Post on 13-Aug-2020
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras:
Doutorado em Ciência da Literatura – Teoria Literária
PENAS E PINCEIS: RETRATOS DE FRIDA KAHLO
por
FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO
Tese de doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação
em Letras como requisito ao
título de doutor em Ciência da
Literatura.
Orientadora: Professora Doutora
Flávia Trocoli Xavier da Silva.
UFRJ
2014/1
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Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo
FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura,
Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.
Aprovada por:
_______________________________________________________
Presidente, Prof.ª Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva - UFRJ
___________________________________________________
Prof.ª Doutora Ana Alencar –UFRJ
___________________________________________________
Prof.ª Doutora Aline Magalhães Pinto- PUC
___________________________________________________
Prof. Doutor Víctor Manoel Lemos Ramos -UFRJ
___________________________________________________
Prof. Doutor Paulo Sérgio de Souza Júnior -UNICAMP
Suplentes:
______________________________________________
Prof.ª Doutora Danielle dos Santos Corpas - UFRJ
______________________________________________
Prof.ª Doutora Daniela Samira da Cruz Barros UFRRJ-
Rio de Janeiro
Agosto de 2014
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FICHA CATALOGRÁFICA
Carvalho, Francine Pereira Fontainha de.
Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo / Francine Pereira Fontainha de Carvalho.
– Rio de Janeiro: UFRJ/PPGCL, 2014.
XI, 115 f.: il.
Orientador(a): Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva.
Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/
PPGCL/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2014.
Referências Bibliográficas: f. 116 - 120
1. Ciência da Literatura. 2. Teoria da Literatura. 3. Letras - Teses.
I. Silva, Flávia Trocoli Xavier da. (Orientadora). II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Instituto de Pós-Graduação em Ciência da Literatura/PPGCL. III. Título.
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Às mulheres marcantes da minha vida: minha mãe, às irmãs Cristiane e Gabrielle, à querida
avó Jacira, que mesmo com tantos percalços nunca perdeu a alegria de viver e, precocemente,
me ensinou a lição da confiança, do destemor e a aceitação dos desafios. À querida madrinha,
tia Lilinha, que muito cedo partiu, deixando em nossas memórias a lembrança de uma pessoa
alegre e feliz - pelo simples fato de estar viva - e que em meio aos inúmeros atropelos que a
vida impôs, nunca abandonou o sorriso sincero e entusiasmado. Descanse em paz. À todas as
mulheres dilaceradas, que todos os dias encontram forças e formas de sobrevivência, para não
desistirem da vida.
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AGRADECIMENTOS
A presente tese de doutorado, Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo, foi construída a partir do
interesse no diário íntimo e nas cartas da referida pintora. Para além das telas, que despertam em mim
profundo interesse e admiração, as missivas e o caderno íntimo, desvelaram outros retratos da artista,
em que a pena é utilizada para construir a representação, tanto de si mesma, quanto da dor que se fez
presente em grande parte da existência. Nessa perspectiva, os desdobramentos dos dilaceramentos,
retratados com as palavras, trouxeram encanto e impulsionaram a pesquisa.
À família e a Deus, força motriz presente em todos os momentos da existência.
À Universidade Federal do Rio de Janeiro; À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da UFRJ pelo empenho na execução e excelência do presente Doutorado em
Ciência da Literatura. À Coordenadora do referido Programa, Professora Doutora Danielle dos Santos
Corpas, pela disponibilidade e atenção dispensadas.
Aos Professores Alberto Pucheu Neto, André Luiz de Lima Bueno e Ronaldo Lima Lins, que
representaram mais que docentes, verdadeiras fontes de conhecimento e descobertas.
À Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva, por aceitar a orientação com a pesquisa em
transcurso, agradeço a paciência e a disponibilidade, principalmente, a generosidade em apontar
caminhos em meio aos descaminhos que a investigação encontrava-se. Agradeço, outrossim, a
oportunidade em poder conviver, ainda que por pouco tempo, com uma professora séria e competente,
compromissada com o trabalho, a pesquisa e os discentes. Agradeço, finalmente, por transmitir-me a
importância da pesquisa acadêmica e o grau de responsabilidade que deve-se ter com os compromissos
assumidos.
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A linguagem e a vida são uma coisa só.
Quem não fizer do idioma o espelho de sua
personalidade não vive; e como a vida é uma
corrente contínua, a linguagem também deve
evoluir constantemente. Isto significa que como
escritor devo me prestar contas de cada palavra
e considerar cada palavra o tempo necessário
até ela ser novamente vida. O idioma é a única
porta para o infinito, mas infelizmente está
oculto sob montanha de cinzas.
(Guimarães Rosa)
Uma vez que meus temas sempre foram
minhas sensações, meus estados de espírito e as
reações profundas que a vida tem causado
dentro de mim, muitas vezes materializei tudo
isto em retratos de mim mesma, que eram a
coisa mais sincera e real que eu podia fazer
para expressar o que sentia a meu respeito e a
respeito do que eu tinha diante de mim.
(Frida Kahlo)
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RESUMO
Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo
FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO
Orientadora: Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.
A presente tese, intitulada: Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo, propõe um estudo
acerca da artista mexicana Frida Kahlo a partir de suas cartas e diários e pretende traçar a
trajetória da dor e do dilaceramento presentes em sua vida, portanto, ganharão relevo os
escritos em que a expressão e o percurso do sofrimento estão mais visceralmente expressos e
transmitidos. A principal e pulsante questão que este trabalho propõe desvendar é: Por que e
para quem se escreve? Para a artista, a escrita funciona como um contradepressor, por permitir
o registro dos sentimentos e a comunicação com o mundo exterior, nos longos exílios e
prolongadas internações. Nesse sentido, a pintura e a escrita - por nós privilegiada na pesquisa -
desenvolvem papel essencial na existência de Frida Kahlo por proporcionarem mecanismos de
sobrevivência e convivência com a dor.
Palavras-chave: Dor. Dilaceramento. Diário. Cartas. Retratos.
Rio de Janeiro
Agosto de 2014
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Abstract
Feathers and paintbrushes: pictures of Frida Kahlo
Francine Pereira Fontainha de Carvalho
Adviser: Professor Dr. Flávia Trocoli Xavier da Silva
Abstract of the PhD thesis submitted in post - graduate program in Science literature,
Language Art College, Federal University of Rio de janeiro - UFRJ, as part of the needed
requirements to the achievement of the title in Dr. in Science literature.
This thesis, entitled: Feathers and paintbrushes: pictures of Frida Kahlo, proposes a
study about the Mexican artist from her letters and diaries and intend to draw the trajectory of
pain and tear present in her life, therefore, they will win flash in writings in which expression
and the path of suffering are more viscerally expressed and transmitted. The main and
pulsating question in this work proposes unveil is: why and for who writes? For the artist, the
writing works as a contradepressor, to allow the register of feelings and communication with
the outside world, in long exiles and extended hospitalizations. In this way, the painting and
the writing - privileged by us in the research - develop an essential role in Frida Kahlo
existence by providing survival mechanisms and acquaintanceship with the pain.
Key - words: Pain. Tear. Diary. Letters. Pictures
Rio de Janeiro
August 2014
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RESUMEN
Plumas y pinceles: Retratos de Frida Kahlo
Francine Pereira Fontainha de Carvalho
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Flávia Trocoli Xavier da Silva
Resumen de la Tesis de Doctorado presentada al Programa de Posgrado en Ciencias de la
Literatura, Facultad de Letras, de la Universidad Federal de Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
de los requisitos necesarios para la obtención del título de Doctor en Ciencias de La Literatura
La presente tesis titulada: Plumas y pinceles: Retratos de Frida Kahlo, sugiere un estudio
sobre la artista mexicana Frida Kahlo desde sus cartas y diarios, y pretende trazar la trayectoria
del dolor y de los destrozos presentes en su vida, por lo tanto recibirán relieve los escritos en
que la expresión y el recorrido del sufrimiento están más visceralmente expresados y
transmitidos. La principal y pulsante cuestión que este trabajo propone es: ¿Por qué y para qué
se escribe? Para la artista, la escrita funciona como un contra-depresor, por permitir el registro
de los sentimientos y a comunicación con el mundo exterior, en los largos exilios y prolongadas
internaciones. En este sentido, la pintura y la escritura – privilegiada por nosotros en el estudio
– tiene papel esencial en la existencia de Frida Kahlo por proporcionarle mecanismos de
supervivencia y convivencia con el dolor.
Palabras claves: Dolor. Destrozos. Diario. Tarjetas. Retratos.
Rio de Janeiro
Agosto de 2014
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SUMÁRIO
1 . INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11
2. DILACERAMENTOS .......................................................................................................... 15
2.1. A CONCHA E A OSTRA .............................................................................................. 33
3. O RETRATO DE UM DOS BONDES ................................................................................. 48
3. 1. O MAIOR DOS BONDES ........................................................................................... 58
4. SOBRE A (DES)NECESSIDADE DA ESCRITA ................................................................ 77
4.1. A (DES)UNIÃO FAMILIAR .......................................................................................... 93
4.2. MÃE MARTE OU A MÁSCARA DE FERRO .............................................................. 97
5. CONCLUSÃO: ..................................................................................................................... 112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................... 116
ANEXOS .................................................................................................................................. 121
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1 . INTRODUÇÃO
A presente tese, intitulada: Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo, propõe um estudo
acerca da artista mexicana Frida Kahlo, a partir de suas cartas e diários e pretende traçar a
trajetória da dor e do dilaceramento presentes em sua vida. A principal e pulsante questão que
este trabalho propõe desvendar é: Por que e para quem se escreve? Fornecer pistas e respostas
sobre essa complexa interrogação será, portanto, o principal objetivo da tese. De acordo com os
questionamentos efetivados, ressalta-se que o lembrar será um conceito analisado e discutido
ao longo da nossa investigação.
Ao deter-me nas correspondências, escritas entre os anos de 1924 até 1948,1 pude
observar a necessidade e a importância que as cartas ocuparam na vida de Frida, tal como o
diário produzido entre os anos de 1944 e 1954,2 com pena e tinta, em uma profusão de pinturas
e textos, que desvelam e identificam sua vida - imensamente impregnada pela pintura e pela
escrita.
Considerando que o locus principal do presente trabalho centra-se nas produções
escritas da artista, privilegiaremos, no referido estudo, as correspondências escritas ao longo
dos anos, com trechos do diário e telas representativas da vida da artista, segundo seus próprios
critérios. Como o tema escolhido orbita em torno da trajetória da dor, ganharão relevo os
1 Segundo Marta Zamora, no livro Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo (2006): “As cartas de Frida Kahlo, aqui
compiladas pela primeira vez, representam uma profusão de informações sobre a vida conturbada e trágica dessa
grande pintora mexicana. Em mais de oitenta cartas a amigos, familiares, inimigos e amantes, Frida revela um
humor negro, uma impressionante intensidade e um genuíno calor humano”. 2 Segundo Carlos Fuentes, na obra El Diário de Frida Kahlo, un íntimo autorretrato (2010, p. 292; tradução livre
minha): “A piora física de Frida Kahlo torna-se aguda durante os anos restantes de sua vida. Dessa maneira, recebe
banhos na coluna, utiliza diversos coletes e é submetida a numerosas e complicadas operações na coluna e em sua
perna durante a década seguinte. Frida Kahlo inicia a escrita do seu Diário, que continuará até o dia de sua morte”.
No original em espanhol: “El empeoramiento físico de Frida Kahlo se agudiza durante los años restantes de su
vida. De esta manera, recibe baños en la espalda, debe utilizar diversos corsés y se somete a numerosas y
complicadas operaciones en la columna y en la pierna durante la década siguiente. Frida Kahlo inicia la escritura
de su Diário, que continuará hasta el dia de su muerte”.
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escritos em que a expressão e o percurso do sofrimento estão mais visceralmente expressos e
transmitidos. Para tanto, as indagações sobre o porquê da escrita, seja ela em diários, telas ou
cartas ganhará maior destaque na medida em que o acesso a tais materiais for realizado, uma
vez que os mesmos apresentam um sem número de questões a serem problematizadas: Para
quem, de fato, Frida escreve? Por que ela endereça inúmeras cartas para as mesmas pessoas?
Por que a artista quase nunca responde às cartas recebidas? Por que, em contrapartida, ao
escrever suas correspondências, espera rapidamente a resposta? Por que, mesmo quando
escreve no diário, escreve cartas (algumas, de amor a Diego, com até oito páginas de
extensão)? E por fim, outra importante questão: Como Frida realiza o trabalho de escavação da
memória, já que registra fatos importantes sobre sua vida, desde a infância?
Assim como as telas, pintadas posteriormente aos eventos vividos, muitos dos registros
feitos no diário íntimo, assim como nas cartas, remontam a um passado longínquo. A distância
em relação aos eventos transcorridos remete-nos ao papel da memória na escrita. A fim de
corroborar as considerações a respeito da (re)leitura dos eventos passados, mostram-se
eficientes as palavras de Susan Sontag, na obra Sob o Signo de Saturno, ao analisar o
comportamento de Walter Benjamin:
“O grau de compreensão está na proporção exata da presença da morte
e do poder de deterioração”, Benjamin escreve na sua obra sobre o
Trauerspiel. É isto que permite encontrar o sentido da própria vida, nos
“eventos mortos do passado eufemisticamente conhecidos como
experiência”. Somente é possível ler o passado porque está morto
(SONTAG, 1986, p. 97).
O passado morto, traduzido através das rememorações pretéritas e o presente pulsante,
preenchido por dores lancinantes, são lidos por Frida nas longas páginas do diário – não um
diário cotidiano, em que os fatos comezinhos são escritos, mas antes um diário à maneira de um
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livro de memórias – lugar em que existem abundantes referências à sua infância, ao acidente, às
cirurgias realizadas e ao longo e conturbado relacionamento com Diego Rivera.
Há que se ressaltar a vertente assumidamente autobiográfica das obras da pintora. As
telas são seu retrato, exprimem seu estado de espírito, perturbações e inquietações. Em carta a
Carlos Chávez, datada de 1939, Frida explica como surgiu sua motivação:
Comecei a pintar há doze anos, quando me recuperava de um acidente
de automóvel que me manteve na cama por quase um ano. Em todos
esses anos, sempre trabalhei com o impulso espontâneo de meus
sentimentos. Nunca segui nenhuma escola nem a influência de
ninguém; nunca esperei nada de meu trabalho, a não ser a satisfação
que podia extrair dele, pelo próprio fato de pintar e de dizer o que eu
não conseguiria dizer de outra maneira (Apud ZAMORA, 2006, p. 105).
Tal qual a pintura, os escritos ora produzidos representam suas dores e sentimentos. A
artista escreve sobre si e para si. As cartas retratam sua vida e descrevem as inúmeras dores
pelas quais foi submetida desde a infância. Registram-se as doenças, o grave acidente, as
inúmeras cirurgias, os três abortos... esquadrinha, de variadas maneiras, o lugar da dor.
Diferente das outras pintoras, tanto pela originalidade quanto pela temática
autobiográfica presente nas telas, Frida produz – com exuberância e vastidão – um diário
singular. As cores, vibrantes e carregadas, acompanham a escrita da pintora da primeira à
última página, seja através da narrativa colorida, seja através dos inúmeros desenhos
produzidos ao longo do diário. Parece impossível para ela apartar a pintura de algo tão íntimo e
pessoal. Algumas páginas traduzem episódios de sua vida vista pelos olhos agudos do
distanciamento – como quando, já adulta, detém-se sobre a infância e reflete sobre o pai.
A escrita funciona para a artista como um contradepressor, por permitir o registro dos
sentimentos e a comunicação com o mundo exterior, nos longos exílios (a pintora permaneceu
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por largos estágios nos Estados Unidos da América3 e lá sofreu algumas intervenções
cirúrgicas) e prolongadas internações. De acordo com Sontag, (1986), na citada obra, Sob o
signo de Saturno, acerca da importância da criação, podemos transpor a assertiva acerca de
Benjamin, para a pintora, no que tange à escrita: “Pensar e escrever são fundamentalmente
questões de resistência”. A escrita desenvolve papel essencial na existência de Frida Kahlo por
proporcionar mecanismos de sobrevivência e convivência com a dor.
3 Segundo Kettenmann (2006, p. 93): “Em 1930 Diego Rivera (esposo de Frida Kahlo), recebe encomendas dos
EUA, e em novembro, o casal muda-se para São Francisco. Em julho de 1931, o casal regressa do México. Em
1932, o casal muda-se para Detroit, onde Rivera foi incumbido de outro trabalho. Em 1933, no mês de março, o
casal muda-se para Nova Iorque, onde Rivera vai pintar um mural no Rockefeller Center. Regressam ao México
no final desse mesmo ano. Em 1935, Frida Kahlo viaja para Nova Iorque com algumas amigas. Em 1936, a pintora
retorna ao México. Em setembro de 1940, Frida Kahlo viaja para São Francisco para ser sujeita a um tratamento
pelo Dr. Eloesser. Em 1946, viaja para Nova Iorque para ser operada à coluna. Regressa ao México no mesmo
ano”.
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2. DILACERAMENTOS
Eu sou a desintegração.
Frida Kahlo
Dilacerar: 1 .(v.t.) Rasgar, cortar em pedaços com violência; lacerar, retalhar, espedaçar
ou despedaçar. 2. (Figurado) Torturar ou atormentar; provocar aflição. (Etimologia do latim:
dilacerāre). Frida Khalo parece ter vivenciado todos os sentidos do termo dilacerar, inclusive
os conotativos. As obras por ela produzidas nos confrontam com o dilaceramento expresso
através das telas, cartas e textos registrados no Diário íntimo. Dificilmente perceberemos
alguém que tenha vivenciado com mais propriedade esse termo que a artista. Raramente,
encontraremos registros de pessoas que tenham feito a experiência do sofrimento, de forma tão
intensa, e tenha conseguido transpô-la, já que a experiência da dor, por vezes, cala, emudece.
Nesse sentido, nos deteremos nas palavras expostas por Fuentes, quando, ao analisar o
“sufrimiento” expresso na obra de Frida Kahlo, a partir da afirmativa de Virgínia Wolf, a qual
afirma que “a dor destrói a linguagem”4, impressiona-se com as produções da artista vindas da
e sobre a dor. A nós, nos parece que o dilaceramento é fator motriz em suas produções. É o
que impulsiona a escrita e a inspira a pintar. Talvez, por esse motivo, as pinturas a retratem. Ao
contrário de emudecer, o antídoto de Frida para superar a dor, é expô-la, traduzida em obras.
Ainda sob a análise do tema “sufrimento”, Fuentes apropria-se do texto de Scarry, que
nos afirma que “a dor, (...) se resiste a converter-se em objeto da linguagem. Por isso a dor é
4 Texto original em espanhol: “...el dolor destruye el lenguaje.” (KAHLO, 2010, p. 12). Livre tradução minha.
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melhor expressa por quem não a sente, mas, fala em seu nome.”5 No caso de Frida,
verificamos o contrário, pois a dor e o corpo são as fontes de arte da artista. É justamente por
ter vivenciado tão intensamente a experiência da dor que ela a descreve, pois, a necessidade de
compartilhar o dilaceramento é intensa, logo, a premissa acima não enquadra-se no estudo das
obras da artista, já que ela fala em nome da dor, intensamente, de variadas formas.
A dor e o dilaceramento espelham-se nas obras da artista, nas variadas fases da vida, uma
vez que desde muito cedo, o sofrimento fez-se presente, culminado com o espedaçamento, o
qual torna-se mais evidente em Frida Kahlo justamente quando a morte a obseda. Acostumada
ao sofrimento devido a inúmeras intervenções cirúrgicas, habituada à solidão das internações
hospitalares e forçada a ser só – tanto pelas mazelas físicas quanto pelas espirituais – Frida
sente mais fortemente as dores, à medida em que as cirurgias e o intervalo entre elas, tornam-se
cada vez mais breves.
Nos meses que precedem sua morte, no fatídico ano de 1953, Frida não envia cartas,
atendo-se a escrever e desenhar em seu diário – talvez pelo fato de estar tão íntima e próxima
de Diego Rivera, seu grande amor, e certa de que as cirurgias eram necessárias. Nesse sentido,
são abundantes no diário íntimo as referências ao estado de saúde e aos médicos do hospital
que a operaram.
Ao discorrer sobre o Diário de Frida Kalho, em que são evidentes os desenhos e
comentários sobre as cirurgias e internações hospitalares, Le Clézio registra o comportamento
da artista, nos dias que se seguiram a comemoração da primeira exposição realizada em sua
homenagem:
5 Texto original em espanhol: “a dor, (...) se resiste a convertirse en objeto del lenguaje. Por eso el dolor es
expresado mejor por quienes no lo sienten pero hablan en su nombre.” (KAHLO, 2010, p. 12). Livre tradução
minha.
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Os dias que se seguiram à festa foram, de fato, terríveis. Alguns meses
depois, estando a perna direita atacada pela gangrena, Frida Kahlo foi
levada ao hospital, onde o doutor Velasco e o doutor Farill lhe
anunciaram que ela devia ser amputada. Ela enfrentou a situação com a
coragem habitual, exorcizando a angústia por meio do desenho em seu
Diário, que representa a perna direita seccionada, com este único
comentário: “Pés, por que eu os quereria, Se tenho asas para voar?”.6
(Le CLÉZIO, 2010, p. 225).
Nesse período, o diário passa a ser o único registro possível, a única fonte de
comunicação, visto que ela estava extremamente fragilizada e esgotada para pintar. Nas
palavras de Le Clézio (2010): “O esgotamento nervoso, a depressão consequente do uso de
entorpecentes não lhe permitem mais lutar com as armas dos pincéis e das cores.” Logo, restam
apenas a pena e as páginas do diário para que Frida possa inscrever sua dor. As pinturas, nele
feitas, retratam o sofrimento face à amputação e ao longo período em que esteve internada,
assim como os registros produzidos pela artista após a grande cirurgia, em que percebemos o
agigantar da dor, como podemos depreender da confidência endereçada a amiga Bambí:
Minha perna foi amputada, e nunca sofri tanto. Sobra-me um choque
nervoso, um desequilíbrio que muda tudo, até a circulação do sangue.
Faz sete meses que fui operada, e veja, ainda estou aqui, amo Diego
mais que nunca, e espero servir-lhe ainda de alguma coisa, e continuar a
pintar com toda a minha alegria, e que nada aconteça a Diego, porque
se Diego viesse a morrer eu partiria com ele, de qualquer jeito.
Enterrarão a nós dois (Le CLÉZIO, 2010, p. 226).
O comentário de Frida é incompreensível para os que nunca comungaram sua dor.
Impossível imaginar que em sua vida sobrevenham, sempre, dores cada vez mais intensas em
comparação às já vivenciadas pela pintora, durante a vida.
6 Segundo Kettenmann (2006), durante o período que se seguiu à amputação, Frida alternava momentos de
proclamação eufórica ( “Para que é que preciso dos pés quando tenho asas para voar? “) e de tristeza.
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So-fri-men-to. A partição deste vocábulo assemelha-se às amputações, cortes e
interrupções vivenciados por Frida, ao longo de sua frutífera existência. Identifica, também, a
demora, a pausa que os sofrimentos causaram na vida da artista. Tal vocábulo parece, de certa
forma, perseguir a pintora, dado que a frase “nunca sofri tanto”, é repetida em vários momentos
de sua existência. A cada vez que se vê o registro dessa expressão, fica-se a imaginar que o
sofrimento, descrito no momento da composição da frase é o maior dilaceramento de sua vida,
o derradeiro, mas, eis que outros surgem, que a maltratam cada vez mais, até a total destruição
de seu corpo.
Embora as dores da amputação pareçam insuportáveis, a experiência do corte já tinha se
feito presente, quase como um ritual de aprendizado. Entre os anos de 1950 e 1951, ela passou
por sofrimentos terríveis. Nesse período, deu-se o início de uma gangrena no pé direito, que
exigiu a amputação dos artelhos.7 Concomitante a esse procedimento, ela passou por mais uma
cirurgia, no Hospital Inglês, na tentativa de implantar um osso em sua alquebrada coluna
vertebral. O procedimento ocasionou uma infecção e a paciente precisou ser submetida a seis
outras intervenções entre março e novembro de 1950. Segue-se um período de vários meses
presa ao leito do hospital, sofrendo dores indescritíveis, afastada da pintura, tendo as cartas e o
diário como forma de externar sua dor. As páginas do diário funcionam como uma válvula de
escape e registro de todo o sofrimento. Talvez como uma forma de alívio, Frida lista as partes
do corpo que serão amputadas e desenha-se tal como ficará, ou como será vista. Ao
representar-se, ao ilustrar-se, personifica o sofrimento vindouro. A representatividade, então,
7 Segundo Carlos Fuentes, na obra: El Diário de Frida Kahlo, un íntimo autorretrato (2010, p. 292; tradução livre
minha): “Em 1949, a gangrena apodera-se do pé direito da artista. Em 1950, no decurso do ano, Frida Kahlo foi
submetida a seis operações na coluna. Ela teve que ser hospitalizada, em parte, por uma infecção grave causada
por enxertos ósseos. Permanece a maior parte do ano no hospital, enquanto Rivera pernoita, durante quase todo o
tempo, em uma habitação contígua”. No original em espanhol: “El 1949, la gangrena se apodera del pie derecho de
la artista. El 1950, durante el transcurso del año, Frida Kahlo se somete a seis operaciones de columna. Tuvo que
ser hospitalizada en parte por una grave infeccíon causada por los injertos óseos. Permanece la mayor parte del año
en el hospital, mientras Rivera pernocta casi todo el tiempo en una habitación contigua”.
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assume a aceitação da extirpação, da perda, da fragmentação, apesar de essa fragmentação não
significar aceitação ou abstração desse dilaceramento. As cicatrizes evidenciadas no diário
expressam os cortes que irão transformar o corpo e o interior da artista, modificado pela dor.
Presume-se, por conseguinte, que Frida escreve sobre o dilaceramento – provavelmente como
forma de dividir o indivisível, uma vez que não há compartilhamento possível para a mazela
física, mas, tão somente o desejo que o outro reconheça a dor, como ela registra nas páginas do
diário, a respeito da agonia de ficar quase nove meses acamada, imobilizada e afastada do
convívio social, fatos que a levam quase ao desespero, como podemos constatar através da
escrita:
Não sofro. Apenas cansaço [...] e, como é normal, muitas vezes sinto
desespero, um desespero que nenhuma palavra poderia descrever. [...]
Desejo muito a pintura. Acima de tudo, transformá-la, para que sirva
para alguma coisa, já que, até agora, só fiz pintar a expressão de minha
honorável pessoa, absolutamente estranha a tudo o que na pintura possa
ser útil ao Partido. Tenho de lutar com todas as minhas forças para que
o que sobrar de positivo em meu estado de saúde sirva à Revolução. É a
única razão que tenho para continuar vivendo (Le CLÉZIO, 2010, p.
218-219).
É na escrita do diário que Frida encontra refrigério para as dores. O registro dos
sentimentos torna-se muito profícuo nesse período e a escrita, nessa perspectiva, ganha vasta
proporção, pois os fatos mais íntimos são expressos através das palavras, já que o estado físico
a impede de retratar as dores e sofrimentos, de outras formas.
