmo industrial, e da
massificação na sociedade, viria perder suas qualidades de “mistério”, “singularidade” e “durabilidade”. A aura na
fotografia sintetizaria em um primeiro momento a concepção de desencantamento e fragmentação na
Modernidade.
2.3 Cinema e Fotografia: Fragmentação
Em “Obra de Arte...” encontramos tanto o alargamento dos referenciais do conceito de aura, quanto
também à radicalização da concepção de dissolução da obra de arte e dos conceitos a ela veiculado. Podemos
primeiramente retomar a definição direta de aura encontrada tanto em “Pequena História da Fotografia” quanto em
“Obra de arte...”: “Em suma o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a
aparição única de uma coisa distante por mais próxima que ela esteja”.68
Na seqüência de cada ensaio uma mesma metáfora é utilizada apresentando pequena diferenciação num e
noutro texto: “Observar, em repouso numa tarde de verão uma cadeia de montanhas significa respirar a aura dessas
montanhas, desse galho”. 69
67 BENJAMIN, W. Pequena história...1996. p.93. 68BENJAMIN, W. Pequena história...1996. p.101. ; BENJAMIN, W. Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade. In: Obras Escolhidas Vol. I: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasilense, 1996.p.,170. 69 BENJAMIN, W. Obra de Arte... 1996..p.170; Em “Pequena História da Fotografia” encontramos uma pequena diferenciação: “Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho.”. BENJAMIN, W. Pequena
história da fotografia..p.101.
25
Temos em vista a partir destas passagens explicativas o quadro referencial esboçado por Benjamin: o que
se apresenta distante e único (galho e montanhas) por mais próximo que se encontre (a sombra do galho e a
imagem da montanha). As primeiras fotografias, em seu tempo-espaço distendido, contemplariam justamente este
distanciamento exigido na aura.
No trecho subseqüente exposto nos dois ensaios, podemos observar de forma explícita a relação entre a
sociedade de massa, e o declínio das dimensões espaço-temporais necessárias à conformação da aura:
Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da ‘aura’. Ele deriva de duas circunstâncias estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade técnica. 70
Ora, o advento das massas e o desejo de apropriação pelo qual estas são motivadas, muda o caráter da obra
de arte tradicional que até então se pautara por um certo distanciamento em relação ao público. Neste sentido,
como já fora referenciado, a temporalidade duradoura que permeava as primeiras fotografias indicam não somente
a limitação técnica condicionante de uma época, mas também uma sociedade ainda não totalmente massificada.
Da mesma forma, a ótica inventada em finais do século XIX, não condiz apenas ao desenvolvimento técnico da
fotografia, mas ela mesma compõe o desejo de apropriação ao expor luz sobre partes dos objetos que antes se
encontravam na penumbra.
Benjamin, vale ressaltar, apresenta sobretudo neste caso teses próximas àquelas levantadas por Max Weber
nos termos de desencantamento do mundo. Pois,se para Weber o processo de racionalização significa a
antecipação do domínio do homem por sobre os fenômenos, ao invés de se relegar a absorção em esferas mágicas;
em Benjamin o ímpeto a apropriação(domínio) pelo qual se conduz as massas e a técnica moderna, também
obstruem as esferas mágicas e misteriosas. A reprodutibilidade técnica da obra de arte desponta em conformidade
à este processo:
Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução a transitoriedade e a repetibilidade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante no mundo é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único’. 71
70 BENJAMIN, W. Obra de Arte... 1996.p.,170. Em “Pequena História da Fotografia”. “Mas fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do homem contemporâneo, quanto a superação do caráter único das coisas, através da sua reprodução”. BENJAMIN, W. Pequena história... 1996..p.101. 71 BENJAMIN, W. Obra de Arte na Era... p. 170.
26
Neste sentido, sobretudo em “Obra de Arte...”, aprofunda-se um aspecto diretamente relacionado ao
declínio da aura na fotografia e à sua ausência no Cinema: a transformação das percepções e sensibilidades na
sociedade Moderna.
Tal diagnóstico encontra-se inserido dentro de uma perspectiva ampla do autor: “no interior de grandes
períodos históricos a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo
de existência.” 72
O ímpeto da massa em “tornar o distante próximo” e superar “o caráter único de todas as coisas” refere-se
às alterações nas formas de percepção correlatas ao cotidiano social permeado pelas máquinas, pela
industrialização e pela massificação. O cinema, em seu processo radical de contração do espaço-tempo por meio
das repentinas trocas de imagens, tornar-se-ia instrumento ideal de treino para o espectador submetido em seu dia-
dia ao choque do tráfico de carros e multidões. 73
Tais observações sobre o choque na sociedade Moderna serão alguns anos mais tarde destacadas de forma
mais generalizada nos ensaios sobre Charles Baudelaire.
Em “Sobre Alguns Temas de Baudelaire”(1940), por exemplo, Benjamin cita uma pequena prosa de
Baudelaire na qual um poeta é representando perdendo sua auréola ao pôr-se a enfrentar o tráfico vertiginoso de
uma grande cidade. 74 Em realidade Benjamin reconhece o próprio Baudelaire no século XIX como representativo
deste personagem. A seguinte afirmativa encontrada em “Sobre Algumas Temas em Baudelaire” pode ser
interpretado neste sentido: “A experiência do choque é uma das que se tornaram determinantes para a estrutura de
Baudelaire.”75
Assim, três anos após a redação de “Obra de arte...”, Benjamin destacará a relevância da “experiência”
moderna do choque na estruturação íntima do sujeito. Em “Obra de Arte...”, - resguardando as devidas diferenças
entre os dois ensaios, sobretudo em relação à apreciação da técnicas - o fenômeno Moderno do declínio da aura é
apresentado também em vista às transformações na constituição da subjetividade operadas nas experiências do
choque.
Neste sentido a massa - que aqui não deve ser entendida como um agrupamento constituído enquanto
classe social - encontra no cinema a forma de arte condizente às modificações da sua estrutura de percepção.
Benjamin, em uma das passagens mais polêmicas do ensaio “Obra de arte...”, afirma que a distração76 seria
a sensibilidade característica do cotidiano na Metrópole Moderna, e em específico, do cinema. Neste sentido, o
72
Ibid., p. 169. 73 BENJAMIN, W. Obra de arte...p.192. 74 Ver: BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do
capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. P. 75 BENJAMIN, W. Sobre Alguns Temas em Baudelaire. p. 112. 76 BENJAMIN, W. Obra de Arte na Era... 1994.p. 191.
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autor destaca no cinema a impossibilidade do espectador realizar a contemplação da imagem tal como ela é
realizada pelo observador de um quadro:
Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme isso não é mais possível. Mas o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem mesmo como um quadro nem como algo de real. A associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseio o efeito de choque provocado pelo cinema (...). 77
A distração seria a sensibilidade relativa à fragmentação da percepção provocada pelos choques
generalizados sofridos na Modernidade. A partir destes caracteres Benjamin pode, destacar as afinidades
fundamentais entre o Cinema e o cotidiano na metrópole moderna:
O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existências mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante numa escala individual, quanto enfrenta o tráfico, e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente. 78
Observemos que o referencial espaço-temporal se encontra explícito na noção de fragmentação. O choque
provocado no Cinema, correlato ao choque sentido cotidianamente na Metrópole Moderna, se estrutura justamente
pela tentativa constante do aparelho perceptivo em apreender imagens dispersas em fragmentos espaço-temporais
mínimos. Se comparado ao diagnóstico da presença e declínio da temporalidade duradoura nas fotografias do
século XIX, poderemos observar que o Cinema do século XX, longamente abordado em “A Obra de Arte...”,
representaria na tese de Benjamin a exacerbação do processo de contração do espaço-tempo em sua correlação ao
processo de industrialização e massificação: Cinema e fotografia serviriam em um primeiro momento 79 como
material de reflexão sobre estas transformações históricas amplas, nas quais a percepção fragmentária fundada no
choque, seria referência fundamental.
Desta forma, a noção de espaço-tempo torna-se tanto referencial na reflexão sobre o aparelho perceptivo
transformado, quanto também sobre a materialidade da obra de arte e sua inserção histórico-social. Podemos notá-
lo na alusão fundamental de Benjamin a reprodutibilidade técnica enquanto estrutura inerente ao processo de
produção do Cinema; neste, como aponta o autor, banaliza-se o aqui e agora da obra de arte, omiti-se o fenômeno
único que se apresentaria numa relação espaço-temporal específica, e de todo modo, possibilita a apreensão
invariável do semelhante, no mesmo sentido que, no cotidiano da Metrópole Moderna a individualidade se torna
obsoleta na visão e no choque da amorfa massa humana em trânsito. Fundada em uma trama espaço-temporal a
77 BENJAMIN, W. Obra de Arte na Era... 1996. p. 192
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aura dissolve-se na reprodução técnica do Cinema e na modificação da percepção humana engendradas na
Metrópole Moderna.
2.4 Conformação e declínio da tradição
Portanto em “Obra de arte...”, o declínio aura apresentado tanto em sua ênfase no “aparecer” e “construir-
se” material da obra de arte quanto nas referências às transformações do aparelho perceptivo, denotam aspecto
fundamental não delineado em “Pequena História da Fotografia”: a constatação do declínio da tradição. Nestes
ensaios o declínio da distensão espaço-temporal na percepção e no surgimento material da obra de arte, rompem
aspecto fundamental da tradição: a sua possibilidade de transmissão.
Tal referencial coloca Benjamin, sem dúvida ao lado de outros intelectuais contemporâneos, avaliadores
críticos da Modernidade. De todo modo, já no histórico das publicações da década de 1930 de Benjamin,
encontramos referencial suficiente para abordagem desta temática.
