© 2009, BV Films Editora Ltda · 2015-09-24 · 10 O Peregrino o mais notável de todos eles. John...

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  • © 2009, BV Films Editora Ltdae-mail: [email protected] Visconde de Itaboraí, 311 – Centro – Niterói – RJCEP: 24.030-090 – Tel.: 21-2127-2600www.bvfilms.com.br / www.bvmusic.com.br

    É expressamente proibida a reprodução deste livro, no seu todo ou em parte, por quaisquer meios, sem o devido consentimento por escrito.

    Originalmente publicado em inglês com o título:The Pilgrim’s Progress

    Editor Responsável: Claudio RodriguesCapa e editoração: GuilO Peregrino - Parte I Tradução: Simone Lacerda de Almeida Viviane Borges Soares AndradeRevisão de texto: Marcus Vinicius Cardoso Paulo PancoteSermões de Bunyan Tradução e Revisão: Marcus Vinicius Cardoso

    ISBN: 978-85-61411-07-71ª edição - Junho/20091ª reimprensãoImpressão: Imprensa da FéClassificação: Bíblia

    Impresso no Brasil

  • Índice

    Prefácio 05Biografia 09

    O Peregrino 109O Último Sermão 321

  • Prefácio

    Para muitos pode parecer supérfluo o trabalho de escrever uma introdução para o público, da nova edição de O Peregrino, de John Bunyan, ou fazer al-gum comentário sobre seu autor. O Peregrino é, juntamente com a Bíblia, um dos mais conhecidos livros já publicados. Podemos imaginar que nem todos tiveram a oportunidade de ler a obra completa de Bunyan, mas em algum momento de suas vidas, elas travaram conhecimento com a famosa jornada do Cristão deste Mundo Àquele que está por vir.

    Este livro que citamos, conquanto seja suficiente para garan-tir ao autor um lugar entre os escritores mais renomados, seja dos tempos modernos ou antigos, não representa a décima parte do trabalho feito por Bunyan durante sua vida completamente devotada ao serviço de Deus. A pressa da vida moderna e os apelos incessantes feitos por inúmeras publicações, boas, ruins ou mesmo indiferentes, não são capazes de nos fazer esquecer a imensa contribuição prestada por John Bunyan à causa da ver-dadeira religião em suas mais de sessenta diferentes publicações, mostrando em cada uma delas uma mente simples, cheia de de-voção, a marca de um amor genuíno pela verdade, e a sua grande genialidade.

  • O Peregrino6

    Nascido em uma época que se destacou pelo surgimento de muitos homens cujas obras são admiradas até hoje, ele conquis-tou através de seus permanentes esforços uma elevada posição, se não a mais alta de todas, entre estes homens. Apesar disso, pobreza e ignorância também tiveram participação em sua vida. Após ter optado em sua juventude por uma vida sem Deus, cheia de maldade e pecado. Tornou-se posteriormente um dos grandes mestres da língua inglesa, e um dos mais bem-sucedidos e mais notáveis professores de religião que o mundo já conheceu.

    Quando sua mente estava totalmente mergulhada em temas religiosos, ele praticamente esquecia-se da pouca instrução que recebera, sendo que o primeiro estudo que fez sobre a Bíblia foi para ele uma tarefa levada muito a sério. Bunyan tornou-se tão familiarizado com os ensinamentos bíblicos, e compreendendo de tal forma a profundidade de seu significado que, com seu rico e vigoroso estilo, mostrava em cada linha o impressionante conhecimento que tinha sobre o “Livro dos livros”.

    Durante sua vida e mesmo cerca de cem anos após sua morte, os ricos e bem-educados não conseguiam mencionar seu nome ou citar suas obras sem se desculparem por isso. O inculto mas-cate de Elstow era lido e citado sob protesto de muitos. Para os pobres e pouco instruídos, que não precisavam vencer precon-ceitos sobre educação ou origem familiar, ele tornou-se imedi-atamente popular. Este foi um homem testado na fornalha ar-dente das aflições e que não se deixou vencer nem ficar parado, esperando.

    Alguém cujas experiências e dificuldades religiosas eram as mesmas que as deles, que lhes estimulava a mente e despertava a solidariedade entre seus compatriotas menos favorecidos.

    A impressionante originalidade de seu talento garantiu a John Bunyan um lugar entre os imortais. Nos dias de hoje, ele é lido e respeitado por ricos e pobres. Refletindo acerca de sua origem tão humilde, podemos encará-la como um motivo a mais para a admiração que o conteúdo de suas obras acaba despertando.

    O Peregrino6

  • Prefácio 7

    E apesar da simplicidade deste homem, nenhum outro escri-tor religioso aprofundou-se tanto em suas experiências pessoais como ele. Encontramos em suas obras um cenário sem paralelo na literatura cristã, que apresenta a feroz batalha travada para redimir a alma humana do pecado e alcançar libertação. Suas exposições sobre as Escrituras são conhecidas por sua força e simplicidade, sendo adornadas somente por ilustrações caseiras que retratavam a rotina do seu dia-a-dia. Talvez o aprendizado acadêmico tradicional tivesse diminuído sua influência e en-fraquecido o poder de suas obras. Este homem iletrado, mas de grande talento, é chamado de “Comentarista dos Pobres”, por nunca ter escrito uma única linha que não pudesse ser claramente compreendida pelo mais simples dos leitores. Ao mesmo tempo, sua simplicidade reflete a grande dimensão de sua obra pela luz própria dos que possuem talento.

    Na reedição deste clássico religioso, todos os cuidados têm sido observados para reproduzir os textos originais na íntegra e com toda precisão. Apresentamos também um breve resumo da vida de John Bunyan onde os principais acontecimentos de sua carreira são apresentados com destaque ao leitor.

    J.S.R.

  • Biografia de John Bunyan(Por John S. Roberts)

    O século 17 foi singularmente produtivo em relação aos grandes escritores, religiosos ou seculares. Aquele que em sua origem era o mais humilde de todos e o mais desafortunado, no que diz respeito à educação formal – John Bunyan – é hoje, após um intervalo de alguns séculos, um dos mais conhecidos e mais populares dentre todos eles. Entre estes seus contemporâneos podemos citar: Milton, Dryden, Baxter, Owen, Howe, Hen-ry, Arcebispo Usher, Bispo Hall, Thomas Goodwin, Chefe de Justiça Hale, Cudworth e Henry More. O próprio Shakespeare morrera apenas doze anos antes do nascimento de Bunyan. A simples menção destes nomes nos dá uma ideia bem clara da riqueza dessa época no que diz respeito a homens de grande talento. Se levarmos em consideração o fato de que a maior obra de Bunyan, O Peregrino, foi criação de uma mente inculta tanto sob o ponto de vista formal, quanto por relacionamento com pessoas cultas, ele deverá obrigatoriamente constar como

  • O Peregrino10

    o mais notável de todos eles. John Bunyan nasceu em 1628, em Elstow, aproximadamente a 1,5 km da cidade de Bedford, Ingla-terra. Seu pai era funileiro; consertava panelas, bules e chaleiras. Esta profissão não era tão respeitada quanto à de um ferreiro, assim como a de sapateiro, não era tão respeitada como a dos artesãos e fabricantes de sapato. Naqueles dias e durante muitos anos que se seguiram, a profissão do pai de Bunyan e de seu fa-moso filho era difundida em outras localidades por andarilhos e ciganos, também conhecidos como mascates – nome pelo qual os Bunyans foram batizados, embora não viajassem por todo o país ao sabor da profissão. Bunyan e seu pai limitavam-se a tra-balhar em uma área restrita às vizinhanças mais próximas.

    Muitos dos que escreveram a respeito de Bunyan supunham erroneamente que ele fosse descendente de ciganos, esquecen-do-se que até certo período da História, ingleses e escoceses atravessavam o país com suas famílias em clãs ou bandos, so-brevivendo da produção e venda de utensílios de lata e madeira. Este que lhes escreve, ainda se lembra desses grupos de “nô-mades nacionais” se deslocando de um lugar para outro através das áreas centrais da Escócia. Alguns desses grupos chegavam a ter de cinquenta a cem pessoas, entre jovens e velhos. Eles ar-mavam suas tendas em qualquer pedaço de chão disponível nas vizinhanças das vilas ou das cidades e permaneciam ali até que tivessem esgotado comercialmente aquela região, ou até que suas invasões aos galinheiros, plantações de batata e roubos de carne tivessem tornado sua estada indesejável. Essas pessoas eram conhecidas como mascates e eram de ascendência escocesa. Os relatórios da polícia local e a constante reclamação sobre terras devastadas foram gradualmente extinguindo-os como classe nô-made, embora ainda possam ser encontrados como famílias nas regiões mais remotas da Escócia e Inglaterra. O herói de Bunyan, cujo negócio era peregrinar pelo país com o lema “consertan-do as panelas”, não era cigano, mas um mascate escocês – um itinerante que trabalhava com metais.

  • Biografia 11

    O pai de John Bunyan não era cigano e nem mesmo um mas-cate como os descritos aqui. Ele morava em uma casa e tinha uma vida social comum para um trabalhador de sua época. A designação de “mascate” era usada em virtude do seu trabalho com metais. Bunyan declarava a respeito de si mesmo que “suadescendência era uma geração pobre e sem nenhuma importância e que a família de seu pai era de uma posição social insignificante e desprezada”. Acredita-se que os pais de Bunyan, apesar da hu-milde condição em que viviam, deram a seu filho o que conside- ravam ser uma boa educação para as pessoas de seu nível social.

    Em seu livro Graça Abundante, ele desenhou a terrível figura do vício e da maldade presentes em sua adolescência e início da vida adulta. Mas sem dúvida elas eram uma versão exagerada das acusações de sua própria consciência, fato comum entre os Puritanos. Podemos confirmar isso, pois segundo suas próprias declarações, ele nunca ficou bêbado e nenhuma mulher jamais pôde acusá-lo de qualquer pecado sexual. Mas quando garoto, não respeitava o Sabá, jurava em falso, xingava e era o líder de todas as aventuras maldosas normalmente perpetradas pelos meninos daquela época. Convivendo com amizades que só um jovem malicioso e imprudente poderia ter, Bunyan se esqueceu rapidamente da pouca educação que havia recebido. Falando a respeito deste período de sua vida, ele diz o seguinte: “Nos tem-pos em que andava sem Deus, eu seguia de fato o caminho deste mundo, conforme minha inclinação natural, segundo o espírito que operava nos filhos da desobediência. Era um prazer ser cativo do diabo, fazer sua vontade e ser cheio de desonestidade. Eu era uma criança como poucas; não tinha nenhuma qualidade além de praguejar, mentir e blasfemar contra o nome de Deus.”