Em diversas missivas, Frida relata o cansaço provocado pelo dilaceramento, além do
desespero experimentado pelo fato de passar dias, semanas, meses inteiro acamada, cheia de
dor. O esmorecimento da artista é compatível com o sofrimento prolongado e os desalentadores
prognósticos.
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Diferentemente das cartas, em que há desejo e ensejo de contato com o outro, ainda que
a necessidade de comunicação seja primeiramente de quem remete a missiva, no diário existe a
necessidade de registrar os fatos importantes para quem escreve, como se houvesse a
necessidade de pontuar para si mesmo, os medos, desejos e intenções.
O questionamento feito por Frida sobre as pinturas: "só fiz pintar a expressão de minha
honorável pessoa", ratifica o balanço que a pintora faz de sua vida, das telas autobiográficas,
selando um pacto de que as forças sobejas serão utilizadas em prol da revolução, revolução essa
que sempre esteve presente em sua vida - aliás, Frida marca o ano de seu nascimento pela
Revolução. Ela, nascida aos 06 de julho de 1907, mais tarde, passa a dizer que nasceu no ano
de 1910, ano da Revolução Zapatista, no México.8 Como se a Revolução tivesse, de fato,
marcado sua existência.
O diário revela o sofrimento, sem necessidade de escamoteação. A Revolução ocupa,
uma vez mais, tal qual na mocidade, lugar central em sua vida. Lutar pela Revolução significa
encontrar forças e motivos para prosseguir. Significa dar sentido à sua vida. Significa externar
que, apesar da diferença física, sua força intelectual se faz mais forte. Significa estar apta e em
condições de combate, de luta. Significa o esquecimento das dificuldades, das limitações
impostas pelas cirurgias, pelas extirpações.
As palavras escritas no diário, ainda que não compartilhadas, ensejam um trato de Frida
consigo mesma e revelam as aspirações e desejos por ela sentidos. A Revolução foi a
motivação dos últimos meses de sua existência, já que, incrivelmente debilitada, fez questão de
lutar pelo Movimento até às últimas forças... Esse movimento foi muito marcante em toda a
história pessoal da pintora, uma vez que no início da década de 1940, ela descreve no diário
8 Frida Kahlo decidira aparentemente que ela e o novo México tinham nascido ao mesmo tempo. Na verdade,
porém, ela era três anos mais velha: Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón nasceu no dia 06 de julho de 1907
em Coyoacán [...] A Revolução Mexicana foi de 1910 – 1920 (Kettemann, 2006, p. 7).
21
(2010) as recordações da Decena Trágica – os dez dias trágicos de fevereiro de 1913: “Lembro-
me que tinha sete anos quando se deu a Decena Trágica. Testemunhei com os meus próprios
olhos a batalha dos camponeses de Zapata contra os Carrancistas”.
No ano de 1954, após algumas amputações, Frida está cada vez mais enfraquecida. O
registro do desespero consta no diário, no mês de fevereiro do mesmo ano:
Amputaram-me a perna há seis meses, deram-me séculos de tortura e há
momentos em que quase perco a razão. Continuo a querer matar-me. O
Diego é quem me impede de o fazer, pois a minha vaidade faz-me
pensar que sentiria a minha falta. Ele disse-me isso e eu acreditei. Mas
nunca sofri tanto em toda a minha vida. Vou esperar mais um pouco...
(KAHLO, 2010, p. 278) Livre tradução minha.9
Frida sofre, todavia, seu amor por Diego a mantém viva, ainda que intimamente admita
que esse apego à vida não durará muito tempo. A clareza com que ela imprime os sentimentos
impressiona – o dilaceramento está no limite do insuportável, o longo sofrimento físico a está
enlouquecendo e ela mantém a lucidez necessária para externar o turbilhão de emoções que
existem em seu interior. Seu confidente – refúgio e reconforto nos momentos mais importantes
e graves da vida – é o diário. Nele Frida expressa, com autenticidade, as mazelas, à espécie de
um desabafo e descreve as dores. Ressente-se da amputação, que causou grandes dores físicas e
traumas emocionais, apesar de a artista, com a coragem habitual, declarar que, a despeito da
falta do pé, tinha asas para voar. Ela fica meses no hospital, sem pintar, sem escrever cartas e,
no vazio dos dias e das noites, nos momentos de desamparo, o diário apresenta-se como
sustentação, companhia, além de variado atributo, muito mais valioso que qualquer outro:
9 No original em espanhol: “11 de Febrero de 1954. Me amputaram la pierna hace 6 meses. Se me han hecho
siglos de tortura y em momentos casi perdi la razón. Sigo sintiendo ganas de suicidarme. Diego es el que me
detiene por mi vanidad de creer que le puedo hacer falta. El me lo há dicho y yo lo creo. Pero nunca em la vida he
sufrido más. Esperaré un tempo”.
22
confidente, uma vez que não existem cerceamentos ou censura nos escritos da artista - no
caderno íntimo ela encontra-se disposta a falar sobre si mesma, inclusive sobre o desejo de
morte, que é patente na escrita de Frida, já que os dilaceramentos são tão intensos que a fazem
pensar na morte como solução para as dores. Senão no diário, onde mais ela poderia confiar
esses sentimentos?
Apesar do grave estado de saúde, ela segue, sobrevivendo. Mesmo em estado de
convalescência e tomada de fortes dores, em 02 de julho de 1954, sai de casa para acompanhar
Diego e o pintor Juan O'Gorman num comício contra a intervenção americana na Guatemala,
em apoio ao então presidente e aos comunistas guatemaltecos. As dores não a impedem de
participar, pois a Revolução e a luta por um México igualitário são razões importantes pelas
quais a artista militou durante a existência e, apesar das dores, Frida participa ativamente do
movimento. Porém, em meio ao frio da tarde chuvosa, a pneumonia mal curada de Frida
reaparece.
A despeito da febre, encontra-se lúcida e escreve no diário sobre a certeza de morrer em
breve. Registra sobre um dos maiores temores do indivíduo: a morte e mais que isso, a morte
iminente. Sozinha, o diário é o único interlocutor possível nesse momento difícil, porém de
extrema coragem e lucidez. Consoante Le Clézio: "Ela está sozinha na casa de Coyacán,
cercada apenas pelas empregadas. No jardim, seus cães inquietos se abrigam da chuva diante da
porta fechada"(2010, p. 228).
As últimas páginas do diário de Frida são compostas da pintura Muertos en relajo10
– os
10
- Mortos de férias: as caveiras da morte estão presentes em todos os festejos relativos ao Dia dos Mortos, que
no México, duram vários dias. O dia 1º de novembro, por exemplo, é dedicado às almas das crianças e o dia
seguinte ao dos adultos. A festa termina no 3º dia de novembro, quando as almas retornam ao Mictlán, o lugar
onde vivem, e as famílias comemoram o fim da visita com uma festa onde são consumidos os alimentos que
fizeram parte da oferenda. Situado no coração da capital mexicana, no Claustro, foi instalado um altar em
homenagem ao artista mexicano José Guadalupe Posada, criador da gravura de "La Calavera de la Catrina",
popularizada pelo muralista Diego Rivera em sua obra "Sueño de una tarde dominical en la Alameda". La Catrina,
23
desenhos são representações diversas da morte, através das caveiras - “calaveiras o muertes”11
,
pintadas nas páginas do caderno íntimo. A iminência da morte presentifica-se na vida da artista,
como nos comprovam as páginas em que a mesma torna-se tema recorrente e nos remetem ao
sentido da morte no México, país onde o falecimento possui sentido bastante singular, uma vez
que a data em comemoração aos mortos é celebrada com festejos - incluindo oferendas, flores,
representações dos mortos, comidas e as inúmeras caveiras - inclusive em formas de doces e
açúcar para as crianças. Fuentes nos elucida sobre a tradição existente na cultura mexicana:
Frida Kahlo salta abruptamente da civilização antiga para a cultura
popular, representando a morte mediante as conhecidas figuras
denominadas caveiras da morte. Em 02 de novembro, Dia dos Mortos,
os mexicanos tem o hábito de fabricar jogos, doces e figuras
comestíveis em forma de caveira. [...] O mito da caveira,
profundamente enraizado no México, indica uma atitude face a morte
que poderíamos denominar de fatalismo nacional (KALHO, 2010, p.
262).12
Livre tradução minha.
Consoante o “Mito da Caveira” presente na cultura mexicana, as pinturas e escritos
sobre os “Muertos en relajo” são freqüentes, como podemos depreender do seguinte
comentário: “Posada descreveu com originalidade o espírito do povo mexicano desde os
assuntos políticos, a vida cotidiana os desastres naturais, o terror pelo fim do século, que fazia
temer pelo fim do mundo, as crenças religiosas e a magia através das imagens que
na cultura popular mexicana, é a representação humorística do esqueleto de uma dama da alta sociedade. É uma
das figuras mais populares da festa do Dia dos Mortos no país. A pintora Frida Kahlo é protagonista do altar da
Galeria José María Velasco, situado na colônia Morelos. Capturado do site:
http://info.abril.com.br/noticias/cultura. Uma das representações feitas por Frida, dos Muertos en relajo, encontra-
se reproduzida no ANEXO I.
11 - Caveiras da morte.
12- No original em espanhol: Frida Kahlo salta abruptamente de la civilización antigua a la cultura popular,
representando a la muerte mediante las conocidas figuras denominadas calaveras o muertes. El 02 noviembre, Dia
de los Muertos, los mexicanos suelen fabricar juguetes, dulces y figuras comestibles en forma de calavera. [...] El
mito de la calavera, de profundo arraigo en México, indica una actitud hacia la muerte que cabría denominar
fatalismo nacional. Livre tradução minha.
24
denunciavam cruamente a desigualdade existente entre a sociedade submetida à ditadura de
Porfírio Diaz, uma vez que questionava sua moralidade e seu excêntrico culto pela
modernidade. Essa situação fez da sua obra um pilar fundamental no imaginário mexicano, um
artista proveniente do povo, que se nutriu do imaginário popular mexicano a quem se dirigiu
como público, o que significou ataques cruéis e perseguições. As caveiras de Posada não
tinham como objetivo falar da morte em um sentido religioso ou transcendente, mas sim, como
recorda a historiadora Montserrat Galí, “É uma reflexão sobre os vivos, seus defeitos, suas
fraquezas e vícios. Assim, as caveiras não tinham, verdadeiramente, muito a ver com a morte e
muito menos com reflexões transcendentes, mas sim, com todo aquilo que os vivos emprestam
à sátira, ao escárnio e ao „relaxamento‟”.13
Frida debruça-se sobre a morte: pinta, escreve, faz
desenhos, verbaliza a palavra morte. O culto aos “Muertos en relajo” presentifica-se nas
páginas do diário.
Além dos desenhos, ela registra um agradecimento à equipe médica que cuidou de sua
saúde no hospital: “Gracias al Dr. Vargas a Navarro al Dr. Pólo y a mi fuerza de voluntad.
Espero alegre la salida – y espero no volver jamais – Frida” (KAHLO, 2010, p. 285). A
derradeira frase do diário: “Espero alegre a saída e desejo não voltar jamais”, está impregnada
de ambigüidade, o desejo de não retornar refere-se ao hospital, onde esteve internada por largos
períodos e foi submetida a inúmeras e lancinantes intervenções, ou refere-se ao desejo de não
13
No original em espanhol: “Posada describió con originalidad el espíritu del pueblo mexicano desde los asuntos
políticos, la vida cotidiana, los desastres naturales, el terror por el fin de siglo que hacía temer por el fin del
mundo, las creencias religiosas y la magia a través de las imágenes que denunciaban descarnadamente la
desigualdad existente en la sociedad sometida a la dictadura de Porfirio Díaz, a la vez que cuestionaban su
moralidad y su extranjerizante culto por la modernidad. Esta situación hizo de su obra un pilar fundamental en la
imaginería mexicana, un artista proveniente del pueblo que se nutrió del imaginario popular mexicano y al que se
dirigió como público, lo que le significó ataques despiadados y persecuciones.Las calaveras de Posada no tenían
como objetivo hablar de la muerte en un sentido religioso o trascendente, sino, como recuerda la historiadora
Montserrat Galí, „Es una reflexión sobre los vivos, sus defectos, sus flaquezas y sus vicios. Así, las calaveras no
tienen en el fondo mucho que ver con la muerte y mucho menos con reflexiones trascendentes, sino con todo
aquello de los vivos que se presta a la sátira, la burla y al „relajo‟.” Capturado da internet:
encontrarte.aporrea.org/expo/e30.html
25
querer viver, de não prolongar o sofrimento, de ter a certeza da falibilidade física, uma vez que
a morte apresenta-se certeira?
As palavras dúbias, presentes no discurso de Frida, nos fazem refletir sobre as
verdadeiras intenções das palavras e nos remetem ao texto: Por que se escreve?, escrito por
Sartre, na obra Situações II, onde o autor contrapõe os silêncios, as palavras não ditas pelo
autor, o inexprimível, às armadilhas - que são arquitetadas pelo autor - as quais demandam
perícia e cuidado por parte do leitor, que precisa completar o texto e ir além das palavras:
Mas, por outro lado, as palavras estão presentes como armadilhas para
suscitar os nossos sentimentos e reflecti-los na nossa direcção; cada
palavra é um caminho de transcedência, informa os nossos afectos, dá-
lhes nome, atribui-os a uma personagem imaginária que se encarrega de
os viver por nós e em quem estas paixões emprestadas são a sua única
substância; confere-lhes objetivos, perspectivas, um horizonte.
(SARTRE, 1948, p.91)
A subjetividade do texto nos faz pensar na difícil arte da interpretação das escritas
íntimas, uma vez que o diário e as cartas nos dão pistas, mas, não nos apontam, de forma
inquestionável, a direção. Depreender o sentido do texto, completar as lacunas deixadas pelo
escritor e entender os anseios de quem escreve são tarefas que exigem cuidado. Frida escrevia
somente para se entender melhor? Os inúmeros registros feitos no diário tinham a pretensão de
serem lidos por outrem ou serviriam somente para abrandar o sofrimento?
Em uma das páginas do diário, Frida faz uma retrospectiva das inúmeras intervenções
cirúrgicas que sofreu durante a vida. A forma peculiar de registrar os acontecimentos, inclusive
com a indicação cronológica das datas, apontam para a ratificação dos fatos vivenciados. O
esquecimento do sofrimento não seria possível, já que os escritos deixariam os fatos inscritos
no diário e na memória. Nesse caso excepcional, a artista não indica o texto produzido pelo ano
26
da escrita do diário, mas sim, pela duração de sua existência. A primeira data – 1910 –
simboliza o ano escolhido para o ser a indicação de seu nascimento, o ano da Revolução, e a
data limite – 1953 – indica a data de produção dos escritos. As datas contrapõem vida e
finitude, representadas através dos anos que tradicionalmente representam início e fim de uma
existência. Parece-nos que Frida, após tantos cortes, esboça o balanço de sua vida, pois,
segundo a artista:
1910-1953
Em toda a minha vida, fui submetida a 22 operações cirúrgicas – O Dr.
Juanito Farril quem considero um verdadeiro homem da ciência e
ademais um ser heróico porque passou a sua vida inteira salvando aos
enfermos sendo ele mesmo enfermo também enfermidade aos seis anos
paralisia infantil (poliomielite 1926 – acidente de ônibus com ALEX
(KAHLO, 2010, p. 251).14
Livre tradução minha.
A falta de pontuação indica o impulso contínuo da escrita da artista. Ao acompanharmos
seu relato, falta-nos fôlego, talvez o mesmo ar que tenha escasseado para Frida, ao longo das
intervenções cirúrgicas. Em poucas palavras, a artista demarca, cronologicamente, os
acontecimentos marcantes e dolorosos em sua vida: ela faz referência às cirurgias, à marcante
e, portanto, inesquecível poliomielite e, ao acidente de ônibus, sofrido em 1926. Frida resume-
se de forma intensa e pontual. Não poupa nenhum dilaceramento ao realizar a sinopse de sua
existência.
No diário, a artista faz importantes anotações e escreve cartas, além dos registros de
agradecimento, como observado no trecho supracitado. Nesse sentido, escrever no diário
14
- Original em espanhol: 1910-1953
En toda mi vida, he tenido 22 operaciones quicurgicas – El Dr Juanito Farril a quien considero un verdadero
hombre de ciencia y además un ser heróico por que há pasado su vida entera salvando a los enfermos siendo él un
enfermo también enfermedad a los seis años parálisis infantil (poliomielitis 1926 – accidente en camion com
ALEX. ((Kahlo, 2010, p. 251) Livre tradução minha.14
Há que se ressaltar que, no México, camion siginifica,
outrossim, autocarro, ou seja, ônibus em Língua Portuguesa.
27
significa realizar a ação intentada, proferir o agradecimento. Ela não só escreve, pinta suas
operações, cortes e dilaceramentos. Representa de variadas formas as experiências da dor.
O diário, escrito por Frida Kahlo durante os últimos dez anos de sua vida, documenta a
deterioração física, como podemos comprovar através das palavras de Sarah Lowe, escritas no
prefácio do diário de Frida Kahlo (2010), “O Diário reflete sua incansável luta na busca de
soluções ao seu sofrimento, sua resignação ante às prescrições médicas, assim como seu
freqüente estoicismo ante aos contínuos fracassos”.15
O diário é um desabafo, cheio de tintas e sentimentos. Nele estão presentes questões
sobre a saúde, a deterioração e a vida. Os escritos estabelecem um diálogo interno, uma relação
com ela mesma, em que estão presentes os temas que perseguiram sua vida – sem máscaras.
Sem a preocupação da leitura por outrem, ela expressa uma escrita verdadeira e sincera,
cercada de desenhos fortes, escuros, vibrantes, mal contornados, além das palavras rabiscadas.
O interior de Frida pode ser sentido no vivo diário, escrito sem retoques.
Ainda que tenha sido escrito quando Frida estava com, aproximadamente, trinta e seis
anos de idade, constam no diário registros da infância da artista - os relatos sobre Diego e as
cirurgias dividem espaço e cores com as memórias. Não existe somente o exercício da escrita,
outrossim, o esforço da lembrança, o trabalho de escavação da memória, o qual nos remete às
palavras de Benjamin ao discorrer sobre a escrita de Proust, em que este lembra a vida pelas
experiências vividas, com as perspectivas unilaterais promovidas pelas diversas sensações que
ativam a memória. Para aquele, não se trata exatamente do que aconteceu, mas, como os fatos
vivenciados registram-se na memória e, assim sendo, quais experiências, dentre as vividas
habitualmente, merecem ficar armazenadas. Nesse sentido, tornam-se eficazes as palavras de
15
Texto original em espanhol: “El Diario refleja su incansable lucha en la búsqueda de soluciones a su
sufrimiento, su resignación a las prescripciones de los médicos, así como su frecuente estoicismo ante los
continuos fracasos. (KAHLO, 2010, p. 29) Livre tradução minha.
28
Walter Benjamin (1993): “... o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu,
mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria
preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?”16
, uma vez que suas palavras nos
remetem à tensão existente entre reminiscência e esquecimento e referem-se às sensações e
acontecimentos que recebem o estatuto de importantes, e que, portanto, registram-se no filtro
da memória. Ao longo das páginas, ao escavar as memórias da infância, realizando o processo
de remoer o passado, selecionar as lembranças importantes e eleger os fatos marcantes, por ela
eleitos, a artista salienta o carinho paterno, presente em todos os momentos da vida, desde a
mais tenra idade - Frida teve poliomielite aos seis anos e foi o pai que encarregou-se de todos
os cuidados e carinhos nos nove meses de convalescença. Ela recuperou-se, não sem marcas e,
ao retornar a escola, ganhou o apelido que tanto odiou: “Frida perna de pau”. Ao mesmo tempo
em que revela seus dilaceramentos na escrita e na pintura, artista esconde a perna desigual
durante toda a vida debaixo das compridas saias mexicanas.
Na vida adulta, Frida sofre terríveis dores na coluna vertebral, que tanto impingem dor e
a inspiram a pintar. Retratar o sofrimento demonstra ser a única forma possível de
sobrevivência, dada a magnitude das dores, fraturas e cortes. O corpo dolorido, do qual ela não
podia separar-se, gritava sua dor, a todo instante. Impossível desviar o pensamento, impossível
não ouvir aqueles gritos tão agudos e fortes. A escuta de Frida traduz-se na escrita e na pintura,
nas telas cheias de cores vibrantes e cortes profundos. A dor foi sua própria inspiração, a
verdadeira motivação para pintar.
Frida inscreveu a dor de formas diversas e intensas. Mostrou-se uma feroz escritora de
cartas, pintora compulsiva e escritora assídua do diário. Para além do registro do dilaceramento
16
(BENJAMIN, 2012, p.38).
29
por meio das palavras, foi na pintura que a artista encontrou voz. Nas telas, a artista desnudou-
se, retratou não só o sofrimento como as sensações sobre as etapas variadas de sua existência.
Parece-nos custoso imaginar com que cores pode-se pintar o sofrimento ou qual a melhor
maneira de retratá-lo, uma vez que a questão central remete ao desejo de expressar-se e
desvelar-se.
Na tela, A Coluna Partida, Frida enseja compartilhar o sofrimento com os interlocutores
possíveis. Pinta-se rasgada, dilacerada. As lágrimas rompem o rosto e os pregos a perfuram por
inteiro, demonstrando as terríveis dores a que foi acometida. Simbólico pela correlação com a
tortura, a artista pinta-se cravejada pelo duro metal, que tanto fixa quanto fere. Não bastariam
alguns, somente uma chuva deles representaria a intensidade da dor. A quantidade dos pregos
nos remete, outrossim, à figura de São Sebastião, representado com o corpo completamente
flechado, o que, por sua vez, nos remete ao sacrifício. Assim como São Sebastião, Frida pinta-
se bastante sofrida, contudo serena.
Os olhos que derramam lágrimas17
, elemento que Frida incorpora em suas obras em
repetidas ocasiões, fazem referência à manifestação do laceramento e são a representação
externa da dor, como a comprovar a veracidade e profundidade do sofrimento.
17
“As lágrimas têm uma conotação tanto literal quanto simbólica, fazendo referência a Madre Dolorosa do
Cristianismo (Nossa Senhora das Dores), no tempo que alude a lenda mexicana da Chorona, outra mãe vestida de
luto”. Texto original em espanhol: Las lágrimas tienen una connotación tanto literal como simbólica, haciendo
referencia a la Madre Dolorosa del Cristianismo, al tiempo que alude a la leyenda mexicana de la Lhorona, outra
madre vestida de luto. (KAHLO, 2010, p. 216) Livre tradução minha.
30
(Tela: A Coluna Partida, 1944. KETTENMANN, 2006, p. 69)
A tentativa de compartilhar o dilaceramento inclui pintar elementos que traduzem
31
sua imagem: as lágrimas, o sangue, os cortes e o colete são elementos fundamentais, uma vez
que comunicam o grau de sofrimento em que Frida se encontrava. A paisagem árida e
desértica, completada com a própria solidão da artista, nos dão a ver a solidão com que passou
largos períodos de sua vida.
Não há mais elementos de dor a serem pintados, já que o corpo de Frida, na tela, está
sangrando e aberto – não existe vislumbre de cicatrização, antes, a expressão dos ferros que
sustentam a coluna, deixando-a firme. A tela desnuda os sentimentos e mazelas da artista,
desvelando a visão intrínseca do seu corpo e a maneira como sentia-se: torturada. A tela
esboça o interior.
A pintura completa sua vida e a vida, esboçada na tela, evidencia a forma como a artista faz
a percepção de si mesma, através do corpo invadido por intensas lacerações, que ganham
vulto nas telas e representam não só a fonte singular de inspiração, exibem o “algo mais”,
imaginado por Carlos Fuentes na introdução do diário de Frida Kahlo:
Desde logo, sua arte não é uma maneira absoluta de descobrir a
interioridade pessoal e a identificação da personalidade da alma com a
beleza, apesar das aparências externas. É algo mais. É uma
aproximação do próprio ser, do futuro, da negação que todos somos.
Nunca um ponto final, sempre uma aproximação, sempre uma busca da
forma que, ao ser alcançada, adquire a classe estética que faz a
evocação do momento, citanto Yeats: “Toda mudada, totalmente
transformada, nasce uma terrível beleza”.18
(KAHLO, 2010, p. 16)
Livre tradução minha.
A terrível beleza que a artista nos apresenta diz respeito a si mesma. A pintura da dilacerada
18
- Texto original em espanhol: Desde luego, su arte no es una manera absoluta de descubrir la interioridade
personal y la identificación de la personalidad del alma com la belleza a pesar de las apariencias externas. Es algo
más. Es una aproximación al próprio ser, al devenir, al aún no que todos somos. Nunca un punto final, siempre un
acercamiento, siempre una búsqueda de la forma que, al alcanzarse, adquiere el rango estético que evoque hace um
momento, citando a Yeats: “Toda cambiada, totalmente transformada, nace una terrible belleza.” (KAHLO, 2010,
p. 16)
32
venustidade nos traz um recorte do convívio de Frida com as dores impostas pelos bondes que a
atravessaram ao longo da existência. Para além das telas, Frida pinta-se, outrossim, com as
palavras, e nelas, a artista não prescinde dos desenhos, assim como o diário não prescinde da
pintura. A repetição do sofrimento, através de duplas formas de inscrevê-lo, são marcantes nas
produções.
A forma minuciosa com que Frida descreve a dor levam o leitor a participar de sua agonia,
já que ela não poupa os detalhes, como podemos observar através da missiva escrita em junho
de 1946, endereçada a Alejandro Gómez Árias, onde Frida descreve as dores atrozes que a
invadiram, após a realização de mais uma das tantas cirurgias:
Faz três weeks que eles cortaram ossos e mais ossos. Os médicos são
tão maravilhosos e o meu body está tão cheio de vitalidade que hoje
eles me fizeram ficar sobre meus pobres feets por minutinhos. Eu
mesma não belivo. Nas firt duas semanas, tive dores terríveis e fiquei
em prantos. A dor é tamanha que eu não a desejaria a ninguém. É muito
intensa e ruim. Mas esta semana ela diminuiu, com a ajuda de
medicamentos, e estou passando relativamente bem. Tenho duas
grandes cicatrizes nas costas, in this forma.
Depois, eles me cortaram um pedaço da pélvis para usar como
implante na minha coluna. (KAHLO, 2006, p.130-131)19
Como forma de certificação da escrita, Frida reproduz os ossos na correspondência. Na
incerteza da compreensão, desenha as costas, os cortes e registra, de forma diversa, a dor.
Esmiúça o sofrimento como certeza da compreensão. Nesse sentido, a carta para Alejandro é
muito significativa, pois, o aproxima da realidade vivida pela artista - não se trata de uma
correspondência cujo conteúdo permeia a banalidade, ela fala de si, do dilaceramento sentido,
uma vez que toda a missiva reflete seu estado emocional e físico.