Jeanne-Marie Gagnebin tanto em seu “História e Narração em Walter Benjamin” 80 (1994) quanto no
“Prefácio: Walter Benjamin ou a História Aberta” 81 incluso no volume I das “Obras Escolhidas”, já destacara
como problemática central nos ensaios da década de 1930 de Benjamin, a questão do declínio da transmissão da
tradição. Tal referencial demonstraria aspecto comum dos ensaios de Benjamin dedicados à literatura de Franz
Kafka e Marcel Proust, e àqueles como “Obra de arte...”, e “Experiência e Pobreza”, no qual encontramos
explicitado os conceitos de experiência ( Erfahrung), narrativa e aura. Seria ainda comparando “Obra de arte...”
ao “O Narrador” que Gagnebin destaca a difusão da questão do declínio da tradição e sua transmissão no
pensamento de Benjamin:
O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e experiência comuns que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligado a um trabalho e um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem. A degradação da Erfahrung [experiência], descreve o mesmo processo de fragmentação e de secularização que Benjamin, na mesma época, analisa como a ‘perda da aura’ em seu célebre ensaio sobre ‘A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica’. 82
Observando tais considerações podemos notar em passagem fundamental do “Obra de Arte...” a relação
expressa entre a transmissão da tradição e o referencial espaço-temporal:
A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição. Sem dúvida, essa tradição é algo de muito vivo, de extraordinariamente variável. Uma antiga estátua de Vênus, por exemplo, estava
80 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração em Walter Benjamin.Campinas: Editora Perspectiva, 1994. 81 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:Editora Brasiliense, 1996. 82 Ibid. p. 12.
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inscrita numa certa tradição entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média, quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era comum às duas tradições, contudo, era a unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura. 83
Esta especificidade espaço-temporal do “aparecer” da obra de arte, possibilitaria a transmissão ou
renovação dos sentidos vinculados ao objeto material. Neste sentido, na obra de arte reproduzida tal possibilidade
não ocorreria porque a própria materialidade do objeto se encontraria dispersa no espaço-tempo, inibindo a
projeção da tradição em sua autoridade. O ímpeto do “homem contemporâneo” em “tornar próximo” seria ainda a
sensibilidade correlata ao declínio da especificidade espaço-temporal da materialidade da obra de arte, e à
fragmentação/perda dos sentido vinculado a esta materialidade.
Em “O Narrador” (1936)- ensaio aludido pelo próprio autor como complementar ao “Obra de arte...”,-
podemos observar problemática similar. Neste caso a noção de espaço-tempo distendido aloca-se nas figuras dos
tipos-ideais portadores da narrativa tradicional: o viajante e o camponês.
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presente esses dois grupos. ‘Quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escuta com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. 84
Observemos que os dois principais grupos representativos da narrativa tradicional desenvolveram-se a
partir de duas formas de distensão: o camponês pela temporalidade, em seu vínculo ao passado de sua região; e o
marinheiro pela espacialidade, originada do distante percorrido em suas viagens. Nicolai Leskov, o escritor russo
ao qual o ensaio dedica análise, é reverenciado justamente por se encontrar “à vontade tanto na distância espacial
como na distância temporal.” 85
Este referencial de narrativa tipicamente romântico86 corrobora ainda suas afinidades à crítica da
Zivilsation ao destacar-se no advento da informação no jornal, elemento fundamental do declínio do espaço-tempo
necessário à transmissão da experiência/tradição:
Villemessant, o fundador do Fígaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. “Para meus leitores”, costumava dizer, “o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma
83 BENJAMIN, W. Obra de Arte na Era... 1996. p. 171. 84 BENJAMIN, W. O Narrador. Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:Editora Brasiliense, 1996. P.190 85 A atração exercida pela literatura russa entre os românticos capitalista fora ressaltada por Löwy.r Ver: LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. A Evolução Política de Lukács. São Paulo: Lech, 1979. p.22. 86 Vale ressaltar que Benjamin cita explicitamente o “Teoria do Romance” de Georg Lukács, autor destacado por Löwy como inserido na critica romântico anticapitalista.
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revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos.87
A “proximidade” pela qual se interessa o leitor do jornal, expressa ainda a desagregação daquele espaço-
tempo distendido necessário a conformação da experiência/tradição. Neste sentido seria ainda em caracteres
relativos à apropriação/proximidade exigido na sociedade de massa que encontraremos elementos relativos ao
processo de desencantamento do mundo identificados no declínio da narrativa. A exclusão do miraculoso, e a
ânsia pela apropriação através da verificação imediata, expressam na informação-sobretudo naquela presente nos
jornais - processo já identificado na fotografia e no cinema:
O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estanhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesma que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso é indispensável que a informação seja plausível. 88
Portanto, principalmente no Cinema e no jornal encontramos o fundamento comum de ruptura da
transmissão da tradição na sociedade de massa. As balizas deste diagnóstico são encontradas nos conceito de
aura, narrativa e experiência (Erfahrung), pelos quais sobressai novamente referencial fundamental da abordagem
da modernidade em Benjamin: o espaço-tempo.
Logo, apesar de antagônicos em suas apreciações, a “Obra de Arte...” e “O Narrador” enfatiza diagnósticos
históricos similares. Convergem, na concepção de fragmentação e desencantamento do mundo na Modernidade,
referencial fundamental a critica da Zivilisation, seja ele vinculado à elite acadêmica alemã, seja aos círculos
literários conservadores. Em particular “O Narrador”, enfatiza de forma até certo ponto nostálgica, referencias já
comuns à sociologia alemã desde seu período de formação, em finais no século XIX. Neste sentido é que podemos
observar as “atividades artesanais”, as “comunidades” e o “camponês”, elementos “pré-capitalistas” e “pré-
industriais” destacados por Benjamin como fundamentais na constituição social da narrativa plena. Além do
“Teoria do Romance” de Georgy Lukács, seria possivelmente destacar a obra inaugural de Ferdinand Tönnies
“Comunidade e Sociedade”, que viria constituir-se balizamento fundamental destas assertivas. 89 Todavia, será
ainda pelo referencial de espaço-tempo que observarmos tanto um dos cernes da proximidade de Benjamin aos
intelectuais vinculado à critica da Zivilisation, quanto também núcleo que permite agrupar determinados ensaios
e conceitos do autor.
87 BENJAMIN, W. O Narrador. 1996.p.202. 88
Ibid., p. 203 89 Olgária Chain Matos destaca a influência da obra de Tönnies, ao lado da Max Weber, como decisiva entre os membros da Escola de Frankfurt. Ver: MATOS, O. Introdução. In: Teoria Critica I. São Paulo. p.XV.
31
Como pode-se observar em “Pequena História da Fotografia” (1931) “Obra de Arte”(1936) e “O
Narrador”(1936) ora o ‘misterioso’ ora o “miraculoso” ,se encontram relacionados ao espaço-tempo distante na
conformação da aura, da narrativa plena e da experiência (Erfahrung). No entanto, não somente estes aspectos
do distante se mostram em declínio com o advento da sociedade de massa e o desenvolvimento técnico.
Especificamente nos dois últimos ensaios,como observamos, o declínio do distante significa também a decadência
da tradição, em seu fundamento de transmissão.Todavia tanto num quanto noutro sentido a perda do distante na
Modernidade, sintetiza a noção de ruptura pela qual Benjamin destaca este período histórico como um todo.
Se poder-se-ia identificar esta noção de ruptura em Benjamin sob o signo geral do desencantamento do
mundo/fragmentação tal como é apontado presente em Alfred Weber, Max Weber, Georg Simmel , Hugo
Hoffmansthal e tantos outros intelectuais de sua geração e de geração precedente, temos ainda de observar que o
autor, se atentara na década de 1930 para a possibilidade um falso “encantamento” observado no processo de
interiorização burguês, na estetização da guerra e da tecnologia pelo fascismo- em particular pelo fascismo alemão
através do linguajar da Kultur- e pelas elaborações teóricas da “Filosofia da Vida”. Desta forma o capitulo
seguinte analisa em um primeiro momento o “Teorias do fascismo Alemão” (1930), o “Experiência e Pobreza”
(1933) e novamente “Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), e um segundo momento o
início de “Sobre Alguns temas em Baudelaire”(1939/1940), tendo em vista a noção de ruptura da Modernidade
em Benjamin, a partir de seu posicionamento em seu contexto intelectual.
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3. Modernidade “encantada”
Como podemos observar o pensamento de Benjamin durante década de 1930, em larga medida se aproxima
à perspectiva de Modernidade disseminada no contexto alemão pelo referencial da Zivilisation. Contudo, se esta
noção de Modernidade fora abordada fundamentalmente de forma pessimista ou trágica, como se apresenta em
Max Weber, Alfred Weber, e Georg Simmel - para citar aqueles mais comedidos - Benjamin em determinados
ensaios, não apenas assume os referenciais típicos da Zivilisation, mas também busca construir o seu modernismo
a partir destes. Vide a tese do “declínio da experiência” ou do “declínio da aura”, respectivamente presente em
“Experiência e Pobreza” (1933) e “Obra de Arte...” (1936), as quais apesar de se expressarem em tom por vezes
pessimista, delineiam em seguida o modernismo econômico, técnico e estético.
Segundo Löwy, a “Experiência e Pobreza” e a “Obra de arte...”, teriam marcado um curto período (1933-
1935), no qual Benjamin havia adotado provisoriamente o modelo desenvolvimentista técnico divulgado pela
URSS. Benjamin viria a abandoná-lo em 1936, na mesma época em que se revelaram as expurgações organizadas
por Stalin90. Tal hipótese, no entanto, se mostra limitada na medida em que não se leva em conta nem a
proximidade destes ensaios àquelas propostas de técnica e estéticaa já esboçadas em Rua de Mão Única (1926),
como também não coloca em relevância as afinidades de “Experiência e Pobreza” e “Obra de Arte...” aos ensaios
posteriores a 1936.