    Durante toda sua vida, ele se acusava pelos pecados cometidos na adolescência e juventude, mas se defendia veementemente das acusações de libertinagem. Durante a infância de John Bu-nyan, o pensamento Puritano alcançou seu período mais severo e nenhuma parte da Inglaterra estava sob maior influência desse

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    pensamento do que Bedfordshire. Qualquer que fosse sua con-duta ou quaisquer que fossem suas práticas, as privações impos-tas pela religião somadas a uma vida repleta de temor a um Deus apavorante, tiveram fortíssimo efeito sobre a mente imatura e in-consequente deste rapazinho. Seus sonhos eram frequentemente assombrados por visões do julgamento de seus pecados, das quais ele tentava em vão se esquecer mergulhando ainda mais naquilo que considerava ser uma vida profana e de vícios fatais. Devemos levar em consideração que os mais inocentes diverti-mentos eram tidos pelos puritanos como um pecado temível. Podemos concluir então, com toda certeza, que estando ou não debaixo de alguma influência religiosa, Bunyan era em todos os aspectos um jovem rapaz normal de sua época, que dava lugar às suas inclinações maldosas, e por isso era desprezado pelos reli-giosos, que em suas vidas de privação e preconceito, não tinham nenhum respeito por ele.

    Assim como o poeta inglês Robert Southey (1774–1843), so-mos inclinados a acreditar que seus pais eram tementes a Deus, se esforçando para ensinar-lhe o senso do dever religioso, pois do contrário teria sido difícil e – como se provou mais tarde – inefi-ciente incutir-lhe tão cedo uma consciência tão severa a respeito do pecado. Muitos livramentos providenciais das garras da morte que ocorreram antes de sua conversão, foram encarados por ele como amostras da graça de Deus para consigo mesmo. Bunyan caiu no mar uma vez e em outra ocasião caiu de um barco no rio Ouse12. Em ambos os casos escapou da morte por um triz. Em outra oportunidade uma víbora cruzou seu caminho e ele bateu nela com um pedaço de pau, deixando-a inconsciente e corajosa-mente arrancou a língua do animal com as próprias mãos, pois segundo as crenças da época a língua era considerada a fonte de poder da víbora. Mas outro livramento miraculoso o impressio- naria ainda mais. John Bunyan alistou-se no exército e, durante o

    1 Rio que banha a cidade de York, de tamanho e profundidade consideráveis, permite a navegação de barcos a vapor (N.T.).

  • Biografia 13

    cerco de Leicester22, em junho de 1645, ele estava prestes a entrar no seu turno quando um companheiro de tropa implorou para trocar de lugar com ele. O substituto de Bunyan montava guarda na linha de frente quando foi atingido na cabeça por uma bala de mosquete. Não se têm informações de quanto tempo Bunyan serviu como soldado, mas existem poucas dúvidas de que tenha sido por um curto período. As antigas lembranças traziam à sua memória armas como aríetes e catapultas. Apesar da época em que escreveu A Guerra Santa, algumas armas fossem diferentes das utilizadas no tempo em que ele lutou, a pompa e a circuns- tância usadas para descrever a batalha são contadas com um es-tilo de quem já havia tido uma experiência de campo.

    Muitos dos biógrafos de Bunyan supuseram que ele havia se juntado ao exército em função de seu caráter temente a Deus, esquecendo-se que ele havia se alistado antes de sua conversão, quando a causa do rei era muito atraente para uma personalidade forte e imatura como a sua. Ele costumava dizer que era um daque-les que “temiam a Deus e honravam o rei”. Do início ao fim de sua vida ele sempre se mostrou disposto a submeter-se à lei, o que era injusto e quase impossível para um velho soldado da coroa que sempre se opôs à tirania dos reis. Bunyan foi um monarquista ati-vo por um curto período e monarquista passivo até o final de umacarreira de sofrimentos e tribulações impostas durante o governo do filho do rei por quem ele havia lutado. Esta é uma das marcas mais interessantes do seu extraordinário caráter. A lei máxima do grande professor era “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, a qual ele obedecia literalmente e através da qual dire-cionava toda a sua vida. Mas quando “César” exigia o controle de sua mente e vontade nas questões relacionadas às riquezas da vida eterna, ou aos seus vizinhos que tinham o mesmo pensamento, ele resistia em obediência a uma instância divina, superior a de “César”. Entretanto entendemos que os anos de cruel injustiça e

    2 Batalha da Primeira Guerra Civil Inglesa (1642-1651), pela disputa do poder entre monarquistas e parlamentaristas (N.T.).

  • O Peregrino14

    aprisionamento não afetaram a simplória lealdade que sempre o moveu a obedecer à lei em todos os aspectos terrenos.

    John Bunyan se casou aos dezenove anos. A união foi um pou-co precipitada, pois quando se casaram ele e sua esposa “eram tão pobres quanto alguém poderia ser”, não tinham nem mesmo os utensílios mais simples como colheres e pratos suficientes para duas pessoas. Ele tinha seu negócio para sustentá-los e sua esposa era uma moça prudente e virtuosa que fora criada por um pai amoroso. O pai dela falecera na mesma época em que se casa-ram e o único dote que ela trouxe para o jovem marido foram dois livros que o pai havia deixado: The Plain Man’s Pathwayto Heaven (O caminho do homem rumo ao céu) e a Prática da Piedade, de Lewis Baily. Bunyan lia frequentemente esses livros com sua esposa e essa cuidadosa leitura despertou nele o desejo de mudar sua vida. Ele começou a frequentar a casa de Deus, a igreja nacional, sendo grandemente tocado por um sermão con-tra a quebra do Sabá. Durante sua participação em um jogo ao ar livre chamado “Tip-Cat”32, ele começou a dizer que de repente uma voz vinda do céu penetrava em sua mente e lhe fazia terríveis perguntas como: “Deseja deixar seus pecados e ir para o céu, ou permanecer neles e ir para o inferno?” “Com isso”, ele disse, “fiquei tão confuso que deixei o meu ‘gato’ cair no chão. Eu olhava para o céu e era como se Jesus olhasse para mim lá de cima; tinha a sensação de que Ele não estava nada satisfeito com o que via. Parecia que estava me ameaçando com ter-ríveis castigos pelos pecados do presente e do passado.”

    Embora acreditasse que tinha “visto e ouvido” apenas com sua mente, ele considerou essa mensagem como nada me-nos do que absolutamente real. Tal fato teve tamanho efeito sobre Bunyan que ele acreditou não haver mais esperanças para si mesmo e que era muito tarde para abandonar seus3 Tip-Cat - jogo popular no século 17. Usavam-se ripas de madeira como bastões. Um pedaço de ma-deira retangular representava o “gato”. O “gato” era colocado no chão e um jogador o lançava com a finalidade de ganhar altura e ser rebatido por outro jogador com o bastão para o mais longe possível. Especialistas em esportes consideram este jogo como um dos ancestrais do baseball (N.T.).

  • Biografia 15

    pecados. “Eu estava lá parado, de pé no meio do jogo, diante de todos os presentes. Embora eu não tenha dito nada a eles, cheguei a essa conclusão sozinho. Então, desesperado, retor-nei ao jogo”. Ele continuou nesse estado de espírito por mais de um mês, quando aconteceu que, estando ele parado perto da janela de um vizinho, “amaldiçoando, praguejando e se comportando como louco”. A dona da casa, embora fosse uma pessoa miserável, perdida e sem Deus, disse, segundo Bunyan, que ele era o pior dos ímpios que ela jamais havia conhecido, por dizer os piores impropérios que ela ouvira em toda sua vida, e que daquela maneira ele seria capaz de corromper os jovens de toda cidade, se eles andassem em sua companhia.

    Esta repreensão tão severa, vinda de maneira inesperada, teve um efeito fortíssimo na mente imaginativa deste jovem, para quem o sentimento de culpa e insatisfações consigo mesmo, tornaram-se hábitos constantes. Estes sentimentos atacavam seu coração, como se viessem de uma fonte ines-gotável. Isso implica dizer que ele era, no mínimo, mais fraco do que quem o acusava. Juntos, seu orgulho e sua consciênciacausaram nele tal reação que, daquele período em diante, ele abandonou o péssimo costume de praguejar. Ele ainda não havia se convertido, mas para sua surpresa, deixar este hábito havia sido mais fácil do que ele imaginava. Mas algo grandioso estava por acontecer. Incentivado por um pobre, mas bom homem, que conheceu naquela mesma época, ele começou a ler a Bíblia e iniciou um esforço para levar uma vida mais ordeira. Embora, para sua vergonha e arrependimento, ainda voltasse de vez em quando aos velhos hábitos, se tornava cada vez mais evidente o amadurecimento gradual em busca de uma vida mais pura. Com toda certeza o longo processo foi atrasado algumas vezes por estas

  • O Peregrino16

    recaídas. Já a sua queda pela dança e por tocar os sinos da igreja de Elstow, foram hábitos mais difíceis de abandonar. Mas estes e outros motivos que ele julgava serem vergonhosos servem para nos mostrar que, ele era muito severo consigo antes de sua con-versão.

    Com a visão da época direcionada pelas marés do Puritanis- mo, o “Livro dos Esportes”42– um conjunto de regras a serem seguidas aos domingos – foi publicado novamente. Os puritanos discordavam completamente dessas práticas. Para eles, “depois do serviço religioso, nossa boa gente não deve ser perturbada, distraída ou desencaminhada por danças folclóricas, fossem ho-mens ou mulheres, competições de arco, saltos, competições de luta, outras recreações inocentes, ou brincadeiras de roda.” Bu-nyan se encontrava entre os aficionados por esportes, especial-mente alguns tipos de dança em grupo. Desistir desses pequenos divertimentos foi para ele um grande sacrifício e, mesmo quando já não se juntava mais a eles, observava aqueles que sem proble- mas de consciência ainda conservavam suas práticas. Centenas de bons sacerdotes perderam os benefícios concedidos por não ensinarem este tipo de ordenanças em seus púlpitos.

    Em meio às suas dúvidas, a satisfação de ter modificado para melhor a opinião dos vizinhos a seu respeito ajudou o nosso po-bre e iletrado pecador a continuar por esse novo caminho que agora havia escolhido. Pois mesmo os melhores de nós somos mais influenciados pela opinião de nossos amigos e vizinhos do que temos consciência ou do que gostaríamos de admitir, até mesmo para nós mesmos. Sobre essa época, podemos imaginar a luta travada na mente ardente e imaginativa do jovem mascate e podemos imaginar com alegria a ajuda que deve ter recebido de sua jovem e virtuosa esposa. Os ensinamentos que seu sogro deixara foram, de fato, “pão lançado sobre as águas” e agora 4 Autorização explícita concedida pelo rei para a promoção de atividades esportivas aos domingos, bem como feiras rurais, jogos e danças. Essas atividades eram consideradas pelos puritanos como sendo de origem pagã e por isso uma profanação do Sabá, promovendo, segundo criam eles, ocasião para o pecado (N.T.).

  • Biografia 17

    retornavam à sua vida através da conversão e dos esforços de seu distinto genro de tantas maneiras que não terão fim, até que o tempo tenha acabado e os céus e a terra tenham passado.