A escrita da artista reflete grande habilidade com as palavras, para que o outro possa
19
A carta, na íntegra, encontra-se reproduzida no ANEXO II
33
enxergar a figura que está distante. Ao expressar-se tão visceralmente a artista rasga-se, como
na tela “A coluna partida”, mostra-se à força para que a vejam, para que possam ter contato
com os ferimentos que a invadem. Frida não aceita a distância, não conforma-se com a solidão
imposta pelos crescentes dilaceramentos, logo, a representação torna-se fundamental em sua
existência, seja através das penas ou das tintas, por precisamente tornarem possível a
aproximação com o interlocutor.
2.1. A CONCHA E A OSTRA
A angústia e a dor – o prazer e a morte são
muito mais que um processo. (Frida Kahlo)20
O corpo é a tumba que nos aprisiona
como a concha que guarda a ostra.
(Platão)21
O dilaceramento sentido por tão prolongado tempo, por vezes, leva Frida à agonia e ao
desespero. Ativa, falante, entusiasta da Revolução, amante do humor e apaixonada, ela sente
que o corpo não corresponde aos seus desejos. Na verdade, o invólucro apresenta-se como um
impeditivo para a liberdade, já que, após os cortes e amputações, a artista torna-se debilitada e
dependente. No final da existência, a artista não possui forças para pintar, sendo-lhe possível,
somente, escrever no diário. Os longos períodos de internação, as amputações e as
impossibilidades são um dilaceramento a mais. A sensação transmitida pelos escritos é que o
corpo a aprisiona, a obriga a submeter-se a longos repousos, a impinge imobilidade. Além do
20
Extraído do Diário de Frida Kahlo. Texto original: “La angústia y el dolor – el pracer y la muerte no son más
que un processo”. (Láminas 77-78 del Diário de Frida Kahlo). (KAHLO, 2010, p. 243; tradução livre minha). 21
Texto original extraído do prefácio do diário de Frida Kahlo: “El cuerpo es la tumba que nos aprisiona igual que
la concha encierra a la ostra” (KAHLO, 2010, p. 13). Livre tradução minha.
34
cerceamento, ela convive com a dor, seu corpo a tortura. Apesar do corpo, sobra a mente,
completamente liberta para expressar-se.
A concepção dicotômica corpo-mente há muito é discutida e já se encontra expressa no
pensamento grego clássico, especialmente com Platão, dominando o conjunto do pensamento
antigo. Na visão de mundo platônico, a alma, imortal, por necessidade ou arrependimento, ao
encarnar num corpo – “túmulo da alma”, se deteriora, tornando-se dela encarcerada. Em seu
diálogo „Fédon‟, o corpo aparece como um empecilho à pureza da alma, corpo como
deturpação e decadência moral, onde só a morte do corpo a libertaria. O corpo é definido por
Platão do seguinte modo: “Este peso que trazemos conosco e que denominamos corpo e ao qual
estamos presos como a ostra à sua concha.”
O corpo de Frida encontra-se, em grande parte da existência, preso à dor e ao sofrimento
intenso. A vida e, principalmente, as obras da artista, traduzem o impulso de convívio com o
dilaceramento, o qual pode ser observado através da escrita do diário de Frida Kahlo, que
reflete, segundo Sarah M. Lowe, em ensaio publicado no prefácio do Diário, sua “incansável
luta na busca de soluções para o seu sofrimento”22
(KAHLO, 2010, p.29; tradução livre minha).
Toda a produção do Diário espelha as formas de sobrevivência utilizadas pela artista para
conviver com o dilaceramento. A principal solução encontrada e praticada pela artista foi expor
a dor, através da escrita e da pintura, intensamente. A produção dos autorretratos reflete, acima
de tudo, as etapas da vida, imersas na dor.
Os registros no diário indicam, à semelhança das telas, a gradação do dilaceramento, as
reflexões sobre o tema da dor, seus anseios face às agonias sentidas e nos lançam instigante
questão, ainda segundo Lowe: “Como caberia ler o diário íntimo de uma mulher e, por
22 Extraído do Diário de Frida Kahlo. Texto original: “El Diário refleja su incansable lucha em la búsqueda de
soluciones a su sufrimento”. (Kahlo, 2010, p. 29; tradução livre minha).
35
extensão, o que se aprende de uma pintora com a leitura de suas memórias? (KAHLO, 2010,
p.25) Tradução livre minha.23
Aprendemos que o sofrimento, ainda que extremamente lancinante, pode ser transmutado
em palavras e pinturas. Talvez para compreendemos que Frida Kahlo, ao representar a dor com
pinturas e, no final da existência, sobretudo nas fases mais agudas da dor, evidenciar todas as
lacerações, através das palavras, realizou a inimaginável missão de compartilhar a dor, de
descrever o indescritível.
Segundo a citada Virgínia Wolf, a dor destrói a linguagem. Priva o ser da fala. Silencia. No
entanto, para a pintora mexicana, a dor e o corpo dilacerado – justamente por representarem o
universo em que a artista se viu imersa até o momento de seu desenlace – tornam-se
instrumento. A existência só é possível com a exploração do corpo e da dor.
Frida não aparta escrita e pintura nas páginas do diário. Ao contrário, ela os sobrepõe,
expondo a indivisibilidade do discurso e das tintas, através das pinturas realizadas no diário, as
quais corroboram dor e sofrimento sentidos e registram os incessantes dilaceramentos. É
justamente sobre os abortos, a coluna, os médicos, as internações e o sofrimento que a pintora
irá escrever em seu diário e cartas, uma vez que a escrita torna possível a convivência com a
dor, como podemos depreender do texto escrito por Frida em seu diário, entre os anos de 1950-
1951:
Tenho estado enferma durante todo o ano. Sete operações na coluna
vertebral. O Dr. Farril me salvou. Ele tornou a me dar alegria de viver.
Todavia, estou na cadeira de rodas e não sei se poderei voltar a andar.
Tenho um colete de gesso, que, apesar de ser uma coisa pavorosa, me
ajuda a sentir-me melhor da coluna. (IDEM, 2010, p. 252) Livre
23 Texto integrande do ENSAYO, escrito por Sarah M. Love, no prefácio do Diário del Frida Kahlo: “Cómo
cabría leer el diario íntimo de una mujer y, por extensíon, qué se aprende de la pintora con la lectura de sus
memórias? (KAHLO, 2010, p. 25) Livre tradução minha.
36
tradução minha.24
Ao inscrever suas misérias, a artista registra a dor e a irresolução sobre a recuperação do
corpo alquebrado. Faz-se mister notarmos que ao escrever o texto supracitado, a artista assinala
a data no alto da página, 1950-51, o que constitui raridade em seu diário, escrito entre os
derradeiros anos de 1944 a 1954. Fixar a data no alto da página representa, justamente, a
explicação do lapso de tempo/texto entre os meses que compreendem o ano de 1950 até 1951 –
período da longa enfermidade.
Durante curto período de tempo, Frida passa por sete operações e, apesar de tantas
intervenção cirúrgicas, encontra-se na cadeira de rodas, presa ao colete de gesso, ao modo da
ostra presa a concha. O laceramento é sentido reiteradas vezes e a confronta cotidianamente
com as impossibilidades e a negação. A incerteza quanto ao fato de voltar a andar constitui
sentimento que a espreita.
A relação da artista com a inscrição do tempo é extremamente peculiar. O diário de Frida é
um texto em tudo singular, uma vez que a escrita reflete os sentimentos mais profundos - seu
diário margeia a autobiografia. No que tange a questão da data, é interessante observar uma
importante distinção entre diário e autobiografia, proposta por Lejeune, a respeito das escritas
íntimas e do diário:
(...) Um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A
datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital.
Uma entrada no diário é o que foi escrito num certo momento, na mais
absoluta ignorância quanto ao futuro, e cujo conteúdo não foi com
24 Texto original: “1950-51: “He estado enferma un año. Siete operaciones en la columna vertebral. El Doctor
Farril me salvó. Me volvió a dar alegria de vivir. Todavia estoy en la silla de ruedas, y no sé si pronto volveré a
andar. Tengo el corset de yeso que a pesar de ser una lata pavorosa, me ayuda a sentirme mejor de la espinha.
(KAHLO, 2010, p. 252) Livre tradução minha.24
37
certeza modificado. (...) Quando soa meia-noite não posso mais fazer
modificações. Se o fizer, abandono o diário para cair na autobiografia.
(LEJEUNE, 2008, p. 260)
O diário é, destarte, o espaço privilegiado da escrita íntima - do “eu” para si mesmo -, cujo
conteúdo, muitas vezes secreto, também é destinado, num primeiro momento, a quem escreve.
O leitor privilegiado do diário é o próprio autor, pois é para ele, primeiramente, que o texto é
escrito. No entanto, historicamente, muitos diários, os quais não são simples registros dos fatos
seqüenciados no cotidiano, antes, reflexões das emoções e angústias, ao tornarem-se públicos,
transmutam-se em autobiografia. Instiga-nos pensar que a linha tênue que separa a
autobiografia dos diários íntimos seja o caráter público e privado de cada produção,
respectivamente.
Toda obra existe para ser lida, ainda que por quem a escreveu, na qualidade de leitor, uma
vez que somente este pode completar o ciclo da produção que inicia-se com a escrita. Jean-
Paul Sartre, em Situações II, capítulo: Por que se escreve?, tece importante comentário sobre a
função primeira da escrita:
Não é portanto verdade que se escreva para si mesmo: seria o pior
fracasso; ao projetar as emoções no papel, a custo se conseguiria dar-
lhes um prolongamento langoroso. O acto criador é apenas um
momento incompleto e abstracto da produção duma obra; se o autor
existisse sozinho, poderia escrever tanto quanto quisesse; nem a obra
nem o objeto veriam o dia, e seria preciso que pousasse a caneta ou que
desesperasse. (SARTRE, 1948, p.89)
É justamente através da dialética, da arte do diálogo, que o leitor traz completude a obra. No
caso do diário, o leitor, a priori, o alter ego do autor, começa a dar sentido ao texto e a torná-lo
compreensível. A organização do tempo, a seleção da memória e dos afetos constituem
elementos preponderantes na escrita dos mesmos, nesse sentido, escrever e ler a própria obra
38
possibilita o diálogo e a organização dos sentimentos e pensamentos, ainda que, no tocante às
escritas íntimas, não existam dois agentes distintos e o autor seja, outrossim, o leitor
privilegiado da obra. Nos diários - onde a obra existe para si - a leitura acurada e a completude
de sentido é dada pelo autor, inversamente ao que ocorre na escrita dos livros, onde, o leitor
fica incumbido da completude da obra, consoante Sartre:
Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo
dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos.
É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objeto
concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só há arte para os outros
e pelos outros. (IDEM, 1948, p.89)
Cerceada de seus movimentos devido às constantes cirurgias e internações, Frida escreve.
No ano de 1953, ano anterior a sua morte, sobejam relatos sobre sua condição. Constam datas
em muitos desses escritos, o que nos sugere que a artista organizou cronologicamente os cortes
e amputações:
Julho, 1953
Cuernavaca.
Pontos de apoio.
Em minha figura completa só tenho um, e quero dois.
Para ter os dois ele tem que cortar um. Este é um que não tenho e que
tenho que ter. Para poder caminhar o outro será morto! A mim, as asas
me sobram. Que as cortem e a voar!!25
(KAHLO, 2010, p. 276) Livre
tradução minha.
25
Julio, 1953. Cuernavaca. Puntos de apoyo. En mi figura completa solo hay uno, y quiero dos. Para tener yo
los dos me tienen que cortar uno. Es el uno que no tengo el que tengo que tener. Para poder caminar el outro será
ya muerto! A mi, las alas me sobran. Que las corten y a volar!! (KAHLO, 2010, p. 276) Livre tradução minha.
39
O registro da dor está presente nos diários e nas cartas. Frida acompanha o dilaceramento de
seu corpo, ocorrido após várias cirurgias e inúmeras tentativas de recuperação. O corte do pé a
marca profundamente e a faz escrever e pintar no diário o retrato do corte. O escape da artista
centra-se no diário, pois, nas fases mais agudas da dor, Frida sente-se impossibilitada de pintar.
Nas pinturas feitas no caderno íntimo, ela liberta-se do corpo alquebrado e imagina a liberdade
através das asas, que representam escape ante ao corpo que teima em desmoronar. Quando
escreve, precisamente, todas essas informações no diário íntimo, para quem Frida escreve?
Ressalta-se que no diário abundam registros sobre a infância, o amor condescendente a
Diego e às cirurgias. Nas cartas, o interlocutor está explícito, ao contrário do diário. Mas, se
Frida possuía todas as informações, se sabia sobre todos os procedimentos que seriam
realizados, por que a ratificação da dor através dos desenhos e escritura? Confirmação do
dilaceramento?
Ela era autora e leitora do próprio diário. A completude da obra residia, provavelmente,
no ato de produzir, desenhar, informar, rabiscar as já traçadas linhas, reescrever, sublinhar e
colorir as páginas, ainda que já completas de escrita. O exercício da escrita, da pintura e da
leitura das páginas, feitos pela artista, indicam a importância do ato criador em sua existência.
Impossível não pintar. Impossível não escrever.
A produção artística de Frida representa a razão de existir e indica possível forma de
convivência com a dor. Externá-la, reiteradas vezes, ainda que para si mesma, acena como a
possibilidade de lucidez e sobrevivência em meio a dor. Pintar e escrever tornam possível a
convivência com o dilaceramento, à medida que transformam a escrita em contra depressor
lúcido. Além da precisão das informações, ao referir-se às amputações e lacerações, a pintora
vale-se das tintas. As palavras não são suficientes para aplacar ou explicar o dilaceramento.
As páginas originais do diário indicam que, concomitante aos relatos sobre as internações,
40
há desenhos e pinturas sobre os cortes.
No mesmo ano de 1953, após o lapso sem escritas devido à longa internação, a artista
continua, não sem antes pintar seu corpo, o relato imerso de angústia, nos dias que precederam
a amputação:
Agosto de 1953.
Estou segura que vão amputar minha perna direita. Sei poucos detalhes,
mas, as opiniões são muito sérias. Dr. Luis Mendes e o Dr. Juan Farril.
Estou muito preocupada, muito, mas, desta vez sinto que será uma
libertação. Oxalá eu possa seguir caminhando e dar todo o esforço que
me sobra para Diego. Tudo para Diego.26
(KAHLO, 2010, p. 277);
Livre tradução minha.
Os sofrimentos físicos e a devoção por Diego perscrutam a vida de Frida. Os dois bondes
que atravessaram seu caminho, entrelaçando o destino, são as principais inspirações das penas
e das tintas.
A leitura do diário exige a compreensão das supressões e reticências. O discurso da artista
não é explícito, antes, representa o turbilhão de emoções desdobrado no emaranhado de
palavras e desenhos, como podemos observar nos trechos do caderno íntimo da artista, em que
exuberam as pausas e as correções27
efetuadas em relação às ideias primeiramente traçadas –
tais correções nos impelem a pensar na intenção comunicativa do diário, bem como no caráter
privado dos escritos e se havia pretensão de o texto ser lido por outra pessoa. Resta-nos o
questionamento sobre os motivos que levaram a artista a riscar tanto as palavras, para somente
26
Texto original: Agosto de 1953.
Seguridad de que me van a amputar la pierna derecha. Detalles sé pocos pero las opiniones son muy serias. Dr
Luís Mendes y el Dr Juan Farril.
Estoy preocupada, mucho, pero a la vez siento que será una libertación. Ojalá y pueda ya caminando dar todo el
esfuerzo que me queda para Diego. Todo para Diego. (KAHLO, 2010, p. 277). Livre tradução minha. 27
Ao lermos o Diário de Frida Kahlo observamos que, em inúmeras ocasiões, a artista corrige-se. Logo, as
palavras e frases são riscadas de forma peculiar, de modo que o leitor não consiga depreender o sentido do que
estava escrito. Ela rabisca, risca completamente as palavras, para somente depois, as substituir.
41
depois substituí-las, se somente a artista desfrutaria a leitura do caderno íntimo. Compreender,
outrossim, a incompletude do texto, sugerida pelas reticências, significa ir além da escrita,
como podemos observar no trecho abaixo, escrito por ocasião da exposição realizada em sua
homenagem, no México, em 1953:
A vida silenciosa...
Doadora de mundos...
Veados feridos
Roupas de tehuana
Raios, penas, sóis
Ritmos escondidos
(KAHLO, 2010, p. 272) Livre tradução minha.28
Além das reticências, Frida utiliza em muitas produções, apenas um conjunto de palavras
para expressar as ideias. São palavras carregadas de sentido, que prescindem de explicação,
talvez por tratar-se de uma escrita que seria lida pela própria autora, que já compreendia os
sentidos e intenções. A escrita é enxuta, porém, as palavras são plenas de significado, como
podemos depreender dos escritos abaixo, extraídos do diário da artista, em uma página onde a
pintura preenche todo o papel, restando o fim da página para as inscrições:
A pomba se enganou
Se enganava..............
(IDEM, 2010, p. 277) Livre tradução minha.29
Frida pinta seu autorretrato e moldura, não por acaso, o desenho com os versos de Rafael
28
Texto original em espanhol:
La vida callada... / dadóra de mundos... / Venados heridos / Ropas de tehuana / Rayos, penas, soles / Ritmos
escondidos (Kahlo, 2010, p. 272; tradução livre minha) 29
Texto original em espanhol: Se equivocó la Paloma / Se equivocaba............ (KAHLO, 2010, p. 277 –
referente à lâmina 141) Livre tradução minha. A reprodução da referida página encontra no ANEXO III.
42
Alberti30
. Os escritos remetem aos equívocos cometidos pela pomba e nos instigam a pensar
nas próprias incertezas da artista em relação à sua saúde e à recuperação da perna e da coluna –
destacadas no desenho. Ao invés dos braços, ela se representa com duas asas, referência
observada em outras produções, uma vez que, para vencer as dores e desprender-se do colete e
das lacerações, ela necessitaria delas. A página seguinte do diário é também ocupada por uma
grande pintura, além dos versos do mesmo Rafael Alberti. Frida acrescenta reticências ao
poema, cujos versos remetam, provavelmente, aos seus próprios enganos:
Em vez do norte foi ao sul
Se equivocava...............
Acreditou que o trigo era a
água
Se enganava.................
(KAHLO, 2010, p. 277) Livre tradução minha.31
Para além do discurso, por vezes intrincado, deparamo-nos com as supressões de várias
páginas do diário da artista. Existem lacunas, lapsos, que nos instigam a pensar na continuidade
do texto, no dito e no interdito. O vazio das páginas nos remete à incompletude, já que as
produções referentes às inúmeras internações e a amputação estão plenas de vazios. Muitas
páginas foram arrancadas do diário, o que indica a leitura prévia do mesmo por outro leitor,
além do próprio alter ego. Os relatos a posteriori da amputação, inexistem, remetendo-nos,
primeiramente, ao caráter íntimo da obra, que a rigor é escrita para ser desfrutada pelo próprio
30
Poema: Se equivocó la Paloma, da autoria de Rafael Alberti.“Se equivocó la paloma. / Se equivocaba. / Por ir
al norte, fue al sur. / Creyó que el trigo era agua. /Se equivocaba.
Creyó que el mar era el cielo; / que la noche, la mañana. /Se equivocaba.
Que las estrellas, rocío; / que la calor; la nevada. / Se equivocaba.
Que tu falda era tu blusa; / que tu corazón, su casa. / Se equivocaba.
(Ella se durmió en la orilla. /Tú, en la cumbre de una rama.)”
Capturado da internet: ocastendo.blogs.sapo.pt/tag/civil 31
Texto original em espanhol: En vez del Norte fué al Sur/ Se equivocaba........../ Creyó que el trigo era el/ agua./
Se equivocaba........../ (KAHLO, 2010, p. 277) Livre tradução minha. A reprodução do texto encontra-se no
ANEXO IV.
43
autor.
A maioria das obras de Frida remete à dor, textos e telas são seu retrato fiel, seu espelho. A
amputação da perna, sentida através da laceração da carne, é intensamente percebida pela
artista, tanto pelo longo exílio no hospital, quanto pela dor da falta e constatação do agigantar
do sofrimento. Nos momentos das lacerações mais agudas, o amor de Frida por Diego torna-se
sustento. É por ele e para ele que a artista vive.
A inclinação para a morte permeia os pensamentos de Frida nos últimos meses da
existência. As dores a consomem e a morte afigura-se como solução. E mesmo imersa no
sofrimento, ela pensa e dedica-se profundamente a Diego.
No decorrer da existência, a experiência do dilaceramento também se fez presente na
experiência da pretensa maternidade. Frida vivenciou curtas gestações por três vezes e, em
todos os casos, perdeu os bebês “em rios de sangue”. Tudo mostrou-se doloroso, ainda que as
gestações perdurassem poucos meses, devido aos inúmeros problemas de saúde da artista, a
frágil estrutura física e os vários ossos quebrados, além das dores lancinantes na coluna. Ao
registrar as impressões da gravidez ela diz-se completamente sem apetite, com dores e, acima
de tudo, com bastante receio de o corpo não resistir à experiência do parto.
Tudo na vida da artista é intenso, inclusive o dilaceramento, que não se atém somente aos
ossos e cortes, mas, contamina o corpo alquebrado de Frida. Nenhuma gestação é levada a
termo. Todos os procedimentos pós aborto envolver dor – ainda mais – e sobra na artista um
vazio provocado pela não realização da maternidade – o mais perto que ela chegará desse
sentimento será através do devotamento aos sobrinhos, filhos de Cristina, e, após muitos anos
de casamento, a própria postura maternal que ela irá assumir perante o marido, Diego Rivera.
Os abortos representam lacerações a mais na vida de Frida e serão por ela transmutados em
inspiração para a produção de telas sobre o tema e escritas de cartas. Somente a pintura fornece
44
elementos para que a artista conviva com tamanhas dores e preencha a vida, segundo suas
próprias palavras (2006): “Perdi três filhos e uma série de outras coisas que teriam preenchido
minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso”32
.
A decisão de engravidar, ainda que o corpo apresente-se triturado, é de Frida. Após o
casamento, ela contraria os médicos e decide engravidar:
Revolucionária, Frida o é até o mais profundo do ser, (...) ela decide
desafiar pela primeira vez a proibição dos médicos e gera uma criança,
que não pode pôr no mundo. (Le CLÉZIO, 2010, p. 90)
Frida paga o preço da sua teimosia e passa pela experiência do aborto de forma traumática,
já que perde a criança. Nesse momento, as cartas aos amigos e médicos sobre os problemas e a
pintura, figuram-se como únicos alentos possíveis para a dor.
Apenas dois anos após a primeira tentativa, Frida engravida pela segunda vez. Por já ter
vivenciado a experiência da perda, está temerosa. Durante esse período, de extrema aflição e
incerteza, escreve lo33nga carta ao Dr. Leo Eloesser, aos 26 de maio de 1932. A carta
assemelha-se a uma consulta feita à distância e representa, outrossim, o desabafo da artista
perante um aspecto tão singular de sua vida, o qual pode representar tanto vida quanto morte.
Ela necessita, muito mais que uma consulta, de uma orientação sobre qual caminho deverá
seguir, já que está exilada, em outro continente, apartada do solo natal, que tanto ama e distante
dos seus:
O mais importante, e a coisa principal sobre a qual quero fazer-lhe uma
consulta, é que estou grávida de dois meses. (...) Considerando minha
32
Texto extraído da autobiografia de Frida Kahlo, datada de 1953. (Apud ZAMORA, 2006, p. 157)
45
saúde, achei que seria melhor fazer um aborto. Disse-lhe isso e ele me
deu quinino e um óleo de rícino muito forte como purgante. Um dia
depois de tomar isso, tive um sangramento muito ligeiro, quase nada.
Perdi algum sangue durante cinco ou seis dias, mas muito pouco. (...)
Ele me examinou e disse estar totalmente certo de que não abortei e que
seria muito melhor conservar a criança, em vez de provocar um aborto
através de uma cirurgia. (Apud ZAMORA, 2006, p. 47)
Frida teme pela sua própria saúde. Pensa em si, em Diego e reflete sobre o fato de passar
pela experiência do parto longe dos seus. Devido ao longo afastamento, ela precisa do
acompanhamento de outro médico, porém, o conselho ansiosamente esperado, é o que provém
da opinião do médico de sua confiança.
A gravidez prossegue, entre dores e sofrimentos. A angústia da indecisão sobre prosseguir
ou não com a gestação a atormenta e representam um dilaceramento a mais. Ao fim de três
meses e meio, a segunda gestação da artista é interrompida de forma traumática:
Na sufocação do verão do Michigan, Frida vive o horror. (...) Na noite
de 04 de julho, Frida perda a criança em meio a terríveis sofrimentos e
se esvai em sangue. Diego a acompanha na ambulância que a leva para
o hospital Ford, tenta acalmar suas crises de desespero. Nos dias
seguintes, ela lhe leva tintas e lápis, e os desenhos que ela faz ajudam-
na a superar a tragédia. Ele sabe que é o único meio que ela tem de
sobreviver. (Le CLÉZIO, 2010, p. 121)
O dilaceramento sentido por Frida Kahlo, principalmente nos anos anteriores à sua morte,
através das inúmeras cirurgias e amputações, também foi verificado nos abortos que sofreu,
uma vez que todos eles envolveram sofrimento para a artista. Foram grandes dores até que os
fetos fossem completamente expelidos, em rios de sangue, o que agravava, ainda mais, o
quadro de fragilidade em que se encontrava. Nesses momentos, somente a pintura representava
sobrevivência.
46
A pintura e a vontade de viver impulsionam a artista, a despeito dos sofrimentos e do
aparente aspecto de alegria e conformidade, sentidos após o evento traumático, pois, segundo
Le Clézio na obra Diego e Frida: “... na verdade, sob a aparente alegria, esconde uma angústia
profunda, uma crescente melancolia que envenenam sua existência desde a perda do filho, no
hospital de Detroit, e a morte de sua mãe.”33
A segunda gestação de Frida e, a consequente
perda da criança, coincidem com a morte da genitora.
Imersa na perda, somente a pintura poderia indicar sobrevivência em meio a morte -
representada pela interrupção da gravidez, devido ao infantilismo nos ovários e o falecimento
da mãe, durante uma operação na vesícula. Nesse sentido, a pintura de Frida ganha total
empenho da artista, já que as telas a representam e espelham a dor da perda, que ao ser
produzida, reflete sua imagem. Os quadros produzidos por Frida a auxiliam a viver, na medida
em que expressam as mazelas, sem escamoteação. Tendo em vista que a dor é o motor das
produções, compreendemos a necessidade da pintura, mesmo nos momentos das longas
internações. Mais que produzir telas, a pintura representava suportar o dilaceramento. Frida
expressa o significado da pintura em sua existência:
Uma vez que meus temas sempre foram minha sensações, meus estados
de espírito e as reações profundas que a vida tem causado dentro de
mim, muitas vezes materializei tudo isso em retratos de mim mesma,
que eram a coisa mais sincera e real que eu podia fazer para expressar o
que sentia a meu respeito e a respeito do que eu tinha diante de mim.
(Apud ZAMORA, 2006, p. 106)34
Dois anos mais tarde, Frida passará pela experiência do terceiro aborto. Para sempre ficará
33
Le CLÉZIO, Diego e Frida. Rio de Janeiro. Record, 2010. 34
A carta encontra-se reproduzida, na íntegra, no ANEXO V.
