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8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita
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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Artes
Waldemar HenriqueFolclore,Texto e Msica num nico
projeto a Cano
Maria de Ftima Estelita Barros
Campinas 2005
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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de ArtesMestrado em Msica
Waldemar HenriqueFolclore,Texto e Msica num nicoprojeto a Cano
Maria de Ftima Estelita Barros
Dissertao apresentada ao curso deMestrado em Msica do Instituto deArtes da UNICAMP como requisitoparcial para a obteno do grau deMestre em Msica sob a orientao daProfa. Dra. Adriana Giarola Kayama.
Campinas 2005
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP
Barros, Maria de Ftima Estelita.B278w Waldemar Henrique : folclore, texto e msica num nico
Projeto a cano / Maria de Ftima Estelita Barros. --Campinas, SP : [s.n.], 2005.
Orientador: Adriana Giarola Kayama.Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Artes.
1. Pereira, Waldemar Henrique da Costa, 1905- 19952.Canes e msica. 3. Folclore Amazonas. 4. Msica -Anlise, apreciao. I. Kayama, Adriana Giarola.II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.III. Ttulo.
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A o A l e x a n d r e
amor de uma vida compartilhada,
A o s m e u s p a i s E d s o n e G l r i a
amor de doao incondicional,
d e d i c o e s t e t r a b a l h o .
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AgradeoA o A l e x a n d r e :
Pelo amor e poesia. Por me ensinar tanto simplesmente sendo quem .
A o s m e u s p a i s E d s o n e G l r i a :
Que, distantes o suficiente para me permitir crer que ando sozinha, sempre queprecisei e olhei para o lado eles estavam ao alcance de minhas mos.
A o s m e u s i r m o s J n i o r , S r g i o e M a r i n g e l a :
Pela segurana de sempre poder contar com o apoio e pelas doces lembranas.
A o s m e u s s o b r i n h o s P e d r o , C a i o , I v a n e M a r l i a :
Por no me deixarem esquecer como que se brinca.A o s a m i g o s d e s e m p r e :
Veruska e Renato por crescermos juntos.
C y n t h i a :
Por me apresentar a mim mesma.
A o M a u r c i o :
Por me apresentar a minha voz. Pelas aulas de canto e de vida.
A o s m e u s a l u n o s :
Por me ensinarem tanto.
I l a r a , P e d r o , E d s o n e L i d i a n e :
Que me ajudaram a dizer o que eu queria no meu recital de mestrado.
A o p o v o b r a s i l e i r o :
Pela possibilidade de tantos anos de estudo numa Universidade Pblica.
C a p e s :
Pela bolsa concedida nos 7 ltimos meses de trabalho.
A o s p r o f e s s o r e s d a M s i c a e d a s C n i c a s :
Por me ajudarem a achar meu caminho como artista.
B a n c a d o E x a m e d e Q u a l i f i c a o :
Prof. Dr. Silvio Baroni e Profa. Dra. Sara Pereira Lopes pelas observaes preciosasque mudaram o rumo do trabalho.
m i n h a o r i e n t a d o r a P r o f a . D r a . A d r i a n a G i a r o l a K a y a m a :
Pela confiana me aceitando como sua orientanda e por ter me ensinado tanto demsica ao longo de tantos anos.
M e u a g r a d e c i m e n t o e s p e c i a l P r o f a . D r a . S a r a P e r e i r a L o p e s :
Pela ateno, carinho e pacincia. Pelos novos olhos, ouvidos.... Pelo caminho quepossibilitou que eu no fosse a mesma no comeo e no fim do meu mestrado.
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Resumo
Boa parte da obra de Waldemar Henrique construda sobre temas folclricos e isso se
deve tanto sua origem quanto influncia do pensamento da poca, atravs de Mrio de
Andrade e suas idias sobre a cano erudita nacional.
A caracterstica folclrica da obra de Waldemar Henrique nos levou a escolher para uma
aproximao de sua obra, atravs do processo de anlise, um conjunto de sete canes,
todas elas compostas tendo como tema lendas amaznicas.
O compositor, atravs de depoimentos e de sua obra, transparece uma grande
preocupao com a relao do texto com a msica, na utilizao dessa linguagem que se
constri na juno de um componente lingstico e outro musical, que a cano.
Pela forte interao entre estes dois componentes em suas canes, o foco do nosso
olhar nas anlises apresentadas est direcionado, prioritariamente, para esta relao.
As anlises tm sua base terica no modelo desenvolvido por Luiz Tatit para a anlise da
cano popular.
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i i i
Abstract
A large amount of Waldemar Henriques compositional works are based upon
folklore themes, and this is due to the fact not only of his origin but also to the influence
of intellectuals of his time, through Mrio de Andrade and his ideas about national art
song. The folkloric characteristics of Waldemar Henriques works lead us to approach
his compositions through the process of analyzing a group of seven songs, all based upon
Amazon legends.
The composer, through his statements and compositions, demonstrates great
concern with the relationship of text and music, in the use of the language of the art song,
which is constructed through the union of a linguistic component and another musical.
Due to the strong interaction between these two components in his songs, our
analysis of these seven songs is focused, mainly, on the relationship of these two
components. Our analysis is theoretically based on the model developed by Luiz Tatit,used to analyze popular music.
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v
ndiceI n t r o d u o __________________________________________ 1
1 W a l d e m a r H e n r i q u e _________________________________ 5
1 . 1 . B r e v e B i o g r a f i a _________________________________________ 5
1 . 2 .
A p r e s e n a d o f o l c l o r e
_____________________________________ 81 . 2 . 1 . W a l d e m a r H e n r i q u e , u m a m a z o n i d a 81 . 2 . 2 . A i n f l u n c i a d o p e n s a m e n t o d e M r i o d e A n d r a d e 91 . 2 . 3 . F o n t e d e I n s p i r a o 14
1 . 3 . A r e l a o t e x t o - m s i c a ___________________________________ 16
1 . 4 .
P o p u l a r o u e r u d i t o ?
_____________________________________ 18
2 A s b a s e s d a A n l i s e ________________________________ 23
2 . 1 . O o b j e t o d e a n l i s e _______________________________________ 232 . 1 . 1 . A c a n o - o b r a 232 . 1 . 2 . A s L e n d a s A m a z n i c a s 25
2 . 2 . D e f i n i n d o o o l h a r _______________________________________ 282 . 2 . 1 . O F o c o 282 . 2 . 2 . A i n d i s s o c i a b i l i d a d e e n t r e t e x t o e m e l o d i a 29
2 . 3 . A s b a s e s t e r i c a s ________________________________________ 322 . 3 . 1 . O m o d e l o d e L u i z T a t i t 322 . 3 . 2 . P r o j e t o G e r a l 42
2 . 4 .
A a p r e s e n t a o d a s a n l i s e s
________________________________ 45
3 A s a n l i s e s _______________________________________ 49
3 . 1 .
F o i B o t o , S i n h !
_______________________________________ 493 . 1 . 1 . A l e n d a 493 . 1 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 523 . 1 . 3 . P r o j e t o G e r a l 56
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v i
3 . 2 .
C o b r a G r a n d e
__________________________________________ 663 . 2 . 1 . A L e n d a 66
3 . 2 . 2 .
P r o j e t o N a r r a t i v o
673 . 2 . 3 . P r o j e t o g e r a l 72
3 . 3 .
T a m b a - t a j
___________________________________________ 813 . 3 . 1 . A l e n d a 813 . 3 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 853 . 3 . 3 . P r o j e t o G e r a l 88
3 . 4 . M a t i n t a p e r r a __________________________________________ 963 . 4 . 1 . A l e n d a 963 . 4 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 983 . 4 . 3 .
P r o j e t o G e r a l
1033 . 5 . U i r a p u r u _____________________________________________ 115
3 . 5 . 1 . A L e n d a 1153 . 5 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 1163 . 5 . 3 . P r o j e t o G e r a l 120
3 . 6 . C u r u p i r a _____________________________________________ 1323 . 6 . 1 . A L e n d a 1323 . 6 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 1343 . 6 . 3 . P r o j e t o G e r a l 137
3 . 7 . M a n h a - N u n g r a ______________________________________ 1463 . 7 . 1 . A L e n d a 1463 . 7 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 1473 . 7 . 3 . P r o j e t o G e r a l 150
C o n c l u s o __________________________________________ 161
B i b l i o g r a f i a ________________________________________ 165
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1
IntroduoO interesse pela obra de Waldemar Henrique veio por dois caminhos: a temtica
grande parte de sua obra sobre o folclore amaznico e a adequao vocal o
compositor muito cuidadoso com a sua escrita, o que resulta num conforto vocal para a
execuo de suas canes.
Decidimos nos aproximar da obra deste compositor pela anlise de um conjunto de sete
de suas canes que so as que foram escritas tendo como tema lendas amaznicas
com a inteno de entender como o compositor compatibiliza texto e msica em suascomposies, resultando em canes to convincentes musicalmente e confortveis
vocalmente.
A grande quantidade de canes que Waldemar Henrique comps usando como tema o
folclore incluindo as que escolhemos para analisar nos levou a pesquisar as possveis
origens desse fato, o que fizemos atravs de depoimentos do prprio compositor e
analisando as possveis influncias de pensamento de sua poca e mais especificamente
da poca em que foram compostas as canes analisadas.Da mesma forma que o folclore, buscamos investigar as possveis origens da preocupao
com a compatibilizao do texto com a msica, que o compositor deixa transparecer em
suas canes. As nossas fontes foram, tambm para este aspecto, as possveis influncias
do pensamento de sua poca e depoimentos do compositor.