    Seu sentimento de culpa e as severas censuras que fazia a si mesmo lhe provocam visões noturnas, que eram a maneira de demonstrar o estado de sua mente em relação a seus pecados e fraquezas. Embora as visões o atormentassem, elas sem som-bra de dúvida o ajudaram a buscar a paz que já esperava por ele em um futuro não muito distante. O autor de A vida de Bunyan, publicado em 1698, era seu amigo íntimo e nos dá um relato preciso dessas visões noturnas. Uma delas é suficiente como exemplo, especialmente porque apareceria mais tarde em uma das famosas cenas de O Peregrino. O biógrafo conta o seguinte: “Uma vez ele sonhou que viu o céu em chamas, o firmamento partindo-se em pedaços e tremendo como se estivesse sendo sa-cudido por fortes trovões. Um arcanjo voava em meio às nuvens tocando uma trombeta e, à direita, havia um trono glorioso onde estava sentado alguém que resplandecia um brilho intenso, como a estrela da manhã. Diante disso, Bunyan pensou que se tratava do fim do mundo, caiu de joelhos e com as mãos levantadas em direção ao céu, clamou: Ó Senhor, tem misericórdia de mim! O que devo fazer? O dia do julgamento chegou e eu não estou pre-parado! Então, ouviu uma voz extremamente alta que soava por de trás dele e dizia: ‘Arrependa-se’. Este é o mais vivo e valoroso relato que podemos comparar de perto com a passagem que ele criou para O Peregrino. O Cristão está na casa do Intérprete e vai até um aposento onde um homem está se levantando da cama, tremendo violentamente, que explica sua condição, dizendo ao Cristão: ‘Eu estava dormindo e sonhei que, diante de mim, os céus tornaram-se escuros como a noite: trovões e relâmpagos cor-tavam o firmamento de forma assustadora, que entrei em agonia. Olhei para cima e vi as nuvens suspensas no céu de forma muito estranha. E ouvi um som muito forte, como o de trombetas vin-do do alto e vi um homem assentado sobre uma nuvem, cercado

  • O Peregrino18

    pelas miríades do céu. E eles tinham a aparência de fogo ardente e todo o céu era como uma chama ardente. E ouvi uma voz di-zendo: Levantem-se mortos e apresentem-se para julgamento. E com isso as pedras se moveram abrindo os túmulos e os mortos que estavam dentro deles saíram. Alguns deles pareciam felizes e olhavam para o céu, enquanto outros procuravam se escon-der em cavernas, debaixo das montanhas. O homem que estava assentado na nuvem abriu o livro e ordenou que o mundo se aproximasse, a uma distância segura entre ambos, pois um fogo intenso saía dele e que ficasse a uma distância adequada entre o juiz e os prisioneiros que aguardavam o julgamento. Ouvi ser anunciado aos que estavam com ele nas nuvens: Ajuntem o joio, suas cascas e restolhos e lance-os no lago de fogo ardente. Então, próximo do lugar onde eu estava de pé, abriu-se um enorme e profundo abismo de onde saía fumaça e se viam brasas ardentes e se ouviam sons terríveis. Também ouvi ser dito aos que estavam com Ele nas nuvens: Recolham o meu trigo, e tragam-no para o meu celeiro. Com estas palavras, vi muitos erguerem os olhos para o céu e serem levados para as nuvens, mas eu fui deixado para trás. Busquei um lugar onde pudesse me esconder, mas não consegui, porque os olhos do homem que estava assentado na nuvem continuavam sobre mim. Todos os meus pecados vinham à minha lembrança e minha consciência me acusava de todas as formas. Depois disso, acordei do meu sonho”.

    O sonho de sua juventude e a reprodução vívida dele mais tarde em seu grande trabalho foi, sem dúvida, resultado da sua ávida leitura das Escrituras enquanto ainda não tinha se regenerado; pensando sobre elas nas vigílias da noite, tal cena como está descrita no capítulo vinte e seis de Apocalipse, foi re-produzida de modo assustadoramente nítido em seus sonhos, tendo a ele como pecador endurecido, um participante aterrori-aterrori-zado e abalado no terrível julgamento.

    Por um tempo, Bunyan praticou a conduta externa de um cristão; agora ele tinha que ser trazido à salvação de seu pecado e

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    encontrar um caminho para a paz e descanso. Ele nos conta em seu próprio jeito singular e impetuoso que, tendo ocasião de ir a Bedford em busca de seu chamado – enquanto envolvido com seu trabalho, ouviu uma conversa de várias mulheres piedosas. “Eu ouvi”, ele disse, “mas não compreendi, pois elas estavam muito fora de meu alcance. Sua conversa era sobre uma nova verdade, a obra de Deus nos seus corações e como também estavam convencidas de seu estado miserável por natureza; como Deus tinha visitado suas almas com o seu amor no Senhor Jesus e com que palavras e promessas elas foram renovadas, confortadas e apoiadas contra as tentações do diabo. Elas também discursavam sobre a impurezado próprio coração, de sua descrença e como desprezavam e ti- nham horror de sua própria injustiça, suja e insuficiente, que não lhes podia fazer nenhum bem. Parecia a mim que falavam como se a pura alegria as fizesse conversar; elas falavam com tanto pra-zer da linguagem da Bíblia e com tal aparência de graça em tudo o que diziam, que para mim, era como se “tivessem encontrado um novo mundo e elas fossem pessoas que vivessem sozinhas e não deviam mais ser contadas entre seus vizinhos.” Mais adiante ele nos relata que, quando ouvira e considerara o que diziam, ele as deixou “e segui com meu trabalho de novo; mas sua conver-sa e discurso também foram comigo e meu coração também se demorava com elas, pois eu fora grandemente afetado por suas palavras, tanto porque fui convencido por elas de que queria o genuíno sinal de um verdadeiro homem de Deus, como também porque fui convencido por elas da condição feliz e abençoada daquele que era assim.”

    Esta foi uma revelação perturbadora para ele, que havia começado a gabar-se de evitar o mal como uma grande vir-tude. Certamente, se era tão difícil satisfazer estas mulheres, em sua conduta e serviço de Deus, ele ainda tinha que buscar paz e perdão! Passou-se algum tempo até que estes chegassem, mas ele sabia que não devia mais confiar na sua própria força, ou ceder ao mal, pois havia sido ordenado e separado com um

  • O Peregrino20

    intento divino. Esse desespero era seguido de uma pequena chama de esperança, para ser novamente envolvido pela es-curidão. Em seu tormento, ele fazia o que era melhor sob tais circunstâncias; frequentemente buscava a companhia daquelas mulheres cuja conversa casual tinha proporcionado a ocasião de seu verdadeiro despertar, do qual duas coisas resultaram, as quais lhe trouxeram grande conforto: “Uma foi a grande sua-vidade e ternura no coração, que me fazia ter a convicção do que elas afirmavam a respeito das Escrituras e a outra era uma grande inclinação da minha mente para uma contínua medi-tação sobre isto e sobre todas as outras coisas boas que euouvia ou lia em qualquer ocasião.” Mas a evidência mais prática da plenitude do despertamento em sua mente foi a ansiedade do relato de um de seus companheiros, de quem ele gostava muito, que ainda continuava a vida sem Deus, que ele próprio já havia abandonado. Escrevendo a ele, depois de um intervalo de vários meses, Bunyan ficou chocado com os impropérios e blasfêmias, que antes lhes eram tão familiares. “Harry”, ele disse, “por que você xinga e pragueja desta forma? O que será de você se morrer nesta condição?” Ele respondeu num grande deboche, “Quem o diabo teria por companhia se não fosse a mim?” No cristia nis-mo, bem como em outras coisas, o grande teste de sinceridade é desejar que outros sejam igualmente abençoados e como Bu-nyan tinha dado este passo em seu progresso contínuo, as nuvens que oprimiam sua alma começavam a se dissipar.

    Lentamente ele readquiriu a facilidade para ler, que tinha per-dido inteiramente por causa da negligência durante sua infân-cia e início da juventude. Ficou transtornado lendo as obras de “the Ranters” 52, um grupo que, de acordo com seu testemunho, parecia ter crenças e observâncias em sua vida diária, muito se-melhante à dos Mórmons dos nossos dias. Um membro dessa5 Seita radical inglesa, com raízes em grupos hereges do século 14, conhecidos pela ausência de va-lores morais. Criam no Antinomianismo, doutrina que nega ou diminui a importância da lei de Deus na vida do crente. Afirma que sendo salvo pela graça, o cristão não tem obrigação de obedecer às leis de Deus (N.T.).

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    seita, um conhecido de Bunyan, que praticava e se gloriava em tais abominações, chamando-os de corretos, adequados e supe-riores a todas as práticas de outros cristãos, assegurando-o de uma imortalidade com a qual pouco sonhava. Não há dúvida de que ele é o original do Ateu em O Peregrino, que almejava fazer o Cristão e o Esperançoso voltarem a usar a linguagem comum às pessoas desta seita, como Bunyan já as ouvira falar. Ele nos conta que as tentações levadas a ele por este homem para se juntar ao corpo “eram adequadas à sua carne, sendo eu apenas um jovem e minha natureza gozando de sua máxima capacidade; mas Deus, que como eu esperava, havia me pro-jetado para coisas melhores, conservou-me no temor do Seu nome e não me permitiu aceitar tais princípios amaldiçoados.” “Eu comecei a olhar para a Bíblia com novos olhos”, ele diz, “ea oração me protegeu dos erros dos Ranters. A Bíblia era muito preciosa para mim nestes dias”. O autor do primeiro livro, A vida de Bunyan, sobre quem já falamos, faz um relato tão assombroso da indecência e profanação das vidas dos Ranters e dos aconteci-mentos em seus encontros à meia-noite, que foi deixado de fora na segunda edição; consequentemente, é ainda menos adequado para reprodução agora. Talvez seja suficiente dizer que a prática do Mormonismo, quanto ao relacionamento entre os sexos, é decente se comparado a isso.

    A derrota da causa Monarquista e completa anulação das leis contra grupos religiosos, levou à formação de vários grupos dis-tintos e lhe pareceu por bem, não sendo um intelectual, apegar- -se à Bíblia como mestre e guia e isto não obstante muitos receios surgidos da aparente confiança de muitos professores, uma con-fiança que até então, em sua humildade, tristemente lhe faltava.