Habermas, por sua vez, destaca que, se o modernismo de Benjamin, até certo ponto oscilante, aponta para
uma arte não-aurática fundada na reprodução técnica e no aparelho perceptivo modificado, seria sobretudo porque
o autor observa nestes o potencial de uma felicidade profana generalizada, no qual não se faz necessário articular
elementos religiosos ou tradicionais91. O risco que se corre, e aqui se marca enfaticamente as oscilações de
Benjamin, seria de que, com o esfacelamento da tradição e de sua transmissão, os significados projetados, os
conteúdos semânticos e suas experiência se desgarrassem, não possibilitando sua transmissão e orientação das
gerações futuras:92 “Benjamin era visivelmente da opinião que o sentido não é um patrimônio que se possa
90 “Poderíamos adiantar a seguinte hipótese: os artigos escritos em 1933-5, nos quais se pode encontrar uma avaliação altamente favorável do progresso tecnológico – particularmente “Erfahrung und Armut”[Experiência e Pobreza], “O autor como Produtor”(1934) e “A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”- são também os que manifestam um sustentáculo acrítico em relação à URSS, cuja ideologia nessa época(Segundo plano Quïnqüenal) era mais do que nunca um aversão ferozmente industrialista e produtivista do marxismo. (...) O fim desse período de adesão experimental ao progressismo do tipo soviético parece coincidir com os Processos de Moscou de 1936, recebidos com perplexidade por Benjamin.”. LÖWY, Michael. Redenção e Utopia :O judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p.95-96. 91 “É por isso que Benjamin chama de profana a iluminação que ele exemplifica através dos efeitos das obras surrealistas, que não são mais arte autônoma, mas manifestação, palavra, documento, bluff, e falsificação.(...) A experiência é profana porque é exotérica.(...) As opiniões políticas obrigam Benjamin, em vista do fascismo ascendente, a romper com aquele esoterismo da verdade, para o qual o jovem reservara o conceito dogmático de doutrina. ”HABERMAS, J. Critica Concientizante ou Salvadora – A atualidade de Walter Benjamin. In: Sociologia. São Paulo: Atica, 2001. p.189-190. 92 Ibid.,p., 191.
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multiplicar e que as experiências de convívio sadio com a natureza, com os outros e com o próprio eu não podem
ser produzidos arbitrariamente”93.
Desta forma, se Benjamin diagnostica os potenciais e riscos no declínio da transmissão e da conformação
da tradição, encontraremos, segundo aponta Fernando Gatti, sobretudo na segunda versão alemã de “Obra de arte
na era...” e nos ensaios sobre Franz Kafka e Bertolt Brecht, o corpo enquanto núcleo de uma nova estética forjada
a partir das transformações diagnosticadas na Modernidade94. Não se atendo estritamente a esta perspectiva
específica, observamos de forma geral em Benjamin, para além de seu romantismo capitalista, também o seu
modernismo técnico e estético. Ou seja, a proposta de modelos técnicos e estéticos forjados a partir do diagnóstico
fundamental do declínio da tradição.
As aparentes contradições entre aqueles ensaios que acentuaram de forma mais otimista a possibilidade do
“novo”, e aqueles que se ativeram a negatividade do processo de declínio da tradição, fora interpretado de forma
diversa, como pode ser notado na comparação entre as perspectivas de Michael Löwy, Jürgen Habermas e
Fernando Gatti. Não é proposto no presente trabalho aprofundar de forma detalhada este controverso debate, já
explorado em grande medida na recepção do pensamento de Benjamin.
No presente capítulo intenciona-se, analisar a perspectiva de Benjamin face à
fragmentação/desencantamento na Modernidade, tendo-se em vista sua crítica as posturas reunidas aqui o sob
signo do “falso encantamento” ou “falsa superação” da Modernidade. As análises se desenvolvem a partir dos
seguintes diagnósticos de Benjamin: a estetização da guerra tecnológica no fascismo; o processo privatização e
interiorização da identidade na burguesia; a “Filosofia da Vida”, e seu intuito em atingir verdadeiro referencial de
experiência.
O primeiro diagnóstico é abordado a partir de “Teorias do Fascismo Alemão” (1930) e o “Obra de Arte...”
(1936) contendo ainda breve referência à “Pequena História da Fotografia” (1931). Trata-se fundamentalmente de
observar a formatação do modernismo técnico e estético de Benjamin tendo em vista sua crítica ao fascismo, e em
particular ao fascismo alemão, e sua apropriação do linguajar da Kultur/Zivilisation.
O segundo diagnóstico é analisado em “Experiência e Pobreza” (1933) em vista a apologia de Benjamin a
uma nova forma de pensamento e estética que se insurja a partir do esfacelamento de estruturas sociais
tradicionais. Tem-se em vista ainda a construção do seu conceito de experiência (Erfahrung).
O terceiro diagnóstico é abordado a partir de “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” (1939/40),
desenvolvendo a crítica de Benjamin ao conceito de vivência (Erlebnis), tendo-se em vista a sua apropriação pelo
93 HABERMAS, J. Op. Cit., p. 191. 94 “O objetivo de Benjamin é trazer o corpo para o domínio da história por meio da mímesis enquanto jogo, compreendendo-o como um médium histórico de percepção e recepção da técnica.” GATTI, Luciano. O foco da critica: Arte e Verdade na Correspondência entre Adorno e Benjamin. Campinas, SP :[s. n.], 2008
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filósofo alemão Wilhelm Dilthey. Observa-se neste sentido a conformação da especificidade do conceito de
experiência (Erfahrung) em Benjamin.
Nas três abordagens busca-se observar o posicionamento assumido por Benjamin frente a Modernidade, a
partir de sua projeção critica. O fundamento metodológico se apresenta a partir da hipótese de que tornar-se-ia
melhor compreensível as variações e permanências do posicionamento de Benjamin frente a Modernidade tendo-
se em vista os referenciais político-sociais e filosóficos que encontramos representados nos ensaios do autor.
Observemos brevemente estes referenciais.
Se por um lado, Modernidade significou predominantemente desencantamento e fragmentação no contexto
intelectual alemão das primeiras décadas do século XX, por outro, podemos entrever não tão menos numerosas
correntes que expressaram certo entusiasmo frente ao desenvolvimento técnico e o advento das grandes
metrópoles. Se tomarmos ainda o contexto europeu, seria sem dúvida a burguesia que a partir do século XIX, viria
a defender com maior entusiasmo Modernidade sob o signo do “progresso”. Frente a este ideal Benjamin
direciona parte de sua crítica, a qual se encontra exposta em um de seus textos mais conhecidos o “Sobre o
Conceito de História”:
(...) O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável (...) 95
Teria sido ainda na “Obra das Passagens” que Benjamin entrevera no século XIX o “encantamento” da
burguesia na Modernidade: as lojas e seus produtos provindos de todas as partes do mundo; os interiores e a
onipresença dos objetos pessoais marcando a identidade do portador; as ruas e as luminárias que se confundem as
estrelas. Em suma, a Modernidade junto à burguesia sonha. O sonho da emancipação humana por meio do
desenvolvimento automático do saber e da técnica seria um destes devaneios. No entanto, não seria
exclusivamente a burguesia progressista que sonha frente à técnica.
Os movimentos fascistas que proliferaram por toda Europa na primeira década do século XX, também
obtinham na técnica sua fonte de “encantamento”. Em especial na Itália e na Alemanha os ideólogos fascistas da
técnica encontraram nesta uma nova beleza inerente a Modernidade. O manifesto futurista do italiano F. Marinetti
expressa simbolicamente este apelo disseminado após a Primeira Guerra Mundial:
Nós queremos cantar o amor ao perigo, o exercício da energia e da temeridade. Os elementos essenciais da nossa poesia serão a coragem, a audácia e a revolta. Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade
95 BENJAMIN, W. Sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política.. São Paulo: Brasilense, 1996. p. 226.
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pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco. Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade... Um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a ‘Vitória de Somotrácia’.96
Na Alemanha pós 1ª Guerra Mundial haveria ainda certa especificidade na qualificação da técnica: a sua
transposição do desprezado âmbito da Zivilsation para o nacionalismo do linguajar da Kultur.
A realização dos modernistas reacionários dentro da revolução conservadora foi haverem transformado em virtude a necessidade da adoção da técnica, transformação que realizaram ao transferir a tecnologia da esfera da Zivilisation para a esfera da Kultur. Ao fazê-lo podiam abraçar a tecnologia sem adotar uma visão de mundo racionalista em política e em cultura. O culto à técnica que resultava ia muito além da pragmática resignação à um mal inevitável. Possuía o mesmo fervor emocional presente no ânimo antitécnoloogico por todo o espectro político de Weimar.97
Desta forma, a técnica deixaria de significar desencantamento do mundo e fragmentação, para assumir em autores
como Ernst Jünger, o significado romântico-nacionalista de “totalidade” e beleza. Observemos o seguinte trecho:
“Nossa geração é a primeira que começa a se reconciliar com a máquina ver nela não somente o útil, mas também
o belo”. 98 Ou então:
O campo e a nação/.../ devem resignar-se à seguinte necessidade: precisamos compreender o poder da metrópole e nele nos infiltrar, nas forças do nosso tempo – a máquina, as massas e o trabalhador. Pois nelas é que reside a energia potencial tão vital para o espetáculo nacional do amanhã (...). Tentaremos por de lado as objeções de um romantismo mal orientado que encara a máquina como algo em conflito com a Kultur. A máquina e o americanismo são duas coisas diferentes. (...) 99
Desta forma o referencial conservador da Kultur deixava os campos “bucólicos”, para habitar as massas, as
Metrópoles, as máquinas e, sobretudo, os frontes de batalhas das guerras tecnológicas. Jeffrey Herf denominara
“Modernistas Reacionários” os intelectuais alemães que aderiram à esta transposição
Por fim, haveria ainda correntes filosóficas disseminadas e reunidas sob o termo “Filosofia da Vida”.
Incluindo desde Ludwig Klages à Friedrich Nietzsche, a “Filosofia da Vida” esteve estritamente vinculada à crítica
da razão em prol da valoração de “experiências” primordiais. Seus referenciais foram ainda freqüentemente
vulgarizados e assimilado pelas correntes nacionalistas presentes no entre-guerras(1918-1939) alemão.
Tais seriam a referencias que percorrem os ensaios de Benjamin ao longo da década de 1930. Analisamos
agora como o posicionamento de Benjamin frente à Modernidade se conforma a partir destes referenciais.
96MARINETTI, F. Manifesto do Futurismo. Apud PEIXOTO, Nelson B. A sedução da barbárie: O Marxismo na Modernidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.p. 17. 97 HERF, Jeffrey. Modernismo Reacionário. São Paulo: Editora Ensaio, 1993.p.56. 98 JÜNGER, E. Feueur und blut: Ein Kleiner Ausschitt dem grossem Schlacht, Berlim, 1929; reeditado em Stuttgart, 1960. P.81. Apud.
