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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO E ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS ANA FLÁVIA DE MELLO MENDES DANÇA IMANENTE: uma dissecação artística do corpo no processo criativo do espetáculo Avesso SALVADOR 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO E ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

ANA FLÁVIA DE MELLO MENDES

DANÇA IMANENTE: uma dissecação artística do corpo

no processo criativo do espetáculo Avesso

SALVADOR

2008

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1

ANA FLÁVIA DE MELLO MENDES

DANÇA IMANENTE: uma dissecação artística do corpo

no processo criativo do espetáculo Avesso

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Artes

Cênicas do Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da Universidade Federal da Bahia, como

requisito parcial para a obtenção do título de doutor.

Orientadora: Profª. Drª. Eliana Rodrigues Silva.

SALVADOR

2008

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2

ANA FLÁVIA DE MELLO MENDES

DANÇA IMANENTE: uma dissecação artística do corpo

no processo criativo do espetáculo Avesso

Tese para obtenção do título de Doutor em Artes Cênicas

Salvador, de de 2008.

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Eliana Rodrigues Silva ________________________________________

Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. João de Jesus Paes Loureiro ______________________________________

Universidade Federal do Pará

Profa. Dra. Elizabeth Pessôa Gomes da Silva ________________________________

Universidade da Amazônia

Prof. Dr. Miguel de Santa Brígida Júnior ___________________________________

Universidade Federal do Pará

Profa. Dra. Josebel Akel Fares ___________________________________________

Universidade do Estado do Pará

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3

À memória de meu pai, Dr. Antônio Carlos de

Barros Mendes, meu exemplo número um de

retidão e competência em pesquisa.

Aos meus alunos, pessoas com quem aprendo a

viver e fazer arte.

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4

AGRADECIMENTOS

A luz que me ilumina e fortalece, qual chamo de Deus.

À minha mãe, Cristina Mendes, a melhor das companheiras, seja na alegria ou no

infortúnio.

A Gláucio Sapucahy, parceiro que tudo esclarece e encoraja.

A todos os que estão ou já passaram pela Companhia Moderno de Dança, pelos

ensinamentos de amor e amizade abraçados ao fazer artístico e, em especial, aos integrantes

de Avesso: Ana Paula Siqueira, Bruna Cruz, Christian Perrotta, Daiane Gasparetto, Danielly

Vasconcellos, Ercy Souza, Feliciano Marques, Luiza Monteiro, Márcio Moreira, Nelly Brito e

Wanderlon Cruz (intérpretes-criadores); Sônia Lopes (iluminadora); ao meu irmão, José

Mario Mendes (compositor da trilha sonora) e ao amigo Tarik Alves (produtor técnico,

cenógrafo e iluminador), que enxergou neste grupo um espaço para compartilhar trabalho e

conhecimento.

À professora Marlene Vianna, pelo inestimável incentivo à educação e à arte.

À minha orientadora e amiga, Profa. Dra. Eliana Rodrigues Silva, profissional

exemplar, sempre atenta e disponível.

Aos doutores João de Jesus Paes Loureiro, Beth Gomes, Miguel Santa Brígida e

Josebel Fares, por dedicarem atenção e cuidado na avaliação deste trabalho.

Às amigas Wlad Lima, Karine Jansen, Olinda Charone e, de modo especial, à minha

irmã por adoção, Giselle Moreira, pelo respeito, carinho, credibilidade e partilha.

Aos meus avós, tios, irmãos, cunhadas, primos, sogros e sobrinhos, familiares

participativos que apóiam e formam opiniões. Agradeço especialmente ao meu sogro,

professor Sérgio Sapucahy, pelas preciosas leituras e revisões de meus textos.

À Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia (FIDESA), pelo apoio

incondicional.

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5

Me encanta ver as pessoas crescerem.

Angel Vianna

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6

RESUMO

Esta tese compreende um estudo teórico e prático sobre o processo artístico da Companhia

Moderno de Dança, de Belém do Pará. O objeto a partir do qual se dá a investigação é o

processo de criação e encenação do espetáculo Avesso, concebido para a referida companhia e

dirigido pela autora que aqui se apresenta. Tendo como objetivo criar e encenar o dito

espetáculo, esta pesquisa focalizou a transfiguração dos movimentos orgânicos do corpo em

movimentos de dança, na perspectiva de validar as opções metodológicas da criação

coreográfica como recursos de uma poética contemporânea de dança, à qual é dada a

denominação de dança imanente. Subsidiada nos preceitos da pós-modernidade em arte e nas

noções contemporâneas de corpo vigentes nas diversas áreas do conhecimento, a análise

propiciou a construção dos seguintes princípios criativos para o espetáculo: o princípio da

imanência, consolidado a partir do conceito de corpo imanente; o princípio da

metalinguagem, identificado na noção de metacorpo e o princípio da visibilidade, observado

no conceito de corpo visivo. Estes princípios foram adotados como norteadores da noção de

dissecação artística do corpo, tida aqui como procedimento metodológico gerador da poética

da dança imanente. O produto cênico do espetáculo Avesso resultou em uma coreografia cujos

padrões de movimento não foram construídos a partir de técnicas formais de dança,

confirmando a hipótese de que esta experiência criativa instauraria um vocabulário de

movimentos peculiar para a dança.

Palavras-chave: Corpo. Dissecação artística. Processo criativo. Dança. Dança imanente.

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7

ABSTRACT

This thesis comprehends a theoretical and practical study about the Companhia Moderno de

Dança, group from Belém-Pará, in its artistic process. The object by which the investigation is

done is the creation and staging process of the dance concert Avesso, conceived to the referred

company and directed by the author here presented. The objective of this work is to create and

perform the dance concert mentioned before. For this, the focus is centered in the organic

body movements transfiguration into dance movements, with the perspective of validate the

methodological option of choreographic creation as resources of a contemporary dance poetic,

which is named immanent dance. Supported in post-modern art precepts and in

contemporary notions of body established by several knowledge areas, the analysis

propitiated the construction of the following creative principles to the dance concert: the

principle of immanence, consolidated by the concept of immanent body; the principle of met

language, identified in the notion of met body and the principle of visibility, observed in the

concept of visive body. These principles were adopted as guides for the artistic body

dissection notion, here understood as methodological procedure that generates the immanent

dance poetics. The scenic product of the dance concert Avesso resulted in a choreography in

which the movement patterns were not constructed by the use of formal dance techniques,

confirming the hypothesis that this creative experience would establish a peculiar movement

vocabulary for dancing.

Key-words: Body. Artistic dissection. Creative process. Dance. Immanent dance.

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8

LISTA DE FIGURAS

Fig. 01 – Vênus de Willemdorf ............................................................................................ 25

Fig. 02 – Baixo relevo egípcio (cerca de 2500 a.C.) ........................................................... 27

Fig. 03 – Cabeça de faraó egípcio (cerca de 2551 – 2558 a.C.) .......................................... 28

Fig. 04 – Registro anatômico do antebraço comparado a um desenho de dissecação moderna

(cerca de 1500 a.C.) ..............................................................................................

29

Fig. 05 – Hieróglifos egípcios derivados da forma do útero ............................................... 30

Fig. 06 – Amuletos egípcios representando coração, traquéia e pulmões ........................... 30

Fig. 07 – Discóbolo, de Míron (aproximadamente 450 a.C.) .............................................. 31

Fig. 08 – Doríforo, de Policleto (aproximadamente 440 a.C.) ............................................ 31

Fig. 09 – Afrodite de Melos (segunda metade do século II a.C.) ......................................... 31

Fig. 10 – Laocconte e Seus Filhos (cerca de 175 – 50 a.C.) ............................................... 32

Fig. 11 – Pintura grega em cerâmica (cerca de 510 – 500 a.C.) .......................................... 33

Fig. 12 – Registro da anatomia humana feito por um cientista (400 a.C.) .......................... 34

Fig. 13 – A arte cristã da Idade Média (520 d.C.) ............................................................... 36

Fig. 14 – Representação de uma dissecação (início do século XIV) .................................. 37

Fig. 15 – A lição de anatomia do doutor Tulp, de Rembrandt (1632) ................................ 39

Fig. 16 – A Mão de Deus, de Rodin (1898) ......................................................................... 41

Fig. 17 – Le Moulin de la Galette, de Renoir (1876) .......................................................... 42

Fig. 18 – O Grito, de Munch (1893) .................................................................................... 44

Fig. 19 – Nu Bleu, de Matisse (1952) .................................................................................. 45

Fig. 20 – Cabeça, de Picasso (1928) ................................................................................... 45

Fig. 21 – Mulher Com Violão, de Braque (1908) ................................................................ 46

Fig. 22 – Orientalisches, de Kandinsky (1913) ................................................................... 47

Fig. 23 – A Cidade das Gavetas, de Dali (1936) ................................................................. 48

Fig. 24 – Mae West, de Dali (1934) ..................................................................................... 48

Fig. 25 – Vista de um crânio, de Leonardo da Vinci (1489) ............................................... 52

Fig. 26 – Anatomia do coração humano, de Leonardo da Vinci (1507) ............................. 52

Fig. 27 – Os principais órgãos e sistemas vascular e uro-genital de uma mulher, de Leonardo

da Vinci (1507) .....................................................................................................

53

Fig. 28 – Pistas reveladoras dos detalhes anatômicos na pintura ........................................ 57

Fig. 29 – Imagem comparativa entre a pintura invertida e a estrutura anatômica da articula-

ção do ombro .........................................................................................................

58

Fig. 30 – Imagem comparativa entre a pintura de Deus e a vista lateral do pulmão

esquerdo ...............................................................................................................

58

Fig. 31 – Imagem comparativa entre a pintura da cena da Criação do Mundo (Deus) e o

corte do crânio humano ........................................................................................

59

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9

Fig. 32 – Arte rupestre no Brasil ......................................................................................... 60

Fig. 33 – Arte plumária indígena brasileira ......................................................................... 61

Fig. 34 – Caminho para o Calvário, de Aleijadinho (1799) ............................................... 62

Fig. 35 – Moema, de Vítor Meireles (1866) ........................................................................ 62

Fig. 36 – Iracema, de Antônio Parreiras (1909) .................................................................. 63

Fig. 37 – Moça no Trigal, de Eliseu Visconti (1918) .......................................................... 63

Fig. 38 – Samba, de Di Cavalcanti (1928) ........................................................................... 64

Fig. 39 – Abaporu, de Tarsila do Amaral (1928) ................................................................ 65

Fig. 40 – Retirantes, de Candido Portinari (1944) .............................................................. 65

Fig. 41 – Figura, de Ismael Nery (1927) ............................................................................ 66

Fig. 42 – Merce Cunningham .............................................................................................. 76

Fig. 43 – Merce Cunningham Dance Company 1 ............................................................... 77

Fig. 44 – Merce Cunningham Dance Company 2 ............................................................... 78

Fig. 45 – Isadora Duncan ..................................................................................................... 79

Fig. 46 – Ruth Saint Denis ................................................................................................... 80

Fig. 47 – Ted Shawn ............................................................................................................ 80

Fig. 48 – Martha Graham ..................................................................................................... 81

Fig. 49 – Doris Humphrey ................................................................................................... 81

Fig. 50 – Jose Limón ........................................................................................................... 82

Fig. 51 – Mary Wigman ....................................................................................................... 83

Fig. 52 – A Mesa Verde, de Kurt Joss .................................................................................. 83

Fig. 53 – Rudolph Von Laban ............................................................................................. 84

Fig. 54 – Técnica de balé ..................................................................................................... 86

Fig. 55 – Técnica de dança moderna ................................................................................... 86

Fig. 56 – Cena de Pina Bausch ............................................................................................ 89

Fig. 57 – Cena de Trisha Brown .......................................................................................... 89

Fig. 58 – Cena do DV8 ........................................................................................................ 89

Fig. 59 – Cena de Tatsumi Hijikata ..................................................................................... 90

Fig. 60 – Cena de Lia Rodrigues ......................................................................................... 101

Fig. 61 – Cena de Dani Lima ............................................................................................... 102

Fig. 62 – Grupo Cena 11 ...................................................................................................... 102

Fig. 63 – Cena de Sacha Waltz ............................................................................................ 103

Fig. 64 – Contato-improvisação em Avesso 1 ..................................................................... 117

Fig. 65 – Contato-improvisação em Avesso 2 ..................................................................... 117

Fig. 66 – Contato-improvisação em Avesso 3 ..................................................................... 118

Fig. 67 – Contato-improvisação em Avesso 4 ..................................................................... 119

Fig. 68 – Corpo imanente 1 ................................................................................................. 122

Fig. 69 – Corpo imanente 2 ................................................................................................. 123

Fig. 70 – Diagrama da dança como linguagem ................................................................... 132

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10

Fig. 71 – Banquete Multisensorial 1 .................................................................................... 140

Fig. 72 – Banquete Multisensorial 2 .................................................................................... 140

Fig. 73 – Banquete Multisensorial 3 .................................................................................... 140

Fig. 74 – Tomografia computadorizada do sistema nervoso central ................................... 165

Fig. 75 – Endoscopia ........................................................................................................... 166

Fig. 76 – Ecocardiograma .................................................................................................... 166

Fig. 77 – Diagrama dos princípios da dança imanente ........................................................ 170

Fig. 78 – Diagrama do procedimento de dissecação ........................................................... 171

Fig. 79 – Plano de uso do espaço para o Avesso .................................................................. 191

Fig. 80 – Geral do espaço cênico do espetáculo .................................................................. 192

Fig. 81 – Cenografia 1 ......................................................................................................... 193

Fig. 82 – Imagem microscópica de células ósseas .............................................................. 194

Fig. 83 – Cenografia 2 ......................................................................................................... 194

Fig. 84 – Vídeo-cenografia digital 1 .................................................................................... 195

Fig. 85 – Vídeo-cenografia digital 2 .................................................................................... 195

Fig. 86 – Vídeo-cenografia digital 3 .................................................................................... 196

Fig. 87 – Sistema de iluminação 1 ....................................................................................... 198

Fig. 88 – Sistema de iluminação 2 ....................................................................................... 198

Fig. 89 – Sistema de iluminação 3 ....................................................................................... 199

Fig. 90 – Sistema de iluminação 4 ....................................................................................... 199

Fig. 91 – Imagem microscópica de fibras musculares ......................................................... 200

Fig. 92 – Figurino do espetáculo 1 ...................................................................................... 201

Fig. 93 – Figurino do espetáculo 2 ...................................................................................... 201

Fig. 94 – O músico José Mario Mendes compondo para o Avesso ..................................... 204

Fig. 95 – Grupo de Dança Moderno em Cena ..................................................................... 211

Fig. 96 – Projeto Aluno-Bailarino-Cidadão ........................................................................ 211

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11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13

1 O CORPO DISSECADO: um estudo das concepções artísticas da anatomia

humana na perspectiva de um processo criativo em dança ...................................

24

1.1 BREVE ABORDAGEM HISTÓRICO-ANALÍTICA DA ARTE SOB A ÓTICA

DA ANATOMIA HUMANA ....................................................................................

25

1.1.1 O corpo humano nas produções artísticas: da pré-história aos romanos ........ 25

1.1.2 O corpo na arte européia: da Idade Média ao Impressionismo ....................... 35

1.1.3 A abstração do corpo na arte européia do século XX ........................................ 42

1.2 ARTE RENASCENTISTA: um argumento para a concepção de corpo dissecado ... 49

1.2.1 A Renascença: diálogos entre ciência e arte ....................................................... 49

1.2.2 Capela Sistina: a dissecação corporal na obra de Michelangelo ...................... 54

1.3 UM OLHAR SOBRE AS DISSECAÇÕES DO CORPO NA ARTE BRASILEIRA 59

1.4 A DISSECAÇÃO POR INTERMÉDIO DO MOVIMENTO NA CENA DA

DANÇA: a proposição de Avesso ..............................................................................

67

2 O CORPO IMANENTE: poéticas contemporâneas de dança como perspectivas

para as reflexões sobre o espetáculo Avesso ..............................................................

70

2.1 AVESSO E OS PRESSUPOSTOS ESTÉTICOS DA PÓS-MODENIDADE

COREOGRÁFICA .....................................................................................................

71

2.1.1 Pós-modernidade em dança ................................................................................. 71

2.1.2 Princípios da dança pós-moderna ....................................................................... 74

2.1.3 O movimento autônomo como elemento norteador da dança .......................... 91

2.1.4 A especificidade da construção do corpo nas poéticas contemporâneas de

dança ......................................................................................................................

94

2.2 POR UMA ESTÉTICA MULTISENSORIAL: o corpo como forma e conteúdo da

obra coreográfica ........................................................................................................

98

2.3 NOÇÕES DE CORPO NA POÉTICA DE AVESSO ................................................. 107

2.3.1 Uma abordagem conceitual de corpo na contemporaneidade .......................... 107

2.3.2 O corpo como sujeito rizomático na experiência do espetáculo Avesso ........... 113

2.3.3 O corpo imanente dissecado em Avesso: sujeito rizomático em diálogo com a

prática do corpo sem órgãos ................................................................................

120

3 O METACORPO NA LINGUAGEM DA DANÇA ................................................. 126

3.1 CORPO E DANÇA COMO LINGUAGENS: a dramaturgia do corpo e o corpomídia 126

3.2 O PLANO DE IMANÊNCIA NA COMPREENSÃO DA DANÇA COMO

LINGUAGEM E METALINGUAGEM ...................................................................

131

3.3 O DISCURSO METALINGÜÍSTICO DO CORPO ................................................. 134

3.4 A EXPERIÊNCIA METALINGÜÍSTICA DE AVESSO .......................................... 136

3.4.1 A poética multisensorial do metacorpo na dança .............................................. 136

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12

3.4.2 Relações entre corpo sujeito e corpo objeto no discurso metacorporal em

Avesso .....................................................................................................................

141

4 O CORPO VISIVO E O CORPO VISÍVEL: a conversão semiótica no procedi-

mento de dissecação em Avesso ..................................................................................

145

4.1 A VISIBILIDADE DO CORPO IMANENTE .......................................................... 146

4.2 DO VISIVO AO VISÍVEL: a forma formante e a forma formada nas transfigurações

do corpo ......................................................................................................................

147

4.3 O CORPO VISIVO CRIADO A PARTIR DOS RECURSOS METODOLÓGICOS

DO ESPETÁCULO ...................................................................................................

153

4.3.1 Os princípios pedagógicos difundidos por Angel Vianna como estratégias no

processo de Avesso .................................................................................................

153

4.3.2 Princípios de Body-mind Centering® na criação do corpo visivo ..................... 159

4.3.3 A visibilidade por meio das tecnologias médicas ................................................ 163

4.4 POR UMA ESTRUTURAÇÃO METODOLÓGICA DE CRIAÇÃO DA DANÇA

IMANENTE ...............................................................................................................

169

4.5 O CORPO VISÍVEL: os elementos cênicos do espetáculo Avesso como reflexos da

dissecação do corpo para a dança imanente ...............................................................

184

4.5.1 A história de vida de um corpo dissecada no roteiro coreográfico do

espetáculo ...............................................................................................................

185

4.5.2 O cenário mesclado que dialoga com a complexidade do corpo em funcio-

namento ..................................................................................................................

189

4.5.3 O colorido do interior do corpo colorindo a encenação .................................... 197

4.5.4 As texturas do corpo dissecadas no figurino do espetáculo .............................. 200

4.5.5 Os sons do corpo transfigurados em música na trilha sonora de Avesso ......... 202

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: para onde vai a dança imanente? ........................... 206

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 213

ANEXOS ......................................................................................................................... 220

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13

INTRODUÇÃO

Corpo-passagem1

Corpo-passagem.

Estado efêmero de corpo.

Morte, sexo, doença, viagem, pearcing, cirurgia, gravidez, defecação, tatuagem, machucado. Tudo é corpo e tudo

é passagem.

Fronteira entre um lugar e outro lugar. Um não-lugar.

Fronteira entre vida e morte. Não-vida, não-morte.

Uma dança de células piratas. Pirataria do corpo. Corpo replicante. Corpo em processo reprográfico. O começo

do fim.

Nem começo, nem fim. Passagem.

Fissura, dobra, limiar.

Corpo à prova. Estados de ser; estágios do ser.

Passagem entre indivíduo-corpo e coletividade-ambiente.

Passagem entre micro e macro. Visível e invisível.

Acessível, porém irrevelado.

Revelável, porém oculto.

Nem visível, nem invisível.

Uma (in)visibilidade. Ver in. In-visível.

Um estado de descobrir o corpo em um estado de ser.

Condição de ser para ver o corpo.

O não-lugar do corpo no lugar do próprio corpo.

Metacorpo no metacarpo. Entrededo ou entremão?

Passagem.

Nem verso, nem reverso.

O avesso do avesso do avesso do avesso...

O infinito. Processo. Contínuo.

Curso, decurso, construção, metamorfose.

Corpo-passagem.

O que pode o contato com múltiplas teorias mudar na vida de um artista? Como as

subjetividades da vida acadêmica transformam o artista no seu fazer e no seu pensar? Que

outras concepções de dança podem surgir a partir do envolvimento com as artes cênicas em

nível acadêmico? Estas são perguntas que me faço constantemente, pois sinto-me

absolutamente abraçada ao universo teórico que dialoga com meu fazer coreográfico. Percebo

que minha produção em dança ganhou uma outra dimensão em função desta relação, de modo

que, até mesmo os conceitos e valores estéticos arraigados à minha formação clássica de

bailarina, foram revistos e, conseqüentemente, transformados.

Sim, transformação talvez seja a melhor palavra para começar esta explanação. É esta

a palavra que norteia todo o raciocínio teórico-prático que cerca a presente pesquisa, pois é a

partir de um entendimento do corpo como algo em transformação que são lançados, aqui,

1 Poema de minha autoria, escrito em 01/06/06, após um dia de trabalho e reflexões sobre o processo criativo do

espetáculo que é objeto de investigação desta tese.

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14

conceitos e noções que se pretendem contributivos para os estudos de corpo e dança na cena

contemporânea.

Corpo-passagem, o poema em destaque no início desta introdução, com título

inspirado nas reflexões de Sant’ana (2001) sobre a subjetividade do homem contemporâneo,

traduz a inquietação e a necessidade de dizer, através dos versos, o que se quer ao afirmar a

condição de transformação do corpo. Trata-se, na verdade, de um emaranhado de vivências

teórico-práticas que deságuam na escrita poética, contribuindo com o desenrolar da pesquisa

que aqui se apresenta. Essa pesquisa, por sua vez, seguindo os preceitos de algumas das

teorias que estudam o corpo na contemporaneidade e associando isto aos estudos de estética

da pós-modernidade coreográfica, pretende implementar diferentes conceitos de corpo a partir

de uma experiência criativa em dança.

Tal proposição reflete uma continuidade dos estudos iniciados em minha pesquisa de

Mestrado, que culminou, além da dissertação, em um produto estético, o espetáculo

Metrópole. O referido espetáculo teve como enfoque a abstração gestual do cotidiano inerente

às grandes cidades, concentrando a pesquisa, portanto, nas vivências dos próprios intérpretes

enquanto indivíduos urbanos, globalizados e viventes na pós-modernidade.

O trabalho, criado para a Companhia Moderno de Dança, gerou inúmeras

inquietações, dentre as quais se destaca a necessidade de investigar o movimento para a

dança, não a partir de uma fórmula pré-concebida, mas sim, de uma certa particularidade do

intérprete, de modo a desvendar a maneira de fazer conforme as necessidades de cada

processo e, principalmente, de acordo com as idiossincrasias de cada integrante do elenco.

A inquietação em questão vem norteando toda a prática da Companhia Moderno de

Dança e, por conseguinte, a minha própria maneira de entender dança, já que trabalho como

diretora artística do grupo. Além disso, essa mesma inquietação surge como elemento

norteador desta nova pesquisa que tem como motivação a prática cênica/ coreográfica a partir

da compreensão do corpo no contexto contemporâneo das teorias que o estudam.

Fruto de vivências coletivas, construtoras não apenas de conhecimento teórico-prático

no campo das artes, mas também de um desejo conjunto de fazer da dança um instrumento

transformador do indivíduo, esta tese é resultante de minha formação artística e acadêmica

compartilhada com os integrantes da referida companhia.

Ouvi dizer em algum lugar que um sonho que se sonha só, é só um sonho, mas um

sonho que se sonha junto pode se tornar realidade. Utopias a parte, o produto estético desta

pesquisa reflete justamente isto, não apenas no seu contexto micro, entre os sujeitos da

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15

pesquisa, mas também num sentido macro, em que situo outros sujeitos fazedores de dança no

Estado do Pará.

Os processos de criação e encenação do espetáculo Avesso, o objeto de pesquisa desta

tese, são resultantes de um sonho que não se sonha só, pois são reflexos de um esforço

coletivo maior, que vem repensando a dança enquanto conceito e criando em Belém e no

interior do estado, um ambiente propício à pesquisa e investigação desta linguagem. Esta tese,

seu objeto e seus sujeitos, se inscreve neste universo macro da dança paraense, configurando-

se como mais uma proposta, mais uma abordagem criativa.

Esta trata de experiências encaminhadoras da consolidação de uma proposição

particular de procedimentos metodológicos para a criação coreográfica. Digo consolidação

por acreditar que Avesso, e tudo que seu processo criativo instaura, vem apenas ratificar a

prática da Companhia Moderno de Dança.

Este grupo foi fundado em meados de 2002 e é formado por antigos alunos do Colégio

Moderno, instituição de ensino formal da rede privada de Belém do Pará. O nome do grupo

faz alusão a essa instituição. Seus integrantes não somente concluíram o ensino médio no

Colégio Moderno, mas iniciaram seu processo de formação em dança, no Grupo Coreográfico

do Colégio Moderno.

A partir desta pesquisa, teorizo e disponibilizo, juntamente com a Companhia

Moderno de Dança, o nosso jeito particular de fazer dança que, por meio da repercussão de

espetáculos e outras iniciativas, vem se mostrando contributivo para o contexto macro da

dança no Pará.

Um exemplo desta repercussão são as diversas premiações2, os espaços concedidos

pela mídia impressa e televisada e o reconhecimento manifestado por pessoas da categoria

artística3, recebidos ao longo de apenas cinco anos de existência, especialmente após a estréia

do espetáculo Avesso, isto é, a partir de 2006.

2 Desde seu surgimento a Companhia Moderno de Dança vem recebendo diversos prêmios, dentre os quais se

destacam os seguintes: Prêmio SECULT-PA de Estímulo à Criação em Dança (2006 e 2007); Prêmio FUNARTE de

Dança Klauss Vianna – Região Norte (2006); Prêmio de Melhor Coreografia no Encontro Internacional de Dança do

Pará (2006); Prêmio de Melhor Grupo no Encontro Internacional de Dança do Pará (2005), Prêmio Bailarino(a)

Revelação do Encontro Internacional de Dança do Pará (2005 e 2006); Prêmio de Menção Honrosa do Júri do

Encontro Internacional de Dança do Pará (2005); Prêmios SESI de Dança de Melhor Coreógrafa (2004 e 2006),

Melhor Bailarina (2004), Coreógrafo Revelação (2003 e 2005), Bailarino Revelação (2003) e 1º lugar em dança

contemporânea no festival Dança Pará (2003, 2004, 2005, 2006 e 2007), dentre outros. 3 O interesse, apreciação e contribuição desta categoria para o trabalho do grupo é manifestado por meio de

mensagens, e-mails, publicações em blogs, discursos nos debates reflexivos sobre o espetáculo Avesso e outras

situações, o que, para a Companhia Moderno de Dança, é de significativa relevância, tendo em vista a ausência

de um espaço efetivo para a crítica de dança no estado do Pará. Uma parcela deste material, assim como parte

das matérias de jornal publicadas neste período de cinco anos, estão disponibilizados como anexo nesta tese.

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De fato, o Avesso não é apenas um produto desta tese, mas sim uma obra que vem

consolidar uma proposta de movimentar Belém, provocando o exercício da reflexão acerca da

dança e convidando os artistas a estudar, discutir e transformar juntos isto que, na cidade, é

conhecido como dança contemporânea.

Coreógrafos como Eni Corrêa, Teka Sallé, Ricardo Risuenho, Marilene Melo, Waldete

Brito, Eleonora Leal, Ronald Bergman e tantos outros4, alguns deles contemporâneos ao

surgimento da Companhia Moderno de Dança, com seus anos de experiência e produção

artística, são alguns dos primeiros provocadores dessas reflexões. Enquanto precursores, esses

artistas se fazem fontes inspiradoras para os sujeitos desta pesquisa.

No que se refere às particularidades desses sujeitos, porém, aponto aqui a filosofia

formadora do grupo, que vai muito além de dançar. O que a companhia sempre desejou e

instaurou como princípio de seu fazer criativo, além de todas as questões estéticas que serão

minuciosamente argumentadas nesta tese, foi a discussão teórica profunda e, se possível,

travando diálogo com o ambiente acadêmico5.

O ritmo de trabalho e a produção deste grupo vêm sendo bastante intensos, mesmo em

tão pouco tempo de experiência. Inclusive, é interessante mencionar que o grupo já nasceu,

conscientemente, com o desejo de dançar de forma particular, o que imprimiu metas e

objetivos inevitavelmente relacionados com a necessidade de pesquisar linguagem.

Esta diferença tem a ver com a questão do envolvimento da companhia com o

ambiente acadêmico6, conforme mencionado anteriormente. Neste sentido, é válido

argumentar acerca da origem e dos objetivos de vida dessas pessoas. A Companhia Moderno

de Dança está, assim como as próprias noções teóricas de corpo presentes nesta tese apontam,

em um não-lugar, isto é, em uma espécie de entre no que tange ao amadorismo e o

profissionalismo.

4 Opto por enfatizar aqui aqueles que propõem investigar linguagem em dança e não a reproduzir, ainda que com

excelência, uma linguagem ou técnica formal já concebida. 5 A Companhia Moderno de Dança surgiu no mesmo momento em que ingressei no curso de mestrado em Artes

Cênicas na Universidade Federal da Bahia, tendo sido, inclusive, por meio do espetáculo Metrópole, o motivo

maior daquela pesquisa, o que imprimiu uma forte necessidade de diálogo e produção teórico-prática. 6 Os integrantes do grupo, em suas diferentes áreas de estudo, costumam associar seus interesses acadêmicos à

sua prática artística. Um exemplo disso são os trabalhos de conclusão de cursos de graduação (TCC) e

monografias inspirados nas vivências da companhia. Destaco, entre eles, a monografia de especialização em

design de móveis da intérprete-criadora Luiza Monteiro, cujo resultado é a criação de uma linha de móveis

inspirada nas formas do corpo presentes no espetáculo Avesso, o TCC da intérprete-criadora Danielly

Vasconcellos no seu curso de graduação em educação física, que verificou os benefícios do método Pilates para

o condicionamento físico do elenco da Companhia Moderno de Dança e o TCC do intérprete-criador Ercy Souza

no seu curso de direito, que teve como objetivo refletir sobre a existência e possíveis mudanças nas leis de

incentivo à cultura. Vale ressaltar que este tema surgiu, para o acadêmico e dançarino, a partir de algumas

frustrações vivenciadas pela companhia em seu processo de captação de recursos por meio de selos de projetos

aprovados pelas referidas leis.

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17

Não somos um grupo profissional, mas também não somos um grupo amador. Não

somos completamente independentes, mas também não somos um grupo absolutamente

institucional. Estamos na fronteira entre essas duas realidades. Nossa equipe é composta de

um bacharel em Direito, uma acadêmica de Direito, três futuras psicólogas, uma designer,

dois estudantes de Arquitetura, um futuro profissional das áreas de Letras e Engenharia de

Controle e Automação, um acadêmico de Jornalismo, uma professora de Educação Física e

um acadêmico de Educação Física. Somam-se ao grupo, eu, professora de dança e coreógrafa,

agora pesquisadora, graduada em Educação Física e mestra em Artes Cênicas, e nosso diretor

executivo, o professor Gláucio Sapucahy, também graduado em Educação Física,

coordenador do núcleo esportivo e cultural do Colégio Moderno, líder administrativo da

Companhia Moderno de Dança.

A formação da Companhia Moderno de Dança resulta de um turbilhão de

acontecimentos e informações e, como não poderia deixar de ser, de transformações. Sem

esse turbilhão, porém, os procedimentos metodológicos de criação do grupo não estariam hoje

apontados nesta tese. Ou ainda, talvez esta tese sequer existisse.

Desta maneira, é possível apontar como questão inicial para a implantação desta

pesquisa uma inquietação e necessidade pessoal de fazer dança de um modo particular,

desenvolvendo padrões de movimento não explorados pelas técnicas formais de dança. O que

se quer, portanto, é desenvolver uma maneira de fazer dança sem precisar utilizar os recursos

técnicos do balé e da dança moderna, por exemplo.

Para atingir esta meta, o objetivo geral traçado para esta pesquisa é conceber e encenar

um espetáculo de dança a partir do uso de imagens internas do corpo propiciadas por tecnologias

médicas, associadas a experimentações que visem o desenvolvimento da percepção sutil de

órgãos e movimentos internos da fisicalidade humana, analisando seus conceitos norteadores,

seus princípios criativos e as implicações estéticas verificadas em sua composição.

Contribuem com este objetivo geral os seguintes objetivos específicos: realizar um

panorama histórico-analítico de abordagens da anatomia humana nas artes plásticas;

desenvolver exercícios de improvisação para o aprimoramento da percepção corporal dos

intérpretes, ampliando a pesquisa de movimento para a dança; investigar as possibilidades de

movimento voltadas para o espetáculo a partir da visualização de imagens dos movimentos

involuntários das estruturas corporais internas do ser humano, analisando registros de exames

médicos diagnosticados por imagem; organizar as propostas de movimento produzidas pelos

intérpretes a partir dos subsídios metodológicos do processo criativo, selecionando-as para a

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composição coreográfica; discutir possibilidades criativas em dança propiciadas pela relação

entre consciência corporal e pesquisa de movimentos para a cena coreográfica.

É importante destacar que, a partir do objeto estético gerado nesta pesquisa,

reconheço, enquanto coreógrafa e encenadora, que há uma maneira diferenciada de criar

dança emergindo no trabalho da Companhia Moderno de Dança. É a esta maneira de conceber

a arte do movimento que me dedico junto ao grupo, buscando validá-la como metodologia de

criação e como poética cênica.

Para tanto, priorizo aquilo que os intérpretes propõem enquanto movimento no

decorrer da pesquisa e não o que um coreógrafo venha a instituir para a dança. O coreógrafo

é, assim, muito mais um organizador de idéias do que propriamente um criador de

movimento, cabendo esta última função ao próprio intérprete, o que está em consonância com

a prática contemporânea de criação em dança.

Entendo que, desta maneira, os padrões formais de dança certamente estão imbricados

no fazer coreográfico, uma vez que eles são inerentes à formação dos intérpretes e, portanto, à

sua maneira de movimentar-se cenicamente. Entretanto, acredito que haja maneiras de

sensibilizar esses intérpretes tornando-os aptos a experimentar diferentes possibilidades para a

dança ou, ainda, transformar os padrões já existentes.

A presente pesquisa, portanto, procura confirmar a hipótese de que a concepção e

encenação de um espetáculo pautado nos recursos criativos aqui apresentados resultará em

uma poética de dança específica, em que o processo será alicerçado na transfiguração dos

próprios corpos dançantes. O desenvolvimento dos procedimentos metodológicos desta

pesquisa, cuja construção é dada pelo uso de estratégias que não têm como prioridade o fazer

artístico e, dentre os quais, se destacam os exames médicos diagnosticados por imagens,

promoverão o aprimoramento da consciência do corpo de quem dança, refletindo um produto

estético caracterizado muito mais por sensações do que por aspectos técnico-formais pré-

estabelecidos. Desta maneira, será instituída uma linguagem corporal inserida no campo das

poéticas contemporâneas de dança, porém com especificidades criativas e, logo, cênicas.

A idéia aqui é promover uma organização coreográfica que não se estabeleça por meio

de padrões visuais de dança já constituídos, mas, sim, por intermédio de sensações provocadas

pela sensibilização corporal que, por sua vez, é o que gera a estética do movimento.

Para o desenrolar da pesquisa, considero que o ato da criação do movimento não

configura uma estética da forma visual que ele possui, mas uma estética com outros apelos

sensoriais, isto é, que requer outras maneiras de lidar com a criação em dança,

compreendendo o movimento a partir do próprio corpo e não de uma imagem exterior a ele.

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O objeto de investigação desta tese, isto é, a experiência criativa em questão,

denominada de Avesso, nada mais é do que um estudo de possibilidades de movimento para a

dança por meio de uma pesquisa coreográfica centrada no próprio corpo dos intérpretes. As

questões motivadoras deste espetáculo, por sinal, instigam, ao longo de cinco anos, a prática

da Companhia Moderno de Dança, funcionando como fonte primeira de recursos criativos. O

corpo é sempre o estímulo maior da companhia, não somente para Avesso, mas também para

suas produções anteriores. No caso específico de Avesso, porém, são englobadas duas

estratégias metodológicas para criar dança partindo do corpo, conforme relacionado nos

objetivos deste trabalho.

A primeira delas é a utilização de métodos de consciência corporal que possibilitem a

sensibilização das camadas mais submersas do corpo, isto é, a percepção sutil de órgãos e

movimentos involuntários, na perspectiva de, a partir disto, desenvolver padrões de

movimento diferenciados daqueles estabelecidos pelas técnicas formais de dança. Os métodos

de aprimoramento da consciência corporal utilizados no decorrer da estratégia em questão

encontram-se mesclados ao longo de todo o processo de criação. Assim, princípios de Body-

mind Centering®7 são associados a noções de conscientização corporal (IMBASSAÍ, 2003) e

ao método Angel Vianna de consciência do movimento8, na perspectiva de desenvolver

exercícios provocadores do desenvolvimento de vocabulário gestual para a dança.

A segunda estratégia metodológica de criação é a utilização de tecnologias médicas

que possibilitem a visualização, por parte dos intérpretes, da constituição anatômica e

fisiológica do corpo humano. Para tanto são utilizados exames médicos de alta resolução

diagnosticados por imagem, além de outros recursos normalmente utilizados para o estudo do

corpo na área da saúde.

A intenção é, portanto, propiciar aos intérpretes diferentes estímulos criativos por

meio de alternativas metodológicas que não tenham como função primeira a utilidade estética.

Dentre as estratégias utilizadas, uma tem prioridade terapêutica, ampliando o conhecimento

do homem acerca de si, enquanto a segunda possui como finalidade inicial estudar a anatomia

e fisiologia do corpo humano para diagnosticar possíveis problemas de saúde por intermédio

da visualização de imagens precisas dos órgãos internos.