47
ressentida de não ter realizado o desejo da maternidade e pintará vários retratos em que
aparecem bebês e a representação dos fetos que perdeu.
Um pouco antes da partida, ela participa de importante manifestação contra a intervenção
norte-americana na Guatemala, e, na ocasião, verbaliza o desejo de ser mãe, como nos relata Le
Clézio (2010): “Na véspera da manifestação, Frida encontrou Adelina Zendejas, que devia
partir para a Guatemala, e chegou a lhe pedir que trouxesse uma criança indígena de lá para
adotar”.35
Finalmente, como que pressentindo o fim, esgotada de tantas cirurgias e sofrimentos,
despede-se da vida, segundo nos relata o companheiro Diego Rivera: “Ela me deu o anel que
tinha comprado quando do nosso 25º aniversário, que deveria acontecer dali a 17 dias. Eu lhe
perguntei por que ela me presenteava tão cedo, e ela me respondeu: “Porque eu sinto que vou te
deixar em breve.””36
Os sentimentos de Frida comprovaram-se verdadeiros.
35 (CLÉZIO, 2010, p. 228) 36
(CLÉZIO, IDEM)
48
3. O RETRATO DE UM DOS BONDES
Cama com dossel
Com amizade e afeição diretos ao coração,
tenho o prazer de convidá-lo para minha
humilde exposição.
[...]
Esses quadrados pintados,
que pintei com minhas mãos,
aguardam nas paredes ser
amados por meus irmãos.
Frida Kahlo37
No decorrer do ano de 1954, Frida Kahlo pinta o último quadro de sua vida intitulado:
"O marximismo irá curar os doentes", ao modo de um dos ex votos38
que são tão característicos
de suas pinturas. Nessa tela, a artista se retrata apoiada em sua ideologia, sustentada pelas mãos
do marxismo – ela descarta as muletas e mantém-se ereta. A respeito desse quadro, disse: “Pela
primeira vez, deixei de chorar.” (Apud KETTENMANN, 2006, p. 85). Sua pintura parece
expressar um pulsante desejo: o de cura e alívio para as dores. Acima de tudo, esperança no
restabelecimento, através da convicção política. No entanto, o desejo de libertação das muletas
e do pleno restabelecimento, não acontece como esperado. A saúde de Frida não acompanha
37
De 13 a 27 de abril de 1953, a única exposição individual de Frida Kahlo no México realizou-se na Galeria del
Arte Contemporâneo. Frida mesma redigiu o convite para a exposição: “Con amistad y cariño/ nascidos del
corazón/ tengo el gusto de invitarte/ a mi humilde exposición. [...] Estes cuadros de pintura/ pinté con mis próprias
manos/ esperan en lãs paredes/ que gusten a mis Hermanos” (Apud ZAMORA, 2006, p. 156). 38
“Ex-voto” é uma palavra latina que significa “proveniente de uma promessa ou voto”. O conceito de uma
oferenda votiva em agradecimento a alguma divindade por um pedido realizado está no ar há muitos séculos. As
referências mais antigas, os objetos oferecidos a Apolo no santuário de Delfos, datam do sec. V A.C. A tradição
dos ex-votos foi trazida às Américas pelos colonizadores. Dizem que Hernan Cortez, o conquistador do México,
encomendou a um ourives um ex-voto de ouro e esmeraldas em forma de escorpião em agradecimento por ter
sobrevivido à picada deste inseto. A partir do século XVI, os ex-votos deixam de ser exclusivos dos ricos e
aparecem cada vez mais em imagens populares. Capturado do site: http://www.galeriapontes.com.br
49
seus anseios. Pelo contrário, o vigor se esvai acentuada e cotidianamente. Ao pintar a última e
expressiva tela, estava no final dos esforços e completamente desgastada pela amputação da
perna, ocorrida no ano anterior. O estado de saúde é tão grave que cogita-se cancelar a única
exposição individual de suas obras – é Diego quem decide acelerar os preparativos para a
grande retrospectiva prevista pelo Instituto de Belas-Artes e oferecer a Frida uma festa – será a
última, como podemos verificar no comentário abaixo, extraído da obra Diego e Frida, da
autoria de Le Clézio:
No dia 13 de abril, Frida está tão doente que Lola pensa por um instante
em cancelar a exposição. Mas Diego tem a espantosa ideia de
transportar a grande cama com dossel de Frida até o centro da Cidade
do México. O leito é montado na galeria, Frida chega numa ambulância
– pousam-na delicadamente -, usando seu mais bonito vestido zapoteca,
maquilada, e com seus brincos de ouro e turquesa. Entre as sete e meia
e as 11 horas da noite, conta Lola Álvares Bravo, um público
emocionado e entusiasta lota a galeria, e exprime sua admiração e
afeição pela mulher sofrida que sorri heroicamente no leito onde pintou
a maioria de seus autorretratos (Le CLÉZIO, 2010, p. 224).
O estado de saúde da artista é tão precário e delicado que o transporte só é possível
através do leito. O público presente alterna espanto e admiração ao constatar que ela chega de
ambulância, em sua própria cama. A exposição coroa os trabalhos produzidos pela artista,
durante toda a existência. Todas as fases da sua vida estão presentes nessa exposição
autobiográfica, que conta a vida de Frida por Frida. Sem lamentação e com a imensa
capacidade de conviver com as adversidades, sem deixar que elas lhe paralisem a vida, ela
adentra a exposição, sem ocultar a condição frágil e os ferimentos. Antes, ela os expõe,
enfrenta o público, como salienta Fuentes, no prefácio do Diário de Frida Kahlo (2010): “Era a
50
entrada de uma ditosa asteca, quiçá Coatlicue39
, a mãe envolta em saias de serpentes, exibindo
seu próprio corpo lacerado e suas mãos ensangüentadas, como outras mulheres exibem seus
broches”.40
Sem escamoteação, a artista enfrenta o dilaceramento - atitude compatível com o
sentimento de coragem e enfrentamento perante a vida. A imobilidade do leito não cala Frida,
que se produz para o evento, a despeito da fragilidade física, segundo o mesmo Fuentes (2010):
“Frida Kahlo, dizendo a todos os presentes que o sofrimento não enfraqueceria, nem a
enfermidade faria rançosa, sua infinita variedade feminina.”41
À semelhança de Coatlicue - deusa da fertilidade, padroeira da vida e da morte, guia do
renascimento – a ida de Frida à exposição representa um sopro de vida, na já anunciada
deterioração. Fuentes, a compara a citada deusa, que tem amplas representações na cultura
mexicana. Poderíamos supor na acepção vida e morte, presentes na representação da deusa,
pois, no momento da exposição, a existência pende entre a vida e o fim dela.
A exposição das obras de Frida Kahlo foi um sucesso, porém havia um olhar de
despedida no semblante da artista, segundo o amante/amado Diego Rivera: “Frida ficou na sala,
pacificada e feliz, contente por ver o grande número de pessoas. Ela não disse praticamente
nada, porém, mais tarde, eu pensei que ela certamente percebia que dava adeus a vida.” (Le
39 -Coatlicue na mitologia mexicana é a deusa da fertilidade, padroeira da vida e da morte, guia do renascimento,
(...) venerada como a mãe dos deuses, entre seus atributos foi descrita como uma mulher vestindo uma saia de
serpentes, ter seios caídos, simbolizando a fertilidade e um colar de mãos humanas e os corações que estavam
arrancadas das vítimas de seus sacrifícios, tinha garras afiadas em vez de mãos e pés, como a deusa mãe dos
astecas, o marido era Mixcoatl, segundo fontes, a virgem deu à luz a Huitzilopochtli. Capturado do site:
http://es.wikipedia.org/wiki/Coatlicue
40 Texto original em espanhol: Era la entrada de una ditosa azteca, quizá Coatlicue, la madre envuelta en faldas de
serpientes, exhibiendo su próprio cuerpo lacerado y sus manos ensangrentadas como otras mujeres exhiben sus
broches. (Kahlo, 2010, p. 07) Livre tradução minha.
41 Texto original em espanhol: Frida Kahlo, diciéndonos a todos los presentes que el sufrimiento no marchitaría, ni
la enfermidad haría rancia, su infinita variedad feminina. (KAHLO, 2010, p. 08). Livre tradução minha.
51
CLÉZIO, 2010, p. 225)
Ironicamente, só é possível que Frida visite a própria exposição acamada. Justo no local
onde o dom da pintura foi despertado, ocorre, dessarte, a celebração de toda a existência
dedicada à pintura e à autobiografia. A grande cama com dossel é agora extensão de seu corpo,
uma vez que não pode viver longe dela.
A cama que a aprisiona nos remete, à vista disso, ao acidente de ônibus sofrido, quando
contava com 18 anos, segundo nos descreve Fuentes:
E a cidade que Frida tanto amava e tanto temia, lhe atacou sem piedade.
Em setembro de 1925, um bonde se chocou contra o raquítico ônibus
em que Frida viajava, e rompeu a coluna vertebral, o pescoço, as
costelas e a pélvis. Sua perna enferma sofreu na hora onze fraturas. Seu
ombro esquerdo permaneceu para sempre deslocado e um dos seus pés,
irremediavelmente lesionado. Um corrimão lhe penetrou pelas costas e
saiu pela vagina. (...) Despojada das roupas, o corpo desnudo de Frida
recebeu, como um orvalho fantástico, o chuvisco de um pacote de ouro
em pó que levava para o seu trabalho de artesanato. (KAHLO, 2010, p.
12)42
A descrição do acidente nos oferece a dimensão do dilaceramento. As condições adversas
que envolvem o evento causam estranhamento pela singularidade – a artista estava em
determinado ônibus, mas, decidiu descer do coletivo e subir em outro transporte público, para
procurar a sombrinha que havia perdido. Soma-se a isso o banho de ouro em meio ao sangue e
a carne dilacerada. O improvável, que se presentifica por ocasião do acidente, permeia a
existência. O acidente marcará para sempre a vida da artista.
As palavras de Frida acerca do ocorrido, nos fazem ver o acidente pelos seus olhos. Ela
transmite as sensações percebidas, de forma pontual e parece aprender o sentido da expressão
42
Texto original em espanhol: Y la cidadd que Frida tanto amaba y tanto temia, la ataco sin piedad. En septiembre de 1925,
un tranvía se estrelló contra el raquítico camión en el que Frida viajaba, le rompió la columna vertebral, el cuello, las costillas,
la pélvis. Su pierna enferma sufrió ahora once fraturas. Su ombro izquierdo quedó para siempre dislocado y uno de sus pies,
irremediablemente lesionado. Un pasamano le penetro por la espalda y le salió por la vagina.(...) Despojado de la ropo, el
cuerpo desnudo de Frida recibió, como un rocio fantástico, la llovizna de un paquete de oro en polvo que llevaba a su trabajo
un artesanato. (KAHLO, 2010, p. 12) Livre tradução minha.
52
mexicana aguantar: “suportar a dor”. Le Clézio, ao discorrer sobre o acidente, na obra Diego e
Frida, nos oferece o depoimento da artista:
Não é verdade que a gente perceba o choque, não é verdade que a gente
chore. Eu não tive lágrimas. O choque nos projetou para adiante, e um
dos corrimões do ônibus atravessou-me como a espada atravessa um
touro. Um transeunte, vendo que eu estava com uma terrível
hemorragia, carregou-me e me pôs numa mesa de bilhar, onde a Cruz
Vermelha cuidou de mim. (Apud Le CLÉZIO, 2010, p. 53)
O choque é tão violento que a artista parece não senti-lo. A princípio temos a sensação
que Frida não mensurou a gravidade de acidente, nem dos ferimentos. Ela manteve-se
consciente em todos os momentos e acompanhou as ações que se seguiram ao desastre.
Segue-se ao acidente longo período de internação. Após o exílio no hospital, Frida
permanece largas semanas acamada, presa ao leito. Engessada, imobilizada. À semelhança da
ostra, presa à concha, a pintora permanece encarcerada ao casulo da sua cama, seu universo
durante todo o restabelecimento. Não há fuga, nem para o olhar, que precisa olhar sempre para
as mesmas direções e ângulos. Impossível se virar. Ela, então, começa a pintar justamente no
período da convalescência, quando precisa permanecer engessada, devido às inúmeras fraturas.
O aborrecimento por ela sentido é tão grande que a mãe de Frida se ocupa com as dores
e a solidão. Não havia o que fazer para amenizar a dor, não existiam lenitivos possíveis. Nesse
momento, a alternativa para Frida é a pintura:
Minha mãe pediu a um carpinteiro que me fizesse um cavalete de
pintor, se é que isso se podia chamar ao material especial que se
conseguiu montar na minha cama, pois eu não me podia sentar por
causa do gesso. E assim comecei a pintar o meu primeiro quadro: o
retrato de um amigo (Apud KETTENMANN, 2006, p. 18).
53
Nessa época de plena convalescência: “Também se colocou um dossel com um espelho
que cobria toda a parte de baixo da cama de modo a que Frida se pudesse ver e ser o seu
próprio modelo” (Idem, p. 18). Assim começaram os quadros autobiográficos da pintora, que
retratam toda sua existência, desejos e sofrimentos.
A cama, nessa perspectiva, torna-se seu locus preponderante. O lugar que, para muitos,
é sinônimo de prazer, de deleite e repouso, para Frida torna-se o local do restabelecimento e da
impossibilidade - de caminhar, andar, ir e vir. Malgrado o lugar que a aprisiona, ela vence o
paradigma do cerceamento e comprova que, mesmo envolta em aguda dor, é capaz de produzir,
de se tornar agente e não apenas a esperada paciente.
Além do dilaceramento, outro fator preponderante na vida – e obra – é a solidão. Nos
momentos mais difíceis e dolorosos da existência, ela está só – uma solidão agigantada pelos
diversos períodos de internação hospitalar e pela mudança de residência.43
Em diversas dessas
ocasiões ela sofre só.
À vista disso, nesses períodos, o diário e as cartas são importantes alternativas de
contatos possíveis com o mundo e consigo mesma. No longo período de internação e
convalescência, que se seguiu ao acidente ocorrido no ano de 1927, Frida manteve intensa
correspondência com o então namorado Alejandro Gómez Arias, o qual estava com ela no
momento do acidente (os dois romperam algum tempo depois). O que se depreende das
correspondências é um desejo de compartilhar o sofrimento físico e espiritual com Alejandro –
logo depois do acidente, Alex (como Frida o chamava), foi estudar em outro país. As cartas
eram a única forma de contato possível. Em uma delas, ela conta sobre o angustiante colete de
43 Segundo Carlos Fuentes, no texto de orelha do Diário de Frida Kahlo (2010), tradução livre minha: “Esse
documento pessoal [...] revela sua enorme coragem face às mais de trinta e cinco operações a que teve de se
submeter para tentar corrigir as sequelas de um acidente que sofreu aos dezoito anos”. No original em espanhol:
“Este personal documento [...] devela su enorme coraje ante las más de treinta y cinco operaciones a las que tuvo
que someterse para intentar corregir las secuelas de un accidente que sufrió a los dieciocho años”.
54
gesso:
Como eu gostaria de poder explicar-lhe, minuto a minuto, meu
sofrimento! Desde que você se foi, piorei, e nem por um momento
consigo consolar-me ou esquecê-lo. Na “sexta-feira” eles me puseram o
gesso e, desde então, tem sido um verdadeiro martírio, que não se
compara a coisa alguma. Sinto-me sufocada, meus pulmões e minhas
costas inteiras doem terrivelmente; nem sequer consigo tocar em minha
perna. Mal posso andar, muito menos dormir. Imagine, eles me
penduraram pela cabeça por duas horas e meia, e depois fiquei na ponta
dos pés por mais de uma hora, enquanto secavam [o gesso] com ar
quente; mas quando cheguei em casa, ainda estava completamente
úmido.
[...]
Não deixaram Adriana nem ninguém mais entrar, e fiquei sofrendo
horrivelmente, sozinha.
Enfrentarei este martírio por três ou quatro meses e, se não ficar boa
com isso, sinceramente quero morrer, porque não aguento mais (Apud
ZAMORA, 2006, p. 31-32).44
O trecho da longa carta, revela o intento da pintora de declarar o sofrimento para Alex.
Ela não o poupa das mazelas, antes, ressente-se por não poder explicar-lhe detalhadamente
todo o padecimento. As dores são descritas de maneira a serem compartilhadas com o
namorado ausente. Ela detém-se em discorrer sobre o gesso, justamente por representar grande
tortura, exatamente por lhe tolher todos os movimentos, impedir-lhe a respiração, locomoção e
o sono. O tempo de colocação do gesso representa longas horas em que Frida permanece
imóvel, nua, abandonada à solidão, sem ter companhia para amenizar o fardo. São largas
semanas sem andar, sem se virar, sem sair da cama, sem conseguir dormir com conforto. O
repouso é torturante para a adolescente acostumada à liberdade e a prisão - representada pelo
gesso e pela cama - e somente encontra indulto com as cartas e telas.
É através das produções que Frida encontra formas de convivência com as dores
44
A presente missiva encontra-se reproduzida no ANEXO VI
55
incessantes e intensas. O que a sustenta, nos meses que precisa permanecer imóvel, com dor,
são as telas e cartas que provém de si. Os ossos, que segmentados, impedem os movimentos e o
gesso que torna penosa a respiração. Nesse sentido, as correspondências representam
possibilidades tanto de aproximação com o amante, quanto de ratificação da dor. A carta tem,
outrossim, a função de registrar a solidão e a exaustão física por ela vivenciada, já que nos
momentos de maiores dilaceramentos ela permaneceu só.
A forma encontrada por Frida para conviver com o isolamento e a dor deu-se através da
escrita das cartas e da pintura, uma vez que ela mesma esclarece: “Eu pinto-me porque estou
muitas vezes sozinha e porque sou o tema que conheço melhor” (Apud KETTENMANN, 2006,
p. 18). Sozinha, olhando para si mesma no reflexo do espelho, Frida começa a representar-se,
usando tintas e palavras. E, justamente nesse momento, de total dilaceramento, de dores
incessantes, ela começa a pintura dos quadros, que a despeito das dores físicas e da solidão,
serão sua companhia. Parece-lhe impossível dissociar a pintura da vida. Mesmo em algumas
cartas, quando o assunto eram as cirurgias, ela desenha o tipo de operação feita, de modo a
descrever para seu interlocutor, com maior riqueza de detalhes, o infortúnio.
No período que se segue ao acidente, ela escreve inúmeras cartas ao namorado e, em
todas elas, esmiúça as dores. Uma vez que ele encontra-se afastado, somente as cartas o
aproximariam. Logo, a artista demora-se na dor. Descreve, pacientemente as sensações, como
podemos verificar em trecho da longa carta escrita a Alejandro Gómez Arias em setembro de
1926:
Tudo era misterioso e havia algo oculto; adivinhar-lhe a natureza era
um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível obter o
conhecimento de repente – como um relâmpago iluminando a terra!
Agora, vivo num planeta dolorido, transparente como o gelo. É como se
houvesse aprendido tudo de uma vez, numa questão de segundos.
56
Minhas amigas e colegas tornaram-se mulheres lentamente. Eu
envelheci em instantes e agora tudo está embotado e plano. Sei que não
há nada escondido; se houvesse, eu veria. (Apud ZAMORA, 2006, p.
27)
A dor amadurece Frida. Mais que o choque com o bonde e os ossos quebrados, a
experiência da dor e da solidão a transformam. O sofrimento a envelhece. A percepção da vida,
a partir do contato com o dilaceramento, faz com que a artista enxergue tudo, sem ilusões. A
descarga de sentimentos, advindos da experiência do dilaceramento, que a introduzem no
“planeta dolorido”, deixarão transparente os desejos, as ilusões, a vida como ela é, aprendida na
lição da dor.
Não se trata, contudo, do envelhecimento provocado pelo passar dos anos, pelo fato de se
usufruir a vida, mas, o envelhecimento provocado pelo sofrimento. Sai transformada pelas
dores contínuas, intermitentes, agudas, a artista sente o peso do amadurecimento.
Diferentemente do que ocorre com a narradora da obra O amante, que, forçosamente
envelheceu após a experiência do sofrimento e elaborou o discurso na madureza, ela amadurece
muito jovem e ainda no frescor da vida registra as sensações sobre o envelhecer. As palavras de
Duras registram, além da destruição, o envelhecimento físico: “Tenho um rosto dilacerado por
rugas secas e profundas, sulcos na pele. Não é um rosto desfeito, como acontece com pessoas
de traços delicados, o contorno é o mesmo mas a matéria foi destruída. Destruído.” (DURAS,
1985, p.8). A matéria destruída da narradora remete ao sofrimento sentido, às experiências que,
de tão profundas e difíceis, envelhecem. Remetem ao inominável, que é impossível de ser
completamente descrito.
As experiências dolorosas que transformam a existência não podem ser revertidas, cabe ao
ser seguir transmutado, pois, ainda que o sofrimento seja desfeito, a experiência do rompimento
com as expectativas que se frustram, não mais deixarão o ser retornar ao estado original, já que
57
o encontro com o sofrimento não pode ser apagado. O envelhecimento de Frida remete ao
sofrer – é justamente por força das dores que ela amadurece. Frida registra o adentrar no mundo
dolorido em outra correspondência, ao mesmo Alejandro Gómez Arias. Contrariamente às
outras missivas, em que Frida escreve extensos textos discorrendo sobre os sentimentos,
cirurgias, cortes e solidão, explicando-se em longas frases, ela escreve uma carta com inúmeras
reticências e uma só sentença:
...............................................
A única coisa boa é que estou começando a me acostumar a sofrer
...............................................
(Apud ZAMORA, 2006, p. 25)
A carta basta-se. A única frase escrita, em meio às reticências, indicando uma história
pregressa e também eventos futuros, representa longo texto. A frase dispensa maiores
explicações, pois é completa no sentido de explicar os sentimentos da artista, após tantas
intervenções e dores persistentes. Para os que estavam acompanhando a dor de Frida, a frase a
resume.
Alejandro foi confrontado com a dor da artista, pois, ainda que tivesse se mudado para
outro país, ainda que não tivesse acompanhado o sofrimento do gesso e das inúmeras cirurgias
– ela o levou a ver sua dor, através das longas cartas descritivas. Mais, a artista o confrontou,
descortinou a realidade. Ela não permitiu que ele a esquecesse ou a ignorasse, já que as longas
cartas enviadas, traçavam o percurso da dor. A agonia da solidão.
O bonde, os cortes, as internações, os períodos de solidão, o gesso e, ainda, novas dores.
Frida começa, por força de todas as circunstâncias, a acostumar-se a sofrer, pois, os períodos de
dor que ela imaginou, inicialmente, serem curtos e a recuperação que ela supôs serem
completas, durarão toda a vida.
58
Enfim, Frida entende o percurso da dor. Sabe que ela será uma companhia incômoda,
que, contudo, a acompanhará. Acostuma-se a ela.
3. 1. O MAIOR DOS BONDES
Diego fica na periferia de todas as relações
pessoais limitadas e definidas. É contraditório
como todas as coisas que incendeiam a vida; é
uma carícia imensa e, ao mesmo tempo, uma
violenta descarga de forças poderosas e únicas.
Frida Kahlo, sobre Diego Rivera45
O fundo tenro onde nascem a luz maravilhosa
de sua força biológica, sua sensibilidade tão
fina, sua inteligência resplandecente e sua
coragem invencível para lutar para viver e para
mostrar aos camaradas humanos como
enfrentar as forças contrárias e vencê-las a fim
de alcançar uma alegria superior, contra o que
nada poderá resistir no mundo do futuro.
Diego Rivera, sobre Frida Kahlo46
Não houve paixão à primeira vista. Frida precisou olhar para Diego Rivera outra vez
para sentir-se interessada por aquele grande homem, maduro, pintor de imensos murais. A
primeira vez que Frida Kahlo o viu, ele estava concluindo o mural A Criação, na escola onde a
adolescente estudava. As primeiras palavras endereçadas foram de zombaria, proferidas em
tom irônico para chamar a atenção daquele homem enorme, em uma entonação característica e
marcante da personalidade da artista. Nem o pintor, tampouco a então estudante, passaram
45 Apud Zamora, 2006, p. 144. 46
Apud Clézio, 2010, p. 227.
59
incólumes pelo “encontro”.
Alguns anos depois, Frida Kahlo torna-se membro do Partido Comunista Mexicano
(PCM) e encontra-se, novamente, com Rivera. É no segundo olhar que a paixão acontece para
ambos. A partir da segunda vista, os dois passam a encontrar-se mais e mais e, um ano após o
segundo encontro, estão casados. Frida e Diego manterão um relacionamento que perdurará por
toda a vida da artista, não sem grandes atropelos.
Frida Kahlo, segundo Carlos Fuentes, na obra Diego e Frida, admitiu ter sofrido dois
grandes acidentes em sua vida, o choque do bonde com o ônibus – que a dilacerou por
completo – e Diego:
Frida e Diego: ela admitia que sofreu dois acidentes em sua vida, o do
trem e o de Diego Rivera. Do seu amor pelo homem, não resta dúvida.
(KAHLO, 2010, p. 20) Livre tradução minha”.47
As referências a Diego Rivera são abundantes na obra de Frida. Muitas das cartas falam
dele, seu nome é tema recorrente no diário da artista, onde existem inúmeros escritos a ele
endereçados. O diário, composto de temas reduzidos, é pleno de referências a Diego, consoante
Sarah M. Lowe, ao refletir sobre os temas privilegiados pela artista, na produção da escrita
íntima:
Um deles é, sem dúvida, sua devoção e sua paixão por Diego Rivera,
como cabe comprovar nas largas e ardentes cartas de amor ou nas
numerosas páginas que lhe dedica. Nelas, a pintora expressa incontáveis
emoções, que vão desde o seu desejo sexual, passando por um afeto
maternal, até a concepção mística de sua união.(KAHLO, 2010, p. 28)48
47 Frida y Diego: ella admitía que sufrió dos accidentes en sua vida, el del tranvía y el de Diego Rivera. De su
amor por el hombre no cabe duda.(KAHLO, 2010, p. 20). 48
Texto original extraído do prefácio do DIÁRIO DE FRIDA KAHLO: “Uno de ellos es, sin Duda, su devoción y
su pasión por Diego Rivera, como cabe comprobar en las largas y ardientes cartas de amor o las numerosas
páginas que le dedica. En ellas, la pintora expressa incontables emociones, que van desde su deseo sexual, pasando
por un afecto maternal, hasta la concepción mística de su unión. (KAHLO, 2010, p. 28) Livre tradução minha.
60
Diego ocupou grande espaço, não só na vida, mas, outrossim, na obra da artista. Comparar o
relacionamento e o amor por Diego Rivera ao bonde que a atropelou, nos dá a dimensão exata
da intensidade dos sofrimentos dele advindos. As seqüelas do bonde permaneceram por toda a
vida, assim como a história apaixonada com Diego, que entre amores e desamores, permaneceu
até o desaparecimento da artista.