Ibidem., p.85. 99 JÜNGER, E, Grosstadt und Land. Deutsches Vokstrum, n.8. 1926 pp. 557/581. Apud HERF, Jeffrey. Modernismo Reacionário. São Paulo: Editora Ensaio, 1993.p.102.
36
3.1 Aura “artificial”: Fascismo e técnica
Poderíamos primeiramente destacar que já em “Pequena História da Fotografia” (1931) Benjamin apontara
para a possibilidade do “falso encantamento” na Modernidade.
Os fotógrafos posteriores a 1880 viam como sua tarefa criar a ilusão através de todos os artifícios do retoque, especialmente pelo chamado off-set; essa mesma aura que fora expulsa da imagem graças à eliminação da sombra por meio de objetivas de maior intensidade luminosa, da mesma forma que ela era fora expulsa da realidade, graças à degenerescência da burguesia imperialista.100
De todo modo, transparecendo certo tom nostálgico,como mencionado no 1° capitulo, Benjamin ressaltara
o declínio da aura verdadeira das primeiras fotografias. No entanto, o autor não advoga a volta às condições
sociais e técnicas anteriores ao período de industrialização e massificação na sociedade. Antes, Benjamin através
do termo “ilusão da aura”, critica a tentativa de se estabelecer este falso “encantamento”, seja através do retoque
nas fotografias - como se encontra expresso na citação acima- seja pela implementação do cenário retratado. Neste
sentido visava-se nas fotografias tanto restituir o mistério usurpado pelo desenvolvimento técnico101 quanto
obscurecer nelas a decadência social transparecida na fisionomia dos retratados. Contra esta falsa aura Benjamin
celebrará as fotografias não-aurática do francês Atget de fins do século XIX:
Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidades; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda. 102
Benjamin, através destas fotografias não-auráticas, busca afirmar o potencial da fotografia em vista às suas
afinidades as transformações operadas na Modernidade. Por conseguinte, o autor identificará na fotografia uma
não-arte, compreendida em termos de cognição e adaptação103. Neste sentido são apontadas as fotografias de
Sander:
Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos. Por outro lado, teremos também que olhar os outros. A obra de Sander é mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos.”104
100 BENJAMIN, W. Pequena História da Fotografia. In: Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasilense, 1996.P. 99. 101BENJAMIN, W. Pequena História.... p. 100. 102
Ibid., p. 101 103
Ibid., p. 110 104
Ibid., p. 103
37
Esta função secularizada da fotografia demonstra tanto a concepção de desencantamento do mundo em
Benjamin, quanto à recusa a uma falsa superação das condições históricas diagnosticadas. Antes o autor busca
observar as possibilidades estéticas alocadas nas transformações sociais analisadas.
Desta forma, a fotografia não-aurática, desvinculada do distante espaço-temporal, encontraria seu
potencial na construção, humana e artificial, ao invés de estabelcer-se no referencial de “criatividade” comumente
associado à arte dita tradicional. 105 Neste caso o autor refere-se ao caráter “comercial” da fotografia quando
estruturada a partir da noção de “criatividade”:
Essa fotografia está mais a serviço do valor de venda de suas criações por mais oníricas que sejam, que a serviço do conhecimento. Mas, se a verdadeira face dessa ‘criatividade’ fotográfica é o reclame ou a associação, sua contrapartida é o desmascaramento ou a construção. 106
O aspecto ainda cultual, centrado em uma transcendência individual, presente na noção de “criatividade”,
adquiriria caráter regressivo na sociedade de massa, pois em larga medida se fazia explorado pelo comércio ao
invés de tornar-se instrumento de cognição.
Em suma, o modernismo de Benjamin radicaliza o referencial da Zivilsation refletindo sobre o potencial
estético correlato as transformações sociais. Através deste Benjamin critica o falso retorno a um “tempo anterior”,
ainda que ponderando de forma nostálgica a respeito do período no qual a sociedade ainda não havia se submetido
em absoluto aos imperativos da industrialização e da massificação. De todo modo, tanto em seu aspecto
tipicamente romântico quanto naquele modernista manter-se-ia em Benjamin a concepção fundamental de
Modernidade enquanto ruptura.
Em “Obra de arte...” a atenção à possibilidade de um falso “encantamento” na Modernidade, expressar-se-
ia como o letimotif das formulações teóricas desenvolvidas ao longo do ensaio. Observa-se já no início deste, as
seguintes orientações a respeito das teses a serem apresentadas:
Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate político. Elas põem de lado numerosos conceitos tradicionais - como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo – cuja aplicação incontrolada, e no momento dificilmente controlável, conduz à elaborações dos dados num sentido fascista. Os conceitos seguintes, novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstância de não serem de modo algum apropriáveis pelo fascismo. Em compensação, podem ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política artística.107
Benjamin, escrevendo já no exílio em 1935/36, busca ressaltar o contexto no qual as elaborações estéticas
adquirem significado evidente no campo político-intelectual. Neste sentido podemos interpretar as ressalvas e
recomendações do autor em relação aos “conceitos tradicionais” da arte. O uso da tecnologia e das mídias 105
Ibid., p. 106 106 BENJAMIN, W. Pequena História....p. 106. 107 BENJAMIN, W. Obra de Arte...p. 166.
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através da reafirmação e criação de tradições míticas conformariam elementos relativos àquela falsa aura já
destacada em “Pequena História da Fotografia”. Como aponta Gatti:
Pois o que entra em declínio com a reprodutibilidade técnica é a aura tradicional, na medida em que seus pressupostos sociais – entre os quais os pressupostos de legitimação da sociedade burguesa como a ideologia do indivíduo livre – entram em crise. Tal declínio não constitui, por sua vez, nenhum impedimento à construção, pelo fascismo, de uma aura artificial – a falsa aparência – com os meios técnicos mais avançados. O declínio da aura tradicional e a reauratização artificial pela técnica promovida pelo fascismo não são fenômenos contraditórios (...). 108
Portanto, neste ensaio o modernismo de Benjamin estrutura-se de forma enfática, como já observamos, a
partir da constatação do processo de fragmentação/desencantamento identificado no declínio da aura verdadeira.
Todavia Benjamin entreve ainda a possibilidade do um falso “encantamento”, orientando seu modernismo no
sentido de fazer frente à Modernidade propagada pelo fascismo.
Benjamin, neste sentido renega um falso retorno romântico a uma tradição mítica, tal como na Alemanha
se definira a partir do referencial da Kultur. Todavia o autor observa que tecnologia e os aparelhos mediáticos
seriam instrumentos amplamente empregados na sociedade de massa a fim de se estabelecer uma imagem mítica
da sociedade
Podemos observar a “monumentalização” 109 das massas por meio de sua captação pela lente de filmagem e
de sua ampla projeção, como uma das formas pela qual, segundo Benjamin, o aparelho tecnológico constituiu-se
meio utilizado pelo fascismo no sentido da mitificação da sociedade. 110 Portanto, ao invés de ser notificado
apenas como símbolo do desencantamento e fragmentação da Zivilisation, o Cinema é também observado como
instrumento do “falso encantamento” promovido pelo fascismo. As afinidades entre as massas e os meios
midiáticos modernos seriam ainda o pressuposto para este o “falso encantamento”:
Nos grandes desfiles, nos comícios gigantescos, nos espetáculos esportivos e guerreiros, todos captados pelo aparelho de filmagem e gravação, a massa vê o seu próprio rosto. (...) De modo gral, o aparelho apreende os movimentos de massas mais claramente que o olho humano. Multidões de milhares de pessoas podem ser captadas mais exatamente numa perspectiva a vôo de pássaro.111
O aparelho tecnológico adaptado ao movimento da massa constituir-se-ia em seu potencial, instrumento
apropriável pelo fascismo. Benjamin viria a reconhecer a promoção mítica fascista validada pelos novos meios
108 GATTI, Fernando. Op. Cit., p.224. 109 “Do mesmo modo como o cinema soviético, o fascismo também reconheceu na câmera o primeiro instrumento técnico capaz de fornecer uma imagem dos movimentos de massa. No fascismo, porém, esta imagem não está a serviço da organização e da libertação das massas, como Benjamin afirma da imagem da massa nos filmes de Eisenstein e Pudovkin497, mas de sua desmobilização e controle por meio da monumentalização e naturalização sob a sombra de um líder. É o que se pode ver, em toda sua extensão, nos filmes de Leni Riefenstahl.”. Id. 111BENJAMIN, W. Obra de Arte...p. 195.
39
tecnológicos, através dos termos “estetização da política” e “estetização da guerra”. 112 Através da interpretação
crítica destes termos Benjamin expõe um dos cernes de sua proposta modernista-marxista e de sua crítica à
mitificação fascista: a questão da ordenação social frente ao desenvolvimento técnico.
Comentando o manifesto futurista do italiano Marinetti, e sua aclamação estética da guerra, Benjamin
aponta esta problemática:
Este manifesto tem o mérito da clareza. Sua maneira de colocar o problema merece ser transposta da literatura para a dialética. Segundo ele, a estética da guerra moderna se apresenta do seguinte modo: como a utilização natural das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a intensificação dos recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma utilização antinatural. Essa utilização é encontrada na guerra, que prova com suas devastações que a técnica não estava suficientemente avançada para controlar as forças elementares da sociedade.113
Tais considerações de Benjamin, enfaticamente marxistas, expõem a problemática da “estetização da
guerra” pelo fascismo a partir do referencial da não-utilização plena do potencial da técnica – mais
especificamente das forças produtivas - no interior dos processos sociais. O desafio da harmonização entre técnica
e sociedade teria sido corrompido pelo fascismo através do bloqueio do uso pleno das forças produtivas na
sociedade.
As propostas estéticas de Benjamin compreendem fundamentalmente esta problemática da relação entre
sociedade e técnica. Por conseguinte poder-se-ia observar que as transformações técnicas na obra de arte, são
exploradas por Benjamin em sua correlação as necessidades políticas/cotidianas/perceptivas na sociedade
Moderna. O desafio seria trazer a técnica para o interior dos processos sociais, de forma a conceder à sociedade
moderna elementos que já de antemão a define.
