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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
RODRIGO DO NASCIMENTO
DEUS É 10, ROMÁRIO É 11: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI ESPORTIVO NAS PÁGINAS DA VEJA EM 1993 E 1994
CURITIBA 2010
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RODRIGO DO NASCIMENTO
DEUS É 10, ROMÁRIO É 11: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI ESPORTIVO NAS PÁGINAS DA VEJA EM 1993 E 1994
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof.º Dr.º Luiz Carlos Ribeiro
CURITIBA 2010
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao professor doutor Luiz Carlos Ribeiro pela oportunidade de desenvolver este trabalho, o qual une as minhas duas paixões: Futebol e História.
Também expresso meu agradecimento a todas as pessoas que me ajudaram nesta
longa caminhada na graduação: minha família, meus amigos e a minha companheira, que nunca me deixaram abater frente às adversidades da vida, mas
sim me incentivaram a superá-las.
Por fim, agradeço a Deus, seja lá o que ou quem ele for, por me dar forças para conquistar mais esta importante vitória em minha vida.
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“Não ir do discurso em direção a um núcleo interior e oculto, em direção a um pensamento ou a uma significação que se manifestariam nele; mas, a partir do
próprio discurso de sua aparição e de sua regularidade, chegar a suas condições externas de possibilidade [...].”
Michel Foucalt, L’ondre Du discours, Gallimard, 1971.
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RESUMO
Romário foi um jogador de futebol que se tornou herói nacional por ter sido reconhecido como o responsável pela conquista do tetracampeonato mundial da Seleção Brasileira, em 1994 nos Estados Unidos. A revista VEJA, um veículo de comunicação popular no Brasil, contribuiu significativamente na edificação heróica do jogador. Nesse sentido, buscamos analisar como se deu esta construção nas matérias da respectiva revista, procurando entender a lógica que estaria permeando seus discursos. Ao mesmo tempo, foi preciso entender os mecanismos adotados pela mídia no processo de produção de notícias para assim compreendermos os argumentos de VEJA com relação ao camisa 11 brasileiro. O contexto da Copa do Mundo e a situação que o Brasil enfrentava no período fizeram com que VEJA tivesse de assumir um posicionamento pendular entre duas questões que se fizeram antagônicas: produzir notícias de acordo com seus valores e falar aquilo que o povo queria ouvir. No transito entre o “craque” Romário e o “indisciplinado” Romário é que os discursos da VEJA são apresentados ao público, ora prezando por seu ideário, ora pela concepção popular. Palavras chave: Futebol, Mídia, Herói.
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ABSTRACT
Romario was a football player who became a national hero for having been recognized as responsible for the conquest of the fourth Brazilian football title in the United States World Cup 1994. The magazine VEJA, a communication vehicle very popular in Brazil, contributed significantly in making him a heroic player. Accordingly, we analyzed how these speeches were made in the magazine, trying to understand the logic that would permeate its speeches. At the same time, it was necessary to understand the mechanisms adopted by the media in the process of news production to understand VEJA arguments regarding the Brazilian player number 11. The context of the World Cup and the situation that faced Brazil in the period meant that VEJA had to take an inconstant position between two issues that were antagonistic: to produce news according to their values and speak what the people want to hear. In transit between "irreplaceable striker" Romário and "undisciplined" Romário is that the speeches of VEJA are presented to the public, sometimes writing accord your ideas, sometimes doing that following the popular conception. Key-Words: Football, Media, Hero.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................10
1. MÍDIA.........................................................................................................16 1.1 Entendendo a mídia e os discursos midiáticos........................................16 1.2 Mídia e Futebol – Ídolos e Heróis.............................................................19 1.3 “VEJA” – Conhecendo a fonte..................................................................22
2. ROMÁRIO..................................................................................................26 2.1 O jogador autêntico..................................................................................26 2.2 Romário e a Copa do Mundo de 1994.....................................................28
3. A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI............................................................32 3.1 O mau filho a casa torna..........................................................................32 3.2 A VEJA no aquecimento para a Copa.....................................................36 3.3 Rumo ao tetra..........................................................................................42 3.4 A final e o herói........................................................................................47 3.5 Pós Copa.................................................................................................58
CONCLUSÃO.................................................................................................64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................67
OBRAS CONSULTADAS...............................................................................69
ANEXOS........................................................................................................70
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INTRODUÇÃO
O futebol como um fenômeno social vem se tornando, atualmente, tema cada
vez mais presente no cenário acadêmico. Tratando-se de um esporte que contagia
as massas, de uma paixão que ultrapassa as quatro linhas do campo de jogo e as
arquibancadas do estádio, essa atividade influencia os comportamentos das
sociedades de uma maneira considerável. De quatro em quatro anos, países param
suas atividades e as pessoas se aglomeram em frente aos televisores para
acompanhar o que para muitos se trata do maior espetáculo da terra: A Copa do
Mundo de Futebol. Este comportamento é apenas um dentre muitos exemplos que
justificam a inserção do futebol no campo de estudo das ciências humanas.
Sendo o esporte mais popular do planeta, o futebol abrange um público muito
maior do que aquele que adentra aos estádios. Pessoas e mais pessoas de diversas
regiões, culturas e etnias desejam muito acompanhar o que se passa no meio
futebolístico, tanto dentro do campo quanto fora dele.
Assim sendo, os torcedores buscam obter informações sobre o dia-dia dos
jogadores, a situação financeira e contratações dos clubes, campeonatos e é claro,
tudo o que puderem saber sobre a seleção de futebol de seu país. É para atender a
esta demanda que a mídia esportiva busca produzir um grande número de trabalhos
atrativos, visando obter lucro com reportagens cada vez mais interessantes e
instigantes ao público. Isto ocorre no mundo todo e principalmente no Brasil, país
onde o futebol representa mais do que uma paixão. Conforme nos atesta Sérgio
Giglio, o futebol detém um significado impar para a população brasileira, e um fator
que ampara esse significado são seus heróis. “Existe em torno dessas figuras uma
mitologia que é criada e recriada. Dificilmente pensamos o futebol sem a presença
do ídolo ou do herói” 1.
Nesse sentido, os protagonistas da atividade futebolística passam a estar
cada vez mais presentes nos discursos dos meios de comunicação. A abordagem
da mídia sobre os jogadores, no entanto, transcende questões factuais. São criadas
“imagens” dos mesmos, situação que ocorreu com um importante atleta da Seleção
Brasileira de futebol que acabou se transformando em herói nacional: Romário.
1 GIGLIO, Sérgio Settani. Futebol: mitos, ídolos e heróis . Universidade Estadual de Campinas. Dissertação de mestrado. São Paulo, 2007. p.22.
11
Romário de Souza Faria, carioca nascido em 29 de janeiro de 1966, foi um
atleta de origem humilde que alcançou o sucesso e a fama por intermédio do futebol.
Da infância pobre na Vila da Penha à conquista da Copa do Mundo de 94 e
obtenção do título de melhor jogador do planeta, são 28 anos de muitos gols e muita
polêmica: conhecido por seu comportamento arrogante, marrento e casca grossa,
mas dotado de uma grande habilidade futebolística, Romário iniciou sua carreira
profissional em 1986 e desde sempre esteve envolvido em querelas, tanto nos
clubes que defendia quanto na Seleção Brasileira. Foi um jogador marcado por sua
personalidade forte, pelo seu talento com a bola nos pés e pelos embates extra-
campo, travados com treinadores, companheiros de profissão, imprensa e até
mesmo torcedores.
Mas o que nos levou a estudá-lo?
Em 1993, Romário se encontrava afastado das convocações para os jogos
das eliminatórias da Copa do mundo de 1994 por motivos disciplinares, de acordo
com a comissão técnica formada por Carlos Alberto Parreira e Mario Jorge Lobo
Zagalo. No entanto, a campanha da “Seleção Canarinho” não era das melhores e o
Brasil dependia de uma vitória para se classificar para o mundial no último jogo das
eliminatórias, contra o Uruguai, no Maracanã 2. O Brasil corria o risco de deixar de
ser o único país a ter participado de todas as edições da Copa do Mundo, e sendo
assim, os treinadores decidiram convocar novamente o craque. Na partida, Romário
fez os dois gols da vitória brasileira, carimbando o passaporte da Seleção para os
Estados Unidos e dessa maneira, iniciou-se o caminho do selecionado canarinho
para a conquista do tetra, que sacramentaria o camisa 11 como herói nacional.
Justamente pelo fato de ser considerado o herói do tetra e figura de grande
destaque no cenário futebolístico mundial, surgiu o interesse de realizarmos um
trabalho monográfico a respeito da construção da imagem desse jogador por parte
da mídia. Pareceu-nos que o contexto da Copa de 1994 seria especialmente
prolífico para tanto, uma vez que foi o ápice da carreira futebolística de Romário.
Nesse sentido, foi escolhida como fonte principal para análise a revista VEJA,
por ser um veículo de comunicação de considerável importância no Brasil e,
secundariamente, também pela facilidade de acesso, uma vez que todos os
exemplares publicados encontram-se disponíveis no acervo digital da mesma3. Além
2 Vide http://www.bolanaarea.com/gal_copa_do_mundo.htm 3 Vide http://www.veja.com.br/acervodigital
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disso, nos chamou a atenção o fato de a revista ter publicado diversas matérias a
respeito de Romário, levando-nos a perceber que este atleta em específico era foco
constante da atenção do periódico.
A VEJA encontra-se em circulação desde 1968 e possui grande popularidade
no Brasil, sendo um dos meios de comunicação que contribuiu para construção da
imagem de Romário como “Salvador da Pátria” em 1994. Nesse sentido, consolidou-
se como nosso objetivo analisar as reportagens, crônicas e entrevistas deste
periódico visando perceber a abordagem da revista com relação ao atleta e de como
o “heroísmo” do respectivo jogador foi sendo edificado mediante aos discursos.
Dessa maneira, foram selecionadas para estudo 49 edições da VEJA. Dentre
estas, 48 foram publicadas semanalmente, entre 15 de setembro de 1993 a 17 de
agosto de 1994, enquanto que a “edição especial” da conquista do tetra veio a
público um dia após a final contra a Itália. Estas edições correspondem aos
exemplares entre o número 1305 - que trata do retorno de Romário a Seleção -, até
a edição 1353 - publicada um mês após a vitória frente aos italianos.
Procurar-se-á responder no trabalho monográfico as seguintes questões para
que se possa compreender como se deu a construção da imagem de Romário como
herói esportivo: primeiramente procuramos analisar qual o tratamento dado pela
revista VEJA ao jogador de futebol Romário no respectivo período. A partir daí,
observamos se houve ou não, em algum momento, uma diferença na postura crítica
da revista com relação a Romário. Assim, procuramos perceber se o tom do discurso
da VEJA, no que se refere ao jogador, teria permanecido inalterado, ou se, pelo
contrário, houve mudanças no teor das reportagens antes, durante e depois da
competição.
Para atingirmos nosso objetivo, partimos da necessidade de se conhecer o
que é a revista VEJA; analisar sua linha de pensamento, posicionamento político,
dentre outros aspectos, para então compreender com mais clareza a forma como se
deu a elaboração de seus argumentos com relação ao camisa 11 brasileiro. Sendo
assim, a obra de Alexandre Rossato Augusti 4 veio a contribuir para o nosso
trabalho, pois traz uma reflexão acerca dos principais valores difundidos pelo
4 AUGUSTI, A.R. Os Principais Valores Presentes no Discurso Jornalí stico da Revista VEJA . In: Rumores - Revista de Comunicação, Linguagem e Mídias, Vol. 1, No 2 (2008). Disponível em: http://www.rumores.usp.br/augusti.pdf
13
periódico. Ainda relevante para a nossa monografia é o texto de Lousada e Oliveira5,
o qual nos permite fazer uma reflexão acerca do posicionamento político da revista,
uma vez que tal questão é fundamental para uma análise mais abrangente das
matérias. Em se tratando de um veículo de comunicação, é preciso compreender
que a VEJA pode imprimir em suas publicações suas visões políticas, de modo a
não haver neutralidade absoluta em seus textos.
Ainda buscando compreender como se constitui o discurso midiático da
VEJA, também utilizamos em nossa monografia obras teóricas sobre a mídia e
imprensa, como a de Asa Brigs e Peter Burke 6, e o estudo de Patrick Charaudeau 7.
Estes autores procuram analisar a forma como a imprensa se comunica com seu
público de maneira geral, e o modo pelo qual os discursos são construídos para a
assimilação do leitor. Esse tipo de discussão é importante para a análise proposta,
pois nosso estudo não se foca apenas em Romário e seus feitos, mas sim na forma
como determinado periódico procurou retratar tais questões.
Escritos tratando da História do Futebol e sua ligação com o cenário político e
sócio-econômico mundial também tiveram grande importância para produção do
trabalho monográfico, já que não podemos pensar o cenário futebolístico
isoladamente de seu contexto social. A obra organizada por Luiz Carlos Ribeiro 8, e
o trabalho de Hilário Franco Júnior 9 nos permitem analisar o desenvolvimento do
futebol em concomitância com outros aspectos da sociedade moderna globalizada.
Assim nos desprendemos da visão popular de que o futebol é apenas um esporte e
nada mais. Na verdade, o compreendemos como parte integrante de uma
sociabilidade globalizante, a qual dita padrões de atuação nas mais diversas áreas.
Isso nos ajuda a compreender o jogador como produto a ser explorado, assim como
o coloca no patamar de notícia de interesse público.
No que tange a relação entre mídia e futebol, procuramos selecionar uma
gama de trabalhos que abordassem esta questão para constituir a nossa bibliografia,
para então estabelecermos discussões durante o desenvolvimento do trabalho
5 LOUZADA, M. S. O. OLIVEIRA, M. R. M. Identidade e Posicionamento Político das Mídias: “VEJA, indispensável para o país que queremos ser”. ANPOLL 2008. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlm/Ma.%20Silva%20Louzada.pdf 6 BRIGGS, Asa. BURKE, Peter. Uma História Social da Mídia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2004. 7 CHARAUDEAU, P. O Discurso das Mídias . São Paulo: Contexto. 2009. 8 RIBEIRO, Luiz (Org.) Futebol e Globalização . Jundiaí, SP: Fontoura. 2007. 9 FRANCO JR, H. A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade e Cultura. São Paulo: Companhia das Letras. 2007.
14
monográfico. Foram selecionados artigos, dissertações e teses relacionados com o
assunto. Podemos destacar o trabalho de Marcelo Kischinhevsky10, no qual se
encontra uma análise do envolvimento da mídia no cenário futebolístico e
concepções acerca da construção de discursos persuasivos destinados aos leitores.
Essa obra foi importante pois nos permitiu perceber as articulações da mídia ao
produzir seus escritos, ou seja, a maneira pela qual esta elabora seu discurso para
fazer com que o destinatário atribua à notícia dada uma avaliação de veracidade.
Como estamos tratando aqui de um jogador que foi aclamado como herói
nacional, havia a necessidade de buscar autores que tratassem da concepção de
“herói”, principalmente no que diz respeito ao cenário futebolístico. Isto foi
necessário devido ao fato de que entender o que é um “herói” se mostra
fundamental para se analisar como e porque ele é construído. Sendo assim, um
trabalho digno de nota é a já citada dissertação de Sérgio Giglio, a qual nos trás
além de uma visão acerca da importância do futebol na vida do brasileiro, um exame
crítico acerca da complexidade da caracterização de “ídolo” e de “herói” no futebol.
Como esta monografia foi desenvolvida focada no caso de Romário na Copa
do Mundo de 1994, uma gama de textos sobre o jogador foi selecionada, no intuito
de que estes contribuíssem para o melhor conhecimento sobre a personalidade do
atleta e seus feitos. Dentre estes, cabe destacar a obra “Romário”, de Marcus
Vinicius Rezende de Moraes11, a qual trás um grande número de entrevistas com
dirigentes, técnicos, jornalistas e jogadores que trabalharam ou tiveram contato com
o atleta; além de depoimentos de seus familiares e um texto do próprio jogador
falando de si e de sua carreira. Esta obra contribuiu para que pudéssemos
estabelecer uma análise acerca da visão que o próprio Romário e indivíduos
próximos a ele têm de sua pessoa e sua carreira. Este estudo nos serviu para
confrontá-lo com a imagem destinada ao grande público criada pelo veículo de
comunicação VEJA.
Por fim, mas não menos importante, selecionamos os artigos de Ronaldo
Helal12, bem como o trabalho Simone Lahud Guedes13, além do recente texto de
10 KISCHINHEVSKY, M. Do lábaro que ostentas estrelado — Mídia, futebol e identidade . Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tese de doutorado. Rio de Janeiro. 2004 11 MORAES, M.V.R. Romário . Rio de Janeiro: Altadena. 2009. 12 HELAL, R. Idolatria e malandragem: a cultura brasileira na bi ografia de Romário. in: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v.26, n.2. 2003.
15
Max Filipe Nigro Rocha14, por tratarem da imagem de Romário reproduzida pela
mídia e a questão de idolatria e heroísmo destinada ao camisa 11 brasileiro. Estas
obras serviram para que pudéssemos refletir sobre a criação de um herói nacional e
sua conveniência naquele contexto. Sendo assim, estes trabalhos não poderiam
deixar de ser estudados.