    É mesmo singular que aquele que viria a se tornar o maior mestre fora da Escritura inspirada e da ilustração alegórica, de-vesse neste tempo ter interpretado literalmente a linguagem figurada da Escritura. Ele lera que “Se vocês tiverem fé do ta-manho de uma semente de mostarda, poderão dizer a esta

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    amoreira: ‘Arranque-se e plante-se no mar, e ela obedecerá” (Lu-cas 17.6). Sua educação não lhe tinha ensinado o uso e o valor da linguagem figurada como esta e ele nos conta que, em uma ocasião, enquanto andava entre Elstow e Bedford, ele se sentiu fortemente tentado a provar se tinha fé, pedindo a algumas poças na estrada que trocassem de lugar com o chão seco. Ele fora tão longe em seu desejo de testar a sua fé na tentativa de fazer um milagre que, quando ia orar por esta habilidade, seu bom senso inato veio em seu socorro e lhe mostrou como esta atitude se-ria ignorante e presunçosa. As dúvidas, esperanças e provações deste período, que tomavam a alma indagadora de Bunyan, são graficamente semelhantes a um navio no mar das eloquentes pa-lestras de Cheever. Ele diz: “Com grande interesse nós seguimos os movimentos da alma de Bunyan. Você o vê como uma barcacheia de vida, cruzando o oceano como um furacão. Pelo brilho dos relâmpagos, você pode descobri-la submergindo e lutando terrivelmente na tempestade à meia-noite; aí se pensa que tudo está perdido. Então, pode contemplá-la, mais uma vez, na silen-ciosa luz do sol, ou da lua e as estrelas que olham para ela quando o vento sopra suavemente, ou com um vento forte e favorável, ela desliza através das águas. Agora são nuvens, chuva e fortes fu-racões, vindos tão repentinamente quanto um relâmpago; agora mais uma vez suas velas brancas brilham na luz do céu, como um albatroz no horizonte limpo. Finalmente, se tem a última visão, quando a vemos entrar no porto do descanso eterno.” As tenta-ções de voltar ao mundo alternavam-se com as dúvidas de sua própria indignidade, mas todo o tempo ele lutava duramente para penetrar no sentido oculto das Escrituras. Através da meditação, Bunyan entendia que a divisão das criaturas de Deus em limpas e impuras era emblemática sobre nosso ato de se alimentar da Pa-lavra de Deus e a separação, se assim fizéssemos, dos caminhos dos homens sem Deus. Ele não pensava que fosse suficiente fa- zer um ou outro, mas que devíamos fazer os dois, recebendo em nós a Palavra e mostrando que a recebemos, separando-nos dos

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    pecados que mais apreciamos. O significado espiritual da dispen-sação Mosaica era um assunto favorito dele e tem grande atenção em seus vários escritos, especialmente em O Peregrino, quando o Cristão e o Fiel analisam o caráter do personagem Tagarela, o qual trazemos à atenção do leitor, como um exemplo singular do extraordinário talento de Bunyan nesta direção, um talento que levou Addison (1672–1719), o grande ensaísta inglês a enfatizar que, se Bunyan tivesse vivido e escrito durante o surgimento da Igreja Cristã, ele teria sido considerado um dos maiores pais da Igreja de Cristo.

    As boas mulheres de Bedford, cujas conversas tinham sido tão abençoadoras para Bunyan, tinham uma vida humilde e eram membros de uma igreja batista, sob a direção naquela época de um bom homem de Deus chamado John Gifford. No início desua vida, Gifford vivera o mesmo tipo de vida que Bunyan, tinha se alistado no exército e obtido o posto de major nas forças do Rei, uma circunstância que demonstrara claramente um consi-derável número de habilidades. Ele uniu-se a outros numa tenta-tiva de levantar uma rebelião contra a Commonwealth62em Kent, foi feito prisioneiro e sentenciado à morte. Na noite anterior ao dia marcado para sua execução, sua irmã encontrou um meio de entrar na prisão e libertá-lo. Ele foi para Bedford, onde trabalhou como cirurgião e ficou marcado por seus hábitos desleixados e seu ódio pelos Puritanos. A leitura de um dos livros de R. Bolton foi o meio de sua conversão e ele ansiosamente buscou comu-comu-nhão com aqueles que anteriormente desprezara e perseguira, até que ao mostrar tais evidências da graça abundante em sua vida, junto com outros se uniu para formar uma congregação da qual foi eleito pastor. Seu zelo e honestidade logo juntaram ao seu redor um grande número de seguidores, entre os quais esta-vam as pobres mulheres às quais mencionamos.6 União das Ilhas Britânicas sob o domínio de Oliver Cromwell e que se autodenominaram Com-monwealth. Uma das principais leis da Commonwealth, o “Ato de Navegação”, estabelecia que os produtos importados pela Inglaterra só poderiam ser transportados por navios ingleses; fato que concedeu a Inglaterra a supremacia marítima da época (N.T.).

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    Visitando-as e falando de seus medos e dúvidas, Bunyan foi apresentado a John Gifford e a influência deste homem, que era tão superior em educação e conhecimento do mundo, foi um benefício incalculável para abrir a sua mente e colocar a fundação para aqueles princípios tolerantes que mostravam um grande co-ração, que fizeram de suas obras o tesouro dos cristãos de todas as denominações. Nós não erraremos se concluirmos que este bom homem foi retratado como o original Evangelista em O peregrino.

    Mas quanto mais Bunyan se aproximava da luz, mais feroz era o embate do mal dentro dele, tentando dominá-lo. Seu próprio registro da última e mais forte luta contra o poder do pecado e escuridão é muito impressionante para ser deixada de fora. Ne- nhuma paráfrase poderia ter a metade da eficácia da sua própria descrição. Em algum momento antes das experiências que ele narra no extrato que estamos por fazer, sua mente era assom-brada pelas palavras do Senhor a Pedro: “Satanás pediu você” (Lucas 22.31) e pareceu tão real que mais de uma vez ele olhou ao seu redor, imaginando que alguém atrás dele as tinha pro-ferido. “Cerca de um mês depois”, diz, “uma grande tempestade veio sobre mim, que me tratou vinte vezes pior do que qualquer outra em minha vida; veio sobre mim uma parte e depois a outra. Primeiro todo o conforto foi tirado de mim e a escuridão me to-mou; depois disso, enchentes de blasfêmias contra Cristo, Deus e as Escrituras foram derramadas sobre o meu espírito, para minha grande confusão e surpresa. Estes pensamentos blasfe-mos eram tais que levantavam dentro de mim questões contra o próprio ser de Deus e seu único Filho amado: se havia de ver-dade ou não um Deus, ou Cristo. E se as Escrituras não eram uma fábula ou história incrível, ao invés da pura e santa Palavra de Deus... Estas sugestões, como muitas outras que não posso, nem ouso proferir, seja por palavra ou por escrito, trouxeram tal apreensão ao meu espírito e assim pesaram no meu coração, tanto por seu número, continuidade e terrível força, que senti como se não houvesse mais nada, mas apenas isto, de manhã à

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    noite dentro de mim, embora, de fato, não pudesse haver lugar para mais nada. Também concluí que Deus tinha, em pura ira para com minha alma, desistido de mim e me lançado a eles, para ser levado embora, como por um poderoso redemoinho. E tão somente pelo desgosto que tais coisas traziam ao meu espírito, senti que havia algo em mim que se recusava a crer neles. Quando eu estava sob esta tentação, muitas vezes encon-trava-me subitamente pronto para xingar e praguejar, ou falar algo terrível contra Deus ou Cristo, Seu Filho, e as Escrituras.”

    Aqui temos a experiência mental que depois funcionou admiravelmente como inspiração para o conflito com Apoliom no Vale da Humilhação, quando o Cristão pare-cia tudo, menos derrotado, para vencer finalmente quando o seu inimigo já considerava sua vitória tudo, menos garantida. Depois de mais de um ano de esperanças e fracassos, o Gi-gante Desespero e Apoliom foram finalmente derrotados e o Castelo da Dúvida foi levado pela tempestade. Quandoo tempo de sua liberdade e vitória chegou, as palavras do apósto-lo vieram-lhe à mente, “Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também participou desta condição huma-na, para que, por sua morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo, e libertasse aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte” (Hebreus 2.14-15). “Eu achei”, ele revelou, “que a glória destas palavras era tão poderosa para mim, que estava pronto a desmaiar quando me sentei, não por tristeza e tribulação, mas cheio de sólida paz e alegria”.

    Um livro que chegou até Bunyan nessa época ajudou-lhe na boa obra em seu espírito. Era uma velha cópia de Luther on the Galatians (Comentário sobre Gálatas, de Lutero). Ele diz que era “tão velha, que estava prestes a se desfazer em pedaços, se eu apenas virasse uma página.” Nela, encontrou o que queria: o registro de uma experiência tal qual a sua. “Eu achei”, ele diz, “minha condição, na experiência dele, tão larga e profundamente

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    manejada, como se seu livro tivesse sido escrito a partir do meu próprio coração. Eu prefiro o livro, sobre todos os outros, como o mais adequado para uma consciência ferida”. O livramento de Bunyan estava agora quase completo e ele candidatou-se a ser aceito a congregação, que depois de um breve período probatório, foi-lhe concedida a grande alegria. Na época de sua admissão na comunhão Batista, o batismo por imersão estava proibido pela lei, sob pena de severa punição, pois até mesmo na Commonwealth, assim como na Coroa, os Batistas tinham sofrido os horrores da perseguição. Isto deve explicar porque ele pouco menciona a respeito dos procedimentos ligados à sua admissão no seu livro Graça abundante; pois se ele não temia nenhum homem, importante ou não, era bastante sábio para não atrair a perseguição que envolveria amigos cristãos que tanto tinham feito por ele e tinham tornado-se tão preciosos para ele na comunhão cristã. De acordo com C. Doe7, um dos seus primeiros biógrafos, seu batismo aconteceu entre os anos de 1651 e 1653; o lugar onde foi batizado era um pequeno riacho que corria para o rio Ouse no fim da Estrada Duck, em Bedford. A cerimônia aconteceu à noite, como sempre acontecia, até que as leis de restrição contra os Batistas foram retiradas.

    No mesmo ano que testemunhou o batismo de John Bu-nyan, supondo-se que este ocorreu em 1653, Oliver Cromwell foi eleito ao Protetorado da Grã-Bretanha. Thomas Carlyle, cri-ando certo exagero sobre o fato, disse: “Dois homens comuns de tal forma elevados, pondo seus chapéus em suas cabeças poderiam exclamar, ‘Que Deus me capacite a ser rei do que está abaixo disto! Pois a eternidade está abaixo disto, o infinito, o céu e também o inferno! E tão grande quanto o universo é este reino e eu vou conquistá-lo, ou ser para sempre conquistado por ele – agora enquanto é chamado de hoje.’” Não pode haver dúvida que estes homens mantiveram muito cuidadosamente os votos e as obrigações então tomadas. O filho do açougueiro

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    dirigiu uma grande nação e fez o nome dela temido e respeitado, onde antes era desprezado. Ele governou os nobres e os grandes, mas nem sempre se lembrou que a coisa certa devia ser feita a qualquer custo. O filho do funileiro entrou para o exército de Cristo como um soldado humilde e veio a ser, no tempo certo, um grande capitão e um campeão da cruz. Sua vida foi dada ao serviço do seu mestre e ao bem das almas; embora já falecido por quase dois séculos, seu ensino e exemplo continuam poderosos como sempre. Não apenas através de todo o mundo civilizado, mas também em nações pagãs, os missionários acreditam que O Peregrino é a maior arma depois da Bíblia para o despertamento dos corações e mentes dos povos selvagens.