Em relao ao pensamento da poca, estamos considerando para investigao, mais
especificamente, o pensamento de Mrio de Andrade em relao composio da cano
erudita brasileira. Seu pensamento influenciou toda uma gerao de compositores, agerao de Waldemar Henrique, que entrou em contato com Mrio de Andrade e as idias
nacionalistas em 1935.
No percurso da comunicao de uma cano, entre o compositor e o ouvinte ela por
duas vezes materializada, nos processos chamados de composio e de execuo, sendo
o que lhe permite ser comunicada. A materializao pelo processo de composio gera o
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que chamamos de cano-obra, e nesta materializao da cano que concentramos
nosso olhar e realizamos as anlises.
Entendemos que o texto e a melodia associada diretamente a ele na cano so elementos
indissociveis. A cano construda sobre uma linguagem formada por dois sistemas de
significao, um lingstico e um musical que, juntos, formam um terceiro, que no
nem um nem outro; transcende a soma dos dois. atravs desta linguagem que o
compositor fala. Dessa indissociabilidade resulta a importncia da compatibilizao
dos dois componentes da cano, o lingstico e o musical, pelo gesto do compositor.
Como base terica para investigar, atravs do processo de anlise, como o compositor
compatibiliza o texto e a melodia em suas canes, utilizamos o mtodo que Luiz Tatit
props para a anlise da cano popular. Como as canes de Waldemar Henrique
possuem acompanhamento escrito, para piano, surgiu a necessidade de buscar uma base
terica para a anlise da compatibilizao deste acompanhamento com o texto e a
melodia. Encontramos esta base na semitica, mais especificamente no conceito de
Percurso Gerativo de Sentido.
O objetivo do Captulo 1 dar subsdios para as anlises, na medida em que nos permite,
atravs dos aspectos investigados, alcanar um maior entendimento do gesto
composicional de Waldemar Henrique. Nele, procuraremos identificar como o momento
histrico e sua histria pessoal atuaram como definidores do seu estilo de composio.
Alm de apresentar uma breve biografia, com o objetivo de situar a composio de cada
cano analisada na histria do compositor, investigamos os seguintes aspectos: a) a
presena do folclore na obra de Waldemar Henrique na qual buscamos identificar as
possveis origens desta presena; b) a relao letra e msica na sua composio neste
item so apresentados depoimentos do compositor ressaltando a importncia que credita
ao texto no processo de composio, e como o pensamento da poca pode ter
influenciado o modo como ele estabeleceu, em suas composies, esta relao; c)
Comps msica erudita ou popular? Esta uma discusso que gira em torno da sua
msica de Waldemar Henrique. Sem o objetivo de classific-lo, mas com o de melhor
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entender sua obra, apresentamos neste item algumas opinies sobre o assunto, inclusive
do prprio compositor.
No Captulo 2descrevemos as bases tericas que sustentam as anlises, com uma breve
descrio do modelo de Luiz Tatit e a extenso que propomos para incluir a anlise da
participao do acompanhamento, juntamente com o texto e a melodia, na criao do
sentido da cano. No Captulo 3 apresentamos as anlises de sete das treze Lendas
Amaznicas1 de Waldemar Henrique: Foi boto Sinh!, Cobra Grande, Tamba-taj,
Matintaperra, Uirapuru, Curupira,Manha-Nungra.
Finalmente, conclumos o trabalho apresentado aspectos que se mostraram recorrentes no
gesto composicional de Waldemar Henrique, e discutindo como a extenso que
propusemos atuou na anlise da compatibilidade do acompanhamento com os demais
elementos da cano.
1Apenas sete destas canes foram editadas, e as outras no foram encontradas at o momento.
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1 Waldemar Henrique1 . 1 .
B r e v e B i o g r a f i a
Em 1977 a Funarte2 lanou um concurso nacional de monografias sobre Waldemar
Henrique. O vencedor foi Claver Filho, com a monografia que originou o Livro
WALDEMAR HENRIQUE, O canto da Amaznia.3 um trabalho que traz uma detalhada
biografia do compositor e dados de sua produo musical. Diante da existncia destetrabalho, nos limitaremos a registrar aqui somente os dados que nos parecem relevantes
para relacionar as caractersticas das canes que sero analisadas com a vida do
compositor e o momento histrico em que foram produzidas.
Waldemar Henrique nasceu em Belm em 1905. O pai de origem portuguesa e a me de
origem indgena. Nasceu num perodo de transio para a msica e a economia paraense,
em pleno declnio do ciclo da borracha. No auge da economia (1874) foi construdo o
Teatro da Paz4, e deu-se incio a um perodo de efervescncia artstica com a vinda de
grandes companhias lricas europias contratadas para temporadas na cidade. Alguns
msicos estrangeiros acabaram se instalando em Belm e, juntamente com msicos e
compositores paraenses, fundaram um conservatrio de msica, o Instituto Carlos
Gomes(1894).
Com o declnio da economia baseada no extrativismo da borracha, tornou-se impossvel
manter as carssimas temporadas lricas e muitos msicos voltaram para a Europa. Um
dos msicos estrangeiros que permaneceu em Belm, apesar do fim das temporadas, foi o
italiano Ettore Bosio, que se tornou, mais tarde, um dos importantes professores na
formao de Waldemar Henrique, incentivando-o e instigando-o a continuar seus estudos
2Fundao Nacional de Arte3FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.4O Teatro da Paz foi uma grande paixo do compositor, que assumiu a sua direo em 1966, e por 12 anoslutou pela sua reforma e reabertura, que aconteceu em 1978, ano do centenrio do teatro.
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musicais, sempre tolhidos pelo pai que dizia: Piano no para homem, para moa.
Vamos trabalhar.5Nunca se afastou totalmente da msica mas, sendo obrigado pelo pai
a trabalhos em bancos e no comrcio, houve poca em que lhe faltava tempo para
dedicar-se sua grande paixo.
Em 1929 o antigo Instituto Carlos Gomes foi reativado, passando-se a chamar
Conservatrio Carlos Gomes, sob a direo de Ettore Bosio. Obtendo apoio deste maestro
e professor, Waldemar Henrique volta a estudar no conservatrio, e da em diante a
msica passa a ser definitivamente o centro de sua vida.
Em 1933, j com seus estudos em msica bastante consolidados, e com uma coleo devrias composies, realiza a primeira apresentao s com peas de sua autoria, com
vrios cantores, acompanhados ao piano pelo prprio compositor. Recebeu da imprensa
crticas muito positivas. Um dos comentrios sobre o espetculo feito pelo crtico de
msica da Folha do Nortefoi: Waldemar venceu em toda linha. Se em vez de musicar
aqui, desse expanso a seu gnio criador nas plagas sulistas, j estaria gravando o nome
em letra de forma por toda parte.6
Foi o que o compositor fez em 1933, mudando-se para o Rio de Janeiro, como disse ele
prprio com um vago propsito de ser pianista e compositor como Hekel Tavares,
Joubert de Carvalho, Radams Gnattali e Ary Barroso, os bambas da poca....7
O caminho para o sul era uma possibilidade de mostrar o trabalho e conseguir projeo
e reconhecimento nacionais. Sobre os msicos paraenses da gerao de Waldemar
Henrique, Vicente Salles comenta: Essa gerao8no pde se comprimir na Amaznia;
dela saiu, suficientemente preparada para tornar-se altssimo ponto de referncia em sua
poca e fazer-se presente na cultura nacional.9
5FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 226FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 257FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.278Alm de Waldemar Henrique cita: Gentil Puget, Jayme Ovalle, Iber de Lemos, Mrio Neves, Satiro deMelo.9em FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.21
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Chegando ao Rio, acreditando ser segundo disse o prprio Waldemar o mensageiro
da Amaznia, escreveu toda uma srie de lendas, danas, acalantos, lundus, chulas, cocos,
carimbs, batuques...10. J levava na mala duas das Lendas Amaznicas: Foi Boto,
Sinh! e Matintaperra. Estas duas lendas compostas no Par tm texto de Antnio
Tavernard11, poeta e grande amigo do compositor. Sobre o encontro dos dois artistas
comenta Vicente Salles:
Waldemar Henrique, quando ainda em Belm, trabalhando emprogramas musicais para a Rdio Clube, teve a fortuna dedescobrir na obra de um jovem e desditoso poeta umsentimento que se fundia e se integrava indelevelmente sua
msica. A obra desse poeta adolescente tinha ritmo,originalidade e rano de sua terra [...] A imagem telrica dapoesia de Antonio Tavernard foi assim naturalmente absorvidapela msica de Waldemar Henrique12.
Esta identificao e ressonncia entre a obra dos dois artistas ser confirmada adiante nas
anlises das canes que possuem texto deste poeta.13
Em 1934 assinou contrato exclusivo com a Rdio Philips, e na voz de Gasto Formentti
pela primeira vez se fez ouvir em uma rdio carioca. Ainda neste ano firmou contrato
com Irmos Vitale e Vicente Mangione para editar suas composies. Sua irm Mara
passou a se apresentar em recitais, acompanhada pelo compositor, e veio a se tornar a
maior intrprete de suas canes trazendo, segundo Vicente Salles, um novo estilo para a
interpretao da cano: Mara criou um novo estilo de interpretao da cano
brasileira: acabou com as mos na cintura e o arfar dos agudos, imprimindo aos textos um
valor definitivo.14As canes Cobra-Grande, Uirapuru e Tamba-tajso deste ano de
1934.
10FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.2711Em parceria com este escritor, Waldemar Henrique musicou tambm o texto da revista Na casa da vivaCosta.12FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.8813As outras lendas, compostas j no Rio de Janeiro possuem texto do prprio Waldemar Henrique.14em FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 57
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1935 foi o ano de seu encontro com Mrio de Andrade que, como a toda uma gerao de
compositores, influenciou Waldemar Henrique com suas idias sobre a cano
nacional. Esta influncia ser discutida no prximo item deste captulo. Neste ano
comps mais uma cano da srie das Lendas Amaznicas:Manha-Nungra.
Beneficiado pela exigncia de Getlio Vargas de que nos cassinos fossem apresentadas
msica brasileira, em 1936 Waldemar apresenta suas canes no cassino do Copacabana
Palace, tendo Mara como cantora, obtendo grande sucesso de pblico e crtica. O
sucesso de Mara e do compositor Waldemar Henrique tem sido muito significativo. No
acredito que se encontrem facilmente nmeros assim todos os dias...15 . Curupira das
Lendas Amaznicas deste ano.
1 . 2 . A p r e s e n a d o f o l c l o r e
Boa parte da msica de Waldemar Henrique construda sobre temas (literrios e/ou
musicais) folclricos. Por este motivo, e porque as canes analisadas neste trabalho tm
como tema lendas amaznicas, analisaremos mais detidamente a sua relao com o
folclore, e de que maneira ele incorporado em suas canes. Acreditamos que esta
relao se deu por duas vertentes: uma o seu envolvimento com as idias de Mrio de
Andrade sobre a composio da cano erudita brasileira; outra a sua prpria origem
que, crescendo em territrio amaznico, teve, desde criana, sua mente povoada pelos
encantados dos rios e das florestas.
1 . 2 . 1 .
W a l d e m a r H e n r i q u e , u m a m a z o n i d a
A relao de Waldemar Henrique com as lendas (e o folclore amaznico) de quem as
ouviu no meio mesmo onde elas operam; algo que faz parte de seu imaginrio, como
atestam suas prprias palavras:
15Reportagem do jornal O Globo apud FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 29
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Nesta poca fervilhavam as idias nacionalistas. Dentre elas as de Mrio de Andrade, de
busca da identidade musical nacional que, segundo ele, seria construda pela busca de
elementos musicais na msica popular. O critrio histrico atual [1928] da msica
brasileira o da manifestao musical que sendo feita por brasileiro ou indivduo
nacionalisado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que estas esto? Na
msica popular20. O projeto da cano nacionalista consistia na estilizao das fontes
da cultura popular rural, idealizada como a detentora da fisionomia oculta da nao.21
Waldemar Henrique entrou em contato com Mrio de Andrade e as idias nacionalistas
em 1935, quando, pela primeira vez, apresentou-se em So Paulo. A partir de ento,
Mrio tornou-se seu orientador nacionalista nos problemas de harmonizao dos temas
folclricos...22 . O prprio compositor declara sua adeso ao movimento: Liguei-me a
uma corrente nacionalista de pesquisa de expresso do que seria nosso, ao folclore, ao
popular com suas caractersticas formais e rtmicas, harmonizando temas do povo.23
Para tentarmos identificar o quanto a presena do folclore na obra de Waldemar Henrique
influncia do pensamento de Mrio de Andrade, recorremos ao catlogo de suas obras 24
e realizamos alguns levantamentos estatsticos. Este catlogo abrange sua composio at
1978. Destas obras, consideramos apenas as canes, e destas, exclumos aquelas
escritas para o cinema e o teatro. A verificao de que uma cano foi composta sobre
tema folclrico ou no foi baseada no ttulo da pea e na coluna observaesconstante do
catlogo, na qual aparecem informaes sobre as canes, inclusive se so harmonizaes
de temas folclricos ou no.
A tabela e o grfico abaixo mostram, do total das canes dentro do recorte feito (130
canes), quantas utilizam temas folclricos e quantas no utilizam.
20ANDRADE, Mrio de. Ensaio Sobre a Msica Brasileira. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1962. p.2021SQUEFF, Enio e WISNIK Jos Miguel.Msica o Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. 2 ed.So Paulo: Brasiliense, 1982.. p. 13322FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 2823FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 90.24 O catlogo de obras em FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniaabrange suacomposio at 1978
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1 1
Total das Canes (130)
Temas Folclricos 69
Temas No Folclricos 61
O que podemos visualizar que aproximadamente metade das canes utilizam temasfolclricos.
Na busca da identificao da influncia de Mrio de Andrade, estabelecemos a relaoentre o nmero de canes que utilizam temas folclricos, e as que no utilizam,
considerando os perodos antes e depois de 1935 (encontro com Mrio e Andrade).
Antes de 1935 (33% das canes consideradas)tema folclrico/regional tema NO folclrico/regional
34% 66%Depois de 1935
tema folclrico/regional tema NO folclrico/regional61% 39%
Total das Can es
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Como se nota, h um aumento considervel da porcentagem de canes com temas
folclricos aps 1935, passando de 31% (antes de 1935) para 61%. Precisamos, no
entanto, levar outros fatores em considerao antes de atribuir este fato exclusivamente
influncia do pensamento de Mrio de Andrade.
O encontro com Mrio aconteceu pouco tempo depois da ida de Waldemar Henrique para
o Rio de Janeiro e, como j mencionamos (pela prpria fala do compositor) ele seconsiderava o mensageiro da Amaznia25. Nada mais natural para o mensageiro da
Amaznia do que cantar a sua terra natal necessidade bem menos premente quando
nunca se saiu dela.
Um outro fator a ser considerado nos foi apontado, tambm, por uma outra declarao de
Waldemar Henrique, quando fala da sua relao com outros compositores de sua poca
(em como cada um achava espao para a sua msica), deixa transparecer que a utilizao
de temas amaznicos em suas canes tem, tambm, uma funo de conquistar seuprprio espao:
Todos ns comeamos a aparecer juntos, tnhamos a mesmaluta. Isso nos irmanava. No havia a rivalidade de hoje,especialmente da minha parte, porque o que eu fazia quase
25FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 27
An tes de 1935 Depois de 1935
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nada dizia respeito a eles: eu trabalhava com o folcloreamaznico, de preferncia, e isso era uma coisa um pouco leigapara eles.26
Alm destes fatores existia tambm, na poca, uma poltica nacionalista, ditada por
Getlio Vargas, que buscava promover a msica tipicamente nacional27, o que abria
possibilidades para a sua msica de carter folclrico.
Buscando dados que pudessem nos apontar mais especificamente a influncia de Mrio
de Andrade no que diz respeito presena do folclore na sua msica, realizamos uma
outra comparao: dentre as canes com temas folclricos, quais utilizam temas
relacionados Amaznia e quais utilizam temas relacionados a outras regies do pas;considerando, novamente, os perodos de antes e depois de 1935. Estes dados esto no
quadro e grficos abaixo.
Antes de 1935temas amaznicos temas NO amaznicos
75% 25%Depois de 1935
temas amaznicos temas NO amaznicos42% 58%
26FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniapp. 32-3327desde que veio a ordem oficial, de Getlio Vargas, obrigando os cassinos do Rio a terem msicosbrasileiros, os primeiros a serem contratados foram Mara, eu e Carmem Miranda. em 1936. FILHO,Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 29
Depois de 1935An tes de 1935
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Esta nova comparao pode nos sugerir, uma influncia mais direta do pensamento deMrio de Andrade sobre o compositor, uma vez que foi atravs do contato com ele que
Waldemar Henrique comeou a recolher e harmonizar temas folclricos de outras
regies. O compositor fala sobre este trabalho: Comecei esta luta a partir de Villa e de
Mrio de Andrade, que queriam ua msica brasileira, com ingredientes nossos,
devidamente trabalhados, criar o esprito das regies...28
Outro dado interessante que refora a possvel influncia do pensamento de Mrio que,
27% das canes de Waldemar Henrique (constantes do catlogo) que realizamharmonizao de temas folclricos so do ano de 1935, do ano de seu encontro com
Mrio de Andrade.
1 . 2 . 3 . F o n t e d e I n s p i r a o
Diferentes consideraes devem ser feitas sobre a presena do folclore geral29, e do
folclore amaznico na obra de Waldemar Henrique. O primeiro decorrente de
pesquisas e coleta de material, o segundo est impregnado em seu imaginrio e lhe ,
naturalmente, uma grande fonte de inspirao.
Em relao ao folclore amaznico, no podemos, simplesmente, entender a presena
dele na obra de Waldemar Henrique, mas consider-lo como fonte de inspirao, algo
que movia seu esprito criador. O prprio compositor pode nos ajudar a entender o papel
deste folclore no seu gesto composicional:
...mesmo sem pesquisar folclore amaznico, estaramoscapacitados para compor musica folclrica o tal folcloreimaginrio, que parece que mas no , com todos osingredientes meldicos, modais, rtmicos, inflexionais e tonaisda criao espontnea e simples do caboclo daquelas bandas.
28FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 35-3629Estamos usando este termo para designar o folclore de outras regies brasileiras que no a amaznica.