Neste sentido, como já fora observado, Benjamin nota o caráter fragmentário do aparelho perceptivo no
cotidiano da Metrópole Moderna como correspondente no cinema tanto ao choque promovido pelas imagens
transpassadas rapidamente na tela, quanto aos seus fundamentos não-artísticos de montagem. O cinema será, por
fim, extensão libertária da relação cotidiana do homem moderno frente aos aparelhos técnicos. Seria este o
sentido da aproximação que Benjamin enfatizara entre o intérprete do filme e o trabalhador:
O diretor ocupa o lugar exato que o controlador ocupa num exame de habilitação profissional. Representar à luz dos refletores e ao mesmo tempo atender às exigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa. Ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade humana diante do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso. Porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as mesma massas enchem os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em
112 BENJAMIN, W. Obra de Arte...p. 195- 196. 113 Ibid., p. 196
40
que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca esse aparelho a serviço do seu triunfo.114
Esta exigência de harmonização da sociedade à técnica encontraria no cinema um de seus auxiliares no
treino das novas percepções exigidas pela técnica.
O potencial expositivo e aproximativo da obra de arte tecnicamente reproduzíveis, poderia ainda atender ao
ímpeto das massas em absorver o próximo. O distante da “monumentalização” estética oferecida pelo fascismo
como mitificação da imagem das massas, poderia assim ser substituído pela aproximação crítica das massas aos
meios de produção da informação. Benjamin apresenta o exemplo oferecido pela reprodução técnica na imprensa:
Com a ampliação gigantesca da imprensa, colocando à disposição dos leitores uma quantidade cada vez maior de órgãos políticos, religiosos, científicos profissionais e regionais, um número crescente de leitores começou a escrever, a princípio esporadicamente. (...) Hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação uma reportagem. (...) A cada instante, o leitor está pronto a converte-se num escritor.115
Desta forma o processo de desencantamento e fragmentação engendrado no desenvolvimento técnico e no
advento da sociedade de massa, apresentam em contrapartida o potencial emancipatório relativo ao uso pleno das
forças produtivas, à maior acessibilidade aos meios artísticos e à positividade das transformações no aparelho
perceptivo.
Neste sentido, apresentar os balizamentos práticos/teóricos capazes de trazer os implementos técnicos para
o seio dos processos sociais seria forma de responder aos desafios de uma sociedade já transformada e
transpassada pela tecnologia, seja no âmbito estético, político ou econômico. Pesa por fim, a este intelectual de
esquerda, a necessidade de ocupar um campo de antemão explorado pelo fascismo através do encantamento
artificial promovido na mitificação da política, da guerra e das relações sociais.
3.2 Fascismo alemão: Kultur e técnica
Benjamin durante a década de 1930, ao formular seu modernismo estético e técnico ressaltara a
especificidade do fascismo alemão. Segundo aponta Palhares:
(...) Benjamin é um dos únicos pensadores a perceber que, para os intelectuais da direita na Alemanha, a desvinculação da técnica dos ideais da republica era sinônimo de recuperação da alma alemã, e que a revolta contra a racionalização assumia a forma de um culto da técnica.116
114 BENJAMIN, W. Obra de Arte...p. 179 115
Ibid., P. 184 116PALHARES, Taisa. Op. Cit., p. 46. Ver também: HERF, Jeffrey. Op. Cit. p.46.
41
Neste sentido, em “Teorias do Fascismo Alemão”(1930) - escrito como resenha da coletânea de ensaios
“Guerras e Guerreiros”, organizada por Ernst Jünger -, Benjamin direciona parte de sua crítica à mitificação
idealista da Kultur alemã levada a cabo por autores como Ernst Jünger. A transposição do linguajar da Kultur para
o campo de batalha da guerra tecnológica é observada no trecho seguinte:
Precisamos dizê-lo, com toda a amargura: com a mobilização total da paisagem, o sentimento alemão pela natureza experimentou uma intensificação inesperada. Os gênios da paz, que a habitavam tão sensorialmente, foram evacuados, e tão longe quanto nosso olhar podia ir além dos cemitérios, toda a região circundante tinha se transformado em terreno do idealismo, cada cratera produzida pela explosão de uma granada se convertera num problema, cada emaranhado de arame construído para deter a progressão do inimigo se convertera numa antinomia, cada farpa de ferro se convertera numa tese, com o céu, durante o dia representando o forro cósmico do capacete de aço e, de noite, a lei moral sobre nós. Com lança-chamas e trincheiras, a técnica tentou realçar os traços heróicos no rosto do idealismo alemão. 117
Tal mitificação nacionalista-idealista ressaltada por Benjamin pode ser observada no ensaio de Ernst
Jünger, “Mobilização Total” (1930), incluso na coletânea “Guerras e Guerreiros”. Neste ensaio Jünger celebra o
ressurgimento do “espírito alemão” na juventude da Primeira Guerra Mundial:
Se alguém perguntasse a algum desses jovens por que ele se deslocava para o campo de batalha, certamente poderia contar com uma resposta pouco clara. Dificilmente alguém ouviria que se tratava da luta contra barbárie e contra a reação ou da luta pela civilização, pela libertação da Bélgica e pela liberdade dos mares – mas, talvez, alguém escutaria a resposta ‘pela Alemanha’, aquela palavra com a qual os regimentos de voluntários avançaram ao ataque. 118
Verifica-se então, que o termo de Benjamin “estetização da guerra” fora também utilizado para referir-se
aos intelectuais alemães como Jünger, nos quais o ideal da Kultur se encontrava transposto para elementos como a
técnica e a guerra tecnológica Portanto, Benjamin ainda durante a República de Weimar (1918-1933) se deparara
de forma crítica frente a uma concepção de técnica forjada por intelectuais conservadores vinculados à crítica
nacionalista da Zivilisation.
John McCole ressalta a importância destes referenciais na formulação da concepção de técnica em
Benjamin:
The mysticism of war promulgated by Jünger and other ‘habitués of chtonic forces of terror’ was therefore to be taken seriously. In them Benjamin recognized a distinctive form of the radical right’s ideology, one with social consequences more potent than those to be feared from Klages. (…)To counter this attempt to estheticize destruction, Benjamin would have to shown that it was based on a perverted conception of
117 BENJAMIN, W. Teorias do fascismo Alemão. In: Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. p. 70 118 JÜNGER, E. A Mobilização Total. In: Natureza Humana . São Paulo: Vol. 4. janeiro-junho, 2002.p. 207
42
technology, one that that violate its true telos. In effect, Benjamin’s response to Klages’s and Jünger’s very different notions of technology was to work out a theory of Technik of his own. 119
Podemos observar o modernismo técnico de Benjamin desenvolvido diretamente em contraposição à
concepção de técnica fundada nos referenciais da Kultur.
A guerra como abstração metafísica professada pelo novo nacionalismo, é unicamente a tentativa de dissolver na técnica, de modo místico e imediato, o segredo de uma natureza concebida em termos idealistas em vez utilizar e explicar esse segredo, por um desvio através da construção humana.120
Portanto, se em “Obra de Arte...” encontramos aquele ímpeto a aproximação/apropriação desenvolvido na
sociedade de massas e na reprodução técnica, enquanto positivamente condizentes a uma afirmação das forças
sociais contra a mitificação de uma autoridade e tradição, tais propostas aparecem em 1930 direcionadas
criticamente contra a valoração idealista da técnica difundida por autores como Ernst Jünger. Neste sentido, o
modernismo técnico de Benjamin, esboçado de forma mais completa em “Obra de Arte...”, teria sem dúvida sob
seu horizonte a apropriação da técnica realizada na Alemanha por aqueles a quem Jeffrey Herf denominara
“Modernistas Reacionários”.
Com isso, a apologia de Benjamin ao esfacelamento daqueles caracteres auráticos, torna-se melhor
compreensível em vista a contraposição do autor à recorrência à tradições míticas - a-históricas poder-se-ia
afirmar - como forma de fundamentação de autoridade e tradição, cujas modalidades autênticas, seriam, segundo
aponta Benjamin, impossibilitadas de se realizar nas condições sociais da Modernidade. 121 Construir
conceitos/práticas frente à realidade social transformada teria sido a forma pela qual o autor buscou ocupar espaço
gradativamente permeado pelo fascismo, mesmo que as custas do afastamento daqueles fundamentos de
transmissão da tradição, aura e experiência (Erfahrung) referidos de forma nostálgica mesmo em “Obra de
Arte...”, ou posteriormente em “O Narrador” (1936) e “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” (1939/40).
Portanto, a noção de Modernidade enquanto ruptura permanece em Benjamin como fundamento crítico ao
romantismo de autores como Ernst Jünger, no qual a superação da Zivilisation fragmentaria e desencantada se
promovera através estetização da guerra, da tecnologia e da Fronterlebnis (“Vivência do Front”). De todo modo
Jünger oferecia resposta específica à problemática comum da Zivilisation esboçada tanto por Benjamin quanto por
outros autores. Jeffrey Herf aponta esta aproximação de Jünger a outros intelectuais desta geração:
A ode de Junger ao sacrifício é comparável com a que se tem denominado de ‘visão trágica’ da teoria social alemã. Na verdade, Jünger não era teórico social, mas seus escritos tratam de problemas levantados na obra de contemporâneos tais como Max e Alfred Weber, Werner Sombart, Georg Simmel e Georg Lukács. Nas
119 McCOLE , J. Walter Benjamin and the Antinomies of Tradition. New York: Cornell University Press, 1993. p.180. 120BENJAMIN, W. Teorias do fascismo Alemão. 1996. p. 70
43
palavras de Simmel, a ‘tragédia da cultura’ era resultado inescapável da objetivação, no mundo exterior, da intenção e do trabalho subjetivos. O Geist era impotente para tornar mais lento ou transformar o processo de racionalização da vida e cultura sociais. Se alguém traçasse um esquema da teoria social alemã desse período, obteria como resultado um quadro aparecido com o seguinte: Weber e Simmel representavam centro advogando a resignação trágica ao mesmo tempo em que defendiam alguns restos da autonomia individual. 122
Como podemos observar, em contraposição à superação da “tragédia da cultura” 123levada a cabo por
Jünger pelo viés da mitificação da Guerra Tecnológica, Benjamin aprofunda a noção de ruptura na Modernidade,
apresentando seu modernismo fundamentado na proposta de tornar a técnica médium harmônico de estruturas
sociais já transpassadas em todos os âmbitos, pelo desenvolvimento tecnológico. Tal seria sua proposta política,
estética e econômica, frente à Modernidade fragmentada/desencantada e, também. “artificialmente” encantada
pelo fascismo.