    Os últimos anos não somente testemunharam uma luta com a perversão do seu coração e mente, terminando com um tri-unfo para este humilde inquiridor da divina verdade, mas suas circunstâncias temporais também melhoraram. Uma vida regu-lar e esforçada produziu os frutos esperados; temos através doprimeiro biógrafo de Bunyan, que foi testemunha ocular de tudo isto, o relato que “nesta época a família já tinha aumentado e conforme ela crescia, Deus fazia crescer sua despensa, de modo que ele vivia agora com grande crédito entre seus vizinhos”. Sua posição melhorada entre seus companheiros nesta época é sig-nificativamente apoiada pela sua união com trinta e cinco outros – todos os homens de mente esclarecida do condado de Bed-ford, num memorial ao Protetor, recomendando dois cavalhei-ros como membros do conselho, criado depois da dissolução do Parlamento. Este memorial data de 13 de maio de 1653 e esta data, nós acreditamos que determina a época de seu batismo como anterior a isso, pois o nome de John Gifford também figu-ra entre os que assinam a petição.

    De algum modo, podemos dizer agora que ele passou do Pântano da Desconfiança, pois o Cristão se debatendo naque-le pântano não é nada mais que uma figura simbólica de sua própria luta atrás do caminho certo durante os muitos meses que

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    precederam seu batismo. As três mulheres pobres de Bedford, que surpreenderam o jovem autosuficiente que, confiando em sua grande aderência às leis morais e tarefas desta vida, tentava bravamente convencer-se de que era de fato um cristão. De re-pente revelaram-lhe que possuíam algo que ele não tinha – uma vida espiritual interior. Elas eram, de fato, os “Três seres resplan-decentes” que encontraram o Cristão ao pé da cruz e o Sr. Gifford, a quem elas apresentaram Bunyan, era o Evangelista, que deixou claro o caminho para ele, levando-o adiante no caminho certo, fortalecendo-o em suas lutas e perigos. O funileiro temperamen-tal e autoacusador tinha levantado tantas dúvidas e dificuldades por causa de sua própria ignorância e das atividades de sua mara-vilhosa imaginação que se espalhava rapidamente; então deu mostra do poder maravilhoso e da produtividade que iria depois distingui-lo. Mas junto com estas havia outra característica de sua mente, que fez cada centímetro de chão conquistado por ele uma possessão permanente, que nenhuma dúvida ou apreensão poderia abalar. Não via verdade na confiança – viesse de outro ou como resultado de suas próprias cogitações. O “Assim diz o Senhor”, em Sua Santa Palavra, deve ser buscado e achado e, quando for achado, deve ser compreendido através da oração e súplica até que sua essência tenha entrado na alma. Muito disso foi alcançado a tal ponto que, qualquer dificuldade vencida era um auxílio em direção à conquista do que estava por vir. Sua ad-missão na Igreja foi à entrada do Cristão pela Porta Estreita. As lutas do Cristão nunca cessaram até que ele passou pelo portão da Cidade Celestial; nem as lutas de Bunyan, até que a cortina desceu sobre sua longa carreira de bons atos e quando o mundo e todas as suas tentações não podiam mais assolá-lo, pois tinha entrado pelos “Portões Resplandecentes” da Cidade de Deus.

    O longo conflito mental pelo qual ele passou, o intenso – e até mesmo mórbido – hábito de autoexame e seu estudo íntimo da Bíblia deram-lhe uma visão aguçada e sagaz do caráter e da mente dos outros. Enquanto ele lutava pela paz que apenas um

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    senso de perdão total dos pecados pode trazer – ficava chocado ao ver como aqueles do seu tempo estavam à beira da eternidade e por outro lado estavam tão intensamente ocupados com as coi-sas deste mundo. Ele podia ver ao seu redor muitos que, como ele mesmo um dia, estavam sendo esmagados pelo peso de seus pecados, que tinham um alívio ilusório e, portanto, levaram-no a temer e orar para que não perdesse o rumo em seu próprio pecado e indignidade e sim fosse salvo pela graça de Deus e perdão em Jesus Cristo. Sua aguda observação dos outros, em sua ansiedade de saber o que evitar, é admiravelmente exempli-ficada no seguinte texto, no qual ele se refere às autoilusões de alguns e à sua própria ansiedade de ser salvo delas. “E aquilo que me fez ter mais medo disso foi porque eu tinha visto alguns que, embora estivessem com peso na consciência, chorassem e oras-sem, tinham mais preocupação por seus problemas do que pelo perdão de seus pecados e não se preocupavam em como se livrar de sua culpa. Então tiravam isso de sua mente, mas agindo da maneira errada, não eram santificados; pelo contrário, ficavam mais endurecidos, mais cegos e mais iníquos em seus problemas. Isto me fez ter medo e me levou a clamar a Deus ainda mais, para que não fosse assim comigo.”

    Bunyan não corria o risco de cair nesse erro. Se olharmos de-sapaixonadamente para seu próprio relato do seu estado de es-pírito nessa época, estaremos inclinados a ver nele autoacusações de pecados que não existiam, a não ser em sua mente ardente e sensível. A história desse período, conforme narrada por ele mes-mo, é a análise mais terrível de um conflito espiritual nunca antes mostrado ao mundo. Quando a paz e a tranquilidade pareciam ter sido obtidas, ele caía em dúvidas e tormentos autoimpostos, que teriam arruinado qualquer mente menos forte que a sua. Es-píritos bons e maus estavam sempre ao seu redor, arrastando-o de um lado para outro, até que a adesão ao ateísmo absoluto oferecia um escape tentador para seus problemas. Vozes do invi-sível se alternavam, avisando-o e ameaçando-o. Quando ocupado

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    com seus afazeres normais e para o espectador apenas ocupado com a mera rotina de suas tarefas diárias, ele estava lutando com o espírito e recebendo conforto e desespero de seres, as criaturas vivas em sua imaginação agitada e intensa. Um exemplo notável disto é aqui digno de ser mencionado. “Uma vez eu andava para lá e para cá na loja de um bom homem, me lamentando em meu estado triste e lúgubre; aflito e com nojo de mim mesmo por causa deste pensamento vil e ímpio, lamentando também esta minha dura sorte, por que eu cometeria um pecado tão grande, temendo profundamente que não fosse perdoado; orando tam-bém em meu coração, que se este pecado fosse diferente daquele contra o Espírito Santo, o Senhor mostraria para mim e agora estava pronto para afundar no medo. De repente houve, como se entrasse pela janela, o som de um vento sobre mim, mas muito agradável e foi como se ouvisse uma voz falando, ‘Você se recusa a ser justificado pelo sangue de Cristo’? Assim, toda a minha vida cristã passou diante de mim, de onde vi que intencionalmente eu me recusava. Então meu coração respondeu rosnando, ‘Não!’ Então caí com o poder do Espírito sobre mim, ‘Cuidado para não rejeitar aquele que fala’. Isto trouxe uma estranha convulsão ao meu espírito, mas trouxe luz e comandou uma liberação de to-dos os pensamentos que traziam tumulto ao meu coração e que antes como cães do inferno sem dono, rugiam, vociferavam e fa-ziam um som terrível dentro de mim. Também me mostrou que Jesus Cristo tinha uma palavra de graça e misericórdia para mim e que Ele não tinha, como eu temia, abandonado minha alma. Sim, esta foi um tipo de repreensão à minha tendência ao deses-pero, um tipo de ameaça para mim, se não lançasse minha alma sobre a Lei de Deus, não obstante meus pecados e a atrocidade deles. Mas quanto ao meu entendimento deste desespero agudo, não sei do que se tratava. Em vinte anos, ainda não consegui fazer um julgamento dele. Então pensei que aqui estava o que deveria estar relutante em dizer.”

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    A primeira passagem que pusemos em itálico mostra clara-mente que, depois de um intervalo de vinte anos, ele ainda se sentia culpado em afligir-se com acusações desnecessárias. A segunda mostra seu desejo ardente por manifestações externas da ação de Deus na vida dele, o que explica a voz que parecia falar com ele e o aparente sopro de vento sobre si. Temos inúme-ros exemplos como esse na biografia cristã, que são resultado da exaltação dos sentimentos. E no caso de Bunyan, tais visões e sonhos acordados eram ainda mais vívidos e poderosos, em razão de sua incrível faculdade imaginativa, que deu vida e força a todos que tocou, num nível nunca antes conhecido na história da mente humana. Poucos homens poderiam passar por ex-periências desta natureza sem se tornarem fanáticos; mas o forte senso comum de Bunyan, sua capacidade de racionalizar tudo e o fato de não descansar satisfeito até que sua causa e significa-do estivessem entendidos, salvou-o desta condição. Ele não era em nada mais notável do que a conjunção da imaginação maismaravilhosa com a tendência incontrolável de submeter todas as coisas, vistas ou ouvidas a um teste prático, que deveria de uma vez por todas determinar seu valor e servir para futuras influên-cias sobre seus pensamentos e ações. Sobre todas as coisas, quan-do perseguido com terríveis apreensões de pecados horríveis e imperdoáveis, sua mente entrava em um estado de euforia tal, que sua própria imaginação tornava-se para ele um tipo de reali-dade, na qual não deveria acreditar de modo algum se pensasse friamente; então recorria à Bíblia para inspiração e direção e para usar suas próprias palavras, “com o coração cuidadoso e olhos atentos, com grande temor ao virar cada página e com muita di- ligência, movido com temor, ao considerar cada frase com sua força e latitude natural.” O resultado de tal processo logo se tor-nou manifesto numa mente mais composta e tranquila e, apesar dele manter as últimas opiniões mais fortes sobre suas experiên-cias iniciais, a melhor evidência de sua origem mórbida deve ser

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    achada no fato de que ele não parece sofrer das mesmas dúvidas e dificuldades, nem se permitir as mesmas admoestações, depois que passou a dominar e apreciar o sistema do Evangelho.

    John Gifford morreu em 1656 e seu pequeno rebanho muito sofreu por um homem tão bom e honesto, como seria esperado. Quando ele recebeu John Bunyan na comunhão, que foi o meio, a grande maneira, de levá-lo a um deleite e felicidade nas promes-sas das Escrituras – “o Santo John Gifford”, como Bunyan linda-mente se dirigia a ele – não poderia nunca imaginar os brilhantes serviços que o humilde e iletrado funileiro renderia à igreja de Cristo. Nem o próprio Bunyan tinha qualquer noção de possuir uma qualidade especial para ensinar outros através da pregação da sua caneta. Pois ele conta que algum tempo depois da morte de Gifford, os membros da congregação passaram uma resolução que “alguns dos irmãos (um de cada vez, a quem o Senhor tiver dado um dom) seja chamado à frente e encorajado a falar uma palavra à igreja para edificação mútua”. Eles o nomearam como alguém especialmente qualificado e ele ficou muito surpreso.Mas o início de sua vocação pastoral pode ser melhor con-tado em suas próprias palavras. “Alguns”, ele disse, “dos mais capazes dos santos entre nós, perceberam que Deus tinha me considerado como digno de entender algo a respeito de Sua vontade e de Sua santa e bendita Palavra e me deu elocução em certa medida para expressar o que eu vi aos outros para edificação. Portanto, eles desejaram, com muita intensidade, que eu estivesse disposto, algumas vezes, a tomar a direção de alguns dos encontros em minhas mãos, a falar uma palavra de exortação a eles. Isto, a princípio, desconcertou e envergo nhou meu espírito, mas sendo que eles ainda desejavam e suplica-vam para que continuasse, eu consenti e descobri, por duas vezes, nas várias assembleias (mas em particular, embora com muita fraqueza e enfermidade) meu dom entre eles, ao que eles protestaram, pois como se estivessem diante do grande Deus,

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    foram afetados e confortados por minhas palavras e deram gra-ças ao Pai das Misericórdias pela graça derramada sobre mim.