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Pois foi o que eu fiz intuitivamente, alis, j com apreocupao de compor brasileiramente, nacionalmente, comopregava Mrio de Andrade, [...] chamando os compositores criao de uma escola nacional depurada das influnciainternacionais, da polifonia, do classicismo, do romantismo, doatonalismo e outras.30
O que conclumos que Mrio de Andrade teve, sim, uma grande influncia na obra do
compositor no que diz respeito utilizao de temas folclricos para harmonizao, mas
isto, principalmente, no que diz respeito a temas provenientes de outras regies que no a
amaznica. Compor utilizando o folclore amaznico, nos parece, era intuitivo e
decorrente da origem de Waldemar Henrique, anterior ao seu encontro com Mario. O
folclore amaznico para Waldemar Henrique, antes de ser um ideal nacionalista, era uma
grande fonte de inspirao.
Em 1968, j numa fase madura, e depuradas as influncias que assimilou ao longo de sua
vida, Waldemar, em entrevista ao jornal A provncia doPara, fala da sua experincia de
composio, e de sua relao com a pesquisa de material folclrico, fazendo uma reflexo
sobre o que representou em seu percurso como compositor esse tipo de pesquisa,
incentivado por Mrio de Andrade. Este depoimento aumenta a nossa convico de que,
antes de qualquer pesquisa, a fora de sua relao com o folclore da Amaznia era
decorrente de sua origem e sua vivncia neste meio.
Por experincia prpria posso aconselhar a nossoscompositores que h uma coisa melhor que pesquisar motivosfolclricos, catalogar versos, melodias, ritmos de carimb,batidas de babau, passos de marabaixo. A lio de amarnossa terra e senti-la profundamente nos seus rostos,problemas, paisagens, caractersticas [...] Ns temos uma
atmosfera, um ambiente, um sentir prprios. Os compositoresdeveriam pensar nisto e captar este impondervel que estdentro de cada um.31
Ainda em 1968 diz: na fase em que me encontro, vencidas as influncias, despojado de
planos ambiciosos, aguardo hoje ou amanh para continuar a execuo de um velho
30GODINHO, Sebastio (org.). Waldemar Henrique S Deus Sabe Porque. p. 60 (grifo nosso)31FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 78-79
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desejo: retratar a Amaznia32. E foi isto o que mais fez em sua obra, retratou
sonicamente a regio amaznica em seus mnimos detalhes, at nos meandros de seu
mistrio.33Ou como disse Paes Loureiro (para Waldemar Henrique):
deste alma musical e corpo de cano nossa teogonia,conferiste existncia terrena aos encantados, na medida em quemais os encantastes nas encantarias da Msica. Tua arteconfere uma segunda realidade de iluso iluso de realidadeque constitui os mitos.34
1 . 3 . A r e l a o t e x t o - m s i c a
A maneira como um compositor compatibiliza o texto e a msica em suas composies
absolutamente particular, e um aspecto que ser amplamente investigado nas anlises,
no captulo 2. A importncia dada investigao desta relao dentro das composies
decorrncia da importncia dada para o tema, tanto pelo compositor quanto pelo
pensamento da poca sobre a composio da cano erudita nacional, principalmente
atravs do pensamento de Mrio de Andrade. Assim, do mesmo modo que fizemos com a
questo da presena do folclore na obra de Waldemar Henrique, faremos consideraes
sobre este outro aspecto de sua composio a partir de depoimentos do compositor e
buscando identificar a influncia do pensamento de sua poca, atravs do pensamento de
Mrio de Andrade.
Mrio de Andrade falava muito da sua preocupao com a relao texto-melodia35,
dizendo que os compositores no tomavam o devido cuidado com a fontica e muitas
vezes faziam com que suas canes fossem executadas de maneira deficiente, no por
problemas tcnicos dos cantores, mas por problemas de adequao fontica do texto na
melodia, ou seja, por problemas composicionais.
32FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 4933FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 4934 Maneira de um prefcio em GODINHO, Sebastio (org.). Waldemar Henrique S Deus SabePorque. p. 1535usaremos o termo melodia quando nos referirmos apenas linha meldica do canto.
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Ele defende a idia de que muitos dos problemas que apareciam na relao do texto com
a melodia poderiam ser evitados se o compositor utilizasse a prpria fala como
referncia, e prope um processo para a composio de canes, defendendo
a necessidade de decorar os textos e diz-los muitas vezesantes de principiar a compor. Essa apropriao absolutamententima das contingncias fonticas dum texto, fatalmenteevitaria as contradies exageradas de intervalos meldicosprovocados pelo som, e intervalos orais provocados pela alturadas vogais36.
Acreditamos, e procuraremos mostrar nas anlises, que Waldemar Henrique procurou
preservar, em suas canes, uma adequao entre a fala e o canto, e que isto se deve aoseu prprio mtodo de composio, que muito se aproxima da recomendao de Mrio de
Andrade. o prprio compositor que nos fala de como compunha:
Componho preferencialmente canes, gnero universal,genuno, que se nutre em versos, poemas e quadras, capazes derevelar msica e ritmo que j trazem em si. Meu trabalhocomea pela escolha da tonalidade adequada, passando pelaambientao meldica, ritmicamente subordinada sexpresses do verso, o qual me indica as modulaesnecessrias, intervalos e acordes. Comentrios e detalhes deharmonizao depois complementam a misso do compositor.No meu caso, sou mais preocupado com o texto em funo docantor. Enfim, desejo escrever canes para serem cantadas,no arquivadas.37
A importncia que Waldemar Henrique d ao texto pode ser observada, tambm, quando
expressa sua preocupao com a interpretao de suas msicas, definindo o que considera
ser a intrprete ideal para suas canes:
A intrprete que eu considero ideal para as minhas msicas a intrprete que pe seu primeiro cuidado na interpretao dotexto; seria uma declamadora que cantasse, porque a cantoralrica habituada a cantar textos para os quais ela d poucaimportncia... ela se preocupa com a emisso vocalprivilegiada, de respirao, de afinao; h mesmo cantoras
36ANDRADE, Mrio de.Aspectos da Msica Brasileira. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1965. p. 5837MIRANDA, Ronaldo. Waldemar Henrique Compositor Brasileiro. p. 14
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que desenham toda a melodia belissimamente, mas no sepercebe o texto que ela cantou... Todas as minhas canesmereceram um respeito ao texto; esse texto, para mim, quetem valor... [34]
Importante ressaltar que a possibilidade da intrprete atuar como uma declamadora que
cantasse, est intimamente relacionada com a forma de compor. Waldemar Henrique
possibilita este tipo de atuao, dentre outros aspectos, pela utilizao de uma tessitura
limitada, que propicia o canto declamado.
Portanto, assim como a presena do folclore, a preocupao da compatibilidade texto-
melodia nas composies de Waldemar Henrique parece ter origens diversas:
a) A influncia do pensamento de Mrio de Andrade, que o prprio compositor declarou
ter sido seu grande mestre.
b) O processo prprio de composio que confere grande importncia ao texto.38
c) A adequao texto-melodia que visava, tambm, a aceitao de suas msicas pelos
cantores.39
1 . 4 . P o p u l a r o u e r u d i t o ?
Para finalizar este captulo trataremos de uma outra questo relativa composio de
Waldemar Henrique. Afinal de contas, ele era um compositor erudito ou popular?
Waldemar Henrique um daqueles compositores que se situam na fronteira entre o
erudito e o popular. No nosso objetivo classific-lo, mas sim entender sua forma de
38No podemos pensar que esta preocupao surgiu apenas da influncia de Mrio de Andrade, j que acompatibilidade texto-melodia pode ser observada em suas composies anteriores ao seu encontro comMrio. Como na questo do folclore em sua msica, a preocupao com a relao texto-melodia j faziaparte da prtica do compositor.39Assim como na questo do folclore, a preocupao com a relao texto-melodia , tambm, funo dapreocupao com a aceitao de sua msica, e com a conquista de um espao no cenrio musical, e entre oscantores. Waldemar queria que sua msica fosse cantada, e compunha, tambm, em funo disto.
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compor, para melhor conduzir as anlises. Para isto, citaremos a opinio de alguns
autores, e do prprio compositor sobre este aspecto de sua obra.
No Livro A Cano Brasileira, Vasco Mariz40 cita Waldemar Henrique entre os
compositores eruditos da Terceira Gerao Nacionalista, juntamente com Oswaldo de
Souza, Radams Gnattali, Camargo Guarnieri, Joo de Souza Lima, Jos Vieira Brando,
entre outros. O pargrafo abaixo, retirado desta publicao, parece justificar a incluso do
compositor junto aos compositores da cano dita erudita.
O msico paraense, que tanto renome vem granjeando e tomerecidamente, continua a ser etiquetado de modo defeituoso.Na realidade, nunca foi um harmonizador de temas populares:suas canes, suas lendas amaznicas tm sido escritas maneira do populrio daquela regio com temas prprios. Eumesmo j ca no erro de atribuir origem folclrica a diversasobras suas e aqui me penitencio.41
Luiz Tatit classifica Waldemar Henrique como semi-erudito, juntamente com Chiquinha
Gonzaga, Eduardo Souto, Catulo da Paixo Cearense, Heckel Tavares e Joubert de
Carvalho que aproveitam sua
formao culta como recurso para se dedicarem, quase queexclusivamente cano popular. Ao invs de utilizarem temasfolclricos em peas eruditas, refazem o folclore criandocanes que nos causam a sensao de que sempreexistiram.42
E dentre estas canes, cita Foi Boto, Sinh!.
