Urbanismo de Berna

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    DAS AVENIDAS NOVAS AVENIDA DE BERNA

    Raquel Henriques da Silva*

    Sobre as Avenidas Novas: designao e mbito

    As Avenidas Novasde Lisboa designam,para todos os olisipgrafos, umaimportante rea de extenso da cidade, nascida com a histrica deciso de trans-formar o Passeio Pblico do Rossio (delineado por Reinaldo Manuel,em 1764, por detrs do Rossio e at latitude da Praa da Alegria) numboulevard moderno,evocando o Paris da poca: a Avenida da Liberdade, inaugurada em 1885.

    A Avenida, como quase logo passou a ser designada, foi um lugar em simesmo. Nos ltimos anos do sculo XIX e at proclamao da Repblica,fazia-se a Avenida como se fazia a Rua do Ouro e o Chiado: para passear,ver e ser visto,numa ritualizao do passeio urbano cujas caractersticas eram aindaromnticas. O ajardinamento das placas laterais (que salvaguardaram espciesdo Passeio Pblico e alguns dos seus elementos decorativos, como os peque-nos lagos), a amplitude do espao de andar e a quase ausncia de trnsito expli-cam que a Avenida tenha sido, de facto, a mesma espcie de palco que fora oPasseio Pblico, mas sem muros nem portes de acesso, democratizando opasseio e a fruio de espectculos ocasionais de Vero1.

    No entanto, para quem tinha a responsabilidade de pensar e gerir acidade, a Avenida era o primeiro elo da sua desejada expanso. Desde 1859,quando pela primeira vez o assunto registado em Actas da Cmara, pre-

    tendia-se abrir umboulevard que partindo do fundo do Passeio Pblico cortepela parte inferior do Salitre e siga pelas terras de Vale do Pereiro at S. Sebas- tio da Pedreira ramificando-se para o Campo Pequeno2. Ou seja, desejava-se

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    RESUMO

    As Avenidas Novas de Lisboa so uma das imagens eficazes do

    desenvolvimento da capital em finais do sculo XIX, relacionado com osadquiridos da industrializao.Ampliando a cidade, desde o antigo Passeio

    Pblico at ao Passeio do Campo Grande, as Avenidas apropriam princpios etcnicas do urbanismo progressista de que os boulevards parisienses foram a

    figura referencial.A qualidade do projecto urbano no teve correspondente naresoluo arquitectnica, que foi excessivamente heterognea, manifestando afragilidade econmica e social da burguesia portuguesa, responsvel tambm

    pelo arrastamento do Plano, s concludo nos anos de 1930.

    Avenida de Berna, n85, esquina com a Avenida da Repblica. Arquivo Fotogrfico da Cmara Municipal de Lisboa. Fotografado por Paulo Guedes cerca de 1906.

    * Departamento de Histria da Arte da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas1 Ver, para maior desenvolvimento, Raquel Henriques da Silva,O Passeio Pblico e a Avenida da

    LiberdadeinO Livro de Lisboa(coordenao de Irisalva Moita). Lisboa: Livros Horizonte, 1994.2 In Annaes do Mun icpio de Lisboa nos anos de 1856 a 1859 . Lisboa: Cmara Municipal,1859, pag.

    322, referente sesso de 3/7/1859.

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    Certamente , o jovem Ressano Garcia foi marcado por esse efervescenteambiente de mutao urbana e pde reflectir sobre os recursos e as soluesem jogo, do ponto de vista do aluno brilhante que foi (o 3 classificado entreos dez engenheiros que concluram o curso em 1869). dimenso lisboeta,elefoi o nosso Baro de Haussmann, cuja importncia, no desenvolvimento da

    capital, comparvel de Manuel da Maia, no sculo XVIII, e de DuartePacheco, no sculo XX.Aceitando este jogo de comparaes superficiais massugestivas, poder-se- dizer que, ao contrrio dos seus congneres, no teve aapoi-lo nem o Marqus de Pombal, nem Salazar. Por isso, as Avenidas Novas,que ele far nascer, tm a marca de um tempo incerto em que o Estado foimais fraco e a sociedade manifestou as suas grandes insuficincias, econmicase culturais.