7 Método inserido no campo da somática que procura promover a consciência corporal por meio de práticas de

sensibilização das camadas mais submersas do corpo. Adiante, no último capítulo da tese, tecerei maiores

esclarecimentos sobre o referido método. 8 Angel Vianna, bailarina, coreógrafa e diretora da Faculdade Angel Vianna é responsável pelo desenvolvimento

de uma estratégia metodológica de sensibilização corporal de seus alunos cujo princípio maior está centrado num

ideal de integração entre corpo e mente do homem. A essa estratégia Angel Vianna denomina consciência do

movimento, noção que inspira a conscientização corporal, conforme explicarei no capítulo quatro.

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No caso do processo criativo que direciona esta tese, observa-se que as referidas

estratégias também passam por um processo de transformação, de modo que suas funções são

revistas e redimensionadas, passando a ter a função estética como prioridade. Em termos de

referências conceituais pode-se entender essa transformação como um processo de conversão

semiótica (LOUREIRO, 2002 e 2007), em que a função utilitária dos recursos metodológicos

da pesquisa prática ganha outros contornos, transfigurando e transformando essa função que,

por sua vez, passa a ser artística.

Esta noção de transformação, a partir do conceito de conversão semiótica, é um dos

principais recursos teóricos da pesquisa. Somado a isto, destaco os princípios da pós-

modernidade em dança (SILVA, 2005), que colaboram para a construção dos conceitos

lançados neste estudo e para a estética do espetáculo Avesso, justificando, inclusive, a

conversão semiótica do corpo como procedimento criativo.

No intuito de alcançar os objetivos traçados para a pesquisa em questão, esta tese

encontra-se dividida em quatro capítulos cujos títulos se reportam a quatro modos de olhar o

corpo em Avesso, apontando, assim, para os seguintes conceitos: corpo dissecado, corpo

imanente, metacorpo e corpo visivo.

No primeiro capítulo, é traçado um panorama analítico das relações entre arte e anatomia

nos diferentes períodos históricos das artes plásticas. O objetivo desse capítulo é fundamentar a

implantação do conceito de corpo dissecado que, pautada principalmente na suposta9 dissecação

promovida por Michelangelo na pintura da Capela Sistina, pretende ser uma noção de corpo no

processo criativo de Avesso. Não se trata de uma dissecação propriamente dita, mas de uma

transformação do corpo cênico por intermédio de uma dissecação artística. Esta dissecação é o

procedimento pelo qual a coreografia é criada no espetáculo.

O segundo capítulo, mais sustentado nos estudos de dança e pós-modernidade

(SILVA, 2005), nas teorias contemporâneas de corpo e na estética (PAREYSON, 1997),

propõe considerar, para a cena coreográfica, as vivências pessoais do intérprete, suas

idiossincrasias e subjetividades, sem deixar de considerar as multiplicidades características do

corpo. O corpo imanente, então, surge como noção que acredita na existência do corpo cênico

como algo que, mesmo inerente à pessoalidade do intérprete, não se encontra fixo e

estabelecido, mas em constante processo de construção e, conseqüentemente, de transformação.

9 Suposta porque meu propósito de que Michelangelo realizou uma dissecação do corpo, por meio da pintura, é

fundado em evidências de veracidade não comprovada. Essas evidências, contudo, apontadas por dois

pesquisadores da área da medicina (BARRETO; OLIVEIRA, 2004), apresentam argumentos convincentes o

suficiente para lançar a idéia de uma espécie de dissecação que poderia vir a ser implementada para a arte da

dança. Ao longo do primeiro capítulo detalharei a suposição dos referidos pesquisadores, bem como minha

proposta de dissecar o corpo por meio da dança.

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21

O terceiro capítulo, pautado em teorias da lingüística (JAKOBSON, 2001), pretende

discutir acerca do corpo e da dança como linguagens e, portanto, como agentes de discurso.

Refletindo sobre os estudos lingüísticos e a noção de dramaturgia do corpo (GREINER,

2005), traço um paralelo entre as noções de corpo como sujeito e objeto (MERLEAU-

PONTY, 1994) e proponho a noção de metacorpo, considerando, para tanto, os aspectos

referentes ao tratamento estético concedido ao processo criativo de Avesso e as conseqüentes

transformações de sentido do corpo no espetáculo.

No quarto e último capítulo, apresento um diálogo entre as noções de visivo e visível,

emprestadas dos estudos literários de Calvino (1990). Nesse momento, são tecidas

considerações acerca das maneiras como os corpos dos intérpretes podem ser visualizados no

processo criativo do espetáculo. Para tanto, são consideradas duas formas de visualização: a

visiva e a visível.

A primeira é viabilizada nesta pesquisa pela utilização das estratégias metodológicas

de pesquisa e criação do movimento, promovendo uma espécie de visualização não literal do

interior do corpo, isto é, uma visualização estabelecida pelas diferentes percepções e

sensações corporais. A segunda forma de visualização abordada neste capítulo é aquela que

apresenta imagens visíveis do corpo segundo os elementos cênicos do espetáculo, da

coreografia ao cenário. O corpo visível é a materialização artística de corpo que a encenação

do espetáculo promove.

Como se observa, a noção de transformação passeia por toda a tese, permeando o

raciocínio do processo criativo do espetáculo e, por conseguinte, da pesquisa que, inserida na

área das artes cênicas, caracteriza-se como uma pesquisa-ação, isto é,

um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada

em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema

coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da

situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo e

participativo (THIOLLENT, 1985, p. 14).

Esta tese surge, portanto, como um trabalho de pesquisa acadêmica com ênfase em um

processo coreográfico, no qual me encontro absolutamente envolvida, assumindo a função de

coreógrafa, diretora artística, encenadora e, assim, a qualidade de pesquisadora participante,

valendo-me da observação participante, que fundamenta a etnopesquisa. Macedo (2004, p.

153-154), explica:

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22

Uma das bases fundamentais da etnopesquisa, a observação participante

termina por assumir sentido de pesquisa participante tal o grau de

autonomia e importância que assume em relação aos recursos de

investigação de inspiração qualitativa.

A observação participante na qual me incluo caracteriza-se como observação

participante completa por pertencimento original (MACEDO, 2004), isto é, sou uma

pesquisadora que faz parte da comunidade estudada, a Companhia Moderno de Dança, que,

por sua vez, autoriza minha investigação.

Sendo assim, esta tese se constrói pelo enfoque da etnopesquisa que, inspirada pela

argumentação fenomenológica, “permite que o objeto comunique a análise a partir daquilo

que é construído a partir do próprio fenômeno” (MACEDO, 2004, p. 43), corroborando o

caráter processual do objeto e, por conseguinte, a noção de transformação vigente no

pensamento que circunda a pesquisa, através das suas concepções de relatividade e

imprevisibilidade.

Como opções metodológicas, destacam-se, na criação de Avesso e, por conseguinte, na

configuração desta tese: a pesquisa bibliográfica; a observação sistemática através da análise

dos laboratórios de pesquisa coreográfica e dos exames médicos coletados, bem como de

outras fontes de visualização da anatomia e fisiologia humanas (atlas de anatomia e vídeos

documentários sobre o tema); a observação participante sobre o objeto da pesquisa,

predominando nesse momento o mútuo envolvimento entre pesquisador e sujeitos, de modo

que a população pesquisada forme um “corpus interessado na busca do conhecimento”

(MACEDO, 2004, p. 154), participando interativamente da pesquisa.

Minha observação focaliza, principalmente, a transfiguração do corpo na ação dos

movimentos dançados. No entanto, o espaço para olhar as transformações do corpo na

coreografia e nos demais elementos cênicos do espetáculo é validado, além das opções

metodológicas anteriormente explicitadas, pela utilização de parte do Questionário Pavis

(PAVIS, 2003, p. 33-34), sugerido como recurso para o que o autor chama de análise do

espetáculo. Este questionário, porém, é utilizado parcialmente, somente para as questões de

interesse desta pesquisa. Suas respostas não são disponibilizadas para o leitor, elas apenas

servem como direcionadoras das minhas reflexões.

De forma complementar, utilizo falas de espectadores da encenação, surgidas a partir

de debates reflexivos realizados após apresentações do espetáculo e, a exemplo do que foi

feito em minha pesquisa de Mestrado, conforme as diretrizes da etnopesquisa, recorro à

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23

utilização de entrevistas de estrutura aberta e flexível com os integrantes do elenco do

trabalho e os artistas envolvidos no espetáculo, criadores dos elementos cênicos.

Essas pessoas contribuíram tecendo comentários acerca das etapas criativas. A essa

coletânea de material, opto por chamar de Diálogos Reflexivos10

. Eles compreendem tanto

reflexões dos envolvidos no processo de Avesso, quanto impressões de espectadores. Alguns

trechos desses diálogos são utilizados no corpo da tese.

Outra coletânea que, em alguns momentos, utilizo neste texto acadêmico, compreende

o material produzido pelos dançarinos da Companhia Moderno de Dança, através da fala e da

escrita dissertativa, narrativa e/ou poética. São maneiras diferenciadas de registro das

impressões dos sujeitos da pesquisa, catalogadas em diários de bordo e úteis à análise do

objeto de estudo desta tese. Uma parte desta produção encontra-se como anexo a este

trabalho.

Vale reiterar, para o material de análise selecionado, o respaldo dado pela

etnopesquisa, que propõe ao pesquisador validar seu estudo pela fala dos sujeitos, permitindo

aos mesmos revelar respostas significativas no teste da hipótese lançada nos planos de

investigação do objeto.

10

Alguns desses diálogos estão disponibilizados no Anexo desta tese. Em virtude da grande quantidade de

material coletado, escolhi disponibilizar como anexo a esta tese, apenas determinados trechos, na perspectiva de

exemplificar minhas estratégias de ação junto aos participantes do espetáculo.

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24

1 O CORPO DISSECADO: um estudo das concepções artísticas da anatomia humana

na perspectiva de um processo criativo em dança

A influência da anatomia humana sobre as artes é algo que se caracteriza, além do

interesse estético, pelo desejo de aliar arte e ciência, expresso pelos artistas dos mais

diferentes períodos. A relação estabelecida entre essas duas vertentes fez com que, ao longo

da história, ocorressem grandes transformações nos estudos da anatomia humana, assim como

na própria arte, que passou a valer-se de procedimentos eminentemente científicos para a

pesquisa e a composição de obras. Dentre esses procedimentos destaco o ato da dissecação.

A finalidade da dissecação é separar as estruturas anatômicas visando ao estudo

minucioso e promovedor do conhecimento do corpo para a investigação de possíveis

tratamentos de doenças e para preparação de médicos para a realização de procedimentos

cirúrgicos, dentre outras atividades afins. Segundo Leite (2007), dissecção ou dissecação é o

ato de “separar com instrumental cirúrgico ou não, os componentes anatômicos de um corpo,

por doença, com finalidade de estudo ou para execução de um procedimento”.

Esta tese, por sua vez, lança mão de uma maneira diferenciada de dissecação, a qual só

se faz possível por meio do processo artístico. Trata-se, portanto, de uma dissecação artística

do corpo. Esta noção surge pautada no olhar sobre a pintura de Michelangelo na Capela

Sistina.

A partir deste estímulo indutor, situado na obra de Michelangelo, o presente capítulo

abrange, em sua reflexão, o âmbito histórico-analítico acerca das relações entre arte e

anatomia. O objetivo aqui é refletir sobre as possibilidades de diálogo entre a presença da

anatomia nas artes plásticas e o processo criativo que norteia esta pesquisa, traçando, para

tanto, um painel histórico da arte com destaque para o olhar lançado sobre o corpo.

Vale ressaltar que esta abordagem não se pretende uma análise histórica detalhada da

arte como um todo, o que tornaria a tese demasiadamente extensa. Diante da prioridade dada à

arte renascentista por conta da Capela Sistina, ponto de partida para a idéia de dissecação em

arte, opto por um recorte em torno das artes plásticas produzidas no ocidente europeu, para

verificar as possíveis dissecações artísticas nos diferentes períodos.

Destaco, ainda, dentro deste recorte, alguns exemplos do olhar sobre o corpo na arte

brasileira. Tal proposição articula-se com a observação dos resultados estéticos das

dissecações verificadas nas obras plásticas produzidas no Brasil, contexto em que se inserem

esta tese e os conceitos nela propostos.

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1.1 BREVE ABORDAGEM HISTÓRICO-ANALÍTICA DA ARTE SOB A ÓTICA DA

ANATOMIA HUMANA

1.1.1 O corpo humano nas produções artísticas: da pré-história aos romanos

Desde o período mais remoto da história da humanidade e da arte, o homem sempre

apresentou uma certa preocupação em relação à necessidade de auto-retratar-se e, por

conseguinte, conhecer mais intimamente sua anatomia. Representações do corpo humano

sempre estiveram em evidência nas produções artísticas, tanto na pintura quanto na escultura.

Um bom exemplo do quanto são longínquas essas representações é a Vênus de Willemdorf,

que remonta ao período Paleolítico11

, conforme explica Proença (2004).

As representações do corpo, tanto do homem quanto de outros animais, entre os povos

primitivos, muitas vezes não seguia os padrões formais, mas sim, adquiria características

incomuns e, até certo ponto, bizarras para os olhos “atuais”. Isso provavelmente se explica

pela relação que a arte pré-histórica possuía com as crenças. Para o homem pré-histórico, as

imagens, entendidas aqui como suas obras de arte, carregavam, além de uma característica

estética, uma intenção mágica que, de acordo com estudiosos, referia-se às crenças. A

dissecação artística do corpo na pré-história, portanto, tinha atributos de caráter sobrenatural,

a partir dos quais o homem esperava alcançar determinados objetivos de vida.

11

O período Paleolítico faz parte da pré-história que divide-se em três momentos: o Paleolítico Inferior

(aproximadamente 500.000 a.C.), o Paleolítico Superior (cerca de 30.000 a.C.), e o Neolítico (aproximadamente

10.000 a.C.). Os dois primeiros são conhecidos também por Idade da Pedra Lascada, enquanto o terceiro pode

ser ainda denominado de Idade da Pedra Polida. (cf. PROENÇA, Graça. História da arte. 16 ed. São Paulo:

Ática, 2004. p. 10).

Fig. 01 – Vênus de Willemdorf

A forma humana representada na Idade da Pedra Lascada

Fonte: Proença (2004, p. 12)

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26

A explicação mais provável para essas pinturas rupestres ainda é a de que se

trata das mais antigas relíquias da crença universal no poder produzido pelas

imagens; dito em outras palavras, parece que esses caçadores primitivos

imaginavam que, se fizessem uma imagem da sua presa – e até a

espicaçassem com suas lanças e machados de pedra – os animais verdadeiros

também sucumbiriam ao seu poder (GOMBRICH, 1993, p. 22).

De certa forma, a aparente imaturidade das pinturas e esculturas rupestres tem, no

fundo, um forte apelo estético de abstração. Pode-se inferir que elas antecipam o desenrolar

artístico das abordagens plásticas do corpo.

Uma representação do corpo humano que remonte a este período, demonstra o que

Singer (1996) chama de instinto anatômico. O autor explica:

Existe, de certo modo, um instinto anatômico, cujos primórdios teríamos que

procurar em um passado muito remoto. [...] podemos perceber nas tradições

do caçador ou no ofício do açougueiro, um acurado senso de anatomia,

embora adaptado somente a certos fins e limitado a um campo restrito. O

arqueiro paleolítico sabia muito bem onde encontrar o coração de sua vítima,

que ele retratou trespassado por flechas, nas paredes de seu abrigo. O artista

que trabalhou na caverna Mas D’Azil nos deixou muitos testemunhos de sua

habilidade e de seus conhecimentos. Estes incluem esculturas de crânios de

cavalo, e mesmo a representação exata da dissecação de uma cabeça de cavalo

exibindo o contorno dos músculos superficiais (SINGER, 1996, p. 19).

Ainda que não voltado exatamente para o corpo humano, pode-se dizer que este instinto

anatômico tenha permeado o fazer artístico da época. É possível acreditar que, a partir dos

conhecimentos desse instinto acerca de animais de diversas espécies, o homem tenha iniciado

um processo de investigação anatômica, mesmo que essa não tivesse atributos de ciência.

Abordando a trajetória evolutiva das artes plásticas, Proença (2004) faz referência aos

diversos períodos históricos da existência dessa linguagem. Com o intuito de investigar a

presença do conhecimento acerca do corpo humano, bem como as diversas maneiras de

expressá-lo artisticamente, interessa-me, contudo, verificar a relação entre essa evolução e a

utilização de formas humanas nas criações artísticas desses períodos, isto é, observar a

história da arte sob a perspectiva da anatomia humana, entendendo os processos artísticos

como formas de dissecação do homem.

Nesse sentido, vale apontar a arte egípcia, precursora da arte européia ocidental, cuja

relação com a anatomia se deu de forma curiosa. Para os egípcios, o domínio da técnica

deveria sobrepor-se ao estilo do artista, pois o mais importante não era a beleza, mas a

plenitude da obra. Observando as pinturas egípcias, verifica-se que “a tarefa do artista

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27

consistia em preservar tudo com a maior clareza e permanência possível (...). Tudo tinha que

ser representado a partir do seu ângulo mais característico” (GOMBRICH, 1993, p. 34).

As formas anatômicas seguiam a lei da frontalidade, o que atribuía a essas

representações uma certa ausência de semelhança com a realidade. Segundo Proença, essa lei

estabelecida para as pinturas egípcias “determinava que o tronco da pessoa fosse representado

sempre de frente, enquanto sua cabeça, suas pernas e seus pés eram vistos de perfil”

(PROENÇA, 2004, p. 19).

Considerando esta constatação, é possível verificar que os egípcios possuíam, de fato,

uma certa preocupação com a abstração, ao contrário do naturalismo que se produzia no

período paleolítico. Para eles,

a arte não deveria apresentar uma reprodução naturalista que sugerisse ilusão

de realidade. Assim, diante de uma figura humana retratada frontalmente, o

observador não poderia confundi-la com o próprio ser humano. Ao

contrário, deveria reconhecer claramente que se tratava de uma

representação (PROENÇA, 2004, p. 20).

Fig. 02 – Baixo relevo egípcio (cerca de 2500 a.C.)

A representação da forma humana na arte egípcia

Fonte: Proença (2004, p. 19).

Já no que se refere às esculturas, os egípcios tinham a preocupação de revelar algumas

particularidades de fisionomia, raça e até mesmo condição social, aprofundando, portanto, a

pesquisa acerca do corpo humano a ser representado e, por essa razão, estreitando relações

com a investigação da anatomia humana.

Assim como para os povos pré-históricos, a crença também foi o motivo que

desencadeou a arte egípcia. Era para os faraós que essas criações eram feitas, de modo que,

para promover a ascensão da alma desses seres divinos quando mortos, foram concebidas

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28

diversas estratégias, dentre construções de pirâmides e mumificações, além da criação de

imagens dos rostos dos faraós, constituindo representações do corpo humano na arte daquele

período. Gombrich (1993, p. 33) constata:

Os egípcios acreditavam que apenas preservar o corpo não era bastante, mas

que se uma fiel imagem do rei fosse preservada, não havia a menor dúvida

de que ele continuaria vivendo para sempre. Assim, faziam com que artistas

esculpissem a cabeça do rei em imperecível granito e a colocavam na tumba,

onde ninguém a via, a fim de aí exercer sua magia e ajudar a alma a manter-

se viva na imagem e através dela. [...]. Vê-se que o escultor não estava

tentando lisonjear o seu modelo nem preservar uma expressão fugidia.

Interessava-se rigorosamente pelos aspectos essenciais. Ficavam excluídos

todos os detalhes secundários.

Fig. 03 – Cabeça de faraó egípcio (cerca de 2551 – 2558 a.C.)

A crença e a precisão na escultura egípcia

Fonte: Gombrich (1993, p. 32).

É válido ressaltar que a prática da medicina tem suas origens justamente neste período.

Segundo Prata (s/d):

A medicina surge no Egito, no período 2700 – 2200 a.C. através dos antigos

médicos e cirurgiões dos Faraós. [...]. Herófilo, 335 a.C. – 280 a.C., médico

e anatomista grego da região onde se situa atualmente a Turquia, é

considerado por muitos, como sendo o ‘Pai’ da Anatomia. Seus escritos

foram traduzidos por Galeno, porém, boa parte deles se perdeu na destruição

da biblioteca de Alexandria. Galeno, por cerca de 201 – 131 a.C. realizou

estudos a partir de dissecações de animais e deixou uma das primeiras obras

de estudo de Anatomia e Fisiologia, utilizada durante centenas de anos. Foi

considerado como o ‘Príncipe da Anatomia’, e deixou muitos seguidores.

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29

Apesar disto, não há registros de realizações de dissecação de cadáveres humanos entre os

egípcios. Ainda que eles realizassem a prática de mumificação dos cadáveres, extraindo para isso

as vísceras do corpo (PRATA, s/d), há registros de que a dissecação humana somente iniciou no

século IV a.C. na Alexandria, conforme será verificado ao longo deste capítulo.

Tendo sido os egípcios, portanto, precursores da medicina, deve-se admitir aqui os

primórdios dos estudos de anatomia humana. Singer (1996, p. 20-21) explica:

Antes da vinda dos gregos, a área do Egeu era habitada pelos assim

chamados povos minoanos. Sua cultura foi descoberta no último quarto do

século passado na sua metrópole em Creta, onde foram encontradas muitas

obras características de grande valor artístico. Algumas, e não são poucas,

são estudos precisos dos contornos superficiais do corpo humano,

comparáveis àqueles artistas rupestres que pintaram os animais que

caçavam. [...]. Além disso, verifica-se, de fato, que certos papiros médicos

egípcios demonstram procedimentos cirúrgicos que exigem consideráveis

conhecimentos anatômicos.

Fig. 04 – Registro anatômico do antebraço comparado a um desenho

de dissecação moderna (cerca de 1500 a.C.)

Contornos musculares do antebraço registrados pelos egípcios

Fonte: Singer (1996, p. 21).

Realmente, os egípcios deviam ser conhecedores de muitas informações acerca da

constituição anatômica do homem, o que se evidenciou em algumas de suas produções, ainda

que as mesmas possuíssem função mais utilitária ou mágica do que propriamente artística.

Eram objetos como hieróglifos e amuletos produzidos com o intuito de garantir o bom

funcionamento de sistemas, como o sistema reprodutor feminino, relacionado à fertilidade e

procriação, e o sistema respiratório, por exemplo.

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30

Fig. 05 – Hieróglifos egípcios derivados da forma do útero.

Fonte: Singer (1996, p. 23).

Fig. 06 – Amuletos egípcios representando coração, traquéia e pulmões.

Fonte: Singer (1996, p. 23).

Na produção artística da Grécia, por sua vez, as ações humanas passaram a ser mais

valorizadas, pois, para a civilização grega, o homem era o que de mais importante havia no

universo. Foi essa civilização que começou a representar, por intermédio de suas esculturas,

alguns detalhes constituintes da anatomia do corpo humano, como a musculatura. É possível

observar também que essas esculturas se lançaram sobre outros detalhes da forma humana,

como a estrutura óssea, porém tudo com o intuito de atingir um certo padrão de beleza,

seguindo um ideal de perfeição corporal do homem.

“Belíssimas esculturas do homem são produzidas, com todos os ideais de força

majestosa, grandeza, sabedoria e dignidade incorporadas não apenas na sua forma, mas

também na sua expressão. É o reino do belo que começa a delinear-se” (SILVA, 2005, p. 31).

Para os escultores gregos, já não era importante utilizar-se de uma fórmula para

retratar o corpo humano. Se os egípcios valiam-se do conhecimento, os gregos começaram a

valer-se dos seus próprios olhos atentos à realidade.

A velha idéia de que era importante mostrar toda a estrutura do corpo [...]

instigou o artista a continuar explorando a anatomia dos ossos e músculos, e

a formar uma imagem convincente da figura humana, a qual permanece

visível mesmo sob o ondulado das roupagens. De fato, a maneira como os

artistas gregos usaram as roupagens para marcar as principais divisões da

anatomia do corpo denuncia a importância que eles atribuíam ao

conhecimento da forma. É esse equilíbrio entre a adesão às regras e a

liberdade de criação apesar delas que faz com que a arte grega continue tão

admirada em séculos subseqüentes (GOMBRICH, 1993, p. 56).

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31

Fig. 07 – Discóbolo, de Míron (aproximadamente 450 a.C.) Fonte: Proença (2004, p. 29).

Fig. 08 - Doríforo, de Policleto

(aproximadamente 440 a.C.)

Fonte: Proença (2004, p. 29)

Fig. 09 - Afrodite de Melos

(segunda metade do século II a.C.)

Fonte: Proença (2004, p. 34)

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32

Ainda na Grécia, no período helenístico12

, a riqueza de detalhes na representação das

formas humanas ganhou mais ênfase, de modo que até mesmo as emoções passaram a adquirir

espaço nas obras de arte. Como observa Proença (2004, p. 33): “os seres humanos não eram

representados apenas de acordo com a idade e a personalidade, mas também segundo as emoções

e o estado de espírito de um momento”. A escultura Laocconte e Seus Filhos pode ser um bom

exemplo dos aspectos emocionais presenciados na arte grega do período helenístico.

Gombrich (1993) observa que, nesta obra, os músculos e a expressão facial de

Laocconte transmitem muito claramente a idéia de esforço, sofrimento e dor, além da agonia

de que são vítimas os personagens retratados na situação. Trata-se de uma dissecação repleta

de organicidade.

Fig. 10 – Laocconte e Seus Filhos (cerca de 175 – 50 a.C.)

A representação anatômica de um estado emocional na escultura grega

Fonte: Gombrich (1993, p. 75)

12

“No final do século V a.C., Felipe II, rei da Macedônia, dominou as cidades-Estados da Grécia. Depois de sua

morte foi sucedido por seu filho, Alexandre, que construiu um gigantesco império. Morto Alexandre, seu

império fragmentou-se em vários reinos”. A esses reinos denomina-se helenísticos, o que designa o período

histórico como Período Helenístico. (cf. PROENÇA, op. cit., p. 33).

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33

A produção de pinturas na Grécia também teve destaque, especialmente nos objetos de

cerâmica, em que foi evidenciado um progresso técnico em relação à pintura egípcia, de modo

que, nas representações do corpo os artistas passaram a contemplar com mais liberdade aquilo

que seus olhos apreendiam.

Fig. 11 – Pintura grega em cerâmica (cerca de 510 – 500 a.C.)

O corpo na pintura grega: ultrapassando as regras da pintura egípcia

Fonte: Gombrich (1993, p. 81)

Os gregos foram os responsáveis pela tradição anatômica ocidental. “Deles derivam

mais ou menos diretamente os métodos, as aplicações e mesmo a nomenclatura de nossa

disciplina anatômica” (SINGER, 1996, p. 20), mais uma razão para que a abordagem histórica

desta pesquisa possua recorte em torno da Europa ocidental, conforme explicado no início

deste capítulo.

É inegável que uma parte significativa da produção artística ocidental sempre esteve

ligada ao conhecimento anatômico. Muitas representações humanas somente existiram em

razão dos estudos do homem acerca de si mesmo. Além disso, os cientistas gregos, ao passo

que registravam em figuras as formas humanas que pesquisavam, acabavam, de certo modo,

atuando como artistas.

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34

Fig. 12 – Registro da anatomia humana feito por um cientista (400 a.C.)

Fonte: Singer (1996, p. 27)

Singer contesta este pensamento. Diz o autor:

Pergunta-se às vezes se as grandes obras primas da escultura grega, com seu

acurado estudo de musculatura de superfície, não implicam em algum

conhecimento anatômico. A resposta deve ser negativa. Durante o grande

período da arte grega, o século V a.C., não há evidência de que a dissecação

do corpo humano já fosse praticada. Não há dúvida de que os contornos

musculares, como aparecem nas obras deste período, foram estudados em

modelos vivos e não mortos. Ocasionalmente se encontra nessas esculturas

gregas o contorno de um músculo para o qual os textos modernos de

anatomia para artistas não chamam a atenção. Um caso interessante é o do

músculo pectíneo, mostrado em uma escultura do Argive Heraeum de cerca

de 450 a.C. Desde que a estátua foi descoberta em fins do século passado,

demonstrou-se que em certas posições e sob certas condições, este músculo

pode de fato ser visto na pessoa viva. Entretanto, nas esculturas gregas

posteriores, de cerca de 200 a.C. em diante, é possível que os artistas

trabalhassem dentro de uma legítima tradição anatômica derivada da

dissecação. Deste período, como veremos, existem registros independentes

da prática da dissecação (SINGER, 1996, p. 31-32).

Singer, no entanto, parece estar mais preocupado com a legitimidade das obras no

sentido de uma fidelidade à constituição anatômica do homem observada via dissecação de

cadáveres. Essa não é a preocupação maior desta tese. Por essa razão, julgo pertinente

observar que, ainda que as obras de arte do início do período grego não tivessem sido frutos

de dissecações propriamente ditas, elas resultaram de uma estratégia criativa que,

particularmente, acredito que também possa ser considerada uma maneira de dissecar o corpo.

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35

Certamente os artistas que as elaboraram já possuíam preocupação com o conhecimento

anatômico. O que importa aqui, portanto, é que a arte aproximava-se cada vez mais da

anatomia e as representações do corpo, assim, já continham um certo cunho científico.

Da Grécia a Roma, verificam-se algumas transformações. Os romanos, ainda que

grandes admiradores da arte produzida na Grécia, imprimiram em suas obras algumas

diferenças. “Por serem realistas e práticos, suas esculturas são uma representação fiel das

pessoas e não a de um ideal de beleza humana, como fizeram os gregos” (PROENÇA, 2004,

p. 42). É deste período que datam as primeiras dissecações. Foi na Escola de Alexandria que a

Anatomia passou a ser considerada um assunto diferenciado, constituindo, desse modo, uma

disciplina.

Ainda assim, os estudos de anatomia humana sofreram um declínio no período do

império romano. Conforme explica Singer (1996, p. 58), “a dissecação do corpo humano

ainda era praticada ocasionalmente em Alexandria pelo fim do primeiro século a.C., mas

havia cessado pelos meados do segundo século d.C.”.

Embora isto tenha acontecido, pode-se dizer que, dentre os interesses dos escultores

romanos, destaca-se o desejo de representar o homem não apenas por meio do artifício da

beleza, como os gregos faziam, mas principalmente, realçando na obra os traços distintivos de

uma pessoa e, portanto, valorizando um outro aspecto merecedor de atenção sobre o corpo, o

qual não dependia prioritariamente de estudos anatômicos e dissecações propriamente ditas,

mas da observação do corpo humano vivo. A prioridade dos artistas nesse período era conferir

o máximo de realismo possível às suas obras, retratando fielmente as características físicas do

indivíduo que, pela obra, seria representado.

1.1.2 O corpo na arte européia: da Idade Média ao Impressionismo

Com o advento da Idade Média13

, a produção de figuras humanas foi reduzida

consideravelmente, uma vez que os povos bárbaros, que tomaram Roma, promovendo a queda

do império romano e, por conseguinte, o quase desaparecimento da cultura greco-romana,

privilegiavam a preocupação decorativa, especialmente nas igrejas, em detrimento das

representações elaboradas do homem.

13

A Idade Média inicia em 476, com a tomada de Roma pelos povos bárbaros. (cf. PROENÇA, op. cit., p. 53).

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36

As idéias egípcias sobre a importância da clareza na representação de todos

os objetos tinham voltado com grande pujança, por causa da ênfase que a

Igreja dava à clareza. Mas as formas que os artistas usaram nessa nova

tentativa não eram as formas simples da arte primitiva, mas aquelas

desenvolvidas na pintura grega. Assim, a arte cristã da idade Média tornou-

se uma curiosa mistura de processos primitivos e métodos refinados

(GOMBRICH, 1993, p. 96).

Fig. 13 – A arte cristã da Idade Média (520 d.C.)

Relembrando as idéias egípcias de forma apurada como na arte grega

Fonte: Gombrich (1993, p. 96)

O que se observa, porém, é que, nesse período, os artistas já não se dedicavam a

desvendar modos diversificados de representar o corpo humano. Entretanto, após passar por

momentos de quase total ostracismo, a arte, caracterizada até então por sua tradição greco-

romana, passou a renascer. Nesse período, evidenciou-se o estilo gótico, presente de modo

mais determinante na arquitetura, embora a escultura também tenha obtido seu espaço. Assim,

as representações da figura humana foram retomadas.

Paralelamente, cientistas/ anatomistas, a partir de sessões esporádicas de dissecação de

cadáveres, registravam desenhos que representavam, além das estruturas anatômicas, o

próprio ato da dissecação, o qual tinha por objetivo maior investigar a causa das mortes na

época, isto é, realizar autópsias.

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37

Fig. 14 – Representação de uma dissecação (início do século XIV)

Fonte: Singer (1996, p. 92)

Ainda em se tratando do estilo gótico, a pintura também pôde ser evidenciada, tendo

sido desenvolvida a partir do século XIII até o início do século XV, quando já começou a

tomar os ares realistas do renascimento. Havia uma grande preocupação com o realismo nas

representações de figuras humanas. Um pintor que se destacou nesta época foi o italiano

Giotto.

A característica principal da pintura de Giotto foi a identificação da figura

dos santos com os seres humanos de aparência bem comum. [...]. A pintura

de Giotto vem ao encontro de uma visão humanista do mundo, que vai cada

vez mais se firmando até ganhar plenitude no renascimento (PROENÇA,

2004, p. 75).

Por meio do estilo gótico, é possível verificar que o homem, naquele período,

aproximava-se cada vez mais de si e da necessidade de conhecer com maior profundidade sua

constituição biológica e cultural, a fim de representar suas formas de modo mais realista.

Após a presença marcante do estilo gótico nas artes, surgiu o Renascimento, estilo

artístico que se originou do movimento intelectual vigente, especialmente na Itália, durante o

século XV. Alguns autores argumentam que, nesse período, os artistas propuseram reviver os

ideais culturais greco-romanos, entretanto, é possível acreditar que as razões que explicam o

surgimento deste movimento não devem ter uma visão histórica tão reducionista.

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38

Proença (2004, p. 78) explica que:

Na verdade, o Renascimento foi um momento da História muito mais amplo

e complexo do que o simples reviver da antiga cultura greco-romana.

Ocorreram nesse período muitos progressos e incontáveis realizações no

campo das artes, da literatura e das ciências, que superaram a herança

clássica. O ideal do humanismo foi sem dúvida o móvel desse progresso e

tornou-se o próprio espírito do Renascimento. Num sentido amplo, esse

ideal pode ser entendido como a valorização do homem e da natureza, em

oposição ao divino e ao sobrenatural, conceitos que haviam impregnado a

cultura da Idade Média.

De acordo com essa argumentação, portanto, é possível observar que os ideais

filosóficos do renascimento ultrapassaram o mero reviver greco-romano, desenvolvendo

assim outros aspectos que lhe garantiram maior especificidade. O ideal humanista e a

preocupação com o rigor científico, por exemplo, podem ser apontados como prováveis

despertadores de interesse dos artistas pela anatomia humana e, por conseguinte, pela

dissecação de cadáveres, prática comum entre os artistas da época o que, por sua vez, trouxe

enormes contribuições para as artes.

De fato, o Renascimento é o período que mais apresentou contribuições no que se

refere à presença de estudos de anatomia nas produções artísticas. Muitos foram os artistas

que se dedicaram à investigação do corpo para a composição de seus trabalhos, de modo que

este foi o período que mais se destacou em termos de produção artística fundada em pesquisas

científicas.

Em meio à efervescência cultural e científica da época, a prática da dissecação, “que

se encontrava dormente havia mil e quatrocentos anos – desde os tempos de Alexandre o

Grande –, foi retomada e exerceu influência decisiva sobre a arte que então se produzia”

(BARRETO; OLIVEIRA, 2004, p. 45). A dissecação de cadáveres, que era utilizada

prioritariamente com fins médicos, passou a servir de modo mais direto à arte. Dentre os

artistas/ anatomistas que se destacaram neste período podem ser citados Leonardo da Vinci,

Michelangelo, Rafael, Albrecht Dürer, Luca Signorelli e Andréa Verrochio.

A riqueza de detalhes anatômicos presente na obra destes artistas é bastante evidente,

o que se deve, muito provavelmente, ao convívio com as dissecações, que lhes permitiam ter

maior conhecimento acerca das formas humanas, não apenas do exterior do corpo, mas

também de seu interior. Alguns destes artistas eram considerados anatomistas, pois eles

próprios dissecavam cadáveres, tendo como conseqüência o aprimoramento das figuras

humanas e suas estruturas corpóreas tanto nas pinturas, quanto nas esculturas.

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39

Por acreditar que este tenha sido um período de grande difusão das relações entre arte

e anatomia, adiante dedicarei um trecho deste capítulo à reflexão mais profunda sobre as

questões vigentes no Renascimento, enfatizando a produção artística desse período como uma

forma de dissecação corporal, sem deixar de considerar a dissecação nos demais períodos

históricos da arte.

Dando continuidade a este trajeto histórico da arte sob a ótica da anatomia humana, é

interessante ressaltar a arte barroca, período em que foi possível observar a presença de uma

carga expressiva muito grande nas figuras humanas retratadas pelos artistas, o que sugere

ênfase não apenas no conhecimento anatômico, mas, principalmente, no que se refere à

representação das emoções.

Apesar da prioridade no Barroco não ter sido destacar o conhecimento sobre o corpo

humano, pode-se apontar, neste período, um artista que se interessou por retratar sessões de

dissecação de cadáveres, demonstrando, com isso, não apenas o anseio de manifestar seus

conhecimentos sobre a anatomia humana, mas também o desejo de captar o clima de

descoberta que se instaurava nas referidas sessões, uma vez que elas eram, inclusive, mal

vistas pela sociedade.

Trata-se de Rembrandt, pintor das obras A Lição de Anatomia do Doutor Tulp e A

Aula de Anatomia do Doutor Joan Deyman, as quais podem ser tidas como exemplo da ativa

participação de artistas em sessões de dissecação de cadáveres humanos. Essas obras retratam

o conhecimento do artista acerca da anatomia humana, bem como da própria prática de

dissecação de cadáveres, tendo em vista a representação tão fiel das sessões em questão.