13 GUEDES, S.L. O salvador da pátria. Considerações em torno da ima gem do jogador Romário na Copa do Mundo de 1994. In: GUEDES, S.L (org) O Brasil no campo de futebol. Rio de Janeiro: EDUFF. 1998. 14 ROCHA. M.F.N. A cobertura da Copa de 94 pela revista VEJA - Em bu sca de um novo Salvador da Pátria . Texto do I Simpósio de Estudos Sobre Futebol. São Paulo. 2009
16
1. MÍDIA
1.1 Entendendo a mídia e os discursos midiáticos
Para que se possa compreender realmente o que é a mídia, é necessário
primeiramente que nos desvencilhemos da visão de que esta representa apenas o
intermediador entre um acontecimento e o público; de uma voz que procura levar a
verdade aos indivíduos acerca de um determinado fato. Trata-se aqui de uma
questão muito maior; de um sistema de grande complexidade que ultrapassa a mera
função de informar alguém sobre algo.
Falar de “mídia”, termo que passou a ser utilizado na década de 192015,
significa falar em construção de informação mediante uma lógica empresarial
capitalista; em meios de comunicação que utilizam seus determinados valores para
criar um produto que os permitam obter lucro: a notícia.
Segundo Patrick Charaudeau16, a produção midiática funciona de acordo com
o seguinte processo: sendo o discurso de informação uma prática necessária às
sociedades em geral, a mídia se apresenta como a grande interessada nesta
atividade. Nesse sentido, procura estabelecer-se como fábrica de informação
mediante as chamadas “máquinas midiáticas”, ou veículos de comunicação17.
Estas empresas, por sua vez, encontram-se em disputa por um mercado de
grande concorrência e, sendo assim, buscam atingir o maior número possível de
destinatários (clientes) através da maneira de referir-se a um determinado evento,
de criticá-lo, ou até mesmo de incitar a discussão sobre. É dessa maneira então que
as mídias passam a se posicionar sobre o que deve ser notícia e sobre a forma de
abordá-la.18
15 OXFORD ENGLISH DICTIONARY. apud: BRIGGS, A. BURKE, P. “Uma História Social da Mídia ”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2002. p.13. 16 CHARAUDEAU, P. O Discurso das Mídias . São Paulo: Contexto. 2009. 17 Ibidem., p.12. 18 Ibidem., p.13.
17
Nesse sentido, ao tratarmos de mídia se faz necessário o entendimento de
que esta, de acordo com a concepção do pensador francês Charaudeau,
corresponde a
“um suporte organizacional que se apossa dessas noções [informação e comunicação] para integrá-las em suas diversas lógicas – econômica (fazer viver uma empresa), tecnológica (estender a qualidade e quantidade de sua difusão) e simbólica (servir à democracia cidadã)” 19.
Com relação ao campo de atuação da mídia na sociedade, pode-se dizer que
com o grande desenvolvimento dos meios de comunicação através dos anos20, a
mídia tornou-se importante por atuar em diversos segmentos distintos, mas
interligados, da coletividade, veiculando informação que se insere nos campos do
político (como propaganda e visibilidade), do econômico (com o lucro e o marketing),
até a esfera do social (comportamento e sociedade) 21.
Agora, no que diz respeito à produção de informação, Alexandre Rossato
Augusti22 enfatiza a não existência de uma realidade absoluta nos discursos
jornalísticos, encarando-os como uma construção e destacando ainda a presença de
uma influência ativa no processo de elaboração dessas notícias. Salienta a
existência de três níveis que comprometem a veracidade do acontecimento a ser
noticiado, produzindo-se então determinados sentidos para o evento ocorrido:
“Podemos pensar em três níveis para verificar as notícias como uma ‘construção’ social, como resultado de interações entre diversos agentes sociais. Em um primeiro nível, os jornalistas interagem com diversas fontes de informação. Nesse caso, muitos agem com o intuito de mobilizar as notícias como parte de sua estratégia comunicacional, criando os acontecimentos. Há, nessa etapa, promoção de acontecimentos. Em um segundo nível, a interação ocorre entre jornalistas como membros de uma comunidade que partilha uma identidade profissional, valores e cultura comuns [...] Os profissionais do campo jornalístico definem, em última análise, as notícias e contribuem para a construção da realidade. Em terceiro nível, os jornalistas, na sua definição de notícias, também interagem silenciosamente com a sociedade, por via dos limites com que os valores sociais marcam as fronteiras entre o normal e o anormal, legítimo e ilegítimo, aceitável e desviante [...] As notícias são o resultado de um processo de produção definido como percepção, seleção e transformação
19 CHARAUDEAU, P. Op. Cit. p.15. 20 Vide BRIGGS e BURKE. Uma História Social da Mídia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2002. 21 CHARAUDEAU. Op. Cit. p.16. 22 AUGUSTI, A.R. Os Principais Valores Presentes no Discurso Jornalí stico da Revista VEJA . In: Rumores - Revista de Comunicação, Linguagem e Mídias, Vol. 1, Nº 2 (2008). Disponível em: http://www.rumores.usp.br/augusti.pdf
18
de uma matéria prima, reconhecida como acontecimento em um produto (as notícias)” 23
Essa visão de Augusti, de que o discurso jornalístico não reflete
necessariamente a realidade, é também compartilhada por Rosane Rosa24 e
Charadeau. Este último alega que é próprio de uma comunidade social produzir
discursos para “justificar seus atos, mas não está dito que tais discursos revelam o
verdadeiro teor simbólico desses atos: muitas vezes o mascaram, pervertem ou
mesmo o revelam em parte” 25. Já Rosa nos acrescenta que, além da experiência
do jornalista, existe outro fator extremamente importante e que contribui
significativamente para a construção das notícias, que é a ideologia e a cultura do
veículo de comunicação que as veicula. Nesse sentido, percebe-se que no processo
de elaboração de uma notícia, a ideologia da empresa difusora se faz presente,
influenciando sensivelmente a produção de matérias dos profissionais de
comunicação filiados a determinada corporação.
Dessa maneira, os veículos midiáticos encontram-se em uma situação de
abarcar o maior número de pessoas possível. Para isso, procuram produzir notícias
que despertem o interesse do destinatário consumidor, mediante frases impactantes,
clichês e apelo à afetividade26. Assim, as mídias não divulgam o que acontece na
realidade social, mas sim, de acordo com seus interesses, impõem o que constroem
do espaço público. De acordo com Charaudeau, estão muito longe de refletir a
verdade, de serem encaradas como um espelho, e
“se são um espelho as mídias não são mais do que um espelho deformante, ou mais ainda, são vários espelhos deformantes ao mesmo tempo, daqueles que se encontram nos parques de diversões e que, mesmo deformando, mostram, cada um a sua maneira, um fragmento amplificado, simplificado, estereotipado do mundo.” 27
E é exatamente este “tipo de espelho” que se pode perceber na revista VEJA. Por
vezes o periódico salienta determinadas características e comportamentos de
Romário. No entanto, em outros momentos, tais questões são obscurecidas dando
espaço para o enaltecimento do talento futebolístico do jogador. Assim, a revista cria
23 AUGUSTI. Op. Cit., p.03. 24 ROSA, R. Apud: AUGUSTI. Op.cit. p.4. 25 CHARAUDEAU. Op.Cit. p.18. 26 Ibidem., p.19. 27 Ibidem., p.20.
19
imagens diversas acerca desse personagem de acordo com seus interesses e
valores.
1.2 Mídia e Futebol – Ídolos e Heróis
O futebol é um fenômeno midiático intrínseco ao capitalismo contemporâneo
e seu desenvolvimento. A partir da década de 1970, houve uma série de impulsos
significativos na Europa que proporcionaram a inclusão de uma mentalidade
empresarial na administração futebolística. Dentre estes estímulos, destacam-se a
mídia televisiva (com as transmissões de partidas ao vivo) e a mídia impressa (com
uma cobertura esportiva não somente objetiva, mas também crítica através dos
chamados “especialistas em futebol”)28. O futebol foi gradativamente deixando de
ser encarado apenas sob o ponto de vista de uma atividade lúdica, de
entretenimento, tornando-se um fenômeno de massas globalizado e uma mercadoria
rentável a ser explorada.
Nesse processo, passou a ocorrer uma intensificação do futebol como um
produto comercializável de um mercado consumidor exigente. A mídia e o marketing
contribuíam para a chamada “espetacularização do futebol”, atraindo o público-
cliente no intuito de acumular capital para investimentos lucrativos cada vez
maiores.29
De acordo com Marcelo Kischinhevsky30, a inserção da mídia no cenário
futebolístico foi o estímulo que permitiu que o futebol atingisse o patamar de negócio
rentável em escala mundial. A lucratividade do esporte perpassa sua relação com o
público consumidor. Assim sendo, não estando apenas restrito ao espaço físico de
um estádio ou uma cidade, um clube futebolístico consegue, por meio da mídia que
divulga notícias referentes a ele, atingir um número muito maior de pessoas,
maximizando a rentabilidade do futebol como negócio. Patrocinadores também
passam a se interessar por essa visibilidade proporcionada pela cobertura midiática 28 PRONI, M. Gestão Empresarial do Futebol num Mundo Globalizado . In: Futebol e Globalização. RIBEIRO, L. (org). Jundiaí, SP: Fontoura. 2007. p.p 19-23. 29 RIBEIRO, L. (org). Futebol e Globalização Jundiaí, SP: Fontoura. 2007, p.p 11-12. 30 KISCHINHEVSKY, M. Do Lábaro que ostentas estrelado – Mídia, futebol e identidade . Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tese de doutorado. Rio de Janeiro. 2004. p.08.
20
ao esporte, de forma que grandes empresas também se envolvem com o meio
futebolístico para ampliar seus ganhos. Por fim, os próprios meios de comunicação
obtém lucro através da veiculação de matérias esportivas, uma vez que o torcedor
quer se sentir próximo ao mundo do futebol, de forma a construir uma relação mais
próxima com seu time, sua seleção, seu ídolo, entre outros.
A mídia desempenha um papel extremamente importante no que se refere ao
relacionamento entre o torcedor e o futebol. Mais do que transmitir e comentar jogos,
os veículos de comunicação permitem que o grande público se envolva com o
esporte e seus personagens, principalmente com os considerados “ídolos”. Estes
são jogadores que representam aos espectadores muito mais do que apenas um
atleta: são considerados quase como “deuses”; indivíduos que mediante seus
talentos fazem a alegria da massa.
No entanto, é importante frisar que a idolatria no campo do esporte se
apresenta de forma diferenciada da de outras áreas. Um ídolo futebolista difere, por
exemplo, de ídolos da música ou cinema. “Enquanto os primeiros freqüentemente
possuem características que os transformam em heróis, os do outro universo
raramente possuem estas qualidades.”31 Assim, um grande jogador de futebol pode
se tornar herói ao marcar um gol decisivo, defender um pênalti importante, ser o
responsável por uma conquista inédita para o seu time ou de inúmeras outras
maneiras. Em outros cenários, adquirir o status de herói se mostra muito mais difícil.
Existem muitos ídolos na música e no cinema: músicos, atores, diretores, etc. Mas
encontrar heróis dentre eles, é muito mais complicado.
Faz se necessário aqui que expliquemos a diferença entre ídolo e herói. Por
este último, entendemos que
“... é quem conseguiu, lutando, ultrapassar os limites possíveis das condições históricas e pessoais de uma forma extraordinária, contendo nessa façanha uma necessária dose de ‘redenção’ e ‘glória’ de um povo. Mas para que sua trajetória heróica alcance este status é necessário que as pessoas acreditem na verdade que as façanhas do herói afirmam. Logo, o mito do herói faz parte de uma relação com os seguidores, os fãs, aqueles que o idolatram. Sem esta relação, este ‘acordo’, o herói não é herói, o que nos leva a concluir, então, que na figura do herói se encontram agrupadas várias representações distintas da coletividade.” 32
31 HELAL, R. Idolatria e malandragem: a cultura brasileira na b iografia de Romário. IN Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v.26, n.2. 2003. p.225. 32 HELAL e MURAD. Apud: GIGLIO, Sérgio Settani. Futebol: mitos, ídolos e heróis . Universidade Estadual de Campinas. Dissertação de mestrado. São Paulo. 2007. p.122.
21
Sendo assim, concebemos que o herói é o sujeito que realizou algo positivo,
grandioso, fora da normalidade; uma conquista não somente para si, mas também
para a sociedade, ou pelo menos uma parcela desta. Este necessita de um
momento, “de uma situação mítica que o coloque em evidência. Como o herói está
vinculado a um evento mítico, seus feitos são perpetuados, imortalizados e
relembrados por muito tempo” 33
Agora, com relação ao que chamamos de ídolo no futebol, podemos entendê-
lo da seguinte forma
“A palavra ‘ídolo’ vem do grego, eidôlon, e significa imagem. Por isso, no futebol, o ídolo tem a sua imagem vinculada ao time que defende. A condição de ídolo pode ser passageira, já que sofre um processo de renovação cíclica que colocará outro jogador em seu lugar; a condição de ídolo pode ser passageira, mas fica na memória dos que o viram jogar e o tinham como ídolo. O ídolo é o protagonista do espetáculo esportivo, sua presença torna-se imprescindível, afinal, sem ele o jogo ‘perde a graça’. Além dos feitos realizados, será lembrado por tudo o que fez pelo clube, pelos campeonatos conquistados, pela identificação com a torcida, pelos jogos inesquecíveis, pelos gols etc. Assim que o ídolo não puder mais sustentar a sua posição, será substituído por outro jogador apto a ocupar o seu lugar...” 34
Nesse sentido, ao ídolo não basta um momento. Ele se constitui por inúmeras
ações, que somadas o fazem ser especial aos olhos da sociedade, mesmo que este
status possa ser passageiro. No entanto, é importante destacar que heroísmo e
idolatria não são categorias excludentes, e que a um indivíduo podem ser atribuídas
as duas terminologias, como no caso de Romário.
Portanto, sendo o futebol esse cenário onde pululam heróis e ídolos da
grande massa, a mídia não poderia deixar de procurar noticiá-los o máximo possível,
uma vez que, conforme mostramos anteriormente, trata-se de um mercado rentável
a ser explorado.
Conforme nos atesta Helal, “o fenômeno da idolatria no esporte moderno
encontra na mídia sua condição de possibilidade. A mídia é a mediadora por
excelência da relação entre fãs e ídolos, podendo legitimar os últimos como heróis
da sociedade”.35
33 GIGLIO, Sérgio Settani. Futebol: mitos, ídolos e heróis . Universidade Estadual de Campinas. Dissertação de mestrado. São Paulo. 2007 p.123. 34 Idem. 35 HELAL, Op. Cit. p.226.
22
No entanto, essa representação do jogador como ídolo da sociedade, como
herói ou deus, de acordo com Hilário Franco Júnior, não se trata de uma novidade
das décadas de 80-90. Essa imagem idolátrica dos jogadores edificada pelos meios
de comunicação já se fazia presente nas décadas anteriores: “... mesmo a européia
(imprensa), de forma geral mais comedida, não demorou a falar no ‘Deus Pelé’,
como por exemplo, o diário esportivo francês L’Équipe (29/04/1963).”36
Entretanto, nas décadas de 80 e 90, com o crescimento de uma lógica
empresarial no universo futebolístico, os torneios foram crescendo
quantitativamente, ganhando maiores projeções no cenário mundial. Assim sendo,
os jogadores, que são os personagens principais dessa atividade, vão se tornando
cada vez mais importantes 37, sendo então idolatrados fortemente pela mídia e
torcedores por seus feitos, por vezes heróicos. Romário é um bom exemplo disso:
atleta que em 1994 tornou-se ídolo nacional como o melhor jogador de futebol do
mundo; um herói, que teria trazido a “glória nacional para um povo faminto de heróis
e comida” 38.
1.3 “VEJA” – Conhecendo a fonte
Na busca pela realização de um bom trabalho historiográfico, é mais do que
imprescindível ao historiador a obtenção de informações acerca do material que irá
ser estudado: ou seja, a sua fonte. Para que pudéssemos entender a abordagem da
revista VEJA com relação ao jogador de futebol Romário, no ano de 1994, partimos
da iniciativa de procurar, primeiramente, conhecer melhor este veículo de
comunicação para a realização de nosso trabalho monográfico. Além de estudar um
pouco de sua história, foi importante para nós percebermos os valores que este
veículo de comunicação popular defende, preza e que considera caros, para que
pudéssemos analisar criticamente a construção de seus discursos referente ao
camisa 11 brasileiro. 36 FRANCO JR, H. A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade e Cultura. São Paulo: Companhia das Letras. 2007. p.259. 37 PRONI, Op.Cit. p.23. 38 GUEDES, S.L., O salvador da pátria. Considerações em torno da ima gem do jogador Romário na Copa do Mundo de 1994. In: GUEDES, S.L (org) O Brasil no campo de futebol. Rio de Janeiro: EDUFF. 1998. p.63.
23
A revista VEJA, nosso documento histórico, é um periódico semanal que se
encontra em circulação desde 1968 até os dias atuais. Publicada pela editora Abril, a
qual foi fundada pelo italiano Victor Civita em 1950, a revista, conforme nos atestam
Maria Silvia Olivi Louzada e Maria Regina Momesso de Oliveira, concebe-se como
“a maior revista brasileira e a quarta semanal de informações do mundo”39.