Os dilaceramentos presentificaram a vida de Frida Kahlo, embora, em determinadas
etapas, tenham se apresentado mais constantes e profundos. A maternidade não realizada foi
fato que marcou, profundamente, a existência, rubricada não só pelo dilaceramento físico, mas,
outrossim, por três abortos sofridos. O primeiro deles, ocorrido no México, foi seguido de
outros dois. Por ocasião da segunda gestação, ela apresentou-se bastante preocupada com sua
situação de saúde. Em extensa carta, endereçada ao Dr. Leo Eloesser, em 26 de maio de 1932, a
artista escreve sobre sua condição física, medos e anseios. A carta assemelha-se a uma consulta
feita à distância, dada a riqueza de detalhes que Frida oferece ao médico de sua confiança:
O mais importante, e a coisa principal sobre a qual quero fazer-lhe uma
consulta, é que estou grávida de dois meses. [...] O senhor crê que seria
mais perigoso fazer um aborto do que ter o bebê? Dois anos atrás, fiz
um aborto cirúrgico no México, mais ou menos nas mesmas
circunstâncias de agora, após três meses de gravidez. [...] Não tenho
comido bem. Não sinto fome e, com muito esforço, bebo dois copos de
leite integral por dia e [como] um pouco de carne e legumes. Agora,
porém, estou sempre com náuseas por causa desta gravidez e, sendo
assim, estou ferrada! Tudo me deixa cansada, porque minha coluna dói.
Minha pata também está com problemas, porque não posso fazer
exercícios e, em consequência, minha digestão está péssima! No
entanto, sempre tenho vontade de fazer muitas coisas e nunca me sinto
decepcionada com a vida, como nos romances russos. [...] Se o senhor
achar que preciso fazer a cirurgia de imediato, eu apreciaria que me
mandasse um telegrama discreto, para que não venha a ter problemas
61
(Apud ZAMORA, 2006, p. 46-50; grifos da autora).49
São páginas e páginas em que ela descreve, para além do físico, as inquietações. Frida
se expõe, coloca-se em todas as linhas da carta desnudando seus medos, sua condição
fragilizada. Escreve e espera a resposta do “seu” médico, dada a confusão em que se acha
submetida em função da segunda gestação. A questão pulsante na carta é como ela deve
proceder em relação à gravidez.
Ainda mergulhada em dúvidas e incertezas, na noite de 4 de julho, Frida perde a
criança. Diego a acompanha em uma ambulância que a leva para o hospital Ford e tenta
acalmar suas crises de desespero. Nos dias seguintes, ele lhe traz tintas e lápis, e os desenhos
que ela faz são fundamentais para que possa superar a tragédia. Frida sabe que é o único meio
que tem de sobreviver. Durante as semanas que se seguem ao aborto, pinta e desenha sem
parar. A pintura torna-se o meio de escapar à angústia; assim como cada desenho, cada quadro,
cada carta que ela endereça àqueles que a cercam.
Em carta endereçada a Carlos Chávez, em 1939, ela fala sobre a pintura, que
representava para si algo como “retratos dela mesma”:
Na pintura encontrei um meio de expressão pessoal, sem que nenhum
preconceito me forçasse a fazê-la. [...] Uma vez que meus temas
sempre foram minhas sensações, meus estados de espírito e as reações
profundas que a vida tem causado dentro de mim, muitas vezes
materializei tudo isso em retratos de mim mesma, que eram a coisa
mais sincera e real que eu podia fazer para expressar o que sentia a
meu respeito e a respeito do que eu tinha diante de mim (Apud
ZAMORA, 2006, p. 105).
Embora o segundo aborto tenha sido bastante traumático, é durante o ano de 1934, que
49
A misiva encontra-se reproduzida no ANEXO VII
62
tem a fase de mais infortúnios. Nenhum sofrimento já vivenciado – embora seja um
dilaceramento inimaginável para a maioria das pessoas, tamanho o grau de comprometimento
físico das seqüelas advindas do acidente – será comparado “a maior dor da vida de Frida”,
segundo suas próprias palavras, uma vez que:
Devido a um “infantilismo dos ovários”, a terceira gravidez de Frida
Kahlo é novamente interrompida aos três meses. É operada pela
primeira vez no pé direito e vários dedos têm que lhe ser cortados.
Diego Rivera tem um romance com Cristina, a irmã mais nova dela.
(KETTENMANN, 2006, p. 93).
A escuridão na vida de Frida inicia-se, nesse fatídico ano, pela terceira gravidez
interrompida, envolta em angústia. O terceiro aborto aponta para a impossibilidade da
maternidade, para a não realização do desejo de conceber e parir, para a certeza de que seu
corpo alquebrado não suportaria o peso de uma criança, sedenta de espaço para crescer, pois os
ossos quebrados não lhe permitiriam a realização desse sonho. Esse incidente e a curetagem
efetuada pelo doutor Zollinger enfraqueceram ainda mais sua resistência. Somado à decepção
da terceira interrupção de uma gravidez, ela precisa submeter-se a uma cirurgia, em que os
dedos precisam ser amputados...
O sentimento de não ser capaz, de não produzir, de não frutificar exerce uma pulsante
culpa e desconstrói os sonhos atuais e juvenis. Sabe-se que, em algumas culturas, mulheres que
não têm filhos são vítimas de um estigma de negação, de falta. Frida carregou a perda de plena
capacidade física. O efeito mais devastador, que a relativa incapacidade lhe proporcionou, foi o
impedimento de ser mãe, de ser genitora, de ter filhos do (des)amor Diego.
No entanto, não são as perdas físicas – a amputação ou os abortos – que representam os
acontecimentos mais tenebrosos, o mais desesperador é o fato de Frida perder o chão naquele
63
retorno ao México – depois da longa estada nos Estados Unidos - que ela tanto esperou, tanto
almejou. No retorno, ela se depara com os velhos demônios: a solidão, a dor, o aborto, a
amputação e a impressão de uma atmosfera lúgubre sobre a casa dos Kahlo – que a morte da
mãe tornou mais perceptível.
O ano de tristezas não terminaria sem um verdadeiro golpe para Frida: a traição de
Cristina, sua irmã mais nova, com seu marido: Diego Rivera. O pesadelo das trevas acontece
pela perda de tudo de uma só vez, em um só golpe: a chance da maternidade, a morte da mãe, a
amnésia do pai, o rompimento com a irmã e com o marido, a amputação. Cristina, desde o
nascimento, representou perda em sua vida. Nascida poucos meses após o parto de Frida, sua
mãe não pode mais amamentá-la por ocasião da gestação inesperada. Após o nascimento da
irmã caçula, Cristina, a mãe passa por uma grande depressão e não pode mais cuidar dos dois
bebês. Esse ressentimento acompanhará a artista e será relembrado em telas e escritos.
Frida e Cristina sempre tiveram convivência estreita, motivada, talvez, pela pouca
diferença de idade. Os sentimentos, em relação a irmã, sempre foram intensos e incluíram
disputa por leite, colo, espaço, carinho, amigos e irmãs. No entanto, apesar das comuns disputas
de irmãos, a artista sempre demonstrou ter grande consideração e afeto com ela. O retrato de
Cristina foi um dos primeiros trabalhos pintados por Frida em 1928, e foi justamente, o
primeiro quadro mostrado a Diego Rivera. Foi precisamente esta mulher, eleita pela artista para
ser retratada em sua tela, a irmã, que depois da separação do marido é acolhida na casa da
pintora, acompanhada dos dois filhos, que são por ela tratados como se fossem seus,
principalmente depois da constatação da impossibilidade de ser mãe, que causa dor e
sofrimentos profundos na vida da artista. É justamente sob o teto da irmã, que a sustenta
emocional e financeiramente, precisamente com a pintora que não economiza cuidados com os
membros da família, que ocorre a dupla traição de Diego e Cristina. A irmã foi figura de
64
destaque em sua vida, como salienta Le Clézio, ao discorrer sobre a representação de Cristina:
Cristina, (...) é para Frida um duplo dela mesma: aquela que mais amou
e mais odiou na infância, com quem ela mais partilhou; aquela por
quem esperou em vão no hospital da Cruz Vermelha, depois do
acidente, aquela para quem não deixa de escrever durante o exílio nos
Estados Unidos. (Le CLÉZIO, 2010, 144)
Tal qual o acidente com o primeiro bonde, que deixa Frida completamente dilacerada, o
bonde chamado Diego Rivera a destrói. O dilaceramento e o abandono fazem-se repetir em sua
vida. A esperada visita de Cristina, no período de internação que seguiu-se ao acidente, não
ocorre, assim como, anos depois, partilhando o mesmo teto que a irmã, não ocorre a fidelidade.
Frida, antecipando o abandono, muda-se. Segundo o mesmo Le Clézio:
Sua natureza não suporta a mentira. Ela decide quebrar a máscara e se
precipita na própria solidão, abandonando Diego. Como está fora de
questão rever Cristina, ela se instala num apartamento da avenida
Insurgentes e tenta sobreviver – ela espera um gesto de Diego, uma
palavra, para voltar para ele, e o orgulho a impede de dar o primeiro
passo para sair da desgraça. (IDEM, 2010, p. 145)
Frida sofre e escreve. A escrita representa a única alternativa de sobrevivência.
Registrar seu sofrimento, ratificar a dor, contar repetidas vezes sobre a tragédia ocorrida, é a
alternativa possível de expurgar o infortúnio.
Apesar das dores advindas principalmente em decorrência do acidente sofrido na
juventude, apesar dos tantos ossos fraturados e carnes dilaceradas, a maior desgraça, segundo
as palavras de Frida, não foi o bonde que colidiu com o ônibus em que estava – com o então
namorado, Alejandro Gómez Arias – mas, outro e definitivo bonde – chamado Diego Rivera,
bonde esse, que esteve presente em diversas etapas de sua vida.
65
Em longa carta endereçada aos amigos Ella e Bertram Wolfe, datada de 18 de outubro
de 1934, ela dá forma a sua grande dor:
Nunca sofri tanto e não pensei que pudesse suportar tanta dor. Vocês
nem imaginam o estado em que me encontro, e sei que vou levar anos
para sair desta confusão que tenho na cabeça. [...] Primeiro é uma
desgraça dupla, se posso explicá-la desta maneira. Vocês sabem melhor
do que ninguém o que Diego significa para mim em todos os sentidos, e
por outro lado, ela era a irmã que eu mais amava e a quem tentei ajudar
o máximo que pude; [...] Amo-os muito e confio o bastante em vocês
para não [lhes] esconder a maior dor de minha vida (Apud ZAMORA,
2006, p. 64-65).50
Parece-nos impossível imaginar que, após as dores sofridas, ainda exista lugar para a
“maior dor” em sua vida. A carta, em tom de desabafo, esclarece os detalhes da dupla traição e
desvela os sentimentos em relação à traição.
Não bastasse a dor de traída e preterida, a artista tem como protagonistas da mescla
desses amargos sentimentos, sua irmã Cristina e seu amor, Diego. Alma e corpo parecem
fadados ao padecer, ao esfacelamento, ao desmoronamento. Corpo e mente se diluem e
experimentam cortes e perdas, sem consolação nem anestesia. Nada conforta. Só a dor resiste a
tantas perdas, trazendo agudeza, ligeireza e nenhuma opção de melhora ou revide.
As cartas representam o contato com o exterior, já que ela encontra-se isolada de tudo e
de todos, apartada da família e da sociedade. Escrever, nesse sentido, funciona como um
contradepressor, representa uma forma lúcida de lutar contra a situação apresentada e não
entregar-se a tristeza profunda que acena, enfaticamente, para ela. Escrever significa
sobreviver.
Ela tem a necessidade da escrita, muito mais que da comunicação oral. A função
50
A correspondência encontra-se reproduzida no ANEXO VIII
66
primeira das cartas é permitir que os seus sentimentos sejam exteriorizados, racionalizados,
escritos para ela mesma, primeiramente. Embora tenha enviado uma vasta correspondência e
embora no final de sua existência essa escrita tenha sido gradualmente substituída pelos longos
textos do diário, Frida não parece se importar em dar resposta às cartas que recebe. Em diversas
correspondências, a pintora desculpa-se pela falta de resposta. Fato inverso ocorre quando a
escrita parte dela, pois, nesse caso, existe o pedido expresso de que o outro não demore a dar
resposta. No início dessa mesma carta, ela diz: “Faz tanto tempo que escrevi, que não sei por
onde começar esta carta. Mas não quero dar desculpas longas e maçantes [...] sobre o motivo de
não haver escrito em tantos meses” (Apud ZAMORA, 2006, p. 64-65) .
Desabafo parece ser a melhor palavra para descrever a maneira como Frida expõe suas
dores. Os sentimentos parecem milimetricamente traçados nas correspondências que ela
escreve sem pressa, sem nenhuma necessidade de resumir a dor. As emoções, relativas tanto à
sua situação quanto à de Diego, são por ela descritas e destacadas – é muito comum nas cartas
palavras ou expressões sublinhadas, como se ela tivesse a necessidade de destacar
determinados acontecimentos para si e para o leitor. No trecho abaixo, continua a descrever
suas mazelas, permitindo-se adentrar e ver como está o turbilhão de sentimentos em que se
encontra:
As pessoas procuram por ele, e não por mim. Sei que, como sempre, ele
está cheio de inquietações e preocupações sobre seu trabalho, mas leva
uma vida plena, sem o vazio da minha. Não tenho nada, porque não o
tenho. Nunca achei que ele fosse tudo para mim e que, separada dele, eu
fosse um monte de lixo. Eu julgava estar ajudando-o a viver, tanto
quanto me era possível, e que eu era capaz de resolver sozinha qualquer
situação da minha vida, sem nenhum tipo de complicação. Mas agora
percebo que não tenho nada além de qualquer outra moça,
decepcionada por ser abandonada por seu homem. Não valho nada; não
sei fazer nada; não consigo estar sozinha. Minha situação me parece tão
ridícula e idiota, que vocês não imaginam o quanto desagrado e odeio a
67
mim mesma (IDEM, 2006, p. 66-67).51
Frida consegue “pintar”, com a pena, um quadro autobiográfico. Após o mergulho nas
trevas das dores físicas e espirituais, enxerga melhor, como se a escuridão, ao invés de
obscurecer, tivesse proporcionado uma visão clara, aguda e experimentada de toda a vida
pregressa e atual. A traição dói, assim como a dependência financeira do marido – que se
preocupa somente consigo e com o seu trabalho. Dói também saber que não há nada de especial
nessa situação e que centenas de moças passam pelo mesmo conflito. O cotidiano espelha-se na
vida de Frida, como ela mesma diz em outra carta endereçada a mesma Ella Wolfe, segundo
Zamora (2006): “Além das doenças [...], das cartas perdidas, das discussões estilo Rivera, das
preocupações de natureza afetiva etc., minha vida é como o poema de López Velarde que diz...
igual a seu espelho cotidiano.”As traições fazem com que Frida se enxergue – ainda que não
goste da situação em que se encontre ou do papel de mulher dependente do marido. O principal
fator é a clareza com que descortina a situação, em meio à escuridão dos acontecimentos.
O inominável aparece em seu discurso. Por mais que escreva – a carta tem várias
páginas – não é possível transmitir todo o sofrimento sentido ao longo da missiva. A dor a
atordoa e, em meio ao turbilhão dos acontecimentos, ela opta pela separação, embora prevendo
que haverá lugar para um dilaceramento ainda maior e termina sua correspondência à maneira
das outras, com o desejo expresso de receber uma resposta e amainar a solidão que se agiganta:
Quando as coisas chegam a esse ponto, o melhor é cortá-las pela raiz.
Creio firmemente que esta será a [melhor] solução para ele, embora
signifique mais sofrimento para mim, mais ainda do que já tive e tenho,
e que é indescritível. [...] Se tiverem um tempinho livre, escreverão para
mim, não é? Suas cartas serão um consolo imenso, e eu me sentirei
menos sozinha do que agora (IDEM, 2006, p. 68-69).
51
A reprodução da correspondência encontra-se no ANEXO IX
68
Os cortes no papel presentificam aqueles de sua vida. Cortes oriundos do acidente do
bonde. Os cortes das várias cirurgias que se fizeram presentes. A morte do pai, o corte na
relação com a mãe, que não a amava e apoiava como o pai. O corte com a relação com a irmã,
viabilizada com a traição com o Diego. O corte de sofrer três abortos e de ser impedida de ser
mãe. O corte com o mundo físico, em decorrência das inúmeras cirurgias e de se encontrar
restrita ao leito. O corte demorado e angustiado com Diego. Frida demora a por um fim nesta
relação e submete-se a variadas perfurações no amor devotado ao companheiro.
Tal qual o corte, a escrita perpassa as etapas de sua vida. Inclusive nas telas, onde o
sofrimento exposto parece não ser suficiente, imprime seus ex votos, de modo a corroborar a
mazela sentida.
Frida retratou os abortos não só através da pintura, antes, registrou essa frustração de
diferentes formas, ao longo de sua existência. Muito antes de passar pela experiência dos
abortos, em 1926, quando achou que nunca poderia ter filhos, elaborou o seguinte cartão:
LEONARDO
NASCEU NA CRUZ VERMELHA
NO ANO DA GRAÇA DE 1925,
NO MÊS DE SETEMBRO,
E FOI BATIZADO NA
CIDADE DE COYOACÁN
EM AGOSTO DO ANO SEGUINTE.
SUA MÃE FOI
FRIEDA KAHLO,
SEUS PADRINHOS,
ISABEL CAMPOS
E ALEJANDRO GÓMEZ ARIAS
(Apud ZAMORA, 2006, p. 26).
O cartão demonstra o desejo expresso da pintora de ser mãe. Frida idealiza o nome e o
69
possível batizado da criança e, ironicamente, não fantasia um pai para a criança – o então
namorado, Alejandro Gómez Arias, com quem se relacionava na época do acidente e da
confecção do cartão, aos poucos, afastava-se mais e mais dela e aparece como “padrinho”.
Leonardo será somente seu filho. Talvez, ao imaginá-lo como um possível padrinho, ela
antevisse que os dois não ficariam enamorados durante muito tempo.
Frida sofre por amar demais. Por amar, em tão grande medida, mesmo sendo traída e
não correspondida. Deseja a fruição de sua dor. Extravasá-la, para que se sinta menos
atormentada, para que não questione tanto sobre suas escolhas, ou não se culpe por amar e não
ter a presença desejada, a lhe amparar, a lhe acalentar...
A escrita é o catalisador do único sentimento que se faz despertar: o dilaceramento, em
virtude das perdas físicas e emocionais. Da dor de não poder ir e vir, movimentar-se, andar. Da
dor proveniente dos cortes, das lacerações e extirpações, com que foi obrigada a suportar. Da
dor de sentir-se diminuída, desprotegida e sozinha, por estar acamada, impedida de andar, de
pintar, de usufruir da vida e da dor que estas marcas físicas exercem na alma, no íntimo de
quem as sofre. Nesse sentido, as cartas e o diário simbolizam o desejo de traduzir-se. Essa
tradução a pintora encontrará, amiúde, na escrita do diário, em que escreverá longas cartas de
amor e devoção a Diego Rivera.
Dentre os registros marcantes relativos a Diego, destacam-se páginas e páginas de escritos
endereçados ao amado. A necessidade de endereçamento é tão intensa em Frida, que ela
continua a escrever cartas, mesmo quando está de posse do diário. Uma vez que as cartas,
inseridas no livro íntimo, não seriam enviados ao companheiro, fica-nos a impressão que a
artista escreve para ela mesma sobre o amado. O início da missiva dá o tom da intensidade do
amor:
70
Diego:
Nada comparável as tuas mãos/ Nem nada igual ao ouro – verde dos/
Teus olhos. Meu corpo se satisfaz/ de ti por dias e dias. És/ o espelho da
noite. A luz/ violenta do relâmpago. A/ umidade da terra. O/ oco das
tuas axilas são meu/ refúgio. Meu gomo toca o seu sangue. Toda minha
alegria/ é sentir brotar a vida da/ tua fonte – flor que a minha/ guarda
para regar todos/ os caminhos dos meus nervos/ que são teus.
(KAHLO, 2010, p. 213)52
A correspondência, escrita nos moldes de um poema de amor, nos faz mergulhar no vasto
sentimento de Frida. As palavras demonstram a singularidade do seu amor pelo pintor, através
das intensas comparações que utiliza. Ao dizer que Diego é “a luz violenta do relâmpago”
começa a esboçar a ideia do significado desse sentimento. Nada na vida da artista foi
convencional, seguindo uma justa medida, a desmedida é uma marca sua, logo, o amor também
não o seria. Diego, tal qual o luz do relâmpago, também traz tormenta à sua vida e a incerteza
das tempestades, anunciadas pelo clarão que as precedem.
Ao comparar Diego com “a umidade da terra”, temos a total compreensão do renascimento
e da manutenção da vida. A umidade é fundamental para que as plantas sobrevivam, renasçam,
existam. Sem a água que umidifica o solo, a vegetação pereceria. O pintor dá umidade à vida de
Frida. Em meio ao ressecamento da vida, em meio aos choques e internações, Diego surge para
dar novo vigor à sua existência e, também, novas preocupações.
Todo o longo texto, pleno de metáforas e comparações, é uma total entrega de Frida ao
amante. As palavras, ainda que insuficientes diante do afeto desmedido, procuram traduzir o
sentimento que a invade, como podemos observar nas linhas traçadas abaixo,
52 Texto original em espanhol: Diego:
Nada comparable a tus manos/ Ni nada igual al oro – verde de/ Tus ojos. Mi cuerpo se llena/ De ti por dias y dias.
Eres/ el espejo de la noche. La luz/ violenta del relâmpago. La/ humedad de la tierra. El/ hueco de tus axilas es mi/
refugio. Mis yemas tocan/ tu sangre. Toda mi alegria/ es sentir brotar la vida de/ tu fuente – flor que la mia/
guarda para llenar todos/ los caminos de mis nervios/ que son tuyos. (KAHLO, 2010, p. 213)52
. Livre tradução
minha.
71
Meu Diego
Espelho da noite. Teus olhos espadas verdes dentro/
da minha carne. Ondas entre nossas mãos.
Tudo teu no espaço pleno de/ som – na sombra e na/ luz. Você se
chamará AUXOCROMO53
o que capta a cor. Eu/ CROMOFORO54
– a
que dá a cor./ Você é todas as combinações/ dos números. A vida. /
Meu desejo é entender a linha/ a forma a sombra o movimento/ Você
pleno e eu recebo./ Sua palavra recorre todo o/espaço e chegas às
minhas células/ que são meus astros e vai até as/ tuas que são a minha
luz.
Fantasmas55
.
(KAHLO, 2010, p. 214)56
Frida inicia a carta chamando Diego de seu - ainda que sob uma vida de intensas
traições. Após casamentos e divórcios, a artista parece aprender a conviver com o marido,
extraindo da relação amor e prazer. Novamente a repetição mostra-se na escrita e ela o chama
de “espelho da noite”. Interessante notar a escolha dos adjetivos para representá-lo – todos são
intensos e remetem, por vezes, ao desconhecido – como a própria noite – e ao que é fatal, como
a espada e as ondas. A artista demonstra a profundidade da relação através das palavras que
possuem sentido especial – “verde dos teus olhos”, “espelho da noite”, “luz violenta do
relâmpago”, “umidade da terra” – uma vez que não foram agrupadas aleatoriamente.
53 Auxocromo - química: grupo de átomos de retém a cor. Capturado do site: pt.wikipedia.org/wiki/ 54
Um cromóforo ou grupo cromóforo é a parte ou conjunto de átomos de uma molécula responsável por sua cor.
Também se pode definir como uma substância que tem muitos elétrons capazes de absorver energia ou luz visível,
e excitar-se para assim emitir diversas cores, dependendo dos comprimentos de onda da energia emitida pelo
câmbio de nível energético dos elétrons, de estado excitado a estado basal. Capturado do site:
pt.wikipedia.org/wiki/ 55
No diário íntimo de Frida Kahlo existem pinturas em toda a parte inferior da página. Ela escreve a palavra
“fantasmas” na parte lateral da página, de forma vertical, muito provavelmente para explicar que os desenhos eram
a representação de fantasmas. 56
Texto original em espanhol: Mi Diego/ Espejo de la noche. Tu ojos espadas verdes dentro/ de mi carne. Ondas
entre nuestras manos./Todo tu en el espacio lleno de/ sonidos – en la sombra y en la/ luz. Tu te llamaras
AUXOCROMO el que capta el color. Yo/ CROMOFORO – la que dá el color./ Tu eres todas las combinaciones/
de los números. La vida./ Mi deseo es entender la línea/ la forma la sombra el movimiento/ Tu llenas y yo recibo./
Tu palabra recorre todo el/ espacio y llega a mis células/ que son mis astros y vá a las/ tuyas que son mi luz.
Fantasmas.
(KAHLO, 2010, p. 214)56
. O poema encontra-se reproduzido no ANEXO X.
72
Pintar a relação com Diego, descrevê-lo com palavras, talvez tenha sido mais penoso que
representá-lo com as tintas, dado o caráter amplo e diverso da linguagem, dada a variedade de
sintagmas e seus sentidos, inclusive metafóricos. No entanto, a artista mostra-se feroz ao pintar
o retrato do amado com os recursos da palavra, utilizando expressões que aludem às cores, à
pintura, às tintas - que unem Frida e Diego. Doravante, ele seria o auxocromo – “o grupo de
átomo que retém a cor” - e ela seria o cromóforo – “uma substância que tem muitos elétrons
capazes de absorver energia ou luz visível, e excitar-se para assim emitir diversas cores”. Diego
guarda e ela distribui as cores, de acordo com as energias e luzes recebidas. A capacidade do
cromóforo é comparável a do camaleão, que se adapta ao meio e imiscui-se na paisagem, por
mais adversa que possa parecer. A característica atribuída a Diego seria de reter e a de Frida, de
doar. Tal qual o cromóforo, que recebe as impressões externas,a artista recebe as palavras, as
cores, as influências de Diego. Sobram os fantasmas, pintados no inferior da página, os quais
remetem, provavelmente, aos medos e fatos pretéritos que assombram a vida do casal.
Em outra missiva, da mesma sequência de cartas apaixonadas, a artista destaca a presença de
Diego, mesmo em sua ausência. Frida expressa as sensações físicas que acompanham o vazio
deixado por ele. A entrega do corpo da artista ao de Diego é integral, tal a sensação de sentir-se
parte do amado e companheiro. A intensidade do amor é perceptível nas descrições de Frida,
que transborda, nas páginas do diário, confissões de paixão ao pintor. Talvez pelo caráter
secreto da escrita íntima, pela garantia da privacidade advinda do diário e pela necessidade de
inscrever – para si mesma – os sentimentos que a invadem, a artista é, sobretudo, verdadeira.
Frida revela, através da escrita, a ligação com Diego:
= Estás presente, intangível / e é todo o universo que/ formo no espaço
do meu/ quarto. Tua ausência brota/ estremecendo o ruído do/ relógio;
no pulso da luz;/ respiras pelo espelho. Desde/ ti até as minhas mãos,
73
recorro/ todo o teu corpo, e estou/ contigo um minuto e estou/ contigo
um momento. E o meu/ sangue é o milagre que vai nas veias do ar do
meu coração ao teu.