Fig. 15 – A lição de anatomia do doutor Tulp, de Rembrandt (1632)

A anatomia como foco central da obra

Fonte: Proença (2004, p. 114)

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40

Subseqüente ao barroco advém o neoclassicismo, cuja pintura, por sua vez, “foi

inspirada principalmente na escultura clássica grega e na pintura renascentista italiana”

(PROENÇA, 2004, p. 124), o que parece conferir às obras um certo realismo, porém com a

grande preocupação de exprimir as emoções do momento captado. Novamente observa-se a

ênfase dada aos caracteres não biológicos do corpo nos processos de criação artística.

Aliás, ao que parece, os artistas dos mais diversos períodos tinham como preocupação

maior retratar os aspectos emocionais do homem, valendo-se da anatomia mais propriamente

para fins de conhecimento acerca de alguns detalhes do corpo, os quais eram requeridos na

composição de suas obras. Com exceção de alguns nomes, que de fato enfatizaram a anatomia

humana com o intuito de retratá-la com o máximo de perfeição possível, a grande maioria dos

artistas tinha como pretensão representar alguma situação do emocional humano e não,

prioritariamente, o corpo em se tratando de suas formas.

Com o Realismo, presenciado entre os anos de 1850 e 1900,

O homem europeu, que tinha aprendido a utilizar o conhecimento

científico e a técnica para interpretar e dominar a natureza, convenceu-se

de que precisava ser realista, inclusive em suas criações artísticas,

deixando de lado as visões subjetivas e emotivas da realidade

(PROENÇA, 2004, p. 131).

A escultura realista, que tinha como pensamento maior recriar os seres exatamente

como eles eram, sem qualquer preocupação idealista da imagem que era retratada, teve como

uma de suas maiores expressões Auguste Rodin.

Devido ao seu desejo de mostrar os misteriosos anseios do ser humano,

suas tensões e toda a sua realidade, de maneira que cada figura esculpida

adquirisse um caráter individual, Rodin estudou muito a Anatomia

Humana, fascinando-se pelas mãos, fazendo centenas de estudos

decorrentes dessa fascinação. Estudou também as proporções humanas,

muitas vezes separando a cabeça do restante do corpo (MANABE, 2002,

p. 27).

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41

Fig. 16 – A Mão de Deus, de Rodin (1898)

Um estudo da expressividade das mãos

Fonte: Gombrich (1993, p. 421)

Já no Impressionismo, movimento que deu início às principais tendências artísticas do

século XX, havia uma preocupação mais técnica, uma pretensão de atingir um certo efeito que

findou por imprimir uma espécie de padrão às obras, principalmente na pintura. Os

impressionistas, especialmente Monet, tinham como intenção representar os momentos de

passagem provocados pelas constantes mudanças de luz.

Segundo Proença (2004, p. 140), porém, dentre as considerações seguidas pelos

artistas impressionistas destaca-se principalmente o fato de que “as figuras não devem ter

contornos nítidos, pois a linha é uma abstração do ser humano para representar imagens”, isto

é, o intuito era exatamente não deixar os contornos tão visíveis, conferindo à imagem,

inclusive, uma certa sugestão de movimento.

No entanto, apesar de não ter como pretensão abstrair imagens da natureza e, sim,

retratá-las na obra o mais próximo possível de como o homem as enxerga, isto é, das

impressões que a realidade transmite, o Impressionismo causou grandes modificações nos

modos de representação das formas humanas, tornando-as mais abstratas e,

conseqüentemente, menos realistas do ponto de vista da anatomia.

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42

Fig. 17 – Le Moulin de la Galette, de Renoir (1876)

Um olhar impressionista sobre as formas humanas

Fonte: Gombrich (1993, p. 414)

Dentre os pintores impressionistas destacam-se Monet, Renoir e Degas. Uma vez que

os movimentos artísticos subseqüentes passaram a priorizar um efeito mais abstrato às suas

representações, esses pintores parecem ter anunciado uma filosofia artística cuja tendência era

não agir com tanta fidelidade às formas humanas, mas priorizar o olhar do próprio artista.

1.1.3 A abstração do corpo na arte européia do século XX

Ao contrário do que se evidenciou nas obras de arte até o período do Realismo, os

movimentos artísticos, a partir do Impressionismo, não tinham como prioridade representar o

corpo do homem com exatidão e fidelidade, mas, sim, recriá-lo a partir das sensações

humanas que o mesmo apresentasse num dado instante.

Assim, após o Impressionismo, evidenciou-se o Expressionismo, que inaugurou os

movimentos artísticos do século XX. Originado na Alemanha, “o Expressismo procurou

expressar as emoções humanas e interpretar as angústias que caracterizaram psicologicamente

o homem do início do século XX” (PROENÇA, 2004, p. 152). Nesse sentido, Van Gogh,

pintor holandês, assim como outros pintores em evidência no final do período Impressionista,

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43

já havia anunciado a importância de deformar a realidade propositalmente com o intuito de

fazer com que fosse revelado o universo interior de seres reais.

Proença (2004, p. 153) argumenta:

Os expressionistas são deformadores sistemáticos da realidade, pois desejam

expressar com a maior veemência possível seu pessimismo em relação ao

mundo. Assim, realizam uma pintura que foge às regras tradicionais de

equilíbrio da composição, da regularidade da forma e da harmonia das cores.

Por isso é considerada por alguns como uma pintura feia. Contribui para a

visão negativa e a amargura com que às vezes o homem e a natureza são

retratados.

Belas ou não, as obras expressionistas podem ser tidas como exemplo de uma estética

da abstração, uma tendência a não haver conformismo em simplesmente copiar as formas da

natureza como elas são, mas sim retratá-las de acordo com a leitura que o artista possui sobre

determinada imagem. Isto, no que se refere à relação existente entre arte e anatomia,

demonstra que a partir do Impressionismo e, de maneira ainda mais determinante, a partir do

Expressionismo, o artista, no ato da dissecação, passa a valorizar outros aspectos da condição

humana, que não unicamente sua forma.

Para Gombrich (1993, p. 449):

Os expressionistas alimentavam sentimentos tão fortes a respeito do

sofrimento humano, da pobreza, violência e paixão, que eram propensos a

pensar que a insistência na harmonia e beleza em arte nascera exatamente de

uma recusa em ser sincero.

De certa forma, o que se observa na arte expressionista é um tratamento do corpo cuja

ênfase reside nos aspectos dramáticos da existência humana, resultando, por conseguinte, em

representações corporais de extrema dramaticidade, provocando uma espécie de desfiguração

do corpo, como em O Grito de Munch.

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44

Fig. 18 – O Grito, de Munch (1893)

O corpo desfigurado pela expressão dramática da condição humana

Fonte: Gombrich (1993, p. 449)

Na perspectiva que tangencia estes ideais de fuga dos artistas aos padrões formais da

realidade concreta, é possível evidenciar no Fauvismo, no Cubismo, no Abstracionismo, no

Futurismo, no Dadaísmo e no Surrealismo, que a abstração foi se tornando mais especializada

a cada movimento artístico. De um modo geral, todos esses movimentos tinham o intento de

fugir das concepções realistas de arte.

Aliás, o que se observa no percurso histórico da arte é que, conforme vão surgindo as

necessidades de evidenciar por meio das obras, outras questões humanas para além da forma,

amplia-se o sentido de dissecação, que passa a considerar aspectos menos palpáveis na

anatomia do corpo.

O Fauvismo, por exemplo, é regido por um princípio de sugestão de figuras em

detrimento de suas representações realísticas. Matisse foi um nome de grande importância

nesse movimento, assumindo a abstração como proposta de relevância maior de suas obras.

Segundo Proença (2004, p. 154), sua característica maior era “a despreocupação com o

realismo, tanto em relação às formas das figuras, quanto em relação às cores”, de modo que o

corpo, ao ser representado, não era tão importante. Mais relevante era a forma como ele era

representado. Em algumas obras, Matisse chama a atenção para partes da anatomia humana

como as mãos, os pés ou a cabeça, que são, assim, o “centro temático” do quadro.

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45

Fig. 19 – Nu Bleu, de Matisse (1952)

O exagero dos membros em evidência no corpo é o centro temático da obra

Fonte: http://www.postershop.com/Matisse-Henri/Matisse-Henri-Nu-4705520.html

Já o Cubismo, que tem em Picasso e Braque, seus maiores representantes, apresentava

uma atitude de decompor os objetos sem qualquer compromisso de fidelidade com a

aparência real. Dentre suas características, a fragmentação é a mais marcante, estratégia

utilizada, inclusive e principalmente, para retratar o corpo humano.

Fig. 20 – Cabeça, de Picasso (1928)

O corpo fragmentado e improvável

Fonte: Gombrich (1993, p. 458)

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46

Fig. 21 – Mulher Com Violão, de Braque (1908)

A ausência de tratamento realista do tema, por uma inovação da forma, que é fragmentada

Fonte: Proença (2004, p. 155)

O Abstracionismo, por sua vez, tinha como característica “a ausência de relação

imediata entre suas formas e cores e as formas e cores de um ser. Por isso, uma tela abstrata

não representa nada da realidade que nos cerca” (PROENÇA, 2004, p. 159). O

Abstracionismo consolidou, inclusive por meio de sua nomenclatura, a tendência à fuga das

imagens realistas nas obras de arte.

Kandinsky é um pintor que se destaca neste movimento artístico. Suas obras

caracterizam-se pelo tratamento dos temas de uma maneira que os temas de seus quadros,

incluindo entre eles o corpo humano, não são reconhecidos de imediato, mas sim por

intermédio de planos, linhas e borrões aparentemente desconexos.

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Fig. 22 – Orientalisches, de Kandinsky (1913)

As formas do corpo ocultadas na abstração das cores

Fonte: http://www.postershop.com/Kandinsky-Wassily/Kandinsky-Wassily-Orientalisches-4705693.html

Por outro lado, os artistas adeptos do Futurismo demonstravam interesse na

representação do movimento em si mesmo e não de um corpo em movimento. Sobre os

futuristas, Proença (2004, p. 164) explica: “como pretendiam evitar qualquer relação com a

imobilidade, recusaram toda representação realista e usaram, além de linhas retas e curvas,

cores que sugerissem convincentemente a velocidade”. O Futurismo apresentou, através das

obras de Carrà, Balla e outros, um aprofundamento das idéias lançadas no abstracionismo.

O Dadaísmo, movimento surgido durante a Primeira Guerra Mundial, propunha

libertar a criação artística do pensamento racionalista tendo como argumento o fato de que a

arte era “apenas resultado do automatismo psíquico, selecionando e combinando elementos ao

acaso” (PROENÇA, 2004, p. 165). A intenção desse movimento não era prioritariamente

plástica, mas sim crítica, e seus pressupostos acabaram resultando no surgimento de mais um

movimento: o Surrealismo.

Associando realidade e fantasia, o Surrealismo tratava a obra não como resultado de

manifestações racionais do consciente, mas como manifestações do próprio inconsciente

humano, as quais seriam de natureza absurda e até mesmo ilógica, como as imagens de um

sonho ou alucinação. Algumas obras surrealistas retratam imagens de cunho bastante realista,

contudo, essas imagens sempre estão associadas a elementos não existentes na realidade,

gerando, portanto, o irreal, ou melhor, o surreal.

Um artista de grande expressão neste movimento é Salvador Dali, em cujas obras são

evidenciadas abordagens muito interessantes da figura humana. Gombrich (1993, p. 472) ressalta

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48

que as composições de Dali “refletem o sonho impalpável de uma pessoa”. De fato, ao observar

os trabalhos de Dali pode-se compreender que o corpo no surrealismo é um produto onírico.

O corpo no surrealismo não é real. Ele existe, contudo, de um modo peculiar. Ele não

deixa de ser corpo, porém, ao ser construído por meio da utilização de objetos não

pertencentes à estrutura anatômica humana, configura múltiplos significados, resultando numa

espécie de enigma em que determinadas partes são ocultadas e ao mesmo tempo reveladas

pela presença de figuras diversas. No surrealismo, observa-se, portanto, que a própria psique

do artista é dissecada no processo criativo.

Fig. 23 – A Cidade das Gavetas, de Dali (1936)

O corpo que se abre e se revela na imagem onírica

Fonte: http://www.postershop.com/Dali-Salvador-La-Ciudad-de-los-cajones-1936-7600084.html

Fig. 24 – Mae West, de Dali (1934)

O rosto humano associado a objetos de função prática

Fonte: Proença (2004, p. 166)

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Ao que parece, de um modo geral, os artistas dos movimentos do século XX não

tinham como prioridade retratar a realidade. Na verdade, com a presença marcante da

fotografia, bem como o acesso facilitado à mesma, isso já nem se fazia necessário, o que

talvez tenha influenciado o surgimento de movimentos artísticos que primavam pela abstração

da vida real.

As práticas de anatomia e a importância dada à dissecação, portanto, já não tinham as

mesmas características dos períodos anteriores, em que o enfoque dos artistas era a

representação quase literal do corpo. Nos estilos de arte européia no século XX, esses

elementos já não eram determinantes para a composição de uma obra.

Esta liberdade presenciada nos movimentos artísticos do século XX parece ser um

argumento que pode apresentar grande afinidade e diálogo com o fazer artístico da dança na

contemporaneidade, no qual a preocupação com o aspecto formal não está em primeiro plano,

sendo essa dança, portanto, gerada a partir de abstrações de sensações corpóreas ou até

mesmo de outras formas, processando a dissecação na linguagem do movimento. Assim como

os movimentos artísticos mais abstratos possibilitaram maior liberdade de criação, os

desígnios da dança, na atualidade, abrem espaço para a descoberta de diversas formas através

da liberdade criativa.

Apesar disso, é possível encontrar, principalmente no Renascimento, mesmo com toda

a preocupação com o aspecto realístico da obra de arte, argumentos relevantes para a criação

em dança. Isso se reflete de forma determinante no processo criativo em estudo nesta tese, que

opta por fundamentar a idéia de um corpo dissecado na obra de Michelangelo, artista

renascentista, conforme explicarei a seguir.

1.2 ARTE RENASCENTISTA: um argumento para a concepção de corpo dissecado

1.2.1 A Renascença: diálogos entre ciência e arte

O Renascimento foi um período em que aconteceram grandes transformações nas

diversas áreas do conhecimento. Foi uma época em que os ideais humanistas falavam mais

alto e o indivíduo, centrado nas suas questões pessoais, buscava reconstruir-se pautado na

hiper valorização do homem e da natureza em detrimento do divino e do sobrenatural.

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Este sentido de reconstrução do homem teve como inspiração as tradições da cultura

greco-romana, que haviam caído no ostracismo a partir do advento da Idade Média, período

que antecedeu o Renascimento. Vale ressaltar que o próprio significado do substantivo

renascimento reporta-se a uma idéia de recomeço, de renascer. O Renascimento foi, portanto,

a renovação do homem nos diversos âmbitos do conhecimento.

Durante um longo período, a humanidade havia tido sua intelectualidade subjugada

aos preceitos religiosos, estando o conhecimento mais restrito aos espaços dos mosteiros e da

Igreja, o que alimentou no homem o desejo de retomar sua voz e instaurar um novo

pensamento cujas bases estivessem fundadas na Antigüidade que antecedera a Idade Média, o

que, de certa forma, explica o retorno às tradições da cultura greco-romana.

Dentre os aspectos inerentes a este movimento, destaca-se o humanismo, que

determinou a idéia de que o homem era o centro do universo, resultando, portanto, em uma

visão antropocêntrica de mundo. O que o humanismo priorizava, enquanto pensamento, era o

desenvolvimento do espírito crítico do homem, afastando-o de considerações sobrenaturais e

incitando-o ao desenvolvimento do espírito científico.

Os humanistas, indivíduos que tinham como propósito renovar o padrão do formato de

ensino das universidades medievais, exerceram plena intervenção sobre a cultura

renascentista. Essa nova visão de mundo referendava as mais diversas áreas do conhecimento.

Segundo Sevcenko (1994, p. 14), o objetivo maior dos humanistas era:

Atualizar, dinamizar e revitalizar os estudos tradicionais, baseado no

programa dos studia humanitatis (estudos humanos). [...]. Assim, num

sentido estrito, os humanistas eram, por definição, os homens empenhados

nessa reforma educacional, baseada nos estudos humanísticos.

É possível admitir que a presença do caráter científico nas produções artísticas daquele

período deve-se exatamente às condições humanistas inerentes ao ideal renascentista. Esse

caráter científico, que se iniciou a partir de estudos e observações da natureza, associados a

experimentos empíricos de pesquisa, caracterizava-se, principalmente, por uma postura

bastante cética por parte de seus pensadores.

A palavra de ordem dentre esses estudiosos era o abandono das velhas

autoridades e preconceitos e a aceitação somente daquilo que fosse possível

comprovar pela observação direta. [...]. Tratava-se da fundação de uma nova

concepção do saber completamente aversa aos dogmas medievais e voltada

toda ela para o homem e para os problemas práticos que seu momento lhe

colocava. A avidez de conhecimento se torna tão intensa como a avidez do

poder e do lucro (SEVCENKO, 1994, p. 21 – 22).

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No que se refere às artes, a preocupação em estar de acordo com essas condições era

tamanha, que os artistas da época sofreram para convencer a todos e ainda a si próprios das

pretensões que possuíam. Faure (1990, p. 17), referindo-se a Leonardo da Vinci e

Michelangelo, artistas da época, questiona tal sofrimento perguntando-se:

O que poderia, então, ser o equívoco secreto daquele, qual poderia ser a

causa do sofrimento formidável deste, senão a consciência que ambos

tinham, muito nítida, de que a Itália acabara de romper a unidade espiritual

da Idade Média, onde a arte e ciência do homem constituíam juntas a

imagem simbólica de sua concepção do universo? Não pressentiam tanto um

quanto o outro que, à medida que a ciência se objetivava, a arte não podia

continuar mantendo-se nas regiões subjetivas do conhecimento?

Sim, os artistas pressentiam as novas necessidades de diálogo entre arte e ciência, eles

tinham pleno conhecimento das razões que pautavam seu fazer e, por esse motivo, sofriam.

Seria necessário solidificar os ideais humanistas na arte para que os mesmos não se perdessem

ao longo do caminho e se mantivessem coerentes em relação ao pensamento vigente na época.

Essa era a maior angústia dos artistas renascentistas, como sugere Faure (1990, p. 17).

O esforço deles, sempre tenso, para dar à arte, pela anatomia e a perspectiva,

as mesmas bases concretas da ciência, não seria uma confissão implícita de

que essa unidade, ao escapar ao sentimento do homem, era preciso tentar,

mediante um esforço impossível de ser feito por outros que não eles, mantê-

la no espírito do homem?

A arte, portanto, precisava manter-se sob o domínio do homem, afastando-se, para

tanto, das questões sobrenaturais. O artista renascentista sentia a necessidade de valer-se de

estratégias científicas que o capacitassem a dialogar, em primeiro lugar, com os temas

humanos.

Foi neste sentido que, “no século XV, houve no domínio da arte um grande

movimento destinado a exercer profunda influência sobre o progresso da anatomia. (...). Os

artistas interessavam-se pela representação fiel da forma humana” (SINGER, 1996, p. 109).

Dentre eles, Leonardo da Vinci merece destaque.

Esse homem maravilhoso sem dúvida começou a dissecar para aperfeiçoar

sua arte. Logo, entretanto, interessou-se pela estrutura e funções do corpo.

Finalmente, seu interesse científico excedeu o artístico, e os seus livros de

anotações anatômicas, descobertos em anos recentes, revelaram que ele foi

um dos maiores investigadores em biologia de todos os tempos (SINGER,

1996, p. 109-110).

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Da Vinci destacou-se, ainda, por inaugurar a tridimensionalidade das figuras na

representação de estruturas anatômicas do homem, adotando um método moderno a partir do

qual era possível representar as partes do corpo vistas de frente, de costas e de lado.

Fig. 25 – Vista de um crânio, de Leonardo da Vinci (1489)

Fonte: http://www.visi.com/~reuteler/leonardo.html

Fig. 26 – Anatomia do coração humano, de Leonardo da Vinci (1507)

Fonte: http://www.ifmsa.lublin.pl/se/zdjecia/serce.jpg

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Fig. 27 – Os principais órgãos e sistemas vascular e uro-genital de uma mulher,

de Leonardo da Vinci (1507)

Fonte: http://www.visi.com/~reuteler/leonardo.html

Assim como Da Vinci que, inicialmente, se voltou para os estudos científicos em

razão de desejar ampliar seus conhecimentos em prol de sua produção artística, grande parte

dos artistas do Renascimento exerceu funções de cientista, com o intuito de aprimorar sua

arte.

Os artistas italianos do século XV fizeram bem em esquadrinhar cadáveres,

em estudar os trajetos dos tendões, as protuberâncias ósseas, as infinitas

ramificações dos nervos, das veias e artérias. Era necessário que, mesmo ao

preço de algumas confusões, mesmo ao preço de alguns conflitos entre o

entusiasmo que cria e a observação que desencanta, a humanidade adquirisse

pouco a pouco a consciência da unidade, que aprendesse a descobrir que a

chama que cintila no fundo dos olhos humanos dorme no âmago de todas as

formas, que ela faz estremecer as árvores até a extremidade de suas folhas,

as asas dos pássaros, as asas dos insetos, os músculos vivos, os ossos mortos,

que ela transmite os estremecimentos atmosféricos para o frêmito dos

regatos e até para a vida das pedras (FAURE, 1986, p. 78-79).

Todo este furor anátomo-científico presenciado no Renascimento iniciou-se no século

XIV com Masaccio, pintor que procurou valorizar as pesquisas de forma e espaço iniciadas

por Giotto. Sua arte foi baseada “na sofisticação das técnicas de representação dos volumes e

da anatomia do corpo humano” (SEVCENKO, 1994, p. 58), seguida por Signorelli, que foi o

primeiro grande artista a pintar o nu, acrescentando a suas representações da figura humana

características como a força das contrações musculares, além de outros detalhes anatômicos.

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No século XVI, período do Renascimento considerado o mais frutífero do ponto de

vista artístico, destacaram-se Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo. O primeiro conferia

a suas figuras um forte tratamento psicológico, procurando captar através das expressões

faciais condições relativas à alma humana. Já o segundo, buscava propor algo mais tranqüilo,

harmonioso, seguro e livre de mistérios, sustentando-se, para isso, em um grande domínio

técnico da pintura.

Por outro lado, Michelangelo foi um artista mais centrado nas formas da carne humana

propriamente dita. “O mistério para esse artista não se concentrava na expressão facial, mas se

disseminava por todo músculo do corpo, por toda ruga da pele ou toda veia entumescida”

(SEVCENKO, 1994, p. 64-65), de modo que esses caracteres permearam toda a sua produção

artística.

É este aspecto renascentista que mais interessa para a argumentação construída nesta

tese, especialmente em se tratando de Michelangelo, conforme será particularizado adiante.

Interessa aqui, portanto, entender que a arte sentia necessidade de ancorar-se em uma

cientificidade para falar ao fruidor em concordância com o pensamento humanista vigente na

época. Importa-me, assim, saber que, no Renascimento, a poesia artística precisava ter

fundamentação científica situando, para isso, no homem, a responsabilidade sobre a existência

de todas as coisas.

1.2.2 Capela Sistina: a dissecação corporal na obra de Michelangelo

A visão humanística que impregnava o Renascimento, ao estender-se para as artes,

originou um celeiro em que foram deixados vários códigos retratando o pensamento vigente

na época. São os chamados enigmas que, segundo Barreto e Oliveira (2004), estão contidos

em toda obra de arte, constituindo parte de sua natureza. Para os autores, “o enigma é um dos

elementos transcendentais responsáveis pela perenidade da obra e pelo desprezo que ela tem

com o tempo. Nada o abala. É um elo entre gerações humanas que se sucedem” (BARRETO;

OLIVEIRA, 2004, p. 13).

Dentre os enigmas deixados pelos artistas renascentistas pode ser destacado o sorriso

de Mona Lisa, além de tantos outros. Ressalto aqui o enigma presente na pintura feita por

Michelangelo na Capela Sistina. Esse enigma, estudado por Barreto e Oliveira (2004),

constitui o que entendo como uma maneira de dissecar o corpo artisticamente.

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Nascido em seis de março de 1475, Michelangelo ficou órfão de mãe aos seis anos de

idade, tendo sido entregue a uma ama cujo marido era cortador de mármore, o que

aproximaria o futuro artista dos materiais que serviriam a sua atividade de escultor.

Ainda adolescente, ele estudou no ateliê de Domenico Ghirlandaio, mas não tardou a

destacar-se, passando a viver, assim, sob responsabilidade do mecenas Lorenzo de Médici,

que morava em um palácio freqüentado por pintores, escultores, filósofos, arquitetos e

médicos. O convívio com essas pessoas aproximou Michelangelo do ambiente científico que

permeava o período histórico, despertando seu interesse para as sessões de dissecação.

Aos dezoito anos, “era não somente um artista formado como também um conhecedor

de anatomia plenamente versado nas técnicas de dissecação. [...]. O conhecimento de cada

detalhe do corpo humano fazia parte do processo de criação” (BARRETO; OLIVEIRA, 2004,

p. 36).

Barreto e Oliveira (2004, p. 45), em estudo biográfico do artista, afirmam que “antes

de fazer o esboço das figuras que iria esculpir, Michelangelo empreendia uma investigação

minuciosa, analisando corpos e fazendo moldes em cera ou madeira das estruturas (para então

desenhá-las em vários ângulos e posições)”.

Ainda assim, Michelangelo foi pouco reconhecido como anatomista pelos

historiadores. Isso, no entanto, não o impediu de deixar um legado artístico-científico que

merece ser destacado, especialmente no que diz respeito a sua maior obra, a pintura da Capela

Sistina. Reduto de impressionantes imagens em que se encontram codificados detalhes muito

sutis da anatomia humana, essa obra, como exemplo plástico de abstrações do corpo, dialoga

de maneira determinante com minha proposta de pesquisa em dança.

Michelangelo tinha um projeto que era a criação de um tratado de anatomia que

tivesse por finalidade servir para outros artistas que desejassem esculpir ou pintar o corpo e

seus movimentos. A idéia, entretanto, não vingou. “Com a idéia do manual de anatomia

definitivamente arquivada, Michelangelo continuou a trabalhar nos projetos arquitetônicos

que dominaram a última etapa de sua vida” (BARRETO; OLIVEIRA, 2004, p. 55).

Contudo, o melhor ainda estava por vir. Mesmo sem obter a concretização do projeto

do tratado, Michelangelo conseguiria fazer algo ainda mais surpreendente, deixando uma

verdadeira lição de anatomia na Capela Sistina sem precisar pintar sequer uma representação

literal das estruturas internas do corpo humano.

Em 1508, iniciou o processo de criação da pintura que o papa Julio II havia

encomendado para decorar a Capela Sistina. Embora Michelangelo não fosse pintor, mas sim

escultor, a tarefa foi executada com brilhantismo. Alguns pintores foram incumbidos de

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auxiliá-lo nos trabalhos, porém o artista optou por dispensar vários desses homens, preferindo

contar com a ajuda de poucos nomes de sua inteira confiança.

Por não dominar completamente a técnica de afresco, Michelangelo vivenciou grandes

dificuldades no início do seu trabalho. King (2004, p. 56) ressalta que “a técnica do afresco

era de concepção simples e execução difícil. O nome afresco deriva do fato de que o pintor

sempre trabalhava sobre revestimento fresco, ou seja, molhado”. Isso significa que o trabalho

consistia em pintar uma área literalmente molhada. Era necessário correr contra o tempo para

que a camada de massa aplicada sobre essa superfície não endurecesse.

Sob os protestos do Papa Julio II, que por várias vezes havia cobrado duramente a

entrega da encomenda ao artista, em novembro de 1512 Michelangelo entregava seu trabalho.

Retirados os tapumes que encobriam as pinturas ao longo de sua elaboração, revelou-se a

grande obra cujos códigos escondem uma espécie de dissecação do corpo humano por

intermédio da arte.

De acordo com Barreto e Oliveira, a Capela Sistina é um imenso celeiro de códigos

deixados por Michelangelo. Para esses autores, os códigos podem ser decifrados em cada uma

das trinta e duas cenas que compõem a obra. Há nas pinturas da capela “uma espécie de ‘jogo’

em que algo está oculto e os indícios levam os investigadores à solução do enigma.

Michelangelo utiliza vários recursos para deixar evidente essa intenção” (BARRETO;

OLIVEIRA, 2004, p. 70).

Nas cenas, Barreto e Oliveira apontam como sinais reveladores dos códigos as

seguintes características: a posição das figuras, que em muitas situações expõem a parte do

corpo camuflada; a direção dos olhares; o movimento das mãos, geralmente apontando a

estrutura anatômica e a região do corpo onde há maior luminosidade.

Estas pistas são possibilitadas principalmente pela presença de personagens

secundários nas cenas, como, por exemplo, os ignudi14

, querubins15

e putti16

, além dos

escravos17

, de modo que todos esses personagens acabam por exercer funções muito maiores

do que, à primeira vista, pode ser considerado um mero adorno.

14

Homens nus que compõem o cenário da Capela Sistina em seu primeiro grupo de imagens (área central da

capela) e que, normalmente, aparecem imitando a figura principal com o fim de evidenciar a estrutura anatômica

oculta. 15

Pequenas criaturas contidas nas pinturas que indicam com as mãos as peças anatômicas camufladas. Fazem

parte do terceiro grupo de imagens da Sistina. 16

Assim como os querubins, também consistem em pequenas criaturas que fazem parte do terceiro grupo de

imagens da Sistina compondo as figuras “principais” e indicando com as mãos as estruturas anatômicas

existentes nas imagens. 17

Personagens secundários do segundo e quarto grupo de imagens da Capela Sistina que, como os demais,

também possuem a função de dar pistas acerca das estruturas anatômicas camufladas nas pinturas, evidenciando

as partes do corpo que se referem às estruturas em questão.

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Segundo essas constatações, ao contrário dos outros artistas/anatomistas da época,

Michelangelo não optou por representações fiéis das estruturas da anatomia humana, como

fez Leonardo da Vinci, por exemplo.

Longe de minhas pretensões medir a qualidade dos trabalhos desses artistas, no

entanto, pautada nos argumentos levantados por Barreto e Oliveira (2004), percebo que

Michelangelo, ao instituir em suas pinturas uma maneira não literal de representação da

anatomia humana, opta por um formato mais abstrato ao lidar com seu objeto de investigação:

o corpo.

Michelangelo deixou na Capela Sistina imagens que, em primeira instância, são

apenas representações de momentos do antigo testamento bíblico, mas que, na verdade,

podem ser muito mais. O artista dissecou o corpo humano ocultando-o nas suas pinturas e

codificando assim, estruturas da anatomia interna, como nas imagens a seguir.

Fig. 28 - Pistas reveladoras dos detalhes anatômicos na pintura

Fonte: Barreto e Oliveira (2004, p. 148).

1 – A sibila dirige o olhar para o ombro; 2 – O querubim aponta para o próprio ombro;

3 – Os putti examinam e apontam para o próprio ombro; 4 – A iluminação é mais intensa no ombro da sibila; 5 -

Há mais realce de cor e luz na veste que oculta a peça anatômica

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Fig. 29 – Imagem comparativa entre a pintura invertida e a estrutura anatômica da articulação do ombro

Fonte: Barreto e Oliveira (2004, p. 149).

a – cavidade glenóide

b – cabeça do úmero

Fig. 30 - Imagem comparativa entre a pintura de Deus e a vista lateral do pulmão esquerdo

Fonte: Barreto e Oliveira (2004, p. 87).

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59

Fig. 31 - Imagem comparativa entre a pintura da cena da Criação do Mundo (Deus)

e o corte do crânio humano

Fonte: Barreto e Oliveira (2004, p. 85)

Considerando as evidências encontradas pelos autores e sem, contudo, contestar aqui a

veracidade dos fatos, devo admitir que o argumento de Michelangelo muito se assemelha ao

que venho desenvolvendo enquanto objeto de pesquisa para esta tese. Uma vez que a

abordagem do artista renascentista traduz uma espécie de dissecação por meio da obra de arte,

posso admitir que minha proposta criativa para um espetáculo de dança, revele também uma

forma de dissecação corporal, entretanto, algo que deverá acontecer por intermédio do

movimento, explorando, para isso, qualidades e padrões relacionados com o próprio corpo.

1.3 UM OLHAR SOBRE AS DISSECAÇÕES DO CORPO NA ARTE BRASILEIRA

Para lançar a idéia de existência de um corpo dissecado pela dança, optei por enfatizar,

conforme esclarecido anteriormente, a arte no ocidente europeu, tendo em vista a localização

geográfica da Capela Sistina, obra que me instigou a re-significar a noção de dissecação para

o campo artístico. Não é à toa que focalizo minha análise estética sobre a arte deste

continente, uma vez que a pintura de Michelangelo, além de saltar-me aos olhos para a

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criação de um conceito, encontra-se, por conseqüências geográficas, situada em um

determinado contexto histórico e cultural de claras relações entre arte e ciência.

Contudo, se Michelangelo dissecou o corpo num tempo e espaço específicos, devo

admitir que minha dissecação em dança, também acontece num contexto particular. Trata-se

do contexto de um país de efervescentes produções artísticas ligadas à construção da

identidade brasileira.

Desse modo, antes de argumentar acerca de minha proposta de dissecação para o

movimento coreográfico, julgo pertinente refletir, ainda que sucintamente, sobre a presença

da imagem do corpo no percurso histórico da arte no Brasil. Esta iniciativa tem como

objetivo, trazer o olhar do leitor para a dissecação em um ambiente artístico que prepara o

terreno para a chegada não apenas da minha proposição de dança, mas para tantas outras

proposições artísticas que, anteriormente, já apresentaram diferentes procedimentos para

dissecar o homem em movimento.

Inicio este panorama, portanto, pela arte pré-histórica no Brasil, caracterizada, dentre

outras formas, pelas pinturas rupestres, localizadas em diversas cavernas espalhadas pelo país.

As pinturas mostram representações bastante primitivas do corpo no que diz respeito à sua

anatomia. Sua ênfase, no entanto, pode muito bem explicitar a vigência de experiências

culturalmente apreendidas, dotadas de grande significado místico e histórico. São registros

longínquos de vida humana no país, evidências reveladoras de que “nossas raízes são muito

mais profundas do que o limite inicial de uma data, no tão próximo século XV” (PROENÇA,

2004, p. 189).

Fig. 32 – Arte rupestre no Brasil

A dissecação do homem pré-histórico brasileiro na representação de suas atividades cotidianas

Fonte: http://planeta.coppe.ufrj.br/midiamultimidia/2006/903.jpg

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61

Destacam-se também como exemplificação das dissecações artísticas brasileiras os

objetos indígenas, incorporadores da natureza como elemento participativo na construção

anátomo-cultural humana. A arte plumária indígena pode ser considerada um exemplo desta

dissecação, assim como os demais objetos por eles produzidos, cuja ênfase dada à natureza,

revela uma tendência do homem em reconhecer-se e pretender-se parte desta natureza. Os

índios criam esses objetos a partir de materiais disponibilizados pela natureza, incorporando-

os, a seguir, como implementos complementares do corpo, no visual de sua própria produção.

Fig. 33 – Arte plumária indígena brasileira

O homem transforma a natureza, dissecando sua cultura na produção de objetos de adorno corporal

Fonte: http://overmundo.com.br/overblog/img_1156991445/aldeia_meruri.jpg

Caminhando pelo percurso histórico da arte brasileira, observa-se, no Barroco, a

influência da religião. As representações do corpo se voltam para a figura de santos e para a

arquitetura. A dissecação artística do corpo caracteriza-se, principalmente, pelo seu sentido

mágico-religioso, como na imagem de Aleijadinho.

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62

Fig. 34 – Caminho para o Calvário, de Aleijadinho (1799)

A divindade da figura religiosa, humanizada pela expressividade do corpo dissecado na escultura

Fonte: http://usuarios.lycos.es/evergara2/Aleijadinho/Caminho_para_o_Calvario.jpg

O início do século XIX no Brasil é marcado pela chegada da família real

portuguesa, que fugia do conflito entre a França napoleônica e a Inglaterra.

[...]. A partir de então, o Brasil recebe forte influência da cultura européia,

que começa a assimilar e imitar. Essa tendência europeizante da cultura da

colônia se afirma ainda mais com a chegada da Missão Artística Francesa,

oito anos depois da vinda da família real (PROENÇA, 2004, p. 210).

Os reflexos da Missão Artística Francesa podem ser verificados em obras de grande

apuro técnico, desencadeando uma fase de intensa produção acadêmica, em que a dissecação

do corpo se mostra fiel e detalhista às formas humanas, procurando também valorizar os

aspectos expressivos desta humanidade, como na pintura de Vítor Meireles.

Fig. 35 – Moema, de Vítor Meireles (1866)

O apuro das formas humanas na pintura brasileira do século XIX

Fonte: htt://www.masp.uol.com.br/servicoedicativo/assessoriaaoprofessor-ago06.jpg

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63

É no final do século XIX, porém, que os pintores nacionais começam a criar obras

com a perspectiva de diminuir a rigidez acadêmica imposta pela europeização. Antônio

Parreiras é um dos artistas que empresta às suas pinturas uma certa imprecisão nas linhas,

instituindo uma dissecação de corpo com contornos diferenciados.

Fig. 36 – Iracema, de Antônio Parreiras (1909)

A presença de uma sutil imprecisão nas linhas e formas do corpo humano

Fonte: http://www.eco.ufrj.br/pretexto/imagens/Antonio%20Parreiras.jpg

Deste período em diante a dissecação do corpo na arte brasileira começou a tornar-se

mais complexa e abstrata, tendo, inclusive, influências impressionistas na representação de

figuras humanas, como se pode perceber na pintura de Eliseu Visconti.

Fig. 37 – Moça no Trigal, de Eliseu Visconti (1918)

O impressionismo da arte brasileira no olhar sobre o corpo

Fonte: http://www.arteeeventos.com.br/paginas/leilao//pictures/084_8.jpg

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64

Mas é com a Semana de Arte Moderna, em 1922, que as proposições artísticas de

representação de corpo se ampliam, redimensionando as possibilidades de dissecação por

meio da abstração corporal. Observa-se, neste período, uma evidente investigação de formas

geométricas na anatomia humana, desencadeando imagens de um corpo estranho, uma

abstração com ênfase em determinados aspectos morfológicos deformados, como em Di

Cavalcanti, por exemplo, que ressalta os lábios e as cores dos cabelos e peles.