    “Depois disso, algumas vezes, quando alguns deles iam ao campo para ensinar, insistiam para que eu também fosse, onde embora eu não fazia, nem ousava fazer, uso do meu dom aber-tamente, mas apenas em particular, quando eu ia à casa de boas pessoas, algumas vezes falava uma palavra de admoestação a elas também, ao que eles, tanto como os outros, recebiam com alegria diante da misericórdia de Deus para comigo, professando que suas almas estavam edificadas a partir dali. Por esta razão, ainda sendo desejado pela igreja, depois de alguma oração solene ao Senhor, com jejum, fui mais particularmente chamado e apon-tado para uma pregação pública e ordinária da Palavra, não so-mente para e entre aqueles que criam, mas também para oferecer o Evangelho àqueles que não tinham ainda recebido a sua fé.”

    O número daqueles que estavam separados era dez. Destes, três além de Bunyan eram homens que tinham atingido notoriedade através da perseguição. Um era Nehemiah Coxe, que se acredita-va ser descendente do Dr. Richard Coxe, preceptor do rei Edward VI e deão de Oxford. Embora seguindo a humilde profissão de sapateiro, era um homem de grande inteligência, tinha recebido uma educação de primeira linha e defendeu seu indiciamento, quando julgado em Bedford por pregar, primeiro em grego, de-pois em hebraico, argumentando que seu indiciamento fora numa língua estrangeira (francês normando ou latim); ele teve permis-são de fazer a defesa em qualquer das línguas aprendidas. Sendo o conselho de acusação ignorante nestes idiomas, o juiz encerrou o caso, dizendo aos advogados: “Bem, parece que ele conseguiu enrolar todos vocês, cavalheiros”. Outro foi John Fenn, que foi lançado na prisão por pregar em sua própria casa em 1670 e to-dos os seus bens e mercadorias de trabalho foram levados, dei-xando sua família destituída de bens. O terceiro foi Edward Isaac, um ferreiro, que ao mesmo tempo foi multado por pregar e teve

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    todas as suas mercadorias de trabalho, incluindo sua bigorna, confiscadas. Quando Bunyan continuou sua pregação, teve a satisfação de ver que estava sendo bênção para muitos; embora fosse grato além da medida por isto, nenhum homem jamais to-mou uma tarefa tão responsável e grave sobre si com tanta mo-déstia e lutou pelo bem dos outros mais do que por sua própria fama. Ele nos conta que, “Em minha pregação da Palavra, tomei cuidado especial com uma coisa – a saber, que o Senhor me le-vasse a começar onde Sua Palavra começa, com os pecadores, ou seja, condenar toda carne e abrir e alegar que a maldição de Deus na lei pertence e cai sobre todos os homens quando eles vêm ao mundo, por causa do pecado. Agora, esta parte do meu trabalho cumprida com grande sentido (de sentimento), pelo terror da lei e culpa por minhas transgressões, pesava na minha consciência. Eu pregava o que sentia, o que agudamente sentia minha pobre alma, que até mesmo gemia e tremia até a perplexidade. De fato, sou um dos que foi enviado dos mortos a eles e fui, eu mesmo, em cadeias, para pregar àqueles que estavam em cadeias e car-reguei aquela chama na consciência de modo que os persuadi a tomarem cuidado com ela. Posso verdadeiramente dizer quequando estive pregando, eu chegava cheio de culpa e medo até ao pé do púlpito. Então isso era tirado de mim e minha mente ficava livre até que tivesse feito meu trabalho e, imediatamente, antes mesmo que descesse as escadas do púlpito, me sentia tão mal quanto antes. Ainda assim, Deus me levou adiante, certamente com uma forte mão, pois nem a culpa nem o inferno podem tirar de mim o meu trabalho.”

    Não deve nos causar surpresa o fato de que um homem tão zeloso e tão dedicado ao ofício de professor da religião, como Bunyan era, se tornasse popular quase imediatamente. Como ele não pregava nada que não fosse previamente estudado, conside- rado e registrado em anotações para guiá-lo, seu tempo deve ter

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    sido muito ocupado, já que ele tinha uma família para sustentar e cumpriu sua tarefa para com eles de modo que não deixasse nada para os malevolentes falarem contra ele nesta questão. Por vários anos foi diácono em sua igreja – escrevendo e ministran-do aos doentes e pobres. Este ofício, ele agora se sentia levado a deixar, porque não tinha tempo ao seu dispor para cumprir as tarefas que o ofício envolvia e não era o tipo de homem de fazer as coisas pela metade. Seja lá o que fizesse, ele o fazia de coração e mente.

    As opiniões dos Ranters, de quem nós já falamos, estavam ocasionando desassossego nas mentes de muitas boas pessoas da vizinhança de Bunyan, cujo grau de instrução educacional e es-piritual não era o suficiente para lutar contra eles. Para encontrar--se com tais pessoas e combater suas ideias, também por causa de um desejo de combater a falsa religião e a depravação que existia ao seu redor, Bunyan foi induzido a fazer sua primeira aparição como autor. Para alguém que dentro de apenas alguns anos teve, pela segunda vez, de aprender a ler e que escrevia muito mal, esta era uma tarefa que exigia grande coragem e perseverança. O “o que dizer” estava com ele, mas o que era difícil era colocá-lo em preto e branco para imprimir. A tarefa foi enfim cumprida e em 1656 sua primeira publicação apareceu sob o título de Some Gos-pel Truths Opened According to the Scriptures (Algumas verdades do Evangelho abertas de acordo com as Escrituras), este foi o começo desta enchente de verdade divina, que ele derramou sem interrupção até o dia de sua morte, e muito do qual pode se dizer, alegrou o coração de milhões de seus companheiros durante os muitos anos que se passaram até que o mundo descobrisse seu valor e o poder de suas palavras. É importante que nós saibamos a opinião sobre esta obra de alguém que conhecia o autor e sua humilde circunstância e não foi, portanto, induzido a dar mera-mente um testemunho lisonjeiro.

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    Bunyan, antes de publicar esta obra, submeteu-a a John Bos-ton, que tinha estado unido com ele na congregação de Bedford. O seguinte é um extrato do testemunho que ele dá em relação a isto:

    “... Este homem (Bunyan) foi escolhido não em uma comuni-dade terrena, mas de uma comunidade celestial, a igreja de Cris-to, preenchida com o Espírito, os dons e a graça de Cristo – por causa destes, até o fim do mundo a palavra do Senhor e todos es-tes ministros do Evangelho devem pregar. E embora este homem não tenha o estudo ou sabedoria do homem, ainda assim através da graça recebeu o ensino de Deus e o aprendizado do espírito de Cristo. Ele, através da graça, recebeu diplomas celestiais – união com Cristo, unção do Espírito e experiência com as tenta-ções de Satanás – que contribuem mais para deixar um homem em forma para a pregação do Evangelho do que aprendizado na universidade ou diplomas podem fazer. Tenho experimentado com outros crentes a respeito da integridade da fé deste homem, sua boa conversa e sua habilidade de pregar o Evangelho, não pela arte humana, mas pelo espírito de Cristo; dessa forma tem tido muito sucesso na conversão dos pecadores. Penso que é minha obrigação dar testemunho com meu irmão sobre estas verdades gloriosas do Senhor Jesus Cristo.”

    Não obstante o calor em sua recomendação, a intromissão da carência de instrução de Bunyan não pode deixar de ser notada. E é ainda mais notável porque há pouco no trabalho em si que pareça ser necessário que deva ser melhorado; mas durante toda sua vida e muito depois da sua morte, sua necessidade de estudar e sua origem humilde foi assunto de referência apologética en-tre seus admiradores, de detração de seus inimigos: “Pode algo de bom sair de Nazaré?” é uma pergunta constantemente feita quando um filho de natureza humilde, pela pura força da natu-reza, lança-se entre os imortais. Depois que gerações passaram, a mera circunstância da vida de um grande homem é esquecida e ele é lembrado apenas em relação a seu trabalho. Este foi o caso

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    de Bunyan, pois mais de cem anos depois de sua morte, achamos Cowper82afirmando que não poderia colocar o agora glorioso nome de Bunyan em seu verso por medo de causar zombaria.

    Nesta obra, Bunyan ataca as tolices e heresias de seu tempo sem poupar nada e não demorou muito para que se encontrasse com oponentes ferozes, o primeiro e mais notável foi Edward Burrough, um quaker, mais jovem que Bunyan e tão cheio de entusiasmo por sua crença quanto Bunyan era pela sua.

    A réplica de Burrough era caracterizada por uma veemência apaixonada, poder de sarcasmo e injúria, aplicado sem muita justiça, contrastando estranhamente com seu título “Defesa do Evangelho da Paz no espírito de mansidão e amor”. Ele fala de Bunyan e dos irmãos de sua comunhão como “passarinheiros astuciosos espreitando o inocente” e ataca-os com palavras no estilo mais cortante. “Por quanto tempo”, ele pergunta, “o justo será uma presa de sua verdade, suas raposas traiçoeiras; seus atos estão na escuridão e seus erros são chocados nas suas camas de meretrício secreto... Vocês fortalecem suas mãos na iniquidade e zombam de si mesmos com o zelo de loucos em fúria. Atiram suas flechas de crueldade e até mesmo de amargas palavras.”Ele declara que Bunyan como “herdeiro de Ismael e da semente de Caim, cuja linhagem vai até os sacerdotes assassinos, inimigos de Cristo, que pregavam por dinheiro”.

    Burrough lhe perguntou: “Não é o mentiroso e caluniador um não crente de natureza amaldiçoada?” Ao que Bunyan respon-deu: “O mentiroso e caluniador é um não crente e se ele viver e morrer nesta condição, seu estado é mesmo ruim, embora se ele se arrepender, há esperança para ele. Portanto, arrependa-se e mude rapidamente, olhe para si mesmo, pois tu és tal homem, como está claro pelo seu discurso.”