Tendo como seu público alvo a classe média brasileira, conforme aponta
Alexandre Rossato Augusti40, a revista procura trazer uma temática sobre
atualidades bastante diversificada. Em suas páginas são disponibilizadas ao leitor
uma gama de informações que transitam entre os campos da política, economia e
sociedade, não só do Brasil, como também de todo o cenário mundial.
Trata-se da revista semanal mais vendida no território nacional brasileiro41 e,
de acordo com Augusti, o fator que proporciona à revista VEJA esse grande
destaque no segmento de mídia impressa informativa no Brasil é seu alto poder de
inserção. Por se tratar de uma revista cujos leitores se encontram acima da média
nacional no quesito escolaridade42, o periódico se apresenta como uma instituição
detentora de grande credibilidade, e sendo então legitimado por seu status, atua
como influenciador na tomada de decisões daqueles que o lêem.43
Nesse sentido, segundo o autor, o que caracteriza o discurso da respectiva
revista é o seu caráter explicativo, uma vez que “explicar é próprio de quem julga
deter um saber.” 44 Assim sendo, faz-se necessário à revista explicar claramente os
pormenores de determinado assunto, mediante uma retórica plausível e norteada
por determinados valores, uma vez que se busca estabelecer um modelo de conduta
para o homem contemporâneo.
Um artifício utilizado pela VEJA para conferir credibilidade a suas noticias é o
chamado conhecimento legitimado, que de acordo com Augusti, corresponde à
utilização de argumentos oriundos de sujeitos autorizados (tais como advogados,
pesquisadores, médicos, e, no nosso caso específico: jogadores, membros da CBF,
39 LOUZADA, M. S. O. OLIVEIRA, M. R. M. Identidade e Posicionamento Político das Mídias: “VEJA, indispensável para o país que queremos ser”. ANPOLL 2008. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlm/Ma.%20Silva%20Louzada.pdf p.01. 40 AUGUSTI, A.R. Op. Cit. p.05. 41 Segundo pesquisa do site http://lista10.org/curiosidade/as-10-revistas-semanais-mais-vendidas-do-brasil/ acessado em 30/10/2010. 42 O que o autor define como os “formadores de opinião”. AUGUSTI. Op.Cit. Ibidem., p.14. 43 Idem. 44 Ibidem., p.05.
24
e demais destaques no cenário futebolístico), além de números comprovativos que
elucidem a questão (como resultados, tabelas, gráficos, etc.).
Agora, é sabido que toda a produção jornalística, incluindo a da VEJA, é
regida por seus valores. Por valores, entendemos que estes se tratam de
parâmetros que orientam o comportamento individual e que proporcionam a
aceitação do sujeito a um determinado grupo. Em outras palavras,
“O comportamento de cada indivíduo é aceito pelos seus próximos quando subordinado a parâmetros, que denominamos valores e que determinam os acertos e os equívocos na produção e utilização das intermediações criadas pelo homem para a sua sobrevivência.” 45
Sendo assim, fez-se de extrema importância a nós buscar conhecer e analisar
os valores que estariam regendo a construção dos discursos referentes ao
“baixinho” Romário no ano da conquista do tetracampeonato mundial de futebol, nos
Estados Unidos.
Louzada e Oliveira destacam que a revista é conhecida por sua postura
liberal, e que esta orientação política é perceptível claramente em suas reportagens.
No entanto, as autoras chamam a atenção para uma edição especial da respectiva
revista - a de comemoração aos 2000 exemplares publicados46 - que consideramos
relevante de tratarmos aqui. Nesta encontra-se uma matéria onde o periódico, em
uma reflexão sobre sua história, procura chamar a atenção dos destinatários para
seus valores, enfatizando que estes são defendidos desde o início de sua trajetória
(passando assim pelo nosso recorte temporal: 1993-94), permanecendo firmes até
aquele momento .
“Desde sua criação, VEJA vem se desenvolvendo em torno de idéias que atravessam o tempo e continuam solidamente arraigadas na corrente do melhor pensamento de nosso tempo. Em sua edição de número 523, de 1978, quando completou dez anos de vida, VEJA enfatizou os compromissos que a levaram, já um sucesso editorial confirmado, ao final de sua primeira década. VEJA se declara liberal: ‘Para nós, ser liberal é querer o progresso com ordem, a mudança pela evolução e a manutenção da liberdade e da iniciativa individuais como pedra angular do funcionamento da sociedade’. Em sua reafirmação de princípios, a revista defendia então o capitalismo por acreditar que ‘a livre iniciativa é o meio mais eficiente para promover o progresso social (...) por ser o único sistema compatível ao mesmo tempo com uma sociedade pluralista, com as
45 AUGUSTI, A.R. Op. Cit. p.02. 46 As autoras destacam, na página 01 de seu trabalho, a seguinte publicação: VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 2000, 21 de março de 2007. Edição especial.
25
liberdades fundamentais do indivíduo, com a eficiência, com o dinamismo, com inovação’. Ao chegar à edição 2000 e lançar um olhar para as capas do passado, a sensação óbvia que se tem é que o mundo caminhou na direção que a revista acreditou ser a mais correta durante toda a sua história. – e continua acreditando.” 47
No trecho acima, percebe-se que a revista VEJA, além de se afirmar
francamente adepta ao posicionamento político liberal e capitalista em todos os seus
anos de existência, elucida dentre os seus valores o apego pela ordem, pois a
considera de fundamental importância para se alcançar o progresso. O
conhecimento deste valor caro ao periódico foi extremamente relevante para nós em
nossa busca por entender o motivo que teria levado os discursos da revista,
referentes a Romário, à serem construídos de forma peculiar, ou melhor, pendular.
Assim, o jogador é, em determinados momentos representado como gênio; como
um jogador brilhante, decisivo e indispensável à Seleção Brasileira. No entanto, em
outras ocasiões, é destacado seu comportamento como indisciplinado, arrogante e
avesso à ordem imposta aos demais jogadores do selecionado canarinho. Acerca
dessa questão, discorreremos mais adiante.
47 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 2000, 21 de março de 2007. p.p 56-57.Edição especial.
26
2. ROMÁRIO
2.1 O jogador autêntico
Romário de Souza Faria nasceu em 29 de janeiro de 1966, na favela do bairro
Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Oriundo de uma família humilde, passou boa parte
de sua infância pobre na Vila da Penha, jogando futebol no “Estrelinha Futebol
Clube” – escolinha de futebol fundada por seu pai Edevair 48. No entanto, Romário
não tinha o estereótipo considerado padrão a um atleta futebolístico, tanto
fisicamente quanto de comportamento. De acordo com Washington Rodrigues,
tratava-se de um garoto arrojado, que ao ingressar na busca pelo objetivo de se
tornar jogador de futebol, sonho este de tantos outros meninos, contrariava a todos
os padrões que a profissão exigia. “Baixinho, pernas arcadas tipo cowboy, nariz
empinado, preguiçoso e sempre sonolento, especialmente quando ouvia falar em
treinamento. Só o pai, seu Edevair, acreditava que o sonho do moleque pudesse
virar realidade”. 49
Porém, em 1979, Romário conseguiu ingressar no infantil do Olaria e a partir
daí não só conseguiu tornar-se jogador profissional (em 1986 no Vasco da Gama)
como chegou ao ápice da sua carreira, conquistando os títulos de tetracampeão
mundial com a Seleção Brasileira, em 1994, e de melhor jogador de futebol do
planeta, no mesmo ano.50
Romário foi um jogador de futebol muito badalado devido a seu grande talento
com a bola nos pés, seu posicionamento em campo e sua incrível capacidade de
finalização. Para muitos, é considerado o maior atacante da história do futebol
mundial dentro da grande área, superando inúmeros outros grandes nomes do
futebol. De acordo com o jornalista Juca Kfouri, “Romário foi o melhor jogador que vi
atuar dentro da grande área. E olhe que vi Coutinho, que o próprio Pelé diz ter sido
48 MORAES, M.V.R. Romário . Rio de Janeiro: Altadena. 2009. 49 RODRIGUES. W. Apud: MORAES, M.V.R. Op. Cit. p16. 50 Vide MORAES, M.V.R.Op. Cit. p.290.
27
melhor que ele na zona do agrião.”51 Um atleta dotado de uma capacidade ímpar,
um gênio habilidoso, preciso e, segundo o treinador Joel Santana, “o melhor
centroavante de todos os tempos, incomparável, diferenciado, excepcional!”. 52
O baixinho jogou por muitos clubes, atingindo o patamar de ídolo no Brasil
nos times cariocas que defendeu (o Vasco da Gama, O Flamengo e o Fluminense).
“[Romário] conseguiu ser ídolo pelos clubes que passou, e o mais interessante: sempre deixando marcas e saudades. Jogou nos grandes rivais, Vasco e Flamengo e permanece querido pelas duas torcidas. Jogou no Fluminense e além de não perder a identidade com vascaínos e rubro-negros, conseguiu agregar a sua imensa legião de fãs a galera tricolor” 53
Romário também deixou sua marca na Europa, onde defendeu as cores do
PSV da Holanda, e do Barcelona e Valencia da Espanha. O baixinho ainda
aventurou-se nos Estados Unidos, atuando pelo Miami F.C., na Austrália, no
Adelaide United, e até no mundo árabe, onde jogou pelo Al-Saad. Uma trajetória
vitoriosa, repleta de títulos, prêmios e muitos gols 54. Gols estes que contribuíram
para o alcance da marca dos seus mil gols em 2007.
No entanto, não são somente suas incomensuráveis qualidades futebolísticas
que fazem Romário ser Romário. Provido de uma personalidade forte, de uma
postura autêntica encarada por muitos como arrogante e marrenta, Romário é o tipo
de sujeito que não mede suas palavras, falando o que pensa doa a quem doer.
Sobre isso, o próprio jogador afirma que
“esse meu lado verdadeiro, vem da minha família, do meu pai, que sempre nos ensinou, a mim e a meus irmãos a sermos simples e objetivos, com firmeza nas coisas, valorizando a amizade e tendo personalidade. São valores que prezo bastante. Considero de grande valor também, uma pessoa que fala pela frente e confirma o que disse se for questionada. Eu sou assim. Infelizmente no ambiente do futebol, as pessoas não têm o hábito de honrar o que falam. Por vezes vi companheiros dando entrevistas polêmicas. Freqüentemente, quando confrontados, eles negavam e culpavam jornalistas. Raramente os jornalistas gravavam as entrevistas que eu dava, a maioria sabia que eu sustentava aquilo que falava. No futebol, é quase impossível surgir um novo Romário. Não só dentro de campo, mas especialmente aquele que fala o que tem vontade.” 55
51 KFOURI, J. Apud: MORAES. Op. Cit. p.257. 52 SANTANA, J. Apud: MORAES. Op. Cit. p.107. 53 RODRIGUES, W. Apud: MORAES, Op. Cit. p.16 54 Vide tabela com dados da carreira do jogador em: MORAES.Op. Cit. p.282. 55 Ibidem., p.12.
28
Sendo assim, a carreira de Romário foi marcada não somente pelos seus gols
e jogadas magistrais, mas também por inúmeros problemas extra-campo,
geralmente ligados a esta sua personalidade. Querelas com companheiros de time e
jogadores adversários; problemas com a imprensa; divergências com técnicos e
dirigentes de clubes, enfim, foram muitas as situações onde Romário tornava-se
notícia pelo seu comportamento glicerínico. Aqui, daremos ênfase, mais adiante,
apenas aos problemas comportamentais que ocorreram no período em que o
jogador esteve servindo à seleção, do final das eliminatórias de 1993, até um mês
após a conquista do tetra, retratados pela revista VEJA, nossa fonte de estudo.
2.2 Romário e a Copa do Mundo de 1994
Julgamos extremamente importante observarmos como se deu a campanha
do selecionado brasileiro, do final das eliminatórias até o mundial de 94 nos Estados
Unidos, para que pudéssemos analisar a forma como se constituiu o discurso da
VEJA com relação a Romário. O periódico traz não apenas dados factuais referentes
à competição, mas procura criar uma interpretação dos acontecimentos,
especialmente no que diz respeito ao camisa 11 brasileiro. Pois bem, utilizando a
obra de Pedro Ernesto Denardin e Cláudio Dienstmann56, juntamente com dados do
arquivo de futebol “Bola na Área”57, e os vídeos disponíveis no site do Youtube58,
nos foi possível analisar a trajetória da Seleção Brasileira até a conquista do
tetracampeonato.
A Copa do Mundo de 1994, realizada nos Estados Unidos, reuniu 24 seleções
dentre as quais a do Brasil. Este era o único país que até então tinha comparecido a
todas as edições do torneio. Desde o primeiro campeonato, que foi realizado no
Uruguai no ano de 1930, a Seleção Brasileira esteve entre os países que buscavam
a conquista do título de melhor seleção de futebol do planeta.
O selecionado brasileiro garantiu sua participação no mundial de 94 de
maneira um tanto quanto dramática. Havia apenas duas vagas no grupo B das
56 DENARDIN, P.E. DIENSTMANN, C. O Brasil de todas as copas. Porto Alegre: Brasul. n/c. 57 Disponível em http://www.bolanaarea.com/gal_copa_do_mundo.htm 58 http://www.youtube.com/results?search_query=Brasil+Copa+94&aq=f
29
eliminatórias sul americanas para a Copa, e Brasil e Uruguai se encontravam com o
mesmo número de pontos até a última rodada, na qual se enfrentariam. A Bolívia,
que possuía um ponto a mais que ambos, jogaria pelo empate com um Equador já
desclassificado. Logo, tanto Brasil quanto Uruguai precisavam da vitória.59 Além
disso, o risco de permanecer fora de uma competição de tamanha magnitude e
perder o status de ser o único país a disputar todos os mundiais era uma grande
preocupação. Sendo assim, a comissão técnica, formada por Carlos Alberto Parreira
e Mario Jorge Lobo Zagalo, decidiu convocar novamente Romário, atendendo ao
clamor popular. Sobre essa questão, Hércules de Souza Simões – o “Piloto”-, um
amigo íntimo de Romário, alegou que
“a Seleção Brasileira estava mal nas eliminatórias e houve aquele apelo popular pela convocação dele. Liguei para a Holanda e falei que do jogo com o Uruguai ele não passaria: ‘Parceiro, fica ligado que o Parreira está com o cu na seringa e vai te convocar até pra te deixar numa roubada’. Não deu outra.”60
O jogador retornava à Seleção Brasileira depois de um período afastado das
convocações por motivos disciplinares, de acordo com os treinadores da Seleção. O
jogo ocorreu no dia 19/09/93, o atacante marcou dois gols e o Brasil carimbou o
passaporte para a Copa.
Nesse sentido, o Brasil chegava ao mundial, mas não como favorito à
conquista do título. Muitas críticas eram dirigidas à comissão técnica, acusada pela
torcida de “enfeiar” o futebol brasileiro, buscando apenas a obtenção de resultados
positivos em lugar do jogo bonito.
“Em todos os jogos do Brasil na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos era sempre a mesma coisa quando, depois de ler o nome dos jogadores o locutor apresentava o técnico Parreira: vaia total de milhões de torcedores brasileiros no estádio”.61
O clima entre o “selecionado canarinho” e os torcedores brasileiros não era
dos melhores. Contudo, o Brasil foi realizando uma boa campanha no mundial, e
assim, à medida que avançava na competição, a possibilidade de se conquistar o
tão sonhado tetracampeonato foi ficando cada vez mais tangível.
59 http://www.arquivodosmundiais.com/copa/1994/conmebol/1994b.htm 60 SIMÕES, H. Apud: MORAES. Op.cit. p.64. 61 DENARDIN, P.E. DIENSTMANN, C. Op. Cit. p.49.
30
Na estréia, contra a Rússia, no Estádio de Stanford, Romário marcou o
primeiro gol da partida e Raí, convertendo o pênalti sofrido pelo baixinho, ampliou o
marcador em 2x0. O Brasil garantia seus três primeiros pontos na Copa, aliviando a
tensão que gira em torno da estréia em uma competição de tamanha importância
como o mundial de futebol.
Contra Camarões, a situação foi um tanto quanto similar. O “baixinho” foi
autor de um dos gols da tranqüila vitória por 3x0 no mesmo Stanford Stadium em
San Francisco. Márcio Santos e Bebeto também deixaram os seus, e com os seis
pontos já conquistados, combinados com os outros resultados do grupo, o Brasil já
se encontrava classificado para a próxima fase, independente do resultado do jogo
contra a Suécia. Bastava um empate para que a Seleção Brasileira garantisse o
primeiro lugar do grupo B, e foi o que ocorreu. No embate contra os suecos, no
Silverdome em Detroit, o Brasil foi para o intervalo perdendo por 1x0, gol de Kennet
Andersson, mas Romário, no segundo tempo, garantiu o empate em 1x1.
Assim, a Seleção Brasileira classificava-se com o primeiro lugar do grupo B
da Copa do Mundo, indo encarar os Estados Unidos, “donos da casa”, nas oitavas
de final. O jogo ocorreu no dia 4 de julho de 1994, feriado estadunidense,
novamente no Estádio de Stanford. Na partida, o selecionado brasileiro perderia
Leonardo expulso por uma cotovelada em um jogador adversário ainda no primeiro
tempo. Tratava-se de um jogo nervoso onde o 0x0 persistia até o único gol da
partida, marcado por Bebeto, aos 27 minutos do segundo tempo. Gol este que
garantiu a passagem para as quartas de final e que indubitavelmente se tratou de
um gol importantíssimo.