Fig. 38 – Samba, de Di Cavalcanti (1928)

A dissecação do corpo em abstrações do cotidiano na cultura brasileira

Fonte: http://www.dicavalcanti.com.br/anos20/obras_20/samba43.htm

Um outro aspecto deste período é a noção de antropofagia como estratégia imperativa

na composição plástica das obras de arte. Segundo Proença (2004, p. 236),

a teoria antropofágica propunha que artistas brasileiros conhecessem os

movimentos estéticos modernos europeus, mas criassem uma arte com

feição brasileira. De acordo com essa proposta, para ser artista moderno no

Brasil não bastava seguir as tendências européias, era preciso criar algo

enraizado na cultura do país.

Nesta perspectiva é possível destacar como exemplo a artista Tarsila do Amaral, cujas

pinturas revelam, por suas características plásticas, uma forte presença da abstração do corpo

humano em uma dissecação que propõe a reformulações morfológicas do corpo por meio do

olhar para a cultura e as sensações e impressões de uma intensa brasilidade, como em Abaporu.

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65

Fig. 39 – Abaporu, de Tarsila do Amaral (1928)

O corpo dissecado pelo princípio cultural da antropofagia

Fonte: http://www.tarsiladoamaral.com.br/index_frame.htm

Como se observa, representar o homem e seus sentimentos não era suficiente apenas

pelos recursos de expressão facial. Era preciso transpor o nível dessa expressão e evidenciar

os sentimentos na própria morfologia corporal, dando organicidade aos aspectos culturais.

Exemplos significativos podem ser observados nas propostas de Cândido Portinari e do

paraense Ismael Nery.

Fig. 40 – Retirantes, de Candido Portinari (1944)

A expressividade do corpo no contexto cultural brasileiro

Fonte: http://www.historianet.com.br/imagens/balaiada_grande.jpg

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Fig. 41 – Figura, de Ismael Nery (1927)

A abstração da figura humana com detalhes anatômicos e expressivos

Fonte: http://www.macvirtua.com.br/mac/templates/exposicoes/acervo_am10.jpg

Verifico, portanto, que a arte no Brasil acompanhou as tendências da arte européia,

principalmente após a colonização do país. A partir do século XX, porém, é possível verificar

uma intensa busca pela singularidade por meio do olhar sobre a cultura brasileira, o que se

reflete nos modos como a dissecação do corpo na produção artística do país pode ser

compreendida. O que se destaca, em relação à dissecação observada nas obras oriundas da

Europa, minha primeira constatação, é a predominância de uma preocupação com o universo

cultural do homem.

Não que no ocidente europeu não tenha existido tal preocupação, até porque seria

impossível desvincular de um corpo as abrangências culturais e anátomo-fisiológicas, como é

possível verificar nos exemplos aqui relacionados. Tais exemplos demonstram que quando

um artista plástico observa um corpo para compor sua obra, ele considera também os aspectos

culturais deste corpo na sua criação, seja ele de onde for, esteja ele onde estiver. O que

destaco na arte brasileira, porém, é a facilidade com que suas abordagens me permitem

evidenciar esta dimensão cultural de corpo.

Enquanto a arte européia, e mais especificamente a arte renascentista, me possibilita

observar com riqueza de detalhes a predominância das ciências biológicas na criação artística,

a arte brasileira me permite enxergar claramente a preponderância daquilo que não é biológico

no corpo, como referência criativa para pinturas e esculturas.

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É na conjunção desses dois olhares que construo a idéia de corpo dissecado em arte,

acreditando no corpo bio-psico-social como sujeito que disseca e como o próprio recurso para

a dissecação.

1.4 A DISSECAÇÃO POR INTERMÉDIO DO MOVIMENTO NA CENA DA DANÇA: a

proposição de Avesso

De acordo com os pressupostos estéticos da dança pós-moderna, os quais serão

detalhados no capítulo subseqüente a este, as possibilidades expressivas do corpo tornam-se

mais vastas, ampliando os horizontes criativos do coreógrafo, bem como a propriedade e

autonomia do intérprete sobre o movimento dançado. É nesse sentido que surge a proposta do

corpo dissecado para a cena da dança.

Entendendo dissecação como o ato de decompor uma dada estrutura a fim de

compreendê-la melhor (HOUAISS, 2005), posso admitir que, ao realizar uma representação

coreográfica da anatomia e fisiologia humanas, considerando para isto características não

apenas formais, mas principalmente de tempo, espaço e fluxo, dentre outras, proponho uma

outra maneira de compreensão das estruturas corpóreas. É possível admitir, então, por um

lado, que o corpo dissecado neste trabalho é a revelação artística de sua constituição interna e,

portanto, oculta a olho nu.

Na forma de dissecação implementada nesta pesquisa, contudo, há que se considerar

algumas particularidades em relação às abordagens vigentes nas artes plásticas e, mais

especificamente, no que tange à abordagem de Michelangelo. A linguagem artística com a

qual lido, isto é, a dança, pode propiciar algo que para a linguagem da pintura não é concreto

ou viável: o movimento propriamente dito.

As representações anatômicas que Michelangelo fez na Capela Sistina, por mais que

sugiram ou que causem a sensação de movimento, são formas estáticas de revelação das

estruturas corpóreas, ao contrário da representação que pretendo desenvolver, cujo impulso

maior e, por conseqüência, diferencial, é o movimento corporal. Ao concluir tal observação,

não estou me referindo a Michelangelo com desdém, pois o valor e a excelência da obra desse

artista são de fato incontestáveis. O que julgo interessante, entretanto, é justamente a

possibilidade que a dança propicia, permitindo alcançar níveis diferenciados de abstração,

permeados por maneiras peculiares de dissecação que serão executadas pelo próprio corpo. A

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obra aqui desenvolvida está centrada nesse corpo em movimento e não em uma pintura que a

represente.

Além disto, é necessário levar em conta outro fator. A investigação anatômica dos

artistas renascentistas era pautada no corpo humano morto, parado. Minha proposta

sustenta-se em formas de visualização do corpo vivo e, portanto, em movimento, o que de

fato corrobora com a forma de representação que pretendo dar a esse corpo, ou seja, a

dança.

Uma vez que, para a pesquisa gestual da coreografia, são utilizadas tecnologias

médicas geradoras de imagens em movimento, posso considerar que a pesquisa para meu

modo artístico de dissecação, ao contrário dos artistas da Renascença, conta com opções

diversificadas de contato com as estruturas internas do corpo e, por conseguinte, opções

diferenciadas de encenação, conforme as propriedades caracterizadoras da dança cênica na

pós-modernidade.

Sob outro ponto de vista, devo argumentar ainda acerca do entendimento de corpo que

esta tese propõe, considerando-o não somente matéria biológica, mas construto cultural,

conforme será explicado no capítulo dois. É válido, portanto, ressaltar desde já que a

dissecação que pretendo implementar prima justamente por um sentido amplo de corpo,

levando em consideração sua matéria orgânica e, também, suas informações menos palpáveis,

isto é, suas emoções, seus humores e inquietações, tornados orgânicos por meio do

comportamento, o que será esclarecido no capítulo dois.

Acredito que falar do homem por intermédio da arte requer muito mais que observar

unicamente suas estruturas anatômicas. Antes ainda, para a arte, as estruturas anatômicas do

ser humano são vistas além do seu aspecto formal.

Tudo isso é levado em consideração nesta pesquisa. A partir do processo criativo que é

objeto de investigação desta tese, lanço a idéia de que fazer dança é dissecar o corpo. Essa

dissecação, contudo, é algo que enfatiza não somente a matéria corpo, mas também todos os

seus elementos imateriais.

Se para a ciência, dissecar é separar as estruturas a fim de estudá-las em detalhes,

para a arte e, mais especificamente, para a dança que acredito fazer, dissecar é um

procedimento criativo que requer sentir-se, perceber-se. A dissecação artística vigente em

Avesso é formal e repleta de códigos ocultos, como a Capela Sistina, mas também é

subjetiva como O Grito, e onírica como A Cidade das Gavetas, além de refletir

morfologicamente a cultura, como Abaporu. Ao passo que, nesta pesquisa, o corpo é tão

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biológico quanto cultural, em Avesso, e na arte de um modo geral, tudo o que é humano é

passível de dissecação.

Dissecar o corpo em arte é emprestar alguns instantes da vida ao exercício da

observação de si mesmo e também do outro, a fim de desenvolver, a partir das próprias

características humanas, o material que, por meio do processo criativo, se fará obra de arte.

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70

2 O CORPO IMANENTE: poéticas contemporâneas de dança como perspectiva para as

reflexões sobre o espetáculo Avesso

Para compreender e justificar a dissecação do corpo que proponho implementar por

intermédio da dança, é fundamental adentrar no campo da estética e, para tanto, atinar para as

concepções de corpo que o pensamento artístico contemporâneo agrega em seu fazer. Nessa

perspectiva, considero os pressupostos estéticos da dança na pós-modernidade18

, como a ausência

de códigos de movimentos pré-estabelecidos e a construção do corpo para a cena, além das

relações entre forma e conteúdo e das proposições teóricas das noções contemporâneas de corpo.

A partir deste interesse norteador, o presente capítulo não tem como objetivo dar conta

de todas as teorias que pensam o corpo no contexto contemporâneo, mas promover um

cruzamento entre algumas formas similares de entendê-lo nas diferentes áreas do

conhecimento, a fim de desenvolver a noção de corpo imanente para a dança.

Por imanente, entende-se algo “que está inseparavelmente contido ou implicado na

natureza de um ser, ou de um conjunto de seres, de uma experiência ou de um conceito”

(HOUAISS, 2005). Trata-se, portanto, de uma forma de dança centrada na pessoalidade e

subjetividade do intérprete, isto é, suas singularidades, conforme sugere Deleuze (s/d.) em seu

plano de imanências19

.

Procuro, aqui, refletir acerca de como os conceitos em questão, de acordo com os

preceitos estéticos da pós-modernidade em dança, podem ser aplicados ou mesmo

evidenciados nessa linguagem. São priorizados nesta reflexão, diálogos com os recentes

estudos de corpo e dança e suas respectivas teorias de base, articulando, conseqüentemente,

considerações do campo da filosofia, da antropologia, dos estudos culturais, da

fenomenologia da percepção e da teoria dos sistemas.

Antes dessas ponderações, entretanto, concentro meus esforços, mais especificamente,

sobre a esfera da estética pós-moderna de dança, verificando suas características para, a

posteriori, tecer relações com a abordagem conceitual de corpo aqui vigente. Tal iniciativa

tem o intuito de fundamentar uma justificativa para a implementação do conceito de corpo

imanente proposto nesta pesquisa. Além disto, verifico como as noções contemporâneas de

18

Vale ressaltar que a pós-modernidade nesta tese não é referência apenas temporal, mas, sobretudo, estética. A

dança, por sua vez, é vista dentro deste universo. Ao reportar-me ao termo dança pós-moderna ou dança

contemporânea, localizo a dança não somente no tempo e no espaço, mas principalmente num ambiente de idéias que

podem ser compreendidas como próprias da contemporaneidade artística no seu sentido filosófico e estilístico. 19

Adiante tecerei considerações sobre o pensamento de Deleuze e o paralelo com minha idéia de corpo

imanente.

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71

corpo repercutem nos processos criativos em dança e, de modo particular, no processo do

espetáculo Avesso, objeto de investigação desta tese.

2.1 AVESSO E OS PRESSUPOSTOS ESTÉTICOS DA PÓS-MODENIDADE

COREOGRÁFICA

2.1.1 Pós-modernidade em dança

A dança pode ser considerada uma linguagem cênica produtora de espaços abertos ao

inusitado. Não precisa ser compreendida como técnica codificada, mas pode ser vista como

processo que permite descobrir e elaborar maneiras diversificadas de desenvolver vocabulário

corporal e expressão por meio do movimento.

Esta forma de entender a dança deve-se, em grande parte, às idéias e teorias que

permeiam o pensamento sobre sua condição na contemporaneidade. Essa condição não diz

respeito unicamente ao sentido temporal, mas refere-se, principalmente, ao sentido estético da

dança enquanto linguagem artística.

Desse modo, vale ressaltar os estudos sobre a chamada dança pós-moderna. Antes,

porém, faz-se necessário tecer comentários acerca da compreensão que esta tese possui sobre

o que significa ser pós-moderno em arte. Reconheço que uma tarefa dessa natureza seja, de

fato, bastante árdua, no entanto, a intenção aqui não é fazer um estudo detalhado do

movimento pós-moderno, mas sim salientar suas principais características a fim de introduzir

as reflexões sobre as mesmas no âmbito da dança.

Silva (2005) realiza um estudo aprofundado sobre a pós-modernidade no contexto da

dança, porém sem deixar de percorrer de modo abrangente e, ao mesmo tempo, preciso, o

referido movimento. A autora explica:

O movimento pós-moderno nas artes, a começar pelo seu nome, já indica uma

série de questionamentos de peso. [...]. Independentemente de tratar-se ou não

de uma quebra de conceitos, valores e técnicas como é habitual nas revoluções

artísticas, o pós-modernismo estabelece-se não apenas no domínio estético, mas

instala suas influências também nas áreas intelectual, acadêmica, cultural e

especialmente na esfera do comportamento e práticas cotidianas. Esse painel

finda por criar toda uma estrutura de pensamento, como uma orientação

geral à qualidade de vida contemporânea (SILVA, 2005, p. 59-60).

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72

Essa estrutura de pensamento a qual Silva se reporta é manifesta por intermédio de

características como a multiplicidade, a fragmentação de imagens, a utilização de referências

diversas, a experimentação, dentre outras.

Harvey é um dos escritores que estuda a pós-modernidade dentre os quais a autora se

vale em suas reflexões.

O pós-moderno privilegia a heterogeneidade e a diferença como forças

libertadoras na redefinição do discurso cultural. A fragmentação, a

indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou

(para usar um termo favorito) ‘totalizantes’, são o marco do pensamento

pós-moderno (HARVEY apud SILVA, 2005, p. 66).

Há, portanto, na produção de arte pós-moderna, uma tendência ao caráter cultural

fragmentário e plural, além da predisposição à interdisciplinaridade e ao diálogo com as

diversas linguagens artísticas.

Desta forma, Silva (2005) salienta como conclusão a idéia de que o pensamento

vigente no pós-modernismo implica no fazer artístico, provocando um movimento único,

porém não uno, mas qualificado pela multiplicidade evidente nas instâncias social, cultural,

política e científica da humanidade.

Dentre as qualidades mais significativas do pós-modernismo na vida e, especialmente,

nas artes, Silva (2005, p. 76-77) aponta:

A pluralidade de significados, de discursos, de processos e de produtos; a

invenção como reestruturação; a referência ao passado; a presença da

paródia e da ironia; a não negação de correntes artísticas anteriores; as

mudanças nas configurações de tempo e espaço; a velocidade de criação

artística e tecnológica de informação; a fragmentação, multiplicação e

descontinuidade da imagem; a interdisciplinaridade entre as artes e além das

artes; o processo artístico visível no produto; a rejeição da narrativa linear; a

abolição entre as fronteiras da vida e da arte; a abolição entre as fronteiras da

cultura erudita e cultura popular; a nova estrutura de pensamento, sentimento

e comportamento artístico e uma ampla liberdade de criação.

No caso da dança pós-moderna, acredito que ela possua como características todas as

qualidades levantadas por Silva em seu estudo, contudo, penso que, dentre essas qualidades, a

pluralidade seja, fundamentalmente, a mais evidente. Esta pluralidade, de que fala Silva

(2005), remete-se à idéia de multiplicidade, uma vez que, no meu entendimento, os termos

possuem como premissa, noções de diversidade e variedade.

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73

Nesse sentido, Calvino (1990), em seu estudo, refere-se a algumas obras literárias para

explicar a multiplicidade, desejando que as obras do próximo milênio tenham como vetor um

grande número de possibilidades, uma grande variedade de pensamentos e idéias que, ao

serem constatadas pelo leitor, propiciem a multiplicação de si mesmas. Para Calvino (1990, p.

131): “hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjetural,

multíplice”. Não havendo, portanto, unidade na totalidade das coisas, a multiplicidade passa a

ser um princípio de vida, assim como o é para a literatura investigada por Calvino. Esse

princípio literário, todavia, pode ser utilizado como referência para as diversas linguagens

artísticas, tornando a multiplicidade, assim, viva nas diversas produções.

De qualquer maneira, é importante entender que a multiplicidade, ou pluralidade, na

dança é o atributo em meio ao qual co-habitam múltiplas idéias e formas de lidar com o

movimento e a cena onde são construídas variadas poéticas. Essas poéticas, por sua vez,

servem-se de uma gama diversificada de técnicas corporais, ora seguindo seus padrões

formais, ora transfigurando-os e configurando outros padrões, entretanto, dedicando-se,

primordialmente, à pesquisa do movimento como motivação criadora.

Banes (1992), analisando a trajetória da dança pós-moderna americana, explica que o

termo pós-moderno em dança pode ser compreendido de diferentes maneiras, de acordo com

os períodos históricos de sua existência. A autora afirma:

O significado do termo ‘pós-moderno’ em dança é parcialmente histórico e

descritivo [...]. Começou como um termo coreográfico para chamar atenção

para uma nova geração de artistas da dança. Esses artistas [...] não eram

necessariamente semelhantes quanto ao estilo. Seus métodos criativos

variavam [...]. No final dos anos sessenta e início dos anos setenta, os

membros dessa geração de artistas aliaram-se à galeria da arte mundial,

criando um estilo mais unificado que eu denomino de ‘dança pós-moderna

analítica’. [...]. Na dança pós-moderna, o estilo analítico prevaleceu e

simultaneamente um novo grupo de coreógrafos, trabalhando numa veia

mais teatral, criou o que denomino de ‘dança pós-moderna metafórica’. [...].

Nos anos oitenta e noventa, uma segunda geração daquilo que poderia

realmente ser chamado de coreógrafos pós-modernos – muitos deles alunos

e seguidores da primeira geração – assim como várias outras formas de

movimentos pós-modernos estrangeiros, finalmente se junta à primeira

geração. [...]. Em um certo sentido, o movimento pós-moderno em dança,

começou realmente como pós-moderno, passou por um interlúdio

modernista, e agora embarca de novo em um segundo projeto pós-moderno

(BANES, 1992, p. 20-22).

De um modo geral, a partir das considerações de Banes, observa-se que a dança pós-

moderna, independente do período existencial, apresenta, como característica determinante, a

diversidade estilística. Tal constatação implica a necessidade de olhar essa dança por um

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prisma eminentemente estético, no qual as imagens verificadas são completamente díspares,

constituindo múltiplas configurações coexistentes.

Acredito ser esse o predicado da dança no momento histórico atual. Banes (1992)

realiza sua análise até os anos noventa e aponta uma sugestão para o futuro, a qual chama de

segundo projeto pós-moderno. Enquanto pesquisadora da dança, tomo a liberdade de, a partir

do exame histórico da autora, refletir sobre esse novo projeto, isto é, a produção de dança do

novo século, admitindo como atributo primordial a convivência de múltiplas proposições,

processos e produtos entre si. Dança pós-moderna propriamente dita, dança pós-moderna

analítica ou dança pós-moderna metafórica são denominações que, designadas por Banes,

refletem etapas da construção de uma estética em dança. Hoje, presentes de maneira

simultânea e evidenciadas nas diversas produções coreográficas, essas etapas constituem

algumas das poéticas contemporâneas de dança.

2.1.2 Princípios da dança pós-moderna

A dança pós-moderna nasceu nos Estados Unidos, entretanto, não permaneceu

estagnada nesta origem. Ela desenvolveu-se abrangendo diversas características culturais bem

como outras manifestações estéticas de dança oriundas de diversos lugares, como a Europa, a

Índia e até mesmo a Ásia, englobando diferentes momentos históricos dessas regiões em suas

pesquisas.

Assim, a dança pós-moderna reporta-se, na atualidade, não unicamente ao movimento

decorrente da insatisfação com a dança moderna americana, conforme os registros históricos

de dança apontam acerca de seu surgimento20

. Ao contrário disso, ela absorve a categoria

moderna de dança e tantas outras existentes. Ela pode carregar ainda outras linguagens

corporais, ou não, não ligadas propriamente à dança ou às artes cênicas.

A dança pós-moderna, à qual me refiro, pode ainda ser o processo de construção (ou

investigação) de uma linguagem corporal diferenciada e, nesse sentido, é exatamente isto que

a presente pesquisa pretende ser.

Silva constata, dentro da pluralidade vigente na dança pós-moderna, a presença de

qualidades como a fragmentação, a justaposição de imagens, a repetição, a utilização de

20

Segundo Silva (2005) a dança pós-moderna surge graças à exaustão de criadores e espectadores, cansados das

dramatizações excessivas e conteúdos psicológicos presentes na dança moderna.

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75

diferentes referências, a possibilidade de uso de narrativa não linear e a ampla liberdade de

criação e uso de materiais diversificados. A autora explica que a dança pós-moderna “poderia

ser classificada como aquela que aceita a estética da liberdade” (SILVA, 2005, p. 142), em

que se evidencia uma permissividade ao criador, propiciando-o maior autonomia. É como se a

pluralidade fosse apenas a porta de entrada para esse universo de proposições, independência

e democracia, onde a pesquisa do movimento interessa-se não mais por superações técnicas,

mas por superações de inventividade, por inovação e desligamento de formas e fórmulas pré-

concebidas.

A liberdade gerada pela multiplicidade faz com que a dança contemple uma outra

maneira de lidar com o movimento, não o considerando mais como uma forma corporal a ser

aprendida e executada por intermédio da imitação. Há, nessa perspectiva, uma organização

diferenciada da dança que começa pela investigação de um movimento absolutamente

ajustado ao conteúdo que a obra artística deseja abordar.

Seguramente, nenhuma outra corrente de dança, antes, lidou tanto com

experimentação e pesquisa como a de nossos dias. Pelo contrário, as

correntes anteriores se formulam através de um vocabulário de movimentos

restrito, de fórmulas coreográficas pré-estabelecidas e uma certa falta de

liberdade criativa (SILVA, 2005, p. 142).

Os trabalhos que seguem essas correntes referidas por Silva devem sempre estar

adequados a padrões específicos de movimento previstos pelas suas respectivas técnicas. Na

dança pós-moderna, por outro lado, a formulação coreográfica é dada de modo diferente,

prevalecendo a possibilidade do uso de diversas técnicas e opções de movimento.

Se a dança moderna, por exemplo, trazia de bandeja uma série de gestos e

posturas expressivas e facilmente identificáveis para a leitura do espectador,

a dança pós-moderna, especialmente agora, é mais metafórica pois isola os

elementos do gesto e do corpo em unidades menores de percepção. Estas

unidades, emolduradas como o objeto central de interesse e abstração através

da repetição, do tempo transformado e da permissão para a multiplicidade,

caracteriza uma corporalidade única (SILVA, 2005, p. 138).

A argumentação de Silva, entretanto, abrange, além do aspecto da liberdade de criação

de movimentos, questões sobre o corpo na dança pós-moderna. Essas questões podem ser

classificadas de duas maneiras: a construção do corpo nos processos criativos e a relação entre

o corpo e as pesquisas de movimentos nesses processos, considerando-o, assim, forma e

conteúdo da obra.

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76

O assunto relacionado à temática do corpo na dança, contudo, será abordado mais

profundamente adiante. Por enquanto, interessa-me argumentar acerca de uma característica

não apenas marcante na produção da dança pós-moderna em geral, mas principalmente

motivadora para meu processo de criação artística: a possibilidade de utilização, nas pesquisas

coreográficas, de movimentos não codificados pelas técnicas de dança já existentes.

É possível apontar o coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, em destaque na

imagem a seguir, como o precursor da chamada dança pós-moderna. Sua proposta de dança,

inaugurada em meados da década de 40, tinha como pretensão desvencilhar-se das ideologias

e formalidades da dança moderna, escola a qual pertencia, integrando a companhia de Martha

Graham (1894-1991)21

.

Fig. 42 – Merce Cunningham

O artista investiga em seu corpo diferentes motivos para o movimento

Fonte: http://www.danceheritage.org/images/cunningham.jpg

Silva (2005) salienta que dentre os questionamentos de Cunningham podem ser

destacados a narrativa única e linear, o uso convencional do palco e as formas lineares dos

processos criativos. A partir desses questionamentos Cunningham propunha uma recusa aos

padrões estéticos das escolas de dança anteriores, como o balé e a dança moderna.

21

Dançarina norte-americana que foi um ícone da dança moderna. Desenvolveu uma técnica centrada,

principalmente, nos movimentos do torso, de onde provinha sua dança e na força do gesto partindo da força da

emoção.

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77

No que se refere ao uso do palco, é interessante observar que Cunningham não aceita

estruturas convencionais fundadas na perspectiva renascentista, isto é, aquela em que a ação

parte de um ponto central, como nos balés, por exemplo. Langendonck (2004, p. 126), ao

estudar a obra e as proposições estéticas de Cunningham, verifica que, em certa ocasião, o

coreógrafo “apresentou uma dança com o espaço descentralizado, atacando a perspectiva de

palco que vinha sendo usada tradicionalmente na apresentação de danças desde o século

XVIII”. Suas concepções de utilização do espaço cênico perduram até hoje nas obras de sua

companhia de dança, como ilustra a seguinte imagem.

Fig. 43 – Merce Cunningham Dance Company 1

Dançarinos da companhia de Cunnigham, a partir da proposta estética e filosófica do

coreógrafo, subvertem o espaço, reconfigurando as estruturas convencionais

de palco para a cena da dança

Fonte: http://www.flickr.com/photos/mcdc/223169349/in/photostream/

A autora explica ainda que “Cunningham defende uma dança que se baseia na

movimentação do homem comum. [...]. O coreógrafo tenta colocar em suas coreografias a

movimentação das pessoas comuns nos espaços comuns” (LANGENDONCK, 2004, p. 40),

não demonstrando, dessa maneira, o intuito de sustentar-se nos padrões corporais das técnicas

de dança formais.

Desnudar a dança de todos os artifícios estranhos a ela, negar a

dramaticidade da dança moderna, a artificialidade do balé clássico,

desenhando-a conforme seus componentes essenciais, foram estratégias

imperativas na origem do pós-modernismo (SILVA, 2005, p. 106).

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78

Fig. 44 – Merce Cunningham Dance Company 2

A movimentação comum abordada na cena da dança

Fonte: http://www.flickr.com/photos/mcdc/223169575/

Essas estratégias, elucidadas também pelo recurso da imagem acima, fizeram a dança

embarcar em um projeto em que “os conceitos-chave a serem seguidos seriam a liberdade

criativa e uma intensa e extensa experimentação” (SILVA, 2005, p. 109), aspectos esses que

passaram a compor, portanto, sua estética na contemporaneidade, constituindo fatores

elementares para suas encenações.

Filosoficamente, porém, pode-se dizer que estes princípios teóricos da dança pós-

moderna tenham nascido muito antes de Cunningham, uma vez que a chamada dança

moderna já sinalizava, desde seus primórdios, uma busca pela liberdade de movimento.

Isadora Duncan (1878-1927) pode ser considerada a precursora desses ideais. Para ela,

a dança deveria ser “livre de formas preestabelecidas, livre de configurações criadas

artificialmente” (AZEVEDO, 2004, p. 62). Talvez Duncan, que iniciou seu trabalho nos

Estados Unidos, merecesse ser considerada a primeira pensadora da dança pós-moderna,

ainda que inserida cronologicamente na modernidade coreográfica. Sua proposta amplamente

experimental, evidenciada nesta tese com o auxílio da imagem a seguir, privilegiava sua

história de vida pessoal. Em suas aulas eram valorizadas muito mais as questões filosóficas de

sua estética do que fundamentos técnicos ou metodológicos.

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Fig. 45 – Isadora Duncan

A dança livre de preceitos técnicos

Fonte: http://www.duncandancers.com/img/isadora04.jpg

Em se tratando dos coreógrafos modernos, pode-se dizer que esta liberdade de expressão

corporal, evidenciada hoje como um dos princípios elementares da dança pós-moderna, foi

perdida em decorrência de uma excessiva preocupação com a sistematização técnica e

metodológica dos movimentos e do próprio processo de criação dos mesmos. Os sucessores de

Duncan continuaram priorizando os mesmos ideais filosóficos por ela lançados, entretanto, a

prática coreográfica organizou-se de tal forma que o fazer não mais acompanhou o discurso.

A dança moderna americana que, esteticamente, já poderia ter como características o

que se evidencia hoje na dança pós-moderna, caminhou para uma espécie de engessamento a

partir da instituição de códigos de movimento e técnicas sustentadas nos modelos cópia-

repetição. Dentre essas técnicas podem ser citadas as de Ruth St. Denis (1878?-1968)22

e Ted

Shawn (1891-1972)23

, Martha Graham (1894-1991), Doris Humphrey (1895-1958)24

e Jose

22

Buscava na dança um sentido religioso. Para tanto, aproximou-se das danças orientais, principalmente as egípcias e

hindus. Acreditava que o corpo deveria se envolver com a alma no ato da dança e desenvolveu um vocabulário de

movimentos centrando, principalmente, tronco, ombros e braços. Foi professora de Martha Graham. 23

Cultivava na dança valores como o dinamismo e a progressão da intensidade do movimento, além de pontuar as

atividades masculinas básicas em suas propostas. Trabalhava também com a linguagem do jazz dance e enfatizava

em sua dança a expressão das emoções. Juntamente com Ruth Saint Denis fundou a Denishawn School. 24

Estudava os gestos em suas dominantes prática e religiosa para a construção do movimento de dança.

Enfatizou diversos aspectos em sua sistematização técnica, principalmente as formas, ritmos e dinâmicas do

corpo em quedas e recuperações, sempre associando isto a expressão das emoções.

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80

Limón (1908-1972)25

. As imagens a seguir revelam os padrões de movimento característicos

das técnicas de cada um desses coreógrafos.

Fig. 46 – Ruth Saint Denis

Utilização de elementos orientais religiosos na construção de princípios técnicos de dança moderna

Fonte: http://recollectionbooks.com/bleed/images/BB/osainyn001p1.jpg

Fig. 47 – Ted Shawn

Dinamismo e emoção na concepção da técnica do movimento

Fonte: http://www.danceheritage.org/images/shawn.jpg

25

Estudou dança com Doris Humphrey, consolidando os princípios desta coreógrafa e acrescentando a eles os

característicos balanços de sua técnica, além de uma forte expressão teatral.

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81

Fig. 48 – Martha Graham

O movimento que parte da emoção irradiando do centro às extremidades do corpo

Fonte: http://myoldmac.net/Sellpicts/think-picts/Think-Martha-Graham-NoFold.jpg

Fig. 49 – Doris Humphrey

Enfatizando as formas do corpo no trânsito entre quedas e recuperações

Fonte: http://cache.eb.com/eb/image?id=10878&rendTypeId=4

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82

Fig. 50 – Jose Limón

Associando expressividade teatral e soltura das articulações do corpo aos princípios de Humphrey

Fonte: http://www.danceheritage.org/images/limon.jpg

Paralelamente, a Europa via nascer um movimento de libertação da dança, instituído a

partir do expressionismo alemão. Nomes como Mary Wigman (1886-1973)26

e, um pouco

mais tarde, Kurt Jooss (1901-1979)27

, impulsionados, sobretudo, pelo desejo de não fazer da

dança um artifício de beleza, mas de discussão e revelação dos problemas políticos e sociais

da época, difundiam naquele continente uma nova estética de dança. Fundamentada na

“rejeição a formas e conteúdos da arte representativa burguesa” (SIQUEIRA, 2006, p. 100) e

muito mais democrática do que a dança moderna americana, instituía-se a chamada dança

expressionista que, por sua vez, originou o que hoje se conhece como dança-teatro. As

coreografias de Wigman e Joss, ilustradas a seguir, configuram-se como marcos da estética da

dança expressionista.

26

Objetivava expressar a personalidade do artista adotando o corpo com instrumento para este fim. Foi aluna de

Laban e seu trabalho caracterizou-se, especialmente, pelo contato intenso com o chão, além de uma marcante

expressividade dramática, promovendo a fusão entre forma e expressão. Para ela o movimento deveria partir do

tronco para os membros e suas extremidades. Trabalhava com o improviso no intuito de consolidar novas formas

para os movimentos. 27

Artista alemão de formação tripla (música, teatro e dança). Promoveu intensa associação entre as linguagens

da dança e do teatro. Acreditava nos mesmos valores que Mary Wigman e os artistas da dança moderna

americana, valorizando as emoções como formatadoras do movimento. Também foi aluno de Laban e ficou

famoso por sua obra intitulada A Mesa Verde.

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83

Fig. 51 – Mary Wigman

Expressão e forma geradas pela força do centro do corpo

Fonte: http://www.ethesis.net/danskunst/danskunst_afb/danskunst_afb_66.jpg

Fig. 52 – A Mesa Verde, de Kurt Joss

Teatro e dança em associação na expressão do movimento

Fonte: http://www.ethesis.net/danskunst/danskunst_afb/danskunst_afb_68.jpg

Apesar de sua busca por liberdade de conteúdos e formas, esta dança apresentava

alguns princípios técnicos semelhantes aos da dança moderna nascida nos Estados Unidos.

Wigman, por exemplo, propunha trabalhar prioritariamente o torso e a bacia, fazendo o

movimento partir do tronco, como na dança moderna americana.

Por outro lado, é inegável que os europeus valorizaram muito mais a expressividade

como elemento gerador do movimento do que os americanos, aparentemente mais

preocupados com a formatação técnica. De certa forma, pode-se entender que a dança

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84

expressionista esteve muito mais próxima do que hoje se entende esteticamente como dança

pós-moderna do que a dança moderna norte americana.

A grande personalidade nesta história da dança européia, porém, é o húngaro Rudolph

Von Laban (1979-1958), que desenvolveu um minucioso método de notação coreográfica e

uma profunda investigação do uso do corpo no espaço, formando coreógrafos como os já

mencionados Wigman e Joss e contribuindo sobremaneira com a formatação das técnicas de

dança moderna no mundo todo. Uma parcela da codificação de Laban para a análise e registro

do movimento pode ser evidenciada na imagem a seguir.

Fig. 53 – Rudolph Von Laban

Corpo e espaço: motivadores das proposições de Laban para o estudo do movimento

Fonte: http://www.tanzarchiv-leipzig.de/files/Laban_Vortrag.jpg

Segundo Mommensohn (2006, p. 15), “Laban aparece como o precursor do

pensamento de refletir sobre a dança, sistematizando um método de análise do movimento”.

Suas idéias revolucionaram as metodologias de composição em dança, abrangendo o

movimento do cotidiano e valorizando a individualidade do dançarino em detrimento do

formalismo existente no balé. As idéias de Laban vêm prestando inúmeras contribuições ao

longo dos tempos, atravessando gerações e promovendo o amadurecimento de muitas

correntes de pesquisa em dança.

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85

A matriz do que propôs Laban é originária dos princípios de François Delsarte

(1811-1871)28

e Émile Jacques-Dalcroze (1865-1950)29

, valorizando a percepção e

consciência do corpo em toda e qualquer movimentação. Apesar de toda a influência

teórica e prática de Laban e dos ideais filosóficos e estéticos de Duncan, os coreógrafos/

pensadores da dança moderna, especialmente da americana, caíram numa espécie de

armadilha em decorrência da excessiva preocupação em desvincular-se das premissas

técnicas do balé.

Talvez o grande pecado desses artistas tenha sido, antes de suas abordagens estéticas,

suas propostas metodológicas de desenvolvimento coreográfico, guiadas pela sistematização

formalizada do aprendizado do movimento dentro de determinados padrões.

Em função dessa sistematização, a dança moderna perdeu um pouco do seu espírito

libertário proposto por Duncan nos Estados Unidos e da sua natureza investigativa

disseminada por Laban na Europa, estabelecendo novas regras. Não que já não se estudasse

ou pesquisasse mais. De fato seria injusto afirmar que houve ausência de pesquisa, assim

como seria injusto contestar a contribuição desses estudiosos para a arte da dança. Acredito,

entretanto, que os caminhos percorridos, inicialmente ampliaram o universo criativo, mas, em

seguida, limitaram-no.

A dança libertou-se da “prisão” e do academicismo do balé, mas criou novas “prisões”

em vocabulários de movimentos que se tornaram tão previsíveis quanto os do balé. Novas

“fôrmas” e novos códigos, conforme demonstram as imagens à frente, foram instituídos para

o corpo dançante. Localizo esta codificação como a principal diferença entre a dança moderna

e a dança pós-moderna.

28

Francês que lançou o princípio de que a intensidade do movimento é diretamente proporcional à intensidade

da emoção. A partir de seus estudos foram edificados os princípios básicos da dança moderna, tanto daquela

surgida nos Estados Unidos quanto da européia. Dentre esses princípios destacam-se: a mobilização para o

movimento partindo do torso, a obtenção da expressão por meio da contração e do relaxamento e a possibilidade

de tradução corporal de todos os sentimentos humanos. Segundo Bourcier (2001, p. 247), “o delsartismo teve

uma influência estabelecida historicamente na dança moderna dos Estados Unidos. [...]. Atingiu também a

Alemanha. [...]. Rudolph Von Laban integrou em seu próprio sistema de ensino vários princípios delsartianos.” 29

Músico e pedagogo suíço que propôs uma abordagem rítmica para o movimento, desenvolvendo uma

pedagogia do gesto a partir da prática de solfejos corporais cada vez mais complexos. Como Delsarte, também

acreditava que o sentimento tinha a propriedade de enriquecer o movimento.

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86

Fig. 54 – Técnica de balé

Postura ereta e uso do en dehors (para fora) desde a articulação coxo-femural até os pés:

códigos de movimentos característicos da técnica de balé

Fonte: http://www.karlabrunet.com/bfotos/ballet/ballet02.htm

Fig. 55 – Técnica de dança moderna

Contração do tronco e mãos em concha: códigos de movimentos característicos da técnica

de dança moderna instituída por Martha Graham

Fonte: http://www.bejart-rudra.ch/english_web_site/modern_dance.html

Siqueira (2006, p. 102) explica que:

A dança moderna não abdicou da harmonia preconizada pelo balé clássico.

A distância entre os dois deve-se mais à recusa da dança moderna em

estabelecer um código de movimentos a ser obedecido por virtuoses da

técnica.

O que Siqueira argumenta é justamente o fato de que a dança moderna, apesar de ter

fugido dos preceitos técnicos e virtuosos do balé, acabou estabelecendo seus próprios

preceitos, os quais, de certa forma, não deixaram de assemelhar-se ao balé em termos de

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87

processo criativo. Como o balé, a dança moderna também caminhou para a formalização. A

diferença entre eles é que a dança moderna trouxe uma variedade maior de elementos no seu

vocabulário, adotando princípios instituídos por Humphrey, Graham e Limon, dentre outros.