Sobre a utilizao de temas folclricos pelos compositores eruditos, Luiz Tatit tem a
seguinte opinio:
A utilizao de motivos sertanejos folclricos pelos eruditostem um sentido de ancoragem histrica, para que sua produono se distancie muito das razes populares e tenha chance deser reconhecida e apreciada pela coletividade. Tem tambm o
40MARIZ, Vasco.A cano Brasileira Erudita, folclrica, popular. 3 ed. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1977.41MARIZ, Vasco.A cano Brasileira Erudita, folclrica, popular. p. 8042TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. So Paulo:Edusp, 1996. p. 31
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sentido de se aproximar do povo, no pelo que este tem deefmero e circunstancial, mas por suas manifestaes perenesj fixadas na cultura. Afinal, a vasta tradio histrica damsica e da literatura eruditas favorece o culto do valorperenidade no que tange s obras dos artistas. Isto tudo nalinha de que a verdadeira arte resiste ao tempo e atravessa asgeraes mantendo-se com permanente vitalidade.43
A utilizao dos temas folclricos, resultando em canes to prximas do universo
popular, no caso de Waldemar Henrique, foi possvel porque este folclore estava
difundido em seu imaginrio.
Alguns depoimentos do compositor revelam seu pensamento sobre a questo de sua
composio ser erudita ou no, como por exemplo no trecho da entrevista a Joo Carlos
Pereira, que apresentamos a seguir, onde responde questo: Escreveu msica erudita?
No... respeitando o tipo de trabalho que ns tnhamos, queera de estar mais em contato com o povo, eu sempre achei queo povo era muito importante, eu achava que fazer canestipicamente eruditas, eu no lograva o interesse popular. Eupodia no fazer a msica de sabor bem folclrico, bem popular,ficasse no meio termo.... 44
Esse meio termovai de encontro ao adjetivo de semi-erudito atribudo por Luiz Tatit.
Queremos salientar tambm, desta fala, a preocupao do compositor com a aceitao de
suas canes, com o fato delas serem cantadas e apreciadas, enfim, de atingir sucesso
com elas. Esta preocupao direcionou seu processo composicional. Neste trecho, por
exemplo, fica claro que isto determinou um carter para suas canes, e como j
mencionamos anteriormente, foi um dos fatores que determinou a utilizao to
recorrente do folclore como tema, e a sua preocupao com a compatibilidade texto-
melodia, auxiliando os cantores a conseguirem xito em suas interpretaes.
Num outro ponto da mesma entrevista, respondendo pergunta: A conformao de suas
composies erudita?acrescenta:
43TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 3144PEREIRA, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Belm: Falangola, 1984.
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As minhas composies no tinham a preocupao de seremeruditas, portanto elas se destinavam a serem cantadas deacordo com aquele conselho que me deu Mrio de Andrade,que a cano para ser cantada e no trabalhadapianisticamente no acompanhamento; ou por outra, que aexpresso do piano dominasse a cano. Porm tem outra lio.Villa-Lobos dizia: A gente no deve harmonizar um temafolclrico; a gente deve ambient-lo harmonicamente.Portanto, no era s harmonizar, era ambientar. 45
Esta ltima fala do compositor extremamente significativa. Ficar explcito nas anlises
que existe, sim, uma preocupao em ambientar a cano atravs do acompanhamento. E,
muitas vezes, s entendendo esta caracterstica de suas composies que entendemos o
sentido que o acompanhamento imprime a cada cano, no apenas harmonizando, mas
participando efetivamente na construo deste sentido.
45PEREIRA, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique.
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2 As bases da Anlise2 . 1 . O o b j e t o d e a n l i s e
2 . 1 . 1 . A c a n o - o b r a
Desde que o homem foi reconhecido por outro como
um ser sensvel, pensante e semelhante a ele prprio,
o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe seus
sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios
para isso. 46
Jean-Jacque Rousseau
A comunicao da cano se faz, em primeira instncia, entre o compositor e o ouvinte,
existindo entre eles, neste processo de comunicao, a figura do intrprete (que podecoincidir , ou no, com a do compositor). Os agentes na comunicao de uma cano so
ento:
O objeto desta comunicao a cano transformado durante este percurso, quecompreende, em geral, duas fases enunciativas, logicamente determinadas e encadeadas
nos processos conhecidos como composioe execuo.47Estas duas fases enunciativas
so os dois momentos em que a cano materializada, permitindo-lhe ser comunicada e,
46ROUSSEAU, Jean-Jaques.Rousseau. 4 ed. So Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleo Os Pensadores. p.15947TATIT, Luiz.Musicando a Semitica. So Paulo: Annablume, 1997. p. 151
C o m p o s i t o r I n t r p r e t e O u v i n t e
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os agentes da materializao so o compositor e o intrprete. Numa primeira abordagem,
preciso fazer referncia ao compositor. ele quem d forma idia musical, e escolhe
o material sonoro da obra que chegar s mos do intrprete. Mas este ltimo
[intrprete] que a far existir. Cada um ser, assim, portador de um gesto.48
A primeira materializao possibilita a comunicao entre compositor e intrprete,
atravs do processo de composiomencionado por Luiz Tatit no trecho acima, e resulta
no que estamos chamando de cano-obra (fig2.1).
O intrprete atua sobre a cano-obra materializando-a sonoramente, transformando-a na
cano-som, atravs de sua execuo, que a outra fase enunciativa mencionada por Luiz
Tatit (fig2.2).
48ZAGONEL, Bernadete. O Que Gesto Musical. So Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros Passos), 1992. p.8.
C o m p o s i t o r
C a n o o b r acomposio
I n t r p r e t e
C a n o
s o m
execuo
C o m p o s i t o r
C a n o o b r a
composio
fig2.1
fig2.2
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Finalmente, o ouvinte, por sua vez, atua sobre a cano-som, interpretando-a, atribuindo-
lhe um sentido(fig2.3).
Temos, ento, um objeto (cano), que comunicado por um sujeito-emissor
(compositor) a um sujeito-receptor (ouvinte), passando pelo intrprete. O ouvinte
interpreta a mensagem atribuindo-lhe um sentido. A presena desses elementos (sujeito-
emissor, sujeito-receptor, objeto (mensagem), interpretao, sentido) neste processo nos
sugere pens-lo como um ato de comunicao e, dentro do percurso (fig2.3) que a
cano descreve neste ato do compositor ao ouvinte concentraremos nossa ateno na
cano-obra, na materializao do gesto do compositor. O compositor manipula gestos,
que so na realidade movimentos sonoros presentes anteriormente em seu pensamento,
e os concretiza em forma de partitura.49
2 . 1 . 2 . A s L e n d a s A m a z n i c a s
Iremos nos aproximar mais da obra de Waldemar Henrique atravs da anlise de sete de
suas canes, todas elas compostas utilizando como tema lendas amaznicas. Como
definido no item anterior, utilizaremos para as anlises o registro destas canes em
partituras, a cano-obra de cada uma delas.
49ZAGONEL, Bernadete. O Que Gesto Musical. p. 36.
C o m p o s i t o r
composioC a n o
o b r a
I n t r p r e t e
execuo
C a n o s o m
O u v i n t e
interpretao
fig2.3
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foram encontrados seus manuscritos. Nosso trabalho abranger a anlise das sete Lendas
Amaznicas editadas. Destas, somente duas possuem texto que no so do prprio
compositor (Foi Boto, Sinh!, Matintaperra), sendo que o poema de ambas de um
escritor paraense chamado Antnio Tavernard.
Das 193 obras que constam em seu Catlogo de Obras, apenas 41 (29% do total) foram
editas. Sobre este assunto, e manifestando o porque da no edio, nos fala o prprio
compositor:
Irmos Vitale e Vicente Mangione, e mais tarde RicordAmericana e Fermata foram meus editores. A partir de 1940,verificando certas negligncias, abusadas normas, espertezas,rompi com Vitale, perdendo para ele meu maior repertrio decanes gravadas. Os Irmos Mangione separaram-se edistriburam entre si as peas que lhes entreguei sob absurdoscontratos. Ricord usava idnticos processos sonegadores.Desanimei de todos e nunca mais permiti que meu repertriofosse editado. Os 3 pontos rituais pela Ricord e oAbaluaieHei de seguir teus passosforam editados, respectivamente pelaRicordi e Mangione porque eu precisava lev-las para a Europaeditadas. Deu tudo na mesma. No se vende, no se acha, nose reedita, no se paga nada ao autor. At hoje no quis sereditado, ou melhor dizendo, espoliado.54
Sobre o prejuzo da no edio da obra de Waldemar Henrique nos fala Claver Filho:
Somente sete Lendas foram editadas, , enquanto as quatroltimas conservam-se em manuscrito e quase ningum asconhece [...] Esse ineditismo da maior parte da obra deWaldemar Henrique prejudica at os estudiosos, uma vez quenunca possvel fazer uma anlise detalhada de seu estilo,enquanto a problemtica relacionada com as editoras no
chegar a um fim aceitvel.
55
54FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.99.55FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 85-86
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2 . 2 . D e f i n i n d o o o l h a r
2 . 2 . 1 . O F o c o
Uma anlise sempre um determinado olhar para o objeto analisado. Sobre uma obra de
arte podem ser lanados infinitos olhares, dada a sua inesgotabilidade, cada olhar
realar diferentes aspectos. O nosso olhar estar, prioritariamente, direcionado para a
relao texto-msica, no sentido de investigar como o compositor construiu uma
compatibilidade entre estes dois componentes, to diferentes, que se unem para formar a
cano.