Em Dallas, no estádio Cotton Bowl, o Brasil enfrentou a Holanda em um jogo
muito disputado pelas quartas de final. Popularmente, esta partida se tratou de um
dos maiores e mais emocionantes confrontos da história das copas. O placar final foi
de 3x2 para o Brasil, gols de Romário e Bebeto no primeiro tempo, e Branco, de
falta, na segunda metade do segundo tempo. Assim, o Brasil avançava as semi-
finais para novamente encarar a seleção sueca.
Na partida contra a Suécia, no Rose Bowl, a “Seleção Canarinho” só
conseguiu marcar no segundo tempo, vencendo pelo placar de 1x0, gol de Romário.
O baixinho, aos 35 minutos, se posicionaria entre os zagueiros suecos e cabecearia
no canto direito do goleiro Ravelli, garantindo a passagem do Brasil para a final da
Copa do Mundo dos Estados Unidos.
31
No mesmo Rose Bowl, no dia 17 de julho de 1994, a Seleção Brasileira
enfrentou a Itália pela decisão da Copa do Mundo na disputa por quem seria o
primeiro país a se tornar tetracampeão mundial de futebol. A partida terminou
empatada em 0x0 no tempo normal e na prorrogação, levando a final para os
pênaltis. Com as cobranças resultadas em gols de Romário, Branco e Dunga, o
Brasil venceu a Itália por 3x2 , conquistando assim o tão almejado tetracampeonato
após 24 anos de espera.
Essa descrição da campanha brasileira na Copa de 1994 por si só já nos
mostra a importância que Romário teve para a conquista do título, sendo que além
de marcar gols tinha boas atuações nos jogos disputados. Ora com gols, ora com
jogadas talentosas, “Romário foi sem dúvida o nome da Copa do Mundo de 1994” 62.
No entanto, o que iremos analisar a seguir é como a revista VEJA, um veículo
de comunicação de grande circulação no Brasil, tratou a imagem de Romário
perante o grande público. Selecionamos para esse fim, 49 exemplares do periódico,
publicados de setembro de 1993 (mês de retorno de Romário a seleção) a agosto de
1994 (um mês após a conquista do mundial).
62 BUENO, G. Programa “Bem amigos”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=MLi1cyeTH1k Acessado em 06/11/2010.
32
3. A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI
3.1 O mau filho a casa torna
Para que possamos analisar o discurso da VEJA no que se refere a Romário
e sua atuação na Copa do Mundo de 1994, é preciso que primeiramente nos
remetamos a questões anteriores, de forma que se possa compreender melhor o
contexto em que se insere nosso objeto de estudo.
Em dezembro de 1992, o jogador Romário, embora tenha sido convocado
para uma partida amistosa entre Brasil e Alemanha, em Porto Alegre, acabou sendo
relacionado no banco de reservas. De acordo com Simoni L. Guedes, “naquele
momento iniciava-se a transformação de Romário na maior estrela do selecionado
brasileiro neste campeonato [a Copa do Mundo de 1994]” 63.
Segundo a autora, o jogador não teria gostado de não estar escalado dentre
os jogadores titulares e, sendo assim, acabou discutindo com a comissão técnica,
mais precisamente com o auxiliar Mario Jorge Lobo Zagalo, acerca de sua não
escalação64. Segundo a revista VEJA, no calor da discussão, Romário teria dito que
“se soubesse que era pra ficar no banco, não teria viajado”.65 Isso teria desagradado
a Zagalo, que passaria então a encará-lo como um “fator de desagregação da
equipe”.66 Assim, este fato aparentemente encerrava a carreira do jogador na
seleção, pois para muitos, incluindo o próprio jogador67, enquanto a CBF mantivesse
os nomes de Parreira e Zagalo na comissão técnica, seria muito difícil ele ser
novamente convocado.
Para Guedes, o episódio supracitado pode ser descrito como uma querela
decorrente
63 GUEDES, S. L. Op. Cit. p.64. 64 Idem. 65 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1305, 15 de setembro de 1993. p.79 66 Idem. 67 Vide a entrevista de Romário ao programa “Bem amigos”, disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=MLi1cyeTH1k Acessado em 06/11/2010.
33
“da desmedida autoridade derivada da posição de treinador ou técnico frente aos jogadores, no futebol brasileiro, bem como da posição especial dos craques. Singulares por definição, cada um deles assume contornos individuais específicos, redundando em diferentes relações tanto com dirigentes e técnicos quanto com jornalistas esportivos”68.
O fato é que Romário permaneceu afastado das convocações durante 9
meses, mas consolidou-se como nome de grande destaque no futebol europeu
neste período, atuando pelo Barcelona da Espanha. A má campanha do Brasil nas
eliminatórias para a Copa fazia com que houvesse uma forte pressão popular para
que o baixinho tornasse a vestir a camisa amarela da Seleção69. Quando foi
divulgada a lista de convocados para o último e decisivo jogo contra o Uruguai, e o
nome de Romário se encontrava entre os selecionados, a revista VEJA procurou
divulgar o evento da seguinte forma: “Quem faltava chegou! A CBF volta atrás e
Parreira convoca Romário, o indisciplinado carrasco dos goleiros.” 70
Percebe-se logo nesta chamada que, mesmo fazendo uma alusão à sua
habilidade como atacante, a revista não deixa de enfatizar a questão
comportamental do jogador. Ao longo de toda a matéria, o periódico, após descrever
a discussão ocorrida no amistoso em Porto Alegre, não poupa esforços em procurar
criticar a conduta do jogador, remetendo-se até mesmo a assuntos anteriores ao seu
desentendimento com a comissão técnica na partida contra a seleção da Alemanha:
“Arrogante e sem senso de modéstia, um Mohamed Ali de chuteiras, o atleta vinha fazendo declarações comedidas e até simpáticas quando as coisas andavam pretas para o lado do técnico [enquanto Romário se mantinha afastado das convocações] (...). Sua história de indisciplina é antiga. Foi essa a razão para dispensa pelo técnico Gilson Nunes da seleção de juniores que foi campeã mundial em Moscou em 1985. No tempo em que jogava no Vasco da Gama, o jogador foi advertido por faltar treinos. Em 1989, foi suspenso por três partidas após agredir um adversário num jogo entre Brasil e Chile. Nos cinco anos que jogou no PSV Eindhoven, da Holanda, de onde saiu este ano, ele se destacou tanto pelos gols que marcou quanto pelos atritos. Há dois anos, foi multado por não treinar e seus companheiros pediram sua cabeça alegando que o brasileiro não tinha espírito de equipe. ‘O PSV é Romário e mais dez’, contra atacou” 71.
No entanto, a alta qualidade futebolística de Romário também não deixa de
ser destacada pela VEJA nesta mesma matéria, porém de modo mais discreto. No
trecho abaixo, percebe-se que a revista não elogia o jogador diretamente, mas utiliza 68 GUEDES. Op. Cit. p.65. 69 HELAL. Op.Cit. p.228. 70 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1305, 15 de setembro de 1993. p.79 71 Idem.
34
o argumento de terceiros para isto, e o que está sendo descrito não é a própria
opinião do periódico, mas sim o que outros diziam a respeito de Romário.
“Veloz e hábil, Romário é o atacante que os torcedores gostam de ver atuar. ‘É um grande goleador’, diz o ex-líder do carrossel holandês Johan Cruyff. (...) Romário corre ereto, cabeça levantada, tronco reto e peito estufado, contrariando as leis da aerodinâmica, que aconselham correr inclinado para a frente”72.
Assim, esta declaração difere das demais, no sentido em que não carrega
consigo o teor de verdade atribuído às afirmações feitas por VEJA. É preciso
ressaltar que apesar de as matérias de um veículo de comunicação não serem
expressão fiel da verdade, é de interesse da revista que elas assim pareçam, de
forma que suas opiniões sejam tomadas como acertadas pelos leitores. Portanto, ao
apontar as qualidades futebolísticas do atleta, diversas vezes a revista não o faz
utilizando-se de sua própria voz, mas sim da de terceiros, de forma que o elogio não
seja tão enfático e proferido necessariamente pelo periódico. Não se podia deixar de
falar do talento de Romário, mas isso é recorrentemente feito nessa matéria de
modo a apenas refletir o pensamento das pessoas em geral, não acrescentando a
autoridade de VEJA à declaração.
É importante destacar esta postura pendular assumida pela revista com
relação a Romário, ora tratando da pessoa de comportamento problemático, ora das
habilidades futebolísticas do grande atleta. É possível relacionar tal posicionamento
do periódico com os próprios valores proferidos pela VEJA, a citar a ordem e o
progresso73. O jogador, ao ser encarado como um fator de desagregação, seria um
elemento contrário a uma ordem estabelecida, de forma que poderia atrapalhar o
progresso do time. Por ordem subentende-se a comissão técnica do Brasil, a qual
estabelecia as normas de funcionamento da delegação, sendo estas já tendo sido
ignoradas ou afrontadas por Romário.
Nesse sentido, VEJA procura enfatizar aos seus leitores que, embora se
falasse muito do talento do atleta, não se poderia esquecer que este ia contra uma
determinada ordem, a disciplina tão defendida pela comissão técnica, o que poderia
prejudicar os resultados da Seleção na Copa do Mundo. Isso fica ainda mais claro
quando se retoma a indisciplina do jogador no campeonato de juniores, no qual
72 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1305, 15 de setembro de 1993. p.80. 73 Vide item 1.3 – conhecendo a fonte -, p. 24.
35
Romário foi afastado e o time saiu vitorioso. Assim, teria sido justificado o ato da
comissão técnica da equipe de juniores de 1985, uma vez que o fator de
desarticulação da equipe foi eliminado e o objetivo não deixou de ser
satisfatoriamente atingido.
Porém, existindo um forte apelo popular para que Romário retornasse à
Seleção, a VEJA não poderia simplesmente contestar a reconvocação de um
jogador aclamado pelo povo brasileiro. Isto representaria ir contra a opinião pública,
e, conseqüentemente, menos vendas e menos lucro para os cofres da editora Abril.
Noticiar a respeito do talento de Romário era preciso, mas sem deixar de propagar
os valores tão caros ao periódico, lembrando o potencial perigo de se ter um jogador
problemático no elenco.
Assim sendo, VEJA critica a pessoa, devido a seu ideário, mas também elogia
o jogador, embora de uma maneira um tanto quanto mais contida, pela necessidade
de o fazê-lo.
“O goleador não nega fogo. Está sempre no lugar certo na hora certa e faz a bola chegar ao gol com a mesma freqüência com que se mete em confusão.” 74
Tão elucidativa quanto a matéria anteriormente mencionada é o silêncio da
revista nas edições subseqüentes do ano de 93. Estas pouco mencionam a respeito
do atleta, mesmo após seus dois gols na vitória do Brasil sobre o Uruguai, sem a
qual a equipe não teria se classificado para o mundial de 94. Em verdade, a própria
classificação brasileira é quase que ignorada. Tal fato curioso é ainda mais revelador
da rejeição da VEJA por Romário, sendo que, de acordo com os valores defendidos
pela revista, a normalidade seria que a ordem disciplinar prevalecesse ou que o
fracasso viesse. Mas o que ocorreu foi justamente o oposto. Mesmo com a
participação de Romário, ou mais ainda, por causa da participação de Romário, o
sucesso nas eliminatórias foi alcançado, de forma que a “desordem e indisciplina”
nessa ocasião não se colocaram como inimigas do progresso. Nesse sentido, nem a
VEJA poderia negar a importância do baixinho, que afirmou: “foi a melhor atuação
da minha vida.”75
74 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1305, 15 de setembro de 1993. p.80. 75 Romário em entrevista concedida ao programa de TV Bem Amigos disponível no site: http://www.youtube.com/watch?v=MLi1cyeTH1k Acessado em 06/11/2010.
36
Assim sendo, há quase que uma total omissão nas outras edições de 1993
quando se trata da Seleção Brasileira e seu atacante. Há apenas uma breve menção
a Romário e seus “dois gols salvadores”76, em uma matéria de 17 de novembro,
várias edições após a partida em questão, cujo foco principal é Ronaldo, o então
baby-star. Em verdade, o baixinho só é citado pois o comparam ao jovem atleta em
sua habilidade futebolística mas como seu oposto no quesito conduta disciplinar. A
VEJA deixa claro que ambos os jogadores possuíam talento, mas o foco da
comparação é evidenciar o bom comportamento de Ronaldo contra a indisciplina de
Romário. Assim, enquanto um teria habilidade e disciplina, o outro, apesar de seus
dons, não seria tão bom em termos comportamentais. Novamente, percebe-se o
apreço do periódico ao valor da ordem, sendo que só foi mencionada a boa atuação
de Romário para que se pudesse destacar o modelo de bom jogador, o qual além do
talento, deveria apresentar também uma boa conduta disciplinar.
“Ronaldo pode exibir a mesma destreza com a bola nos pés de um Romário, o craque minúsculo que levou o Brasil à Copa com dois gols salvadores contra o Uruguai, mas nunca a rebeldia. O garoto se dedica aos treinos e é bem comportado dentro de campo. Nunca tomou um cartão amarelo em toda sua carreira...” 77
Nesse sentido, a situação que se desenhava em 1993, de acordo com Helal,
era a de um cenário onde a questão do desempenho de Romário se confrontaria
com a disciplina imposta na seleção. “E este jogo de forças será marcado por uma
tensão muito grande durante todo o período, até a conquista da Copa do Mundo de
1994.” 78
3.2 A VEJA no aquecimento para a Copa
De um modo geral, ao analisarmos as edições da VEJA publicadas no início
do ano da Copa do Mundo dos Estados Unidos, pudemos perceber que o
posicionamento pendular da revista com relação a Romário permaneceu até o início
do Mundial. Porém, de modo mais equilibrado do que em 1993. 76 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1314, 17 de novembro de 1993. p.92. 77 Idem. 78 HELAL. Op Cit. p.228.
37
Em muitos exemplares percebe-se que não faltam elogios ao talento
futebolístico deste jogador, tão aclamado pela população, nas matérias do periódico.
Pudemos comprovar isto logo na primeira publicação de 1994, onde VEJA afirma
que:
“Romário personifica a expressão gênio dos gramados (...) Baggio foi eleito o melhor jogador do mundo [em 1993], mas qualquer brasileiro, mesmo que nunca tenha assistido a uma partida de futebol, acha que Romário é melhor que ele (...) ele [Romário] é a maior esperança do Brasil na copa” 79
No entanto, também não faltam matérias e reportagens que se apresentam
sob um posicionamento crítico a “pessoa” de Romário, onde seu comportamento
indisciplinado estaria levando a CBF a até mesmo tomar providências para impedir o
fracasso da Seleção no mundial dos Estados Unidos.
“Um caso a parte é Romário, unanimidade nacional como melhor jogador brasileiro no momento, Romário arma confusões fora de campo com a mesma facilidade com que faz gols dentro do gramado. A comissão pretende passar um recado, endereçado a Romário, a todos os jogadores: A CBF prepara um manual de bom comportamento no qual proíbe os jogadores de fazer críticas a companheiros ou ao técnico...” 80
Porém, um ponto interessante de destacarmos é que, neste período, a revista
apresenta uma outra maneira de criticar o atleta. Esta remete-se a situação
financeira do mesmo, aproveitando-se do fato de que Romário era um dos jogadores
mais valorizados economicamente daquele momento. Logo no título da matéria
“Futebol Social - Pesquisa mostra que o jogador vive melhor hoje do que na época
em que a Seleção ganhava todas as Copas” 81, já se percebe a sutileza da crítica.
Esta não somente endereçada a Romário, é claro, mas aos jogadores brasileiros em
geral, que apesar de ganharem muito dinheiro, nada conquistaram para o país,
diferentemente dos craques das antigas gerações de 50, 60 e 70.
Nesta reportagem, recorrendo a várias pesquisas para comprovar seus
argumentos 82, a revista procura utilizar a grande diferença econômica que passou a
existir no futebol moderno como um discurso tendencioso. Neste, a VEJA procura
79 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1321, 5 de Janeiro de 1994. p.50. 80 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1332 de 23 de março de1994 p.44. 81 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1336 de 20 de abril de 1994 p.p.44-46. 82 Walter Gama/ UNESP e dados da CBF.
38
mostrar quão injusta é a valorização milionária de jogadores que nada, até aquele
momento, haviam conquistado para o Brasil.
Além de uma comparação entre Pelé e Romário, o periódico também ressalta
a maneira deste último de gastar o montante que adquirira, sendo esta colocada
como um tanto quanto esnobe. A matéria aponta sutilmente que o baixinho talvez
não merecesse salário tão elevado por nada ter conquistado com a seleção,
situação diametralmente oposta da de Pelé, ídolo inquestionável que primeiro
ganhou títulos com a “amarelinha” para depois passar a receber um salário maior. A
revista ainda enfatiza a discrepância entre a renda do rei e a do baixinho; este último
ganharia um salário muito maior, no entanto, para a VEJA, isto não seria garantia de
um futebol a altura de conquistar títulos.