É provável que, em virtude de uma previsibilidade de movimentos e ações para a

dança, Cunningham tenha sentido necessidade de recuperar o pensamento e os ideais lançados

por Duncan. Talvez por isso a denominação de sua dança tenha sido justamente a de pós-

moderna. Por outro lado, observa-se que mesmo Cunningham, que negou todos os princípios

das correntes de dança anteriores, caiu na “armadilha” da sistematização, apesar de não ter

deixado a técnica, no seu sentido formal, sobrepor-se ao princípio filosófico e,

principalmente, à pesquisa, experimentação e investigação do movimento por parte do

intérprete.

Assim caminha a pós-modernidade coreográfica. A partir de suas concepções é

possível idealizar movimentos tanto por meio de outros movimentos pré-existentes,

ressignificando-os ou não, quanto é possível desenvolver movimentos ainda não codificados

em dança.

Os seguidores da pós-modernidade em dança, assim como os pensadores da dança

moderna, desejam instituir padrões e vocabulários de movimento diferenciados. O que se

verifica, porém, ao contrário da dança moderna, é que este desejo, a cada montagem

coreográfica, está sempre presente. Há uma fidelidade estética aos princípios filosóficos. A

formatação de uma linguagem em dança, partindo dos princípios da pós-modernidade, dá-se

muito mais pela metodologia ou metodologias de processo criativo do que pela forma dos

movimentos. Essas metodologias, por sua vez, buscam a investigação do inusitado e não a

instituição de códigos que devam ser simplesmente repetidos.

Assim, na perspectiva de conceber movimentos não sustentados nos padrões das

técnicas formais de dança, os coreógrafos adeptos da pós-modernidade na dança vêm

buscando motivos para suas pesquisas nos mais variados tipos de situação. Nesse sentido,

qualquer razão, tema ou idéia pode ser considerada material para a composição de

movimentos. Desde a situação mais comum ao cotidiano de qualquer indivíduo até um ritual

tribal podem constituir os motivos da pesquisa que deverá compor os movimentos de uma

cena coreográfica.

Além disso, observa-se uma certa tendência a voltar a atenção da pesquisa

coreográfica para o próprio corpo e a maneira como ele se movimenta. É possível considerar

que os seguidores dessa tendência têm inspiração justamente nas idéias difundidas por

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88

Cunningham, que reinaugurou30

um pensamento acerca da dança, assim como implantou um

tratamento diferenciado para as composições coreográficas, centrando no movimento corporal

propriamente dito, suas indagações e motivações criativas.

As qualidades estruturais da dança, como por exemplo o tempo, o espaço ou

a dinâmica do movimento tornaram-se então razões mais do que suficientes

para a criação coreográfica, que por sua vez, transformou-se naquele

momento em uma moldura, uma janela por onde olhar o movimento em si

mesmo (SILVA, 2005, p. 106).

A dança pós-moderna, então, surgiu e difundiu-se com inclinação para a investigação

de formas diversificadas de mover o corpo, sendo esse o motivo primeiro das concepções

coreográficas.

Siqueira (2006) acredita que a dança pós-moderna esteja situada em paralelo a outras

formas de dança na contemporaneidade, como a dança-teatro, o teatro físico, o butô e a nova

dança, etc. A autora explica que a denominação dança contemporânea é o que abarca essas

diferentes danças, uma espécie de conceito “guarda-chuva”, em que se inserem diferentes

correntes, dentre as quais a dança pós-moderna.

Diz a autora: “A dança contemporânea constitui-se em um conjunto de diversas

orientações, interpretadas por dançarinos de formações variadas” (SIQUEIRA, 2006, p. 95).

Em minha opinião particular, trata-se de uma maneira de nomear diferentes formas de pensar

e fazer diferentes danças, pautadas em valores semelhantes, como a livre criação, a

interdisciplinaridade e a pluralidade, dentre outros. As nomenclaturas mudam dependendo das

proposições artísticas e filosóficas, mas principalmente, em função contexto histórico e

cultural.

Seja a chamada dança-teatro alemã, a dança pós-moderna americana, o teatro físico

inglês ou até mesmo o butô japonês, a dança contemporânea que, para muitos se configura

como um estilo de dança, é na verdade uma gama variada de linguagens e movimentos

artísticos relacionados à expressão por meio do movimento, cujas peculiaridades são os já

referidos valores que, por sua vez, participam das características elencadas na pós-

modernidade coreográfica. Características estéticas dessas danças podem ser constatadas nas

seguintes imagens.

30

Parto do princípio de que Merce Cunningham fundamentou-se nos ideais primeiramente inaugurados por

Isadora Duncan.

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89

Fig. 56 – Cena de Pina Bausch

A expressividade da dança-teatro alemã de Pina Bausch

Fonte: http://www.francescocarbone.com/spettacoli/s102.jpg

Fig. 57 – Cena de Trisha Brown

Sucessores de Cunningham transfigurando espaços na dança americana

Fonte: http://www.andover.edu/alumni/abbot/visual%20look/wombwell/brown_pool.jpg

Fig. 58 – Cena do DV8

O teatro físico do grupo inglês DV8 agregando pesquisa corporal e expressão teatral

Fonte: http://www.artsalive.ca/fr/dan/mediatheque/photos/photoWindow.asp?mediaID=89

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90

Fig. 59 – Cena de Tatsumi Hijikata

O corpo do butô: multiplicidade no diálogo com as artes plásticas

Fonte: http://www.addm49.asso.fr/danse0607/danse_cal3bis.htm

Partindo deste princípio de diversidade, pode-se equiparar a dança contemporânea à

arte moderna edificada no século XX. Assim como quando se fala em artes plásticas, não é

possível definir com precisão o que é a arte moderna devido à grande multiplicidade de

movimentos31

que a constituem, também não é possível classificar com exatidão o que é a

dança contemporânea, pois ela pode ser várias coisas ao mesmo tempo. Em função disto, uma

maneira eficaz de pensá-la pode ser compreendendo-a como estética que congrega diferentes

poéticas. Nesse sentido, ela poderia até ser nomeada na sua forma pluralizada, isto é, danças

contemporâneas. Desse modo, todas as formas de expressão coreográfica, inclusive a dança

pós-moderna, nada mais são do que poéticas contemporâneas de dança.

Em meio à diversidade, porém, essas poéticas possuem peculiaridades, de modo que

cada uma delas tem sua própria assinatura, mas não necessariamente os mesmos códigos de

movimento. Cada uma dessas poéticas apresenta, além de seus próprios princípios, um

determinado vocabulário, contudo a sistematização do mesmo não consiste em repetir e imitar

os movimentos, mas sim em descobri-los.

É partindo deste pressuposto que surgem a Companhia Moderno de Dança e o

espetáculo Avesso. A inquietação e a aspiração de descobrir a sua dança particular fazem

brotar a experiência criativa deste espetáculo, como explica uma das integrantes do elenco do

grupo.

31

Expressionismo, Cubismo, Futurismo, Surrealismo, Dadaísmo, entre outros.

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91

Eu acho que o Avesso surgiu por causa da nossa necessidade de descoberta

do movimento. Seria como se fosse assim: estamos entrando numa fase na

qual o que estamos criando já não nos basta, então, temos que procurar ou,

de alguma forma, encontrar movimentos diferenciados, mais nossos, que

partam mais de dentro, da nossa experiência de vida e consciência corporal.

Partindo desse princípio, como criar alguma coisa sem me conhecer? Se a

idéia era começar a criar movimentos diferentes partindo de mim mesma,

então eu precisava me conhecer profundamente (Luiza Monteiro)32

.

A título de esclarecimento, saliento que o que move conceitualmente esta pesquisa e,

por conseguinte, seu fazer prático evidenciado no espetáculo Avesso, parte das teorias da pós-

modernidade coreográfica, mas não pretende ser dança pós-moderna. Assumo, porém,

localizar os preceitos estéticos de minhas estratégias criativas em dança nos princípios da pós-

modernidade, dentre os quais têm destaque a multiplicidade, a liberdade criativa e a

experimentação. A partir desses valores são desenvolvidos os princípios e procedimentos de

construção do espetáculo estudado, fomentando, portanto, minha poética cênica em parceria

com os intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança.

2.1.3 O movimento autônomo como elemento norteador da dança

Em função da variedade de linguagens, é importante elucidar que a dança

contemporânea33

, devido a sua própria estrutura plural, não possui uma técnica ou técnicas

específicas, como acontece com o balé e a dança moderna, expressões de dança em que foram

desenvolvidas técnicas formais englobando determinados códigos de movimento.

Sanches traz à tona a questão da multiplicidade de técnicas na formação corporal do

intérprete de dança contemporânea. O autor argumenta: “é impossível desenvolver uma

técnica de dança que abrace a multiplicidade da cena contemporânea. Acredito ser mais

coerente falar em técnicas contemporâneas de dança” (SANCHES, 2005, p. 59-60).

Isto se deve ao fato de, na dança contemporânea, não existir uma formulação peculiar

e codificada de vocabulário corporal, conforme aconteceu com as correntes anteriores. Muito

pelo contrário, a peculiaridade dessa maneira de dançar reside exatamente na ausência de

unicidade. Em minha opinião, é exatamente isso que explica o fato de a dança contemporânea

caracterizar-se, principalmente, pela liberdade criativa, isto é, pela possibilidade de

32

Integrante da Companhia Moderno de Dança em depoimento concedido no dia 14/11/2007. 33

Entendendo dança contemporânea como estética em que se inserem diversas poéticas, semelhante à idéia do

conceito “guarda-chuva” sugerida por Siqueira (2006).

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investigação e invenção de uma maneira particular de dançar, seguindo, como direcionadoras,

uma série de metodologias criativas propiciadoras da descoberta do movimento que se quer

dançar e não aspectos técnico-formais pré-estabelecidos.

A multiplicidade existente na estética contemporânea de dança faz com que haja uma

certa tendência à pessoalidade/individualidade de cada criador, o que é propiciado justamente

pela liberdade de experimentação e criação. Essa particularidade e esse modo pessoal de lidar

com a criação podem ser entendidos como a poética do artista, já mencionada anteriormente.

Pareyson (1997, p. 17) explica que “uma poética é um determinado gosto convertido em

programa de arte, onde por gosto se entende toda a espiritualidade de uma época ou de uma

pessoa tornada expectativa de arte”. Em síntese, a poética é uma espécie de carimbo pessoal do

artista em que ele registra a proposição de um programa de arte, de um modo de operacionalização.

A poética está diretamente relacionada com a pessoalidade e, por conseguinte, com a

subjetividade do seu criador. Pareyson argumenta que a pessoalidade é inerente a todas as

atividades humanas e, conseqüentemente, às atividades artísticas.

Entre a pessoa do autor e a sua obra existe uma identidade verdadeira e

propriamente dita. Neste sentido, a arte é qualquer coisa de muito mais intenso

que a expressão, já que a obra, mais do que exprimir a pessoa do autor, pode

dizer-se que o é: ela é a pessoa mesma do autor, não fotografada num dos seus

instantes – o que seria imagem muito parcial e falseadora – mas colhida na sua

integridade viva, e solidificada, por assim dizer, num objeto físico e autônomo.

[...]. A obra é o próprio autor, solidificado numa presença evidente e eloqüente,

que se encomenda para a eternidade (PAREYSON, 1997, p. 107-108).

Na chamada dança contemporânea, pode-se dizer que o aspecto da pessoalidade do

artista, evidenciado em muitas obras, é decorrente dos próprios preceitos estéticos inerentes à

pós-modernidade coreográfica. O criador de dança adepto dos princípios da pós-modernidade,

ao promover sua arte não por meio de uma formulação pré-fabricada, mas por uma via que

prima por fazer diferença pela pesquisa do movimento, demanda uma outra organização do

seu processo. Ele aproxima-se de questões pessoais e recorre a maneiras diversificadas de

operar, as quais, por não possuírem unicidade técnica e estilística, fazem o artista lançar mão

de recursos mais subjetivos na criação de sua poética.

Além dessa particularidade que é a própria poética de cada artista, é interessante

perceber como cada processo criativo possui também a propriedade de valer-se de uma

estratégia específica no que tange aos procedimentos técnico-corporais, de modo que esses,

além de serem adequados às necessidades de cada intérprete, são também ajustados às

imanências do projeto coreográfico em processo. “Seria como se cada coreógrafo, a cada

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93

montagem, estabelecesse a feitura do corpo de seu elenco de acordo com a sua proposta e

principalmente com as singularidades de cada intérprete” (SILVA, 2005, p. 138).

No caso de Avesso, essas características verificadas nas poéticas contemporâneas de

dança são assertivas e demonstram a existência de uma concomitância entre a forma que obra

possui e as soluções a partir das quais ela é criada. Isto, no processo deste espetáculo, pode ser

evidenciado e compreendido a partir das opiniões dos próprios integrantes da Companhia

Moderno de Dança, como demonstrado na seguinte reflexão:

Parece que a idéia do Avesso é um tema e uma técnica e não só um ou o

outro. Por exemplo, quando nós fizemos o Não-dito, a gente pesquisou a

história do Brasil, que a gente já tinha estudado. Já o Avesso não foi bem

assim. Como pesquisar um corpo sem ter uma teoria? Então, me parece que

vem uma técnica de pesquisar sobre o próprio corpo junto com a idéia do

espetáculo, com o assunto (Ercy Souza)34

.

Verifica-se, assim, a presença de algo diferencial, pois não é dada aos dançarinos uma

forma pronta, à qual ele deva moldar seu corpo e seus movimentos. Aos intérpretes-criadores

do espetáculo, procuro dar uma fórmula que tenha motivação na vida deles mesmos.

É nesta perspectiva que se insere, não apenas meu projeto de pesquisa acadêmica, mas

meu projeto de vida enquanto artista da cena, isto é, investigar uma forma autêntica de dançar,

que torne a dança acessível a qualquer indivíduo, implementando o que denomino de

movimento autônomo. Assumindo o papel de diretora fomentadora do processo criativo de

Avesso, desenvolvo estratégias de despertar o intérprete de dança para a descoberta do

movimento expressivo pessoal e subjetivo, pesquisado e proposto por ele mesmo, que é,

portanto, criador e executor de sua própria dança.

Neste sentido, o movimento autônomo, desvelado no ato da dissecação artística do

corpo, torna-se elemento norteador da poética imanente de dança, refletindo as descobertas do

intérprete acerca de si mesmo. O conceito aqui proposto surge a partir das experiências da

Companhia Moderno de Dança, inspiradas na proposta de Rodrigues (1997), denominada de

bailarino-pesquisador-intérprete. Segundo a autora, no ato da investigação do movimento para

a dança, “ao bailarino é solicitado o inventário de suas origens, de seus registros culturais, de

sua relação com a terra” (RODRIGUES, 1997, p. 147).

Em minha opinião, esses elementos, em direção aos quais o bailarino caminha para

desenvolver sua dança, são constituintes do corpo imanente que, por sua vez, é o que norteia a

descoberta e expressão do movimento autônomo.

34

Integrante da Companhia Moderno de Dança em depoimento concedido no dia 14/11/2007.

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94

Acredito ser possível avançar mais uma etapa de meu projeto de vida artística por

meio desta pesquisa acadêmica, desenvolvendo os conceitos aqui apresentados e os

assumindo enquanto estratégias de construção poética.

Para tanto, penso que os princípios estéticos da pós-modernidade coreográfica,

inseridos na estética contemporânea de dança, sejam os mais adequados e até mesmo mais

eficientes, tendo em vista a multiplicidade que permite uma abordagem diferenciada do

movimento. Por meio da utilização de diferentes artifícios, essa maneira de pensar e fazer

dança propicia a construção de uma poética distinta e, por conseguinte, imanente, como

entendo ser o corpo no espetáculo Avesso.

2.1.4 A especificidade da construção do corpo nas poéticas contemporâneas de dança

Conforme explanado na sessão anterior, na estética contemporânea de dança, as

técnicas de preparação corporal vão além dos tradicionais modelos cópia-repetição e buscam,

por intermédio do próprio processo criativo, instituir diferentes padrões de movimento. Cada

processo demanda uma preparação do corpo, conforme observa Silva (2005, p. 139): “O

corpo na dança, hoje, constrói-se para cada montagem e nele estão inscritas as

particularidades do seu momento, da sua cultura, das suas possibilidades, que são inúmeras”.

Louppe (2000, p. 27) propõe o conceito de corpo híbrido e afirma que “hoje em dia a

formação do bailarino é constituída por diversas correntes, além de participar de projetos

pontuais, não apresentando, portanto, uma referência corporal constitutiva”. Antes de detalhar

a proposição de Louppe, entretanto, acredito ser pertinente tecer alguns comentários sobre o

entendimento do que vem a ser de fato as já citadas múltiplas técnicas na dança contemporânea.

Balanchine35

(apud CAVALCANTE, 2000, p. 41) afirma que técnica é “o método ou

os detalhes de procedimento essenciais para a competência na execução de qualquer arte”.

Segundo Cavalcante, “Balanchine considera a arte no sentido grego de téchne, ou conjunto de

regras indispensáveis para a boa execução de um ofício. Por este motivo, assume a técnica do

balé clássico para terreno de suas especulações” (2000, p. 48).

35

Coreógrafo russo radicado nos Estados Unidos que fundou a escola American Ballet e, posteriormente, a

companhia New York City Ballet. Balanchine criou novas versões para balés como O Quebra Nozes, Dom

Quixote, etc. Sua maneira de coreografar adequa-se ao que os historiadores de dança denominam de balé

neoclássico, uma vez que ele renovou o vocabulário, a técnica, a linguagem e a encenação do balé clássico. (Cf.

BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente. Trad.: Marina Appenzeller. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,

2001. p. 236-239).

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95

De certa forma, observa-se em Balanchine uma tendência a unificar o processo

criativo por meio de uma técnica específica. Embora o coreógrafo fale em detalhes de

procedimento, isto é, modos de operacionalização, ele adota em seu trabalho uma única

técnica corporal, a do balé clássico.

Se considerarmos a proposição de Mauss (1974) para a conceituação de técnica, é

possível admiti-la como toda e qualquer formulação por meio da qual se chega a um dado fim,

ou ainda, que a técnica é uma espécie de solução encontrada pelo homem para uma

determinada situação. Mauss (1974, p. 211) explica a técnica especificando o conceito de

técnicas corporais, que são “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de

maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. Trata-se, portanto, de “adequação ou

(re)invenção de modos de utilização do corpo” (MENDES, 2004, p. 79).

Em se tratando especificamente da dança, Iannitelli (2004, p. 30) explica que “técnica

na dança é uma forma de desenvolver habilidades na dança e o domínio de seus elementos

(corpo, movimento e a sua expressão poética)”. Isso significa que o aprendizado da técnica é

por si só plural, já que envolve tantos elementos. Para chegar ao ápice do conhecimento

seguro acerca desses elementos, é necessário que o intérprete de dança vivencie experiências

diversas e as utilize da maneira mais adequada possível.

“Esse pluralismo reflete uma característica da pós-modernidade, ou seja, não há

qualquer preocupação em se negar absolutamente nada. Tudo pode ser apropriado, sem

qualquer escrúpulo ou preconceito” (IANNITELLI, 2004, p. 31).

Iannitelli defende a proposta de integração entre técnica, no sentido global de seus

elementos, criatividade e teoria, no intuito de promover a expressão autêntica do movimento

poético individual, proposição essa que condiz justamente com meu ideal imanente de dança,

no qual o intérprete concebe movimento a partir de suas idiossincrasias.

Algumas propostas pedagógicas vêm solidificando-se com vistas a abranger esse viés

pessoal não apenas no que se refere à criação coreográfica, mas, principalmente, enfocando a

formação do intérprete. Nesse sentido, Iannitelli (2004, p. 32) salienta o trabalho de Isabel

Marques, estudiosa da pedagogia da dança que propõe uma “pedagogia centrada no

contexto”, englobando no ensino da dança, considerações sobre a realidade de cada aluno e

buscando conectar as experiências sócio-culturais do sujeito na prática da dança.

Marques (2001) parte do princípio de que, assim como o professor tem um papel

artístico na formação de seu aluno, o coreógrafo/artista possui incumbências pedagógicas de

formação do indivíduo. Diz a autora: “proponho que pensemos em uma articulação múltipla

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96

entre o contexto vivido, percebido e imaginado pelos alunos e os sub-textos, textos e

contextos da própria dança” (MARQUES, 2001, p. 96).

Ainda no que tange ao processo de ensino-aprendizagem, Iannitelli (2004, p. 34)

desenvolve a disciplina Treinamento Técnico Individual36

, com a qual busca “integrar

desempenho corporal e expressividade estética numa abordagem metodológica centrada

primeiramente no aluno”.

A autora implementa um programa de atividades em que princípios técnicos de

diferentes naturezas são trabalhados de modo a promover um diálogo fértil entre fisicalidade e

expressividade. Para tanto, a professora utiliza recursos visuais a fim de enfatizar o

conhecimento sobre a estrutura anatômica do corpo e improvisação dirigida, propiciando

maior liberdade expressiva. A atuação do aluno é verificada como um todo, isto é, são

observados os aspectos motor, afetivo, psicológico e até mesmo intelectual.

Entendendo essas proposições para a formação do intérprete de dança e,

principalmente, entendendo que propostas dessa natureza são extremamente adequadas à

linguagem pós-moderna da dança, é possível argumentar que, nas poéticas contemporâneas de

dança, a idéia de unicidade prevista por Balanchine, e inicialmente mencionada, já não é

suficiente. É exatamente aí que se estabelece o diálogo com as técnicas corporais de Mauss,

pois a dança à qual me refiro é, conforme explicado anteriormente, resultante de múltiplas

vivências e, por conseguinte, de muitas técnicas corporais, inclusive as mais cotidianas, como

o andar, por exemplo.

Se Balanchine fala em método, isto é, procedimento técnico e sistemático a partir do

qual se faz algo, é válido compreender que hoje, na dança pós-moderna, esse método não se

encontra sustentado em uma única técnica, mas sim em uma gama diversa de referências. Por

isso, talvez seja melhor falar em metodologia ao invés de método, uma vez que metodologia

abrange todo um conjunto de procedimentos técnicos, recorrendo, então, a vários métodos e

caracterizando-se pela já comentada multiplicidade.

Nos processos coreográficos, estabelece-se, então, uma metodologia de criação cuja

característica é a multiplicidade e a construção do corpo que dança, produto dessa

multiplicidade, que abrange desde as técnicas corporais mais pessoais e próprias de cada

intérprete ou grupo, como nas considerações de Mauss, até as mais complexas e direcionadas,

sejam elas de dança ou não.

36

Disciplina optativa da grade curricular da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, criada por

Iannitelli em 1995 como alternativa complementar para a formação do profissional de dança.

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97

Se antes a construção do corpo para a dança se dava à luz dos princípios de um

coreógrafo, hoje há que se levar em consideração as vivências particulares de cada intérprete,

isto é, todas as suas técnicas corporais, referências culturais, história de vida, etc. Além disso,

é importante compreender que cada processo criativo é inédito e requer uma diferente

construção de corpo, de modo que as mesmas informações corporais dos intérpretes possam

habitar de maneira peculiar cada processo artístico.

Essas constatações esclarecem a noção de corpo híbrido proposta por Louppe e citada

no início desta sessão. Segundo Louppe (2000, p. 31),

a hibridação é, hoje em dia, o destino do corpo que dança, um resultado

tanto das exigências da criação coreográfica, como da elaboração de sua

própria formação. A elaboração das zonas reconhecíveis da experiência

corporal, a construção do sujeito através de uma única determinada prática

corporal torna-se, então, quase impossível (grifo meu).

O raciocínio de Louppe, associado ao de Mauss, leva-me a compreender que, na

dança, o indivíduo não pode ser considerado puro, uno e intangível, uma vez que na vida

cotidiana ele é híbrido. Trata-se de um mesmo corpo. O mesmo corpo que vive, dança.

Além disso, como expõe Iannitelli (2004, p. 37),

independentemente da abordagem de ensino da técnica da Dança, esta deve

ser norteada e compreendida como ‘processo’ e não como ‘produto’. O

objetivo não é ‘chegar lá’, onde quer que ‘lá’ seja; a ênfase deve estar no

‘como’ o movimento é realizado por cada aluno, visando um corpo

dançante, expressivo e idiossincrático.

Traçando um paralelo entre o ensino da técnica e a construção do corpo para um

espetáculo, pode-se dizer que, assim como o ensino deve ser visto como processo, a obra

coreográfica também deve ser tida muito mais como processo do que como produto, pelo

menos para os que nela estejam envolvidos. A noção de técnica, dessa maneira, é

redimensionada, pois ela deixa de ser um fim a ser atingido e torna-se um meio que é

descoberto ao longo do próprio fazer coreográfico.

Assim, procurando respeitar os procedimentos pessoais de cada artista e o “como

chegar lá” particular de cada intérprete, será possível conceber dança com uma qualidade

expressiva original. Original não no sentido de ineditismo, mas no sentido da origem da coisa

que, por sua vez, será tão imanente quanto os próprios corpos em processo. Eis, assim, os

valores vigentes na construção do espetáculo Avesso e, por conseguinte, do corpo imanente e

do movimento autônomo na cena da Companhia Moderno de Dança.

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98

2.2 POR UMA ESTÉTICA MULTISENSORIAL: o corpo como forma e conteúdo da obra

coreográfica

O que este capítulo se propõe a discutir é a implementação de um princípio criativo

para a criação coreográfica justificado pelos valores estéticos da pós-modernidade em dança.

Ao referir-me à estética, no sentido que quer este capítulo, reporto-me não somente aos

aspectos formais dos movimentos, mas a todo o manancial cultural que este movimento

transporta. Esta estética compreende, portanto, valores muito além da forma que a dança

possui.

Por outro lado, acredito que seja importante argumentar aqui sobre a questão da forma,

uma vez que minhas reflexões giram em torno, também, de um produto estético que se realiza

por meio de impressões plásticas, visuais.

Sendo assim, a noção de forma que pretendo abranger nesta pesquisa, fundada nos

estudos de estética de Pareyson, pode ser entendida de duas maneiras. A primeira delas é o

sentido da forma enquanto aspecto geral da obra como produto. Já a segunda refere-se ao

sentido formante, isto é, os modos de operacionalização do fazer artístico que se dá no

decorrer do processo.

Pareyson desenvolve este raciocínio por meio dos conceitos de forma formada e forma

formante, explicando que a primeira é o resultado de uma produção e a segunda, com aspecto

mais gerundivo, é aquela que se constrói enquanto constrói a obra. “A forma, além de existir

como formada ao termo da produção, já age como formante no decorrer da mesma”

(PAREYSON, 1993, p. 75). A formação de uma obra de arte consiste justamente na

transformação da forma formante em forma formada, o que explica a necessidade de

argumentar acerca dessas duas maneiras de existência do conceito de forma em minha

pesquisa.

Por enquanto não farei referência à forma formante. Essa noção será abordada mais

adiante, quando entrar em questão a experiência propriamente dita do processo criativo do

espetáculo Avesso. Agora, interessa-me discutir a noção de forma formada na perspectiva das

produções contemporâneas de dança e, conseqüentemente, na perspectiva de minha

proposição cênica, traçando, para isso, um paralelo entre esse conceito de forma e a noção de

conteúdo na obra de arte.

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99

Segundo Pareyson (1997), há diversas maneiras de compreender as relações entre

forma e conteúdo, além do que essas relações vêm se modificando e se transformando ao

longo do curso histórico da arte.

A primeira maneira a qual Pareyson faz referência é a teoria do ornato, que adota a

união de forma e conteúdo como junção, sendo a primeira uma espécie de ornamento da

segunda. O conteúdo seria, portanto, o assunto a ser tratado e a forma, uma preocupação

técnica e estilística de como tratar o referido assunto. Assim, o assunto, ou conteúdo, seria a

porção não artística e a forma, o ornamento artístico de beleza.

Embora, à primeira vista, esta relação pareça coerente, ao observá-la de modo mais

conciso é possível verificar que não é estabelecido um vínculo entre forma e conteúdo. Os

dois parecem absolutamente independentes e avulsos, podendo existir separadamente, sem a

necessidade de criação de uma obra de arte para sua sobrevivência.

Essa maneira de estabelecer relação entre forma e conteúdo parece-me muito presente

na dança, especialmente em se tratando das linguagens em que há uma “fôrma”, uma receita

técnica pré-estabelecida. Nos balés de repertório37

, por exemplo, por mais centrada no corpo

que seja a pesquisa dos movimentos, não parece haver um diálogo frutífero entre forma e

conteúdo. Os bailarinos parecem mais submeter-se a superações técnicas do que à proposta

investigativa de movimento para um dado conteúdo.

É como se o conteúdo fosse simplesmente encaixado forçosamente naquela forma que,

por sinal, possui uma previsibilidade tediosa, uma vez que ela funciona exatamente como “fôrma”

onde ajustar os corpos dançantes. Em síntese, o conteúdo, submetido à prioridade dada à forma, e

a forma, são independentes, assim como também não se interpenetram. São duas realidades que

parecem se unir apenas para o momento da cena. Não há troca entre eles, há apenas uma junção.

Uma segunda maneira de entender a relação entre forma e conteúdo é aquela pela qual o

conteúdo se expressa como motivo e sentimento inspirador e a forma, como a inteireza da expressão.

Forma e conteúdo são vistos assim na sua inseparabilidade: o conteúdo

nasce como tal no próprio ato em que nasce a forma, e a forma não é mais

que a expressão acabada do conteúdo. Analisando bem, nesta concepção a

inseparabilidade de forma e conteúdo é afirmada do ponto de vista do

conteúdo: fazer arte significa “formar” conteúdos espirituais, dar uma

“configuração” à espiritualidade, traduzir o sentimento em imagem, exprimir

sentimentos (PAREYSON, 1997, p. 56-57).

37

Espetáculos como O Lago dos Cisnes, Dom Quixote, A Bela Adormecida, O Corsário, dentre outros,

constituem balés de repertório tradicional, interpretados pelo mundo inteiro por diversas companhias. De um

modo geral, os temas abordados fazem referência a uma história de amor entre uma princesa e um plebeu, ou

vice-versa e a dança caracteriza-se pela presença de variações compostas de passos de balé e mímica.

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100

Neste caso, apesar de ser mais evidente a inseparabilidade entre ambos, a forma parece

estar subjugada ao conteúdo. Ao contrário da maneira anterior, em que o conteúdo submete-se

à forma, nesta parece haver uma supremacia do conteúdo em detrimento da forma. É como se

o conteúdo fosse o grande mentor da idéia e a forma, um servil executante.

De um jeito aparentemente mais equilibrado, a terceira maneira de entendimento da

relação forma e conteúdo tem o aspecto de ser a mais interessante, pelo menos para o meu

modo de pensar a obra de arte, pois estabelece-se a inseparabilidade entre forma e conteúdo

sem, contudo, supervalorizar um ou outro. Há, nesse caso, um diálogo cooperativo entre

ambos e uma sensação de cumplicidade que acompanha todos os momentos da obra, desde o

seu fazer até a sua contemplação que, mesmo ao findar, permanece viva e inteira para o

fruidor. Pareyson (1997, p. 57 – 58) comenta:

A forma foi entendida como o resultado da formação de uma matéria, da

produção de um objeto físico, como matéria formada, isto é, como uma

configuração conseguida de palavras, sons, cores, pedras ou qualquer outra

coisa. E, paralelamente, reparando no fato de que nem sempre as obras de

arte representam objetos ou exprimem sentimentos, porque nenhum objeto

real ou possível e nenhum sentimento determinado está contido num

arabesco, numa música abstrata, numa obra arquitetônica que, não obstante,

têm um significado humano e uma ressonância espiritual, procurou-se o

conteúdo a um nível mais profundo e num campo mais vasto encontrou-se o

“mundo” do artista: o seu modo de pensar, viver e sentir, a sua concepção de

mundo e seu posicionamento frente à vida [...], os ideais, as aspirações que

nutrem no seu coração, as experiências, as escolhas, as crenças de que

informa a sua vida, em suma, a as personalidade concreta, toda a sua

espiritualidade. [...]. A espiritualidade do artista coincide com a matéria por

ele formada , no sentido de que sua operação tem um insuprimível caráter de

personalidade, que arrasta para a obra, como matéria formada, todo o seu

mundo interior.

Por outro lado, Pareyson explica ainda que a operação de um processo artístico

implica em dois fazeres. Um deles é a formação do conteúdo e o outro, a formação de uma

matéria. Por meio dessas atividades, afirma-se a inseparabilidade de forma e conteúdo, porém,

do ponto de vista da forma. Assim, os dois procedimentos tornam-se simultâneos e

coincidentes e a formação de um conteúdo tem lugar como formação de uma matéria e vice-

versa, pois “se a forma é uma matéria formada, o conteúdo não é outra coisa senão o modo de

formar aquela matéria” (PAREYSON, 1993, p. 63).

Nessa perspectiva, o autor reflete sobre essas noções entendendo a arte como

formação de uma matéria e considerando, a partir dessa formação, a inseparabilidade entre

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101

forma e conteúdo. Essa inseparabilidade é resultante do fato de o processo de formação do

conteúdo ser coincidente com a formação da matéria, que é, por fim, o fazer da arte.

Esta noção de inseparabilidade e coincidência é algo que se evidencia nas recentes

produções de dança, onde as inquietações acerca do corpo, vêm ganhando ênfase e sendo

abordadas como forma e conteúdo na formação da matéria artístico-coreográfica.

As propensões mais recentes da dança, que não deixam de se assemelhar às tendências

preconizadas nos primórdios da pós-modernidade coreográfica, caracterizam-se pela intensa

experimentação de movimentos cuja pesquisa encontra-se centrada no corpo e suas

idiossincrasias, questionando esse corpo, suas possibilidade de movimento e sua condição de

objetificação38

.

Há uma tendência dos artistas, na atualidade, a produzirem dança com este fim. Como

exemplo, podem ser citados, dentre os muitos seguidores desta corrente, trabalhos de

coreógrafos nacionais e internacionais, tais como Lia Rodrigues, Dani Lima, Alejandro

Ahmed (Cena 11 Cia. de Dança) e Sacha Waltz, apontados nas imagens à frente.

Fig. 60 – Cena de Lia Rodrigues

Discutindo a coisificação do corpo

Fonte: http://kadmusarts.com/blog/wp-content/uploads/2006/06/incarnat-2-016.jpg

38

Sobre esta noção tecerei maiores detalhamentos nas seções e capítulos subseqüentes e, mais especificamente,

nas discussões acerca dos conceitos de sujeito e objeto. Por enquanto, vale salientar como os artistas vêm

questionando as formas de tratamento e entendimento do corpo como objeto no intuito de contrariar a referida

objetificação.

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102

Fig. 61 – Cena de Dani Lima

Partes e todo em relação na reflexão sobre o corpo

Fonte: http://www.ciadanilima.kit.net/cdl.htm

Fig. 62 – Grupo Cena 11

A redescoberta do movimento numa nova condição de corpo

Fonte: http://www.cena11.com.br/html/foto.html

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103

Fig. 63 – Cena de Sacha Waltz

A Investigação de movimento centrada em um determinado estado de corpo

Fonte: http://www.danzaballet.com/UserFiles/Image/a03_5_1119343499.jpg

No sentido que demonstram as imagens, percebe-se que a estética da dança na pós-

modernidade contempla como uma de suas finalidades, o estudo do movimento tendo como

referência o próprio corpo, suas condições e seus estados de ser, tanto os mais evidentes

quanto os mais latentes.

Ocorre ainda que

o corpo dançante hoje não é mais visto em termos de sua relação cinética. As

coreografias procuram trabalhar o movimento, a sensação cinestésica, as

idéias e as marcas de identidade corporal daquele corpo específico que

dança, para que, através do e com o movimento, procure-se comentar ou

subverter as representações que são construídas sobre os corpos marcados,

estigmatizados (MATOS, 2000, p. 79).

Daí a importância de se considerar o caráter de pessoalidade do intérprete de dança,

valorizando sua autonomia e suas particularidades individuais, ou como quer Pareyson

(1993), “o mundo do artista”, que, nesse caso, é trazido para a cena como forma e conteúdo da

obra coreográfica.

No caso específico do processo criativo em estudo nesta tese, é proposta uma

abordagem de corpo que agrega tanto aspectos biológicos quanto configurações mais

subjetivas, de modo que no fazer artístico todas essas peculiaridades do corpo tornam-se

imanências presentificadas na pesquisa do movimento, onde se verificam as diferentes

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104

qualidades expressivas do corpo por meio da experimentação e do contato com essas

imanências.

Trata-se de uma abordagem estética em que se presencia a inseparabilidade entre

forma e conteúdo, uma vez que a pesquisa do movimento se dá partindo do contato com o que

acredito ser o corpo imanente, a partir do qual são levadas a termo as subjetividades corporais

dos intérpretes, ou a chamada corporeidade, da qual falarei no tópico subseqüente. É por meio

da sensibilização dos intérpretes para a percepção mais aguçada de suas imanências que a

matéria artística é formada, de modo que a organização da estrutura coreográfica se dá, não

através da forma ou do conteúdo, mas através de um repertório de sensações que gera um

vocabulário corporal e, por conseguinte, a coreografia.

Em Avesso, os intérpretes-criadores exercitam a capacidade de se auto perceberem e

dançarem partindo desta informação. Nos momentos mais “livres” do espetáculo, em que não

há seqüências coreográficas previamente marcadas, os dançarinos improvisam e

experimentam, no ato da cena propriamente dita, a criação de sua dança. Isto possibilita, a

cada espetáculo, viver a experiência de uma dança diferente, conforme o estado de corpo em

que o dançarino se encontre. O que viabiliza esta liberdade de experimentação em cena é a

gama de exercícios praticados nos laboratórios durante o processo coreográfico, exercícios

esses aos quais os dançarinos se reportam durante a encenação. Integrantes do elenco do

espetáculo argumentam:

Eu acho que uma das coisas que faz o Avesso ser bem diferente de uma

apresentação pra outra é a grande quantidade de estímulos que nós tivemos

durante o processo. Uma hora eu posso lembrar das sensações, dos cheiros,

daquela consciência daquele dia, daquele filme... Eu acho que tem vários

estímulos. Fora que ele é muito subjetivo (Nelly Brito)39

.