(KAHLO, 2010, p. 215)57
A última página, da longa sequência de cartas escritas no diário a Diego Rivera, fala da
sensação da presença do pintor, mesmo na sua ausência:
Por momentos sua presença/ flutua como envolvendo/ todo o meu ser
em uma ansiosa espera/da manhã. E noto que estou/ contigo. Nesse
momento/ pleno mesmo de sensações,/ tenho minhas mãos imersas em
laranjas, e meu corpo/se sente rodeados pelos teus braços58
(KAHLO,
2010, p. 216)59
Frida externa os sentimentos de plenitude provocados pela presença de Diego. Fica patente,
na escrita, a completude que o pintor acrescenta à vida da artista. No trecho acima, ela desenha,
à semelhança que fez na primeira carta reproduzida, fantasmas. Eles se agigantam do fim da
página e os olhos ficam perceptíveis. Tal pintura, ao final das duas cartas de amor, nos faz
pensar na significação dos fantasmas ao fim das missivas. Os fantasmas representariam a
ausência, os medos que a acompanham, o intangível. E os grandes olhos, poderiam oferecer a
visão além do visível - ainda que a visão não seja a desejada e existam lágrimas.
As declarações amorosas, contidas no livro das confissões, revelam muito sobre Frida. A
57 Texto original em espanhol: = Estas presente, intangible/ y eres todo el universo que/ formo en el espacio de
mi/ cuarto. Tu ausencia brota/ temblando en el ruído del/ reloj; en el pulso de la luz;/ respiras por el espejo. Desde/
ti hasta mis manos, recorro todo/ tu cuerpo, y estoy contigo/ un minuto y estoy contigo un momento./ Y mi sangre
es el milagro que/ va en las venas del aire/ de mi corazon al tuyo.
(KAHLO, 2010, p. 215) 58
Assim como na carta anterior, a presente missiva termina com pinturas ao final da página. Nela, existem
vegetações e seres que a artista, segundo Carlos Fuentes (2010), “identifica como “fantasmas””. Na pintura
existem olhos (pequenos, grandes e com lágrimas) e um marcante lábio. 59
Texto original em espanhol: “Por momentos flota tu presencia/ como envolviendo todo mi/ ser en una espera
ansiosa/ de mañana. Y noto que estoy/ contigo. En este momento/ lleno aun de sensationes,/ tengo mis manos
hundidas/ en naranjas, y mi cuerpo/ se siente rodeado por tus/ brazos
(KAHLO, 2010, p. 216) Livre tradução minha. A referida página do diário encontra-se reproduzida no ANEXO
XI
74
escrita repetitiva, com temas recorrentes, nos comunicam o universo em que se via imersa. As
cartas para e sobre Diego nos demonstram, além do amor, a forma de comunicação da artista
com o mundo. O diário da pintora, muito mais que episódios de dor, sofrimento, solidão e
dilaceramento, nos demonstra a vida que insistia em pulsar, apesar de tantos cortes. Carlos
Fuentes, ao discorrer sobre o Diário, nos demonstra que a vida da artista, foi muita mais que
episódios de dor:
Que Kahlo foi mais, muito mais que tudo isso, nos demonstra agora seu
Diário. Nos mostra sua alegria, seu sentido de humor, sua imaginação
mais fantástica. O Diário é sua linha de travessia com o mundo. Quando
Frida se viu, se pintou; e se pintou porque se sentia só e porque era o
sujeito que melhor conhecia. Mas, quando Frida viu o mundo, escreveu,
paradoxalmente, um Diário pintado graças ao qual nos inteiramos de
que, apesar da interioridade da sua arte, esta sempre foi uma arte
maravilhosamente cercada do mundo material.60
(KAHLO, 2010, p. 10)
O diário nos demonstra, acima de tudo, um elogio à capacidade de representação da
linguagem diante da dor física extrema. Temos a impressão que Frida dispõe de todos os
sentimentos ao escrever. Na escrita do Diário, convivem a carta de amor e os fantasmas, as
inscrições sobre as cirurgias, as pinturas das máscaras e partes do corpo. No diário, Frida
mostra-se. Faz a travessia dos sentimentos para o papel. Transpõe as emoções.
Para além das cartas para Diego, das extensas inscrições no diário e das telas, Frida
retratou o pintor através de palavras, publicamente. À semelhança da longa
60
- Texto original em espanhol, extraído do prefácio do Diário de Frida Kahlo: Que Kahlo fué más, mucho más
que todo esto, lo demuestra ahora su Diario. Nos muestra su alegria, su sentido del humor, su imaginación más
fantástica. El Diario es su línea de cabotaje con el mundo. Cuando Frida se vio, se pintó; y se pintó porque se
sentia sola y porque era el sujeito que mejor conocía. Pero cuando Frida vio el mundo, escribió, paradójicamente,
un Diario pintado gracias al cual nos enteramos de que, a pesar de la interioridad de su arte, éste siempre fue un
arte maravillosamente cercano al mundo material.60
(KAHLO, 2010, p. 10) Livre tradução minha.
75
descrição/declaração de amor ao artista, ela o pinta, novamente, com palavras por ocasião da
exposição feita em homenagem a Diego Rivera, organizada pelo Instituto Nacional de Belas
Artes, Cidade do México, durante o ano de 1949. O texto de quatorze páginas inicia-se com a
fala da artista sobre o uso das palavras, como substitutas das tintas, para esboçar o retrato do
companheiro:
RETRATO DE DIEGO
Aviso-os que pintarei este retrato de Diego com cores com que
não estou familiarizada: palavras. Por isso é que ele será precário.
Ademais amo tanto Diego que não posso ser uma “expectadora” de sua
vida, mas parte dela. Por isso, talvez exagere o que há de positivo em
sua personalidade singular, tentando minimizar o que possa magoá-lo,
ainda que remotamente. Esta não será uma exposição biográfica.
Considero mais sincero escrever apenas sobre o Diego que creio ter
passado a conhecer, nestes últimos vinte anos em que vivi junto dele.
(Apud ZAMORA, 2006, p. 154)61
O retrato traçado por Frida é minucioso. Todos os detalhes presentificam-se. A visão de
Diego, ofertada pelas palavras, é muito mais complexa que as telas a ele dedicadas, uma vez
que no quadro, apenas uma nuança destaca-se, ao passo que nas cartas a descrição do pintor
abarca amplos significados e facetas, desde a forma ao conteúdo, passando pelas reações e
características, Frida registra os detalhes da personalidade do amado:
SEU CONTEÚDO: Diego fica na periferia de todas as relações pessoais
limitadas e definidas. É contraditório como todas as coisas que
incendeiam sua vida; é uma carícia imensa e, ao mesmo tempo, uma
violenta descarga de forças poderosas e únicas. Pode-se vivenciá-lo
pelo lado de dentro como a semente possuída pela Terra e, pelo lado de
fora, como uma paisagem. (Apud ZAMORA, 2006, p. 144)
As cartas reiteram o retrato de Diego descrito pela artista no diário, quando o compara ao
61
- O trecho da carta encontra-se reproduzido no ANEXO XII
76
"espelho da noite" ou a "luz violenta do relâmpago", a intensidade constitui-se como uma
característica, assim como a contradição. As penas, mais que as tintas, permitem o contorno
do interior, o qual não pode ser perscrutado na pintura, e nos desnudam além da forma, a
substância. No retrato escrito, podemos perceber a singularidade de sua personalidade, como
no trecho abaixo, em que a artista, com poucas e precisas palavras, desvela o comportamento
do companheiro:
Coberto de espinhos, protege a ternura que traz dentro de si.
Vive com sua seiva forte num ambiente feroz. Brilha sozinho,
como um sol que vingasse a cor cinzenta das rochas. (IDEM,
2006, p. 155)
Os espinhos, relatados por Frida, tem amplo sentido: proteção contra todas as influências
exteriores e ataque, já que os espinhos ferem os que dele se aproximam, independente da
intenção. Finalmente, o retrato de Diego, pintado por Frida, nos revela que a artista aprendeu a
conviver com o pintor, tal qual os porcos espinhos, que ferem se ficarem muito próximos uns
dos outros e morrem de frio, se ficarem muito distantes – foi necessário aprender qual a
distância segura para se conviver o pintor, extraindo calor, sem se ferir. Assim como o bonde,
que ao chocar-se contra o ônibus causou ferimentos graves à artista e, outrossim, despertou –
pela própria necessidade do repouso e da imobilidade – o dom da pintura, Diego Rivera, ainda
que com os violentos rompantes e rompimentos amorosos, semeou, nas palavras da própria
artista, mais que amor, a vida inteira, que ela encontrou ao vê-la nas mãos de Diego.
77
4. SOBRE A (DES)NECESSIDADE DA ESCRITA
Alex de mi vida, você sabe melhor do que
ninguém como tenho estado triste neste maldito
hospital. Deve imaginar, ou talvez o pessoal já
lhe tenha dito. Todos me falam para não perder
a paciência, mas eles não sabem o que significa
para mim ficar de cama por três meses. (Frida
Kahlo)62
A (des)necessidade da escrita permeia a produção das cartas de Frida Kahlo e nos suscita
importante questão: sua pintura, assumidamente autobiográfica, é suficiente para exprimir todo
o sofrimento? Por que Frida vale-se sobremaneira da escrita para viver e mesmo para pintar?
Enfim, qual o papel da escrita em suas telas, uma vez que a pintura espelha todo o sofrimento
físico – e outrossim as feridas emocionais - por ela vivenciados?
As cartas, intensamente escritas, durantes largos anos, foram parte fundamental de sua
existência. Escrever era uma grande necessidade, principalmente nos períodos de dor, sejam
elas físicas ou interiores. Nos períodos de internação e recuperação das cirurgias, foram o papel
e a pena que lhe fizeram companhia.
Escrever. Desabafar. Receber (com rapidez!) a resposta das correspondências enviadas.
Esse era o circuito repetitivo de sua produção, como podemos depreender das missivas
compiladas por Martha Zamora, na obra Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo.
A função da escrita das cartas para a artista nos remete, sobremaneira, ao texto de Sartre:
Porque se escreve?, nele, o autor problematiza questões referentes ao ato criador e às
motivações para a escrita. Nesse contexto, Sartre (1948) nos salienta que “um dos principais
motivos da criação artística é, sem dúvida, a necessidade de nos sentirmos essenciais em
62
(Apud ZAMORA, 2006, p. 22)
78
relação ao mundo”. Tal primordialidade, motivadora das criações artísticas, pode ser estendida
para a vasta produção de cartas, realizada por Frida Kahlo. A necessidade de fala, escuta e
valorização permeia as produções da artista e nos provoca reflexões sobre o endereçamento: as
cartas de Frida eram para ela mesma ou para o contato com outros interlocutores? Qual voz ela
queria ouvir: a resposta dos outros, ou sua própria voz refletida? Fica patente nas cartas o
interesse em receber, urgentemente, a resposta das correspondências e, por conseguinte, o
desinteresse em endereçar argumentações aos seus interlocutores. Nesse sentido, nos
apropriamos do texto de Sartre, Por que se escreve?, sobre a criação artística, para estendê-lo
às cartas de Frida, uma vez que seus argumentos nos remetem à necessidade de completude do
ato criador, advindo da leitura. Consoante o autor, sem o leitor não existiria, verdadeiramente o
texto, pois é a leitura que distingue os traços negros sobre o papel e proporciona sentido à
escrita. O texto, previsível para o autor, constitui-se em exercício de despertares e suposições
por parte dos que desfrutam a leitura, uma vez que o ato de ler inclui as confirmações,
anulações ou previsões dos assuntos desvendados, além de infinidade de hipóteses formuladas
pelo leitor, até que os escritos sejam por completo conhecidos - a leitura vivifica a escrita. As
correspondências da artista, construídas com a premência da resposta, avigoram a assertiva de
Sartre (1948), segundo o qual, a criação artística só completa-se com a leitura:
Uma vez que a criação só pode completar-se com a leitura, uma
vez que o artista deve confiar a outra pessoa o cuidado de terminar o
que ele começou, uma vez que é apenas através da consciência do leitor
que ele pode considerar-se como essencial na sua obra, toda a obra
literária é um apelo. Escrever é fazer apelo ao leitor, para que este
inclua na existência objectiva a revelação que empreendi por meio da
linguagem. (SARTRE, 1948. p. 92)
O apelo de Frida é explícito, ela implora por respostas, reitera os pedidos de escuta.
79
Necessita ter a certeza que sua voz foi ouvida, que sua queixa foi acolhida, que a leitura foi
realizada. E essa certeza a artista só conseguirá através do recebimento das cartas enviadas.
O clamor pela resposta é diametralmente oposto ao desejo de escrita, em relação às missivas
recebidas, como nos comprovam as inúmeras cartas escritas pela artista, em que as remissões
precedem o texto, como nos atesta a carta escrita ao Dr. Leo Eloesser, datada de 18 de julho de
1941, em que Frida inicia sua correspondência desculpando-se pelo fato de não responder às
cartas recebidas:
Imagino o que você deve estar pensando de mim – que sou uma cretina.
Nem sequer agradeci por suas cartas ou pela criança, que me deixou tão
feliz – nem uma palavra em meses e meses. Você está mais do que
certo em fazer com que me lembre de minha... família. Mas sabe que o
fato de eu não lhe escrever não significa que o tenha menos em meus
pensamentos. Você sabe que tenho o enorme defeito de ser o cúmulo da
preguiça quando se trata desse negócio de escrever. Mas, creia-me,
tenho pensado muito em você, e sempre com a mesma afeição. [...]
(Apud ZAMORA, 2006, p.111) Grifos da autora.
Frida trocou inúmeras correspondências com o Dr. Leo Eloesser ao longo de sua existência.
Em todas as cartas, reitera o intenso comprometimento do médico e o seu apreço por ele.
Chega, inclusive, a pedir consultas ao médico através das missivas, tal a sua confiança no
profissional. No entanto, ela não responde as cartas recebidas. Não há respostas. Situação
semelhante observamos em relação a Ella Wolf, com quem manteve uma profícua e intensa
correspondência. As respostas são imploradas pela artista, quando é ela a autora dos escritos, o
que não ocorre em relação às cartas recebidas, quando a escrita torna-se desnecessária. Frida
não responde. Não atende aos apelos:
Linda Ella,
Mal posso enfrentar a redação desta carta para você. Prefiro não dizer
80
nada nem lhe dar nenhum tipo de desculpa, já que você não acreditaria
mesmo e nenhuma de nós duas tiraria nada disso. O fato é que não lhe
escrevi, portei-me como uma perfeita fraca, uma idiota avarenta e
infame, etc. etc., e todas as coisas ruins que você possa pensar de mim
são muito pouco pelo que mereço. Mas, se puder esquecer tudo por um
momento, poderei dizer-lhe nesta carta o que não lhe disse em nenhuma
das outras (naturalmente, já que nunca lhe escrevi nenhuma).(Apud
ZAMORA, 2006, p. 54)63
Frida reconhece sua falta. Inicia a escrita desculpando-se, mas, no final da mesma
correspondência, despede-se de forma habitual, pedindo que a resposta seja rápida, já que ela
tem necessidade de se fazer ouvir e escutar-se através das respostas: “Você precisa escrever
logo, para que eu não me torne uma menina triste e desagradável. Adeus, linda”.(IDEM, 61)
A completude das cartas, escritas por Frida, parece vir exatamente das respostas, que
ensejam completar o ciclo de fala e escuta. O apelo é constatado na escrita das cartas, desde o
registro das primeiras correspondências, as quais encontram-se no livro supracitado. A primeira
carta registrada no livro data de 1924 e foi endereçada ao amigo – que mais tarde se tornaria
namorado – Alejandro Gomez Arias. No corpus da correspondência, a artista pede a resposta:
Mas, primeiro, responda a esta carta assim que puder, maninho, porque
você sabe que, se não responder, vou achar que ficou enfeitiçado pela
moça que lhe perguntou se a vadia do trem em questão tinha sido
assassinada! E isso é terrível! Que surpresa, depois de não nos falarmos
por tanto tempo! (Apud ZAMORA, 2006, p. 13)
Em outra correspondência, datada de 31 de abril de 1927, ao mesmo Alejandro Gomez
Arias, Frida inicia sua escrita descrevendo o prazer de receber cartas, uma vez que elas, no
contexto do sofrimento físico incessante e a solidão do hospital, tornam-se refrigério em meio a
dor que insiste em acompanhá-la:
63
O fragmento da carta encontra-se no ANEXO XIII
81
Meu Alex,
Acabo de receber sua carta do dia 13, que foi o único momento feliz em
todo esse tempo. Embora pensar em você sempre me ajude a ficar
menos triste, suas cartas ajudam mais.
Como eu gostaria de poder explicar-lhe, minuto a minuto, meu
sofrimento! Desde que você se foi, piorei, e nem por um momento
consigo consolar-me ou esquecê-lo. (Apud ZAMORA, 2006, P. 31)
Frida é minuciosa em sua descrição. Pinta seus retratos não só com tinta, mas, outrossim,
com a pena – esboça seu autoretrato, inscreve sua dor, escreve sobre suas emoções, exprime os
desejos. Já que Alex não vai visitá-la, ela pinta o retrato de seu sofrimento para que ele possa
vê-la. Ela não poupa adjetivos para traçar o retrato da dor sentida após o grave acidente, na
longa correspondência. Ao final da mesma carta, Frida revela:
Não duvide, nem por um momento, de que serei exatamente a mesma
pessoa quando você voltar.
E trate de não me esquecer, e escreva muito. Anseio quase com angústia
por suas cartas; elas fazem com que eu me sinta infinitamente bem.
Nunca pare de me escrever, ao menos uma vez por semana; você
prometeu.
Diga-me se posso escrever-lhe para a Embaixada Mexicana em Berlim,
ou para o mesmo lugar de sempre.
Preciso muito de você, Alex. (IDEM, p. 32)
A forma como Frida trava correspondências com o amado Alex é peculiar, já que a artista
escreve e também responde às correspondências recebidas, pois ele necessita de cartas para
enviar respostas, o que constitui singularidade em sua vasta produção, cuja regra é a escrita e
não a resposta, a fala e não a escuta. A necessidade primeira da artista é o desabafo e não o
acolhimento das queixas do destinatário. Esse comportamento fica patente na produção da
artista quando, espontaneamente, os amigos e amados escrevem – o silêncio se faz presente e a
lacuna instala-se até que a artista necessite enviar nova missiva. Nesse sentido, as cartas
82
endereçadas a Alex, tornam-se peculiares. Para ele, Frida escreve, uma vez que não se trata
somente de falar e saber-se ouvida, ela deseja o diálogo e sabe que se não responder as cartas
recebidas, o debate não se instalará.
Em carta escrita a Alejandro Gomes Arias, datada de 1º de janeiro de 1925, Frida inicia sua
escrita com um desenho – algo típico – e, acima do oceano e do barco, escreve a palavra
“Responda” reiteradas vezes. A saudação da carta já é um apelo:
Meu Alex,
Hoje às onze horas apanhei sua carta, mas não respondi de imediato
porque, como você há de compreender, não se pode escrever nem fazer
nada quando se está cercada por uma manada. Mas, agora que são dez
da noite e estou inteiramente só, é a hora mais apropriada para lhe dizer
o que estou pensando (mesmo que eu não tenha uma linha da mente na
palma da mão esquerda), segundo Mallén. (Apud ZAMORA, 2006, p.
16)
Escapa do relato de Frida Kahlo a satisfação em receber a correspondência de Alex. A
artista concentra-se na leitura de carta e na escrita da resposta, que precisa ser privada,
usufruída em todos os momentos. É forçoso estar só para alçar, exatamente, a carta ao lugar
que lhe é almejado, o de companhia. Nesse instante, ela não deseja dividir o momento com
mais ninguém, já que a carta a pertence e o fato de “estar inteiramente só” para reler várias
vezes a mesma correspondência, indica a exclusividade do momento. O recebimento das cartas
constitui um evento muito especial em sua vida, porque aproxima Alex, que está distante
geograficamente. A carta o coloca ao lado de Frida.
Sartre, no livro Situações II, no capítulo intitulado: Porque se escreve?, nos fala sobre as
peculiaridades da escrita e da leitura. Segundo o autor, o leitor precisa entregar-se ao exercício
da leitura, de forma integral, para que o ciclo da escrita se complete, uma vez que o autor escreve para dirigir-se à liberdade dos leitores e a requer para que a obra exista e faça
sentido.Nesse sentido, nos apropriamos das palavras do referido autor, para estendermos o
83
sentido da entrega da leitura, de forma integral, a pintora, pois percebemos que a leitura é
fundamental nas cartas escritas por Frida, uma vez que a voz da própria escritora, ecoada na
resposta do destinatário, completa o ciclo da escrita, iniciado por Frida Kahlo.
Escrever, ler e ouvir são aspectos fundamentais no que concerne à escrita das cartas. Nesse
sentido, o deleite e a entrega da artista, na leitura das cartas de Alejandro Gomes Arias, nos
remetem e aproximam da descrição do deleite da leitura, abordado por Sartre no já citado texto:
Assim, a leitura é um exercício de generosidade; e o que o autor
exige do leitor não é a aplicação duma liberdade abstracta, mas a
entrega total da sua pessoa, com as paixões, prevenções, simpatia,
temperamento sexual e escala de valores. Simplesmente, a pessoa dar-
se-á com generosidade, a liberdade atravessa-a de lado a lado e vem
transformar as massas mais obscuras da sua sensibilidade. (SARTRE,
1948, p. 96)
A entrega de Frida na leitura da carta é patente. Ela está inteira lendo a esperada carta,
completamente concentrada nas palavras escritas/ditas por Alex. E mais, Frida responderá à
epístola, o que constitui uma raridade, como podemos depreender da leitura das cartas da
artista. Embora nutra sentimentos de amor e carinho pelas pessoas com as quais se corresponde,
responder as cartas não está precisamente no rol de suas ações, como nos demonstra o discurso
endereçado a amiga Isabel Campos, em 03 de maio de 1931:
Querida amiga,
Recebi sua carta buten séculos atrás, mas não pude responder porque
não estava em San Francisco, porém mais ao sul, e tinha uma porção de
coisas para fazer. Não imagina como fiquei feliz em recebê-la. Você foi
a única amiga que lembrou de mim. Tenho estado muito feliz, mas sinto
enorme saudade de minha mãe. (Apud ZAMORA, 2006, p. 42)
O discurso, quase controverso de Frida, demonstra entusiasmo no recebimento da carta e
desinteresse em respondê-la. Ela não responde. Simplesmente, após algum tempo, escreve nova
84
carta, quando sente intensa necessidade de comunicação. A alegria em receber a carta não
constitui motor suficiente para que outra seja escrita. Parece-me que a motivação intrínseca da
artista para a escrita das cartas, centra-se na necessidade de falar, de expor seus sentimentos, de
desnudar-se para um outro.
Após algum tempo, Frida envia nova carta a mesma Isabel Campos, durante o período que
esteve em Nova York, datada de 16 de novembro de 1933. Interessante notar que ela não
responde às cartas de Isabel, no entanto, após o longo silêncio, a artista escreve. Existe um tom
de desabafo em seu relato, acompanhado do habitual apelo pela resposta:
Linda Chabela,
Faz um ano que não tenho nenhuma notícia de vocês. Provavelmente,
você pode imaginar o que foi esse ano para mim. Mas não quero falar
desse assunto, porque não ganho nada com isso e nada no mundo pode
me consolar.(...) Estou lhe escrevendo para que você possa responder e
me dizer uma porção de coisas, já que, embora pareçamos ter esquecido
uma da outra, no fundo estou sempre pensando em vocês;
(...)Não se esqueça de me escrever. (...) Sua amiga que nunca a esquece,
Frieda. (IDEM, 2006, p.51-53)64
Frida, ao longo da correspondência, fala sobre os problemas familiares e os sentimentos que
a afligem, necessita estabelecer diálogo. Portanto, ela deseja uma resposta de Isabel, que
precisa ser breve, para que a artista possa fazer da amiga uma verdadeira interlocutora. A
disposição para escrever as cartas, no caso da artista, é sempre subjetiva. O que move a pena é
o desejo de falar e sentir-se ouvida. O fato de receber correspondências não motiva a resposta,
porém, a aflição e a dor sim. Além da paixão, essas são as razões que a impulsionam a escrever
longas e detalhadas cartas.
Fato análogo ocorre no momento em que Frida endereça carta aos amigos – de longa data –
64
A correspondência encontra-se reproduzida no ANEXO XIV
85
Ella e Bertram Wolfe, em 18 de outubro de 1934. A missiva inicia-se com as habituais
desculpas:
Ella e Boit,
Faz tanto tempo que escrevi, que não sei por onde começar essa carta.
Mas não quero dar desculpas longas e maçantes e lhes contar histórias
compridas sobre o motivo de não haver escrito em tantos meses. Vocês
sabem tudo porque tenho passado, de modo que creio que vão
compreender minha situação, mesmo que eu não a relate com todos os
detalhes. (...)
Se tiverem um tempinho livre, escreverão para mim, não é? Suas cartas
serão um consolo imenso, e eu me sentirei menos sozinha do que agora.
Mando-lhes mil beijos. Por favor, não me tomem por uma mulher
detestável, sentimental e estúpida, pois vocês sabem o quanto amo
Diego e o que perdê-lo significa para mim.
Frieda. (Apud ZAMORA, 2006, p. 64-69)65
Frida, na longa carta, relata os problemas e desabafa com os amigos e, embora não escreva,
pede a resposta. Os problemas amorosos e sentimentais, relativos a Diego Rivera, ocupam as
linhas. O coração e a mente da artista estão ocupados e é necessária a escrita das cartas para
extravasar tanto desassossego, aliviar o coração que pulsa aflito. Resta a impressão de alívio,
provocada pelo envio das cartas.
O comportamento repetitivo de Frida causa estranhamento. Suscita dúvidas. Leva-nos a
pensar nas razões que a fazem ignorar, solenemente, as cartas recebidas. Por repetidas vezes, a
artista frisa seu comportamento, junto ao apreço devotado as pessoas com quem se
corresponde, todavia, o silêncio, perturbador para quem envia cartas, as responde, e nunca
recebe respostas pelas cartas enviadas, parece incomodar seus interlocutores. Por que tanta
desatenção? Por que Frida só escreve quando as questões e aflições emanam do seu íntimo?