“Romário, a quem se costuma atribuir um comportamento nada exemplar, comprou dez apartamentos num condomínio na Barra da Tijuca. 600 000 dólares. Já o rei Pelé, só foi ganhar dinheiro de verdade quando deixou o futebol, foi contratado pela Warner e disse Love, Love, Love em Nova York. O goleiro Gilmar, outro campeão de 1958 e 1962, conta que foi testemunha de uma proposta de 3 milhões de dólares a Pelé, por uma única temporada na Itália. Sem perder a majestade, o rei recusou (...) Só depois de retornar da Suécia com o primeiro título de campeão do mundo, Pelé passou a receber um salário anual equivalente a 61 000 dólares. Romário, sem título algum, recebe 1 milhão de dólares por ano do Barcelona, seu clube da Espanha. Dentro do campo, essa dinheirama não significa necessariamente um futebol melhor (...) Ganhando ou perdendo a Copa, os jogadores podem ficar em paz com uma polpuda conta bancária”.83
Os jogadores de futebol badalados das décadas de 80 e principalmente 90,
realmente passaram a ganhar uma quantia monetária muito mais significativa do que
os atletas de antigamente. Isso ocorreu devido ao fato de o futebol se tratar de uma
instituição intrínseca à história do capitalismo contemporâneo e seu
desenvolvimento.84 Segundo Ribeiro, a expansão do capitalismo no cenário mundial,
desde o final do século XIX, foi remodelando as sociedades de uma maneira
considerável. Nesse sentido, o final do século XX é marcado por transformações
estruturais “caracterizadas por um novo boom expansionista e a mundialização de
novos padrões tecnológicos e culturais de mercado”. 85 Isso levou a uma
espetacularização da indústria cultural de consumo, e o futebol, como um produto
cultural, passou a ser consumido em grande escala. Conseqüentemente, a atividade 83 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1336, 20 de abril 1994 p.p 44-45 84 RIBEIRO. L. A crise da autonomia no futebol globalizado: A experiência européia (1985-2007) in: RIBEIRO (org) Futebol e Globalização. Jundiaí, SP: Fontoura. 2007. p.49. 85 Idem.
39
futebolística passou a ser regida sob uma ótica empresarial, atraindo mais capital
para os campeonatos, e fazendo com que jogadores passassem então a receber
quantias milionárias. Nesse contexto, de acordo com Antônio Jorge G. Soares,
“... o esporte passou a envolver quantias elevadas de capital (...) e vincular-se ao consumo de bens, produtos e serviços. Os eventos esportivos, como as Copas do Mundo, tornaram-se locais de negócios e de movimentação financeira antes inimaginável, aliam-se produtos e marcas a atletas e atletas a competição.”86
Assim sendo, percebemos que o fato de os jogadores da década 90 estarem
sendo mais valorizados financeiramente do que os campeões de 58, 62 e 70, trata-
se de uma situação originada pelo processo de desenvolvimento do capitalismo no
cenário mundial. No entanto, a VEJA preocupa-se apenas em lançar dados
numéricos comparando jogadores de dois contextos distintos, principalmente Pelé e
Romário, sem procurar explicar o motivo de tamanha diferença monetária entre o
salário dos atletas. O discurso da revista não apresenta aos leitores critérios
adequados de comparação, de forma que apenas passa uma mensagem distorcida
a seu leitor. Este poderia estar sendo induzido a reprovar os jogadores de 94,
especialmente Romário, pois este ganharia muito mais dinheiro que Pelé, mas é
apresentado como menos merecedor de tamanho salário.
Outro ponto importante de analisarmos aqui, no que se refere à desaprovação
da revista a Romário, diz respeito a seu comportamento, encarado pela revista como
arrogante e prepotente:
“É indisciplinado, encrenqueiro, individualista e rebelde. Angelical dentro do campo, fora dele endiabrado. Diz exatamente o que pensa, mesmo quando resvala para a prepotência, arrogância e a grosseria”. 87
O trecho acima se encontra em uma matéria publicada a um mês do início da
Copa, a qual versa sobre o confronto do Brasil com o Uruguai em 93, onde Romário
teria sido o responsável pela vitória e classificação da Seleção Brasileira. Pois bem,
a VEJA destaca que o baixinho, após ter feito os dois gols da partida, teria dito a um
86 SOARES. Copa da Alemanha 2006: Futebol globalização e o mundo dos negócios na pós modernidade. In Ribeiro(org) Futebol e Globalização. Jundiaí, SP: Fontoura. 2007. p69 87 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1340, 18 de maio de 1994. p.80.
40
amigo militar a seguinte frase: “Coronel, hoje eu sou general. Está tudo parado por
minha causa. Eu sou o Dono do Brasil”. 88
Romário é o tipo de pessoa que não se envergonha em elogiar a si próprio e
a se gabar de seus feitos, atitude que para muitos se trata de arrogância. É
interessante pensarmos o motivo de se conceber como arrogante as afirmações de
Romário acerca de si mesmo. Ronaldo Helal ao tratar dessa questão, salienta que:
“É curioso notar que esta “sinceridade” em se achar bom e competente não é uma atitude muito comum no Brasil. Roberto Da Matta (1977), por exemplo, já tinha sublinhado o fato de que, diferente da sociedade americana, dificilmente um brasileiro se diz bom em alguma coisa. A falsa modéstia é uma vertente muito mais comum e recorrente em nossa cultura. Romário consegue com esta faceta de sua personalidade confundir e até mesmo polemizar com aqueles que o idolatram”. 89
Afirmar que se é bom em uma determinada atividade, especialmente no
esporte, não é uma atitude recorrente e corriqueira na cultura do brasileiro. Pelo
contrário, a “falsa modéstia”, é que seria mais comum aos olhos da sociedade
brasileira. Conforme nos aponta Helal, quando aparece um sujeito que se afirma
como competente e talentoso - um indivíduo que se julga excepcional em suas
ações e declara isso - para a sociedade esta atitude não reflete uma boa
característica, mas sim algo pejorativo, prepotente e arrogante.
Além disso, há outro fator que permeia a cultura brasileira que podemos
relacionar ao estranhamento à atitude de Romário. Essa situação pode ser
analisada de acordo com o pensamento de Nelson Rodrigues, em seu texto
Complexo de Vira Latas, escrito na década de 1950. Este trabalho foi publicado em
1958, quando o Brasil iria disputar a Copa do Mundo na Suécia. O autor achava que
o escrete brasileiro da época tinha qualidade, mas aponta para os pudores da
sociedade em geral em acreditar no sucesso da Seleção, após o resultado
desastroso da Copa de 5090. O texto trata da humildade exagerada do brasileiro,
destacando que embora este detenha muito talento e competência, a modéstia em
demasia atrapalharia o sucesso em suas atividades, principalmente no campo do
futebol.
88 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1340, 18 de maio de 1994. p.80. 89 HELAL. Op.Cit. p.p. 228-229. 90 Nessa ocasião o Brasil foi derrotado na final, em pleno Maracanã lotado, pelo Uruguai.
41
“A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de ‘complexo de vira-latas’ (...) Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos ‘os maiores’ é uma cínica inverdade (...). Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.” 91
Assim, podemos pensar que a desaprovação da VEJA acerca das atitudes e
afirmações “arrogantes” de Romário, é, de acordo com Helal, sinal de uma cultura
que detém como valor a humildade e a falsa modéstia em lugar da auto-afirmação
de uma qualidade individual. O “vira-latismo” faz com que não se acredite no
potencial do brasileiro e, quando se acredita, isso não deve, de acordo com os
padrões culturais, ser feito de forma aberta ao estilo de Romário, e sim de uma
forma mascarada pela falsa modéstia.
Nesse sentido, entre elogios aos talentos do baixinho e críticas ferrenhas à
sua arrogância e indisciplina, a postura pendular da VEJA se manteve até as
vésperas do início da Copa do Mundo. No entanto, cabe destacarmos que o
periódico, em muitos de seus discursos pré-Copa, enfatiza Romário como o
responsável pelos rumos da seleção, atribuindo ao jogador, mais do que a ninguém,
a responsabilidade de conduzir o Brasil ao tão esperado tetracampeonato mundial.
“Foi ele o responsável direto pela classificação do Brasil nas eliminatórias da Copa ao marcar dois gols contra o Uruguai. O time pode ser uma droga, mas, se tiver Romário, tem chance de dobrar o adversário. Essas credenciais levam a torcida a depositar nele as esperanças de gols e bons resultados na Copa (...). Não lhe peçam para dedicar gols para criancinhas pobres. Não esperem dele mensagens positivas pelo bem do Brasil. Anjo e Demônio, Romário não sairá desta Copa igual ao que era antes dela. O sucesso ou o fracasso da seleção será mais seu do que de qualquer outro integrante do time (...).Com Dunga símbolo do fracasso de 90 e sem o brilho mágico de das equipes de 58 e 70, nem a vontade de 62, nem o quarteto Falcão, Cerezzo, Zico e Sócrates. Mas tem Romário – e ele pode fazer a diferença”92
91 RODRIGUES, N. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p.51- 52. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/rodrigues03/rodrigues3.pdf 92 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1340, 18 de maio de 1994. p.p. 80-82
42
Na edição às vésperas da estréia contra a Rússia, VEJA publicou uma
matéria acerca da primeira semana de maratona física do selecionado brasileiro em
solo estadunidense. Nesta, mesmo ao divulgar o excesso de peso com que o
baixinho se encontrava, procurava manter as esperanças do público no camisa 11,
enfatizando que embora o condicionamento físico seja algo muito importante, isto
não basta para se conquistar títulos. Também é necessário saber jogar futebol.
Assim, a revista, destaca que Romário está 4 kg mais gordo do que em 90, e que o
próprio jogador teria afirmado: “Sinto que já não tenho a mesma velocidade, o
mesmo arranque de alguns anos atrás, mas estou mais experiente e sei como me
colocar em campo”93. Por outro lado, salienta que “se apenas preparo físico
ganhasse jogo, todos os países escalariam suas equipes de atletismo”. 94
Assim, nota-se uma pendularidade mais equilibrada da revista do que aquela
percebida anteriormente à Copa. Agora, se por um lado Romário é descrito como
arrogante e mal comportado, por outro poderia levar o Brasil à vitória. Podemos
pensar que este modo de noticiar a respeito do baixinho mostra uma estratégia
discursiva da revista VEJA, a qual fala o que o povo quer ouvir, mas ao mesmo
tempo não deixa de incutir em suas noticias suas concepções e valores.
Caso Romário desempenhasse um grande papel nas partidas, levando a
Seleção Brasileira adiante na competição, o periódico já estaria preparado para isso,
uma vez que salientara em suas matérias as habilidades do jogador. Assim, não se
poderia dizer que houve uma negligência da revista para com o atleta. Além do
mais, não se podia ignorar uma unanimidade para o povo brasileiro, o qual aclamava
os talentos futebolísticos de Romário.
No entanto, se o fracasso viesse, a revista teria argumentos para fazer
repousar sobre o baixinho a responsabilidade do insucesso, uma vez que afirmara
que a sorte da Seleção dependia do camisa 11. Assim sendo, Romário, no caso de
uma eventual derrota, muito provavelmente se tornaria, de um modo quase que
automático, um “vilão” por sua rebeldia e menosprezo pela ordem.
93 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1341. 25 de maio de 1994. p.70. 94 Idem.
43
3.3 Rumo ao tetra
Quando a edição de número 1345 foi publicada, a Copa do Mundo já havia se
iniciado e o Brasil aguardava a sua estréia nos gramados frente à seleção da
Rússia. Nesta publicação, deu-se um destaque ao fato de que, na concentração
brasileira, o jogador Dunga, capitão disciplinado do selecionado canarinho, havia
sido escolhido para ser o companheiro de quarto de Romário, nos Estados Unidos.
De acordo com a VEJA, a idéia de juntar os dois havia sido dada pelo técnico Carlos
Alberto Parreira95. A partir daí, começa-se a notar uma diferença na postura da
VEJA, sendo que os pontos negativos de Romário não são mais tão mencionados.
Nesse caso em específico, a ordem, representada por Dunga, estaria em posição de
vencer a indisciplina do baixinho, de maneira que seria possível que talvez este
pudesse ser contido, vindo a concentrar-se somente no desempenho em campo. A
revista não afirma isso categoricamente, mas deixa clara a seus leitores essa
possibilidade.
Somente após as vitórias sobre a Rússia e sobre Camarões é que a edição
1346 foi publicada. Devido aos resultados positivos que a Seleção obteve, percebe-
se que de fato a postura negativa da revista com relação a Romário, com uma
considerável crítica a sua personalidade difícil, deu uma trégua. Até então, o atleta
vinha sendo recorrentemente criticado desde a convocação para o último jogo das
eliminatórias, mas após a consolidação de alguns bons resultados não havia mais
espaço para críticas, somente elogios. Ia se construindo um herói nacional.
“O baixinho é fogo: Romário faz gols, comanda a boa largada da seleção nos EUA e desponta como ídolo da Copa. (...) 6 pontos... mas o número que importa é o 11 estampado na camisa de Romário, que terminou a semana como o maior nome da Copa. (...) Raras vezes um jogador confirmou na Copa, como Romário vem fazendo, o que se esperava dele (...) Nas duas partidas Romário escreveu a história.”96
95 Segundo Romário, esta situação foi muito importante para que se alcançassem as vitórias, pois além da amizade que desenvolveram estando juntos em boa parte do tempo, o capitão continha os ânimos alvorecidos do baixinho. Quando questionado sobre isso, Romário alegou: “Dunga teve mais importância do que eu. Era ele quem me segurava”. ROMARIO. Entrevista concedida ao programa “Bem Amigos”, disponível no site: http://www.youtube.com/watch?v=MLi1cyeTH1k Acessado em 06/11/2010. 96 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1346. 29 de junho de 1994. p.80.
44
VEJA ainda destaca que dos jogadores que eram candidatos a nome da
Copa, apenas Romário e o craque argentino Diego Armando Maradona estariam
fazendo jus a tal possibilidade. “Dos seis jogadores que antes da Copa eram
apontados como candidatos a se tornarem deuses nos estádios americanos, apenas
Romário, ao lado de Maradona, está confirmando a expectativa”.97
No entanto, é interessante analisarmos que as afirmações de Romário, que
em edições anteriores poderiam muito bem ser encaradas como arrogantes e
prepotentes, passam a ser vistas sob outra interpretação. Em uma declaração após
os respectivos jogos, o baixinho, de acordo com VEJA, teria dito que “Não posso
ficar muito ligado, porque só me interessa um momento da partida: o instante de
chutar a bola e fazer gol. Jogo como sempre joguei, seja uma partida decisiva da
Copa ou uma pelada na Penha” 98. Para muitos, isso se trataria de uma atitude
arrogante, por tratar as partidas do Mundial como jogos quaisquer. Porém, nesse
momento, VEJA o encara da seguinte forma: “Irreverente, independente, Romário
conquistou o direito de fazer o que quer dentro e fora do campo. Vive um período de
trégua para com sua personalidade explosiva”. 99 O que antes era prepotência vira
irreverência e o que era arrogância vira sinceridade, como veremos mais adiante.
Ainda, Romário era encarado por Zagalo como um fator desagregador por ser
contrário a disciplina. Esta idéia também preocupava o periódico, cujas diretrizes se
pautavam na ordem como quesito indispensável ao progresso. Porém, os bons
desempenhos nas partidas iniciais da Copa e a euforia nacional levaram a VEJA a
optar por outra abordagem, diferente da anterior. Dessa maneira, embora Romário
fosse antes considerado tão avesso a ordem, não estaria prejudicando o clima da
seleção. Além disso, estaria conduzindo uma seleção unida à vitória. De fator
desagregador o atleta passa a ser visto como personagem que compõe a equipe de
maneira positiva, muito por conta de seus bons resultados em campo. Nesse
sentido, não podendo criticar o jogador, que até aquele momento vinha fazendo um
ótimo trabalho, elogia-se ele e também o grupo unido. Assim sendo, VEJA contrasta
a Seleção de 94 com os selecionados de 90, fracasso na Itália, e de 86, derrotado
na Copa do Mundo do México.
97 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1346. 29 de junho de 1994. p.80. 98 Idem 99 Idem
45
“Quem visita a concentração do Brasil constata que o clima entre eles não lembra em nada o caldeirão de vaidades da Copa da Itália nem a rivalidade exacerbada de grupelhos que marcou a seleção no México em 86. Comportam-se como um grupo unido”. 100
Na edição posterior, de número 1347, embora tenha sido dada uma ênfase
maior ao fato de Maradona ter sido pego no exame antidoping, a revista procura
tratar do empate com a Suécia de maneira crítica. Reprova a maneira retranqueira
de jogar do time, o esquema de Carlos Alberto Parreira, e encara como pífias as
atuações de Zinho e Raí. Entretanto não é mais Romário o alvo de críticas, e sim
outros membros da delegação.