Na cena, qualquer espetáculo já é diferente, mesmo os espetáculos

marcados... Imagina um espetáculo como o Avesso. Então, se eu tenho

tempo e um dia inteiro no teatro, eu recupero as experiências do processo,

abro a consciência, fico mais consciente do meu corpo. Se for uma

apresentação daquelas em que eu tenho que vir correndo da faculdade e não

dá nem tempo de pensar muito, já é uma outra sensação corporal. A

diferença depende muito disso. Quando eu chego em cima da hora eu vou

ampliando a minha consciência durante o espetáculo, porque não dá pra

fazer muita coisa antes. Não tem como dançar sem essa consciência, por

mais que eu venha correndo. Durante o espetáculo eu vou recuperando as

vivências do processo. Não tem como não mergulhar no corpo. E esse corpo

é sempre outro. Nunca é o mesmo. Eu respiro de uma forma diferente, meu

sangue circula de uma forma diferente (Márcio Moreira)40

.

39

Integrante da Companhia Moderno de Dança em depoimento concedido no dia 14/11/2007. 40

Ibdem.

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105

É a partir de observações desta natureza que me permito falar na existência da

dissecação artística do corpo por meio da dança, considerando o ato de dissecar como

perceber o corpo em toda sua condição no momento da experimentação, criação e execução

coreográficas. Observa-se, ainda, a presença de uma estética diferenciada neste processo de

formação da obra de dança. Uma estética que não é da forma, nem do conteúdo, mas que,

entendida como uma experiência multisensorial, pode ser de ambos.

A concepção de estética que é adotada para esta argumentação, entretanto, não se

refere unicamente a um aspecto formal, mas a uma reunião de informações que, imbricadas

no fazer artístico, configuram tanto a forma quanto o conteúdo da obra, implicando por fim no

pensamento que a própria obra instaura. Nesta proposta teórico-prática, a cena da dança se

pretende a cena do próprio corpo, sendo esse, então, por intermédio da experiência de um

processo criativo multisensorial, gerador de forma e conteúdo na obra, simultaneamente.

Além disso, a partir do entendimento de corpo aqui existente, observa-se que a idéia

do corpo dissecado agrega aspectos que não são meramente formais, ainda que impliquem no

resultado formal da dança que pretendo desenvolver. Dessa maneira, a dissecação prevista

pelo processo criativo em questão está contida de intensa subjetividade, na qual são

contextualizados os aspectos constitutivos do corpo de cada intérprete, tanto no que se refere

ao orgânico quanto no que diz respeito ao cultural, configurando, portanto, a estética desse

corpo e, por conseguinte, dessa dança.

Sobre a experiência da multisensorialidade vigente no processo de Avesso, a

intérprete-criadora Nelly Brito comenta:

O Avesso é muito guiado pela sensação e não pela forma, como costumam

ser os espetáculos que a gente assiste. Então, você vai em um espetáculo e o

que lhe prende mais é a forma. Geralmente é assim, mas isso não é uma

regra. Bom, então vem a forma, principalmente se ela é agradável. No

Avesso o que acontece não é isso porque o mais importante não é a forma, é

a sensação. Então, o que importa não é se agrada, se é bonito ou

esteticamente correto. O que importa é se causa uma sensação. Uma

sensação que não sou eu que digo como você tem, você que vai ter41

.

É por essa razão que acredito que a dissecação que sugiro não pode ser vista

unicamente como preocupação estética no sentido da forma. Diante da particularidade de cada

intérprete, ao dançar sobre si próprio, ou ainda, dissecar a si próprio, creio ser possível

alcançar um resultado cênico repleto de dados não unicamente formais, mas também

41

Depoimento concedido no dia 07/10/2007.

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106

conteudistas do ponto de vista da subjetividade do corpo no corpo e representada pelo próprio

corpo.

Diante dessas observações percebo que minha abordagem coreográfica encontra-se

nesse patamar e procura investigar a dança para o corpo no próprio corpo, recorrendo não

somente às formas do seu interior, mas também à maneira como esse interior se movimenta e

se transforma partindo de acontecimentos externos ao corpo, considerando, para isso, não

apenas sua anatomia, mas também a cultura que a circunscreve, recorrência relevante no que

se refere à estética da dança pós-moderna, que pode ainda ser considerada,

como um tipo específico de comportamento e percepção em vez de um ideal

ou conceito [...] e no caso específico do espetáculo que irei desenvolver,

como [...] a desconstrução da expressão física, que questiona a regra do

sujeito sobre seu corpo, apresentando-se como uma construção cultural

(BAXMANN apud SILVA, 2005, p. 142-143).

Acredito, deste modo, que dentro desta sugestão estética de dissecação do corpo por

meio da dança no processo do espetáculo Avesso, as alternativas de movimento lançadas pelo

intérprete, nas experiências de sensibilização e percepção, apresentem informações referentes

a contextos culturais, informações inerentes ao corpo e não opções meramente formais.

Diante dessas constatações, no processo de Avesso é possível argumentar ainda acerca

da existência de uma estética que entende forma e conteúdo como reveladores do próprio

meio em que o corpo do artista se insere culturalmente. Essa característica, presente no fazer

da dança pós-moderna, traduz mais um pressuposto ao qual minha abordagem cênica

corrobora.

Contando, portanto, com opções criativas como a fragmentação, a justaposição de

imagens, a repetição, a utilização de diferentes referências, a possibilidade de uso de narrativa

não linear e, principalmente, com a ampla liberdade de criação e uso de materiais, sendo

essas, características inerentes à dança pós-moderna, lanço mão de estratégias que permitem

desvelar um modo particular de fazer dança, ou ainda, uma maneira própria e não

convencional de criar movimentos, estabelecendo uma estética multisensorial para o corpo

imanente, na qual forma e conteúdo interagem de modo convergente e complementar.

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107

2.3 NOÇÕES DE CORPO NA POÉTICA DE AVESSO

2.3.1 Uma abordagem conceitual de corpo na contemporaneidade

Segundo Matos (2000, p. 72), “para pensar a dança no contexto pós-moderno, é

necessário refletir sobre as mudanças de concepções de corpo e como isso favorece novas

inserções com a construção da identidade cultural”. A autora defende a idéia de que a poética

de um criador de dança na contemporaneidade está diretamente relacionada à sua identidade

cultural. Há, portanto, uma sugestão de que as manifestações corporais de uma pessoa estão

ligadas à maneira como sua identidade se constrói e vice-versa.

Dessa forma, Matos observa que a construção de uma identidade dá-se por meio de

experiências corporais. Mauss (1974) propõe esse raciocínio na apresentação de seu conceito de

técnicas corporais. De modo complementar, cabe dizer que se a corporeidade for considerada

como a construção de um indivíduo nos seus aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais,

conforme aspira Matos (2000), a identidade, então, confunde-se com a própria corporeidade.

A identidade de um indivíduo, assim como as suas vivências corporais, são duas

instâncias que trabalham em cooperação, de modo que ambas arquitetam mutuamente esse

indivíduo ou antes, se a identidade é no corpo, quer dizer que esse último, por sua vez, reflete a

identidade.

A identidade, contudo, não é algo estanque. Estando ela relacionada com o corpo,

encontra-se na dependência das experiências vividas por esse corpo e, nesse sentido,

transforma-se ao passo que ele vai sendo transformado pelo seu aprendizado cotidiano. Tal

constatação leva-me a rememorar o conceito de identidade cultural na pós-modernidade

proposto por Hall, que fala em múltiplas identificações em detrimento de uma identidade

única e fixa. Diz o autor:

[...] O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e

estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias

identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas [...]. O próprio

processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático [...]. A identidade

plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés

disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se

multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos

identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2002, p. 12-13).

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108

Esse câmbio ao qual Hall se reporta, faz jus a uma característica elementar da pós-

modernidade, a multiplicidade. Além disso, considerando que a identidade se reflete no corpo,

é relevante lembrar o quanto esse câmbio é condizente com as concepções pós-modernas de

corpo, que o consideram não unicamente como matéria biológica, mas também como

construto cultural, isto é, como produto do meio. Esta idéia de produto, no entanto, não é aqui

tratada como resultado estabelecido de uma operação, mas agrega um pensamento que o

considera algo em construção, uma espécie de resultado parcial de uma experiência que, na

verdade, está sempre em processo.

O corpo, nessa perspectiva, não é apenas um depósito ou sede de algo que nele se

aloja, mas sim uma espécie de agenciador, um articulador de informações que o tocam e o

penetram. O corpo é o gerenciador de sua própria identidade, alterando-a e adaptando-a às

diversas situações e/ou necessidades do meio.

Em meus estudos de Mestrado, propus a noção de impregnação cultural, a qual

enfatizava justamente a idéia de apreensão de informações inerentes ao meio em que o

indivíduo vive. Essa noção sustentava-se, principalmente, nas idéias de endoculturação,

(GEERTZ, 1989), trajeto antropológico (DURAND, 2002) e imprinting cultural (MORIN,

1989), todas elas adeptas do pensamento de que o homem não se constitui apenas de

informações biológicas, mas agrega em sua existência caracteres culturais e, portanto, mais

subjetivos. Consta em minha dissertação o seguinte comentário:

Operacionalizando e redimensionando de forma autônoma os conceitos de

endoculturação, trajeto antropológico e imprinting cultural, estabelecidos por

Geertz, Durand e Morin respectivamente, propomos aqui a utilização do

conceito impregnação cultural, admitindo todos os determinismos culturais

situados nos níveis psicológico, imaginário, comportamental, entre outros.

Priorizamos, contudo, através desta proposta, esses determinismos

simbolicamente visíveis no comportamento corporal, acreditando que os

sistemas culturais imprimem caracteres corporais em um indivíduo e vice-

versa, seja por necessidade de adequação ao ambiente ou através de imitação

ou aprendizado (MENDES, 2004, p. 77-78).

Outra informação determinante para a proposição da noção de impregnação cultural é

o conceito de meme, desenvolvido por Dawkins (2001) que, fundado no pensamento

evolucionista de Charles Darwin e tecendo uma analogia com o gene, considera essa a menor

unidade cultural do homem. O meme, portanto, está para a cultura assim como o gene está

para a vida.

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109

Estudiosos das ciências biológicas, em sua grande maioria, consideram a

transmissão dessas características apenas através dos genes, enquanto

Dawkins e demais seguidores do que conhecemos como neodarwinismo,

consideram também a transmissão dos caracteres culturais, isto é,

adquiridos. Esses caracteres, ditos memes, seriam todas as impregnações

culturais (MENDES, 2004, p. 82).

Toda essa rememoração se faz útil no sentido de compreender o corpo que dança

como um corpo em permanente construção, mutante e cambiante como a identidade cultural.

Uma construção que se dá “através da mediação do contexto social, histórico e cultural, com a

experiência somática, com a materialidade corpórea e com a construção da subjetividade”

(MATOS, 2000, p. 72). Uma construção resultante de um processo de impregnação cultural

associado a outros aspectos mais objetivos componentes do homem.

O corpo é visto, portanto, a partir de uma noção de instabilidade, ou como denomina

Sant’ana (2001), de passagem. Ao refletir sobre essa condição, que na verdade é característica

da subjetividade contemporânea, a autora estabelece o conceito de corpo-passagem,

explicando que,

Um corpo tornado passagem é, ele mesmo, tempo e espaço dilatados. O

presente é substituído pela presença. A duração e o instante coexistem. Cada

gesto expresso por este corpo tem pouca importância ‘em si’. O que conta é

o que se passa entre os gestos, o que liga um gesto a outro e, ainda, um

corpo a outro (SANT’ANA, 2001, p. 105).

Segundo Sant’ana, um corpo de passagem é um lugar por onde percorrem informações

ininterruptamente, ou seja, onde não há estagnação, mas sim uma espécie de visitação dessas

informações, que entram em acordo com outras informações que por ali passaram

anteriormente, transformando-se e transformando-as para propagar novas informações. O

corpo de passagem é o corpo que dá passagem ao meio em que ele se insere.

Nesse sentido, há que se considerar a subjetividade do corpo não como algo puro e

individualizado, mas como algo adulterado, repleto de elementos estranhos. Aliás, é a partir

dessa impureza que se constrói a individualidade. O indivíduo é, então, resultado de

experiências coletivas.

Santaella fala na crise do sujeito para explicar essa condição do corpo e a própria

construção da subjetividade. Para ela, esta crise “coloca em causa até mesmo ou, antes de

tudo, nossa corporalidade e corporeidade (SANTAELLA, 2004, p. 10). O corpo tornou-se,

assim, um nó de múltiplos investimentos e inquietações”. Diante das concepções de

identidade na pós-modernidade o indivíduo já não é individual. Ele é um sujeito que se

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110

constrói a partir de uma coletividade e essa característica é assim conferida à sua

corporeidade.

Não existe sujeito ou subjetividade fora da história e da linguagem, fora da

cultura e das relações de poder. [...]. Por isso, no lugar dos antigos ‘sujeito’ e

‘eu’ proliferam novas imagens de subjetividade. Fala-se em subjetividade

distribuída, socialmente construída, dialógica, descentrada, múltipla,

nômade, situada, fala-se de subjetividade inscrita na superfície do corpo,

produzida pela linguagem etc. Nessa mudança, o psicológico abandona o

espaço provado e intransferível das psiques individuais para alojar-se nas

encruzilhadas e nas ruelas que marcam o estar-no-mundo com outros seres

humanos (SANTAELLA, 2004, p. 17).

O eu e o mundo entram em conectividade e cooperam um com o outro para a

instituição de suas características. O corpo interage com o meio e, conseqüentemente, agencia

informações do meio e de outros corpos. Homem e meio, indivíduo e coletividade. E nesse

entremeio, o corpo-passagem que é, na verdade, o próprio homem em sua condição de elo,

ponto de ligação, processo, tal como a imprecisão da identidade cultural na pós-modernidade;

processo que implica em ver o corpo a partir de seus diferentes estados, ou ainda, estágios.

Katz e Greiner (2002) propõem um olhar semelhante sobre o corpo levando em

consideração as relações e o trânsito estabelecidos entre natureza e cultura, situando o corpo

não como oposição entre o meio e o indivíduo biológico, mas como lugar de passagem de

ambos. Referindo-se a Dawkins (2001) e seu conceito de meme, as autoras afirmam: “hoje

sabe-se que nada é puramente determinado pela genética ou pelo ambiente e que somos, como

todas as outras criaturas, um produto complexo de ambos” (KATZ; GREINER, 2002, p. 86).

A partir dessa concepção, Katz e Greiner redimensionam o entendimento de corpo

como sítio de informações, localizando-o também como lugar de trânsito onde acontecem

sucessivas impregnações culturais que retornam ao ambiente por meio do próprio corpo.

Trata-se de uma espécie de ciclo em que as informações do ambiente impregnam o corpo que,

por sua vez, passa a se relacionar com o ambiente de outra maneira, reverberando novas

trocas. “Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações

e mudanças” (KATZ; GREINER, 2002, p. 90).

A essa compreensão de corpo como lugar de trânsito, Katz e Greiner denominam de

corpomídia. Para as autoras,

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111

o objetivo de apresentar o corpo como mídia passa pelo entendimento dele

como sendo o resultado provisório de acordos contínuos entre mecanismo de

produção, armazenamento, transformação e distribuição de informação.

Trata-se de instrumento capaz de ajudar a combater o antropocentrismo que

distorce algumas descrições do corpo, da natureza e da cultura (KATZ;

GREINER, 2002, p. 97).

O conceito proposto apóia-se no entendimento de corpo como sistema por onde

transitam informações interiores e exteriores a ele, informações essas que, ao penetrarem no

corpo, são transformadas gerando novas informações.

A noção de corpomídia, no entanto, originada nos estudos interdisciplinares de dança e

comunicação, também se fundamenta na teoria da evolução, que possui como característica a

contínua transformação dos seres. “A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao

processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo” (GREINER,

2005, p. 131), o qual passa a se comunicar através dessa formação que, por sua vez, depende

principalmente dos contextos espacial e cultural.

As relações entre o corpo e o ambiente se dão por processos co-evolutivos

que produzem uma rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de

aprendizado e emocionais. [...]. Mas o que importa ressaltar é a implicação

do corpo no ambiente, que cancela a possibilidade de entendimento do

mundo como um objeto aguardando um observador. Capturadas pelo nosso

processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer

processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de

uma maneira bastante singular: são transformadas em corpo (GREINER,

2005, p. 130).

Nesse sentido, pode-se considerar o corpo ainda, além de agente incorporador do

meio, como algo que se encontra apto tanto para receber quanto para articular e transmitir

informações. Trata-se de um corpo aberto, conforme propõe Santana (2002). A autora adota a

teoria dos sistemas e a teoria evolucionista para estudar as relações entre corpo, dança, meio e

tecnologia compreendendo-os como sistemas abertos e evolutivos.

Como sistemas abertos, o corpo – ou a dança –, a tecnologia e o próprio

mundo estão em constante troca, modificando-se e tendendo sempre à

complexidade. Eles existem lutando por sua permanência; suas

transformações prevalecem quando conseguem ser selecionadas pelo

ambiente. Sendo assim, agregam-se ao mesmo processo pelo qual continuam

trocando, tornando-se complexos e modificando-se (SANTANA, 2002, p.

22).

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112

Essa é uma condição na qual o corpomídia também pode ser situado, isto é, evidencia-

se uma evolução mútua, uma interdependência entre os sistemas abertos corpo e meio “e o

corpo humano, como sistema aberto e dinâmico, vem se transformando e, por sua vez, vem

também modificando e impregnando o meio em que habita” (SANTANA, 2002, p. 24).

Seguindo uma linha investigativa semelhante nas considerações do corpo como

sistema aberto, pode-se pontuar Spanghero (2003, p. 19): “sistemas abertos estão

permanentemente em interação com o meio ambiente, internalizando informações e

devolvendo-as transformadas ao mundo, que os modifica, e assim sucessivamente”.

Spanghero (2002, p. 23) agrega as noções de corpomídia e corpo aberto para garantir a

compreensão de que “o corpo é o lugar permanente do trânsito entre natureza e cultura. O

corpo é mídia de seu estado, do jeito que as informações ali se organizaram. O corpo expressa

o que ele é”.

Cruzando as proposições das autoras, é possível acrescentar à noção do corpo como

produto e produtor de informações do meio, a idéia do corpo subjetivo, já mencionada

anteriormente e de que trata Matos (2000). Para a autora, o corpo é objetivo no que se refere à

sua natureza biológica e subjetivo no que diz respeito à sua natureza cultural. Estas noções

não se opõem, mas complementam-se e co-existem na identidade de um indivíduo.

Entretanto, não se trata de corpo como uma identidade única e imutável, mas sim

como possuidor de múltiplas identidades que articulam o corpo objetivo/subjetivo com todos

os aspectos inerentes a ele, conforme salientado no início desta seção.

Esse corpo sujeito pode ser entendido ainda como o corpo próprio, de que fala

Merleau-Ponty (1994, p. 205): “A experiência do corpo próprio nos ensina a enraizar o espaço

na existência. [...]. Ser corpo é estar atado a um certo mundo”. O corpo próprio é, portanto,

uma experiência de impregnação cultural. O corpo próprio propõe a incorporação do espaço

no próprio corpo, em oposição à noção de objeto, que seria algo manipulável e inativo.

Adiante tecerei novas considerações sobre o corpo próprio, tendo em vista a

necessidade de traçar uma discussão mais densa sobre as noções de sujeito e objeto. Por hora,

proponho deter-me sobre a idéia de que o corpo é lugar de passagem, conforme ressaltam as

teorias da contemporaneidade. É esse corpo que pretendo dissecar, observando toda a sua

instabilidade sem deixar de admitir suas imanências e pessoalidades.

Esta proposição do conceito de corpo imanente encontra suporte na filosofia de

Deleuze. Para o autor a idéia de imanência se opõe às características transcendentais

relacionadas aos modos mais divulgados do termo. No sentido religioso, que por sua vez é o

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113

mais difundido, a imanência é compreendida como algo que está além deste mundo, próximo

do que se entende como transcendência.

O que Deleuze pretende, no entanto, é rever o sentido de transcendência, entendendo

que esta é sempre um produto da imanência e não o contrário.

A imanência não se remete a alguma coisa como unidade superior a todas as

coisas nem a um sujeito como ato que opera a síntese das coisas. [...]. A

pura imanência é uma vida, nada mais. Ela não é imanência à vida, mas o

imanente que não é imanente à nada específico é ele mesmo uma vida. Uma

vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta (DELEUZE, s/d, p.

2).

Entender a imanência como vida, e não como algo para além da vida, permite uma

compreensão da vida como algo presente, como um estado, um instante, assim como se

entende o corpo partindo da sua abordagem conceitual na contemporaneidade. Logo, a

imanência reflete um estado de ser do próprio corpo, ou, para assumir de fato o pensamento

de Deleuze, a imanência em si, já é o corpo aqui e agora.

No próximo capítulo retomarei as reflexões sobre o conceito de imanência

desenvolvido por Deleuze e sua aplicação à dança enquanto linguagem. Por enquanto

continuarei discorrendo sobre os modos contemporâneos de operar a noção de corpo,

conforme segue no item a seguir.

2.3.2 O corpo como sujeito rizomático na experiência do espetáculo Avesso

As concepções de corpo na contemporaneidade, de um modo geral, possuem como

atributo o caráter de abertura. O corpo é, portanto, algo processual que está em construção.

Tanto a noção de corpo de passagem, proposta por Sant’ana (2001), quanto a de corpomídia,

advinda dos estudos interdisciplinares de dança e comunicação e com as bases fundadas no

neodarwinismo de Dawkins e na co-existência de natureza e cultura nas configurações de

corpo e meio, e os conceitos de corpo aberto, sustentado na teoria dos sistemas, e corpo

sujeito, mais relacionado com os estudos culturais e a fenomenologia, convergem para um

mesmo ideal de corpo: um corpo agenciador cuja incompletude lhe é própria.

Ao mesmo tempo, vale ressaltar a idéia de impregnação cultural que, buscando

referências na antropologia cultural, conforma um outro olhar sobre essa noção de corpo. Esse

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114

olhar concorda com a existência desse mesmo ideal, ajustando-se, então, como colaborador

para o aumento da credibilidade e aceitação do corpo como construto tanto social e cultural e,

portanto, subjetivo, quanto biológico, nas diversas áreas do conhecimento e, por conseguinte,

em meio ao próprio conhecimento comum.

Conforme verificado anteriormente, não se trata da idéia de subjetivação do corpo

como algo estanque e unificado, nem tampouco individual, mas sim de uma subjetividade que

se constrói de forma múltipla e coletiva, tal qual a experiência da construção ininterrupta da

identidade cultural. Tudo é processo e o corpo sujeito, por sua vez, é também processual.

Neste sentido, é interessante verificar o pensamento que norteia a proposta conceitual

de Deleuze e Guatarri (1995, p. 11), dizem que: “escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada

um de nós era vários, já era muita gente”.

Ao atribuir a autoria de sua obra a vários e não apenas a eles próprios, Deleuze e

Guatarri demonstram entender que o homem, em qualquer fazer, não está só, ou seja, ele não

é único, mas sim, constitui-se de diversos outros que estabelecem sua personalidade, seu

comportamento e seu pensamento. Há nessa maneira de entender o homem uma identificação

com a idéia de corpo como sujeito processual e, conseqüentemente, uma espécie de acordo

com a noção de identidade cultural na pós-modernidade e com todas as concepções de corpo

às quais me remeti anteriormente.

O corpo é, assim, sujeito, porém um sujeito cujos caracteres não se impregnam de

forma determinista, mas são engendrados por uma rede de informações, por uma teia de

outros sujeitos em conexão entre si; um ciclo inestancável em que não é possível saber onde

ficam o começo e o fim.

A noção de sujeito evidenciada na síntese do corpo próprio, de Merleau-Ponty (1994),

amplia-se para uma consideração ainda mais complexa que pode ser vista, portanto, pelas

lentes da horizontalidade, conforme propõem Deleuze e Guatarri (1995).

A partir do pensamento horizontal inaugurado por Nietsche42

, os autores refletem

sobre a possibilidade de entender o pensamento como um rizoma, isto é, de uma forma não

vertical e hierarquizante, como nos modelos de pensamento arborescente.

Um rizoma é um “caule subterrâneo e rico em reservas, comum em plantas vivazes,

caracterizado pela presença de escamas e gemas, capaz de emitir ramos folíferos, floríferos e

raízes” (HOAUISS, 2005). Ao contrário das raízes comuns, um rizoma não se fixa na terra

42

Filósofo alemão que propôs uma filosofia assistemática e fragmentária. Seu tratamento horizontal do

pensamento vai de encontro à dominância do pensamento hierárquico e hierarquizante vigente na filosofia

ocidental de um modo geral. (Cf. COLLINSON, Diané. 50 Grandes Filósofos: da Grécia antiga ao século XX.

Trad.: Maurício Waldman e Bia Costa. São Paulo: Contexto, 2004. p. 206-210).

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115

como a base de sustentação de uma árvore. Por suas características morfológicas, um rizoma

configura um emaranhado de caules que se entrelaçam não sendo possível identificar seus

pontos inicial e conclusivo.

Segundo Deleuze e Guatarri (1995, p. 15) “o rizoma nele mesmo tem formas muito

diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções

em bulbos e tubérculos”. Com base nessas condições morfológicas dos vegetais e no

pensamento horizontal, os autores desenvolveram, portanto, a idéia do pensamento

rizomático. Os autores apontam os seguintes princípios como características de seu conceito

de rizoma: conexão, heterogeneidade, multiplicidade e ruptura a-significante.

O primeiro princípio refere-se à condição de que qualquer ponto do rizoma pode ser

conectado a qualquer outro ponto. O segundo quer dizer que um traço em um rizoma não

necessariamente faz referência a outro da mesma natureza.

Sobre o princípio da multiplicidade, dizem os autores: “nós não temos unidades de

medida, mas somente multiplicidades ou variedades de medida” (1995, p. 17). O pensamento

rizomático possui determinações que, ao desenvolverem-se, variam de natureza. Já a ruptura

a-significante é o princípio que explica que a ruptura de uma ou mais linhas segmentares

próprias de um rizoma, ao explodirem, criam uma linha de fuga que, por sua vez, cria novas

linhas para a reconfiguração do rizoma.

Este último princípio conforma a noção de desterritorialização, que seria a própria

ruptura da linha (ou linhas) territorializada e, por conseguinte, sua reterritorialização sob a

condição de uma nova linha.

Partindo desses princípios, é possível situar as noções de corpo na contemporaneidade

dentro da perspectiva das características em questão. Pode-se dizer que o corpo, assim como o

rizoma, conecta-se a outros corpos e também ao meio, assim como destaca-se pelo caráter de

heterogeneidade entre os corpos. Como o rizoma, o corpo também se caracteriza pela

multiplicidade de informações nele impressas, bem como de outros corpos e,

conseqüentemente, de caminhos por onde essas informações entram e saem.

Assim como a individualidade de um sujeito se constrói na experiência da

coletividade, conforme argumentado anteriormente, a unidade de um rizoma se dá a partir da

multiplicidade. Como em um rizoma, em que qualquer ruptura pode vir a gerar uma nova

linha, no corpo a apreensão ou aprendizagem de qualquer informação pode gerar novos

percursos em busca de outras informações a receber ou a transmitir. Neste fluxo de

agenciamentos, são constantes as desterritorializações e reterritorializações do corpo. E mais,

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como o rizoma, o corpo também “não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio,

entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE; GUATARRI, 1995, p. 37).

Na estética proposta pelo espetáculo Avesso, essa noção de corpo como sujeito

rizomático pode ser evidenciada ao longo de todo o processo criativo e, inclusive, na própria

encenação.

Para chegar ao movimento autônomo que se quer dançar, o intérprete-criador, a partir

das estratégias metodológicas de criação, tece diversas redes de conexão, primeiramente no

seu próprio interior e, em seguida, relacionando-se com o meio, em que se encontra com

outros corpos.

Valendo-me dos recursos tecnológicos da medicina, por meio da visualização de

diagnósticos por imagem e de exercícios de sensibilização, auto percepção e consciência do

corpo, estimulo os intérpretes-criadores a desenvolverem suas linguagens de movimento para

a cena.

Neste percurso criativo, os sujeitos da pesquisa entram em conexão com suas próprias

estruturas físicas, promovendo múltiplas possibilidades de conexão entre as diversas partes do

corpo, percebendo as funções dos diferentes órgãos e tecendo redes de ligação entre eles, isto

é, construindo uma espécie de rizoma composto de linhas imaginárias no organismo.

Essas linhas ligam os pontos internos do corpo entre si, mas não são estanques, pois a

experiência da auto-percepção sutil do corpo promove sucessivas rupturas e,

conseqüentemente, o surgimento de novas linhas imaginárias na rede inter-orgânica. A

experiência da dança acontece de uma forma absolutamente não literal e não linear, pois

depende da maneira como a percepção do corpo e, por conseguinte, a construção da sua teia

rizomática, acontece naquele instante.

Outra experiência significativa para a exemplificação da aplicabilidade do conceito de

rizoma à dança e, mais especificamente, ao espetáculo Avesso, é o uso da técnica de contato-

improvisação43

. O contato-improvisação tem como fundamento o desencadeamento do

movimento improvisado a partir de estímulos de contato do corpo no espaço, seja com

outro(s) corpo(s) ou com elementos presentes no espaço, como o chão, a parede, um objeto,

ou qualquer outro elemento.

43

O contato-improvisação é uma técnica criada pelo bailarino norte americano Steve Paxton no início dos anos

70. É um trabalho de movimento que surge da prática de dar e receber o peso do corpo, tomando consciência dos

vários efeitos desta troca. A dança e os movimentos que surgem do contato-improvisação, lidam com o

desequilíbrio e o inesperado. A técnica desenvolve uma mente perceptiva elevada e ensina a pessoa a entregar,

receber e dividir peso com outra para criar diálogos corporais e improvisações. O movimento ocorre segundo as

leis naturais da física mecânica. A pessoa move-se aproveitando a gravidade, entregue ao “momentum” do

movimento, sem controlá-lo racionalmente. Cabe a ela, a simples percepção destas forças, como elas atuam em

seu corpo e no espaço, e como integrá-las ao movimento espontâneo do momento (JABOR, 2007).

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117

Na Companhia Moderno de Dança este recurso é utilizado tanto individualmente,

considerando a estrutura espacial do local de ensaio, quanto em duplas, em pequenos grupos e

com o grupo todo. As imagens ilustram a utilização da técnica em dupla no processo criativo

e do produto estético da companhia.

Fig. 64 – Contato-improvisação em Avesso 1

Trabalhando em dupla para a descoberta do movimento autônomo

Foto: Ana Flávia Mendes

Fig. 65 – Contato-improvisação em Avesso 2

A imanência desvelada na cena da dança

Foto: Mauro Moreira

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118

O fluxo de movimento criado a partir desta técnica pode ser também considerado a

construção de um rizoma na medida em que o “leva e traz” gerado na improvisação cria

também linhas imaginárias entre os corpos e o ambiente.

No processo de Avesso este rizoma é também um exemplo do entendimento do corpo

como agenciador de informações. A técnica de contato-improvisação é utilizada na

construção do espetáculo como forma de comunicação entre os corpos dançantes. Cada corpo

comunica acerca de si, externando sua experiência autoperceptiva, “dizendo” ao outro de si.

Entretanto, ao passo que sua informação chega ao outro corpo, ela é imediatamente devolvida,

modificando suas percepções e transformando a estrutura de seus movimentos em formas e

qualidades.

Acontece que, nesta circularidade comunicacional, não há como precisar o início e o

fim, tampouco a seqüência lógica dos acontecimentos, pois ela simplesmente não existe, o

que é mais uma razão para entender essa dança como um rizoma. Nas imagens a seguir, um

exemplo de como a técnica de contato-improvisação é utilizada no processo e no produto do

espetáculo Avesso.

Fig. 66 – Contato-improvisação em Avesso 3

A experiência do rizoma na multiplicidade dos corpos em contato

Foto: Ana Flávia Mendes

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119

Fig. 67 – Contato-improvisação em Avesso 4

O movimento improvisado a partir da técnica aplicada a uma cena do espetáculo

Foto: Mauro Moreira

O rizoma da experiência de contato-improvisação em Avesso sofre inúmeras rupturas,

cria incontáveis linhas de fuga e pode ser compreendido como a própria relação do corpo no

ambiente, exemplificando o ciclo ininterrupto de construção da corporeidade. Na verdade, não

só o contato-improvisação, mas toda a experiência criativa do espetáculo configura-se como a

própria condição de instabilidade do homem no mundo. Na dança, como na vida, o que se tem

são as relações interdependentes de corpo e meio, meio e corpo, corpo e corpo e corpo e

outro(s) corpos(s).

O contato-improvisação, porém, tem uma dimensão de dissecação artística muito

particular. Ele é uma das mais evidentes formas de dissecação artística do corpo imanente no

espaço, pois, construindo rizoma entre o corpo e o ambiente, ele possibilita a experimentação

do movimento consciente em via de mão dupla, levando e trazendo informações por entre as

linhas imaginárias da teia interior-exterior do corpo.

A noção de corpo como sujeito trazida à tona nesta tese, portanto, por meio dessas

reflexões, amplia-se para a proposta do corpo como sujeito rizomático, isto é, sujeito

agenciador entre o interior e o exterior, entre si mesmo e o meio. E nessa perspectiva, tudo no

corpo pode ser considerado rizoma, inclusive as próprias relações entre os sistemas orgânicos,

onde a hierarquia deixa de existir e dá lugar a implementação de uma conexão horizontalizada

entre as partes que compõem o todo.

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120

2.3.3 O corpo imanente dissecado em Avesso: sujeito rizomático em diálogo com a

prática do corpo sem órgãos

No que se refere à relação horizontalizada existente entre as partes do corpo, vale

traçar aqui um paralelo entre as noções de corpo imanente, lançada nesta tese, e corpo como

sujeito rizomático, apresentada na seção anterior, e a concepção do corpo sem órgãos sugerida

pelo diretor de teatro Antonin Artaud.

Para Artaud, o ator “deve desenvolver as potencialidades orgânicas de forma a

ultrapassar o comportamento natural e cotidiano, para que acabe atingindo o espectador”

(AZEVEDO, 2004, p. 21). No sentido de percorrer este objetivo, Artaud propõe localizar os

sentimentos fisicamente por meio do que chama de musculatura afetiva, atribuindo ao

domínio desta musculatura uma qualidade de poder “que tem uma trajetória material, não só

através, mas também nos órgãos” (ARTAUD, 1984, p. 189), desmistificando, assim, as

relações hierárquicas e, portanto, verticais, entre o cérebro e os demais órgãos.

Em busca dessa não-verticalidade Artaud desenvolve o que Deleuze e Guatarri

denominam de uma prática: o corpo sem órgãos. Segundo os autores, o corpo sem órgãos

“não é uma noção, um conceito, mas uma prática, um conjunto de práticas” (1995, p. 9). O

corpo sem órgãos é, se é que se pode dizer assim, um ideal inventado por Artaud.

“O corpo sem órgãos não tem boca, não tem língua, não tem dentes, não tem laringe,

não tem esôfago, não tem estômago, não tem ventre, não tem ânus” (ARTAUD apud LINS,

1999, p. 47). Entretanto, não é que não haja órgãos de fato, mas ao passo que a organização

do corpo, de acordo com a concepção do corpo sem órgãos, não se dá de forma

hierarquicamente vertical, perde-se a necessidade de nomear estruturas e funções, pois tudo é

corpo. Tudo é musculatura afetiva. O corpo sem órgãos é um rizoma sem começo nem fim; é

um sistema aberto onde não há definição do que é mais ou menos importante.

Além disso, o corpo sem órgãos vive à mercê de um estado de corpo. Ele é transitório

e, por isso, contraditório, uma vez que passeia por diferentes meandros de sua existência. Ele

é um corpo momentâneo, processual. O corpo sem órgãos é o que o momento ou a situação o

leva a ser e reflete o(s) estado(s) de ser do corpo no ambiente. O corpo sem órgãos é “uma

rede móvel e instável de forças e não de formas” (GREINER, 2005, p. 25).

Aliás, este argumento muito se assemelha às minhas pretensões de instituir uma

estética multisensorial para o processo de criação em dança, conforme ressaltei anteriormente.

Assim como Artaud pretendia desenvolver seu teatro por meio dessa rede de forças buscada

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121

através do seu atletismo afetivo, em Avesso posso admitir a intenção de fazer dança por

intermédio de uma organização diferenciada, onde o que importa não é a forma, mas a

sensação, ou a rede de forças, como quer o corpo sem órgãos.

Compreender as pretensões de Artaud possibilita ampliar os horizontes de minha

própria concepção de corpo. Se, para o corpo sem órgãos, o mais importante não é a forma e

sim a rede de forças; se para o corpo sem órgãos não existe hierarquização do corpo, nem

tampouco entendimento do corpo como algo pronto, pode-se dizer que o corpo sem órgãos é

um corpo sujeito rizomático que, de passagem, vem sendo construído por meio das suas

experiências e vivências imanentes. É este corpo que interessa ao processo criativo do

espetáculo Avesso.

Um exemplo prático da aplicabilidade do conceito de Artaud no espetáculo Avesso é

dado pela experiência vivida pelo intérprete-criador Márcio Moreira na criação do espetáculo.

Não apenas este dançarino, mas todos os demais podem ser vistos como corpos sem órgãos. O

caso de Moreira, no entanto, é bastante evidente, em função de condições físicas impostas

pela especificidade morfológica de seu corpo, cuja particularidade e diferença são flagrantes

em relação aos demais componentes do elenco.

Ao nascer, este artista teve os ligamentos do membro superior direito comprometidos

por um erro médico, gerando conseqüências físicas e uma certa limitação para a realização de

determinados movimentos. No decurso de sua vida, Moreira foi submetido a sessões de

fisioterapia e intervenções cirúrgicas, de modo que algumas limitações foram vencidas, tendo

o dançarino desenvolvido ao máximo as funções do referido membro.

Pessoalmente e, por conseguinte, artisticamente, a morfologia do braço direito deste

intérprete-criador nunca foi problema. Muito pelo contrário. Em suas experiências

coreográficas na Companhia Moderno de Dança, Moreira sempre procurou dialogar

firmemente com sua diferença, evidenciando nas pesquisas de movimento as descobertas

acerca de como seu braço direito poderia e deveria participar do desvelar de sua dança. No

processo criativo de Avesso, esta relação é intensificada pela relevância de suas percepções

para a abordagem teórico-prática desta pesquisa, como argumenta o dançarino:

O meu braço direito é o que mais grita pra mim no espetáculo. A partir dele

eu descobri muitas coisas, outras qualidades de movimento e tal... Ele foi

fundamental pra definir quais as minhas qualidades de movimento mais

evidentes, quais as minhas características pessoais, a minha maneira

particular de dançar44

.

44

Depoimento concedido no dia 14/11/2007.