Sobre a diversidade destes dois sistemas de significao nos fala Mrio de Andrade:
Sob o ponto de vista psicolgico pode-se dizer, embora umpouco primariamente, que se a msica tem sua base exclusivade desenvolvimento na associao de imagens, a poesia tem asua na associao de idias. Ora estes so dois processos decriao psquica profundamente diversos um do outro: aassociao de imagens exclusivamente subconsciente, e a
associao de idias essencialmente consciente.56
Compor uma cano um grande malabarismo57que o compositor realiza, tendo numa
das mos o componente lingstico e na outra o meldico. um processo de
compatibilizao que, em primeira instncia, realizado atravs do gesto do compositor.
O componente meldico no pode se desenvolver por critrios puramente musicais, ele
liga-se indissociavelmente ao texto.
Ora, se na composio puramente instrumental o compositor
est livre e pode por isso dar largas s exigncias puramentertmico-meldico-harmnicas da melodia, na cano ele estpreso ao texto e tem de acomodar as exigncias da composioa um texto dado.58
56ANDRADE, Mrio de.Aspectos da Msica Brasileira. p. 4757Termo definido (neste contexto) e amplamente utilizado por TATIT, Luiz. O cancionista Composiode Canes no Brasil. p. 958ANDRADE, Mrio de.Aspectos da Msica Brasileira. p. 48
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Na seo 2.1.1, falamos do percurso da cano entre o compositor e o ouvinte como um
ato de comunicao, no qual o objeto comunicado a cano. A concentrao de nossas
anlises, primordialmente, na compatibilidade criada pelo compositor entre os
componentes lingstico e meldico de cada cano, levando-se em conta o ato de
comunicao, apia-se nas seguintes falas de Luiz Tatit: A eficcia da cano popular
depende fundamentalmente da adequao e da compatibilidade entre seu componente
meldico e seu componente lingstico 59, sendo que: eficcia, traduz um xito de
comunicao entre destinador e destinatrio cujo objeto comunicado a prpria
cano60.
2 . 2 . 2 . A i n d i s s o c i a b i l i d a d e e n t r e t e x t o e m e l o d i a
A grande importncia da compatibilizao dos componentes lingstico e meldico, no
gesto composicional, vem do fato de que, na cano, texto e melodia so indissociveis.
Os dois componentes atuam em conjunto na gerao de sentido, so simultneos e
separveis apenas por artifcios tericos que possibilitam a anlise da cano. Na
execuo da cano, os mesmos elementos sonoros que constroem a melodia, constroem
tambm o texto, e deixam transparecer uma fala.
Uma vez que os componentes so indissociveis (como detalharemos nas sees
seguintes), quer queira, quer no, atuaro em conjunto para a construo do sentido da
cano e a preocupao do compositor com a compatibilizao destes componentes
primordial.
2 . 2 . 2 . 1 .
A g n e s e s o n o r a d o t e x t o e d a m e l o d i a .
A linguagem sobre a qual a cano construda formada por um texto sustentado por
uma melodia61. Numa execuo, letra e melodia se materializam ao mesmo tempo e
atravs do mesmo material sonoro. A sustentao sonora das vogais possibilita a
59TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. So Paulo: Atual, 1987. p. 360TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 361Ao utilizarmos o termo melodia em contraponto a texto, estaremos nos referindo melodia da linha docanto.
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2 . 2 . 2 . 2 .
A f a l a d o c o m p o s i t o r
Eu fui um tipo muito tmido (mope) calado. Amsica era a minha fala.
Waldemar Henrique
A cano-obra (fig2.1), a materializao de uma fala do compositor, no sentido de
que: A fala um ato individual de utilizao da lngua, um modo de combinar os
elementos da lngua no ato de comunicao. 67 A lngua, no caso da cano, uma
combinao de dois sistemas de significao, um lingstico e um musical. O sentido da
cano construdo sobre a unio destes dois sistemas que formam um terceiro, que no
nem um nem outro; transcende a soma dos dois. a linguagem da cano na sua
indissociabilidade entre letra e melodia, entre seu componente lingstico e seu
componente meldico.
A fala do compositor expressa atravs desta linguagem da cano. Um texto
sustentado por uma musicalidade carregado de sentido, um sentido que no vem s das
palavras, mas de como elas foram ditas. No ato da composio, o compositor fala o
texto de uma determinada maneira, atravs da melodia que agrega para sustent-lo.Assim, um texto associado a uma musicalidade um gesto vocal, bem mais que s
palavras. No mundo do cancionista no importa tanto o que dito mas a maneira de
dizer, e a maneira essencialmente meldica.68
O compositor fala pela compatibilizao da letra com a melodia. A cano-obra um
discurso que, alm de trazer o registro dos fonemas, agrega a estes sons outros atributos
como: variao de altura, de intensidade e de durao. Estes atributos sonoros j nos
permitem vislumbrar uma maneira de dizer. um registro de como, em um determinadomomento, o compositor falou aquele texto, com o componente musical revelando as
modalidades do componente lingstico. Existe um sentido impresso que vai alm da
significao das palavras.
67NETTO, J. T. Coelho. Semitica, Informao e Comunicao. 6 ed. So Paulo: Perspectiva,2003. p. 1868TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 9
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A anlise de uma cano , assim, uma interpretao da fala do compositor, que na sua
comunicao, adquire diferentes sentidos na recepo de cada ouvinte. A anlise de cada
cano de Waldemar Henrique que apresentaremos no captulo 3 , neste sentido, o que
ouvimos daquilo que ele falou em cada uma delas.
Waldemar Henrique falou atravs de suas canes e falou como um paraense que era:
Pode-se ser alegre ou triste mas o falar paraense se identifica pela doura. Fixemos esta
doura69
2 . 3 . A s b a s e s t e r i c a s
2 . 3 . 1 .
O m o d e l o d e L u i z T a t i t
Luiz Tatit nos apresenta em vrios de seus livros70 uma fundamentao terica para a
anlise de canes na qual
vem propondo uma anlise da cano que identifica a estreitaligao entrefala e cano, evidenciando os diversos nveis derelaes existentes entre letra e melodia. Dessa maneira possvel perceber como se d a construo do sentido numaobra que usa dois sistemas de significao distintos: um textolingstico sustentado por um texto meldico. 71
Seu trabalho tem como base a semitica e, atravs do desenvolvimento de suas pesquisas,
a semitica possui hoje ferramentas suficientes para, utilizando os mesmos princpios
tericos, analisar eficientemente letra e melodia, e a interao entre as duas. 72Assim, a
proposta de Luiz Tatit vem ao encontro da nossa inteno de investigar a relao texto-
msica nas canes de Waldemar Henrique, uma vez que este o foco que ele prope.
69FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 7970TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. So Paulo:Edusp, 1996; A Cano,Eficcia e Encanto. So Paulo: Atual, 1987; Semitica da Cano Melodia e Letra. 2 ed. SoPaulo:Editora Escuta, 1999 e TATIT, Luiz.Musicando a Semitica. So Paulo: Annablume, 1997.71DIETRICH, Peter.Ara Azul: Uma Anlise Semitica. p. 20.72DIETRICH, Peter.Ara Azul: Uma Anlise Semitica. p. 20.
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Seu trabalho direcionado para a cano popular mas, pelo carter da msica de
Waldemar Henrique (como discutido na seo 1.4), suas idias so muito apropriadas
para a anlise deste repertrio.
Neste trabalho no realizamos uma anlise semitica das canes, pois isto foge
abrangncia do nosso estudo. O modelo de Tatit est presente na medida em que funciona
como uma espcie de guia para a reflexo, nos ajudando a identificar os mecanismos
utilizados pelo compositor para compatibilizar os componentes lingstico e meldico.
Descreveremos a seguir, vrios aspectos do modelo que proporcionaram uma ampliao
da nossa viso e entendimento da cano, e direcionaram o nosso pensamento nasanlises, sem a pretenso de esgotar uma descrio desse modelo.
Na seo 2.2.2.2 descrevemos o que chamamos de fala do compositor, como sendo a
forma como ele associou um texto a uma melodia para expressar uma idia. Encontramos
no modelo do Tatit, uma definio semelhante, para a qual utiliza o termo projeto
enunciativo, que adotaremos.
Oprojeto enunciativodesdobra-se emprojeto narrativo eprojeto entoativo73
. A maioriadas canes so narrativas. Existe, pois, na letra, um projeto narrativo que vai desde a
definio dos actantes (personagens da narrao) e lugares, at os recursos de construo
do texto com suas variaes de discurso. O projeto narrativo , ento, o componente
lingstico da cano, seu texto, compreendendo forma e contedo.
O projeto entoativo a melodia da linha do canto, a musicalidade que se associa
diretamente ao texto. Os projetos entoativo e narrativo esto intimamente relacionados. A
voz que canta, no momento mesmo em que delineia a linha meldica conta uma histria,fala o texto.
A compatibilidade entre o texto e a melodia normalmente criada sob o domnio de um
destes dois elementos. Ora a melodia regida pelo texto, aproximando-se das entoaes
73TATIT, Luiz.Musicando a Semitica.. p. 122.
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da fala, ora o texto que se adequa s clulas rtmico-meldicas que se sucedem na
construo da coeso musical. Neste sentido, numa primeira instncia, existem dois
direcionamentos na composio de uma cano, e cada um deles atua em diferentes
nveis e por diferentes estmulos na comunicao com o ouvinte. O primeiro investe na
comunicao atravs do componente lingstico e o segundo, atravs do musical. Quando
o investimento no componente lingstico, a melodia caminha em direo fala, o
contorno meldico faz referncia entoao da fala. Quando o investimento no
componente musical, o texto se adapta aos padres rtmico-meldicos e temas musicais
construdos, e que vo sendo reiterados na cano.