3.3 Encantamento burguês
O conceito de experiência (“Erfahrung”), fora comumente apontado ao lado do conceito de aura enquanto
um dos referenciais centrais do pensamento de Benjamin durante a década de 1930. Todavia, retomando a
bibliografia do autor poderemos notar que a formatação deste conceito já se encontra presente em seus textos de
juventude.
Nestes escritos, podemos observar que as discussões encontram-se fundadas em reflexões sobre
paradigmas legados pelo pensamento de Immanuel Kant e pelo projeto Iluminista de forma geral. Olgária Matos,
comentando a principal obra de juventude de Benjamin, o “Sobre o Programa de uma Filosofia Vindoura” (1916),
aponta o diagnóstico da limitação do projeto Iluminista de conhecimento/experiência:
Que o filósofo Kant não tivesse, por exemplo, considerado a experiência religiosa, porque empenhado em liquidar as ‘alucinações de mentes exaltadas’- aquelas que aberrantemente tomavam sobrevivências metafísicas por conteúdos puros das razão (não obstante a obra ulterior Crítica do Juízo) -, ou a experiência lingüística ou diretamente estética, é para Benjamin a prova não da falência do projeto de Kant, mas de quanto esse projeto ainda se ancorava na pobreza da experiência que a época favorecia. O século das luzes afirma Benjamin, no que diz respeito à religião e à história, mostrou-se incapaz de uma filosofia verdadeiramente consciente do tempo e da eternidade, o que limitou o empreendimento kantiano.124
Esta pobreza de experiência é identificada, sobretudo, na adesão do pensamento iluministas aos
paradigmas físico-matemáticos em detrimento às fundamentações histórico-religiosos. Neste sentido o projeto
122HERF, Jeffrey. Op. Cit. p. 104. 123 No presente trabalho referimos a diagnósticos semelhantes pelos termos de fragmentação e desencantamento do mundo 124 MATOS, Olgária. O Iluminismo Visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. p. 132.
44
kantiano, “foi empreendido em confronto com uma experiência reduzida de certo modo ao seu ponto zero” 125.
Dezesseis anos mais tarde em seu pequeno ensaio “Experiência e Pobreza” (1933) - já dentre os textos comumente
apontados em referência ao conceito de “experiência”- Benjamin constatará o declínio da experiência (Erfahrung)
de forma semelhante ao observado em seus escritos de juventude. Neste caso também se identificará o “ponto
zero” da experiência como paradigma de reconstrução:
Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza - penso, logo existo- e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema - uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas (...). 126
Portanto a ênfase na “reconstrução” se apresenta a partir da concepção da Modernidade enquanto ruptura
histórica estabelecida em uma longa duração. Nesta ruptura inclui-se desde o pensamento do século XVII e XVIII
de Descartes e Newton, até a vanguarda cubista no século XX. A condição partilhada de terem que esboçar seus
projetos a partir da pobreza da experiência inerente à sua época.
Portanto tal como, a aura verdadeira, a experiência (Erfharung) encontrar-se-ia, relacionada à tradição.
Com isso, no lugar de se definir como pura fruição individual ou abstração intelectual, o conceito de experiência
(Erfahrung) em Benjamin seria fundado na constituição histórica da tradição.
Desta forma, como já havia sido notificado nos textos de juventude de Benjamin, em “Experiência e
Pobreza” se diagnostica em declínio na Modernidade justamente as condições históricas de realização e
transmissão da experiência/tradição. Dentre os fenômenos relativos esta decadência, o autor refere-se mais
alongadamente a 1ª Guerra Mundial:
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado, silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos.127
O choque moral, e a violência da guerra tecnológica, seriam elementos referenciais no diagnóstico do
declínio da experiência(Erfahrung). O caráter desproporcional da tecnologia é ainda indicado na referência a “esse
monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” 128. Por fim, na discrepância entre as
transformações do presente, e o passado, encontrar-se-ia certo vácuo a respeito do qual o autor questiona-se:
125 Ibidem.,p. 130 – p. 187. 126BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. In: Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política.. São Paulo: Brasilense, 1996. p.,116. 127 Ibid., p.114. 128 BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza . p. 115.
45
Pois qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estímulos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza onde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência no é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza.129
Em suma, Benjamin observa no caráter radical das transformações operadas na sociedade Moderna a
impossibilidade de se orientar no presente pelos fragmentos relegados como “patrimônio cultural”. Neste caso, a
transmissão da tradição/experiência não ocorre em razão das abruptas modificações apresentadas cotidianamente
na Modernidade, tornando-se gradativamente obsoleto o passado e as possíveis orientações providas dele. Como
aponta Jeanne-Marie Gagnebin:
(...) a experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distância entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações transformou-se hoje em abismo porque as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil.130
Se a aura em seu fundamento de transmissão se rompe pelos choques e pela exigência do próximo, a
constituição da experiência na tradição não ocorre pela impossibilidade mesma da conformação da tradição na
Modernidade. A tradição dilui-se inevitavelmente antes de se constituir, assim como a experiência a ela atada.
Todavia, através da aclamação de uma “barbárie positiva” Benjamin reivindica a possibilidade de novas
formas de criações/conhecimentos/composições capazes de se fundamentar a partir desta pobreza de experiência.
Daí a referência elogiosa do autor a Descartes, Newton e Einstein, concebidos como “homens implacáveis que
operaram a partir de uma tabula rasa.” 131 Se observarmos ainda a argumentação de Benjamin, notaremos que o
destacamento da “barbárie positiva” estendido ainda aos movimentos de vanguarda, funda-se enquanto
contraproposta ao processo de interiorização e privatização realizado pela burguesia como forma de salvaguardar
os seus laços de identidade e estabilidade frente ao declínio dos referenciais coletivos na Modernidade.
A seguinte descrição de um interior burguês do século XIX denunciaria este “falso encantamento”:
Se entrarmos num quarto burguês dos anos oitenta, apesar de todo o “aconchego” que ele irradia, talvez a impressão mais forte que ele produz se exprima na frase: ‘Não tens nada a fazer aqui’. Não temos nada a fazer ali porque não há nesse espaço um único ponto em que seus habitantes não tivessem deixado seus vestígios. Esses vestígios são os bibelôs sobre as prateleiras, as franjas ao pé da poltrona, as cortinas transparentes atrás das janelas, o guarda-fogo diante da lareira. 132
129 Id. 130 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: Obras Escolhidas Vol.1: Magia e Técnica, Arte e Política. p.10. 131BENJAMIN,W.Experiência e Pobreza. 1996 p. 116 132 BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza.1996. p. 117.
46
Os traços deixados no interior demonstram, segundo aponta Benjamin, a tentativa da burguesia em
assegurar a sua identidade frente ao processo de massificação da sociedade. Comentando o ensaio “Paris Capital
do Século XIX” (1935) Jeanne Marie Gagnebin destaca apontamento de Benjamin a respeito do mesmo
procedimento da burguesia:
Despossuído do sentido de sua vida, o indivíduo tenta, desesperadamente, deixar a marca de sua possessão nos objetos pessoais: iniciais bordadas num lenço, estojos, bolsinhos, caixinhas, tantas tentativas de repetir no mundo do objeto o ideal da moradia. Benjamin observa com humor que o veludo não é por acaso um dos materiais preferidos desta época: os dedos do proprietário deixam nele, facilmente, seu rastro. 133
A “barbárie positiva” denuncia esta falsa segurança buscada pela burguesia no espaço privado, ao
exacerbar aquela pobreza de experiência falsamente superada. Tais seriam os exemplos do teatrólogo Bertolt
Brecht e da arquitetura de Scheerbart e da Bauhaus:
Uma bela frase de Brecht pode ajudar-nos a compreender o que está em jogo: ‘Apaguem os rastros’, diz o estribilho do primeiro poema da Cartilha para citadinos. Essa atitude é a oposta da que é determinada pelo hábito, num salão burguês. Nele o ‘ interior’ obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele próprio. Isso pode ser compreendido por qualquer pessoa que lembra ainda da indignação grotesca que acometia o ocupante desses espaços de pelúcia quando algum objeto da sua casa se quebrava. Mesmo seu modo de encolerizar-se (...) era antes de mais nada a reação de um homem cujos “vestígios sobre a terra” estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com eu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros.134
Com isso Benjamin expõe novamente os referenciais típicos da abordagem da Zivilisation
fragmentária/desencantada, para então apontar o seu potencial contra o “falso encantamento” ou a “falsa
superação” da Modernidade. O modernismo de Benjamin é desta forma esboçado em “Experiência e Pobreza”,
como posteriormente em “Obra de Arte...” a partir do paradigma da Modernidade enquanto ruptura.
Em particular, neste último ensaio analisado, a reafirmação da ruptura na Modernidade possibilitara ao
autor posicionar-se criticamente frente ao processo de privatização e interiorização identificado na burguesia.
Portanto, neste sentido, o que se identificara nas acomodações dos interiores burguesas, não seria verdadeira
superação das condições modernas, mas ilusões de harmonia social, de identidade e de segurança na Modernidade.
O “encantamento” dos interiores é neste sentido desmascarado, em prol de posturas criativas que assumam tanto a
instabilidade social quanto o declínio das condições históricas que sustentavam a tradição como material coletivo
de identidade e criação. Jeanne-Marie Gagnebin resume este posicionamento de Benjamin:
133 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração em Walter Benjamin.Campinas: Editora Perspectiva, 1994.p.68. 134 BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. 1996. p.118.