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122

Entretanto, não apenas a questão física do braço direito é enfatizada nas vivências

criativas deste intérprete-criador para o Avesso, mas também suas condições de peso e seu

problema de coração manifesto por uma aceleração exacerbada dos batimentos cardíacos.

Nos laboratórios de improvisação para a criação do espetáculo, Moreira associa essas

suas condições físicas a intensidades, formas e velocidades, na perspectiva de experimentar

possibilidades de movimento. Seu braço direito, seu coração e as camadas de gordura

consideráveis na constituição de seu corpo, ganham posição de líderes nas pesquisas

coreográficas, subordinando o cérebro ao mesmo plano dessas estruturas orgânicas. Sua

experiência individual para o Avesso é ilustrada na imagem a seguir.

Fig. 68 – Corpo imanente 1

A investigação das condições físicas como exemplo da prática do corpo sem órgãos

Foto: Ana Flávia Mendes

O caso de Moreira pode ser exemplificado como constatação da vigência do ideal de

corpo sem órgãos defendido por Artaud. Trata-se de uma evidente horizontalização das

estruturas orgânicas do corpo em que não cabe pensar o cérebro como único comandante da

experiência. A vivência artística da dança imanente, centrada no corpo, permite que um

“simples” braço, em colaboração com células, sangue, coração, cérebro e outros elementos,

seja o direcionador do movimento autônomo do intérprete-criador.

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123

Isto se aplica não somente a Moreira, mas também à coluna vertebral de Wanderlon

Cruz, que lhe impõe limitações de movimento e ocasiona dores, ao tremor de Ercy Souza, que

o faz parecer mais cansado do que ele realmente está, à extrema brancura da pele de Ana

Paula Siqueira, que muda de cor facilmente ao ser tocada, à rinite alérgica de Luiza Monteiro,

que lhe causa dificuldades respiratórias, e tantas outras características dessas pessoas que, por

meio de suas peculiaridades, fazem o Avesso ser o que é. O corpo sem órgãos está

intensamente contido no espetáculo, abrangendo em sua horizontalidade as condições

orgânicas dos dançarinos e suas relações com o ambiente.

A imagem abaixo demonstra a experiência da horizontalidade e não-hierarquização

dos órgãos na realização das pesquisas coreográficas do espetáculo. Nessa experiência, os

intérpretes-criadores utilizam como motivo para a improvisação e descoberta de movimentos,

diferentes sensações percebidas nas partes do corpo, relacionando-as ao todo na

implementação de vocabulários particulares de movimentos.

Fig. 69 – Corpo imanente 2

O corpo sem órgãos na descoberta das imanências

Foto: Ana Flávia Mendes

Deleuze (apud LINS, 1999, p. 59) explica que o corpo sem órgãos “se opõe a todos os

estratos de organização, tanto aos da organização do organismo quanto aos das organizações

de poder”. É a essa organização do organismo a que me refiro ao implementar uma noção

diferenciada de dissecação e ao instituir os conceitos de corpo imanente e movimento

autônomo. Não me refiro somente ao organismo biológico, mas também ao complexo

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124

memético que faz de nós seres humanos, pois “tanto quanto o sujeito, o organismo não é

absolutamente constante” (SANTAELLA, 2004, p. 24), ou ainda, o sujeito pode ser entendido

como o próprio organismo, se levarmos em consideração que a este último também são

agregadas características fenomenológicas.

A dissecação do corpo45

, nesse sentido, é uma proposta estética de desvelar diferentes

possibilidades para o movimento na cena da dança. Não se trata de uma estética da forma,

mas de uma estética diferenciada, na qual forma e conteúdo promovem um diálogo produtivo

a partir de estratégias metodológicas de criação que visam à percepção sutil do

organismo/sujeito humano.

Sendo assim, entendo que não é possível dissecar esse corpo sem levar em

consideração todos os aspectos próprios do sujeito dissecado, suas imanências e sua condição

fenomenológica no mundo, razão pela qual a proposição estética ganha contornos ainda mais

subjetivos, repletos de aspectos psicológicos, sociais e culturais do indivíduo, isto é, desse

corpo que é o que denomino de imanente.

O corpo dissecado, portanto, não é apenas uma matéria organicamente estruturada da

qual pode se extrair informações precisas e concretas. No caso que aqui se apresenta, o

organismo, em si mesmo, já pressupõe uma desestabilidade ao considerar, como elemento de

dissecação, aspectos menos palpáveis, reconfigurando a própria acepção do que seria o

orgânico.

Aliás, o raciocínio desta tese para o que vem a ser o orgânico, promove um

entendimento de que a própria cultura em torno do corpo, ao impregná-lo, torna-se

organismo, isto é, é apreendida, transformando-se em elemento orgânico, sugerindo uma certa

materialidade para os aspectos imateriais do homem.

Nessa perspectiva, seria possível sugerir até mesmo uma outra maneira de realizar

estudos de anatomia, considerando o corpo não mais como matéria orgânica no sentido

unicamente biológico, mas como complexo desestabilizável e desestabilizante. O orgânico,

dessa forma, deixaria de ser tão somente a organização material de estruturas. Antes, as

próprias estruturas já seriam consideradas muito mais que objetos e o organismo, por sua vez,

já seria repleto de informações de diferentes instâncias, informações de natureza cultural,

além da biológica. O corpo, portanto, no seu contexto global, concentraria em sua

organicidade tanto a sua natureza material quanto seus valores psico-sociais não palpáveis,

isto é, imateriais.

45

A dissecação artística do corpo como proposta metodológica de criação será detalhada no capítulo quatro a

partir de uma explanação das opções coreográficas utilizadas no processo criativo de Avesso.

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125

Essa sugestão, no entanto, não parece muito viável para o estudo em cadáveres,

inerente às práticas de dissecação da anatomia, uma vez que o corpo humano morto já não

implica transformações para o meio, assim como o meio não o transforma mais. Ou

transforma?

A questão parece digna de reflexão. É interessante pensar, mesmo o corpo sem vida,

como sujeito transformador e transformável do meio, entretanto, como o objetivo aqui não é

sugerir alternativas para os estudos da ciência da vida, mas formular uma dissecação

especificamente voltada para as artes da cena, resta-me argumentar que, no caso do processo

criativo de Avesso, a noção de dissecação amplia-se diante da condição de ser do corpo e,

desta maneira, observo que minha proposição de dissecação não existe sem o corpo imanente

porque é o corpo imanente que será dissecado pela e para a dança.

Mas o que viria a ser, então, essa condição de ser do corpo? É ela que define o corpo

imanente. Conforme verificado na seção Uma abordagem conceitual de corpo na

contemporaneidade, o corpo hoje pode ser entendido por palavras como processo, construção,

abertura, passagem, trânsito, elo, rede, rizoma. Todas essas palavras atestam um olhar sobre o

corpo não a partir de sua forma ou estrutura física, mas a partir de um estado, de uma

condição de ser, de um momento ou qualidade de existência, como propõem os chineses,

segundo Greiner (2005, p. 22), para eles o corpo é “sempre ativo e nunca considerado como

um instrumento ou objeto”, razão pela qual o definem como corpo sentado, corpo andando,

corpo doente, entre outros, não havendo um substantivo que o conceitue. Ele é sempre o

sujeito da ação.

São esses estados, propiciados pela inserção do corpo no ambiente, que designam ao

corpo sua condição de inconstância. Essa condição, vista como complexo desestabilizável e

desestabilizante, conforme mencionado há pouco, faz com que o corpo tenha um aspecto

organizacional um tanto caótico do ponto de vista de uma estruturação mais vertical. Isso é o

que confere ao corpo a classificação de um sujeito rizomático. É essa (des)ordem horizontal,

não hierárquica e instável de que trata o corpo sem órgãos. É essa a (des)ordem que interessa

a esta tese.

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126

3 O METACORPO NA LINGUAGEM DA DANÇA

Conforme argumentado no segundo capítulo, de acordo com os parâmetros que

norteiam o fazer artístico nas poéticas contemporâneas de dança, verifica-se uma certa

tendência à realização de abordagens relacionadas prioritariamente com o corpo. Na

atualidade são freqüentes os processos coreográficos centrados em motivações relativas ao

próprio corpo que dança, sendo ele, portanto, o eixo de investigação e enfoque de muitas

produções cênicas, localizando-se assim, como centro da obra de arte.

No processo criativo de Avesso, o corpo é o informante da obra, assim como vem

acontecendo nas diversas abordagens de dança centradas nas questões que circunscrevem o

corpo. Desse modo, o objeto de pesquisa desta tese constitui uma expressão artística sobre o

corpo, fundamentada no corpo e realizada pelo próprio corpo, possibilitando, através da

proposta cênica, a existência de uma espécie de metalinguagem, uma vez que o corpo fala de

si mesmo. Nesse sentido, ressalto a existência de uma estratégia cênica metacorporal ou

ainda, de um metacorpo que se faz presente a partir da linguagem da dança.

A intenção aqui é refletir de que maneira a dança pode ser entendida como linguagem

e como esta linguagem se apresenta no espetáculo Avesso, tendo em vista a manifestação

artística do corpo expressando a si mesmo.

Para subsidiar esta reflexão dialogo com estudos interdisciplinares de dança e

comunicação, levando em consideração as noções de corpomídia e dramaturgia do corpo, na

perspectiva de construir um argumento para a compreensão do movimento, do gesto e da

dança como linguagens. Também auxiliando as reflexões, retomo o conceito de imanência de

Deleuze, verificando sua aplicabilidade no contexto da dança para, a partir desta

compreensão, observar o raciocínio metalingüístico presente nos processos de criação e

encenação do espetáculo em estudo.

3.1. CORPO E DANÇA COMO LINGUAGENS: a dramaturgia do corpo e o corpomídia

Linguagem é “um sistema de signos convencionais que pretende representar a

realidade e que é usado na comunicação humana” (JAPIASSÚ, 1996, p. 164). A partir desta

constatação, observa-se que a função primeira da linguagem é comunicar, seja por meio de

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127

sons, gráficos ou gestos, mas sempre compreendendo o estabelecimento de convenções que

tem a propriedade de constituir signos para dizer algo, isto é, representações de pensamentos e

idéias.

A comunicação é uma conseqüência da linguagem, ou antes, sem comunicação não há

linguagem. Assim como comunicar é expressar-se por meio de uma determinada linguagem, a

linguagem pode ser algo que surge a partir de uma tentativa ou situação de comunicação e,

neste sentido, as poéticas contemporâneas de dança podem ser entendidas como formas de

comunicação que instituem maneiras diferenciadas de linguagem. Isto significa que entre

linguagem e comunicação há uma relação de interdependência. O fato é que, anterior ou

posterior à linguagem, a comunicação é sempre uma prática que, podendo acontecer de

diversas formas, informa algo.

“Comunicar é atuar sobre a sensibilidade de alguém, buscando mobilizá-lo, convencê-

lo ou persuadi-lo” (RECTOR; TRINTA, 1999, p. 7). A comunicação é, portanto, uma prática

cotidiana inerente às relações humanas, as quais são mantidas por meio da transmissão de

mensagens. Essas mensagens, por sua vez, tem como aporte o uso de códigos, ou seja,

unidades de linguagem.

Os códigos, no entanto, podem ter características variadas, sejam elas verbais,

auditivas, visuais ou gestuais. A comunicação, dessa maneira, pode ser definida em duas

instâncias: verbal e não-verbal. Interessa-me aqui refletir sobre a comunicação não-verbal.

Segundo Rector e Trinta (1999, p. 20-21), a comunicação não-verbal é estabelecida

pela “movimentação significativa do corpo [...]. Falamos pela atividade voluntária de nosso

aparelho fonador, porém, ao participar de uma interação social, nós o fazemos, isto é,

falamos, com todo o nosso corpo” (grifo meu). É como diz a máxima O corpo fala46

.

A partir dessas observações constata-se que o falar do corpo está diretamente ligado às

relações sociais interpessoais e, logo, implica em questões culturais e comportamentais,

considerando toda a abrangência extra-biológica da compreensão de corpo vigente no

contexto desta tese. Assim, vale ressaltar que a comunicação não-verbal e, por conseguinte, o

comportamento não-verbal, propicia e facilita a expressão dos desejos e estados afetivos,

integrando as dimensões física e psicológica do indivíduo, o ser social.

46

Título de livro que se transformou em máxima entre os estudiosos do corpo nos anos 1980. (Cf. WEILL,

Pierre; TOMPAKOW, Roland. O corpo fala: a linguagem silenciosa da comunicação não-verbal. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1986).

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128

A comunicação, aliás, é uma prática em que a interação e indissociação entre corpo e

ambiente pode ser muito bem exemplificada, pois a sua eficácia está diretamente ligada à

percepção do indivíduo acerca de si e do meio em que ele se encontra.

É neste trânsito comunicacional que a linguagem se constitui. A linguagem e a

comunicação, portanto, são pontes de ligação entre o indivíduo e o meio ou o meio e o

indivíduo, ou ainda um indivíduo e outro indivíduo, mas sempre estão na dependência da

presença de um ou mais corpos.

Pensar a dança como linguagem, tarefa que adiante será mais detalhada, requer um

entendimento mais apurado acerca da natureza comunicativa do corpo, natureza esta que

compreende dois elementos expressivos: movimento e gesto.

A noção de corpo como linguagem, conforme verificado anteriormente, é pensamento

que se fundamenta nas teorias da comunicação. Essas teorias reafirmam a condição

comunicacional dos elementos expressivos do corpo, constituindo o que os estudiosos de

dança e comunicação denominam de dramaturgia corporal.

Greiner (2005) propõe pensar as ações corporais como dramaturgia. O termo

dramaturgia é próprio da linguagem artística do teatro e tem vários sentidos. No sentido

clássico, “é a técnica (ou a poética) da arte dramática, que procura estabelecer os princípios de

construção da obra” (PAVIS, 1999, p. 113). Já no sentido da atividade do dramaturgo, a

dramaturgia é “o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização,

desde o encenador até o ator, foi levada a fazer” (PAVIS, 1999, p. 113). “A dramaturgia, no

seu sentido mais recente, tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto

dramático para englobar texto e realização cênica” (PAVIS, 1999, p. 114).

O termo dramaturgia, da maneira que utiliza Greiner, não se reporta prioritariamente a

situações cênicas, mas faz referência ao cotidiano do corpo em toda a sua dimensão

expressiva, na qual movimento e gesto compõem o discurso. A autora fala em dramaturgia da

carne, explicando que,

tradicionalmente, a palavra dramaturgia sempre esteve vinculada ao texto

teatral. No entanto, após os anos 80, a discussão começou a surgir com força

no meio da dança, até mesmo por uma questão de mercado, com o surgimento

do chamado ‘dramaturgo de dança’. [...]. O dramaturgo de dança teria uma

função que se aproxima mais do dramaturgista teatral do que propriamente do

dramaturgo. Isto porque ele escreveria e reescreveria o texto dramatúrgico no

corpo dos atores-bailarinos (GREINER, 2000, p. 361).

A autora se reporta aos conceitos de dramaturgia na atualidade, que a consideram

como poética, ou como aquilo que dá conectividade ao espetáculo, para propor a noção de

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129

dramaturgia do corpo. Greiner lança a hipótese de que a dramaturgia de um corpo seja o seu

próprio estado de existência, a sua maneira de ser/estar no mundo. “A dramaturgia do corpo

não é um pacote que nasce pronto, um texto narrado por um léxico de palavras, mas como a

sua etimologia propõe, emerge da ação” (GREINER, 2000, p. 81). Esta ação, por sua vez,

engloba os já mencionados elementos expressivos do corpo.

Partindo deste princípio, pode-se verificar que a dramaturgia do corpo também está

relacionada à condição comunicativa do homem. É por meio de suas dramaturgias que o

corpo fala, expressa e é o próprio indivíduo. A dramaturgia do corpo é algo retratado pelo

comportamento humano, por meio de seus elementos expressivos. Gesto e movimento são

componentes de dramaturgia corporal e, por conseguinte, unidades de comunicação. Gesto e

movimento são códigos das mensagens que emanam do corpo no processo de comunicação.

Nestas reflexões, então, reporto-me mais uma vez à teoria do corpomídia, que vê na

capacidade comunicativa do corpo uma via de acesso às suas próprias transformações e às

transformações do ambiente. O corpomídia trata não apenas das transformações materiais do

corpo no espaço, mas das mudanças imateriais, as quais também são tornadas dramaturgia.

A dramaturgia do corpo, portanto, é algo que se constrói a partir da construção do

próprio corpomídia enquanto complexo rizomático, sistema aberto de caráter contínuo. É o

corpo imanente evidenciado no capítulo dois desta tese. Neste caso, as imanências implicadas

na natureza do corpo são as suas próprias experiências que, por meio de sucessivos processos

de impregnação cultural, são tornadas dramaturgias corporais.

Entender o corpo como mídia é pensar a função comunicacional do corpo como

agenciamento de informações no percurso cíclico entre o corpo e o ambiente. Novamente

retomo a idéia dos códigos de linguagem como pontes entre o corpo e o mundo.

Nas técnicas formais de dança, em que os executantes se baseiam em movimentos pré-

estabelecidos, como, por exemplo, no balé, caso já mencionado no capítulo anterior, os

códigos pré-existem e o coreógrafo ou o intérprete recorrem a esses códigos na construção de

sua coreografia e, por conseguinte, de sua linguagem. A dança, portanto, constitui-se como

linguagem alicerçada nos padrões de uma determinada técnica, tendo seus códigos

estruturados de antemão.

Já nas poéticas contemporâneas de dança, evidencia-se a proposta de ir além dos

códigos de movimento já instaurados, negando-os, transformando-os ou até mesmo

inventando outros códigos. As unidades de comunicação na estética de dança contemporânea

são códigos em construção, isto é, códigos a serem descobertos durante a pesquisa

coreográfica.

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130

No caso de Avesso, esses códigos são investigados a partir dos padrões do próprio

corpo humano, considerando a dramaturgia corporal dos intérpretes-criadores no desvelar dos

movimentos e gestos a serem dançados. Trata-se de códigos de linguagem não-verbal

(movimento e gesto), aos quais chamo de elementos expressivos do corpo, como informações

veiculadas pela mídia corpórea. Em Avesso, é o próprio corpo que descobre, cria e comunica

seus códigos. Os elementos expressivos do corpo são, portanto, unidades de linguagem no

processo de comunicação corporal.

Na sua forma cotidiana, o gesto é a menor unidade da linguagem corporal. Segundo

Rector e Trinta (1999, p. 23) o gesto é “uma ação corporal visível, pela qual um certo

significado é transmitido por meio de uma expressão voluntária”. O gesto é, portanto, um

recurso esclarecedor de mensagens, tanto em processos de comunicação verbal, funcionando

como reforço da linguagem falada, quanto em processos de comunicação não-verbal, em que

a combinação de vários gestos configura a linguagem.

No teatro, o gesto é tido como “movimento corporal [...] produzido com vistas a uma

significação mais ou menos dependente do texto dito, ou completamente autônomo” (PAVIS,

1999, p. 184). Percebe-se, então, que, na linguagem teatral, o gesto também possui a função

de ênfase na comunicação verbal ou significação de uma mensagem não-verbal.

Na dança, a força simbólica do gesto é ainda maior, haja vista sua condição altamente

abstrata de significação de uma mensagem. O gesto na dança é sempre transfiguração de uma

idéia, razão pela qual sua manifestação é determinante para o entendimento do processo

comunicacional vigente nesta linguagem artística.

Langer explica o gesto na dança como elemento virtual, isto é, como ilusão criada a

partir do movimento, conferindo ainda mais valor à dança como comunicação do corpo. Para

Langer (2003, p. 183): “gesto é a abstração básica pela qual a ilusão da dança é efetuada e

organizada”. A autora explica:

O gesto da dança não é um gesto real, mas virtual. O movimento corporal,

por certo, é bem real; mas o que o torna gesto emotivo [...] é ilusório, de

maneira que o movimento é ‘gesto’ apenas dentro da dança. Ele é

movimento real, mas auto-expressão virtual (LANGER, 2003, p. 186).

O gesto na dança, portanto, possui caráter de reforço de significação do movimento. É

como se o movimento na dança precisasse do gesto assim como a palavra na comunicação

verbal também precisa. O gesto é, deste modo, sempre um elemento expressivo que ratifica e

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131

dá significação às idéias da comunicação, seja ela verbal ou não. Por essa razão o gesto é

unidade de linguagem.

Assim como na comunicação cotidiana via linguagem corporal, na dança o gesto

também caracteriza-se como unidade. O gesto é, na dança, uma unidade simbólica do

movimento. Sua função possui dominante estética47

e, logo, a dança, como linguagem,

constitui-se de unidades que ultrapassam a dominante utilitária da comunicação.

O gesto está para a dança assim como a palavra está para a poesia. Se na comunicação

verbal ou escrita a palavra possui função utilitária, na poesia a palavra tem sua função

ampliada para algo que está além da comunicação usual. Institui-se, portanto, uma linguagem

artística com apelo estético, isto é, a poesia, cuja menor unidade é a palavra.

Da mesma forma acontece com a dança, linguagem em que o movimento é

redimensionado em gesto, dando vez a seu potencial simbólico e ganhando uma função para além

da comunicação. O gesto para a dança é, assim, o movimento corporal com intenção simbólica.

Partindo deste princípio, porém, a comunicação na dança (e na arte de um modo geral)

também pode ter sua função ressignificada, uma vez que entender a existência do gesto (ou da

palavra) enquanto unidade estética de linguagem não significa eliminar a função

comunicacional dessa unidade. Pode-se dizer que, como a própria linguagem, na dança, a

comunicação também tem sua função prática redimensionada em função estética. É por essa

razão que se torna viável pensar a dança como linguagem.

Não é meta deste trabalho, contudo, discutir conceitos de comunicação, mas sim

refletir acerca da comunicação do corpo nos processos criativos em dança e, de modo

específico, no processo coreográfico de Avesso. Considerando o corpomídia e a dramaturgia

do corpo como caminhos pertinentes na compreensão da linguagem corporal, é interessante

pensar de que linguagem falam o gesto e, por conseguinte, o movimento no espetáculo.

3.2 O PLANO DE IMANÊNCIA NA COMPREENSÃO DA DANÇA COMO LINGUAGEM E

METALINGUAGEM

Partindo do que Katz e Greiner compreendem como dramaturgia do corpo, é possível,

então, inferir que o corpo é linguagem. Ora, se esta tese entende que o que faz uma dança ser

47

No próximo capítulo falarei mais detalhadamente sobre a noção de dominante e sobre as funções da arte.

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132

dança não é outra coisa senão o próprio intérprete criador e suas vivências, isto é, seu corpo

imanente, logo, a dança é corpo e, portanto, é linguagem, como sintetiza o diagrama abaixo.

Fig. 70 – Diagrama da dança como linguagem

Fonte: Ana Flávia Mendes

Nota-se que o corpo está no centro dessa relação, sendo a ele atribuída a possibilidade

de denominação da dança como linguagem. Se o conceito de corpomídia defende que o corpo

é o agenciador entre a natureza e a cultura, o corpo, como linguagem, é também o agenciador

que promove à dança o status de linguagem.

Há, porém, quem não concorde com esta afirmação. Gil (2004), ao estudar a dança

como linguagem, observa que, segundo Sparshott (apud GIL, 2004, p. 72),

é impossível recortar nos movimentos do corpo, unidades discretas

comparáveis aos fonemas de língua natural. [...]. A função de expressão dos

movimentos do corpo é muito mais rica que a da linguagem articulada que

depende, em grande parte, da função de comunicação do sentido verbal .

O que se percebe é a existência de uma opinião que não aceita a dança como

linguagem em função dos seus níveis de abstração. Para Sparshott (apud GIL, 2004), o fato de

a dança não imprimir códigos absolutamente legíveis como os das linguagens escrita e falada,

impossibilita denominá-la de linguagem.

Realmente os níveis de abstração de gestos e movimentos conferidos pela dança

dificultam uma leitura literal daquilo que é “dito” por quem dança. Qualquer que seja a

poética de dança, é difícil ter uma compreensão clara do que, comumente, dançarinos e

coreógrafos denominam de “frase de movimentos”.

Nas poéticas contemporâneas de dança, então, esta dificuldade amplia-se em razão da

não existência de códigos pré-estabelecidos. Se no balé, por exemplo, em que já existe um

repertório de códigos, ainda assim sua leitura não pode ser literal, nas danças contemporâneas

que se pretendem descobridoras de vocabulários de movimentos diferenciados, os códigos são

descobertos ao longo do processo e os níveis de abstração se tornam ainda mais complexos.

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133

Por outro lado, Gil argumenta que a compreensão da dança como linguagem é possível

justamente por meio da abstração, explicando que não se trata da abstração de uma informação

qualquer, mas sim de algo que seja dado pelo próprio corpo. Segundo o autor “a dança é o

próprio corpo que dança e é este sentido do movimento na dança que lhe confere o status de

linguagem. O que realiza o sentido do movimento do corpo é a imanência” (GIL, 2004, p. 78).

Gil se reporta justamente ao conceito de imanência, que dá sentido à denominação que

pretendo dar à poética do espetáculo Avesso, isto é, poética da dança imanente. É a partir do

plano de imanência de Deleuze que Gil explica a possibilidade de compreender a dança como

linguagem. Levando em consideração que, para Deleuze, a imanência é a própria vida e que, de

acordo com o que esta tese defende, o corpo é a própria vida, a imanência é a própria dança.

Segundo Gil (2004), o plano de imanência aplicado à dança é um plano de movimento

que engendra dois aspectos:

1. Pensamento e corpo precisam estar em conexão.

2. O movimento do corpo precisa ser infinito.

Tornar o movimento infinito é possível, de acordo com o autor, a partir do

agenciamento com outros corpos e para garantir isto é necessário produzir completa osmose

entre a consciência e o corpo, desenvolvendo, de modo particular, a consciência interior do

corpo. Ao que parece, as idéias de Gil estão em perfeito acordo com o ideal de corpo

imanente instaurado a partir desta tese.

O autor lança como sugestão para o aprimoramento da consciência interior do

dançarino a técnica de contato-improvisação, à qual me reportei no capítulo anterior. Gil

explica que Steve Paxton, coreógrafo americano, que desenvolveu a técnica nos anos 1960/70,

propõe chamar de pequena dança os movimentos microscópicos evidenciados nos primeiros

instantes das improvisações que partem do contato entre corpos. Esta “pequena dança” é,

portanto, a etapa de assimilação e percepção do interior do corpo promovida pelo toque de um

outro corpo.

Conforme comentado anteriormente, o contato-improvisação é um dos recursos

técnicos utilizados em Avesso, tanto no nível de processo quanto no de produto. Sua

utilização, contudo, não tem como prioridade o aprimoramento da consciência interior, apesar

da grande contribuição neste sentido, mas sim o exercício da consciência como um todo,

principalmente do exterior, evidenciando, a partir de ouros corpos, as noções de espaço e

tempo, além de propiciar a compreensão dos conceitos de corpo que o espetáculo engendra.

É impossível negar, porém, a contribuição que esta técnica propicia à consciência

interior, pois, conforme salienta Paxton, são os movimentos microscópicos que orientam e

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134

direcionam os movimentos macroscópicos dessa dança. Em Avesso, a técnica de contato-

improvisação é determinante para estabelecer os primeiros diálogos entre o corpo e o

ambiente e, por conseguinte, o corpo e o próprio corpo. Associada a outros recursos, dos quais

tratarei mais adiante, esta técnica é elemento de grande relevância para o despertar do

intérprete na descoberta de seu movimento autônomo e, logo, de sua dança imanente.

Esta dança imanente, por sua vez, é um reflexo da consciência interior de que fala Gil

(2004). Partindo da consciência interior o corpo dança a si próprio, formando o que o autor

chama de “corpo da consciência”. Nisto consiste o plano de imanência, pois da imanência da

consciência emerge a dança, possibilitando, assim, seu entendimento enquanto linguagem.

O plano de imanência, desta forma, amplia a qualidade de linguagem conferida à dança

para um predicado de metalinguagem, já que é no/ do/ pelo corpo que a imanência se faz dança.

Metalinguagem é um recurso lingüístico a partir do qual uma linguagem refere-se a si mesma. É

a partir deste recurso, do qual lanço mão na poética de Avesso, que falarei a partir de agora.

3.3 O DISCURSO METALINGÜÍSTICO DO CORPO

Para Houaiss (2005), discurso é uma “mensagem proferida em público” ou uma

“exposição metódica” ou ainda a “expressão de um modo de pensar, de agir”. Qualquer uma

das três definições, entretanto, tem como fundamento o princípio da comunicação, isto é, da

transmissão de idéias ou pensamentos.

Segundo Japiassú (1996, p. 74),

na acepção tradicional, o discurso não é uma simples seqüência de palavras,

mas um modo de pensamento que se opõe à intuição. Freqüentemente

denominado ‘pensamento discursivo’, ele é um pensamento operando num

raciocínio, seguindo um percurso, atingindo seu objetivo por uma série de

etapas intermediárias.

O discurso, então, comunica algo com uma lógica organizacional. O discurso tem uma

meta, é uma espécie de comunicação objetiva para um determinado fim. Discurso é, portanto,

comunicação e comunicação é linguagem.

Deste modo, assim como é possível pensar a comunicação do corpo, é possível pensar

o discurso do corpo, cuja linguagem agrega informações de natureza biológica e cultural,

conforme já argumentado anteriormente. O discurso do corpo e, logo, sua linguagem,

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135

dependem de sua própria construção bio-psico-social. O discurso do corpo é reflexo da

própria dramaturgia corporal.

Considerando os fatores externos ao corpo como informações que, por meio de

apreensão e transformação, isto é, impregnação cultural, passam a fazer parte do corpo, pode-

se inferir que os atos comunicativos do corpo, em especial os não-verbais, agregam

informações relativas ao próprio corpo. Eis aí o princípio da metalinguagem corporal.

Compreendendo a metalinguagem como “uma linguagem utilizada para se falar de

outra linguagem – a chamada ‘linguagem objeto’ – ou para analisá-la” (JAPIASSÚ, 1996, p.

181), é possível dizer que, no espetáculo Avesso, o corpo, visto como linguagem geradora de

informações referentes às suas próprias configurações, emite um discurso cujo conteúdo diz

respeito a sua qualidade de ser corpo, isto é, um discurso metalingüístico.

Segundo Japiassú (1996, p. 181): “o discurso teórico ou científico sobre a linguagem

seria assim tipicamente um discurso metalingüístico, na medida em que nele a linguagem é

usada não para falar das coisas, mas para falar de si própria”. Sendo a metalingüística,

conforme quer Jakobson (2001), a maneira segundo a qual uma linguagem fala de si mesma,

em forma de função acentuadora de seu próprio sentido e reveladora de seu próprio

instrumento, sugiro, no presente capítulo, pensar o discurso corporal do processo de criação

em dança no espetáculo Avesso como um discurso metacorporal.

Jakobson (2001, p. 47) diz que: “o recurso à metalinguagem é necessário tanto para a

aquisição da linguagem como para seu funcionamento normal”. Ao tecer uma analogia com a

abordagem metalingüística de Avesso, é possível constatar que o recurso à metalinguagem

(corpo falando/ dançando sobre si) é uma estratégia de auto-conhecimento promovedora da

descoberta da linguagem que se quer expressar através da dança. Nesse sentido, o espetáculo,

ao abranger a idéia de dança como metalinguagem do corpo, traz à tona a utilização dos

anteriormente citados elementos expressivos (movimento e gesto) como unidades de

linguagem que se reportam ao próprio corpo.

Em Avesso, o discurso do corpo não fala de outra coisa senão dele mesmo. O discurso

metacorporal do espetáculo cria, nessa perspectiva, um metacorpo que, concebido a partir do

próprio corpo em seu cotidiano, é evidenciado na cena coreográfica.

Reportando-me à proposta de dissecação vigente no espetáculo Avesso, verifico o quão

abrangente se torna esta noção ao considerar, efetivamente, os aspectos imanentes e

dramatúrgicos do corpo na criação do espetáculo. As imanências e dramaturgias que Avesso

disseca são os elementos expressivos dos próprios intérpretes-criadores. O que se tem no

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136

espetáculo é a construção de um repertório gestual que retoca/reforça/re-significa o repertório

dos movimentos do próprio corpo humano vivo.

É este o procedimento metalingüístico do espetáculo. Gesto que intensifica o

movimento corporal e/ ou o próprio gesto cotidiano, o metacorpo de Avesso se cria a partir da

comunicação do corpo consigo mesmo e com o meio, por intermédio da comunicação

orgânica e fisiológica não visível a olho nu e da comunicação cultural tornada orgânica pelas

práticas comportamentais do indivíduo.

Para Langer, a criação em dança parte do princípio da codificação de um sentimento

inventado e tornado gesto (simbólico e virtual). Para a autora, a dança “brota de uma idéia de

sentimento, uma matriz de forma simbólica” (LANGER, 1999, p. 216). Em Avesso a criação

parte do princípio da codificação não de um sentimento inventado, mas de uma sensação

sentida e experimentada no próprio corpo. O (re)conhecimento do dançarino acerca de sua

vida, sua organicidade, suas estruturas anatômicas, da percepção dos seus movimentos

internos e de sua natureza fisiológica, promove a construção e o redimensionamento de suas

dramaturgias corporais, sustentando as unidades de linguagem tanto na comunicação

cotidiana quanto, principalmente, na comunicação dançante do espetáculo.

Além disso, pode-se ainda inferir que o gesto, na sua qualidade virtual, como quer a

concepção de Langer para o gesto na dança, é elemento de reforço expressivo do movimento

informado pelo próprio corpo. Em suma, em Avesso os movimentos reais do corpo são sua

auto-expressão por intermédio de gestos virtuais. Cria-se, portanto, uma virtualidade que dá

ao corpo utilitário da vida cotidiana, um alto caráter simbólico, tornando-o expressão artística

de si mesmo. Assim, o gesto dançado no espetáculo torna expressivo e artístico os

movimentos vitais do corpo, transfigurando a própria vida humana.

3.4 A EXPERIÊNCIA METALINGÜÍSTICA DE AVESSO

3.4.1 A poética multisensorial do metacorpo na dança

As múltiplas possibilidades de comunicação e, logo, de linguagem a partir de códigos

não-verbais, como o gesto e o movimento, também têm características metalingüísticas, pois é

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137

por meio da percepção e expressão do corpo que se criam os códigos ou unidades de

linguagem.

Esses códigos são expressos e/ou percebidos no/pelo corpo a partir dos sentidos, que

captam e distribuem informações de ordem comunicacional. Através dos sentidos, o homem

agrega natureza e cultura, percebendo organicamente o ambiente e devolvendo ao ambiente

uma outra condição de organicidade.

É como dizem Rector e Trinta (1999, p. 35):

O ser humano consegue perceber o mundo, recortá-lo segundo um modelo,

absorvê-lo e transformá-lo em cultura através de seu próprio corpo e dos

meios que este dispõe para efetuar tal função. Estes instrumentos

privilegiados são os cinco sentidos: a visão, a audição, o tato, o paladar, o

olfato. Estes sentidos estão condicionados por dois outros fatores: espaço e

tempo. Os sentidos, aliados a estas duas dimensões, são o instrumental de

que o homem dispõe para a apreensão, compreensão e desvelamento

intelectual do universo no qual está inserido. É pelo corpo que, de múltiplas

maneiras, o homem participa do mundo e, do mesmo modo, constitui ele

próprio um mundo.

A linguagem tem como característica, portanto, uma espécie de multisensorialidade.

Uma vez que a comunicação se dá nos diferentes níveis de percepção e expressão humanas,

seja no sentidos visual, auditivo, tátil, olfativo ou gustativo, esses sentidos tornam-se veículos

de linguagem, sendo aguçados pela necessidade que o corpo tem de comunicar-se.

Estabelecem-se, portanto, diferentes tipos de linguagem não-verbal, de acordo com as

percepções e expressões do corpo no ato da comunicação. Muitas pessoas sequer possuem a

consciência deste nível de interação, mas basta parar alguns segundos e pensar sobre como o

corpo reage a diferentes estímulos no seu dia-a-dia.

Desta maneira, cria-se comunicação, por exemplo, através do olhar, cujas posições

possuem significados variados. Birdwhistell (apud RECTOR; TRINTA, 1999, p. 37) designa

quatro posições significativas para o olhar enquanto elemento corporal de comunicação. São

elas: olhos bem abertos/arregalados; olhos sonolentos; olhos estreitados/semicerrados e olhos

firmemente cerrados. A partir dessa classificação, evidencia-se um grande repertório de

códigos de comunicação não-verbal através dos olhos.

Rector e Trinta (1999, p. 40), ao refletirem de forma generalizada sobre os modos

como as pessoas compreendem seus sentidos, comentam: “se a visão é tida como o mais

‘racional’ dos sentidos, é possível que seja a audição o mais ‘sensível’”. A audição, neste

sentido, exerce muito mais a função de percepção do que a de expressão no ato da

comunicação, captando as diferentes sonoridades do outro, do mundo e de si mesmo.

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O tato, por sua vez, é a forma mais primitiva de comunicação, já que “ o contato físico

é um elemento básico de nossa existência social” (RECTOR; TRINTA, 1999, p. 43). É por

meio do tato que se estabelece a proximidade entre os corpos, permitindo uma forma de

comunicação que se dá através das sensações de calor e frio, por exemplo, e das

manifestações de afeto (abraço, beijo, aperto de mão, entre outros) ou desafeto (empurrão,

chute, tapa, etc.).

Já os sentidos da gustação e do olfato criam níveis de comunicação mais abstratos,

estabelecendo códigos culturais de natureza gustativa e química, respectivamente. Através do

paladar, o indivíduo conhece os diferentes gostos e sabores do meio em que vive, enquanto a

linguagem olfativa provoca reações e comportamentos diversos por intermédio dos sinais

químicos que geram informações de ordem imaterial, uma vez que os cheiros não são

palpáveis.

Pensar em situações de comunicação no nível da percepção e expressão multisensorial

poderia render uma boa pesquisa. Como o intuito desta tese não é o aprofundamento neste

campo de estudo, permito-me apenas localizar as reflexões anteriormente expostas como

exemplos de comunicação não-verbal, evidenciando o potencial comunicativo do corpo e, por

conseguinte, do movimento, ainda que sem verbalização, isto é, sem o uso do aparelho

fonador.

Esses exemplos destacam, portanto, cinco tipos de comunicação: visual, auditiva, tátil,

gustativa e olfativa. Pensar os componentes orgânicos e estruturais desses sentidos, como

veículo de comunicação sinestésica entre o meio e o indivíduo, é uma maneira de entender o

corpo como linguagem.