“A torcida brasileira só não está mais feliz [pelo doping Maradona] devido a medíocre atuação da seleção no empate de 1 x 1 com a Suécia em Detroit. O resultado serviu para minar sua autoconfiança. Zagallo está em pânico (...) A torcida, a imprensa e até parte dos jogadores estão insatisfeitas tanto com a escalação quanto com a maneira de jogar da seleção. As reclamações se concentram sobretudo na insistência do técnico Carlos Alberto Parreira em manter em campo jogadores como Zinho e Raí. Suas atuações tem sido desastrosas. Sente-se ainda que não há inspiração entre os jogadores. ‘A magia e o sonho acabaram’ divaga Parreira. ‘O que interessa hoje é a técnica e a eficiência’”.101
Como apontamos anteriormente, Romário é poupado de ser criticado. Pela
sua atuação na Copa até aquele momento, e principalmente pelo gol de empate
contra a Suécia, o baixinho é encarado como a solução para o futebol do Brasil, e
não mais um possível problema como antes se pensava. Nesta seleção brasileira,
onde, em lugar de predominar o futebol ofensivo que tanto agradava a população, se
presenciava o futebol defensivo de resultado, todas as esperanças do brasileiro
estavam sendo depositadas no talento de um camisa 11. A VEJA não podia mais se
concentrar em questões comportamentais que pareciam não influenciar o
desempenho do craque em campo. Romário é o representante do futebol ofensivo e
alegre, portanto escapa da nova leva de críticas do periódico.
Nessa querela envolvendo o futebol bonito e o futebol de resultado, a VEJA
procura trazer a opinião de grandes nomes do futebol brasileiro, dentre eles Pelé,
Gérson, Zico e Vavá, sobre tal situação. Sem qualquer floreio, o argumento dos
craques conceituados de outrora é praticamente o mesmo: favoráveis ao futebol
ofensivo e bonito. A VEJA ressalta que de acordo com Gilmar, goleiro da seleção
100 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1346, 29 de junho de 1994. p.82. 101 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1347, 6 de julho de 1994. p.83.
46
campeã de 62, jogando na retranca “não se ganha jogo de Copa do Mundo. Temos
que ter gente pra atacar.”102 O craque Didi, outro bicampeão do mundo, ainda teria
complementado com a seguinte afirmação: “Escalar o Paulo Sérgio e deixar o
Mueller e o Ronaldo no banco? Isso é uma falta de respeito ao povo brasileiro”. 103
Romário, favorável ao futebol ofensivo, não escondia sua antipatia a
Mueller104, mas defendia que o centro-avante Ronaldo deveria ser titular na Copa,
fazendo um trio de ataque com ele e Bebeto. Em 2009, em uma entrevista de
Ronaldo concedida ao Programa do Jô, Ronaldo afirma que
“... o Romário queria que eu jogasse; queria que o ataque fosse eu, ele e o Bebeto. E ele [Romário], chegou pra mim e ‘ó... vou dar entrevista, vou falar que eu quero que você jogue e você só me acompanha que vai dar tudo certo.’ Aí, ele deu entrevista, e começou naquela semana todo mundo pedindo pra que eu jogasse e formasse um trio no ataque. Aí, vieram me perguntar e eu, na minha humildade e com medo de falar, não sabia o que dizer e falei: ‘ó..., eu quero jogar mas quem decide é o Parreira, não quero me intrometer...’, ... uma resposta tranqüila, diplomática. Beleza. No dia seguinte, veio o Romário: ‘...chega aí, garoto. Quero falar contigo. Vem cá, seu moleque, porra! Tu não quer jogar não? Caralho! Porra! Quando eu falo que é pra tu falar que quer jogar, é pra tu falar que quer jogar... não é o treinador..., tu tem que falar o que eu falei...’ me deu um esporro, e eu assustado: ‘Não...sim, senhor!’”.105
Assim, Romário queria que a Seleção Brasileira jogasse um futebol mais
ofensivo, encaixando-se com o desejo popular refletido pela VEJA de se apresentar
um futebol mais ofensivo. No entanto, a convicção de Parreira em jogar na retranca
e manter apenas dois atacantes impedia que a vontade do baixinho, e de muitos
outros, se concretizasse. Assim sendo, após o jogo contra a Suécia, Romário,
quando questionado sobre a atuação do Brasil, teria alegado: “Fomos bem dentro do
que o Parreira quis” 106, deixando implícito seu desacordo com a maneira de jogar
imposta pela comissão técnica.
Na edição 1348, publicada após a vitória contra os Estados Unidos,
novamente percebemos que, para VEJA, Romário encontra-se em um patamar
diferenciado dos demais membros do time. Aquela imagem de um indivíduo
102 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1347, 6 de julho de 1994. p.83. 103 Idem. 104 Vide matéria em VEJA: Edição 1340, de 18 de maio, p82. 105 NAZÁRIO DE LIMA, Ronaldo. Entrevista concedida ao programa Jô Soares. Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2009, disponível no site http://www.youtube.com/watch?v=vbkVcHyNPY4. Acessado em 13/11/2010. 106 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº 1347, de 6 de julho de 1994. p83
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problemático, tão propalada antes do início da Copa do Mundo, desapareceu. Cede
espaço apenas para os elogios. Romário, agora, além de carregar nos ombros a
sorte da seleção na copa, é detentor de um comportamento sincero e corajoso.
“Romário atravessou a Copa como o único brasileiro a lembrar o futebol alegre e chapliniano de antigamente. Foi o melhor e também o mais sincero. Ao final do jogo contra os EUA, só ele teve coragem de admitir que o Brasil fizera uma péssima partida – ‘está faltando futebol. Continuamos devendo espetáculo para o povo brasileiro’. Na delegação firmou-se a convicção de que o baixinho é o time”107.
Sua sinceridade é ressaltada, sem menção alguma sequer à arrogância ou
indisciplina, mesmo tendo Romário tecido críticas à toda equipe, o que contrariava a
diretriz da CBF e seu manual de bom comportamento, segundo o qual não se podia
criticar nem treinador nem time. É claro que o próprio Romário se inclui nessa crítica,
contudo, percebe-se que ele é o único jogador a fazer esse tipo de afirmação. Se
antes esta declaração poderia ser vista como polêmica agora era encarada como
acertada e corajosa, uma vez que o responsável pelo avanço da seleção não podia
continuar sendo o alvo principal das críticas.
No entanto, outro ponto importante destacado pelo periódico diz respeito à
relação de Romário com Bebeto. Em edições anteriores, a VEJA procurou elucidar o
convívio gélido entre os dois. Antes da Copa, Romário teria dito: “Não sou amigo do
Bebeto, ao contrário do que se imagina. Nos conhecemos, só isso. A Mônica [sua
esposa na época] é que se dá bem com a mulher dele”.108 Já Bebeto, quando
questionado sobre o ataque da Seleção, não teria escondido a preferência por atuar
ao lado de Mueller: “com o Romário, tenho de me sacrificar. Mudar meu estilo de
jogo para que ele meta gols. Prefiro jogar com o Mueller”.109 Porém, nesta edição
1348, de acordo com VEJA, a genialidade do baixinho em campo ao dar um passe
certeiro ao companheiro de ataque, teria proporcionado uma mudança na fria
relação entre os dois. Dessa maneira o discurso é construído de uma forma a
destacar que até mesmo Bebeto estaria rendendo-se às graças do talento de
Romário:
107 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1348, 13 de julho de 1994. p.75. 108 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1340. 18 de maio de 1994. p.82. 109 Idem.
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“Bebeto que nunca escondeu sua preferência por Mueller comemorou o gol contra os EUA com uma declaração sentimental. Correu para Romário que lhe dera o passe decisivo, beijou-o no rosto e gritou: ‘eu te amo, eu te amo!!!’”110
Assim, a cada passo que o Brasil dava rumo a conquista do tetracampeonato,
o destaque de VEJA se encontrava quase sempre nos feitos de Romário. Aos
poucos, um herói nacional ia sendo construído, mesmo que este não fosse o
objetivo da VEJA, como notamos nas primeiras edições analisadas. Após as vitórias
por 3x2 contra a Holanda nas Quartas, e com a vitória magra por 1x0 contra os
suecos na semifinal, ainda faltava a finalíssima contra a seleção italiana.
É nesse contexto que percebemos que a revista VEJA, em sua edição 1349 -
publicada as vésperas da final do Mundial -, retornou com sua postura pendular
acerca de Romário. No entanto, o discurso enaltecedor ao craque se apresentou
com mais intensidade do que o depreciador. Como se tratava de uma final de Copa
do Mundo, onde não existem favoritos e tudo pode acontecer, a revista parece ter
percebido como necessário o retorno aos discursos pendulares, uma vez que estes
direcionariam os argumentos da próxima publicação, que viria após o confronto.
Esta edição 1349, à qual daremos um pouco mais de destaque, centrou-se no
baixinho e sua importância para seleção tendo em vista a partida decisiva que viria
contra os italianos.
3.4 A final e o herói.
“Desde os 15 anos sonho em ser o herói de uma Copa do Mundo e ter sucesso onde outros grandes fracassaram, como Falcão, Sócrates e Zico. Quando a vitória vier, eu a dedicarei ao povo brasileiro.”111
Logo na capa da edição 1349, publicada ás vésperas da final com a seleção
italiana, pode se perceber qual era a expectativa da revista VEJA com relação à final
da Copa do Mundo de 1994: toda a esperança do torcedor brasileiro para a
conquista do tetracampeonato deveria estar depositada nos pés de Romário. Na
110 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1348, 13 de julho de 1994. p.76. 111 Entrevista de Romário em: VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.64
49
capa desta publicação, encontra-se a imagem do jogador correndo em direção a
bola e a seguinte frase: ‘Romário, Você Decide’112
Nas matérias referentes ao mundial, o nome de Romário é citado inúmeras
vezes. Os textos procuram ressaltar, além da sua genialidade e oportunismo, o
quanto o atacante foi importante para a boa campanha brasileira até aquele
momento, e a dependência que o elenco brasileiro possuía de uma grande atuação
do “baixinho” na grande final. “Nem nos tempos de Pelé (...) uma seleção brasileira
dependeu tanto de um único par de chuteiras”.113
Contudo, o periódico torna, meio que discretamente, a elucidar a sua opinião,
já tão destacada antes do início do mundial, para com a personalidade do jogador:
“...arrogante, casca-grossa, mercurial, imprevisível, leal com os amigos, gélido com
os desconhecidos, Romário vai carregar sua arte para o gramado do Rose Bowl, em
Los Angeles”.114 Enfim, é no retorno do embate entre o “indivíduo” Romário e o
“jogador” Romário que são construídos os discursos da revista nesta edição. Porém,
quanto a este último, se percebe um maior destaque, uma vez que este exemplar
veio a público às vésperas da grande decisão e esperava-se, obviamente, que
prevalecesse o talento do craque, o qual conduziria o Brasil ao tetracampeonato.
Uma das matérias da edição 1349 traz a foto do camisa 11 brasileiro
carregando a bandeira nacional, e ao lado da imagem o título “Romário, o salvador
da pátria”115. Nesta reportagem, o jogador é enaltecido e representado como o
grande responsável pela chegada do Brasil à grande final. “Movido por uma força
instintiva raras vezes desencadeada com tanto furor nos campos de futebol,
Romário marcou cinco gols decisivos, levando o Brasil à final da Copa do Mundo”.116
Cabe a nós procurar entender o que é um “gol decisivo” para que possamos
analisar a idéia da VEJA ao construir tal discurso. Pois bem, um fator decisivo diz
respeito a algo crucial, fundamental, indispensável para que algum evento ocorra – e
que sem o qual não seria possível este ocorrer117. Em se tratando de gols, podemos
112 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. 113 Ibidem. p.64. 114 Idem. 115 Idem. 116 Idem. 117 Decisivo: de.ci.si.vo. adj (lat decisivu) 1 Que decide, que põe fim a uma indecisão. 2 Em que não há dúvida. 3 Que termina um pleito, uma disputa, uma guerra. DECISIVO. In: Dicionário on-line Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=decisivo Acessado em: 17 de novembro de 2010.
50
pensar que gols decisivos são aqueles que influenciam determinantemente o
resultado de uma partida e sem os quais o desfecho positivo (vitória ou até mesmo
empate) teria sido diferente. Talvez a VEJA conceitue gol decisivo de maneira
distinta, visto que na partida contra Camarões, vencida pelo Brasil por 3x0, o
baixinho marcou apenas um gol, o primeiro, e este foi considerado como decisivo
como veremos adiante. É possível que este tento tenha sido encarado como
primordial para a vitória porque abriu o marcador, mas não foi o gol que selou a
conquista. Já o gol de Branco contra a Holanda nas quartas de final, que este sim
definiu a vitória, mal é citado, a não ser pela participação de Romário no lance.
Nesse sentido, mesmo tendo sido o fator decisivo para levar o Brasil às semifinais, o
gol do lateral esquerdo não é definido pelo periódico como decisivo. São somente os
gols do baixinho que recebem tal denominação.
Assim sendo, se considerarmos que um gol como o de Romário contra
Camarões pode ser caracterizado como decisivo, tendo sido marcado em uma
partida vencida por mais de um gol de diferença, então podemos pensar que
praticamente qualquer gol, exceto o de uma derrota, pode ser interpretado como tal.
Isso nos leva a questionar o porquê de a revista enfatizar apenas aqueles marcados
por Romário e obscurecer os emplacados por outros atletas como Bebeto e Branco.
Dessa maneira, podemos questionar se os gols de Romário foram realmente “5 gols
decisivos” e em que medida outros teriam sido até mais importantes, mas não foram
assim apresentados por VEJA. Faz-se necessário deixarmos claro aqui, antes de
mais nada, que não estamos negando a importância de Romário para a conquista
do tetra. No entanto é preciso que reflitamos acerca dos argumentos utilizados por
VEJA nesta edição para enfatizar o bom desempenho do craque.
Estudemos então caso a caso, ou melhor, jogo a jogo. Ao estrear contra a
Rússia, Romário marcou o primeiro gol da partida e Raí, cobrando pênalti, fechou o
placar em 2x0. Será que este gol de Romário pode ser encarado como decisivo? De
acordo com a própria VEJA, a seleção russa era quase como uma “equipe
universitária”118; o jogo havia sido tranqüilo, e dessa maneira o gol de Romário teria
tido o mesmo grau de importância do que o de Raí. Talvez o periódico o estivesse
considerando decisivo por se tratar do primeiro gol brasileiro em Copa, ou quem
sabe acreditasse que sem o gol do baixinho o segundo gol não teria saído. De todo
118 VEJA, Editora Abril, Edição 1346, 29 de junho de 1994. p.81
51
modo, um gol marcado em um jogo fácil, com uma diferença de mais de um gol no
placar, foi considerado fundamental.
No confronto contra os camaroneses, a situação foi um tanto quanto
semelhante. Romário foi autor do primeiro gol dos 3 marcados na tranqüila vitória
por 3x0, em San Francisco. Os outros gols foram marcados por Marcio Santos e
Bebeto, mas nas matérias da VEJA não adquirem qualquer importância, enquanto
que o de Romário é encarado como decisivo.
Com esta vitória, o Brasil garantia seis pontos e, combinado com os outros
resultados do grupo, a Seleção já se encontrava classificada para a próxima fase,
independente do resultado do jogo contra a seleção sueca. Naquela partida,
Romário foi o autor do gol de empate no segundo tempo, o seu terceiro “decisivo” no
mundial. Talvez, este gol possa ter sido interpretado como decisivo por ter
assegurado o primeiro lugar da chave, o que acarretaria em um embate com um
adversário teoricamente mais fraco nas oitavas de final. Entretanto, não se pode
afirmar que esse gol de Romário, em específico, teria sido fundamental para o
avanço do Brasil na competição, uma vez que a passagem para as oitavas já estava
garantida mesmo com uma eventual derrota.
Até mesmo quando não marcou gols, a VEJA procurou destacar a atuação de
Romário como essencial para o bom desempenho da seleção brasileira na Copa.
Nas oitavas de final, contra a seleção dos Estados Unidos, o Brasil venceu por 1x0,
com gol marcado por Bebeto aos 27 minutos do segundo tempo. Gol este que
garantiu a passagem para as quartas e que sem dúvida se tratou de um gol decisivo,
no qual Romário, embora não sendo o autor, teve grande importância, conduzindo a
bola em velocidade e dando assistência para a finalização de seu companheiro de
ataque. A VEJA, entretanto, não fez menção alguma a esse importante gol na
edição em questão, a 1349, a qual fazia um apanhado da campanha brasileira e
seus principais momentos até então. Somente na edição anterior é que este
importante gol é comentado. No entanto, o discurso sobre o gol na publicação 1348
é construído de modo a enaltecer mais o próprio camisa 11 do que seu companheiro
Bebeto119. É dada mais ênfase ao passe de Romário do que à finalização certeira
de Bebeto no canto do goleiro Meola. Muito provavelmente isso se dê pelo fato de
119 VEJA. São Paulo: Editora Abril. nº1348, 13 de julho de 1994. p.76.
52
ter sido Bebeto, e não Romário, seu autor, uma vez que o baixinho era foco principal
da revista quando o assunto era a seleção brasileira.