    Certa Anne Blacky, mulher religiosa e uma adversária inteli-gente, também entrou na lista contra Bunyan. Em uma ocasião, 8 William Cowper (1731–1800), poeta inglês, compositor de vários hinos. Um dos mais populares poetas de seu tempo, costumava escrever sobre a rotina do dia a dia e sobre cenas da vida campestre inglesa (N.T.).

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    ela apelou para ele, na presença da congregação para quem ele pregava, para “jogar fora as Escrituras”, ao que ele respondeu: “Não, pois assim o diabo seria muito difícil para mim.”

    Bunyan não era um oponente à altura de Burrough. Ele era um homem justo e honesto, e muito zeloso para entrar na guerra do abuso. Ele podia falar com vigor contra o erro, os malfeitores, mas não podia sair da sua pura personalidade, apenas pelo dese-jo de ferir um oponente. Ele respondeu um folheto intitulado A Vindication of Gospel Truths (Defesa das verdades do Evan-gelho), e falou do abuso do seu oponente sobre ele como uma luta “amarga com uma parcela de expressões ofensivas”. Bur-rough acusou Bunyan de ter insinuado que os quakers eram os falsos profetas a que as Escrituras aludiam e lhe disse que “não havia quakers naqueles dias”. “Amigo”, diz Bunyan em resposta, “você está certo, ninguém ouviu falar de quakers naquela época, mas se ouviu falar de cristãos”. Sua resposta à acusação sem fun-damento de que era um pregador mercenário, é certamente a sua mais nobre defesa e exposição de seu ofício e circunstân-cias, que um homem jamais fez. “Para se defender você jogou poeira na minha face, dizendo, se nós investigássemos a sua vida,acharíamos os passos dos falsos profetas em você, através de pa-lavras forçadas, através de teimosias, fazendo das almas um mer-cado, sendo o salário da injustiça. Amigo, você fala isto por seu próprio conhecimento, ou alguém lhe disse isso? Entretanto, este espírito que o leva por esse caminho é mentiroso, pois embora eu seja pobre e sem reputação quanto às coisas exteriores, ainda assim pela graça eu aprendi, pelo exemplo do apóstolo Paulo a pregar a verdade e também a trabalhar com minhas mãos, tanto para meu próprio sustento, quanto para aqueles que estão comi-go, quando tenho oportunidade. E eu confio que, o Senhor Jesus Cristo, que me ajudou a rejeitar os salários da injustiça até agora, ainda me ajudará, para que distribua o que Deus me deu de graça e não por causa do lucro.”

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    A resposta de Bunyan foi elogiada em um prefácio por três de seus irmãos de ministério na congregação. Logo, o humilde funi-leiro não precisava de recomendação ou desculpa para qualquer coisa que fizesse. Burrough respondeu à defesa, mas Bunyan sa-biamente se absteve de continuar a controvérsia; o trabalho no qual estava engajado era mais importante aos seus olhos e pre-cisava de todo seu tempo. Era um trabalho tempestuoso e tinha suas provas e dificuldades, assim como não faltavam muitos que escarneciam do funileiro iletrado e acusavam-no de todo tipo de ignorância e até mesmo com vícios, no que se mostravam mais cruéis e injustos, então, do que quando se referiam à sua vida an-tes da regeneração. O efeito de sua pregação entre aqueles que o ouviam era mais marcado tanto pela hostilidade que se levantava contra ele, quanto por seu bom efeito sobre muitos pecadores endurecidos.

    Uma ocasião, sendo anunciado que ele pregaria numa vila em Cambridgeshire, um estudioso de Cambridge que pas-sava a cavalo, perguntou o significado da multidão reunida. Sendo informado que Bunyan, um funileiro, ia pregar, ele deu uma moeda a um menino para segurar seu cavalo, para que “ele pudesse ouvir o funileiro tagarelar”. Mas aquele quefoi para zombar ficou para orar. Ele foi atingido pela intensi-dade do pregador, da adequação de suas palavras à sua própria condição – pois ele não era conhecido por sua sobriedade ou virtude – e depois disso se tornou um homem mudado, ouvindo as exortações de Bunyan tão frequentemente quanto podia.

    Este sucesso e popularidade não o exaltaram, ou mudaram a honesta simplicidade de seu caráter, embora ele nos diga que, “enquanto achado na obra abençoada de Cristo, sendo muitas vezes tentado ao orgulho e a exaltação do coração e embora não ouse dizer que não fui afetado por isso, verdadeiramente o Senhor, em Sua preciosa misericórdia, tem me sustentado, pois na maioria das vezes, tenho apenas uma pequena alegria por dar

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    lugar a tal coisa, pois tem sido a minha petição de todos os dias admitir o mal em meu próprio coração e ainda ver a multidão de corrupções e enfermidades lá dentro; que isso cause o abaixar de minha cabeça, abaixo de todos os meus dons e feitos.” Na obra de Toplad achamos uma anedota característica ilustrando esta confissão.

    “Tendo o Sr. John Bunyan pregado um dia com calor e com de-mora peculiar, alguns de seus amigos, depois que o culto acabou, tomaram-no pela mão e não puderam evitar observar que bom sermão ele tinha pregado. ‘Ah’, disse o bom homem, ‘vocês não precisam me lembrar disso, pois o diabo me disse o mesmo antes que eu descesse do púlpito.’”

    Enquanto alguns o chamavam de jesuíta disfarçado, outros o acusavam de ser um feiticeiro. “Mas”, ele nos diz, “o que era repetido com a mais ousada confiança era que tinha meus bas-tardos; sim, duas esposas de uma vez e coisas do tipo. Agora, eu me glorio nestas calúnias, com as outras, porque elas são apenas calúnias, mentiras tolas e falsidades lançadas sobre mim pelo diabo e sua semente; se o mundo não agisse tão impiamente comigo, eu ia querer um sinal de que sou um santo e um filho de Deus. Estas coisas, portanto, por minha conta, não me inco-modam; não embora elas sejam vinte vezes mais do que são: eu tenho uma boa consciência e quando falam mal de mim como se fosse um malfeitor, eles serão envergonhados por acusarem falsamente minha boa conversação com Cristo. Portanto, acho que suas mentiras e calúnias são para mim um ornamento, que pertence à minha profissão cristã, para ser aviltado, caluniado, reprovado e insultado; uma vez que tudo isso não é nada mais, como Deus e minha consciência são testemunhas, me alegro nas acusações pelo amor de Cristo”. “Meus inimigos erraram o alvo nisto que atiraram em mim. Eu não sou o homem. Eu desejo que eles sejam sem culpa. Se todos os fornicadores e adúlteros da Inglaterra fossem enforcados pelo pescoço até que morressem, John Bunyan, o objeto de sua inveja, estaria ainda vivo e bem.

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    “... Quando eu vejo bons homens saudarem as mulheres que visitaram, ou que os visitaram, eu faço às vezes objeções a isso. E quando elas respondem, isto é apenas uma pequena civilidade, eu lhes digo que não é uma visão atrativa; algumas de fato, exi-gem o ósculo santo, mas então”, ele diz ingenuamente, “eu per-gunto por que fizeram impedimentos, por que saudaram os mais bonitos e deixaram ir os menos afortunados.”

    Dessa forma, embora se mantivesse indiferente às mu-lheres, ele não era beato e na passagem que segue, os pe-didos das mulheres, até o mais elevado tema, nunca foram tão bem colocados por um autor que não da Bíblia.

    “Eu direi que, quando o Salvador veio, as mulheres se regozijavam nele, diante dos homens ou anjos. Eu nunca li que um homem tenha lhe dado nem mísero centavo, mas as mulheres seguiam-no e ministraram a Ele com sua riqueza. Foi uma mulher que lavou seus pés com suas lágrimas e uma mulher que ungiu seu corpo para o funeral. Foram mulheres que choravam quando Ele subiu à cruz, mulheres que O seguiram até a cruz,que sentaram perto do Seu sepulcro quando Ele foi enterrado. Eram mulheres que estavam com Ele na manhã da ressurreição e as mesmas mulheres trouxeram as notícias aos discípulos deque Ele tinha ressuscitado dos mortos. As mulheres, portanto, são favorecidas, e mostram por estas coisas, que compartilham conosco na graça da vida”.

    Mas uma perseguição de outro tipo estava se juntando ao seu redor como uma nuvem e logo estava para estourar sobre sua cabeça. Até mesmo na Commonwealth, Bunyan foi perseguido por pregar, como descobrimos em Jukes’s History of John Bu-nyan’s Church (História de Juke sobre a igreja de John Bunyan): “Logo depois de deixar o posto de diácono em 1657, a mão da perseguição se levantou contra ele, pois num encontro da igreja, no dia 25 de fevereiro de 1658, concordou-se que o terceiro dia do mês seguinte seria para buscar a Deus pelo irmão Wheeler, que estava há tempos doente e também para aconselhar aqueles

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    que com respeito ao indiciamento do irmão Bunyan na acusação de pregar na Páscoa.” Um de seus Atos pelos quais foi indicado, data de 26 de abril de 1645 e a acusação especial foi exagerada contra ele, embora as leis contra a pregação fossem administra-das moderadamente durante o protetorado, dizia que “ninguém pode pregar a não ser ministros ordenados, exceto aqueles que, com vistas ao ministério, pregarão como teste de seus dons e tais devem ser indicados por ambas as casas do Parlamento”. Uma emenda, aprovada em março de 1653, indicou comissões para aprovação de pregadores públicos. Um Ato, aprovado em 2 de maio de 1648, ordenou que qualquer pessoa que diz que o homem não deva crer além do que a sua razão compreenda, ou que o batismo de bebês é contra a lei, ou vazio, que tal pes-soa deva ser batizada de novo e, em consequência disso, batizar qualquer pessoa previamente já batizada, será preso até que as-segure de que não publicará ou falará deste erro novamente.

    Como vimos que Bunyan, em seu próprio caso, não cria em nada que não entendesse, ou que sua Bíblia e razão não disses-sem ser verdade, nós podemos ter certeza que ele não pregou o que em sua própria prática achou tão benéfico e suas objeções ao batismo infantil como sacramento de valor eram bem conheci-das. Se através de alguma intercessão influente sobre aqueles que exerciam autoridade, ou pela indisposição de perseguir alguém tão notório e respeitado quanto Bunyan era, nós não sabemos, mas a perseguição foi inteiramente abandonada.

    O Sr. G. Offor, em seu admirável e exaustivo Memoir de Bu-nyan, nos conta de uma acusação feita contra Bunyan de uma na-tureza singular – aquela de imputar um crime de bruxaria a uma viúva muito respeitável, uma quaker, que teve seu julgamento em 1659 e felizmente para ela, foi absolvida. Vivendo como eles viviam, num tempo em que os simples e os nobres acreditavam em bruxaria e outras ilusões, é uma evidência singular do bom senso de Bunyan, como aponta o Sr. Offor, que ele não tivesse

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    fé em tais crenças monstruosas. Esta liberdade de não crer nasilusões populares da época é ainda mais marcante, pois em seus anos mais jovens ele tinha visões – tinha sonhos – e cria que es-tava sendo perseguido por vozes confortadoras e acusadoras. Seu intelecto forte e vigoroso logo se apresentou e o capacitou a ser superior a crenças supersticiosas, que mantinham mentes tão cultas cativas, como as de Sir Mathew Hale, Baxter, Cotton, Matthew, Clarke e um grupo de outros homens igualmente emi-nentes.