Essas questões talvez tenham sido objeto de reflexão por parte dos amigos, como Ella, que
65
A carta encontra-se reproduzida no ANEXO XV
86
ficou visivelmente ressentida com a atitude costumaz da artista:
Quarta-feira 13, 1938:
Linda Ella,
Faz séculos que venho querendo lhe escrever, mas, como sempre, não
sei por que fico tão confusa, por que não respondo às cartas e não me
porto como as pessoas decentes. Em sua última carta, notei que você já
não gosta de mim como antes e, apesar de a culpa ser minha, não sabe
como isso me deixa triste, porque, mesmo que eu não lhe escreva nada,
continuo a amá-la como sempre. O mesmo se aplica ao Boit, e diga-lhe
que ele sabe disso muito bem. (IDEM, 2006. p.82)
Frida desculpa-se por seu comportamento, pois reconhece que não escreve para responder as
missivas recebidas, embora, sempre espere respostas. O pedido de desculpas soa como
expiação em relação ao ato cometido e nos fornece pistas sobre a reincidência da ação, pois,
embora perceba a mágoa advinda de seu não pronunciamento, a conduta da artista permanece
inalterada. Sobra o descontentamento de Elle, explícito na carta da artista, como podemos
depreender do trecho abaixo:
Bem, linda, espero que, por causa dessa carta excepcional, você me
queira pelo menos um pouquinho, e depois, pouco a pouco, possa vir a
me amar tanto quanto antes. Porque eu sou a mesma pessoa, apesar de
ser má e idiota com você. Sou avoada quando se trata de responder
cartas. Quero muito bem a você, como antes. Também amo o Boit,
portanto, não seja malvada comigo e retribua meu amor, escrevendo
uma poderosa missiva para encher de alegria meu já entristecido
coração, que bate por você aqui com uma força maior do que você é
capaz de imaginar. (IDEM, 2006, p. 86-87) Grifos da autora.
O ato de enviar as cartas, com o propósito de endereçar-se e preocupar-se com o outro, de
tão raro, foi classificado por ela própria, como excepcional, embora a missiva estivesse
impregnada do habitual apelo de resposta.
87
Em outra carta, escrita no mesmo ano a amiga Lucienne, ressalta a alegria que sentiu em
receber a carta,
Carta a Lucienne Bloch, 14 de fevereiro de 1938:
Querida Lucy,
Quando sua carta chegou, eu estava péssima, vinha sentindo dores em
meu maldito pé fazia uma semana, e é provável que precise de outra
operação. Fiz uma há quatro meses, além da que me fizeram quando
Boit esteve aqui, daí você pode imaginar como se sinto, mas sua carta
chegou, e acredite ou não, deu-me coragem. (Apud ZAMORA, 2006, p.
88)
Agora vou lhe contar algumas coisas a meu respeito. Não mudei muito
desde que você me viu pela última vez. Só que estou de novo usando
minha indumentária mexicana maluca, meu cabelo tornou a crescer e
estou magrela como sempre. Meu temperamento também não mudou,
continuo preguiçosa como de hábito, sem entusiasmo por coisa
nenhuma, muito idiota e uma desgraça de sentimental, às vezes acho
que é porque estou doente, mas é claro que isso é apenas um ótimo
pretexto.
(IDEM, 2006, p.89)
No fim da carta, Frida lembra do casal Elle e Boit, para quem nunca escreve, embora sinta
apreço. Reitera o silêncio:
Mande meu carinho para Elle e Boit, diga-lhes que apesar de meu
silêncio eu os amo do mesmo velho modo.
(...)
Escreva-me com mais freqüência. Prometo responder.
(IDEM, 2006, p. 92-93)
Tal silêncio só é interrompido, na obra escritural de Frida, quando o assunto é o amor.
Quando a paixão permeia a relação, há mudança de paradigma entre os interlocutores, pois
Frida não só escreve, como espera, com grande ansiedade, a resposta das correspondências,
acompanhada de total emoção na abertura e leitura das cartas, como nos idos 1924-1927, em
88
que a artista esperava, com grande ansiedade, as cartas de Alejandro G. Arias e escrevia,
prontamente, as respostas. Nada de habitual, rotineiro ou determinado - quando a paixão está
em jogo, todo o cenário configura-se diferente, e as mesmas atitudes, que de tão habituais
tornaram-se conhecidas da artista, dos interlocutores e amigos, não encontram lugar na troca de
correspondência onde o romance é o sujeito da questão, como podemos observar na missiva
escrita por Frida Kahlo, em 27 de fevereiro de 1939, endereçada a Nickolas Muray:
Meu amado Nick,
Esta manhã recebi sua carta, após muitos dias de espera. Senti tamanha
alegria que comecei a chorar antes mesmo de lê-la. Meu menino, eu
realmente não deveria reclamar de nada do que me acontece na vida,
desde que você me ame. [Este amor] é tão real e belo que me faz
esquecer todas as minhas dores e problemas; faz-me esquecer até a
distância. Através de suas palavras, sinto-me tão perto de você que
chego a sentir o seu riso, tão limpo e franco, que só você tem. Estou
contando os dias para o seu regresso. Mais um mês! Então, estaremos
junto de novo...(IDEM, 2006, p. 94)
Entusiasmo. Esta parece ser a emoção que rubrica a chegada da carta de Nick e a
impulsiona a escrever a calorosa e longa carta. A necessidade da fala fica patente na escrita
compulsiva da correspondência, em que a extensão do texto é comparável à magnitude do
sentimento, que não pode ser minimizado em poucas linhas.
Durante alguns poucos meses, a artista mantém intensa correspondência com Nickolas
Muray, ocasião em que a rapidez da resposta e o envio de novas missivas constituem-se em
regra. A necessidade de expressar-se move a pena com rapidez impressionante, dada a
necessidade da fala. A releitura das cartas indica a repetição do assunto e o interesse insaciável
pelas linhas traçadas pelo amado:
Caro Nick,
89
(...)
Quando recebi sua carta, dias atrás, fiquei sem saber o que fazer. Devo
admitir que não pude conter as lágrimas. Senti como se algo ficasse
preso na garganta – como se eu houvesse engolido o mundo inteiro.
Ainda não sei se me senti triste, enciumada ou zangada, mas a primeira
coisa que experimentei foi um sentimento de grande desamparo. Li sua
carta muitas vezes – vezes demais, acho – e estou me dando conta de
coisas que não percebi a princípio. Agora compreendo tudo; tudo está
claro. A única coisa que quero lhe dizer, de maneira mais sincera, é que
você merece o melhor, absolutamente o melhor na vida, porque é uma
das poucas pessoas neste mundo que é honesta consigo mesma. (IDEM,
2006, p. 102-103)66
A franqueza e clareza da artista impressionam. Temos a impressão que a carta da artista fala
alto, trata-se de discurso escrito, onde, inclusive, o inefável é citado. Ela discorre sobre os
sentimentos e também cita os afetos indescritíveis, que de tão complexos, não cabem nas linhas
da carta; De tão importantes, não podem ser condensados em palavras. Onde há tanto a se
externar e pouco a argumentar face às situações estabelecidas, sobra o silêncio:
Gostaria de dizer-lhe uma porção de coisas, mas, não quero deixá-lo
sem jeito. Espero que você entenda todos os meus votos sem palavras...
Quanto às cartas que lhe enviei, se elas o estiverem atrapalhando, por
favor, entregue-as a MAM para que ela as envie para mim. De qualquer
modo, não quero ser um fardo para você.(...) Pedir-lhe minhas cartas é
ridículo de minha parte, mas faço isso por você e não por mim.
Suponho que esses papéis não lhe interessem mais.
Enquanto eu escrevia essa carta, Rose telefonou e me disse que vocês já
se haviam casado. Não tenho nada a dizer sobre o que senti. Espero que
sejam muito, muito felizes.
Se tiver tempo, de quando em vez, por favor, escreva-me algumas
palavras, só para me dizer como está. Você fará isso...?
Obrigada de novo pela magnífica foto. Obrigada por sua última carta e
por todos os tesouros que você me deu.
Um abraço,
Frida.(IDEM, 2006, p. 103-104)
66
Vide ANEXO XVI
90
O texto supracitado é revelador, tanto pelo conteúdo, quanto pela repetição instalada na
produção das cartas da artista Frida Kahlo. Em breve período, ela escreve inúmeras cartas a
Nick, todas de singular importância, de modo que ela as requisita. Não há silencio ou vazio
entre a escrita das cartas e a “não resposta” das mesmas, o que podemos perscrutar é um
diálogo profícuo, em que o mútuo interesse alimenta o desejo de escrita e leitura das cartas
apaixonadas.
Frida classifica a carta como derradeira, pois, ainda que outras advenham, essa será a última
carta do ciclo apaixonado com Nick. Talvez outras possam ser escritas, contudo, remeterão a
outro tempo, interesses diversos e assuntos variados.
A lucidez da artista no desprendimento amoroso e na percepção da descontinuidade
impressionam. Frida entrega-se de corpo e alma às paixões, mas, percebe, com bastante astúcia,
quando o interesse é unilateral. Para uma alma visceral, não bastam os meio romances, os
abraços mal dados e as relações baseadas na aparência, a artista deseja correspondência na
escrita e, outrossim, nos afetos.
Assim como a carta escrita a Nickolas Muray, em 1939, em que o interdito está presente nas
linhas traçadas por Frida, a insuficiência das palavras – diante dos sentimentos anteriormente
expostos - encontra-se presente na carta escrita ao namorado da época do acidente, Alex, em
missiva escrita durante o ano de 1927:
15 de outubro de 1927
Meu Alex:
Penúltima carta! Você já sabe tudo o que eu poderia lhe dizer.
Fomos muito felizes todos os invernos, mas nunca como neste. A vida
está à nossa frente, é impossível explicar-lhe o que isto significa.
É provável que eu ainda esteja doente, mas, não sei. Em Coyoacán, as
noites me deslumbram como faziam em 1923, e o mar, um símbolo em
meu retrato, sintetiza minha vida.
Você não me esqueceu?
Seria quase injusto, não acha?
91
Sua Frieda67
.(IDEM, 2006, p. 39)
A artista classificou a correspondência como “penúltima carta”, talvez para deixar que o
destino reservasse ocasião para a escrita de uma outra – futura -- correspondência. A
interrupção da escrita, leitura e reenvio das cartas, coincide com o rompimento amoroso. Frida,
corajosamente, legitima o término do relacionamento, uma vez que o mesmo não se
sustentava mais - existia por um fio. E é justamente esse fio, tênue e frágil, que ela rompe, com
pena e tinta, deixando livre o amado.
O longo hiato entre Alex e Frida durou largos anos e somente foi interrompido muitos anos
depois, com a resposta da artista a uma missiva enviada pelo mesmo Alex, fato que constitui
exceção em sua obra escritural.
Aos 30 de junho de 1946, data da última carta endereçada a Alejandro Gómez Arias,
após um hiato de mais de 10 anos sem trocarem correspondências, Frida conta sobre uma das
grandes operações realizadas ao longo de sua existência. Na missiva existe um desenho de seu
corpo e dos dois grandes cortes sofridos, como uma forma dupla de externar o sofrimento e de
confirmá-lo. O desenho, presente no meio do manuscrito, sugere que a operação foi grave, que
não se trata de um exagero de mulher, mas, antes, de verdadeiro dilaceramento. Ela diz:
Não estou autorizada a escrever muito, mas esta é só para lhe dizer que
já passei pela the big operação. Faz três weeks que eles cortaram ossos e
mais ossos. [...] Nas first duas semanas, tive dores terríveis e fiquei em
prantos. A dor é tamanha que eu não a desejaria a ninguém. É muito
intensa e ruim. [...] Havia cinco vértebras lesionadas, mas agora elas
ficarão bem. O chato, no entanto, é que o osso leva muito tempo para
crescer e se acomodar, de modo que ainda ficarei seis semanas de cama
até receber alta do hospital, e até poder fugir desta horrível city e voltar
67
Frida Kahlo, nascida Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón, aos 6 de julho de 1907, terceira filha de
Matilde Calderón González, mexicana, e de Wilhelm Kahlo, alemão, em Coyoacán, adotou o nome de Frida na
adolescência e assinou suas telas e textos com a nova grafia, por ela escolhida.
92
para minha amada Coyoacán. Como você está? Please escreva-me e me
mande one livro. Please don’t forget me. Como vai a sua mãe? Alex,
não me deixe sozinha neste hospital nojento; escreva-me. Cristi está
realmente chateada e ambas estamos morrendo de calor (Apud Zamora,
2006, p. 130-131).68
Frida está em Nova York e as marcas da cidade transparecem na escrita, bem como sua
solidão. Cristi não parece ser boa companhia e o longo período de internação a aborrecem. Ela
implora por cartas, notícias, interação, ou uma relação – mesmo que seja meramente epistolar.
Necessita de estímulos para sobreviver, uma vez que está presa ao leito, afastada de sua terra
natal e de Diego. Cartas – talvez sua única alternativa de contato com o mundo exterior, forma
eficaz de comunicação com o outro e consigo.
Nova York, 30 de junho de 1946
Alex querido,
Não estou autorizada a escrever muito, mas esta é só para dizer que já
passei pela the big operação. (...)
Como você está? Please escreva-me e me mande one livro. Please don’t
forget me. Como vai sua mãe? Alex, não me deixe sozinha neste
hospital nojento; escreva-me. (...) Que há de novo no México, que tem
acontecido com minha gente daí?
Conte-me coisas de todo o mundo e, especialmente, de você.
Sua F
Mando-lhe muito afeto e muitos beijos.
Recebi sua carta. Deixou-me muito feliz! Não se esqueça de
mim.(IDEM, 2006, p. 130-131)69
Entre os idos 1927 e os vindos 1946 muitos eventos aconteceram na vida de Frida Kahlo,
que a transmutaram interior e exteriormente. No entanto, o modo de relacionar-se através das
cartas, constitui-se evento presente em todas as etapas da vida da artista. A escrita do diário, o
envio de cartas - unido ao tão esperado recebimento das respostas - e a pintura das telas foram
68
A correspondência encontra-se reproduzida no ANEXO II 69
IDEM
93
parte indissolúveis de sua vida, plena de tintas e palavras.
Enfim, ainda que a resposta às cartas recebidas seja exceção, Frida encerra a correspondência
de modo habitual, como os reiterados apelos de escrita para que venham sempre novas cartas,
que proporcionem às correspondências enviadas, sentido e completude. O desejo primeiro é o
de resposta às cartas escritas, para que a voz emitida encontre eco nas respostas dos
interlocutores: escrita e escuta.
4.1. A (DES)UNIÃO FAMILIAR
Pintei o meu pai, Wilhelm Kahlo, de origem
húngaro-germana, fotógrafo artístico de
profissão, de caráter generoso, inteligente e
delicado, corajoso porque sofreu de epilepsia
durante sessenta anos e nunca deixou de
trabalhar, nem de lutar contra Hitler, com
devoção. A sua filha Frida Kahlo. (Frida
Kahlo)70
As longas cartas, escritas por Frida Kahlo no decorrer de sua existência, em inúmeras
ocasiões foram produções sobre e para sua família, precipuamente nos períodos em que esteve
morando em outro país ou nos exílios forçosos, devido às longas internações71
.
70
- No ano de 1951, Frida Kahlo pinta o autorretrato de seu pai, Wilhelm Kahlo, intitulado: “Retrato de meu pai”.
Na parte inferior do quadro, a artista escreve a citada dedicatória, em uma espécie de bandeirola. Em muitas de
suas telas a escrita se faz presente, como forma de ratificação e explicação da pintura. Frida externou grande
admiração pelo pai através de inscrições no diário, citações em cartas e a própria pintura da tela. 71
Segundo Carlos Fuentes, na orelha do livro: Diário de Frida Kahlo: “Frida foi submetida a mais de 35 operações
para corrigir as seqüelas de um acidente que sofreu aos dezoito anos de idade”. Texto original: “...más de treinta y
cinco operaciones a las que tuvo que someterse para intentar corregir las seculeas de un accidente que sufrió a los
dieciocho años.” Carlos Fuentes. (KAHLO, 2010)
94
Na escrita de Frida entrevemos a necessidade de externar sentimentos sobre sua família,
dialogar com os interlocutores escolhidos sobre as aflições que a atormentavam.
Sentimentos contraditórios unem Frida aos familiares e despertam na artista,
majoritariamente, sentimentos de incompreensão, como podemos depreender da carta escrita a
Alejandro Gomez Arias, em 25 de abril de 1927:
Ontem estive muito doente e muito triste; você não imagina o nível de
desespero a que se pode chegar estando doente assim. Sinto um mal
estar pavoroso, que não consigo descrever, e, além disso, às vezes sinto
uma dor que nada é capaz de eliminar. (...)
[O problema é que] ninguém aqui em casa acredita que esteja realmente
mal, porque nem ao menos consigo dizê-lo, já que mamãe, que é a
única que se preocupa um pouquinho [comigo], fica doente. E eles
dizem que a culpa é minha, que sou muito imprudente. Assim, ninguém
sofre, se desespera e tudo mais, a não ser eu. Não posso escrever muito,
porque mal consigo me curvar; não posso andar, porque minha perna
dói terrivelmente. (...)
Nada me diverte; não tenho uma única distração – apenas tristezas – e
todas as pessoas que me visitam me chateiam muito. [...] Não tenho
como lhe descrever o meu desespero.
(Apud ZAMORA, Frida. 2006, p. 30)72
Frida sente-se só em meio a dor e externa o sentimento de falta de compreensão por parte
de seus familiares. Embora com inúmeros ossos quebrados e acamada, ressente-se do fato das
irmãs não valorizarem sua dor, já que antes, existe o ensejo de apagamento do sofrimento.
A solidão de Frida fica escancarada no momento do acidente. É praticamente sozinha que a
artista se recompõe e consegue juntar, ainda que não definitivamente, os tantos ossos
quebrados. É essa solidão, anunciada com o choque violento entre o bonde e o ônibus, que a irá
acompanhar, indefinidamente.
A desimportância com as graves conseqüências do acidente, fizeram-se notar no exato
72
Vide ANEXO XVII
95
momento em que Frida é socorrida. Ninguém imaginou que ela estivesse completamente
estilhaçada interiormente e sua família, que supõem-se, deveria dar todo carinho, apoio e
sustentação, no longo período da regeneração, ressente-se do ocorrido e somente Matilde, a
ovelha desgarrada do rebanho73
, tem coragem de permanecer ao lado da artista, auxiliando-lhe
na recuperação:
Foi assim que perdi minha virgindade. Meus rins estavam danificados,
eu não podia mais urinar, porém o que mais me fazia sofrer era a coluna
vertebral. Ninguém parecia se preocupar. Além disso, não se faziam
radiografias. Sentei-me como pude e pedi ao pessoal da Cruz Vermelha
para chamar minha família. Matilde soube da notícia pelos jornais e foi
a primeira a ir me ver; ela não me abandonou durante três meses, dia e
noite ao meu lado. Minha mãe não se manifestou durante um mês, por
causa do choque, e não foi me ver. Quando minha irmã Adriana soube
da notícia desmaiou. E meu pai ficou tão triste que caiu doente, e eu só
pude vê-lo vinte dias depois.
(Le CLEZIO, 2010, p. 53)
Embora alquebrada, quem desaba são os familiares de Frida Kahlo. Ninguém, à exceção de
Matilde, mostra-se forte para ficar ao seu lado e o grande sofrimento, ao invés de aproximar,
afasta suas irmãs e pais. O porquê de eles não permanecerem ao seu lado foi, certamente,
questão refletida pela artista. Foram muitos dias à espera do encontro com os familiares. Dias
de dor intensa.
A dor e a solidão já se tinham feito presentes na vida de Frida, quando a menina, aos 6 anos
de idade, foi acometida por uma poliomielite, que a deixou de cama por muitas semanas.
O sofrimento em sua vida é cíclico e gradual. Desde pequena, ela experimenta a dor e a
solidão, reiteradas vezes, por motivos diversos. O que nos causa espanto é a capacidade de
73
- Matilda deixou a casa familiar na juventude, para nunca mais voltar. “Com 7 anos, Frida é cúmplice de sua
fuga e sente tamanha culpa por isso que passará grande parte da juventude tentando reencontrá-la. Matilda só
receberá o perdão da família muito tempo depois, quando Frida estiver com 20 anos – e ela mesma, com 27”. (Le
CLÉZIO, 2010, p. 49)
96
suportar as adversidades, ainda que completamente só. Nesse sentido, compreendemos mais a
importâncias das telas e dos papéis. Em muitos momentos, são eles a companhia possível. O
próprio diário torna-se interlocutor, assim como são interlocutores os correspondentes. Logo,
interpretamos melhor a ansiedade pelas respostas das cartas enviadas, a compulsão pela escrita
e pintura.
A figura importante nos cuidados relacionados à poliomielite é o pai, que:
(...) tomou conta dela durante os nove meses de convalescença. A sua
perna direita ficou muito magra e o pé direito atrofiado. Apesar de o pai
se certificar de que ela fazia regularmente exercícios de fisioterapia para
fortalecer os músculos debilitados, a perna e o pé ficaram deformados
para sempre. (KETTENMANN, 2006, p. 09-10)
A diferença, provocada pela poliomielite, será sentida por toda a vida. Na adolescência
Frida esconderá as pernas dentro das calças e, mais tarde, disfarçará a dessemelhança com as
longas e coloridas saias mexicanas. Frida registrará os cuidados paternos nas páginas do diário,
em uma seção autobiográfica de seis páginas, em que traçará o esquema de sua vida:
“Minha infância foi maravilhosa porque ainda que meu pai fosse um
enfermo, (...) foi um imenso exemplo para mim de ternura e trabalho
(...) e sobretudo de compreensão para todos os meus problemas”.74
(KAHLO, 2010, p. 282)
O pai da artista, citado e retratado de formas diversas, ocupa lugar de afeto e carinho, de
grande incentivador em sua vida. Wilhelm Kahlo: fotógrafo, trabalhador, leitor, preencheu o
74
Texto extraído do Diário de Frida Kahlo, onde se lê no original: “Mi niñez fué maravillosa porque aunque mi
padre era un enfermo (...) fué un inmenso ejemplo para mi de ternura de trabajo e sobre todo de compreension para
todos mis problemas.” Livre tradução minha.
97
lugar do afeto, ao contrário da mãe, quase nunca citada nas cartas e diário, algumas vezes
pintada, que ocupou o lugar da ausência e do desamparo.
4.2. MÃE MARTE OU A MÁSCARA DE FERRO
Pensaram que eu era uma surrealista,
mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a
minha própria realidade.75
(Frida Kahlo)
No que é relativo às telas, observa-se a premissa que norteia as produções escriturais de
Frida Kahlo: toda a pintura da artista é assumidamente autobiográfica – ela escreve sobre si
mesma e pinta-se. Assim como a escrita torna-se uma necessidade na vida da artista, a pintura
transmuta-se em parte indissolúvel de sua vida.
Ao perscrutarmos a obra pictural da artista, percebemos que além da autobiografia, a
memória exerce importante fator na construção das telas, uma vez que ela, primeiramente,
amadurece os acontecimentos, para somente depois, pintá-los, demoradamente, como se a
pintura demonstrasse ser o lenitivo e a razão de ser, segundo suas próprias palavras:
Meus quadros são bem pintados, não com rapidez, mas pacientemente.
Minha pintura traz em si a mensagem da dor. Creio que ao menos
algumas pessoas se interessem por ela. [...] Pintar completou minha
vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas, que teriam
preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo
isso (Apud ZAMORA, 2006, p. 157).
75
(Apud KETTENMANN, 2006, p. 48)
98
As telas de Frida representam sua vida. Toda a produção da artista a reflete. Penas e pincéis
a retratam, de modo singular, segundo suas próprias lentes76
. Está no corpo e dentro de si a
fonte criadora e a inspiração, segundo Carlos Fuentes (2010): “Sua realidade é o seu próprio
rosto, o templo de seu corpo roto, a alma que se vai sobrando”.77
E é sobre isso que Frida se
debruça e pinta.
Ao analisarmos as obras da artista sobre os pais, veremos uma grande distorção na
representação do pai e da mãe. Em relação ao primeiro, sobram palavras de afeto e carinho,
sobejam elogios, inclusive através do ex voto inscrito no autorretrato do pai, datado de 1951.
Em relação à progenitora, a leitura da tela, de tão subjetiva, evoca importante elemento
presente nas pinturas de Frida Kahlo: a memória. No caso da pintura, a memória acionada para
a construção do quadro foi oriunda da história pessoal da artista, à semelhança da anamnese [do
grego ana, trazer de novo e mnesis, memória], em que os profissionais da saúde, a partir da
entrevista, coletam informações importantes sobre o paciente, ela relembra, a partir dos dados
coletados - espontaneamente, provavelmente durante longo período da infância - sua história
pessoal e pinta o quadro da lembrança, a partir do que imaginou ser a representação da sua
amamentação. O ato de recordar o que não pode ser lembrado, nos possibilita a reflexão sobre
as palavras de Susan Sontag, na obra Sob o signo de Saturno, acerca de Walter Benjamin, na
qual existe a análise de que, para o autor, a história é o que renasce do desmoronamento para
mostrar um passado não tal qual foi, mas que poderia ter sido. O passado como um sonho de
possibilidades. Consoante Sontag (1986), “a memória, encenação do passado, transforma o
76
Segundo Carlos Fuentes: “No es una pintora de sueños, insiste ella misma, sino la pintora de su própria
realidad, pintándose a si misma, porque se encuentra sola y porque es el tema que mejor conece.” (KAHLO, 2010,
p.14). Livre tradução minha: “Não é uma pintora de sonhos, insiste ela mesma, senão a pintora de sua própria
realidade, pintando-se a si mesma, porque se encontra só e porque é o tema que melhor conhece”. 77
Texto original em espanhol: “Su realidad es su próprio rostro, el templo de su cuerpo roto, el alma que le va
quedando”. (KAHLO, 2010, p. 14)
99
fluxo dos eventos em quadros. Benjamin não pretende recuperar seu passado, mas compreendê-
lo: condensá-lo em suas formas espaciais, suas estruturas premonitórias.” É justamente sobre a
compreensão do passado, transmutado em quadros, que Frida se debruça.
Partiremos da obra Minha Ama e Eu, de 1937, para refletirmos sobre como a artista se
retrata e, ao fazê-lo, como evoca as lembranças da mais tenra idade, em que o acesso
consciente à memória é impossível. Essa obra, representativa de sua infância, nos indica o olhar
de Frida sobre a construção do próprio processo de amamentação. Na presente tela, como em
muitas de suas obras, percebemos a realidade deslocada do locus esperado e realista.