    tempo de terminar esta longa introduo. Diversos bairros novossurgiram ao longo e a partir da Avenida da Liberdade: primeiro, o aristocrticobairro Barata Salgueiro, articulando a nova artr ia com os stios antigos do Ratoe de S. Mamede; depois o Bairro Cames, do lado oposto, operao privadapara a pequena e mdia burguesia, com o eixo principal na Rua do CondeRedondo, cujas terras foram para o efeito loteadas; para nordeste, j depois daRotunda do Marqus de Pombal, e ao longo da Av. Fontes Pereira de Melo,surgiria, de um lado e outro, o bairro das Picoas que aproveitava algumas viasantigas (como a Estrada das Picoas ou a Calada do Sacramento) para criar uma rede de artrias novas, algo irregular e de limites incertos. S depois darotunda do Saldanha (que teve a proposta de outros nomes, como o deMouzinho dAlbuquerque5), aberta no incio de um amplo planalto, em frenteao Palcio das Picoas6, se iniciavam as Avenidas Novas, centralizadas pela Ave-nida Ressano Garcia (designada da Repblica, depois da mudana de regime,em 1910), ladeada pela Av. Antnio Avellar (depois 5 de Outubro) e Pinto

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    abrir um eixo de comunicao com os subrbios, capaz de substituir oscaminhos antigos de p postoque, da velha Rua de Santo Anto, seguiam por S. Jos e Santa Marta at S. Sebastio,ou que, mais a Oriente, saam da Rua daPalma at Arroios e da para os longnquos Campos de Alvalade, com ligaesa Loures e Sacavm.

    Para concretizar estas necessidades modernas, oriundas, sobretudo, dodesejo de rentabilizar a articulao de Lisboa com o seu produtivo termo deonde lhe vinham os abastecimentos dirios de legumes, leite, fruta e animais decapoeira, bem como muitos trabalhadores domsticos o Ministrio dasObras Pblicas criara um vasto grupo de trabalho de que ter resultado umconjunto de estudos e plantas do Plano Geral dos Melhoramentos da Capital,hoje no localizado. Era a que, pela primeira vez, se propunha o projecto daAvenida Central de Lisboa3.

    Todavia, no foi no mbito daquele Ministrio mas das competncias daCmara Municipal que o projecto se desenvolveu e concretizou, em termosno apenas virios mas enquanto operao urbanstica,sob direco, autoritriae qualificada, de Frederico Ressano Garcia, o modernizador da RepartioTcnica da Cmara de que foi seu engenheiro chefe, entre 1874 e 1909.

    indispensvel deter-me, ainda que brevemente, nesta personalidade.Engenheiro da Escola Politcnica de Lisboa e,para aperfeioamento de estudos,da cole Impriale des Ponts et Chausses (a mais prestigiada escola de enge-nheiros do mundo de ento), Ressano Garcia pde assistir, em Paris, plenaexecuo do Plano de extenso desta cidade, delineado em estreita coopera-o entre Napoleo III e o Baro de Haussmann.

    Por volta de 1870, quando a Comuna de Paris ps fim trgico a umdecisivo perodo de desenvolvimento, parte significativa da velha cidade tinhadesaparecido, cedendo lugar a uma extraordinria rede de avenidas, reticularese articuladas entre si,que foram, durante quase um sculo, o palco de represen-

    tao da poderosa sociedade burguesa e um dos mais divulgados modelos dourbanismo progressista4.

    3 Ver o tratamento mais extensivo destas questes em Raquel Henriques da Silva Lisboa deFrederico Ressano Garcia, 1847-1909 inLisboa de Frederico Ressano Garcia, 1874-1909 . Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian e Cmara Municipal de Lisboa,1989 (catlogo de exposio).

    4 Utilizo esta designao,no sentido que lhe definiu Franoise Choay inLurbanisme,utopies et ralits.Une anthologie. Paris:ditions du Seuil,1965.

    5 Ver Actas das sesses da Comisso Administrativa. Lisboa: Cmara Municipal de Lisboa,12/8/1897 e26/8/1897.

    6 Pertencente Condessa de Camarido, D.Maria Isabel Freire de Andrade e Castro de Sousa Falco,descendente do 1 Conde o Morgado das Picoas, pois por aqui possui largos tratos de terrenos D. Nuno Freire de Andrade e Catsro de Sousa Falco, do qual dependia uma Ermida, exterior,ainda hoje ao culto na Rua das Picoas segundo palavras de Norberto Arajo,Peregrinaes emLisboa, 2 ed., vol. XIV, Lisboa: Vega, 1993, p.79. Na 1 ed. desta obra, 1937, o palcio estava jdesocupado, depois de ter sido sede da Nunciatura Portuguesa. Em 1944, parte do seu imensolote seria ocupado pelo Cine-Teatro Monumental, da autoria do arq. Raul Rodrigues Lima,inaugurado em 1951 e demolido em 1984.

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    Coelho (depois Defensores de Chaves) e cruzada, em esquadria quase perfeita,por um conjunto de avenidas, mais estreitas, at ao Campo Pequeno e, demodo mais irregular, com bastantes irresolues, at actual Praa deEntrecampos.

    Caractersticas gerais do Plano

    Contextualizadas no indito crescimento urbanstico europeu na pocada primeira industrializao, as Avenidas Novas de Lisboa aplicam, como jafirmei, alguns aspectos do urbanismo progressista que, semelhana de Parise Barcelona (neste caso, o magnfico plano de Ildefons Cerd), tm concretiza-es, mais ou menos vastas, mais ou menos radicais, em todas as principaiscidades.

    Sintetizando os seus princpios constitutivos, deve salientar-se, emprimeiro lugar,uma espcie de esttica e de pragmtica caractersticas da enge-nharia. Os diversos conjuntos de saberes envolvidos neste domnio so entodeterminantes do que a sociedade do sculo XIX entende por progresso. Nocaso das cidades, os engenheiros consideram que elas so organismos doentesporque o ar circula mal nas ruas estreitas, tortuosas e mal iluminadas, bemcomo nas casas e nos interiores dos quarteires, de dimenses e usos semqualquer normalizao. Por isso, o seu primeiro desejo higienizar a cidade:alargar as ruas, torn-las corpo adequado de um conjunto eficaz de infra-estru-

    turas (canalizao de esgotos, de gua e, por volta do final do sculo, deelectricidade), logo marcado superfcie pelos carris dos elctricos e,suspensosno ar, os cabos da electricidade.

    A higienizao proposta tem ainda outras componentes: a existncia demanchas importantes de arvoredo e vegetao, introduzindo o campo na

    cidade, no momento em que ela estava radicalmente a artificiar-se.Com a cola-borao dos agrnomos, nascia assim a arquitectura paisagista que, nestapoca, pouco deve multissecular arte dos jardins eruditos ou populares. Nasruas largas, arborizam-se passeios e as placas centrais ou laterais e, em pontosadequados dos planos, criam-se amplos jardins e bosques, com a funo depulmes verdes.

    Refira-se, finalmente, que os engenheiros delineavam tambm o lotea-mento das novas zonas de extenso, com uma matriz geomtrica, monotona-

    Levantamento de Lisboa de 1911. Levantado e desenhado sob a direco de Jlio Antnio Vieira da Silva Pinto.Arquivo da Cmara Municipal de Lisboa.

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    de/Fontes Pereira de Melo/Repblica se ar ticula, numa linha quebrada, emevidente continuidade desde a Praa do Comrcio, sugerindo um percursoascensional do Rio para o interior, de grande clareza de desenho e evidentecarga simblica. Sob este aspecto, pode afirmar-se que o Plano das AvenidasNovas desenvolve as potencialidades da ordenao urbana pombalina, distan-

    ciando a cidade do Tejo mas colocando-o num real e mtico ponto de partida.Em segundo lugar, as Avenidas Novas, axializadas pela Avenida da Liber-dade e pelo Parque Eduardo VII, transportaram, para zonas antes no urbanas,o desenho bsico de Lisboa, onde as diferenas entre oriente e ocidentesempre foram claras; por outro lado, apesar de se constituir como extenso,onovo urbanismo permanentemente se retrai, se curva e contracurva paraencontrar as linhas direccionais antigas da cidade, adaptando a tendencialortogonalidade a diversas e expressivas pr-existncias. Sob este aspecto, ocaso mais interessante o da Avenida Duque dvila que mantm,alargando-oapenas, o desenho redondo da velha Estrada da Circunvalao.

    Finalmente, ao contrrio do que aconteceu na maioria dos casos degrandes cidades, a nova Lisboa, mecnica e geomtrica, no ps em causa acidade velha, desenvolvendo-se por ampliao e no por reconverso. Estefacto tem, na origem, a reconstruo pombalina da Baixa e reas limtrofes(incluindo a alta do Chiado) que modernizara Lisboa, um sculo antes. Oamplo centro ps-terramoto permitiu que os bairros histricos se mantives-sem e, como j disse, a matriz orgnica e histrica da cidade fino-oitocentista.Permitiu, tambm, ir criando pequenos bairros de desenho tendencialmentegeomtrico: primeiro, antes do arranque do Plano das Avenidas Novas,a Este-fnia, Campo de Ourique e Calvrio; depois, sobre a nova Avenida dos Anjos(depois Dona Amlia,hoje Almirante Reis) uma disperso de bairros pequeno-burgueses que se articularo com a Estefnia e com as Picoas e, do ladooriental, com a vivncia antiga e operria da Graa.

    As qualidades indiscutveis do desenho urbano das Avenidas Novas nose verificaram na sua arquitectura. O facto do Plano no enunciar princpiosnormativos nessa matria (ao contrrio do que acontecera na Baixa e h-deacontecer nas Avenidas novssimas de Duarte Pacheco, cujo paradigma aAvenida de Roma) marcou o edificado com definitiva efemeridade. Cada pro-motor, construindo para si mesmo, para venda ou arrendamento, pde optar entre prdio ou moradia, pela ocupao de toda a frente do lote ou no,peloisolamento do edifcio ou pela disposio em banda. As crceas no foram

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    mente repetida, deixando logradouros generosos no interior dos quarteires(que deveriam ser corredores de verdura) e, em muitos casos,jardins fronteirosou laterais. Neste caso, quase exclusivamente nos bairros da alta burguesiaque se aplica este tipo de loteamento, sobretudo quando pensamos no modeloparisiense em que a construo sobre as avenidas foi, maioritariamente, de

    grandes blocos de habitao colectiva com extrema densidade de implantao.Em Lisboa, encontramos todos os princpios enunciados. A dimensodas avenidas naturalmente modestas, quando as comparamos com as deoutras cidades retomavam o paradigma das ruas da baixa pombalina que,hoje ainda, continua a funcionar; todas elas eram infra-estruturadas, com essaespcie de vida subterrnea que passa a constituir o cerne da cidade industrial;as mais importantes vias encontravam-se, desde 1900,articuladas com a cidadeantiga, atravs das carreiras dos elctricos; as placas centrais, laterais e os pas-seios foram generosamente arborizados, numa articulao subtil e qualificadade cores e cheiros, delineada sob a autoridade do Eng. Antnio Maria Avellar;os lotes desenharam-se, em geral, amplos, poucas vezes com jardins massempre com logradouros profundos, funcionando como operativos quintais.

    O Plano final, aprovado em 1889, j integrava o Parque da Liberdade(depois Eduardo VII), embora a sua construo se v arrastar sem soluodefinitiva at dcada de 1940. No extremo norte, o Campo Grande (arbori-zado no incio do sculo XVIII7) ser ento modernizado, tornando-se num doslugares mais procurados pelo lazer dos lisboetas, numa vida de ar livre mo-derna, em que a bicicleta comea a concorrer com o cavalo.

    Em 1903, quando o conjunto das avenidas estava delineado e a edifica-o se iniciara, a equipa de Ressano Garcia apresenta ainda um novo Plano,propondo outro Parque ilharga ocidental do Campo Grande, e um notvelconjunto de vias de circulao externas que, mesmo hoje, no esto completa-mente executadas.

    Cumprindo princpios essenciais do urbanismo progressista dos finais dosculo XIX, as Avenidas Novas possuem tambm o que costumo designar por uma marca lisboeta.Tratando-se de tema complexo, onde a subjectividade considervel, destacarei apenas dois ou trs tpicos para clarificar aquela afir-mao. Em primeiro lugar, o modo como o conjunto das avenidas Liberda-

    7 Sob a origem deste Jardim, ver Raquel Henriques da Silva,Lisboa romntica. Urbanismo earquitectura, 1777-1874 . Lisboa, 1998 (Dissertao de Doutoramento em Histria, EspecialidadeHistria da Arte apresentada FCSH da UNL, policopiado).

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    tadssima pelos contemporneos era sinal deliberado de cosmopolitismo e,ao mesmo tempo, a manifestao do desejo que aquela nova rea da cidadepudesse encontrar referncias estimulantes na leitura romanceada da Histria.Era o que propunha aquele anfiteatro, evocando os circos romanos e, ao mes-mo tempo, a cor, os materiais e a decorao dos palcios e mesquitas mouras.

    Inaugurada em 1892, quando as obras do delineamento das avenidas seiniciavam,a Praa de Touros conquistou imediato reconhecimento,abrindo umadas vistas mais populares da nova Avenida Martinho Guimares. altura de nelanos concentrarmos.

    O nome homenageava o vereador Jos Martinho da Silva Guimares,um dos mais eficazes batalhadores pelo emprstimo de 400 000$000 reis que,contrado junto do Governo central, viabilizou o arranque das obras dasAvenidas, depois de se terem gorado intenes iniciais de promotores priva-dos. A proposta da nomenclatura foi publicamente aprovada em sesso deCmara de 12 de Agosto de 1897 e justificada por se tratar de uma das ave-nidas mais importantes pois que destinada a ligar a Praa do CampoPequeno com os stios de Palhav e Benfica11.

    Que a importncia desta avenida fosse ento justificada sobretudo por viabilizar articulaes virias fundamentais entre a Lisboa oriental e a ocidental,melhorando o funcionamento de um amplo territrio do seu termo, anuncia,nesses anos finais do sculo XIX, a situao actual. Os ritmos so outros, talcomo os meios mecnicos e os conceitos de distncia e velocidade, mas no

    tenhamos dvidas:mais do que um lugar para viver,a Avenida Martinho Guima-res era, no momento do seu nascimento, um eixo de circulao.Tal como hoje.

    Nos primeiros anos de 1900, a Avenida Martinho Guimares foi apenasos seus primeiros quarteires, voltados para o palco da avenida principal, aRessano Garcia (depois Repblica). Duas moradias de gaveto marcavam esta

    articulao, ambas projectadas pelo arquitecto Norte Jnior, em 1906 e 1908.A mais antiga seria demolida em 1953 mas a outra sobreviveu at hoje a ciclossucessivos de profundas transformaes12.

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    impostas, muito menos exigncias de materiais ou de resolues estilsticas.Num tempo de arquitectura eclctica, marcada por revivalismos vrios, pelosexotismos e os ruralismos, esta excessiva liberdade foi mortal para a conso-lidao final do Plano.

    Por isso, nos anos de 1930, quando, mesmo na Avenida da Repblica,

    ainda havia alguns (embora poucos) lotes para edificar, j se procedia sprimeiras demolies. Por isso, tambm, as Avenidas Novas so hoje umqualificado desenho urbano cujo corpo se tornou irreal, numa mistura ruidosade falta de norma e de uma histria enredada em sucessivos oportunismos deque a ausncia de qualidade arquitectnica o sinal visvel.

    Apesar da falta de norma e, muitas vezes,de qualidade arquitectnica, aedificao das avenidas novas,no contexto j referido de crescimento global deLisboa, marca inquestionavelmente a sua afirmao como capital moderna. Osnmeros so impressionantes:nos onze anos percorridos desde 1896 a 1906construram-se em Lisboa 3080 prdios com a superfcie total de 1472 m2 desuperfcie habitvel e reconstruram-se 726 prdios com a superfcie habitvele nova de 200926 m28.

    A Avenida Martinho Guimares

    Em 1889, a Administrao da Real Casa Pia informava que tendo sidocondenada a antiga Praa de Touros no campo de SantAna (...) solicitava Cmara o baldio denominado geralmente o Campo Pequeno no centro doqual se pode construir com todos os aperfeioamentos modernos, umformoso edifcio dando novo aspecto quele largo9. Na verdade, o Plano dasAvenidas previa j este popular equipamento que viria a ser delineado peloarquitecto Antnio Jos Dias da Silva, seguindo de perto os valores estilsticose funcionais da Praa de Madrid, inaugurada em 1874.

    Numa poca de revivalismos e de grandes incertezas em relao ao queseria a arquitectura do futuro, a escolha do estilo rabe10 considerada acer-

    8 In Actas das Sesses da Comisso Administrativa da Cmara Municipal de Lisboa, sesso de 28 deFevereiro de 1907.

    9 In Actas das Sesses da Cmara Municipal de Lisboa , sesso de 16 de Fevereiro de 1889.10 Ver contexto da encomenda emO Neomanuelino ou a Reinveno da Arquitectura dos Descobri-

    mentos. Lisboa: Instituto Portugus do Patrimnio Arquitectnico, 1994 (catlogo de exposiocomissariada por Regina Anacleto).

    11 In Actas das Sesses da Cmara Municipal de Lisboa , sesso de 12 de Agosto de 1897.12 Ver, para desenvolvimento do tpico da arquitectura das Avenidas Novas, a minha dissertao de

    Mestrado em Histria da Arte, apresentada na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa, As Avenidas Novas de Lisboa,1900-1930 . Lisboa, 1985 (policopiado).

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    Novas. caso para dizer-se que o abrandamento do projecto, depois de 1910,redundou em vantagem urbanstica e arquitectnica, permitindo, ao mesmo

    tempo, deixar adivinhar a antiguidade prestigiada do stio.Entretanto, na dcada de 1930 (quando a cidade entre em novo pero-

    do desenvolvimentista, sob a direco de Duarte Pacheco), a Avenida de Berna

    foi enriquecida com a Igreja de Nossa Senhora de Ftima, quase no centro dasua extenso,implantada em par te dos terrenos cuja expropriao se arrastara.Esta Igreja, que hoje orienta os visitantes e os passantes quotidianos, temsignificativa importncia arquitectnica e artstica. Projecto do arquitecto Porf-rio Pardal Monteiro,uma das mais importantes personalidades do modernismoportugus, teve a colaborao do pintor Jos de Almada Negreiros (vitrais) edo escultor Francisco Franco (estaturia sobre a entrada principal). No seuconjunto, estes artistas, com vasto leque de colaboradores, delinearam a pri-meira igreja moderna de Portugal, respondendo ao repto do Cardeal Cerejeiraque, na infncia do Estado Novo, acedeu, aqu,i a uma no repetida rupturaque provocou escndalo junto dos mais conservadores.

    Para as Avenidas Novas, a edificao deste templo (inaugurado em 13de Outubro de 1938) marca como que a sua definitiva maioridade. Nos anosde 1900, abrira-se concurso para a Igreja do novo bairro, entre a AvenidaFontes Pereira de Melo e a Cinco de Outubro, mas a edificao nunca se con-cretizou, por falta de meios financeiros. Por isso, o nico templo de to vastarea residencial continuou a ser a velha igreja de S.Sebastio da Pedreira, o quemanifesta a relativa lentido do reconhecimento das Avenidas Novas.Vale apena recordar que tambm o cinema e as primeiras pastelarias s chegaramao bairro nos finais dos anos de 1920.

    Nesta poca,contextualizada pelo claro apoio do novo regime ditatorial construo urbana (ento isentada de contribuio predial durante dez anos,de acordo com a letra do Decreto-Lei n 15289 de 30 de Maro de 192820),

    constroem-se os ltimos lotes da Avenida de Berna, com opes estilsticasbem diferenciadas das que referimos para o incio do sculo.Trata-se agora douso sistemtico de beto armado possibilitando lentas alteraes das plantasdos andares que, nas fachadas,utiliza uma decorao inspirada pela Art Dco,caracter izada pela geometrizao dos ornatos e um gosto, mais ou menosvincado, pela valorizao plstica da platitude dos alados.

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    com pr-existncias importantes que, naquela regio extrema, continuavam adesempenhar papel activo na vivncia da regio, produzindo, em quintas ouquintais, parcelas apreciveis dos consumos frescos da capital.

    Interessa referir ainda que o projecto se adaptou aqui s mais impor- tantes e histricas pr-existncias do stio: o Convento e ampla cerca das Con-

    vertidas de Nossa Senhora do Rosrio, de religiosas franciscanas, fundadodepois de 1768 por D. Margarida das Mercs de Mar, dama francesa e mais tarde chamado do Rosrio e das Dores, pois que para ele convergiram asrecolhidas de uma casa religiosa, de idntico objectivo social que existiu noLargo do Leo a Arroios16.

    Muito tempo abandonado depois da extino das Ordens Religiosas(decretado em 1834 mas sem efeitos imediatos para os conventos femininos),o convento e cerca foram reconvertidos, a partir de 1905, no Hospital Curry Cabral cujas exigncias funcionais foram condenando quase todos os vestgiosdaquele.A vasta cerca com mata de eucaliptos e cedros17 foi sendo destrudapara instalar novos pavilhes hospitalares, mas tambm para novas urbani-zaes dos anos de 1930 (Bairros Blgica e Santos), do lado de l da linha docaminho de ferro; sobre a Avenida de Berna, a cerca foi cedida, em anosrecentes, ao Batalho Automobilista que, desde 1980,dispensou parte das suasinstalaes e logradouros Faculdade de Cincias Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa.

    Mais felizes do que os cedros e eucaliptos da cerca do conventinho doRosrio e das Dores, foram as rvores do amplo parque fronteiro que evoca,no seu conjunto, a faustosa propriedade do Provedor dos Armazns Reais,fundada no sculo XVIII e, em 1860, adquirida pelo Provedor da Casa Pia, JosMaria Eugnio de Almeida18.Tendo servido depois como Jardim Zoolgico deLisboa (1884-1905), o frondoso parque ficou como que expectante, at, nadcada de 1950, ser adquirido pela recm criada Fundao Calouste

    Gulbenkian para sua sede e museu19

    . Foi possvel assim sobre os acasos quelongamente tecem a vida das cidades antigas no s manter-se, como enri-quecer-se uma das ltimas grandes reas de quinta e jardim das Avenidas

    16 In Norberto de Arajo,Peregrinaes em Lisboa, 2 ed., tomo XIV. Lisboa:Vega, 1993,p. 59.17 Idem,ibidem,p.59.18 Sobre este palcio e propriedade ver o artigo de Joana Cunha Leal,nesta revista.19 Sobre este tema ver o artigo de Ana Tostes, nesta revista. 20 H. J. Niny,Estudo crtico in Ministrio do Interior . Inqurito habitacional. Lisboa, 1941,p. 263.

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    mandado edificar pelo 2 Conde de Sarzedas, no contexto proclamatrio danobreza restauracionista que tem outras manifestaes,igualmente qualificadas,no palcio do Marqus da Fronteira, em S. Domingos de Benfica, e no PalcioGalveias, ao Campo Pequeno, encomenda dos Tvoras. O Palcio de Palhavcelebrou-se, no sculo XVIII, como residncia dos prncipes bastardos de D.

    Joo V,isolado e distante da corte , mas num cruzamento activo das articulaesda cidade com o seu termo.Hoje, a beleza da sua arquitectura erudita ainda atrai o nosso olhar, mais

    de automobilista do que transeunte. Em momentos favorveis,o Palcio poder--se- articular com o inesperado Arco monumental, igualmente erudito, que,desde h poucos anos, passou a centralizar a rotunda da Praa de Espanha.Oriundo do aqueduto da Rua de S. Bento que, desde finais do sculo XVIII,servia essa parte da cidade e, sobretudo, o grandioso Mosteiro de S. Bento daSade (hoje Assembleia da Repblica), este monumento descontextualizado apenas mais um elemento do rudo imagtico da Avenida de Berna, enquantoeixo incontornvel de articulao da parte oriental e ocidental da cidade, bemcomo das suas respectivas sadas. Os diversos edifcios entretanto edificados(ps-modernos e neo-modernos, num arco estilstico que vai dos anos de 1980 actualidade) alargaram o rudo irregularidade confusa das crceas e ao pr-prio cu, permanentemente percorrido por uma das rotas de aterragem noaeroporto de Lisboa.

    Lugar de circulao mais do que de passagem e menos ainda de vida,aAvenida de Berna manifesta, excessivamente, a nossa incapacidade actual deproteger a cidade histrica mas, simultaneamente, deixa entrever, no palim-psesto do seu corpo, diversas clareiras de memria que predispem compla-cncia. Um estratagema, que uso habitualmente, fazer parte do seu percursopelos jardins da Fundao Calouste Gulbenkian onde os patos treinam ousadiasde voo que, s vezes, os conduzem a aterrar em plena Praa de Espanha...

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    Curiosamente, Norte Jnior que, na juventude, fora um dos arquitectosmais bem sucedidos da esttica eclctica e revivalista, reconverte-se, comgrande facilidade e eficcia, ao modernismo. Dentro deste gosto construiudezenas de casas unifamiliares e, sobretudo, prdios, muitas vezes em parceriacom empresas de engenheiros civis. Dois bons exemplares desta moda

    arquitectnica existem ainda hoje no primeiro quar teiro da Avenida de Berna,vindo da Avenida da Repblica, decorados com caractersticas mscaras femi-ninas estilizados.

    Com variantes diversas, mas uma tendencial unificao de crceas e dedisposio em banda contnua, foi este o modelo do ltimo ciclo edificatriodas Avenidas Novas,menos visvel na Avenida de Berna do que nas confluentesElias Garcia e Barbosa du Bocage, particularmente nos quarteires queconduzem Igreja de Ftima21. Ele distingue-se pelo seu modernismo ele-gante e decorado, com evidente marca cosmopolita tanto da pobrezacomo da retrica riqueza da arquitectura das dcadas anteriores; distingue-se tambm da arquitectura neonacionalista, muito Estado Novo, que, comsuperior qualidade construtiva e compositiva, caracterizar, nos anos de 1940,as avenidas de Roma ou Sidnio Pais.

    Eplogo

    Na aproximao intentada em relao Avenida de Berna, creio ter sidopossvel entender algumas das razes que foram construindo a sua extra-ordinria heterogeneidade, talvez a mais evidente do conjunto das avenidasnovas.

    Faltar-me- evocar a sua marca mais antiga, contempornea do palciode Fernando de Larre Garcez Lbo Palha de Almeida, Provedor dos Armazns

    da poca de D. Joo V. Refiro-me ao Palcio dos Meninos de Palhav (hojeEmbaixada de Espanha) que, em perspectiva, fecha a Avenida de Berna e aarticula com a Antnio Augusto de Aguiar que, no troo inferior, recompe avelha Estrada de Sete Rios e Benfica. Trata-se de um notvel seiscentista,

    21 VerBoletim da Cmara Municipal de Lisboa, ano X (1936), n 505 que define as crceas ecomposio dos prdios do talho limitado pelas Avenidas Elias Garcia, Berna, Marqus de Tomar e Poeta Mistral.