Embora normalmente exista um direcionamento para um dos componentes (lingstico ou
musical), os dois esto sempre presentes na j comentada indissociabilidade texto-
melodia (seo 2.2.2). Construir a compatibilidade entre os dois componentes consiste
em, mesmo investindo em um deles, nunca perder o outro de vista.
Se o investimento no componente lingstico, a conduo meldica no pode ser
negligenciada, sob pena de se perder a coeso musical. Por outro lado, um investimento
no componente musical no pode se distanciar totalmente das referncias da fala.
Qualquer que seja o projeto de cano escolhido, e por mais que a melodia tenha
adquirido estabilidade e autonomia neste projeto, o lastro entoativo no pode desaparecer,
sob pena de comprometer inteiramente o efeito enunciativo que toda cano alimenta. 74
Existe uma relao muito estreita entre o projeto entoativo e o projeto narrativo:
O texto vem dos estados da vida: estado de enunciao falasimplesmente; estado de paixo fala de si; estado de
decantao fala de algum ou de algo. Cada estado retratadono texto tem implicaes meldicas, tem uma compatibilidadeem nvel de modalizao. 75
O sentido da cano construdo na simultaneidade dos dois projetos.
74TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 13.75TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 17.
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Nas nossas anlises das canes procuraremos identificar o quanto o compositor
direcionou seu gesto para cada um dos componentes, ou seja, como o compositor,
investindo em um deles, no perdeu a coeso do outro; como este investimento varia
dentro de uma mesma cano e como isto influencia em seu movimento; como, juntos, os
dois componentes imprimem um sentido cano. Verificaremos, tambm, se existe uma
predileo do compositor pelo investimento em um dos componentes, buscando
identificar a sua fala.
2 . 3 . 1 . 1 .
I n v e s t i n d o n o c o m p o n e n t e l i n g s t i c o
Luiz Tatit adota o termofigurativizaopara o investimento no componente lingstico,para a aproximao da melodia fala. Claro que toda cano, sendo construda com os
mesmos elementos da fala, no deixa de referenci-la, o que varia o grau de
investimento neste componente. Seria impossvel eliminarmos, no ato de composio,
de interpretao ou de audio de algo que possui texto e melodia, nossa vasta
experincia, acumulada durante todos os dias da nossa vida, com uma linguagem que
tambm possui texto e melodia76
No processo de comunicao da cano, como em todo processo de comunicao, a
finalidade ltima no informar, mas persuadir o outro a aceitar o que est sendo
comunicado. Por isto, o ato de comunicao um complexo jogo de manipulao com
vistas a fazer o destinatrio77 crer naquilo que se transmite. 78Uma melodia que no
perde a sua relao com a entoao, exerce sua persuaso pelapresentificao algum
falando aqui e agora. Remete o ouvinte fala cotidiana e estabelece uma relao de
cumplicidade pelo contar uma experincia. O compositor e o intrprete (que so quem
materializa a cano) so, neste sentido, narradores, contadores de histria, e esse umgrande poder de persuaso da cano. A impresso de que a linha meldica poderia ser
76TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 877O destinatrio o sujeito a quem a mensagem dirigida, no caso, o ouvinte.78FIORIN, Jos Luiz. Elementos de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2004. p. 52
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uma inflexo entoativa da linguagem verbal cria um sentido de verdade enunciativa,
facilmente revertido em aumento de confiana do ouvinte no cancionista.79
Esse poder de persuaso est diretamente relacionado ao fato que j salientamos (seo
2.2.2.1) de que fala e canto so construdos, na cano, simultaneamente e com o mesmo
material sonoro. No momento em que a voz comea a flexionar o texto com uma
determinada melodia, j nos preparamos para reconhecer, por hbito de linguagem
coloquial, os traos da entoao. 80
Cada compositor, em cada cano, insere elementos que favorecem a figurativizao. A
forma como isto aparece em cada cano tem relao com a fala do compositor, ouseja, como ele, de maneira geral, busca em sua composio um investimento no
componente lingstico, e como, em cada cano, cria solues para a compatibilizao
deste investimento com o componente musical, mantendo sua coeso.
Alguns destes elementos de figurativizao, que esto normalmente presente nas canes
so: o simulacro de locuo, os diticos , os tonemas e as frases musicais que
descrevem o contorno de uma enunciao padro.
a )
O s i m u l a c r o d e l o c u o
A comunicao do objeto cano sempre entre o destinador (compositor ou
intrprete) e o destinatrio (ouvinte). No entanto esta comunicao pode ser estabelecida
atravs de uma outra, construda em forma de simulacro. Isto acontece, por exemplo, na
cano Cobra Grande na fala Cunhat te esconde l vem a Cobra Grande... Faz
depressa uma orao pra ela no te levar. A cunhat no necessariamente o
destinatrio, assim como o eu que fala no necessariamente o destinador. Existe umacomunicao entre o eu da narrativa e a cunhat, e uma mensagem transmitida neste
plano de comunicao. Mas este um plano secundrio, pois a comunicao principal
entre o destinador (compositor ou intrprete) e o destinatrio (ouvinte), atravs da
transmisso de uma outra mensagem. Para o emissor e o receptor no plano do simulacro
79TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2080TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 7
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Locuo Principal
Simulacro de Locuo
utilizaremos os termos adotados por Luiz Tatit: interlocutor e interlocutrio.
Esquematicamente temos81:
destinador destinatrio
compositor/intrprete ouvinte
interlocutor interlocutrio
actante da narrativa actante da narrativa
O simulacro de locuo um recurso de figurativizao que pertence eminentemente ao
componente lingstico da cano, no entanto, ele normalmente acompanhado por uma
figurativizao no componente meldico, com criao de um suporte sonoro prximo
entoao da fala para a parte do texto que configura o simulacro.
A persuaso do simulacroprovm do fato de, na execuo da cano, o cantor sintetizar
os papis de destinador/interlocutor, fazendo com que o ouvinte no separe com nitidez a
locuo principal do simulacro, assim, este ltimo serve para presentificar a situao delocuo. Durante o mesmo tempo que o interlocutor fala com o interlocutrio, o
destinador canta para o destinatrio [...] Esta identificao entre as duas instncias
assegura um sentido de verdade ou de realidade que est na base da persuaso
figurativa.82
O simulacropode estar presente durante toda uma cano, ou aparecer em alguns trechos
ocasionando um desvio do discurso, normalmente acompanhado de uma mudana
tambm no discurso musical. Estas variaes de discurso so geradoras de movimentopara a cano.
81No esquema apresentado por Luiz Tatit realizamos algumas simplificaes de nomenclatura. TATIT,Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 10.82TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 10
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b )
O s D i t i c o s
Os diticos so elementos presentes no componente lingstico da cano que explicitama situao de locuo. So imperativos, vocativos, demonstrativos, advrbios, etc.83que
ao serem utilizados entram em fase com a raiz entoativa da melodia, presentificando o
tempo e o espao da voz que canta. O papel dos diticos lembrar, constantemente, que
por trs da voz que canta h uma voz que fala 84 Quando Tatti fala que os diticos
entram em fase com a raiz entoativa da melodia, importante ressaltar que isto
normalmente acontece, mas sempre funo do gesto do compositor, de seu esforo
em compatibilizar o texto e a melodia.
A grande fora persuasiva dos diticos, no sentido de fisgar o ouvinte para a locuo,
vem do estabelecimento de uma estreita relao entre o componente lingstico e o
meldico. A utilizao do ditico no texto, acompanhada de um contorno meldico que
faz referncia sua utilizao na linguagem coloquial, o que garante o seu poder de
persuaso. Os diticos funcionam como etiquetas discursivas que colam o texto na
melodia, evidenciando seus traos entoativos. Isto porque, assim como a entoao, os
diticos visam presentificar a cena discursiva, chamando a ateno para o momento e o
ambiente em que ocorre a locuo.85
c ) O s T o n e m a s
Os tonemas so as terminaes das frases. Eles se configuram atravs da melodia,
podendo ser descendentes, quando o esforo de emisso distendido e a voz caminha
para um repouso diretamente associado terminao asseverativa do contedo86;
ascendentes ou suspensivos, quando sugerem continuidade do discurso.
83Como exemplo, assinalamos diticos no seguinte trecho de Curupira: S escutopela frente,pelo ladoocurupira me chamar.84TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2185TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 2186TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 21
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d )
A e n u n c i a o p a d r o
A enunciao-padro da linguagem oral obedece a pelo menos trsfases entoativas: uma fase inicial de ascendncia, associada, emgeral, introduo da temtica (condio de comunicao); uma fasede declnio asseverativo, na qual, em geral, se alojam os contedosopinativos ou mesmo o objeto central da comunicao; e, por fim, afase mais significativa, que corresponde ao tonema. Este podeconfirmar ou comprometer todo o significado construdoanteriormente.A primeira fase de um percurso entoativo, assim como os processos
passionais, reveste-se de tenso, embora no se refira
necessariamente a uma questo emotiva. Sua tenso , antes,indicativa de continuidade, servindo entre outras coisas, para manteracessa a ateno do ouvinte. Do mesmo modo, em contrapartida, adescendncia entoativa anuncia proximidade de finalizao aindaque esta possa ser adiada indefinidamente por novas ascendncias. Otonema defini de vez o jogo entoativo fisgando, diretamente na fonteenunciativa, a modalidade que norteia a relao entre o sujeito e seudiscurso. Pelos tonemas, reconhecemos no s as afirmaes, asinterrogaes, as suspenses mas tambm as hesitaes, asinsinuaes, os apelos e outras sutilezas da linguagem oral.87
O contorno meldico da enunciao padro muitas vezes aparece associado a uma frase
do texto. s vezes os movimentos de ascendncia e descendncia so realizados por
escalas diatnicas, s vezes numa repetio de padres rtmico-meldicos, buscando uma
coeso com o desenvolvimento do componente musical, mas sempre propiciam uma
tenso crescente pela ascendncia, associada ao discurso do componente lingstico, e um
relaxamento na descendncia, que corrobora com a concluso da idia da frase do texto.