    Nos dias de Bunyan, a Bíblia era interpretada literalmente por homens conhecidos por seu conhecimento e sua cultura e não é de se admirar que cressem que Satanás pudesse aparecer aos homens na forma de animais e na forma humana. O homem que ousasse ir contra essa ideia seria considerado ateu. George Of-for diz: “Bunyan nunca acreditou que os princípios grandes e imutáveis com os quais o Criador ordenou governar a natureza pudessem ser perturbados pelas loucuras de velhas mulheres, com propósitos insignificantes. Não, tal homem não poderia ter espalhado o boato de que uma mulher tomou a forma de uma égua e suas roupas viraram a sela do cavalo (estas foram algu-mas acusações levantadas contra a mulher quaker). Sentimentos sectários desenfreados perverteram alguns de seus comentários, provavelmente feitos com as melhores intenções, nas mais in-críveis calúnias.” A crença de que o diabo podia se transformar num animal ou homem, para o propósito de arruinar uma alma imortal, era uma superstição digna se comparada com tagare-lices sem sentido do mesmo tipo – bobagens, entretanto, que custaram a vida de milhares de pessoas dentro destas regiões, em um período de tempo comparativamente curto, debaixo da mão da lei.

    Em 1658 sua esposa, a quem ele era muito ligado, e cuja vida piedosa e modos gentis fizeram tanto pelo jovem pecador e descui-dado com quem ela casou, veio a falecer. Lá pelo fim de 1659, ele

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    se casou pela segunda vez, pois cria que “não é bom que o homem esteja só” e seus filhos exigiam atenções que suas ocupaçõeslhe impediam de dar, mais especialmente porque um deles era cego.

    Depois da restauração e com a aprovação do Ato de Unifor-midade de Adoração Pública, os encontros dos dissidentes eram realizados por seu próprio risco.

    Este Ato não visava apenas os ministros, mas também os ouvintes e tornou uma ofensa legal qualquer pessoa que se en-contrasse para adorar a Deus em casas, ou nos campos e flores-tas, onde a punição era de pesadas multas e aprisionamento e até mesmo a morte. Ministros não conformistas eram levados de suas vidas e seus púlpitos por este estatuto cruel e perverso, que os declarava impróprios para trabalharem com tutores ou professores e que não podiam residir dentro de cinco milhas de qualquer cidade ou vilarejo. Como era de se esperar, tais medi-das severas fracassaram em atingir o seu alvo, pois os crentes se encontravam para cultuar em lugares secretos durante a madru-gada e os pregadores adotaram todo tipo de disfarce.

    Como uma parte das multas ia para os informantes, tornou-se um negócio abraçado pela maioria das pessoas de vida dissoluta. Um destes morava em Bedford e os vizinhos o detestavam tanto que, quando ele morreu, sua viúva não pôde obter um carro fu-nerário, ou a presença de seus vizinhos para enterrar o corpo, que teve que ser transportado para o cemitério numa carroça.

    Como Bunyan era pobre, não havia muita esperança de parti-lhar uma bela multa no caso dele e por um tempo isto o salvou das atenções dos informantes. Ele encontrava e ensinava peque-nos grupos de pessoas em celeiros, estábulos e outros lugares es-condidos sob o manto da noite, exortando-os a serem pacientes debaixo da perseguição e a confiar em Deus para rápido livramen-to. Conta-se que numa dessas ocasiões seu hábito era frequentar

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    os encontros disfarçado de carroceiro, usando uma bata branca, um chapéu bem grande e um chicote. O uso do disfarce não era um sinal de falta de coragem da parte de Bunyan. Sendo pobre, ele era totalmente incapaz de pagar uma multa pesada e em tal caso, sua vida estaria em perigo, pois muitos naquele tempo foram enforcados por nenhum outro crime além de adorar a Deus do jeito que suas consciências gostavam mais. Um aprisionamen-to longo era certo e ele não era homem de se conformar ou de encerrar o exercício do que considerava uma tarefa solene.

    Quando chegou o tempo, a coragem, mesmo à beira da imprudência, não faltou. No dia 12 de novembro de 1660, ele foi convidado a pregar em Samsell, em Bedfordshire, de um modo público mais que comum, pois a congregação se reuniu na igreja. Francis Wingate, um juiz de paz da região, foi informado do culto e sentiu-se impelido, contra sua vontade, a fazer uso do mandado de prisão contra o pregador. Isto chegou aos ouvidos das pessoas e elas o aconselharam a desmarcar o encontro e efetuar sua fuga. Mas, nisto, bem como em outras coisas, a perseguição contínua induziu uma resolução de aceitar as consequências, fossem quais fossem. Ele mesmo nos conta que hesitou por um momento, pois pensamentos sobre sua esposa e filhos vieram à sua mente, mas depois de orar em particular, chegou à conclusão que “Se eu fugir agora, isso será muito ruim para o país, pois o que pensarão meus irmãos mais fracos e recém-convertidos? Se eu fugir agora que há um mandado contra mim, eu posso, dessa forma, fazê-los ficar com medo de se levantarem, quando eu deveria apenas dizer grandes palavras para eles. Além disso, acho que Deus, em Sua misericórdia, me escolheu para aumentar a esperança perdida neste país, ou seja, para ser o primeiro que sofra oposição por causa do Evangelho. Se eu fugir, todo o corpo que me segue será desencorajado. E além do mais, penso que o mundo aproveitaria a ocasião de minha covardia para blasfemar contra Evangelho e

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    para ter alguma base para suspeitar de mim e de minhas profis-sões mais do que eu desejaria”.

    O culto aconteceu por cerca de uma hora quando o guarda e seus auxiliares chegaram e, exibindo seu mandado, mandaram que ele descesse do púlpito, ao que Bunyan respondeu que es-tava cuidando dos negócios do seu mestre e preferia obedecer a sua ordem do que a dos homens. Um guarda subiu as escadas, segurando-o pelo casaco e ia removê-lo à força, mas parou di-ante do olhar grave e firme que Bunyan lhe deu e retirou-se. Um de seus amigos disse sobre ele, “Tinha um olhar rápido e agudo, seu semblante era grave e tinha algo de terrível para aqueles que não possuíam o temor de Deus”. Como conta o próprio Bunyan, “temia a Deus e honrava ao rei”, então ele obedeceu às ordens em nome do rei para descer e acompanhou o guarda até a casa do juiz. Como este não estava em casa naquele dia, a palavra de um amigo de Bunyan foi tomada de que ele estaria lá na manhã seguinte. Este juiz Wingate parece ter sido um homem bom e justo, que se sentiu mal em ter que pôr em prática os Atos de perseguição e somente o fez quando não podia agir de outra for-ma, uma circunstância que mostra o modo semipúblico no qual o culto em Samsell estava sendo conduzido.

    Quando Bunyan foi trazido diante dele, “ele perguntou ao guarda” (que citamos o relato de Bunyan) “o que fizemos e quan-do estávamos reunidos, o que tínhamos conosco. Suponho que ele quis saber se tínhamos armas conosco ou não; mas quando o guarda lhe disse que havia somente alguns de nós reunidos para pregar e ouvir a Palavra e nenhum sinal de nada mais, ele não sabia o que dizer; mas porque tinha mandado me buscar, me fez algumas propostas, que eram para este efeito – a saber, o que eu fazia lá? E porque não me contentei em seguir minha profissão, pois era contra a lei que alguém como eu fizesse o que fiz”.

    “Ao que lhe respondi: ‘que o intento da minha vinda aqui e a outros lugares, era para instruir e aconselhar pessoas a deixar seus pecados e se achegarem a Cristo, se não pereceriam

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    miseravelmente e que eu podia fazer as duas coisas sem confusão – isto é, fazer o meu trabalho e também pregar a Palavra.’”

    “Diante destas palavras, me pareceu que ele ficou encoleriza-do, pois disse que ia quebrar o pescoço dos nossos encontros.” O juiz decretou que ele ficaria em liberdade, desde que tivesse certeza de que não mais pregaria. Vários de seus amigos pronta-mente se ofereceram para serem seus fiadores, mas quando ele ouviu que se pregasse de novo, teriam que pagar multa ou serem castigados, ele declinou e preferiu ir para a prisão e receber o que o Senhor tinha enviado. Parece que todo esforço foi feito por parte do juiz e de seus amigos para induzi-lo a aceitar os fiadores e protegê-los por seu comportamento; seus próprios amigos também tentaram persuadi-lo, mas sem sucesso.

    É impossível, neste tempo distante, analisar os sentimentos que tenham levado a isso. Se entendermos a posição que ele assumiu nesta grande crise da sua vida, podemos ver que ele estava perturbado em sua mente com relação a seu próprio curso. As eras futuras colheram os benefícios de seu longo aprisionamento, pois não há dúvida de que o ócio forçado levou-o a composição de O Peregrino, um livro que é mais popular do que qualquer outra produção inspirada pela genialidade humana.

    Depois de estar preso por vários dias, seus amigos foram ao juiz em Elstow, um certo Sr. Crompton, para tentar convencê-lo a aceitar a fiança deles e a promessa de que Bunyan viria à corte a cada três meses. Mas como Bunyan ficou firme em sua deter-minação de não fazer um voto de não pregar, o juiz Crompton declinou de interferir, embora evidentemente estivesse ansioso para procurar sua liberação e atuou com os sentimentos mais amistosos para com ele e seus amigos. Este resultado, como ele nos conta, não o intimidou, mas antes o fez feliz: “e vi que evi-dentemente o Senhor tinha me ouvido, pois antes que eu fosse até o juiz, implorei a Deus que se eu fizesse mais o bem estan-do livre do que na prisão, que fosse posto em liberdade; mas se não, que fosse feita sua vontade. Pois eu não estava de todo sem

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    esperança de que minha prisão pudesse ser um despertamento para os santos neste país; portanto, não sabia o que escolher... e verdadeiramente no meu retorno, encontrei meu Deus doce-mente na prisão de novo, me confortando, me satisfazendo ao saber que era Sua vontade que eu estivesse naquela condição.”

    Bunyan, como marido e pai amoroso, sentiu muito pela sua família, mais especialmente por sua filha cega, que através da ação de sua enfermidade sobre sua natureza terna e suscetível, era para ele como a menina de seus olhos. Ele disse, “Pobre cri-ança, eu penso, que tristezas você terá como a sua porção neste mundo? Será espancada, deverá mendigar, passar fome, frio, nu-dez? E talvez milhares de outras calamidades, embora eu não possa agora suportar o vento que soprará sobre você”.

    Não podemos ter melhor evidência do respeito que o dis-trito de Bunyan tinha por ele, onde é claro, era conhecido int