Nas quartas de final, o Brasil enfrentou a Holanda. O placar final foi de 3x2
para o Brasil, com gols de Romário, Bebeto e Branco. Nesse caso, devido à situação
do jogo, este gol de Romário, quarto dele na Copa, pode ser visto como decisivo,
uma vez que a diferença no placar foi de apenas um gol. Porém, aos tentos
marcados por seus companheiros também cabe tal classificação. Não cabe aqui
discutir qual gol teve maior importância, mas sim apontar que todos foram
indispensáveis para o avanço da equipe às semifinais. Em última instância, foi o gol
de Branco que desempatou o placar dando a vitória ao Brasil, mas VEJA, ao tratar
do jogo, destina suas glórias a Romário. Bebeto também havia marcado e a revista
abordou o fato da seguinte forma:
“... Branco mandou a bola de cabeça em sua direção. Romário sentiu que estava em posição de impedimento e simplesmente parou, e em seguida deu alguns passos displicentes na direção contrária ao gol adversário. O zagueiro holandês Valckx também parou, liberando Bebeto para correr quase livre para o gol e vencer o goleiro (...) O pobre Valckx já com as meias pelas canelas de tanto perseguir o atacante brasileiro, pode ter pensado que, se Romário parou, o tempo também havia de ter parado.”120
Ao analisarmos esse gol, disponível na internet através do youtube121,
percebe-se que Romário realmente parou ao perceber que se encontrava em
posição irregular. Contudo, a revista VEJA cria um discurso que praticamente leva o
leitor a atribuir uma responsabilidade maior do gol ao “baixinho” do que ao autor do
tento. Bebeto teria recebido a bola “quase livre” e vencido o goleiro holandês. O
vídeo mostra que este “quase livre” representa um zagueiro da seleção holandesa
que disputou a bola na velocidade com Bebeto, tentando por fim, pará-lo no
“carrinho”. O camisa 7 brasileiro, além de ter ganho na corrida do zagueiro e
escapado da falta, teve que enfrentar o goleiro De Goeij frente a frente. O atacante
não finalizou de imediato, mas sim driblou o guarda metas com habilidade para
então, tranquilamente, concluir para as redes.
Não se pode negar que Romário foi importante nesta jogada. Afinal, se ele,
em posição irregular, viesse a participar do lance, provavelmente o segundo gol da
“seleção canarinho” não teria acontecido. Além disso, o marcador que o
120 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.67. 121 http://www.youtube.com/watch?v=PwCGiTCHjaY&feature=related
53
acompanhava, Valckx, desistiu da jogada ao vê-lo parar, mas Bebeto ainda tinha
que vencer o seu marcador. O papel do autor do gol parece ser ofuscado na
matéria, devido à intenção da revista de apontar o baixinho como gênio daquela
seleção considerada retranqueira e sem muitos talentos.
“Ele [Romário] entrou na Copa como um supercraque, e está saindo como um jogador com toques de genialidade (...) o lance de gênio de Romário [o do gol contra a Holanda, anotado por Bebeto] só tem paralelo em mundiais com o famoso pênalti cometido por Nilton Santos contra a Espanha em 62, no Chile.” 122
Novamente enfrentando a Suécia, a “seleção canarinho” venceu a partida
pelo placar de 1x0, gol de Romário. Sem qualquer contestação, este gol, o quinto e
último dele na Copa, tratou-se sim de um gol decisivo. Foi o tento que garantiu a
vitória da seleção, e abriu a passagem do Brasil rumo a final da Copa do Mundo dos
Estados Unidos, contra a seleção italiana.
Nesse sentido, percebemos que as afirmações utilizadas pela revista VEJA,
nesta edição, podem corresponder mais a uma tentativa de enaltecimento da
imagem de Romário para o leitor, do que um retrato fiel dos acontecimentos. Dos
cinco gols ditos decisivos, apenas um, ou talvez dois, foram de fato cruciais para o
avanço do Brasil na Copa, de acordo com a perspectiva de que um tento decisivo é
aquele fundamental para garantir o placar positivo. Os outros gols do baixinho
podem ter tido sua importância no contexto de cada partida, mas não foram fatores
essenciais de definição dos resultados que levaram o Brasil a final. Bebeto e Branco
foram autores de gols importantíssimos, mas, para VEJA, decisivo são os 5 do
número 11. Assim, nota-se que o real critério da revista não perpassa um
questionamento acerca do que seria um gol decisivo, mas sim quais seriam aqueles
que deveriam ser enaltecidos. Se o baixinho era considerado o grande craque, eram
seus gols que deveriam ser apresentados ao público como decisivos, de acordo com
a percepção do periódico.
Dessa forma, Romário vai se constituindo nas páginas da VEJA como herói
nacional. Conforme nos atesta Sergio Settani Giglio, isso ocorre uma vez que há,
nas sociedades, a necessidade de heróis para servirem de modelo para os demais
se espelharem. E no caso do Brasil, muitos destes surgem no campo futebolístico.
122 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.67.
54
“A sociedade valoriza o vencedor, a vitória, a ascensão, impondo um padrão de comportamento que reconhece o mais forte e o mais habilidoso. Aquele que chegar ao topo servirá como exemplo para os demais. Num país em que desigualdade social é um dos grandes problemas a ser resolvido, valoriza-se aquele que é bem sucedido, famoso e conhecido, enfim, aquele que deu certo. O futebol, visto como o esporte nacional que atinge todas as classes sociais, regularmente produz atletas que serão o modelo para muitos brasileiros. Por isso, não é de se estranhar que muitos ídolos e heróis brasileiros pertençam ao campo esportivo, especialmente ao futebol.”123
Nesse sentido, a revista utiliza na edição 1349 outro argumento para
enaltecer a figura de Romário. A partir de uma pergunta, o periódico procura
evidenciar que o atleta seria uma unanimidade para todo elenco brasileiro que
disputava o mundial:
“É justo com os outros atletas da seleção brasileira colocar tanta ênfase no desempenho de um único jogador? (...) São seus companheiros, a comissão técnica, os dirigentes e auxiliares da seleção que se curvam diante da evidência de que foi Romário quem moveu o time até a final.” 124
VEJA procura sustentar essa idéia destacando a amizade que Romário teria
desenvolvido com o capitão da seleção, Dunga. Segundo o periódico, essa relação
amistosa entre ambos é que teria sido fundamental para que o atacante pudesse se
sentir bem para executar com competência as suas jogadas em campo, e também
para que Romário pudesse obter certas liberdades junto à comissão técnica.125 O
meio campista Dunga, em uma entrevista no hotel Marriot, em Fullertom, quando
perguntado sobre a ausência de Romário em uma sessão de musculação teria
respondido: “deixem o Romário dormir, nadar, passear, bater papo, o que ele quiser.
Eu faço ginástica por mim e por ele.”126 O fato de ele estar recebendo privilégios não
é encarado pela VEJA nesse momento como contrário à ordem, como fora
anteriormente, mas sim como um fator agregador que contribuiu para o bem da
seleção.
Essa dependência do grupo para com Romário é ainda mais ressaltada pela
revista quando esta trata da relação entre o atacante e a comissão técnica. Zagallo
123 GIGLIO, Sérgio Settani. Futebol: “Mitos ídolos e Heróis”. Dissertação de Mestrado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. 2007. 124 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.65. 125 Ibidem., p.66. 126 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.65
55
teria sido responsável pelo corte de Romário das convocações anteriores devido a
sua conduta indisciplinada. Contudo, o “velho Lobo” se viu obrigado a voltar atrás,
na partida contra o Uruguai, quando “a vaca rumava para o brejo”127 nas
eliminatórias em 93.
Com relação a Parreira e os dirigentes, a revista apresenta que Romário teria
tido com estes uma relação de críticas e desentendimentos, na qual o jogador teria
inclusive desacatado a recomendação do técnico de não poder trazer parentes para
os EUA, afirmando “O dinheiro é meu e levo quem eu quiser.”128 O jogador também
teria se recusado a sentar entre Muller e Bebeto no avião, como queria a CBF, por
querer viajar no assento da janela.129
Porém, de acordo com a revista, quando teve início o mundial Romário
pareceu ter abandonado um pouco a rebeldia e melhorado até certo ponto sua
relação com o treinador. Em uma entrevista do baixinho, o periódico aponta que este
chegou a alegar que compreendia a postura defensiva do técnico, e que em Copa
do Mundo talvez o esquema tático devesse ser dessa forma mesmo.130 Isso nos
parece contraditório, ao confrontarmos este discurso com a entrevista de Ronaldo e
com a afirmação de Romário na edição 1347, a qual abordamos anteriormente.131
No entanto, pode ser que ao estar construindo a imagem de um herói aclamado pela
população, o periódico tivesse apresentado tal afirmação, ignorando outros fatores
que em outras ocasiões não teriam passado em branco. Se a rebeldia de Romário
não havia melhorado, ao menos os discursos da VEJA a esse respeito teriam se
suavizado.
Assim, se com Zagallo a relação com o baixinho estava bastante complicada,
de acordo com VEJA, com Parreira havia uma abertura maior, “mas o diálogo não
flui para o nível que se possa definir como uma conversa. Se quer saber como anda
o humor de Romário, Parreira tem de recorrer a um intermediário...” 132.
A revista ainda destaca a existência de problemas pessoais entre Romário e
o jogador Mueller133 e a distância que outros de seus companheiros de seleção,
como Aldair e o próprio Bebeto, mantinham para com o camisa 11 fora de campo.
127 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994.p.66. 128 Idem. 129 Idem. 130 Ibidem., p.67 . 131 Vide item 3.3 – Rumo ao tetra – p.45. 132 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.68. 133 Idem.
56
“Fora Branco e Dunga, que brincam com Romário, os demais o tratam
reverencialmente a distância (...) Romário não faz concessões. Na seleção esteve
sempre cercado apenas por seus melhores amigos.” 134
Assim sendo, percebe-se que o periódico procura destacar que embora
Romário tivesse suas rusgas com o elenco brasileiro, a necessidade que a seleção
tinha de seus gols, dribles e jogadas fazia com que todos os demais jogadores, além
da comissão técnica, tivessem que tolerar a personalidade difícil do baixinho.
Além dessa questão extra-campo, a edição, visando realçar ainda mais o
poderio de Romário dentro da seleção, divulga um problema que a cunhada do
atacante teria tido com um amigo de Rico, neto do presidente da FIFA, João
Havelange. O rapaz teria se insinuado para Conceição, a esposa do irmão de
Romário. Após um bate-boca, a moça teria agredido Rico, tendo então que a
segurança do hotel intervir na briga para conter os ânimos. Após a notícia se
espalhar pelo hotel, Romário teria ligado para a cunhada e dito que o problema seria
resolvido. 135 No dia seguinte, de acordo com a revista, todos os amigos do neto do
presidente da FIFA 136 tiveram de se retirar da delegação.
A publicação desse ocorrido serve para reforçar a intenção da revista de
destacar a importância de Romário para a seleção e a sua autoridade dentro do
grupo. Nesse caso, mesmo Romário tendo ido contra a recomendação da CBF,
levando parentes aos Estados Unidos, e estes ainda acabando por se envolver em
problemas na delegação brasileira, “ninguém se atreve a contrariá-lo (...), pois
Romário tem a força”137.
Até mesmo na crônica humorística de Tutty Vasques, intitulada “O décimo
terceiro pau!” tratando da superstição nacional e o apego de Zagalo ao número 13,
se evidencia o enaltecimento de Romário. No trecho a seguir, percebe-se que a
revista sabe da importância dos outros jogadores, principalmente de Bebeto, para o
sucesso do Brasil na final. Contudo, é no nome de Romário que os torcedores
brasileiros devem depositar as suas maiores esperanças para a conquista do
tetracampeonato sonhado há 24 anos.
134 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994.p.p 67-68. 135 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.68. 136 O qual também era filho de Ricardo Teixeira, presidente da CBF. 137 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.68.
57
“Às vésperas do jogo com a Itália, o melhor é seguir a receita do Zagalo, que está com pinta de doido campeão. Faça o seguinte: antes do início da partida tome 13 rabos de galo com 13 empadinhas recheadas com a carne de 13 galinhas diferentes. Solte 13 morteiros no primeiro tempo e vá ao banheiro 13 vezes no intervalo. Fume 13 cigarros no segundo tempo, acenda 12 velas para o Romário e uma para o Bebeto, atrase o relógio 13 minutos e só atenda o telefone depois da 13ª chamada. E que venha o Roberto Baggio! Caramba: Roberto Baggio tem treze letras!” 138
Assim sendo, percebemos que alternando entre pessoa e jogador, a revista
foi construindo um herói, mesmo que esta não fosse necessariamente a sua
intenção. Em determinados períodos, predominava a crítica ao comportamento do
atleta, mas em outros já não havia mais espaço para ela, de modo que muda-se o
tratamento dado a ele pela VEJA. Nesta edição em particular, verifica-se que as
atitudes indisciplinadas oriundas da personalidade de Romário, que conforme
analisamos são contrárias ao valor da ordem – idéia tão cara a VEJA -, são tratadas
com um tom diferente do das matérias anteriores ao início da Copa. Agora, no
discurso edificador de VEJA, parecem até mesmo contribuir para elevar Romário ao
patamar de herói, uma vez que o periódico havia se rendido ao fato de o baixinho ter
uma grande valor para a seleção.
Mas, o que poderia ter levado VEJA a agir de tal forma, às vésperas da final?
Trata-se de uma questão difícil de responder. Até aquele momento, o baixinho
vinha se destacando muito bem na Copa. Praticamente uma unanimidade entre o
grande público. Assim sendo, era preciso ressaltar a importância do craque no
Mundial, apontando todos os seus grandes feitos na competição. Entretanto
percebemos que, por mais que sejam vistas de forma a ajudar a edificação da figura
de Romário, as alusões a seu comportamento difícil retornam às páginas da revista.
Por que não simplesmente ignorar os atritos decorrentes da personalidade de
Romário? Pode-se considerar que havendo a possibilidade de uma derrota na
decisão, uma vez que em final de Copa do Mundo não existem favoritos, VEJA
trazia novamente aos leitores o comportamento problemático do jogador para que,
finda a Copa do Mundo, pudesse talvez retomar estas questões se necessário fosse.
É preciso lembrar a relutância inicial do periódico em apontar Romário como
importante para a Seleção. Antes ele era o fator desagregador, potencial problema.
Desse modo, os valores da revista faziam com que esta não fosse totalmente
favorável às atitudes do jogador, mas durante o campeonato as atuações do atleta
138 VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.69
58
falaram mais alto. Assim, mesmo às vésperas de final, já tendo se rendido aos
talentos de Romário tão aclamados pela população, VEJA procurou tratar da
indisciplina e empáfia do camisa 11, de modo um tanto quanto maquiado, mas
deixando uma brecha para retomar o assunto e talvez criticá-lo se assim julgasse
necessário.
Outra possibilidade é que VEJA não sabia direito o que fazer, ao se deparar
com uma situação onde seus valores eram tão contrários ao ídolo e herói que o
povo vinha edificando. É muito plausível que a própria redação, ao ser constituída
em sua maioria por brasileiros, quisesse que o Brasil ganhasse a Copa. Assim,
depositavam em Romário suas fichas para o tetra. Mesmo com ideários de ordem e
progresso, as pessoas por trás da publicação também tinham desejo de ver o Brasil
campeão e provavelmente compartilhavam a opinião popular de que Romário seria a
maior esperança brasileira. Assim, teria se constituído uma atitude pendular, na qual
se contrabalançavam desejos e expectativas de sucesso da seleção com valores de
ordem essenciais na constituição do periódico. A revista, tratando-se de um veículo
de comunicação nacional, poderia até não concordar com as atitudes de Romário e
procurar evidenciar isso em suas matérias, mas nem por isso deixava de depositar
suas esperanças no craque, uma vez que este era uma unanimidade em termos de
talento futebolístico.
3.5 Pós Copa
No dia 17 de julho de 1994, o Brasil bate a Itália nos pênaltis sagrando-se
tetracampeão mundial de futebol nos Estados Unidos. A VEJA lança na semana
após o jogo uma edição especial tratando da conquista da Seleção e de seus
protagonistas. No entanto, percebemos que em suas páginas o que se encontra é
um poço de argumentos contraditórios em seus discursos acerca de Romário.
Logo no início, o periódico apresenta uma matéria cujo título é: “A eficiência
da retranca – O Brasil encontra a fórmula do sucesso ao escalar o método e a
disciplina para suprir a ausência de brilho na seleção”.139 Percebe-se logo no título a
139 VEJA, Editora Abril, julho de 1994. p.12 Edição especial.
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tentativa do periódico em atribuir à comissão técnica - responsável pela ordem na
seleção brasileira -, os méritos da conquista do tão sonhado tetracampeonato
mundial de futebol. Ao lermos a respectiva matéria isso fica ainda mais evidente.
“O futebol acaba de revelar uma imagem surpreendente do país. O Brasil tetracampeão do mundo é disciplinado, metódico, obediente, organizado, solidário e bem preparado – um país muito diferente daquela terra do jeitinho e da improvisação. Esse time regular, num país que já apresentou ao mundo gênios da bola como Pelé e Garrincha, desta vez é um campeão sem heróis.”140
Ora, Romário, para VEJA e praticamente toda a população, conforme
analisamos anteriormente, era visto como a única esperança do Brasil para a
obtenção do título. Ele chegou a ser chamado de “Salvador da Pátria” pelo
periódico141. No entanto, após o resultado, a revista parece querer ofuscar a
importância do baixinho, que ela própria havia enfatizado, para a vitória do
selecionado canarinho na Copa. Valoriza-se a disciplina, obediência e o método
organizado de Parreira e Zagalo, sistema que a própria VEJA já havia criticado em
edições anteriores. Além do mais, o periódico parece utilizar-se de todos os meios
possíveis para desconstruir um herói que ela mesma ajudara a edificar.