47
Toda uma corrente da arte moderna vai, consequentemente, aprofundar essa ruptura da tradição e das narrações, aprofundar o silêncio, construir com pouco, fazer “tabula rasa”, como o diz Benjamin. Essa atitude, já presente nos pensadores das luzes, vê na falta de autoridade e de tradição não só um perigo, como também e antes uma chance, tênue mas real, de formação de um mundo neutro, despojado(...) Numerosas tendências estéticas contemporâneas, profundamente antipsicologizantes, mesmo objetivistas, podem assim ser explicadas, segundo Benjamin, que cita atabalhoadamente, o Bauhaus, o cubismo, o teatro de Brecht (...). Em vez de inventar ilusões consoladoras, essa arte sem bons sentimentos choca e provoca por seu gesto ao mesmo tempo realista e denunciador. 135
3.4. Experiência “verdadeira”
Em “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1939/1940), Benjamin retoma de forma aprofundada o conceito
de experiência (Erfahrung) relacionando-o explicitamente aos conceitos de narrativa, aura e memória. De todo
modo, o autor não apresenta o mesmo otimismo em relação aos meios técnicos não-auráticos e à “barbárie
positiva”, tal como se encontra relativamente transparecido em “Obra de Arte...”, “Pequena História da
Fotografia” e “Experiência e Pobreza”. Como exemplo, verificamos que a reprodução técnica aparece no ensaio
“Sobre alguns temas em Baudelaire” apenas enquanto embotamento das faculdades humana: “A constante
disponibilidade de lembrança voluntária discursiva, favorecida pela técnicas de reprodução, reduz o âmbito da
imaginação”136
Na verdade, Benjamin neste ensaio radicaliza a critica da Zivilsiation, retomando a temática do meio
urbano e da industrialização de forma próxima a abordagem empreendida pelo sociólogo Georg Simmel137 em
estudos referenciais em sua época. Será ainda, sobretudo a partir da literatura de Charles Baudelaire e de Marcel
Proust, que Benjamin desenvolverá sua abordagem crítica da Modernidade.
Contudo, já no início do ensaio, o autor busca diferenciar criticamente seus conceitos frente às propostas
oriundas da denominada “Filosofia da Vida”. Nossa problemática centra-se nesta diferenciação estabelecida por
Benjamin, sobretudo a partir de seu conceito de experiência (Erfarhung).
135GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração.... P. 68-69 136 BENJAMIN, W. Sobre Alguns temas em Baudelaire. In: Obras Escolhidas Vol. III: Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. p. 138 137 “Em seu ensaio seminal ‘Alguns Motivos em Baudelaire’, Walter Benjamin cita o capítulo nove da Sociologia de Georg Simmel, no qual o sociólogo alemão descreve tanto as mudanças da percepção – aisthèsis – quanto as mudanças nas relações entre os homens na grande cidade moderna. Essa citação não encontrará graça aos olhos de Adorno, mas Benjamin a mantém apesar das críticas. Simmel analisa as transformações do espaço social na grande cidade, tanto no nível dito objetivo quanto no nível psíquico da percepção humana, pois o espaço social é uma "divisão e apreensão pela alma das diversas partes" do espaço objetivo.*1 Trata-se, portanto, de uma teoria estética no duplo sentido da palavra: no sentido etimológico amplo de uma teoria da percepção (aisthèsis) e no sentido moderno mais específico de uma teoria das artes e das práticas artísticas. Interessa a Benjamin em particular o excurso que se intitula ‘Para uma sociologia dos sentidos’. Podemos resumir as análises de Simmel por dois pontos chaves: a grande cidade representa a vitória do racionalismo e do individualismo em detrimento de relações sociais mais orgânicas, mais afetivas, mais comunitárias que pertencem ao passado e que, apesar do seu encanto, também representavam uma ordem coercitiva e autoritária. A racionalidade moderna tem sua fonte na racionalidade abstrata da economia monetária onipotente, afirma Simmel.”. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Le printemps adorable a perdu son odeur. Alea, Rio de Janeiro: v. 9, n. 1, Junho 2007. p., 64.
48
A seguinte passagem denota a presença referencial da “Filosofia da Vida”:
Desde o final do século passado, a filosofia, vinha realizando uma série de tentativas para se apropriar da ‘verdadeira’ experiência, em oposição àquela que se manifesta na vida normatizada, desnaturada das massas civilizadas. Costuma-se inscrever tais tentativas sob a rubrica ‘filosofia da vida’.138
No contexto alemão das primeiras décadas do século XX, o termo “Filosofia da Vida” passara a designar
uma série de teoremas filosóficos agrupados em tornos da idéia de contato íntimo a vitalidade.139
Benjamin em
particular, utiliza o mesmo referencial sob a denominação da ‘verdadeira’ experiência, incluindo sob este signo
autores alemães como Wihelm Dilthey, Lwduig Klage, Carl Jung e o autor francês Henri Bergson. 140 De todo
modo tal listagem, de acordo ao autor, poderia ainda se estender incluindo Friedrich Nietzsche e mesmo Georg
Simmel. 141
Fritz Ringer busca demarcar de maneira pontual o desenvolvimento do uso do termo. Segundo Ringer a
expressão genérica da “Filosofia da Vida” fora primeiramente utilizada na década de 1910 entre alunos e editores
do eminente membro da elite acadêmica Wihelm Dilthey, no intuito de rotular as obras deste estudioso142. Seria
ainda, sobretudo na década de 1920, que seu uso passara a ser feito de forma generalizada e vulgarizada na
Alemanha.
Pode-se afirmar que o termo “Filosofia da Vida”, apesar de seu uso posteriormente generalizado, não
arbitrariamente obtivera referencial primeiramente em Dilthey. O projeto maior deste autor, assumido desde o
início de suas publicações em finais do século XIX até seu falecimento no século XX, pode ser destacado na
tentativa em estabelecer a especificidade das denominadas “Ciências do Espírito”- dentre elas a História seria
“ciência” privilegiada. Neste sentido Dilthey destaca o termo vivência (Erlebnis) como particularidade
epistemológica fundamental das “Ciências do Espírito”, que a diferencia das “Ciências da Natureza”143. Em
“Introdução às Ciências do Espírito” (1883) o autor maca a distinção entre dois tipos de ciência a partir deste
conceito:
La fundamentación más profunda del puesto Independiente de las ciencias del espíritu junto a las ciências de la naturaleza, puesto que constituye El entro de La construcción de lãs ciências del espíritu em esta obra, se
138 BENJAMIN, W. Op. Cit. p. 104. 139 “Os intelectuais direitistas de Weimar alegavam estar em contato com a ‘vida’ ou com a ‘vivência’ e, com isso, ocuparem uma posição política situada além de qualquer justificação racional.” HERF. Op. Cit. p.40. 140 BENJAMIN, W. Sobre Alguns Temas...p.,104. 141 Ver: LUKÀCS, G. El asalto a la razon : la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Mexico, D.F. : Fondo de Cultura Economica, 1959 142 RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins.... p. 311. 143“Desde o início a categoria da vivência tem sido para Dilthey uma chave para sua teoria das ciências do espírito. Como objeto de uma observação sistemática e de um conhecimento analítico-causal, a humanidade não faz parte do domínio do objeto das ciências da natureza”. HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1982p. 60
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realiza en esta paso a paso al llevarse a cabo em ellla el análisis de la vivencia total del mundo espiritual, em su incomparabilidad com toda expeirência sensible acerca de la naturaleza.144
A vivência (Erlebnis) seria caracterizada por sua possibilidade de estabelecer fundamento interpretativo
das manifestações do espírito humano a partir de referencial anterior as formulações conceituais e discursivas. A
experiência “verdadeira” aludida por Benjamin como letmotif da “Filosofia da Vida”, encontrar-se-ia em Dilthey
firmada no conceito de vivência (Erlebnis). Como aponta Ringer:
A palavra alemã erleben pode ser traduzida por “experimentar, vivenciar”. Leben significa vida; Erlebnis, o ato de Erleben, tem o sentido de “experiência vital”, algo por que alguém “passa’, com que se envolve profundamente. Dilthey usou muitas vezes o termo Erlebnis para descrever um experiência artística, um momento de aguda consciência do qual participam tanto as emoções e as faculdades intuitivas doa artista quanto seu intelecto.(...). Dilthey define a experiência vital como aquela que ocorre num nível pré-conceitual; está no continuum indiferenciado, não analisado da consciência ingênua, da “vida”.145
A vivência (Erlebnis) é que permite, desta forma, a retomada dos fenômenos históricos em seu sentido
pleno, pois possibilita acesso não apenas a subjetividade alheia, em suas intenções e percepções, mas de forma
mais aprofundada, às próprias manifestações vitais do espírito . A própria comunicação cotidiana entre os homens
seria possibilitada pela compreensão destas manifestações vitais acessíveis pela vivência pré-conceitual. A
seguinte passagem de Dilthey citada por Jürgen Habermas, pode nos ser útil na medida em que apresenta a relação
entre vivência, expressão e compreensão:
“conjunto da vida da expressão e da compreensão não implica apenas gestos, mímicas e palavras, pelos quais os homens se comunicam uns aos outros, ou as criações intelectuais estáveis (...) ou as objetivações permanentes do espírito nas formações sociais (...): também a unidade psicológica da vida se conhece a si própria através da relação dupla de vivência e compreensão, ela toma consciência de si mesmo no presente, ela se reencontra a si mesma na memória como algo que já foi (...) em suma, trata-se do processo da compreensão por meio do qual a vida é esclarecida sobre suas próprias profundezas; por outro lado, não compreendemos nem a nós nem aos outros senão na medida em que transpomos nossa vida vivenciada para dentro de cada forma de expressão correspondente à nossa e a vida alheia. Desta forma a conexão entre vivência, expressão e compreensão perfaz em toda parte a fórmula geral da qual a humanidade nos é apresentada como objeto das ciências do espírito (antes mesmo de qualquer ciência, J. Habermas). As ciências do espírito estão assim baseadas sobre tal conexão entre vida, expressão e compreensão. 146
Portanto, a vivência é tanto relativa ao cotidiano do ser humano como também fundamenta do próprio
método de abordagem das “Ciências do Espírito”.