Interessante atentarmos para o fato de que o inesperado sobrevém, como no caso da tela abaixo,
Mi nana y yo (1937), na qual retrata o período da amamentação:
100
Mi nana y yo, 1937
Óleo sobre metal, 30.5x34.7cm
Coleção de Dolores Olmedo, Cidade do México, México
Se o estranhamento principia com paisagem, não causa menor transtorno o corpo
desnudo da ama-de-leite e o rosto maduro de Frida no corpo de bebê, através do qual a pintora
indica a releitura do passado a partir do presente – é na idade adulta que a tela é pintada. Ela e a
ama-de-leite encontram-se sozinhas numa paisagem vegetal de cores pouco vibrantes, a qual se
desdobra nas ramificações e flores do seio da ama, como fora esta não mais que uma planta da
terra, um ser terroso e natural, a oferecer-lhe a seiva, o leite. Encimando a tela, um céu nublado
acentua o aspecto “natureza” da ama, na medida em que se estabelece uma analogia entre os
101
pingos de chuva e os de leite no seio direita da ama. Nada distingue a ama da paisagem, ao
contrário, podemos senti-la quase como parte da vegetação, tal a sua falta de expressão e
movimentos. O estranhamento, presente na tela, nos remete às palavras de Carlos Fuentes
sobre a maneira peculiar com que constrói as telas:
Como Rembrant, como Van Gogh, Kahlo nos conta sua biografia com
seus autorretratos. As etapas da paixão, os preâmbulos da inocência, os
atos do sofrimento e, finalmente, a catarsis do conhecimento, são tão
evidentes na artista mexicana como os autorretratos holandeses. Porém
a aura do estranhamento, do deslocamento, da distorção da cena e dos
objetos, assim como a irracionalidade espontânea de tudo isso, também
a fizeram assimilar, em ocasiões, o surrealismo.(KAHLO, 2010, p.14)78
A máscara de ferro da ama – a qual remete ao que é duro, inflexível e não cede, e também
à qualidade do que é cruel ou desumano – representa a completa falta de interação entre Frida e
sua ama. Não existe sequer o vislumbre de uma troca de olhares, de um gesto de afeto ou
delicadeza, apenas a entrega do seio a ser sugado. De acordo com Kettenmann, a ama-de-leite
fez-se necessária na vida da pintora mexicana, uma vez que a mãe não pôde amamentá-la:
A mãe de Frida Kahlo não pôde amamentá-la, pois a sua irmã Cristina
nasceu apenas onze meses depois dela. Foi, assim, amamentada por
uma ama. O relacionamento que aqui vemos parece ser distante e frio,
reduzido ao processo prático de amamentação.[...] A artista considerou-
o um de seus trabalhos mais poderosos. (KETTENMANN, 2006, p. 47.)
O fato de recusar-se ao aleitamento, ainda que involuntariamente, comporta significações
78 Texto original em espanhol: Como Rembrant, como Van Gogh, Kahlo nos cuenta su biografia con sus
autorretratos. Las etapas de la pasión, los preámbulos de la inocência, los actos del sufrimiento y, finalmente, la
catarsis del conocimiento, son tan evidentes en la artista mexicana como el los autorretratistas holandeses. Pero el
aura del extrañamiento, del desplazimento, de la dislocación de la escena y de los objetos, así como la
irracionalidad espontánea de todo ello, tambíen la han asimilado, en ocasiones, al surrealismo.(KAHLO, 2010, p.
14) Livre tradução minha.
102
múltiplas, dentre as quais a negação da própria feminilidade. Manguel, ao discorrer sobre a
simbologia do seio materno e dos profundos significados da amamentação, nos remete às
amazonas, que, voluntariamente, abdicaram do seio: “O seio recusado denota a renúncia da
maternidade: as amazonas amputam o seio direito a fim de poderem puxar seu arco, disparar as
flechas com mais eficácia e tornarem-se melhores guerreiras, trocando o papel de Vênus pelo
de Marte” (MANGUEL, 2001, p.66). A simbologia do seio está de tal forma associada ao
aleitamento que a sua renúncia seria a metáfora da renúncia tanto da feminilidade quanto da
maternidade: não aleitar significaria não ser mãe em sua plenitude. A troca do papel de Vênus
pelo de Marte expressariam a troca do feminino pelo masculino, papel caracterizado pela não-
amamentação e pela guerra.
Ao retratar a ama-de-leite férrea e fria na ausência de olhos e afeto, Frida parece rubricar
a ausência do leite materno como sintoma da distância da própria mãe. Impossível não
depreender daí o ressentimento da pintora em relação à figura materna que comportava antes
traços de Marte do que de Vênus, como revela Kettenmann:
Apesar de o bebê estar a ser amamentado, a ternura e o carinho não
constam da ementa. “Já que a ama de Kahlo foi contratada apenas para
amamentar, ela não deve ter tido qualquer relação pessoal com o bebê.
Assim, é provável que o processo de amamentação decorresse
exactamente como Kahlo o pintou: sem qualquer emoção.” Esta falta de
laços emocionais ajuda, sem dúvida a explicar os sentimentos ambíguos
de Frida pela mãe, a qual descreveu como muito bondosa, activa e
inteligente, mas também como calculista, cruel e fanaticamente
religiosa. (KETTENMANN, 2006, p. 9)
Nesse caso a figura materna se dá em ausência ou distância. Trata-se de uma personagem
incômoda, perturbadora, adversa. O sentimento de revolta contra a figura materna, seja devido
à distância ou ao abandono, está presente tanto nas telas de Frida quanto nos escritos,
demonstrando uma relação conturbada entre mãe e filha. A crueza do parto e a amamentação
103
(mecânica porque contratual) indicam o quanto a distância e/ou a ausência da mãe marcaram a
psyché e a obra de Frida. Tal qual os hábitos e heranças culturais, existe uma carga afetiva
transmitida e assimilada de mãe para filho. No caso da artista, o ressentimento parece nortear a
representação materna.
Ao discorrer sobre Frida Kahlo, Carlos Fuentes nos apresenta interessante questão acerca da
artista e o modo de inscrever a cor local nas telas. Segundo Fuentes (2010): “Kahlo se inscreve
nesta última corrente do surrealismo, a da capacidade de convocar todo um universo a partir
dos fragmentos de seu próprio ser e das persistências de sua própria cultura”.79
Juntando
pedaços de seu interior, das lembranças esparsas e das memórias do que poderia ter sido a
infância, a artista cria o cenário da amamentação. Inscreve, na tela, a cultura das índias, das
amas de leite. Registra o México descalço na obra.
A tela é rica em metáforas e ambigüidades, próprias das produções de Frida. Seu quadro,
como nos diz Sartre (1948), no capítulo Porque se escreve?, o qual, por extensão, poderíamos
transmutar a indagação em Porque que pinta?, nos faz refletir sobre as entrelinhas da tela, uma
vez que : “... a obra nunca se limita ao objeto pintado, esculpido ou narrado; assim como só se
distinguem as coisas sobre o fundo do mundo, também os objetos representados pela arte
aparecem sobre o fundo do universo.”80
O fundo do universo da tela de Frida é o seu passado,
sua história particular e, ao mesmo tempo, familiar. Seria a índia a representação não só da
ama-de-leite mas, também das origens mestiças da artista - a ascendência materna? A ama nos
evoca, outrossim, soma significativa da população de seu país, o outro México, consoante
Carlos Fuentes:
79
Original em espanhol: Kahlo se inscribe en esta última corriente del surrealismo, la de la capacidad de
convocar todo un universo a partir de los fragmentos de su próprio ser y de las persistencias de su propria cultura.
(KAHLO, 2010, p. 15) Livre tradução minha. 80
- (SARTRE, 1948, p. 101)
104
Somos duas nações. Sempre dois Méxicos, o México de papel
dourado e o México da terra descalça. Quando o povo se levantou em
1910, os deserdados cavalgaram de norte a sul e de sul a norte,
comunicando um país asilado, oferecendo a todos os presentes
invisíveis da linguagem, a cor, a música e a arte popular.(KAHLO,
2010, p.09) Livre tradução minha.81
O leite materno, escorrendo do seio da ama-de-leite, constitui elemento simbólico pela
carga de sentidos que abrange, como nos diz Alberto Manguel em Lendo imagens: “... a
imagem de uma deusa que amamenta é antiga e universal: Ishtar na Mesopotâmia, Dewaki
amamentando Krishna na Índia, Ísis no Egito e muitas outras” (MANGUEL, 2001, p.63). Tais
figuras arquetípicas se oferecem como símbolo desde a antiguidade, rubricando a relevância do
ato e do período da amamentação e desdobrando-se em acepções que permeiam a cultura e o
imaginário. Observemos, por exemplo, a estatueta egípcia de Ísis amamentando Hórus:
81
- Texto original em espanhol: Somos dos naciones. Siempre dos Méxicos, el México de papel dorado, y el México de tierra
descalza. Cuando el pueblo se levanto en 1910, los desheredados cabalgaran de norte a sur y de sur a norte, comunicando a un
país aislado, ofereciéndonos a todos los regalos invisibles del lenguaje, el color, la música, el arte popular.(KAHLO, 2010,
p.09)
105
Império Médio, 2040-1652 a.C.
De acordo com a mitologia egípcia, Ísis descobriu e reuniu os pedaços do corpo de seu
marido e irmão Osíris, despedaçado pelo Seth. Também protegeu o filho Hórus da fúria do tio,
até que o deus do céu crescesse e pudesse vingar o pai.[...] Ísis e Hórus representam o
relacionamento perfeito entre mãe e filho. Pelos cuidados dispensados ao filho, Ísis era
considerada a deusa do amor e da proteção. Neste sentido, as representações estatuárias e
pictóricas da amamentação simbolizam, para além do ato em si, o amor e a proteção dedicados
ao filho. Muito mais que alimento, o leite representa a fonte e o penhor da vida.
Também a mitologia grega apresenta outra importante narrativa acerca da amamentação.
Trata-se de Hera e Hércules – embora, neste caso, a amamentação, além de significar alimento
e vigor, represente o caráter maior da maternidade, pois, mesmo que contra a sua vontade,
amamentou o filho da mortal Alcmena. Ainda que ciumenta e agressiva, ao aleitar Hércules,
Hera o adota, pois quem oferece o leite torna-se mãe daquele que o recebe, como ressalta
Manguel:
O seio estabelece um vínculo de maternidade: oferecer o seio é um dos gestos por
meio dos quais um filho é adotado. Por exemplo, na mitologia grega, romana e
etrusca, Juno (Hera ou Uni) adota Hércules (Heracles), dando-lhe o leite do seu
peito; a Via Láctea formou-se quando ela puxou o mamilo dos lábios sôfregos do
herói e esguichou leite no céu. (MANGUEL,2001, p. 65.)
O próprio mito da criação do universo está associado ao leite, pois este representa mais
que o alimento, mas a própria origem da vida, a fonte mantenedora do homem e do mundo. Ao
dar o leite ao outro, que não era o seu filho, o laço da maternidade fez-se presente, e com ele,
produziu-se a criação da Via Láctea. Outra imagem relativa à amamentação, repleta de
significados e numerosa em representações, é a imagem de Maria amamentando o Menino
106
Jesus, tal como esta que reproduzimos abaixo, atribuída ao pintor flamenco Robert Campin
(1378-1444).
A Virgem e o Menino Jesus diante da janela, [s.d.]
Óleo sobre tecido, 63.5x49cm
107
National Gallery, Londes, Reino Unido
A pintura encerra a metáfora da criação do próprio Deus que encarnou e se fez homem.
Aqui, uma vez mais, a amamentação ultrapassa o mero sentido nutricional para simbolizar o
alimento espiritual das palavras, necessário ao desenvolvimento do indivíduo, como comprova
a Bíblia ao lado de Maria. No contexto da pintura, leite e verbum são análogos, alimentos do
corpo e da alma, respectivamente, como diz a Bíblia. A priori, a preocupação da mãe se
restringe à nutrição, uma vez que o bebê não tem maturação para outra fonte de alimentação
que não seja o leite. O alimento o preparará para a vida, assim como fortalecerá os vínculos
entre mãe e filho.
A negação do leite materno transmuta-se, na tela de Frida, à negação do amor e do
aconchego, que se fará presente ao longo da existência. Ao rememorar a poliomielite e as duras
brincadeiras de infância82
a que foi exposta, ela se lembrará, sempre, da ternura paterna.
O distanciamento da mãe a perseguirá, mesmo durante o período de convalescência do
grave acidente, quando a mãe não vai ao Hospital da Cruz Vermelha para visitá-la. Diante do
sofrimento, Matilde desmorona, à semelhança do ocorrido no período de amamentação de Frida
e nascimento de Cristina:
É Matilde Calderón, mãe de Frida, quem se encarrega da subsistência
da família, vendendo seus móveis e objetos, alugando quartos para
solteiros de passagem, economizando bagatelas. Essa mãe, (...) parece
ter ocupado pouco espaço na vida afetiva de Frida: piedosa demais, até
a carolice, ao mesmo tempo dura e apagada, ela exerce o papel feio ao
lado de Guilhermo, tão artista, tão frágil, tão irrealista. [...] Como
Diego, ela conheceu o abandono materno na primeira infância: Matilde
Calderón, esgotada pelas sucessivas gestações, quando Cristina nasce
(um ano após Frida), mergulha na depressão e não pode mais cuidar dos
dois bebês (Le CLÉZIO, 2010, p. 46-47)
82
- Devido às seqüelas da poliomielite, Frida foi apelidada de “Frida perna de pau”, como salienta Kettenmann:
“Tendo-lhe sido posta a alcunha de Frida da perna de pau na infância – algo que a magoou profundamente – ela
veio mais tarde a ser o centro das atenções com suas vestes exóticas. (KETTENMANN, 2006, p. 10)
108
O mesmo choque que fez com que a mãe de Frida passasse por uma longa depressão e
não pudesse mais cuidar das duas filhas – Frida e Cristina – seguiu-se ao grave acidente. O
abandono foi a única forma encontrada por sua mãe para tornar possível a convivência com a
dor.
A falta de afeto, presente na representação da amamentação, é ainda mais fortemente
sentida na releitura do parto, que de tão fria, parece tratar-se de morte e não de nascimento,
como observamos na obra de Frida Kahlo, a qual debruça-se sobre a questão de sua gênese e à
figura materna. Observemos, a tela Mi nacimiento (1932):
Mi nacimiento, 1932
109
Óleo sobre metal, 30.5x35cm
Coleção privada
Nesta releitura de seu próprio nascimento, a crueza da representação frontal do parto no
cenário do quarto pobre em mobília e ornamentos. Além das paredes azuis acinzentadas e do
assoalho marrom, apenas a cama e um quadro são vistos, talvez a partir do parapeito da janela.
Trata-se não apenas da figuração de um importante acontecimento da vida de Frida, mas
também, segundo KETTENMANNN (2006, p.38), de “uma referência à morte da sua própria
mãe quando ela estava a trabalhar neste quadro”, na medida em que esta é representada com a
cabeça coberta por um lençol. Embora o título, temos a imagem da morte, como se o corpo,
involuntariamente, expelisse um outro ser. A cabeça coberta, como em sinal de luto, destaca a
outra cabeça a despontar para a nova vida, a cabeça de um bebê amadurecido, num claro sinal
da artista para a releitura dos eventos pretéritos.
O estopim que faz acender a memória de Frida nos é incerto. Tal fato, por semelhança
com o desabrochar das reminiscências, nos remete ao texto de Flávia Trocoli (2010), “Entre
quedas e buracos: a contingência, o não-todo e o não-idêntico na escrita de Ruth Kluger”, em
que existe a reflexão da rememoração do passado da escritora Ruth Kluger, a partir da
iminência da morte. Tal qual a escritora, a artista, a partir dos eventos do presente, teve acesso
às lembranças da infância, ainda que construídas, uma vez que não seria possível a lembrança
do parto, mas, tão somente, a construção do que teria sido o seu nascimento:
Tal gesto e tais movimentos colocam em primeiro plano a importância
do presente na rememoração do passado. Não se trata do lembrar como
um fetiche ou como fonte de autoconhecimento. Muito longe disso.
Lembrar o passado, a partir da especificidade do presente, é sobretudo,
poder neste intervir. (TROCOLI, 2010, p. 457)
O quadro acima faz parte de uma série de quadros em que a pintora, encorajada por Diego
110
Rivera (1886-1957), pintou sobre si mesma, retratando não o fato em si, mas a impressão que o
mesmo lhe causava já na idade adulta. O importante para Frida não era a cópia fiel dos
acontecimentos, mas o sentido dos acontecimentos sob o filtro do tempo, como afirma
Kettenmann:
...o realismo da vida real é evitado, de uma forma geral, na composição.
Os objetos são extraídos do seu habitar normal e integrados numa nova
combinação. Para a artista, é mais importante reproduzir o seu estado
emocional numa destilação da realidade que ela experimentara, do que
registrar uma situação real com precisão fotográfica. (KETTENMANN,
2006, p. 35.)
Frida desloca, constrói, intervém em suas memórias. Cria o cenário pretérito partindo dos
sentimentos presentes. Seria possível representar a mãe, que manteve-se tão afastada durante a
vida, de outra forma? Existe possibilidade de se registrar a distância e o abandono? A artista
inscreve, registra através da pintura, os sentimentos em relação a mãe, de forma completamente
diversa da imagem do pai. Ao representar o pai, o autorretrato não se faz suficiente. A escrita
faz-se necessária para Frida. É forçoso ratificar a pintura, registrar o carinho, escrever na tela e
no diário, quando faz os registros da infância, já na idade adulta. No caso da mãe, a pintura da
tela assume o status de representação possível.
Representar-se, para Frida, mais que arte, era sobrevivência. Não havia outra forma possível
de conviver com uma dor aguda, que a acompanhou até a morte. Não há como desvencilhar-se
de um dilaceramento constante. Inexistem formas de se combater a dor. Frida demonstrou
através de suas obras, como, apesar das dores, as produções fizeram-se possíveis. Transformar
as experiências em arte, todas elas. Esse foi o ofício de Frida. Retratar a não amamentação. O
abandono. Tudo a partir de suas próprias experiências. A artista além das tintas, penas e
pinceis, usou, sobremaneira, a dor como elemento importante das produções, muito
111
provavelmente pelo fato de não conseguir desvencilhar-se dele. Consoante com aquilo que
Fuentes afirma com justeza:
Frida Kahlo, como nenhum outro artista de nosso século torturado,
traduziu a dor em arte. Sofreu trinta e duas operações entre o dia de seu
acidente e o dia da sua morte. Sua biografia consiste em vinte e nove
anos de dor constante. A partir de 1944 se vê obrigada a usar oito
coletes distintos. Em 1953 sofreu a amputação de uma perna
gangrenada. (KAHLO, 2010, p. 13)83
Finalmente, o corpo martirizado e mutilado de Frida Kahlo, tantas vezes retratado e
exposto em suas agruras físicas e psíquicas, liberta-se, como nos salienta Carlos Fuentes: “O
corpo é a tumba que nos aprisionada como a concha que aprisiona a ostra”. (KAHLO, 2010, p.
13)84
. Aprisionado ao corpo e às dores, presa ao leito e aos coletes, condenada a grandes doses
de sofrimento, a artista somente encontra libertação das dores físicas com a morte.
83
Frida Kahlo, como ningún outro artista de nuestro siglo torturado, tradujo el dolor al arte. Sufrió treinta y dos
operaciones entre el dia de su accidente y el de su muerte. Su biografia consiste en veintenueve años de dolor
constante. A partir de 1944, se ve obligada a usar ocho distintos corsés. En 1953, sufrió la amputación de una
pierna gangrenada. Las secreciones de su espalda herida la hacen olerse a si misma como si fuese “un perro
muerto”. La cuelgan de la cabeza, desnuda, para fortalecer su columna. Pierde a sus fetos en lagos de sangue. (...)
Es el San Sebastián mexicano, atravesado de flechas. (KAHLO, 2010, p. 13)83
84 Versão original: “El cuerpo es la tumba que nos aprisiona igual que la conche encierra a la ostra”. (KAHLO,
2010, p. 13) Livre tradução minha.
112
5. CONCLUSÃO:
Telas, pincéis, tintas, papel e pena: essas foram as armas utilizadas por Frida Kahlo para
conviver com a dor, que a acompanhou durante grande parte da sua vida e faz-se companhia
mais freqüente após o acidente sofrido aos 17 de setembro de 1925, o qual a deixou
completamente dilacerada. Justamente no período da convalescença, quando a imobilidade
fez-se regra e a solidão afigurou-se necessária – uma vez que os longos períodos de intervenção
e procedimentos exigiam que a artista estivesse só - que a artista começa a pintar. A pintura
surge no momento de grande aflição, por ocasião do repouso forçado, como forma de ocupação
no período de impossibilidades, segundo as palavras da artista:
O meu pai teve, durante muitos anos, uma caixa com tintas de óleo e
pincéis dentro de uma jarra muito antiga e uma paleta a um conto do
seu estúdio fotográfico. Ele gostava de pintar e de desenhar paisagens
em Coyoacán junto ao rio e por vezes copiava cromolitografias. Desde
pequenina, como diz o ditado, eu não tirava os olhos daquela caixa de
tintas. Não sabia explicar o porquê. Como ia estar presa a cama durante
muito tempo, aproveitei a oportunidade para pedir a caixa a meu pai.
(...) Minha mãe pediu a um carpinteiro que me fizesse um cavalete de
pintor, (...) pois eu não podia me sentar por causa do gesso. E assim
comecei a pintar o meu primeiro quadro: o retrato de um amigo. (Apud
KETTENMANN, 2006. p.18)
Ao observar-se repetidas vezes em um cenário imóvel e, paradoxalmente, repleto de solidão,
a artista começa a pintar-se, construindo telas assumidamente autobiográficas, pois a
representação para Frida significa sobrevivência, já que é a única forma de convívio e
enfrentamento dos lasceramentos e da solidão. Assim como as telas, também as palavras
representam alternativas de contato com o mundo e mostram-se essenciais em sua vida, tanto
como forma de esquadrinhamento da dor, como possibilidade de convívio consigo – a artista
113
foi escritora proficiente de cartas, endereçadas, reiteradas vezes para um número reduzido de
interlocutores, aos quais ela escrevia longas cartas, com bastante interesse na resposta.
Contrariamente, em raríssimas ocasiões, a artista respondia às cartas recebidas, demonstrando
intensa necessidade de falar e ouvir a resposta dos seus questionamentos.
A imprescindibilidade da escrita fica patente na escrita do Diário íntimo, construído na
última década de vida, com grande quantidade de cores, pinturas, poemas, escritos e cartas -
endereçadas para o homem que foi companheiro em grande parte da existência e representou
sofrimento e amor. O diário, nas palavras de Kettenmann (2006): “é uma das chaves mais
importantes para entender os seus sentimentos e pensamentos (...) Focou temas como a
sexualidade e a fertilidade, a magia e o exoterismo, e o seu sofrimento físico e psíquico”. No
diário Frida mostra-se sem retoques, pois expressa autenticamente os sentimentos através das
palavras e pintura - principalmente as tintas, parte indissolúvel do diário - consoante Sarah
Lowe, em ensaio contido no prefácio do Diário de Frida Kahlo (2010): “Quase todas as
ilustrações do Diário foram efetuadas de forma espontânea. Elas são janelas que permitem
penetrar no inconsciente da artista, imagens que ela plasmava diretamente e, depois,
elaborava.”85
As pinturas, que enchem o diário de cor e transmitem, precipuamente, as
sensações de dor, demonstram o impulso incontrolável da artista para a expressão dos próprios
sentimentos.
Os escritos da dor, privilegiados em nossa pesquisa, traduzem a intensidade desse
sentimento através das produções da artista, refletidas nas telas, cartas e diário. O traço
autobiográfico de Frida estende-se a todas as suas produções, uma vez que as obras são sobre
85
Texto original: Casi todas las ilustracines del Diario fueron efectuadas de forma espontânea. Por ello son
ventanas que permiten penetrar en el inconsciente de la artista, imágenes que ella plasmaba directamente y, a
continuación, elaboraba. (KAHLO, 2010, p. 27). Livre tradução minha.
114
si, como podemos comprovar através da análise das Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo, em
que as longas linhas traduzem o dilaceramento que a invadia, sem demonstrar acolhimento ou
resposta às dores do outro. Cartas, telas e diário são seu reflexo.
Em todas as fases da vida, mas, principalmente nos momentos de sofrimentos robustos, que
envolveram a morte dos genitores, os abortos, os bondes que a atropelaram e os desamores,
Frida pintou. Seu remédio estava nas tintas, como salienta Carlos Fuentes no prefácio do
Diário de Frida Kahlo (2010), ao discorrer sobre a importância da pintura na vida da artista:
“Enquanto a morte foi se aproximando na ponta dos pés, ela se vestiu cerimonialmente para
permanecer na cama e pintar. Não estou doente, escrevia, estou quebrada. Mas, estou feliz de
estar viva enquanto posso pintar.” 86
O desejo de pintar foi pulsante em Frida até os últimos
dias, já que ela jamais desistiu da pintura e apenas permaneceu alguns períodos afastada das
tintas nos períodos de maiores esgotamentos e amputações, devido ao extremo cansaço físico
decorrente das dores lancinantes que a deixavam sem comer e sem dormir. As palavras da
artista desvelam a importância da pintura em sua existência, uma vez que a vida só faria
sentido enquanto ela pudesse pintar. Sem a pintura a vida estava esvaziada de sentido.
Principalmente nos períodos ou impossibilidades de pintar, devido às grandes dores na coluna
e obrigações de repouso absoluto ela escreveu. A escrita representou, outrossim, importante
forma de sobrevivência.
O traço marcante da obra de Frida, no que tange às telas e a escrita, são as produções sobre
a dor. Impressiona a lucidez com que a artista descreve as mazelas e dores físicas. Intriga-nos o
fato da pintora conseguir retratar-se em todos os momentos da vida - do nascimento até as telas
86
Texto original em espanhol: Mientras la muerte se le fue acercando de puntillas, Ella se vistió
ceremonialmente para permanecer en la cama y pintar. No estoy enferma, escribiría, estoy quebrada. Pero estoy
feliz de estar viva mientras pueda pintar. (KAHLO, 2010, p. 23). Livre tradução minha.
115
onde pinta-se dilacerada pelos cortes – com tanta lucidez.
Enfim, a obra escritural de Frida Kahlo, assim como as telas, nos ofereceram seu retrato de
vida e dor. As palavras, assim como as tintas, serviram de instrumento para que a artista
pudesse se debruçar sobre as dores lancinantes e traçar formas de convívio com as pessoas,
pelas quais manteve-se afastada devido às longas internações e exílios. As palavras, em vários
ocasiões inscritas nas telas, na forma de ex votos, traduziram, a importância das palavras em
sua vida, inclusive como ratificação da dor, e precipuamente desnudaram o lugar da pintura
em sua existência, que a representou e a completou, pois as perdas e os sofrimentos a
deixaram repletas de vazios e solidões. Embora tenha vivenciado a dor, que presentificou-se
na vida, toda a pintura e as palavras de Frida atestam o desejo intenso de viver.
116
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tradução Vera Ribeiro - 4ª edição - Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
121
ANEXOS
ANEXO I, referente ao Diário de Frida Kahlo:
122
ANEXO II, referente às páginas 130-131 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
123
124
ANEXO III, referente ao Diário de Frida Kahlo:
125
ANEXO IV, referente ao Diário de Frida Kahlo:
126
ANEXO V, referente às páginas 105-106 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
127
128
ANEXO VI, referente às páginas 31-32 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
:
129
130
ANEXO VII, referente às páginas 46-50 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
131
132
133
134
135
ANEXO VIII, referente às páginas 64-65 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
136
137
ANEXO IX, referente às páginas 66-67 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
138
139
ANEXO X, referente ao Diário de Frida Kahlo:
140
ANEXO XI, referente ao Diário de Frida Kahlo:
141
ANEXO XII, referente a carta contida na obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
142
ANEXO XIII, referente a carta contida na obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
143
ANEXO XIV, referente às páginas 51-53 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
144
145
146
ANEXO XV, referente às páginas 64-69 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:
(As páginas 64-65 encontram-se no ANEXO VIII e as páginas 66-67 encontram-se no
ANEXO IX)
147
148
ANEXO XVI, referente às páginas 102-103 da obra Cartas apaixonadas de Frida
Kahlo:
149
150
ANEXO XVII, referente a página 30 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo: