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16/11/2015
Utopia A emocionante racionalidade do inconsciente
Roger Dadoun
Roger Dadoun
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Utopia
A emocionante racionalidade do inconsciente
*tradução Elemar do Amor Divino
[uso interno à disciplina “A Melodia das Coisas”, PPGPSI-UFRGS, 2015/2]
Com uma notável constância, a noção de utopia opõe às análises e aprofundamentos efetuados por numerosos autores, de maneira iluminadora, o grave rumor de sua “pouca realidade”. Ela traz sempre, na sua esteira, qual uma cauda de cometa, uma carga negativa ou depreciativa: nas declarações ingênuas como nos discursos eruditos, vêmo-la associada, quase sistematicamente, às noções de ilusão, de evasão, de fantasia nebulosa, de devaneio definido como sonho vazio e, evidentemente, acima de tudo, de irrealidade. Sabe-se a que ponto a etiqueta de “utópicos” colada por toda uma gnose marxista ou aparentada aos socialismos de um Fourrier1 ou de um Leroux2 lhe foi funesta – escanteados assim para o lado da fantasia e do delírio.
Poderíamos nos contentar de ver, no uso comum e generalizado do termo “utopia”, uma
simples inércia da linguagem, um estereótipo característico de um discurso profano e superficial
– e como o eco, banalizado, de um uso polêmico e ideológico nutrido disto que poderíamos
nomear, indiferentemente, empirismo, realismo ou positivismo. Mas a persistência do rumor
desvalorizador e sua resistência aos esclarecimentos históricos como aos exigentes esforços de
racionalidade convidam a buscar uma origem ou uma função mais singulares, mais insólitas,
da utopia – e a buscá-las, não há outra escolha possível, do lado do inconsciente.
Não basta considerar a utopia, poderíamos dizer recorrendo ao léxico psicanalítico, nos
seus conteúdos manifestos, mais indispensáveis; importa identificar seus conteúdos latentes.
Trataria-se, de qualquer maneira, de substituir à expresão habitual, um tanto vaga e confusa, de
“espírito da utopia”, algo como um “inconsciente da utopia”; de ver, pois, na utopia, uma
formação do inconsciente, mas uma formação completamente inabitual naquilo que ela se
desdobra, e se afirma aquilo que sempre se recusou ao inconsciente: a racionalidade – uma
racionalidade que poderia ser qualificada, tendo em conta a intensidade dos afetos implicados,
de emocionante. No sentido pleno de cada um dos termos: a utopia expõe a emocionante
racionalidade do inconsciente.
1 Charles Fourrirer [1772-1837], socialista francês; um dos pais do cooperativismo. 2 Pierre-Henro Leroux [1798-1871], filósofo e político francês; defensor da classe operária e partidário de um socialismo místico e do feminismo. É considerado o fundador do termo “socialismo”.
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Dois vetores antagonistas
Para indicar, da maneira mais simples, o sentido da operação proposta, convém colocar,
abaixo da palavra “utopia”, a seta de um vetor. Na ideia corrente que se faz de utopia, a seta é
orientada, segundo a prática matemática habitual, da esquerda para a direita, de trás para frente;
e o que é visado, o fim buscado, é a realidade. Fica entendido assim que a utopia tem por
vocação, é orientada para a sua realização. Alvo de um tal vetor, de uma tal setagem: o real!
Nos propomos de andar francamente na contra-corrente, de inverter o sentido da seta e
de traçar um vetor antagonista que iria da direita para a esquerda, da frente para trás, isto é, no
sentido oposto à realidade; que ela se distanciaria radicalmente. E onde então, na verdade,
poderia submergir, se encaixar nossa seta, senão naquilo que é preciso nomear, na falta de outro
termo, o inconsciente?
Digamos de maneira mais explícita: em vez de seguir a inclinação habitual, de ir à
jusante, e assim avalizar, de confirmar uma preguiça do espírito, um uso mecânico da palavra
utopia, nós buscamos voltar a uma fonte, supondo que haja uma; em vez de replicar esse rumor
impróprio e prejudicial e forçarmos em direção a um mais-adiante, em direção a um além da
utopia, que desembocaria em alguma transcendência mais ou menos impregnada de luz, das
Luzes3, nós nos voltamos, numa torsão laboriosa e contrária, voltando-nos para trás, para um
aquém, que arrisca nos conduzir em direção a uma desconhecida, turva e obscura
profundidade...
3 Referência às luzes da razão, do Iluminismo.
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Resultante dessa operação de inversão, de reversão, que podemos também considerar
como um desvio, nós nos encontramos, de maneira clara e nítida, diante de dois vetores
antagonistas, expressão figurada de dois movimentos ou de duas formas de proceder remetendo
a duas concepções de utopia de sentidos completamente opostos: uma, mais corrente e objeto
de uma quase unanimidade – em nosso entendimento, desatrosa – volta a utopia à única
realidade, e valorando-a e apreciando-a apenas na perspectiva de sua realização, de uma
passagem ao ato; a outra, pelo contrário, a que tentamos aqui delimitar, vira deliberadamente
as costas à realidade, e volta a utopia em direção ao inconsciente, na esperança de aí encontrar
uma ancoragem original, recursos e orientação inéditas.
Três sequências em Utopia
Deixando por um momento em suspenso os dois pontos de chegada das concepções de
utopia que estamos apontando: realidade de um lado, e inconsciente, em oposição, do outro, é
útil distinguir, no trabalho da utopia, três sequências ou momentos, desenvolvimentos, linhas
de força etc., características:
1. a utopia nos aparece primeiramente, da maneira mais visível, mais concreta, como este
objeto, material, no qual ela se expõe, este livro que temos ou tivemos entre as mãos e que tem
por título “A Utopia” – nome dado por Thomas Morus, o autor à sua ilha imaginária, a qual
por ser admirável e célebre e paradigmática, não é mais que uma ilha de papel, nada além de
um texto, produto de uma escritura. A utopia é, assim, à primeira vista, o que está escrito, o que
se escreve – a utopia é uma escritura, com todo o trabalho que isto implica, onde se combinam
de maneira complexa fantasias, imaginário, percepções objetivas, práticas de língua e
elaboração racional. É bem verdade que se pode manifestar através de signos diferentes dos
linguísticos, literários: arquitetos, urbanistas, organizadores de festas, artistas, políticos etc.
podem “escrever” ou inscrever suas próprias utopias usando signos monumentais, urbanos,
plásticos, com figurinos, ornamentos, refrões, com a carne mesma, trêmula ou traficada, da
humanidade. Mas talvez seja preciso ver aí, também, uma prática “livresca” da realidade, a
dimensão da utopia residindo precisamente neste tipo de aplicação “livresca” onde escritura,
“inscrição” se encontram deslocadas, relocadas em suportes materiais ou orgânicos (a título de
ilustração, pensemos no corpo do prisioneiro de Na Colônia Penal, de Kafka, onde uma
máquina de inscrição, uma charrua, escreve a sentença na carne sôfrega);
2. o que o texto utópico propõe, por outro lado, é antes de tudo uma construção social, uma
organização que se quer inovadora, inaudita, extraordinária, maravilhosa ou apocalíptica da
condição humana considerada, se possível, em todos os seus aspectos: trabalho, poder, relações,
amor, conhecimento etc. Ao mesmo tempo que ela se esforça para não negligenciar nenhum
detalhe, às vezes dentre os mais ínfimos, uma tal construção se dá como sintética, exaustiva,
ela se apresenta como um modelo, uma forma perfeita, acabada, ideal;
3. esta construção de uma sociedade nova, esta organização admirável e total da existência
humana, se efetua, de maneira evidente, frequentemente entusiasta, até exibicionista, sob o
signo da razão; é a razão que assegura, regra, persegue e legitima a construção utópica, com
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uma insistência tal que a racionalidade assume o aspecto de uma racionalização, ela mesma
bem próxima de uma elucubração. São mobilizadas tanto uma razão instrumental, artesanal,
técnica, prodecendo por cálculos minuciosos, mediações múltiplas, modulores4 e outros
arranjos da medida áurea5 (na obra de Zamyatin6, Nós, o engenheiro-matemático jura apenas
pelo número, e exalta o taylorismo, do qual se orgulha de ser o modelo de organização
“científica”, “racional” do trabalho) que a Razão, com um grande R, triunfante como princípio
superior da humanidade e único digno de definir o sentido total de sua existência.
Racionalização, organização e escritura compõem um tríptico descrevendo o que há de
mais aparente, de mais manifesto, e mesmo de espetacular, no trabalho da utopia. Estas três
sequências, momentos ou procedimentos estão presentes, verifica-se facilmente, em graus
diversos, e segundo articulações mais ou menos originais e surpreendentes, em todas as
construções utópicas. E em todas as três, com modalidades específicas, se pode reconhecer a
presença de uma veia racional mais ou menos consistente. Verificamos rapidamente que estes
conteúdos manifestos, por mais ricos e esclarecedores que sejam, mantem-se muito na
superfície, que eles deixam muitos pontos nebulosos e é importante investigá-los mais adiante
e se perguntar em particular sobre os recursos energéticos - libidinais? – que conferem à utopia
sua face singular e lhe asseguram uma força de impacto sempre vivaz.
No leito da realidade
Jamais se dirá o suficiente quão imperiosa e opressora é a pressão exercida pelo
princípio de realidade sobre o trabalho utópico, para contorná-lo, para submetê-lo à sua lei,
fixá-lo no seu terreno, fazê-lo capotar em seu leito! Toda uma história da utopia poderia ser
escrita sob a perspectiva desta capotagem7 no real (“capotagem” que se pode nomear tanto:
4 Modulor: sistema de proporções criado e largamente utilizado pelo arquiteto Le Corbusier, em que medidas como o pé e a polegada [de um indivíduo imaginário] não eram convertidas ao sistema decimal, aproximando assim as medidas das construções das proporções humanas a quem se destinavam. 5 Constante algébrica irracional denotada pela letra grega Φ [em homenagem ao escultor Fídias que a teria usado para construir o Partenon] com o valor aproximado de 1,618 e usada para descrever o crescimento biológico [vegetais, colmeias, órgãos humanos etc.]. Utilizada também na arquitetura [Vitrúvio], na arte renascentista [Giotto, Leonardo], na música [Beethoven, Bartók, Debussy], na literatura [Shakespeare, Hugo, Valéry], no cinema [Eisenstein]. Era considerada um número divino. 6 Eugene Zamyatin [1884-1937], escritor russo cuja obra Nós, história de um futuro distópico, influenciou os romances Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell. 7 culbute
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revolta, pulo, revolução, grande salto avante8, quanto queda, fracasso etc.). Sob o nome de
“real”, ou por referência ao “princípio de realidade”, designa-se geralmente a realidade exterior,
a necessidade, agnakē9, fatum, as exigências incontornáveis da natureza e da sociedade. Mas
como, as ditas “realidades”, não estamos jamais seguros de poder estabelecê-las com todo rigor
nem valorá-las com toda “objetividade”, é certo, de maneira mais ou menos constante, a uma
ideologia da realidade com que lidamos – ideologia realitária ou realista que busca impor a sua
lei, suas normas, seus procedimentos, sua finalidade exclusiva à utopia. É quase sempre sob a
luz crua, ofuscante do realismo, que a utopia avança, que ela expõe a sua face – e como ela
poderia por conseguinte, sob uma tal luz, dominadora, sob uma tal exposição fazer outra coisa
além de torcer o nariz? Em toda parte nós vemos operando este indestrutível automatismo de
repetição, que traz sem cessar sobre a cena política, filosófica, cultural, a velha cópula obcena
e antiética, “Utopia-Realismo”, onde a utopia figura uma baixa, miserável e vergonhosa
parceira no papel de coadjuvante.
Nós estamos, sem dúvida, bem conscientes de que o real está, de maneira determinante,
na origem da utopia: ora um real insuportável do qual queremos nos desfazer, que nos aplicamos
em afastar, e então surge a utopia que, deste real, emerge e se extrai – se abstrai – para edificar
“nas nuvens”, diz-se, na abstração, seus reinos de felicidade; ora, ao contrário, um real tão rico
de promessas, que basta prolongá-lo, aliviando-o na medida do possível – do impossível? – dos
pesos e restrições que lhe freiam o desenvolvimento, e eis as promessas reunidas culminando
em uma construção antecipadora onde se dá a ler e a provar o “porvir radiante”; onde, em
oposição a esta imagem idílica, e recusando-a, se contrapõe a ela com força, eis um real tão
saturado de horrores, tão repleto de ameaças, tão tenebroso, sem nenhum lampejo sequer de
esperança (“se é meia-noite no século” como dizia Victor Serge10), que o discurso, o relato,
para prestar-lhe contas, nisto que se denomina às vezes contra-utopias, não podem consistir
senão em expor o nervo do terror e da assustadora e terrível essência.
Mas mais que à origem, mais que sobre as causas “objetivas” – causalidade incerta e
sempre reconhecida a posteriori – é sobre a orientação, sobre o objetivo, sobre a finalidade da
utopia, que a ideologia realista pousa sua garra mais letal. Tudo se passa, na verdade, como se
a utopia não pudesse, não devesse ter por único e glorioso objetivo senão se realizar, de passar
ao ato e ser implementada, na prática, na realidade. Pela sua natureza, pela sua estrutura mesma,
8 Alusão ao Grande Salto Avante [1958-1960], campanha lançada por Mao Zedong que pretendia tornar a China uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em tempo recorde acelerando a coletivização dos campos e a industrialização urbana. 9 Ἀνάγκη 10 Victor Serge [1890-1947], escritor russo nascido na Bélgica, revolucionário anarquista, participou do porcesso revolucionário na União Soviética a partir de 1919 e perseguido mais tarde pelo regime de Stálin ao qual era abertamente crítico. É sobre o período estalinista que trata o seu romance S’il est minuit dans le siècle, ainda sem tradução para o português.
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tal que nos reconhecemos nestas três sequências – escritura, construção social, trabalho de
racionalidade -, a utopia deveria tender, impertaivamente, inelutavelmente, em direção à sua
realização; e consequentemente, ela perde sua consistência própria por não ser mais que o eco
– o reflexo, a sombra... – daquilo ao qual ela tende, daquilo em direção ao que ela está projetada.
É preciso dar a esta locução “em direção a” toda a sua força restritiva, repressiva: a utopia está
curvada em direção ao real; está dobrada, deformada, descentrada para se submeter ao real.
Porque “em direção a” existe, e que este “em direção a” quer tudo dobrar sob sua lei
vale a pena dele de apossar, desviá-lo, transformá-lo em escárnio: digamos pois, por brincadeira
– uma brincadeira de consequências temíveis – que este “em direção a” que força a utopia a
copular no leito do real, é o “verme”11, o parasita alojado no fruto da utopia e que o roi, é o
agente da sua decomposição, de sua putrefação. A história traz sobre este ponto ilustrações
exemplares, esmagadoras, sob a forma, precisamente, de um teste de realidade: todas as vezes
que a utopia é forçada a entrar nos fatos, de passar ao ato, de se deitar no leito do real, não se
obtém nada além de obcenidade, podridão e desastre. É preciso concluir disso que a vocação
da utopia não é de ir “em direção à” realidade, mas exatamente ao contrário: utopia versus
realidade – utopia contra o real.
Uma volta12 no Inconsciente
O real estando interdito, em direção ao que então nos voltamos? Em qual direção se
comprometer para tentar identificar as fontes do trabalho da utopia e reconhecer seus
mecanismos específicos? Nada mais que, repitamos, andar contra-corrente, que subir
novamente a ladeira e voltar-se para uma outra realidade bem diversa, em direção outra
realidade, a realidade interna, acompanhada nos seus mais longínquos, seus mais profundos
limites, suas trincheiras mais obscuras: por todos esses termos é o inconsciente que é designado
e consideramos, desde então, a utopia como uma formação do inconsciente – uma formação
que não se encontra igual no que paradoxalmente ela se constitui daquilo mesmo que é negado
ao inconsciente, a saber um movimento de racionalidade, que nós qualificamos além disso de
emocionante, por claramente marcar a plena carga efetiva que a especifica.
11 Aliteração entre vers [em direção a] e ver [verme]: ambas se pronunciam da mesma forma. 12 Tour se presta tanto a volta, passeio quanto a volta, no sentido de voltar-se; o autor se vale dessa ambiguidade do termo: opto aqui pela primeira acepção, caso contrário algumas metáforas utilizadas pelo autor se perderiam.
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Esta não é uma posição insólita. Mais uma vez, o trabalho da utopia foi associado, e
mesmo assimilado, ao trabalho do sonho. Ele foi frequentemente apresentado como um avatar
dos devaneios e do sonho. Foi também vivamente colocado em evidência seus elos com o
desejo, e sua aptidão e exprimir as forças pulsionais: tanto pulsão sexual quanto pulsão de
morte, tanto pulsão de saber quanto pulsão de controle etc. A obra de Fourier é
supreendentemente propícia a este tipo de aproximação.
Fica a impressão, no entanto, que mesmo nas análises mais arriscadas, as expressões
utópicas são tratadas mais como sintomas, eflorecências mais ou menos fantasistas, do que
como as modalidades de uma estrutura determinante, desenvolvimentos necessários de uma
formação específica. Quer dizer que não se trata somente de dar uma volta, de ir olhar, assim,
do lado do inconsciente; mas se trata de descobrir, de surpreender alguma coisa como um giro,
uma “volta no inconsciente”, um movimento de torsão do inconsciente tal que se possa
entrever13, em uma de suas dobras ignoradas, o precioso filão de uma racionalidade. Assim,
convém passar, tratar, processar a utopia na volta no inconsciente, o movimento simétrico não
é menos legítimo, de maneira que tanto na volta da utopia é o inconsciente mesmo que se expõe
e se afirma.
Trabalho do sonho e trabalho da utopia
É preciso ainda que seja distintamente uma volta, um modo de formação e de instituição
que convenha propriamente à utopia – e, para fazer isso, evitar de se engajar em um deste
numerosos passeios14 turísticos que acolhem benevolentemente um inconsciente demasiado
ecumênico, vasto e sombrio saco onde se embrulham as “escapinadas”15 da psicanálise.
Amiúde, recordemo-lo, a utopia é tratada como uma espécie de devaneio, um tipo de
sonho acordado, um equivalente simultaneamente mais superficial e mais articulado do sonho.
13 S’entr’apercevoir: neologismo “entre aperceber-se”, um entrever acompanhado de um dar-se conta de algo. 14 Tournées 15 Neologismo, provavelmente de escapilade (rapel, escalada), a única referência encontrada é o título de uma peça teatral releitura de Artimanhas de Scarpino, de Molière. Pela sinopse da peça parece ter a ver com a maneira como os atores encarnam as personagens, de maneira mais livre e misturada ao público.
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Que, a partir da utopia e do sonho, se possa retomar um umbigo comum, eis o que se oferece
como uma preciosa probabilidade. Mas ainda resta por fazer a parte desta e daquelas formações,
destes entroncamentos que criam raízes no inconsciente – e operar, então, algumas distinções
necessárias.
Os sonho continua sendo uma atividade individual, estreitamente ligada ao sono – a
neurofisiologia a qualifica, como base em características orgânicas desde então bem
estabelecidas, de “fase paradoxal do sono”. Ele se apresenta como um desenrolar mais ou menos
fragmentário de imagens; a interpretação psicanalítica mostrou que esta textura imaginária
adere intimamente aos valores pulsionais, libidinais, que dão ao sonho seus ritmos afetivos tão
perturbadores, desde a euforia erótica até a angústia do pesadelo. É reconhecido que o sonho se
opõe bravamente às intervenções da racionalidade, às pressões das regras sociais, às exigências
de coerência e rigor da linguagem. Pode-se falar de um imaginário bruto – com a condição de
que esse termo não apague tudo o que, de história individual e experiências memoráveis e
complexas do sujeito, projetam, inscrevem, reformularm na imagem onírica.
O trabalho do sonho, em suma, perece todo voltado para a face interna da realidade
psíquica individual. Dir-se-á então, do trabalho da utopia, que ele desenha como uma outra
vertente dessa mesma realidade, que ele designa uma potência do inconsciente voltado, de
alguma maneira, para a face externa da realidade individual.Vê-se aí um esforço para transpor
ou arrancar-se deste estrato individual: visando a algo de universal, fazendo recurso à
racionalidade; visando à realidade social, graças a construções sociais apropriadas; visando
enfim a uma expressão linguística clara, precisa, comunicável pela escrita. O que poderia ser
definido como específico do trabalho da utopia não são tanto suas características conhecidas e
manifestas (a saber: o tríptico racionalidade, sociabilidade, escrita) – elas seriam muito mais
apropriadas à literatura ou à filosofia – mas a maneira na qual o inconsciente se se pode dizer,
as direciona, as produz, as sustenta, mantém fortes e sutis ligações com as energias libidinais,
as pressões do desejo.
Continuamos, depois de Freud, a definir sumariamente o sonho como uma “realização
do desejo”. Duas interpretações são possíveis aqui: uma mínima, frágil, reconhece no sonho
uma capacidade de trazer ao sujeito uma gratificação, uma satisfação para desejos não
realizados, deixados em suspenso em estado de vigília – cumulando em uma frustração. Cada
noite, deixamos a terrena e piolhenta realidade para dar uma caminhada no “país da bonança”,
terra da utopia. Para uma outra concepção, mais vigorosa e ampla, a vocação do sonho residiria
menos nessas parcas satisfações fragmentadas, anedóticas, imaginárias do desejo, do que na
potente recarga energética do desejo que ela satisfaz. “Satisfação de desejo” teria significado
então, para bem além das nossas gratificações noturnamente mordiscadas, que é o desejo como
tal, como estrutura de base, que se realiza, que encontra potência vital, que se reformula, se
recria, se regenera qual uma fênix para afrontar a um novo custo a odiosa e opressiva realidade.
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É nos inspirando nessa análise, e afirmando que existe uma raiz de inconsciente comum
com o sonho, que nós podemos considerar a utopia como uma satisfação do desejo: mais
precisamente, do desejo de utopia! Reafirmemos: não está na vocação, na essência da utopia a
passagem ao ato, o desembocar no real, o oferecer um lugar, um topos16 concreto, material,
exterior, a um projeto qualquer. Seu lugar, diríamos, é ela mesma; e é nela mesma, enquanto
ancorada ao inconsciente e nutrida do inconsciente, que ela encontra sua realização – nela
mesma e não fora; pois então, precisamente, ela estaria fora de si, ela estaria furiosa17, ela se
perderia longe de seu eixo inconsciente, ela mostraria os dentes, como se diz de uma roda18 e a
volta do inconsciente não passaria de uma olhadela da consciência.
Dela mesma, o que há de dizer? Trata-se de ver como a utopia, a partir do inconsciente,
e recebendo deste útimo uma marca, um matiz específico (pulsional, desejante, afetivo,
libidinal), insiste, persevera nas suas características essenciais já conhecidas: racionalidade,
construção social, escrita. A vocação da utopia é de dizer, não de fazer – de dizer-se, de
desdobrar-se como formação do inconsciente, de manifestar a presença do inconsciente no
campo mesmo onde não se espera desse último nenhum acesso. A construção utópica é para ela
mesma o seu fim – este fim sendo, mesmo que possa parecer circular, exprimir, expor e realizar
o desejo de utopia (desejo de racionalidade onde se efetiva – que nos perdoe esta indispensável
reversão retórica – a racionalidade do desejo).
O desejo de utopia
Temos o direito de falar de um desejo de utopia? Que é então a utopia, à sua própria
maneira como nenhuma outra, poderia nos fazer ver, compreender, a natureza do desejo? De
fato, existe desejo, no sentido geral desse termo, desde que, considerando as construções
utópicas, podemos seguir , através das modalidades, roupagens e metamorfoses diversas, as
16 Τόπος [lugar]. 17 Elle sortirait de ses gonds [lit. « ela sairia de suas escápulas »] significando irritar-se ao ponto de « sair de si ». 18 Elle tournerait folle, comme on dit d’une roue [lit. « Ela ficaria louca como se diz de uma roda » : jogo de palavras impossível de reproduzir em sua riqueza. Em francês, chamamos roues folles [lit. “rodas loucas”] as rodas dentadas das engrenagens.
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linhas de força libidinais, as determinações pulsionais privilegiando, umas a sexualidade, outras
o poder, outras ainda a relação social ou as cenas fantasmáticas.
Sobre esse substrato, esse “sujétil19” libidinal, o desejo de utopia inscreve uma versão
que lhe é própria, efetua uma incursão original. Incursão, verdadeiramente, nisto que a utopia
nos conduz mais longe e revela uma profundidade mais singular. Nos traços que lhe atribuimos
correntemente, o inconsciente aparece como o lugar de embates pulsionais (pulsões de
conservação e pulsões sexuais, pulsão de domínio, pulsão de morte etc.) Ele ignoraria a
contradição, o “não”, o “ou isto... ou aquilo20”; ele carregaria o peso do passado, arcaísmos,
origens, anterioridades – se esforçando, poderia-se dizer, para “negociá-los” asperamente com
a consciência ou com o superego.
Esses traços característicos do inconsciente, o desejo de utopia se ocupa deles, mas para
integrá-los, mobilizá-los e inscrevê-los numa dinâmica original, que vai além deles, que os
transforma, que os metamorfoseia. O desejo de utopia parece tentar efetuar um impulso21 para
além do inconsciente. Assim, ele conserva e preserva e se alimenta da força pulsional, mas sem
procurá-la, sem propor-lhe objetos de satisfação precisos, adequados, “enredeçados”. Ele não
se contenta em ignorar a contradição, ele se encarrega mais ambicioso, de absorvê-la, removê-
la ou conduzí-la para formas unitárias, homegêneas, totalizantes. Enfim, não hesitando a
recolher e a explorar o peso do passado, o arcaico, ele a conduz assim numa movimento que
atravessa o presente, conquista o futuro e visa à eternidade.
Na relação que buscamos estabelecer entre inconsciente e utopia, estão as características
do inconsciente que permitem esclarecer de maneira original a estrutura da utopia. Mas a
recíproca não é menos válida, e abre novas perspectivas: o texto utópico remeteria assim a um
inconsciente mais surpreendente, mais complexo, mais “dialético” que nós gostaríamos de
admitir. O desejo de utopia seria desejo de superar todos os cortes, separações, exclusões –
todos os “esquizos”, diria-se – constitutivos da condição humana, interminavelmente
atravessada por pelas divisões entre o racional e o irracional, individual e social, dito e não-
dito, expressão linguística e outros sistemas de sentido etc.
19 “Subjectile”: sujet (sujeito) + projectile (projétil) 20 Também é o título de um livro do filósofo dinamarquês Søren Kierkeggard [1813-1855] cuja tese principal é a escolha individual entre uma vida ética ou uma vida estética. 21 Poussée, também pode significar surto.
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A construção utópica aparece como um esforço sui generis para prolongar e articular,
salvaguardando seus laços originários, e para expor e trazer à luz, preservando sua coloração
libidinal, esses diversos fatores habitualmente separados e conflituais, e cuja composição e
intrincamento formam o núcleo do desejo de utopia. Na utopia, racionalidade, socialidade e
linguagem mantém uma rica ligação umbilical com sua fonte inconsciente; sua vocação, sua
finalidade, sua razão de ser consiste precisamente em fazer funcionar tal ligação, a desenrolar
todas as suas virtualidades – e não de desviar dela ou de rompê-la para responder – de maneira
errada! – às solicitações vorazes do real. Visto que, justamente, para a utopia, é nesta fonte
inconsciente que reside a força principal de resistência à realidade – o que nos leva a reconhecer
a utopia, através de uma simetria com a “função do real”, cara à psiquiatria normativa, uma
função do irreal.
Função do irreal, da irrealização, do surreal.
Consideramos a “função do irreal” – enquanto ela consciência e avaliação ativa,
racional, operatória e eficaz dos objetos constitutivos do mundo exterior, bem como
necessidades, relações, movimentos e outros dados externos – como uma das expressões mais
finas e mais preciosas da atividade psíquica. Estruturas cerebrais altamente desenvolvidas
constituem seu embasamento. Numa tal perspectiva, o fato de se distanciar ou se desviar do real
seria o sinal de uma posição regressiva, arcaica, até mesmo mórbida. Também, ao contatar a
recusa de uma consistência própria, o irreal seria o negativo, o menos-ser, deplorável, do real.
É possível ver as coisas de outro modo. Nota-se inicialmente a que ponto a noção mesma
de “real” permanece confusa e relativa, e que seu uso está saturado e praticamente inseparável
de uma ideologia realista, isto é, de uma metafísica que valoriza e exalta a “realidade” de uma
maneira tal que esta conta menos, em útima instância, que a valorização ela mesma, efetuada
para objetivos e metas nas quais a “realidade” como tal – se é que essa expressão tem ainda um
sentido – se encontra transbordada, deformada, negada, aniquilada. Se admitimos enfim que
possa existir um “núcelo duro” de realidade, isto é, uma realidade reduzida a alguns dados
irredutíveis, irrecusáveis, uma tal realidade imporia ao ser humano as mais ferozes restrições;
ela seria sinônimo de necessidade no pior sentido do termo: uma necessidade devastadora e
sufocante da humanidade.
Dito de outra forma, então, o quão é propriamente vital para o homem de poder fazer
funcionar uma função do irreal, de poder opor às terríveis pressões do real odioso um processo
capaz de manter o real à distância, de suspender seu controle, de colocá-lo entre parênteses –
ao menos pelo tempo de o homem recobrar o fôlego. Tal será a função do irreal nas construções
utópicas: ela cinde, destaca, desprende, liberta o homem do peso emagador da realidade, a fim
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de que possa restituir a si mesmo, de proporcionar à humanidade uma respiração mais profunda,
mais essencial.
Os termos “real” e “irreal”, por si já vagos, se apresentam, além disso, como estáticos:
parecem definir dados, estados bem definidos, e que se excluiriam um ao outro numa irredutível
oposição. Não seria mais pertinente e mais judicioso, até mais prático, falar de “realização”, de
“irrealização”, de “desrealização” entendendo por isso processos dinâmicos, ao mesmo tempo
antagônicos e complementares, gravitando um ao redor do outro numa espiral complicada, por
vezes alucinante, e tal que o sujeito não cesse jamais de construir e desfazer a realidade, sem
possuí-la nem roubá-la. Os objetos do mundo estão sempre para serem reconstruídos, e é uma
tarefa penosa, precária, desgastante, interminável – a mais ínfima distração deixa-os escapar ou
os degrada. Mas ao mesmo tempo, os objetos estão sempre por desfazer, para que o homem
possa submetê-los – e está aí um dos seus projetos mais constantes e mais característicos
(“torna-se mestre e possuidor”22) – ou, ao menos, preservar seu lugar próprio, assegurar, diante
do objeto sempre ameaçador, sua posição de sujeito. A função do irreal consagrada à utopia é
uma função de subjetividade: o lugar da utopia (a qual se apresenta etimologicamente, mas
também sintomaticamente como “não-lugar”), é o lugar mesmo da subjetividade, da
subjetivação, do trabalho de construção, de elaboração, de reparação, todos os fatores
misturados e compostos, do sujeito humano.
Seria necessário considerar que a realização e o real próprios do sujeito passam,
imperativamente, por uma desrealização e um irreal do objeto? Que haja aí uma espécie de
conflito ontológico, onde cada um, sujeito ou objeto, buscar impor sua lei e sair vencedor deste
embate implacável? Essa seria, para nós, uma maneira demasiado simplista, demasiado
mecanicista, demasiado ideológica de conceber uma relação que se exerce a um nível de
profundidade e segundo um mergulho no inconsciente que faça pouco caso da lógica
tradicional.
Para abordar a singularidade de uma tal relação, seria conveniente libertar-se da imagem
corrente dos vasos comunicantes, na qual um dos níveis sobe enquanto o outro desce e vice-
versa. A imaginação utópica nos incita, por sua vez, a conceber um arranjo irreal de vasos
22 Referência ao Discurso do Método onde Descartes afirma, na sexta parte, que o homem está destinado a “tornar-se senhor e possuidor da natureza”.
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comunicantes nos quais, paradoxalmente, os níveis sobem ou baixam juntos, solidariamente –
como para revelar uma incontornável comunidade de destino.
Pareceria assim que a subjetividade – isto é, o trabalho de instituição do sujeito humano,
o lugar e a forma específicas do seu advento – se afirma e se desenvolve na proporção em que
o objeto a seu lado recolhe uma realidade mais forte, ganha esse acréscimo de real que lhe traz,
paradoxalmente, o processo de desrealização ao qual o sujeito se entrega a seu próprio governo.
Paralelamente, a subjetividade falharia quando o próprio objeto falha, se encontra em condição
de perda, não se prestando mais desde então ao processo de desrealização conduzido pelo
sujeito – o qual, é preciso insistir nesse ponto, só está firmemente na posse de si, confirmado
no seu trabalho de subjetividade, em face à firme realidade do objeto.
Esta relação de contornos paradoxais, repitamo-lo, frequentemente notável por outro
lado, nos conduz às paragens do surrealismo – o qual poderia nos convidar a reconhecer na
utopia algo como uma função do surreal. Nota-se, mais de uma vez, que as construções utópicas
influenciaram um estilo “surrealista”, no sentido banalisado, mesmo trivial, do termo onde a
tônica está colocada, um pouco apressadamente, na fantasia, no insólito. A imagem dos Vasos
Comunicantes23, texto célebre, uma abertura ao surreal, nos lembra que é no surrealismo que o
espírito de utopia prosseguiu, na contemporaneidade, seus percursos mais apaixonados, mais
emocionantes. É num mesmo movimento, de fato, que o surrealismo recorre à utopia e ao
inconsciente – a um inconsciente de utopia, pois, que sustentaria a um só tempo a valorização
do imaginário e do racional e do emocionante, e que suscita projetos de sociedade, recorrendo
à potência da escrita. Tomado de empréstimo à tradição psicanalítica, o inconsciente dos
surrealistas se ilumina com os vivos e estranhos brilhos da utopia.
A utopia casada com seus celibatários, mesmo
23 Livro [1933] do poeta francês André Breton [1896-1966] em que ele afirma em que o mundo real e o mundo dos sonhos são um só.
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A “Utopia” de Morus é uma ilha, a “Cidade” de Campanella24 é dita do “Sol”; Fourrier
compõe com cuidado extremo seu “Falanstério25”: a utopia se aproxima cada vez mais do
concreto, das imagens, das práticas – mesmo que elas se mostrem impossíveis. Para tentar dar
forma sensível e radiante às laboriosas hipóteses aqui apresentadas sobre as raízes inconscientes
e as funções da utopia, nos parece pertinente tomar Duchamp, o artista Marcel Duchamp26, e
de fazer refletir “o belo rosto pleno de significado27” da utopia no espelho do Grande Vidro28.
Esta obra singular, a mais célebre de Duchamp, oferece, com a ressonância estranho e
tangível de seu título, A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo, os traços múltiplos aptos
a ilustrar o trabalho da utopia. Ei-la, nossa Prometida – nossa Promessa? – claramente destacada
diante de nós, tal como uma ilha utópica, bem protegida e isolada pela sua carapaça de vidro –
o vidro, essa substância utópica por excelência, que canta com lirismo o engenheiro de Zamiatin
em Nós. Sobre essa vidraça formando um espelho, e que o choque do real fendeu, despedaçou,
estão contudo os reflexos do real que acabam de ser produzir – um real subitamente
desrealizado, irrealizado. O real está ainda presente, mas deslocado, desviado, re-formado, no
interior do Grande Vidro, sob a forma de máquinas ou de “troços29”, de engrenagens e objetos
diversos que remetem, pervertendo-a, à vida quotidiana mais pé-no-chão.
Deportados de seu meio ordinário, sua função utilitária é, como suas formas mesmas,
suspensa, colocada entre parênteses (parênteses de vidro – parênteses de sonho!): eles não têm
outro sentido, esses “troços”, senão o de serem postos e depostos. Pode-se então considerar
como representando mecanismos, articulações ou acontecimentos do inconsciente – eles
encontram seu fim em si mesmos, na expressão que os afirma: nomeá-los-emos pois “máquinas
celibatárias”, ainda livres de todo compromisso institucional, de toda relação objetal. A mão
operária virtuosa do artista os reúne e os agencia num encontro surrealista que desdobra o
espaço de um não-lugar (a utopia entendia como “ou-topos”) (e onde, na verdade, o Grande
24 Tomasso Campanella [1568-1639], monge dominicano e filósofo italiano. 25 Phalanstère [φάλαγξ, falange; στερεός, firme] regrupamento orgânico dos elementos considerados necessários à vida harmoniosa de uma comunidade, inspirada na formação das falanges militares. 26 Marcel Duchamp [19897-1968], artista plástico e escritor francês naturalizado americano. 27 “beau visage à tous sens”, referência à coletânea póstuma Un beau visage à tous sens[1967] de cartas de Romain Rolland [1866-1944], escritor e músico francês, dentre as quais constava a carta a Freud, de 5 de dezembro de 1927, em que, comentando o recém publicado O Futuro de uma Ilusão, ele sugere a noção de “sentimento oceânico” que Freud posteriormente utilizará no seu O Mal-Estar da Civilização, de 1930. 28 O Grande Vidro, obra de Marcel Duchmap realizada em Nova Iorque de 1915 a 1923. 29 Machins, palavra usada para designar qualquer coisa cujo nome não venha à mente. Também usada para palavras-tabu que façam referência aos órgãos sexuais.
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Vidro poderia encontrar seu verdadeiro lugar – senão talvez em um museu supersaturado de
“libido museal”?, cf. bibliografia) – não-lugar servindo para acolher e formular, sem que jamais
seja consumado, o casamento, sal livre à terra, do inconsciente e da razão: inconsciente para
todas as cargas simbólicas afetivas, angustiantes de que são portadores esses objetos e “troços”,
a razão para as explicações abundantes, eloquentes, pedagógicas, analíticas que a articulação
com o inconsciente suscita e alimenta. Ao fim desta rápida aproximação firmando talvez uma
estranha má aliança, a utopia de estilhaços de vidro se apresenta como uma noiva de núpcias
surrealistas durante as quais as energias pulsionais, libidinais, do inconsciente, ardentes
cônjuges, preservam, ainda, seu estatuto de “celibatários”.
Na transparência profusa do Grande Vidro, nos pegamos observando, na filigrana, a
fácies ascética, à maneira de Tomas Morus, de Marcel Duchamp. A coletânea de seus textos,
de seus “escritos”, Marchand du Sel30, poderia se ler também Marchant au Self, avançando ao
ritmo desse “Self”, desta estrutura forte do Eu que é o artista capaz de fazer circular, de
“regatear31”, “marchandiser” e de “fazer caminhar32” (e é uma loucura o que Duchamp nos
“regateia” e nos “faz caminhar”!) sob forma de “títulos”, de “cheque”, de “mala”, de
“zombarias” etc. – a energia do Eu, do Sujeito, esta rica e sempre negociável “mercadoria”
libidinal.
Admitimos sem pena que o é o Si, o Self de Duchamp que está no coração de todas as
operações insólitas, idiossincráticas, “únicas”, que ele conduz. Salvo que convém precisar isto,
que importa mais que tudo: o Self de Duchamp não trabalha, não caminha pelo narcisismo, ele
não visa a aumentar uma assinatura, não busca colocar em destaque um indivíduo preciso,
designado, datado, localizado, “tópico”, isto é, ocupando pesadamente, gordurosamente, por si
só, o espaço, o “lugar” de seu nome – em suma, o pequeno Si identitário tão adulado (e que
sabemos verdadeiramente, de nossa parte, do ser portador do nome Marcel Duchamp?). Este
Self funciona em uma direção oposta: enquanto agente ou porta-voz – singular, “single”, sem
sombra de dúvida – de uma interrogação apaixonada, emocionante, insaciável, sobre o princípio
mesmo da Subjetividade. Esta, do fato que a encontramos em todo lugar, e que ela varre
incessantemente tudo a partir de sua casa (ela varre incessantemente em frente à sua porta, seria
30 “Mercador de sal” [1956], obra ainda sem tradução para o português. 31 Marchander. 32 Marcher.
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correto dizer!) não existe lugar limpo, ela se move no não-lugar, território da construção
utópica.
Um dos objetos, desses chamados “ready made” entre os mais célebres de Duchamp, e
que estabeleceu sua reputação de provocador, é o mictório em porcelana que expôs em Nova
Iorque sob o título de Fonte no qual ele assinou, com letras negras destacadas sobre a porcelana
branca, R.Mutt, 1971. Nos parece legítimo, da nossa perspectiva, definir a “fonte-mictório”
como sendo, eminentemente, um objeto utópico – no que ele casa, celibatariamente por certo,
razão e inconsciente. Razão, o mictório inscrito como objeto utilitário, “científico” de certa
maneira, respondendo “racionalmente” a uma função fisiológica essencial, e produto de uma
técnica combinando matemática, química, física, biologia, organização social. Inconsciente,
incontestavelmente, se decifrarmos a forma de sua assinatura: R. Mutt, ao contrário, se lê
Mutter, mãe, em alemão. O nome Mutt é tomado de empréstimo a uma empresa de instrumentos
de higiene, “Mott Works”. Tanto “Mott” quanto “Mutt” levam a pensar em mutismo, o mutismo
da morte, por pouco que dela nos aproximemos. “Mott” e “Mutt” de “Mate” no xadrez, que
Duchamp praticava como profissional – “Mate” vindo, por sua vez, de uma palavra persa que
significa morte. Colocando, por outro lado, o foco sobre o “R” de R. Mutt, o inscrevemos no
eixo ardente dos “R”s que atravessam tantas obras de Duchamp: a pequena ampola de vidro de
Ar de Paris que ele envia a Arensberg em Nova Iorque, o “R” presente nas formas e ouvido nos
título “célibatR” do Grande Vidro, no bico auer33 (Eau-Air) da obra monumental intitulada,
Sendo dados: 1) a cascata; 2) o gás de iluminação34, e, evidentemente e acima de tudo, o
próprio “R” maiúsculo que entra disfarçada e redundantemente na composição deste
personagem emblemático que é Rrose Sélavy, que se pronuncia facilmente “Eros, c’est la
vie35”... A partir do que, e sem levar adiante uma análise que se revelaria interminável, o
inconsciente de Fonte faz surdir num mesmo jorro pulsão de morte e pulsão de vida, Eros e
Thanatos. Quanto à forma, virando o mictório e seu vazio habilitado a coletar a urina, exceção
corporal, veremos ali, sem dificuldade, uma gravidez virtual, anúncio, anunciação, promessa
de um novo nascimento, de uma regenerescência – o que nos reconduz, diretamente se podemos
dizer, à utopia!
33 Bico de gás da marca Auer, popular na primeira metade do século XX. 34 Étant donnés: 1 la chute d’eau, 2 le gaz d’éclairage, elaboradas de 1946 a 1966 em Nova Iorque e expostas permanentemente no Museu de Arte da Filadélfia. 35 “Eros, é a vida”
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De um Eros divino
Aquém das vibrações frágeis do Grande Vidro, e como eco à voz singular, aérea e
“rachada36” de Marcel Duchamp, não podemos deixar de ouvir a um outro “Marcel”, o
“Marcel” que Charles Péguy37 coloca no início de de sua primeira obra, Marcel, premier
dialogue de la cité harmonieuse38 - texto de plena, alegre e juvenil efervescência utópica, texto
sempre tão obstinadamente ocultado, justamente pelos mesmos que vão filar em Péguy
alimento, recurso ou juventude, pois é a ele que convém pedir, ao fim e ao cabo, para desdobrar
em todo o seu fausto o arco-íris subterrâneo de um inconsciente de utopia.
Podemos situar Marcel no centro do que aparece como o tríptico péguiano da utopia.
Em um dos polos, tentando manter-se mais próximo do real, figura um artigo da Revue
socialiste, de 1987, intitulado “De la cité socialiste39”. Uma espécie de manifesto político
bastante sumário, no qual a sucessão de proposições se alona ao ritmo do verbo “ser” conjugado
no futuro, conjugado futurista: “o trabalho social será socialisado”; “a educação será igual para
todas as crianças”; “a concorrência será suprimida”; “a produção será centralizada” – artigo que
conclui com esta frase triunfal: “a cidade socialista será perfeita naquilo em que for socialista”
– onde se constata que um cuidado demasiado realista conduz a uma tautologia (a “cidade
socialista será... socialista!). Consciente dessa pálida equivalência, Péguy se corrige
imediatamente, e prepara uma fenda, considerando uma cidade fendida, acrescentando:
“naquilo que será uma cidade humana, pode ser que seja imperfeita ainda”.
No outro polo, que poderia ser o de um extremo irreal, colocamos a abertura do Porche
du Mystère de la Deuxième Vertu, texto de 1912, no qual é Deus em pessoa que toma a
palavra, para louvar com arroubos a virtude “Esperança” – diria-se hoje, com Ernst Bloch, as
Luzes do “princípio Esperança”, virtude ou princípio que são talvez o nervo mais vivo da
utopia. Deus canta incessantemente a divina amplidão do mundo, sua Criação: “eu transbordo40
na minha criação”, proclama ele. Tranbordamento semelhante colore o universo inteiro de um
Eros divino, o inconsciente de utopia se amplificando e transbordando (são conhecidas as
36 Também podendo significar “louca”. 37 Charles Péguy [1873-1914], poeta e ensaísta francês. 38 Marcel, primeiro diálogo da cidade harmoniosa. 39 Da cidade socialista. 40 Eclater, estourar (de rir), mas também brilhar, tranbordar, gozar (sexualmente)
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expressões “je m’éclate” ou “j’éclate” para designar o clímax do prazer sexual) até se fundir,
se perder no Espírito Santo. O projeto atribuído por Deus à Esperança é aquele mesmo que pode
caracterizar a utopia: esta “pequena filha de ninguém41” – Esperança ou Utopia – “atravessará
os mundos”, “penetrará as trevas eternas”, “vê o que ainda não é e o que será”, “ama o que
ainda não é e o que será”, “no futuro do tempo e da eternidade”...
No cruzamento de uma cidade terreste que se quer real, embora puxada em direção a
um futuro hipotético e de uma Cidade divina perfeitamente irreal (em todo caso: irrealmente
perfeita!) prenhe de potência criativa e de energia erótica de Deus (“eu transbordo....”), A
Cidade harmoniosa de Marcel se desdobra em um presente atemporal – tempo do
inconsciente. Ela se expõe em proposições claras e racionalmente articuladas, em uma escritura
que se quer incolor e como que branca - cândida? – mantendo-se à distância de todo objeto que
lhe oefereça o risco de refratar-se. E talvez formule, com seu ritmo atado por “nem” que abre
todas as possibilidades ao infinito, a regra mesma de toda utopia que busca uma plena aliança
com o ímpeto primordial de todo desejo:
“Nenhum ser vivo é banido da cidade harmoniosa”.
Bibliografia
DADOUN Roger, “Avoir le vivre et le musée », in Musées, revue des conservateurs de France,
n 205, décembre 1994.
DADOUN Roger, Marcel Duchamp, ce Mécano qui Met À Nu, Hachette, 1996.
DADOUN Roger, Eros de Péguy, la guerre, l’écriture, la durée, PUF, 1998 (traduction
italienne)
DUCHAMP Marcel, Marchand du Sel, Le Terrain vague, 1958.
PÉGUY Charles, Marcel, premier dialogue de la cité harmonieuse, accompagné d’une série
d’articles publiés en 1897 et 1898 dans La Revue Socialiste, Gallimard, 1973.
ZAMIATINE Evguéni, Nous autres, Gallimard.
41 Referência ao poema Le Porche du mystère de la deuxième vertu (1912) de Péguy.