“... Romário, não seria escalado na seleção de 1970, que tinha craques bem maiores que ele para a mesma região do gramado. O Brasil tetracampeão do mundo reuniu um grupo de jogadores que não são poetas da bola.(...) Quando o assunto é dinheiro, a história muda. Romário Sozinho ganha mais dinheiro do que recebiam juntos todos os jogadores da seleção de 58.”142
Agora que a Copa tinha acabado, o periódico expressava firmemente seus
valores ao construir suas notícias. Porém, na tentativa exacerbada em se diminuir o
papel de Romário para a conquista do tetra, a revista acaba se perdendo em seu
discurso e caindo em contradição e incoerência algumas vezes. Analisemos o trecho
abaixo:
“Mais enfadonho do que as chamadas seleções de todos os tempos, que alinham jogadores atuais com fantasmas de épocas de ouro,(...) é tentar adivinhar quem venceria a partida entre a seleção de Parreira e o time tricampeão do mundo em 1970”143
140 VEJA, Editora Abril, julho de 1994. p.12 Edição especial. 141 Vide item 3.4 A final e o herói. p.49. 142 VEJA, Editora Abril, julho de 1994. p.p 12-15. Edição especial. 143 Ibidem., p.14
60
Agora vejamos o que é escrito logo na página seguinte do mesmo exemplar
do periódico:
“... no campo, o time do tetra é mais fraco que as seleções que trouxeram para o Brasil os três títulos anteriores”144.
Percebe-se claramente o discurso contraditório de VEJA, além é claro, de
certa incoerência na construção de tais argumentos. Primeiramente, VEJA defende
que é mais do que enfadonho se pensar em quem venceria um hipotético embate
entre a seleção de 94 e o time de 70. Até aí, tudo bem. Tratam-se obviamente de
duas seleções provenientes de dois contextos muito distintos. No entanto, no
intervalo de uma página, a revista cai em contradição ao julgar as seleções de
outrora melhores do que a que conquistou o tetra, realizando uma clara comparação
entre as mesmas.
Nesse sentido, percebemos que VEJA enveredou-se por um campo muito
perigoso. Afinal, o que é definir algo como melhor ou pior? E se um time é melhor, é
melhor em quê? Em resultado, entrosamento ou talentos individuais? O que define
uma seleção ser melhor ou pior, mais forte ou fraca do que a outra, se ambas
venceram? O futebol como um fenômeno social vai se modificando, assim como as
sociedades. Mudam-se regras, táticas e maneiras de jogar. O lateral vira ala; o ponta
desaparece; e entra mais um zagueiro como líbero. Enfim, estas e muitas outras
mudanças nos permitem pensar que realizar uma comparação entre dois times de
contextos distintos pode ser equivocado. Se Pelé tivesse nascido mais tarde e
pudesse ter disputado a Copa de 94, também teria se tornado “Rei”? Impossível
saber. Nesse sentido, até mesmo a revista nos ajuda a pensar desta forma.
“Numa época em que os esquemas táticos prevalecem sobre o brilho individual dos jogadores e as bolas são disputadas centímetro a centímetro, a defesa ficou mais importante que o ataque. Nessa nova ordem mundial do futebol, o resultado interessa acima de tudo, qualquer que seja a impressão que o time passe nas arquibancadas...”145
Pois bem, se o resultado é o que interessa nessa nova ordem mundial do
futebol, como dizer que as seleções de 58, 62 e 70 são melhores do que a de 94, se
cada uma garantiu uma estrela a mais para o escudo da CBF? O fato é que
comparar seleções de dois contextos diferentes se trata de um terreno muito
144 VEJA, Editora Abril, julho de 1994. p.15 Edição especial. 145 Ibidem p.14
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perigoso e, dessa maneira, ao fazê-lo, VEJA caiu em sua própria armadilha, tendo
como resultado a incoerência e a contradição em seus discursos.
Agora, voltando ao caso de Romário, mesmo querendo claramente
desconstruí-lo como o herói do tetra, VEJA acaba por cometer alguns deslizes. Na
mesma edição especial, acaba por elogiar o craque e chamá-lo de gênio: “Criar
jogadas fica por conta de gênios como Romário, que não tendo mais espaço,
trabalham dois tempos mais rápido do que os zagueiros. Que até 1998 surjam
muitos outros Romários.”146
Nesse sentido, podemos pensar que talvez a redação do periódico estivesse
dividida acerca do craque. No entanto, o fato da depreciação a sua imagem ser mais
recorrente, faz com que pensemos que para o periódico o mais importante ainda é
incutir em suas notícias seus valores e concepções para divulgá-los ao grande
público. Assim, por mais que tivesse ressaltado as qualidades futebolísticas de
Romário ao longo de suas matérias, a revista apresenta um discurso contraditório
nessa edição, pois traz argumentos para a vitória do campeonato que até então não
tinham sido mencionados como importantes, a citar a organização tática e defensiva
antes considerada inapropriada. O “Salvador da pátria” é agora diminuído,
apontando-se que não é comparável aos grandes ídolos brasileiros, mesmo após
diversas reportagens que enalteciam a figura do baixinho, como analisamos
anteriormente.
Agora, outro ponto fundamental de analisarmos é com relação às alegações
da VEJA de que Romário gostaria de substituir Ayrton Senna como o principal ídolo
nacional. Nas vésperas da final da Copa, o baixinho havia dito que:
“Desde os 15 anos sonho em ser o herói de uma Copa do Mundo e ter sucesso onde outros grandes fracassaram, como Falcão, Sócrates e Zico. Quando a vitória vier, eu a dedicarei ao povo brasileiro.”147.
Para autores como Max Filipe Nigro Rocha, esta afirmação do baixinho,
aliada a suas atitudes, evidenciava o seu desejo de assumir o lugar deixado por
Ayrton Senna no coração do povo brasileiro.
146 VEJA, Editora Abril, julho de 1994. p.15 Edição especial. 147 Entrevista de Romário em: VEJA, Editora Abril, Edição 1349 de 20 de julho de 1994. p.64
62
“A frase de Romário, enunciada às vésperas da conquista do tetracampeonato de futebol nos Estados Unidos, evidencia a disposição do jogador em ocupar o vácuo existente no campo esportivo. Tanto pela expectativa criada sobre ele pelo discurso ufanista da mídia, quanto pelas suas próprias ações, o jogador assume para si a responsabilidade de preencher o espaço deixado pelo ídolo morto. Não podemos nos esquecer que, quando a seleção chega dos EUA com a Taça, Romário vai até a janela do avião portando a bandeira nacional brasileira da mesma forma que fazia Ayrton”148.
A revista VEJA afirmou que Romário realmente queria ocupar o espaço
deixado por Ayrton Senna como o maior ídolo nacional. Na edição 1353, publicada
um mês após a Copa, a revista, após várias críticas ao baixinho149, nos traz o
seguinte argumento:
“Romário já disse que gostaria de substituir Ayrton Senna no coração do povo brasileiro como ídolo nacional. Ídolo ele é, mas é difícil imaginar melhor exemplo do anti-Senna. O piloto era o campeão do mundo que toda sogra gostaria de ter como genro. Romário, louco por um rabo de saia..., é o tormento das mamães.” 150
Porém, podemos analisar a questão de outra forma. Romário realmente
queria se tornar o nome da Copa do Mundo dos Estados Unidos, mas em nenhum
momento encontramos alguma afirmação do jogador alegando tal intenção em
substituir o tri campeão das pistas. Ayrton Senna era um dos maiores ídolos
esportivos do brasileiro naquela época e veio a falecer a praticamente um mês antes
da Copa. A morte do piloto contribuiu para elevar ainda mais o desejo popular da
conquista do tetracampeonato. Assim, a seleção brasileira, quando vence a Itália
nos pênaltis, presta uma homenagem ao piloto tri-campeão com uma faixa: “Senna...
aceleramos juntos, o tetra é nosso.”151 Na chegada da delegação ao Brasil, Romário
coloca-se fora da janela do avião da CBF e empunha a bandeira nacional.152 Esta
imagem, utilizada por VEJA na edição 1350, pode ter feito com que muitos, incluindo
Rocha, acreditassem na intenção de Romário em substituir Senna, pois o piloto
148 ROCHA. M.F.N. A cobertura da Copa de 94 pela revista Veja - Em busca de um novo Salvador da Pátria. Texto apresentado no I Simpósio de Estudos sobre Futebol. São Paulo. 13/05/2010. 149 Principalmente por não ter se apresentado imediatamente ao Barcelona da Espanha, logo após o Mundial, por desejar passar alguns dias a mais no Rio de Janeiro descansando e jogando futvôlei. 150 VEJA, Editora Abril, nº 1353. Agosto de 1994. p.86. 151 Vide Anexo 1, p.70 152 Vide Anexo 2. p.70
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costumava desfraldar a bandeira nacional para fora de seu carro de corrida quando
conquistava uma vitória153.
É perceptível que Romário de fato queria ser lembrado pelo povo brasileiro
como um herói, entretanto não se pode afirmar categoricamente, como faz a VEJA,
que o jogador queria conscientemente substituir Ayrton. Possivelmente a atitude do
baixinho de mostrar a bandeira brasileira na janela do avião não tenha sido uma
declaração aberta de que este queria se tornar o novo Senna, mas sim uma
homenagem ao povo brasileiro e, talvez, até mesmo uma homenagem ao piloto,
sem que isso significasse necessariamente que um gostaria de substituir o outro.
Assim como a seleção fez em campo, é possível conceber que Romário estaria
prestando um tributo ao ídolo falecido.
Podemos ainda pensar que esta atitude de VEJA se trata de uma estratégia
para denegrir Romário perante o grande público, uma vez que agora o periódico
voltava a produzir notícias de acordo com seu ideário e interesses, primordialmente.
Talvez a lógica do periódico para construir seu discurso dessa forma fosse a de
fazer com que os fãs de Ayrton Senna passassem a ver Romário de maneira
negativa, como se este fosse um usurpador que tentasse tomar o lugar do piloto tri
campeão. Este é apresentado como ídolo, mas estaria, de acordo com VEJA, longe
dos patamares morais e de comportamento de Senna.
Por tudo isso, percebemos que, a partir das reportagens da revista em
questão, foi construído um herói nacional, quer teria sido essa a intenção do
periódico ou não. Este apresentou posturas diferenciadas no que se refere ao
tratamento dado a Romário ao longo das edições analisadas; ora apontando-o como
elemento desagregador, ora salientando sua genialidade futebolística. Mesmo a
contra gosto, VEJA acabou por edificar perante o Brasil o herói que a população
queria e esperava ver.
153 Vide Anexo 3. p.70.
64
Conclusão
Romário foi indubitavelmente o principal jogador da Seleção Brasileira em
1994. Seu grande talento futebolístico o proporcionou alcançar o título de
tetracampeão, na Copa do Mundo dos Estados Unidos, e tornar-se o melhor jogador
de futebol do planeta naquele ano.
Devido a seu comportamento encarado por muitos como problemático, o
baixinho foi afastado pela comissão técnica das convocações para os jogos
eliminatórios da seleção brasileira. No entanto, a má campanha do time e a forte
pressão popular garantiram seu retorno triunfal e o início de sua trajetória que o
sacramentaria como herói nacional.
A revista VEJA, um dos meios de comunicação impresso mais lidos do Brasil,
não escondia sua desaprovação a Romário. Sendo o periódico detentor de valores
tais como a ordem – por julgá-la ferramenta indispensável ao progresso –, não
aprovava a inserção de um jogador indisciplinado no elenco brasileiro. No entanto,
em 1993, a forte aprovação popular impedia a revista de apenas realizar críticas
ferrenhas ao comportamento glicerínico do craque. Havia a necessidade também de
se falar bem do jogador, que era a principal esperança do Brasil para o mundial.
Nesse sentido, percebemos que é exatamente no transito entre o jogador brilhante e
a pessoa temperamental que o periódico realiza seus discursos a respeito de
Romário.
No ano de 1993, o tom das matérias e reportagens de VEJA pendeu mais
para o lado comportamental do jogador. A revista, embora não deixasse de explicitar
um pouco as qualidades futebolísticas de Romário, parecia principalmente querer
alertar ao grande público que embora Romário detivesse um grande talento para
jogar futebol, isso não garantiria o sucesso do Brasil na Copa. Alem disso,
destacava os eventuais problemas que poderiam surgir ao se ter um atleta
problemático na equipe; um jogador contrário a ordem instituída pela comissão
técnica, que muito poderia prejudicar o progresso da seleção na competição.
Mesmo Romário tendo realizado uma partida excepcional na decisão das
eliminatórias, a revista prefere não tratar do assunto logo de imediato. Percebe-se
um grande silêncio nas edições subseqüentes, e quando VEJA precisa novamente
falar da seleção, torna a criticar o jogador de diversas maneiras, principalmente
comparando-o a jogadores disciplinados.
65
Já no ano de 1994, no período antecedente ao início do mundial, percebemos
que VEJA se encontra em uma situação complicada. Tendo de atender a demanda
por notícias sobre a Seleção, e também sobre Romário, é claro, a revista apresenta
em suas páginas o mesmo discurso pendular, tratando do jogador brilhante e da
pessoa problemática. Porém, os discursos se mostram mais equilibrados do que no
ano anterior. Elogios ao desempenho do jogador na Europa – descrição de gols e
grandes jogadas –, aparecem nas matérias, reportagens e entrevistas do periódico
praticamente com a mesma freqüência que as críticas a sua indisciplina e conduta.
Com relação às críticas, estas são construídas de diversas formas: ora critica-
se Romário pelo fato de este ser um jogador muito valorizado e ganhar muito
dinheiro sem ter conquistado nenhum título pela seleção; ora pelo comportamento
com a comissão técnica, imprensa e companheiros de profissão; por suas frases
bombásticas acerca de suas qualidades.
No entanto, quando a Copa do Mundo se inicia, e o Brasil vai somando
resultados positivos e assim avançando na competição, o sonho do tetracampeonato
vai ficando cada vez mais plausível. Romário vai se destacando a cada jogo e a
Revista adota uma postura diferente. Passa somente a elogiar o atleta. Todos
aqueles problemas comportamentais do jogador são deixados de lado. Apenas se
constroem elogios a Romário e a suas jogadas magistrais. As atuações de seus
companheiros de time são obscurecidas, enquanto que os feitos do camisa 11 são
mais do que enaltecidos.
Essa mudança de posicionamento ocorreu, a nosso entender, devido ao fato
de que, além do contexto da época ser propício para a criação de um herói, até
mesmo a própria redação da VEJA, formada na maioria por brasileiros, via em
Romário a possibilidade deste conduzir o Brasil ao tão sonhado tetracampeonato e
acabar com um jejum de 24 anos sem um título de Copa do Mundo. Dessa maneira,
podemos pensar que, naquele determinado momento, não havia espaço para um
discurso depreciativo ao jogador que estaria, na concepção popular, sendo o
responsável pelo avanço do Brasil na Copa do Mundo. Se a revista VEJA não
quisesse perder boa parte de seu público consumidor, então o jeito era falar e falar
muito bem de Romário, mesmo que este se tratasse de um indivíduo avesso aos
seus valores.
Assim, durante a Copa, o baixinho vai sendo edificado como herói nacional.
Até mesmo quando não marcava gols, seu desempenho era destacado. A VEJA
66
ainda tentava melhorar a imagem do comportamento do jogador, modificando a
maneira de abordar questões referentes a pessoa de Romário. Dessa maneira,
determinadas atitudes que antes poderiam ser encaradas como negativas, agora
passavam a ser relatadas de forma diferenciada. Romário, de acordo com VEJA,
estava então se comportando bem, tendo dado uma trégua com seu comportamento
explosivo.
No entanto, às vésperas da final da Copa do Mundo, a revista parece, mais
discretamente, retornar a seus discursos pendulares. Obviamente o destaque maior
é dado ao talento do jogador que carregava todas as esperanças de conquista do
tetracampeonato. Mas questões comportamentais de Romário também voltam a
cena, de modo contido, é verdade, mas retornam.
Talvez pelo fato de o Brasil ter de enfrentar um grande adversário na final, a
até então tricampeã Itália, e como em decisão de Copa o favoritismo deixa de existir,
VEJA tenha achado necessário retornar aos discursos pendulares. Parecia querer
lembrar aos leitores de que nada estava ganho, e que todas as expectativas de se
obter um resultado positivo na final, recaiam sobre o indisciplinado Romário.
Contudo, o Brasil vence a Itália, e a VEJA então retorna a defender
ferrenhamente suas concepções de ordem e assim criticar o atleta. Chega até
mesmo a se contradizer várias vezes. Na tentativa de tirar os méritos de Romário
pela conquista do tetra, elogia o futebol disciplinado, tático e retranqueiro da
seleção, o mesmo que criticara em edições anteriores. Além de tentar ofuscar sua
qualidade futebolística, comparando-o a ídolos do passado, tais como Pelé, também
busca ressaltar ainda mais seu comportamento ruim, sendo este apontado como um
anti-Senna nesse sentido.
Dessa forma, VEJA construiu um herói que não queria construir. Romário
estava longe de ser o exemplo de herói que a VEJA estimava e desejava exaltar.
Assim o fez devido a necessidade que se apresentou no período. O povo brasileiro
estava carente de um feito heróico. O periódico deu sua parcela de contribuição na
edificação deste, mas quando o contexto lhe permitia voltar a defender seus valores
e assim criticar Romário, já era tarde. O herói do tetra já havia sido criado e jogava
com a 11.
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REFERÊNCIAS
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