144DILTHEY, Wilhem. Introducción a las ciências del espiritu. Madrid: Alianza Editorial, 1986. p. 45. 145RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins... p. 296. 146 DILTHEY, W. Gesammelte Schriften VII.p.85 Apud HARBEMAS, J. Conhecimento e Interesse Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1982.p. 162.
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Todavia ao buscar estabelecer uma “experiência pura” (vivência) enquanto parâmetro para o conhecimento
histórico, Dilthey não se questionara a respeito das condições histórico-sociais de realização de qualquer forma de
experiência. Podemos neste ponto retomar a abordagem crítica de Benjamin frente à “Filosofia da Vida”.
Benjamin, na continuação da passagem de “Sobre alguns Temas em Baudelaire” citada acima, destaca
justamente que as tentativas da “Filosofia da Vida” em se “apropriar da ‘verdadeira’ experiência “não partiam da
existência do homem em sociedade: invocavam a literatura, melhor ainda a natureza e, finalmente, a época mítica,
de preferência.” 147
Desta forma, a crítica de Benjamin à “Filosofia da Vida”, fundamenta-se, na denúncia ao caráter a–
histórico (autônomo em relação aos processo sociais) pelo qual buscou-se estruturar o conceito de experiência
“verdadeira”. Em contrapartida, Benjamin apresenta seu conceito de experiência (Erfarhung), delimitando nos
processos sociais tanto a sua fundamentação na tradição, quanto a análise de sua possibilidade e impossibilidade
de realização plena na Modernidade fragmentária/desencantada.
Portanto a crítica a “Filosofia da Vida” em sua “falsa superação” da Zivilisation desdobra-se em Benjamin
a partir de sua denúncia a ausência de historicidade pela qual se buscou fundamentar a “verdadeira” experiência
entre estes autores. Esta negligência em relação a fundamentação histórico-social da experiência, opera como fuga
frente aos impasses apresentados na constituição histórica da Modernidade. Podemos observar neste sentido os
comentários de Benjamin a respeito do conceito de memória Henri Bergson:
Bergson não tem, por certo, qualquer intenção de especificar historicamente a memória. Ao contrário, rejeita qualquer determinação histórica da experiência, evitando com isto, acima de tudo, se aproximar daquela experiência, da qual se originou sua própria filosofia, ou melhor contra qual ela foi remetida. É a experiência inóspita, ofuscante da época da industrialização em grande escala. 148
Em relação a Dilthey a crítica de Benjamin opera no mesmo sentido. Pois se em Dilthey a concepção de
vivência (Erlebins) em sua autonomia em relação aos processos sociais, se definia como médium capaz de
transmitir e interpretar as manifestações vitais partilhadas pelos seres humanos e suas projeções culturais, em
Benjamin a experiência (Erfahrung) e o seu potencial de transmissão e interpretação, estariam condicionados em
seu desenvolvimento pelas variáveis históricas. Com isso, Benjamin se apropriará do conceito de vivência
(Erlebnis), em sua ausência de fundamentação histórico-social, a partir de sentido diverso daquele assumido por
Dilthey: ao invés de significar a “experiência primordial, pré-conceitual”, indicaria antes a vivência cotidiana na
Modernidade, em seu aspecto fugaz, fragmentário e despojado de uma tradição histórica. O seguinte comentário
de Olgaria Chain Matos aponta para esta distinção: “O tempo da Erlebnis difere fundamentalmente da Erfahrung
147 BENJAMIN, W. Sobre alguns temas... 1998. p. 104. 148 Ibid., p. 105.
51
porque envolve a temporalidade do momento único e fragmentado abstratamente, enquanto a Erfahrung é o
pertencimento no interior da tradição.” 149
Desta forma, Benjamin desenvolverá sua tese sobre o choque cotidiano na Modernidade, indicando no
conceito de vivência (Erlebnis) o declínio da experiência (Erfahrung) fundamentada na tradição. O autor ressalta,
desta maneira a impossibilidade de superação das condições histórico-sociais da Modernidade por meio de
referenciais estritamente a-históricos.
Pesa ainda no desenvolvimento subseqüente do ensaio a radicalização daqueles referenciais fundamentais
na critica da Zivilisation: o aspecto fragmentário das atividades mecânicas realizadas nas fábricas; o
desencantamento do mundo pela exclusão do culto; a perda dos laços e referências sociais na atomização das
massas; as relações de choque nas massas e no cinema enquanto embotamento da capacidade imaginativa e
reflexiva Em suma, o autor esboçara sua critica a “Filosofia da Vida” e em particular à Dilthey retomando
novamente Modernidade enquanto ruptura, argumentando ainda criticamente contra uma falsa superação desta.
Portanto, os três referenciais destacados nos ensaios de Walter Benjamin - burguesia, fascismo e “Filosofia
da Vida” (Lebensphilosophie) - demonstram a crítica do autor a uma falsa “superação” das condições históricas da
Modernidade.
Cabe, desta forma, ressaltar que Benjamin ao forjar seu modernismo técnico e estético, se afastara de uma
postura estritamente romântica, para lançar-se em uma reatualização dos seus conceitos e referenciais, remarcando
a noção de ruptura na Modernidade. Seria ainda aprofundando esta noção de ruptura que Benjamin realiza
criticamente seu diagnóstico: a fuga da burguesia para os interiores como sonho de uma Modernidade na qual os
laços, sociais e de identidade, não se encontrariam desestabilizados; o fascismo, e a mitificação da técnica e da
guerra tecnológica, enquanto impedimento da inserção plena do desenvolvimento técnico nos processos sociais; a
“Filosofia da Vida” em seu apelo a-histórico à verdadeira experiência, enquanto fuga ante as condições sociais da
Modernidade. Em suma, o modernismo estético e técnico de Benjamin, assim como o aspecto romântico em seu
pensamento, tornam-se melhor compreensíveis a partir destes referenciais, por sobre os quais orbita a temática da
Modernidade.
Por conseguinte, se em “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” (1939/40) não encontramos o mesmo
otimismo em relação à técnica como observamos em “Obra de Arte...”, podemos entrever nos dois ensaios, a
permanência da interpretação da Modernidade enquanto fragmentação/desencantamento, assim como também a
crítica a correntes do pensamento conservador que visaram uma falsa superação desta condição. O declínio da
transmissão e da conformação da tradição, seria o diagnóstico fundamental da Zivilisation identificada tanto
nestes dois ensaios, quanto em “Experiência e Pobreza”. Por fim, neste último ensaio, encontramos apelo incisivo
149 BENJAMIN, Sobre Alguns temas...p. 105.
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ao o reconhecimento deste declínio: “Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais
privada, mas de toda a humanidade.” 150
Desta forma, se a visão de mundo romântico, como afirma Löwy, se faz fundamental na definição do
pensamento de Walter Benjamin, o seu modernismo revela-se enquanto faceta não menos importante em seus
ensaios. De todo modo, tanto num quanto noutro aspecto - ou de forma exemplificada - tanto quando Benjamin
expõe nostalgicamente o declínio da narrativa tradicional junto ao declínio das atividades econômicas pré-
modernas, quanto quando busca estabelecer no aparelho perceptivo fragmentado da era industrial, o potencial
político de emancipação, o diagnóstico da Modernidade enquanto ruptura, permanece, da mesma forma que finda
por tornar-se baliza na construção de suas críticas a uma falsa “superação” ou falso “encantamento” da
Modernidade.
Por ultimo cabe observar, que Benjamin forja ainda suas caracterizações da Modernidade de maneira
próxima à noção de Zivilisation encontrada no contexto alemão do inicio do século XX. Tanto em seu
modernismo quanto em seus caracteres nostálgicos, a noção de fragmentação e desencantamento do mundo,
permanecesse enquanto fundamento
150 BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. p. 115.
53
CONCLUSÃO
A questão da Modernidade desenvolvida por Benjamin tanto através dos conceitos de aura, experiência e
narrativa, quanto dos referenciais de espaço-tempo, demonstram não apenas o fundamento comum de um
determinado conjunto de ensaios do autor, mas também a sua inserção no contexto intelectual alemão da crítica da
Zivilisation. Seja visto a partir do hermafroditismo ideológico da visão de mundo romântico anticapitalista151,
como sustenta Michael Löwy, seja observando a predominância do referencial conservador, através da crítica da
Zivilisation, pôde-se observar a proximidade de Benjamin ao pensamento conservador representado tanto pelos
intelectuais pertencentes à elite acadêmica alemã - aqueles denominados por Fritz Ringer “Mandarins” - quanto
aqueles oriundos de círculos literários, como Stefan George. Os termos referenciais desta aproximação seriam
ainda aqueles de desencantamento do mundo e fragmentação.
Por conseguinte mesmo o modernismo técnico e estético de Benjamin, pode ser observado a partir destes
termos; pois, não ter-se-ia mantido em ensaios como “Experiência e Pobreza” e “Obra de Arte...” a referência ao
desenvolvimento técnico e o advento da sociedade de massas, enquanto declínio da tradição ou fragmentação do
aparelho perceptivo?
É certo que os paradigmas reconhecidos no modelo da crítica da Modernidade/Zivilisation, se mantiveram
como pressupostos nas formulações estéticas e teóricas de Benjamin durante a década de 1930. Seria ainda a partir
destes paradigmas, como observamos, que o autor forjara sua crítica a falsa “superação” ou falso “encantamento”
da Modernidade, identificada no fascismo, na burguesia e na “Filosofia da Vida”. Portanto, tanto nos ensaios em
que se apresenta de forma mais otimista a questão da técnica quanto naqueles em que encontramos expresso certa
desconfiança, Benjamin forja suas objeções ou resoluções a partir de paradigmas semelhantes. As transformações
sociais relativas ao desenvolvimento técnico, o advento da sociedade de massa, a urbanização,e as transformações
das sensibilidades, elementos diagnosticados sobretudo através dos conceitos de aura e experiência, indicam
limiar no qual o declínio da tradição seria condição a se resignar ou superar.
151LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. A Evolução Política de Lukács. São Paulo: Lech, 1979. p.,61
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