2 . 3 . 1 . 2 .
I n v e s t i n d o n o c o m p o n e n t e m u s i c a l
O investimento no componente musical pode se dar em duas direes. Na primeira, a
durao das vogais ampliada, h uma valorizao do contorno meldico com uma
ampliao da tessitura e dos saltos intervalares. quando o cancionista no quer a ao
mas a paixo. Quer trazer o ouvinte para o estado em que se encontra. Nesse sentido,
87TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 258
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ampliar a durao e a freqncia significa imprimir na progresso meldica a modalidade
do /ser/88
Na outra direo, ao contrrio, h uma diminuio da durao das vogais, fazendo com
que a melodia se torne mais segmentada pelo ataque das consoantes. Os contornos
meldicos transformam-se em motivos que so reiterados na cano. A acelerao dessa
descontinuidade meldica, cristalizada em temas reiterativos, privilegia o ritmo e sua
sintonia natural com o corpo [...] a vigncia da ao. a reduo da durao e da
freqncia. a msica modalizada pelo /fazer/.89
Existe uma relao estreita entre o tipo de modalizao utilizada e o contedo docomponente lingstico, sendo que uma variao neste ltimo, no decorrer da cano,
normalmente implica numa variao de modalizao. Assim, o componente musical e o
lingstico atuam em conjunto para imprimir o sentido da cano. Sobre esta relao das
vogais e as consoantes e a modalizao pelo /ser/ e pelo /fazer/ citamos Kristin Linklater
numa fala bastante esclarecedora:
De certa maneira, as vogais podem ser vistas como um componente
emocional da construo das palavras. As consoantes, seucomponente intelectual. As vogais pedem um canal aberto para arespirao, atravs da boca. As consoantes so formadas pelaoposio de alguma parte da boca passagem do ar, criando sonsexplosivos, reverberantes, zunidores ou lquidos atravs darespirao e/ou vibrao. Por sua conexo direta e ininterrupta com arespirao, as vogais podem se ligar diretamente emoo, desdeque o impulso da respirao seja to profundo quanto o diafragma. Oplexo solar primeiro centro nervoso receptor e transmissoremocional entrelaa-se s fibras do diafragma. A emoo, o desejo,o impulso criativo esto intrinsecamente ligados ao sistema nervoso
central. As consoantes fornecem uma experincia sensorial traduzidaem estados de esprito, modulando e canalizando as vogais empercursos que fazem, das emoes, sentido. O som das consoantescomunica-se mais externamente, atravs do corpo, originandoestados de esprito e efeitos, mais que emoes. As vibraes dasconsoantes trabalham atravs dos ossos, dos msculos, da pele para
88TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 1089TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 10-11
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sua percepo. As vogais tm acesso direto ao plexo solar, sendomais imediatamente emocionais.90
Ainda sobre a diferena da atuao modal das vogais e das consoantes nos fala
Rousseau: A clera arranca gritos ameaadores, que a lngua e o palato articulam, porm
a voz da ternura, mais doce, a glote que modifica, tornando-a um som.91 O som
produzido na glote so os das vogais, as consoantes, em sua grande maioria, so
produzidos pelos articuladores.
O investimento na direo de prolongar a sonoridade das vogais, da modalizao pelo
/ser/ Luiz Tatit chama de passionalizao92. Na direo de criar uma modalizao pelo
/fazer/ chama de tematizao93. O objetivo da persuaso pela passionalizao
estabelecer uma cumplicidade emocional entre o destinador e o destinatrio. Pelo texto
(o destinador)transmite sua posio no quadro narrativo e, pela melodia, sua emoo por
ocupar esta determinada posio 94. A sonoridade produzida pela sustentao das vogais
conduz a uma inao, a um estado de introspeco propcio aos relatos passionais. J a
tematizao caracterizada pela reiterao de temas rtmico-meldicos e conduzem, pela
pulsao, ao. Muitas vezes estes temas esto relacionados com temas lingsticos,
neste caso, reiterao meldica, se desenvolve, paralelamente, uma reiterao nodiscurso e assim se garante a compatibilidade entre letra e melodia. No investimento na
tematizao quando a melodia mais se afasta da fala, o texto que se adapta s clulas
rtmico-meldicas do componente musical.
A persuaso pela tematizao se d pelo estmulo somtico da pulsao, e pela
compatibilidade da reiterao entre texto e melodia.
90LINKLATER, Kristin. Freeing the Natural Voice. apud LOPES, Sara Pereira.Diz Isso Cantando! AVocalidade Potica e o Modelo Brasileiro. Tese de Doutorado. So Paulo: ECA-USP, 1997. p. 65.91ROUSSEAU, Jean-Jaques.Rousseau. p. 18692Ao investir na continuidade meldica, no prolongamento das vogais, o autor est modalizando todo opercurso da cano com o /ser/ e com os estados passivos da paixo. Suas tenses internas so transferidaspara a emisso das freqncias e, por vezes, para a ampla ampliao da tessitura. Chamo a esse processopassionalizao. TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2293Ao investir na segmentao, nos ataques consonantais, o autor age sob a influncia do /fazer/,convertendo suas tenses internas em impulsos somticos fundados na diviso dos valores rtmicos, namarcao dos acentos e na recorrncia. Trata-se, aqui, da tematizao. TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2294TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 26
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Este trao comum, a periodicidade, funciona como umdispositivo de compatibilidade entre o texto e a melodia,articulado pelo destinador, com o intuito de envolver odestinatrio num universo de discurso coerente do ponto devista lgico (a periodicidade em si) e do ponto de vistasensitivo (as vibraes).95
O investimento em uma direo (figurativizao, tematizao ou passionalizao) no
implica na inexistncia das demais, ao contrrio, normalmente existe uma simultaneidade
das trs. O que ocorre a dominncia de um deles, sendo que esta dominncia pode ser
alterada no decorrer da cano, e normalmente esta alterao tem uma relao com o
contedo do discurso lingstico.
2 . 3 . 2 . P r o j e t o G e r a l
O trabalho de Luiz Tatit concentra-se na relao texto-melodia mas, nas nossas anlises,
observaremos tambm o papel do acompanhamento na construo do sentido das
canes. Na cano erudita, ao contrrio do que geralmente acontece na popular, o
acompanhamento faz parte do projeto do compositor.
Sendo assim, nas nossas anlises alm do projeto entoativo, o componente musical
engloba tambm o acompanhamento do piano. Chamaremos de projeto geral um
projeto que engloba o projeto enunciativo (narrativo + entoativo) e o projeto do
acompanhamento . As anlises estaro direcionadas para a apreenso da construo da
compatibilidade entre estes diversos projetos, separados para fins de anlise, mas
entendendo que na indissociabilidade deles que construdo o sentido da cano.
O modelo de Tatit nos fornece uma base bastante consistente para a anlise dacompatibilidade entre texto e melodia, apoiando-se na semitica, e foi nesta rea de
conhecimento que fomos tambm nos apoiar para conseguir estender esta base para a
anlise da compatibilidade do texto com todos os elementos musicais. O conceito da
semitica que nos serviu de base foi o depercurso gerativo de sentido.
95TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 53
8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita
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________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e
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O percurso gerativo de sentido uma sucesso de patamares, cada um dos quais
suscetvel de receber uma descrio adequada, que mostra como se produz e interpreta o
sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo.96 Esses patamares
so: o nvel fundamental, o nvel narrativo, e o nvel discursivo.
No nvel fundamentalsurge a significao atravs de uma oposio semntica. No nvel
narrativoso descritos os estados e as transformaes.
O nvel narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos.Numa narrativa, aparecem dois tipos de objetos: objetosmodais e objetos de valor. Os primeiros so o /querer/, o
/dever/, o /saber/ e o /poder fazer/ [...] Os segundos so osobjetos com que se entra em conjuno ou disjuno.97
A obteno dos objetos modais necessria para que o sujeito realize as transformaes
da narrativa, e entre em conjuno ou disjuno com os objetos de valor. No nvel
discursivo , as formas abstratas do nvel narrativo so concretizadas. Recorremos a um
exemplo para melhor esclarecer os conceitos. No nvel fundamental podemos ter a
oposio /pobreza/ X /riqueza/. No narrativo, um percurso que descreve a conjuno de
um sujeito com a riqueza. No discursivo esta conjuno pode ser concretizada por:
assaltar um banco, receber uma herana, etc. So diferentes concretizaes do objeto
valor /riqueza/.98
A gerao de um texto (no s um texto lingstico), parte do nvel fundamental, at
atingir o discursivo, no qual as idias so materializadas e podem ser transmitidas, o
texto tal qual se apresenta ao leitor. No nosso trabalho, esse texto a cano-obra. No
processo de anlise, percorre-se o percurso gerativo de sentido na direo inversa: a
partir do texto, do nvel discursivo, chega-se ao nvel fundamental, que chamaremos dencleo gerador.
96FIORIN, Jos Luiz. Elementos de Anlise do Discurso.p.17.