No processo do espetáculo Avesso, as experiências multisensoriais da vida dos

intérpretes-criadores são levadas em consideração para a investigação e construção de códigos

para a dança. Movimentos e gestos emergem da percepção sinestésica desses artistas, os quais

localizam em suas mídias corpóreas seus elementos dramatúrgicos que nada mais são do que

suas imanências anteriormente referidas nesta tese.

Na dissecação do espetáculo, a multisensorialidade, conforme anteriormente

mencionada no capítulo dois, configura-se como estética do processo e do produto

coreográfico. O corpo assumido como conteúdo é o mesmo corpo que se caracteriza como

forma, e isto se dá por meio do despertar para a auto-percepção.

Durante a criação de Avesso, tudo gira em torno deste reconhecimento de si, uma vez

que uma de minhas motivações artísticas, compartilhada com a Companhia Moderno de

Dança, é justamente refletir acerca de questões relativas ao ser humano. Uma entre as

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139

experiências criativas do espetáculo pode ser evidenciada como exemplo. Trata-se do

laboratório denominado Banquete Multisensorial.

Nesse experimento, os intérpretes-criadores foram submetidos a exercícios de atenção

aos sentidos do tato, olfato e gustação, proporcionando o contato com diferentes sabores,

cheiros, texturas e temperaturas. Do doce ao amargo, do liso ao enrugado, do quente ao frio e

do perfumado ao mal cheiroso, os sujeitos desta pesquisa tiveram aguçados os três sentidos

que, a priori, não são utilizados como recurso criativo para a dança.

O sentido da audição participou ativamente da experimentação. Diante da

eliminação da visão, conseguida a partir do uso de vendas, o ato de escutar foi utilizado

como recurso promovedor de uma possível previsão das sensações de cheiro, gosto e toque.

Na medida em que as sensações eram percebidas, as respostas sensoriais dos intérpretes

eram registradas em vídeo e fotografias, a fim de realizar, posteriormente, uma análise

reflexiva sobre o laboratório e incorporar as informações apreendidas à pesquisa

coreográfica. Um exemplo de como foi processado o laboratório, pode ser evidenciado nas

imagens a seguir.

Na primeira delas, verifica-se a diversidade de estímulos oferecidos aos intérpretes-

criadores de Avesso. À esquerda e acima, o olfato detecta o odor de álcool. À esquerda e

abaixo, a gustação é aguçada pelo sabor de um biscoito. À direita e acima, o tato é

sensibilizado pelo uso de um creme hidratante e, finalmente, à direita e abaixo, a gustação é

tocada pelo sabor de um creme dental.

No segundo bloco de imagens, é dada ênfase às reações propiciadas pela apreensão de

sensações corporais captadas pelos órgãos dos sentidos, inicialmente pelo tato e, a seguir, pelo

olfato.

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Fig. 71 – Banquete Multisensorial 1

Diferentes estímulos lançados com o intuito de sensibilizar diferentes órgãos dos sentidos

Fonte: Ana Flávia Mendes

Fig. 72 – Banquete Multisensorial 2 Fig. 73 – Banquete Multisensorial 3

Estímulos lançados e sensações percebidas

Fonte: Ana Flávia Mendes

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141

Para os intérpretes-criadores do espetáculo, não somente o Banquete Musltisensorial,

mas vários laboratórios contribuíram para a descoberta do vocabulário gestual, como se

observa no depoimento a seguir:

Foram colocados para nós, através dos laboratórios, muitos estímulos. Não

só estímulos visuais ou auditivos, mas cheiros, gostos, coisas que fizeram a

gente mergulhar em certas percepções que a gente não tinha mergulhado

antes. Isso tudo a gente explorou e colocou pra fora mesmo, essa coisa

interna. E não só o interno pra fora, mas também o que tava fora passou a

ser percebido de um outro jeito (Nelly Brito)48

.

O resultado evidenciado nesta etapa do processo propiciou o desenvolvimento de uma

forma muito peculiar de comunicação que partiu de um contato íntimo dos envolvidos com

seus corpos imanentes, instituindo uma partitura corporal dramatúrgica de códigos não-

verbais oriundos de múltiplas sensações. Essas sensações, captadas pelas vias sensoriais,

foram redimensionadas e ressignificadas em unidades de linguagem, isto é, movimentos e

gestos participantes da poética cênica de Avesso.

3.4.2 Relações entre corpo sujeito e corpo objeto no discurso metacorporal em Avesso

De acordo com o que vem sendo argumentado nesta pesquisa, observa-se que os

processos de criação e encenação do espetáculo Avesso caracterizam-se, primordialmente,

como estratégias metalingüísticas. Os procedimentos de dissecação utilizados nesses

processos resultam em uma linguagem cênica expressa pelo corpo que fala dele mesmo.

De um modo geral, nas vertentes de dança que centram suas pesquisas no próprio

corpo e, por conseguinte, em Avesso, que lida com estratégias metodológicas de criação

pautadas em auto-percepção, antes de dançar o corpo percebe, mas percebe a si próprio e não

a um mundo exterior a ele. Ou ainda, o corpo percebe a exterioridade do mundo internalizada

nele mesmo.

A função primeira do corpo no processo de construção da metalinguagem em dança é,

assim, a de sujeito da ação de perceber. É possível considerar, então, que o corpo, sujeito

dessa ação, seja o seu próprio objeto? Esta questão poderia ter, a priori, uma resposta

48

Depoimento concedido no dia 07/10/2007.

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142

afirmativa, no entanto, no caso do espetáculo Avesso, verifico a existência de uma experiência

em que o corpo é sujeito e objeto, não em diferentes situações, mas simultaneamente.

Para melhor compreender o raciocínio das relações entre sujeito e objeto na

metalinguagem desta proposição criativa, proponho iniciar uma reflexão retomando as

discussões sobre as noções de corpo sujeito e corpo objeto, sugeridas por Merleau-Ponty

(1999) e apontada anteriormente nesta tese, na perspectiva de compreender os já mencionados

processos do espetáculo como estratégias de construção de discurso metacorporal.

Para Merleau-Ponty, o corpo vive e atua no espaço, sendo, portanto, sujeito no mundo

e não objeto do mundo. Segundo o autor, tudo parte de uma estreita relação entre corpo e

espaço, sendo o corpo não um objeto que simplesmente recebe informações, mas um sujeito

que as absorve, transforma e transmite, atuando efetivamente no meio em que está inserido.

Esse raciocínio configura o que Merleau-Ponty denomina de corpo próprio, isto é, o corpo

engajado como sujeito da percepção no mundo. Diz o autor:

Percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, retomando assim o contato

com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que iremos

reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural

e como que o sujeito da percepção (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 278).

Conforme explica Merleau-Ponty (1994), o corpo é sujeito no mundo. Esse mundo,

por sua vez, caracteriza-se como seu objeto de percepção, já que o objeto é “aquilo que se

apreende pela percepção” (JAPIASSÚ, 1996, p. 199). O fato é que a idéia do corpo próprio

funda-se na oposição entre as noções de sujeito e objeto, estabelecendo que o corpo percebe e

o mundo é percebido, ou seja, o corpo é sujeito e o mundo, objeto.

Não tenho a intenção de lançar uma teoria que se contraponha às concepções

fenomenológicas de Merleau-Ponty (1994), até porque a fenomenologia da percepção é um

dos pensamentos fundadores da noção de corpo imanente que esta pesquisa apresenta. Por

outro lado, se a aplicabilidade do corpo próprio se faz incontestável ao pensar a relação corpo

e ambiente, para o caso de Avesso ela pode ser perigosa por causar ao conceito de corpo

imanente uma impressão precipitada e enganosa.

Como pode a idéia de oposição presente na síntese do corpo próprio ser adequada a

estas funções do corpo em Avesso, já que se trata de um único sujeito, isto é, de um mesmo

corpo? Esta experiência criativa se dá, originalmente, pela ligação entre o corpo e ele mesmo

e, somente em uma segunda instância, pela relação do corpo no meio. Sendo assim, a

existência de uma condição de subordinação do corpo a ele mesmo não poderia ser

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143

considerada uma posição reducionista e colaboradora do risco de favorecer tendência à

dicotomia?

Ao observar tal condição dual, penso que talvez seja admissível desconsiderar a noção

de objeto inicialmente emprestada ao corpo, uma vez que esse objeto (corpo percebido)

também se conforma como o próprio sujeito da percepção (corpo que percebe). A relação que

se estabelece é de percepção do corpo, mas não é um outro que o percebe e sim ele mesmo.

Tudo é, por fim, um mesmo corpo e, portanto, um só sujeito. Onde está, desse modo, a

oposição entre sujeito e objeto vigente na síntese do corpo próprio?

Partindo deste princípio, a oposição se torna falaciosa e, logo, a síntese do corpo

próprio ganha novos contornos. É como se corpo e espaço tivessem o mesmo grau de

importância, de modo que o segundo não fosse subordinado ao primeiro e vice-versa.

Em seus estudos sobre as relações entre corpo, arte e tecnologia, Bruno (1999) explica

que, aparatos tecnológicos utilizados pelo corpo na condição de objetos, ao serem acoplados

no indivíduo, passam a configurar estruturas corporais que, na verdade, se tornam parte do

corpo sujeito, atuando e percebendo, então, como sujeito.

De acordo com a autora “o corpo objeto acoplado e interfaceado com a tecnologia,

pode perceber, sentir e tocar prescindindo em parte do corpo sujeito que encontra-se, pois,

parcialmente destituído do lugar de condição de toda experiência” (BRUNO, 1999, p. 108).

Sujeito e objeto se integram em uma só forma de corpo. O corpo, que seria sujeito supremo

dessa relação, perde esse status, filiando-se ao objeto e partilhando com ele da função de

perceber, inicialmente relativa apenas ao sujeito.

Tomando este olhar emprestado para o presente objeto de pesquisa, observo que o que

se tem não é uma relação antagônica entre sujeito e objeto, mas uma espécie de parceria, tal

qual a parceria entre corpo e tecnologia defendida por Bruno.

No espetáculo criado não considero o corpo imanente como um segundo corpo, objeto

do primeiro que, por sua vez, é o sujeito da ação. Esse segundo corpo é, na verdade, parte do

próprio sujeito. Trata-se de um único corpo em que as características de sujeito e objeto

existem em caráter de simultaneidade, não havendo, assim, sobreposição de um em

detrimento do outro.

Assim, tomo a liberdade de utilizar esta tese, instrumento de reflexão estética, para

questionar essas relações do corpo no sentido de levantar a possibilidade de um entendimento

diferenciado acerca das noções de sujeito e objeto, a fim de pensar de que maneira é

caracterizada a metalinguagem existente na proposição criativa de dança do espetáculo

Avesso.

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144

É possível dizer que o corpo, na sua função de sujeito, refere-se a si mesmo na

condição de objeto de percepção. Contudo, esse corpo, visto como linguagem geradora de

informações referentes às suas próprias configurações, emite um discurso cujo conteúdo diz

respeito a sua qualidade de ser corpo, isto é, um discurso metalingüístico. É o corpo, sujeito

da percepção, que discursa, por meio da linguagem cênica da dança, sobre aquilo que percebe,

ou melhor, que auto-percebe.

A noção de objeto, portanto, deixa de existir, uma vez que não há subordinação

alguma de qualquer um dos lados, ou ainda, não há sequer dois lados. Esta inseparabilidade é

que abre espaço para as imanências no processo criativo, instaurando, assim, uma poética de

dança em que se presencia um metacorpo, isto é, uma linguagem/discurso coreográfico

metacorporal.

Este discurso é facilitado pelas estratégias metodológicas de criação coreográfica, as

quais, ao atravessarem o corpo do intérprete e, por conseguinte, interferirem no seu processo

de auto-percepção, exercem plena influência na manifestação criativa da pesquisa de

movimentos para a coreografia.

Além disto, a encenação de Avesso como um todo, enquanto linguagem cênica, é um

reflexo do princípio de metalinguagem que subsidia a criação coreográfica. Não somente a

dança reflete o corpo, mas os demais elementos cênicos também. As múltiplas linguagens

artísticas da cena fazem referência ao corpo enquanto linguagem, seja na criação musical, no

cenário ou no figurino. Todos os elementos cênicos do espetáculo são reflexos da dissecação

do corpo imanente fundamentados pelo princípio da metalinguagem.

As referidas estratégias, porém, serão mais detalhadas no próximo capítulo, no qual

discutirei a aplicabilidade e funcionalidade das mesmas como intervenções influentes na auto-

percepção do intérprete-criador e, conseqüentemente, na configuração do processo de criação

questão, incluindo, neste, a concepção dos elementos que, além da coreografia, participam da

encenação.

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145

4 O CORPO VISIVO E O CORPO VISÍVEL: a conversão semiótica no processo de

dissecação em Avesso

A dança é o resultado de uma sucessão de imagens mentais, isto é, uma combinação de

elementos que, suscitados pela imaginação do criador, ganham vida por meio de uma

organização de gestos visíveis. É com base neste entendimento de dança que pretendo, no

presente capítulo, implantar as noções de corpo visivo e corpo visível, compreendendo a

composição coreográfica como um processo de transfiguração de imagens visivas em imagens

visíveis.

Proponho aqui, a partir das vivências do processo artístico que norteia esta pesquisa,

refletir acerca das diferenças existentes entre as referidas noções, entendendo que esse

processo, por sua vez, tanto suscita imagens do corpo na imaginação visiva dos intérpretes,

quanto promove a visualização literal do corpo, abordado como referencial para o processo de

criação.

Para discutir e fundamentar as noções de visivo e visível, minha argumentação

encontra-se pautada na compreensão do conceito de visibilidade que, proposto por Calvino

(1990, p. 110), consiste na qualidade de “pensar por imagens”. A visibilidade, portanto, é uma

capacidade inerente à imaginação humana, e por ser própria da imaginação, possui a condição

de gerar imagens.

Para subsidiar estas reflexões trago à tona os procedimentos metodológicos de criação

do espetáculo Avesso, isto é, a utilização de exercícios de sensibilização corporal que

propiciaram o aprimoramento da consciência e a percepção sutil do corpo, além do uso de

tecnologias médicas que geraram a visualização de camadas submersas da fisicalidade

humana.

Por meio das vivências processuais do espetáculo, é possível entender estas estratégias

metodológicas como possibilidades de criação de corpos visivos, acessíveis pela imaginação

visiva e, por sua vez, desencadeadoras da metalinguagem corporal que é a dança imanente,

conforme detalharei a partir de agora.

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146

4.1 A VISIBILIDADE DO CORPO IMANENTE

Segundo Calvino (1990, p. 99) é possível “distinguir dois tipos de processos

imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva

para chegar à expressão verbal”. Essa proposição coloca os processos imaginativos em duas

instâncias passíveis de serem emprestadas ao entendimento dos processos de criação em dança.

Nesta perspectiva, tanto uma quanto a outra seriam anteriores à expressão de uma obra

artística, contudo, na primeira, a criação das imagens mentais configuradoras de uma

determinada obra, seria resultante da experiência (literalmente) visual de algo, enquanto que

na segunda, essas imagens seriam criadas primeiramente a partir da imaginação do artista,

independente da visualização prévia de qualquer coisa.

No caso do processo de criação de Avesso, esta visibilidade possui grande especificidade,

tendo em vista a natureza do referencial coreográfico, isto é, o corpo, e, particularmente, uma

certa ênfase dada às estruturas corporais que não podem ser enxergadas a olho nu.

Trata-se de uma dança caracterizada pela utilização de movimentos não codificados,

porém originados no e pelo próprio corpo humano. Uma dança que se fundamenta nas

estruturas que fazem parte do cotidiano sensível, mas que não participam do cotidiano visível

do homem, já que sua visualização, pelo menos com vida, só pode acontecer a partir do uso

de determinados implementos tecnológicos.

É sobre este aspecto do corpo imanente que volto meu olhar reflexivo neste capítulo,

enfatizando as formas de visualização do corpo no ato da dissecação artística, sendo elas

imaginativas ou propriamente ditas, tanto no processo quanto no produto coreográfico.

Se a visualização literal dessas estruturas corpóreas somente pode acontecer por

intermédio de uma tecnologia específica, que acaba funcionando como um espelho interior, a

visibilidade, ao contrário, é possível na medida em que o homem se permita imaginá-las.

Nesta pesquisa, associo ambas as formas de lidar com o movimento na composição em dança,

isto é, uma visível e uma visiva. Esta abordagem configura-se como premissa metodológica

para o procedimento de dissecação artística do corpo na dança.

Adiante explicarei com maiores detalhes as relações entre as opções metodológicas do

espetáculo, considerando essas opções como a própria operacionalização ou o modo de fazer/

criar dança na construção de uma poética cênica. O que vale refletir, por hora, é sobre o fato

de, em Avesso, a visibilidade ser a etapa de formação das imagens vislumbradas pelos

intérpretes-criadores, na perspectiva de respaldar teoricamente o conceito de corpo visivo.

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Para compreender este processamento, vale lembrar a maneira como Calvino (1999, p.

110) descreve o que podem ser entendidas como as etapas de formação visual da imaginação

literária. São elas:

A observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica,

o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um

processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível,

de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do

pensamento.

Essas etapas, contudo, não necessariamente precisam seguir esta seqüência de

acontecimentos. O desencadeamento desses acontecimentos depende do próprio processo

criativo da obra literária, objeto de investigação do autor.

Estabelecendo analogias com as argumentações de Calvino, pressuponho que, no

processo de Avesso, o momento de maior evidência da visibilidade seja o que o autor

denomina de formação fantasmática e onírica de imagens. No caso deste espetáculo, trata-se

de imagens que se remetam ao corpo. Essas imagens se configuram por meio da realização de

atividades sensibilizadoras dos sistemas corporais, considerando ainda, nesta sensibilização, a

organicidade que ganham os aspectos não biológicos localizados nos níveis fisiológicos e

anatômicos do indivíduo, o que é possível pensar a partir das teorias que estudam o corpo,

utilizadas nesta tese. Essa experiência cria o que chamo de corpo visivo.

O corpo visivo, desse modo, é o conjunto de imagens desencadeadas pela imaginação

dos intérpretes-criadores. Falar sobre o desencadeamento dessas imagens, portanto, é falar

sobre a construção poética do espetáculo, sobre o desvelar do corpo imanente e, por

conseguinte, sobre a dissecação artística do corpo, proposta lançada a partir desta tese/

experiência criativa em dança.

4.2 DO VISIVO AO VISÍVEL: a forma formante e a forma formada nas transfigurações do

corpo

A experiência criativa aqui estudada tem, como um de seus propósitos, provocar no

intérprete-criador a atenção para o interior de seu corpo. Isto compreende a escuta das

sonoridades, a observação de diferentes sensações de temperatura e textura e até mesmo a

percepção de movimentos involuntários do corpo. Em suma, o que se quer é propiciar a

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148

captação de informações relativas à interioridade física do indivíduo. A partir da percepção

dessas interioridades pela experiência sensível, espera-se que o intérprete se permita

vislumbrar imagens visivas que, mesmo impregnadas de informações ou outras possíveis

formas de representação visual anteriormente vividas, venham a ser transfiguradas e

abstraídas em movimentos corporais visíveis, ou seja, expressões gestuais do pensamento.

Esta produção de imagens visivas caracteriza-se ainda por possuir a propriedade de

ressignificar o corpo, pois no momento em que o intérprete as vislumbra, a função das

estruturas corporais ocultas deixa de ser primordialmente fisiológica ou estrutural, passando a

ser, assim, estética. A dominante funcional dá vez à dominante estética, acontecendo então o

que Loureiro (2002) denomina de “conversão semiótica”.

Este autor estuda a conversão semiótica na cultura amazônica, explicando, através de

determinados fatos dessa cultura, que há uma mudança de qualidade simbólica onde os

elementos se reorganizam. Loureiro (2002, p. 124-125) explica que a conversão semiótica é:

O movimento de passagem pelo qual as funções se ordenam e se

experimentam em uma outra situação cultural. A conversão semiótica

significa o quiasmo de mudança de qualidade simbólica numa relação

cultural no momento de sua transfiguração. Ela pode ser observada, por

exemplo, na criação artística.

A fundamentação teórica do autor para tal conceituação situa-se, principalmente, na

noção de dominante, de Roman Jakobson e nas argumentações de Jan Mukarowsky (1993)

acerca das diferentes funções que a arte pode representar. Jakobson (apud LOUREIRO, 2007,

p. 33) diz que: “a dominante se define como o elemento focal de uma arte: ela governa,

determina e transforma os outros elementos”. Mukarowsky (1993), por sua vez, segundo as

observações de Loureiro, compreende que a estética é uma ciência que tem por meta estudar a

função estética, que seria a dominante das obras de arte.

São explicadas, no contexto ressaltado por Loureiro (2007), quatro funções para as

artes que são: a função prática, que se refere à dimensão utilitária das coisas; a função teórica,

que relaciona essas idéias a conceitos; a função mágico-religiosa, em que os objetos possuem,

prioritariamente, um caráter simbólico; e a função estética, na qual a matéria artística detém o

poder de despertar a necessidade humana de contemplação.

Em sua obra A Conversão Semiótica na Arte e na Cultura, diz Loureiro (2007, p. 35):

“entendo como conversão semiótica o movimento de passagem de objetos ou fatos culturais

de uma situação cultural à outra, pelo qual as funções se reordenam e se exprimem nessa nova

situação cultural, sob a regência de outra dominante”.

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O que existe na conversão semiótica, então, é uma espécie de rearranjo de funções e,

consequentemente, mudança de dominante. Um objeto do cotidiano, como por exemplo, um

utensílio de cozinha, se utilizado como matéria em uma obra de arte, tem sua função

prática/utilitária ressignificada em função estética, logo, sua dominante passa a ser a função

estética/artística.

Na dança, a ressignificação das imagens visivas de que fala Calvino (1990) pode ser

compreendida pela conversão semiótica do movimento ou do gesto. É como diz Loureiro

(2007, p. 52),

o gesto não pode ficar fora da possibilidade de sua utilização como forma

simbólica do sentimento, perdendo a dominância material e prática, e

passando a ser regido pela expressão do sentimento [...] em que a função

estética governa e caracteriza ou constitui a dança. Na coreografia, o gesto

padrão e utilitário é convertido semioticamente em gesto artístico.

É justamente neste sentido que compreendo as transfigurações do corpo no processo

criativo de Avesso e, por conseguinte, na proposição da dança imanente. Em minha

dissertação de Mestrado, propus observar a conversão semiótica do gesto cotidiano inerente às

grandes cidades, em gesto de dança na coreografia do espetáculo Metrópole, também dirigido

por mim para a Companhia Moderno de Dança. Nesta dissertação, argumentei: “o gesto

cotidiano comum, matéria prima do espetáculo, transfigura-se em gesto cênico, ressignificado

conforme as concepções artísticas” (MENDES, 2004, p. 98).

O que pretendo na atual pesquisa é emprestar esse olhar da ressignificação, sobre a

concepção da metalinguagem corporal que compõe a dança imanente do espetáculo Avesso.

Se em Metrópole houve conversão semiótica do gesto prático do cotidiano em gesto artístico

de dança, o que verifico agora, em Avesso, é uma conversão semiótica do movimento corporal

da vida prática do indivíduo bio-psico-social, em movimento corporal de cena artística.

Os padrões de movimentos anátomo-funcionais e, como não pode deixar de ser, sócio-

culturais, são transfigurados em padrões estéticos de movimento por meio do gestual

coreográfico do espetáculo. Neste momento, permito-me abrir espaço para uma breve reflexão

comparativa entre os dois espetáculos, não como forma de oposição, mas de

complementaridade.

Entendo que o primeiro trabalho funciona como um prenúncio da existência do

segundo, pois o corpo como referencial coreográfico pode ser observado em ambos os

espetáculos. Por outro lado, eu poderia dizer que, enquanto em Metrópole prevalecem as

questões culturais do indivíduo, em Avesso prevalecem as questões biológicas.

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Penso, no entanto, que essas questões não sejam motivo para prováveis antagonismos

entre as duas coreografias, pois o pensamento que ambas apresentam sobre o conceito de

corpo abarca todas essas questões. Levando em consideração a tendência a focalizar o corpo

como centro da obra, ambos os espetáculos configuram-se como metalinguagem do corpo.

Há, portanto, uma semelhança e um amadurecimento, uma vez que Avesso reforça o

desencadeamento da dança imanente, inaugurado com Metrópole.

Não obstante, Avesso pode e deve ser entendido como radicalização muito maior dos

padrões de movimento para a dança. Enquanto Metrópole apresenta-se bastante estruturado

por estratégias de composição respaldadas por técnicas de dança formais pré-existentes,

Avesso reflete o amadurecimento da compreensão de valores e conceitos de pós-modernidade

em dança, abrindo espaço muito maior para o desenvolvimento do intérprete enquanto criador

e da imanência como princípio criativo para a dança.

A experiência da conversão semiótica em Avesso é muito mais radical que em

Metrópole. Trata-se de uma transfiguração que mergulha no nível das sensações corporais,

dependendo muito mais de todos os canais de percepção. Tato, audição, paladar e olfato são

muito mais aguçados, ao contrário de Metrópole, em que essas fontes perceptivas não foram

tão tocadas quanto foi o olhar. Em Avesso, a conversão semiótica somente é possível por

causa do exercício da sensibilidade sutil associada, de modo muito mais provocador, à

capacidade imaginativa dos dançarinos.

Retomo, assim, a referência ao conceito de visibilidade que, em Avesso, é o próprio

corpo visivo imaginado pelo intérprete-criador. Acredito que a ressignificação das funções

corporais na visibilidade dos intérpretes seja um movimento de conversão semiótica, tendo

em vista a mudança de qualidade fisiológica em qualidade estética e, por conseguinte, sua

utilidade artística para um processo de composição em dança. O corpo visivo, portanto, é

produto de uma das conversões semióticas do corpo imanente, resultante de uma primeira fase

da dissecação artística na dança.

A partir das etapas apontadas por Calvino (1990) como participantes da formação

visual da imaginação, porém, é possível ir ainda mais longe nesta análise. Observando as

etapas de visualização e verbalização do pensamento, explicadas pelo autor, e considerando

que, na dança, esta verbalização seria a própria expressão gestual, pode-se dizer que, no

processo criativo em questão, há diversas conversões semióticas, as quais giram em torno da

transfiguração gestual da imagem elaborada no nível da imaginação do intérprete para a

imagem por ele produzida gestualmente a partir de sua pesquisa de movimentos.

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Isto, no entanto, não configura uma mudança de dominante, já que continua possuindo

valoração estética, mas, de qualquer maneira, promove uma outra qualidade simbólica para a

imagem visiva do intérprete-criador, a qual passa a ser a representação gestual e, portanto,

visível, dessa imagem. O corpo visivo transfigura-se em visível na forma de um metacorpo

que dança.

Sendo essas etapas de conversão semiótica do visivo ao visível, organizadoras do

processo de criação da coreografia, é válido salientar outras argumentações teóricas que

compõem a obra em questão, já que o mais importante aqui é a verificação do processo de

transfiguração das percepções corporais em gestos corporais visíveis.

Nessa perspectiva, portanto, é válido mencionar a noção de movimento tradutório,

proposta por Salles (1998). Tomando como princípio para sua proposta a crítica genética, isto

é, uma abordagem teórica sobre processos criativos que procura interpretá-los na gênese de

seus documentos e resíduos processuais, a autora explica que o movimento tradutório é uma

forma de tradução intersemiótica em que ocorrem diversas conversões durante o percurso

criador. Ele é um movimento de transformação “de uma linguagem para outra: percepção

visual se transforma em palavras; palavras surgem como diagramas, para depois voltarem a

ser palavras, por exemplo” (SALLES, 1998, p. 115).

Nestes movimentos é possível situar as conversões semióticas anteriormente

mencionadas. Em síntese: o intérprete é instigado a formular imagens mentais daquilo que é a

sua própria constituição anatômica e fisiológica não visível a olho nu, por intermédio de

exercícios pautados em métodos de trabalho para a consciência corporal. Através das

percepções sensíveis dessas estruturas, ele procura captar sonoridades, cores, formas, texturas,

sabores, cheiros e outras sensações que favoreçam essa formulação de imagens mentais,

utilizando essas imagens visivas que formulou, por fim, para expressar seus gestos de dança.

Trata-se, assim, de uma sucessão de movimentos tradutórios onde o núcleo investigativo e

criativo é o corpo ou do que Loureiro (2007, p. 55) chama de “processo de conversão

semiótica em cadeia”.

Sendo o corpo, portanto, núcleo investigativo e criativo do processo, ele é o próprio

referencial temático do trabalho em questão, constituindo-se como forma e conteúdo, questão

à qual já me referi em outros momentos nesta tese. O corpo reflete a si mesmo na dança,

configurando uma metalinguagem que apresenta claramente a inseparabilidade entre as duas

instâncias componentes da obra artística.

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Sobre esta inseparabilidade de forma e conteúdo, Pareyson (1997) argumenta que a

própria formação de uma matéria artística traz em si informações que refletem o seu

conteúdo, de modo que esse último diz respeito à própria forma apresentada pela obra.

Na arte, expressividade e produtividade coincidem. Há arte quando o

exprimir apresenta-se como um fazer e o fazer é, ao mesmo tempo, um

exprimir, quando a formação de um conteúdo tem lugar como formação de

uma matéria e a formação de uma matéria tem o sentido da formação de um

conteúdo. A arte nasce no ponto em que não há outro modo de exprimir um

conteúdo que o de formar uma matéria, e a formação de uma matéria só é

arte quando ela própria é a expressão de um conteúdo (PAREYSON, 1997,

p. 62).

É desta maneira que pretendo compreender a relação entre forma e conteúdo na

poética coreográfica aqui desenvolvida, atribuindo à forma em si mesma o assunto abordado

pelo conteúdo da dança. Essa forma-conteúdo da dança é, então, a forma da obra já

configurada.

Em se tratando de um melhor entendimento do quem vem a ser a forma na obra de

arte, porém, é válido ressaltar as reflexões de Pareyson sobre as noções de forma formante e

forma formada, diferenças às quais me reportei anteriormente no capítulo dois. O autor

explica que a forma formada é a própria forma da obra, isto é, seu formato configurado,

enquanto que a forma formante é a maneira como a forma dá formato a essa obra. Ela é o

próprio fazer como modo de operacionalização da obra artística, ou ainda, como formar, já

que o processo de formação de uma obra de arte “consiste em transformar em forma formada

a forma formante” (PAREYSON, p. 77).

De fato, no processo criativo de Avesso é possível atribuir a denominação de forma

formante sugerida por Pareyson, pois sendo o corpo motivo para a dança, é ele próprio quem

há de dar forma a essa dança, passando a ser assim uma forma formada. Uma vez que o

produto cênico pretende ter o corpo como forma-conteúdo, é esse próprio corpo que deverá

permear o fazer da obra. Neste processo de criação, o corpo não apenas é (na obra), ele é

sendo (também no processo), além de o ser enquanto conteúdo.

Refletindo acerca do intento deste trabalho, é relevante conjeturar que a forma

formada pode ser, portanto, a transfiguração (conversão semiótica, movimento tradutório) da

forma formante. Levando-se em consideração este raciocínio, suscito ainda uma outra

possibilidade de argumentação: a visibilidade dançada das imagens visivas produzidas pela

imaginação dos intérpretes é a forma formada das estruturas do corpo que, por sua vez, dão

vida a outras imagens visivas e, também, à forma formante da coreografia, isto é, ao

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movimento. Cria-se um ciclo em que o corpo imanente é forma formante do corpo visivo, que

é forma formante do metacorpo, que é forma formante do corpo imanente (agora

transfigurado), e assim sucessivamente.

Diante de tais reflexões, observa-se, por fim, que a dança acontece em um percurso de

transfigurações entre a realidade e a imaginação. É nesse entre-lugar que eu vislumbro

acontecer a dança imanente, sensibilizando os intérpretes para as suas próprias consciências

corporais e, com isso, propiciando-lhes condições para o exercício da criatividade imaginativa

e artística. Com isto vivencio, na direção artística deste trabalho, a criação de padrões de

movimento não codificados pelas técnicas de dança, vendo acontecer, portanto, a invenção e

reinvenção visiva e visível do próprio corpo que dança.

4.3 O CORPO VISIVO CRIADO A PARTIR DOS RECURSOS METODOLÓGICOS DO

ESPETÁCULO

4.3.1 Os princípios pedagógicos difundidos por Angel Vianna como estratégias no

processo de Avesso

Angel Vianna, bailarina e coreógrafa brasileira residente no Rio de Janeiro

desenvolveu, ao longo de sua carreira, um intenso trabalho de pesquisa para a preparação

corporal de atores. Nesta perspectiva, criou, juntamente com seu marido, o também

coreógrafo e bailarino Klauss Vianna, uma linha pedagógica à qual denominou de

conscientização do movimento.

Antes de mais nada, porém, é necessário explicar que conscientização do movimento e

conscientização corporal, item acerca do qual tratarei mais à frente, não são a mesma coisa

que consciência corporal. A primeira e a segunda configuram um modo de exercitar a terceira.

São métodos de aplicação da consciência sobre o corpo, isto é, maneiras de voltar a atenção

sobre o movimento a fim de compreender o corpo e vice-versa.

Faz-se também importante esclarecer que a concepção de consciência corporal vigente

nesta pesquisa não entende o corpo como objeto subordinado à consciência, mas admite a

interdependência de ambos na construção do indivíduo. Lembrando que a oposição entre as

noções de sujeito e objeto torna-se falaciosa a partir da instituição do metacorpo na dança,

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saliento que o que a presente investigação quer é, portanto, afinar os dois sujeitos (corpo e

consciência), possibilitando a existência de uma consciência do corpo e de um corpo da

consciência, congregados na imanência do intérprete-criador.

Fisher (apud FREITAS, 1999, p. 74) afirma que “a consciência do corpo é definida

como a maneira pela qual a atenção sobre o corpo é distribuída”. Neste sentido, o corpo da

consciência pode ser definido como a maneira pela qual essa consciência emerge no

movimento corporal, estabelecendo assim a já mencionada interdependência. O que aqui se

pretende é justamente o exercício desta atenção sobre o corpo para que dela o intérprete-

criador descubra que movimentos dançar.

Pensar em consciência corporal, portanto, requer pensar sobre como ela se processa e,

por este motivo, levar em consideração as noções de esquema corporal e imagem corporal. “A

imagem corporal é uma construção que se assenta nos sentidos, especialmente os visuais, mas

também os táteis e sinestésicos” (SCHILDER apud FREITAS, 1999, p. 22).

Schilder (1980, p. 11) explica o seguinte:

Entende-se por imagem do corpo humano a figuração de nosso corpo

formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta

para nós. Há sensações que nos são dadas. Vemos partes da superfície do

corpo. Temos impressões táteis, térmicas e de dor. Há sensações que vêm

dos músculos e seus invólucros, indicando sua deformação; sensações

provenientes da inervação dos músculos e sensações provenientes das

vísceras. Além disso, existe a experiência imediata de uma unidade do

corpo. Esta unidade é percebida, porém é mais do que uma percepção. Nós

a chamamos de esquema de nosso corpo, esquema corporal. [...]. O

esquema do corpo é a imagem tridimensional que todos têm de si mesmos.

Podemos chamá-la de imagem corporal.

Partindo da concepção de Schilder, verifica-se a indistinção entre os termos imagem

corporal e esquema corporal, optando o autor pelo segundo como denominador próprio à idéia

que temos de nós mesmos, de nossa estrutura física. Além disso, o raciocínio do autor em

relação ao conceito acompanha todo o raciocínio de corpo que esta tese apresenta,

considerando as suas transformações e seu caráter de instabilidade, pois ele considera que “a

imagem corporal, antes de ser algo pronto e definitivo, altera-se constantemente e permanece

estável apenas o suficiente para voltar a modificar-se” (FREITAS, 1999, p. 22).

Entendo, portanto, que a consciência corporal é como algo maior a que se chega por

intermédio de uma compreensão da imagem do corpo. A consciência corporal é um reflexo da

imagem corporal. As técnicas corporais cujo enfoque está no aprimoramento da consciência

do corpo têm, justamente, a qualidade de possibilitar ao indivíduo o contato mais próximo

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com sua imagem corporal. Isto se dá por meio do exercício da auto-percepção, em que são

observadas as construções e alterações da imagem que se tem de si mesmo.

Como técnicas de consciência corporal, o espetáculo em estudo não propõe ter em seu

processo este ou aquele método reproduzido, mas utiliza princípios de métodos já existentes

para o desenvolvimento de seus próprios procedimentos. Um desses métodos é a

conscientização do movimento.

A conscientização do movimento é uma proposta metodológica que tem como intuito

promover, ao seu praticante, o aprimoramento da consciência corporal. A proposta de Angel

Vianna, portanto, é instigar o comportamento consciente do indivíduo sobre si mesmo,

propiciando o seu auto-conhecimento.

O modo de atuar da conscientização do movimento deve possibilitar ao

corpo a capacidade de reflexão, para que possa refletir não as regras

estipuladas para serem obedecidas, mas a compreensão de suas relações e de

como elas se processam na dinâmica da vida. [...]. A prática de

conscientização do movimento visa despertar o corpo na instância de quem

sabe que tem e sente um corpo” (TEIXEIRA, 2003, p. 71-72).

O trabalho de conscientização do movimento proposto por Angel Vianna muito se

assemelha às perspectivas de Avesso, isto é, o desenvolvimento de uma linguagem em dança

subjetiva e pessoal a qual, já mencionada no segundo capítulo, denomino de movimento

autônomo.

Aliás, não há como negar a influência da prática e do pensamento de Angel Vianna

sobre a Companhia Moderno de Dança, grupo formado pelos sujeitos desta pesquisa. O

contato com as idéias da mestra se deu a partir de aulas ministradas pelo professor Alexandre

Franco, bailarino e coreógrafo formado pela Faculdade Angel Vianna, que leciona nesta

instituição.

Desde 2003, Franco vem mantendo encontros periódicos com os fazedores do

espetáculo Avesso, o que, certamente, implica não apenas na construção poética do grupo,

mas também na filosofia de trabalho de todos, inclusive e, especialmente, na minha maneira

particular de conceber coreografias.

De acordo com Ramos (2007, p. 20),

Angel considera indispensável que o ator/ bailarino seja orientado a criar seu

próprio movimento, sua forma pessoal de se mover. Para ela, essa

descoberta é individual e não deve se basear em nada preestabelecido como

verdadeiro ou certo.

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156

É exatamente esta a idéia que fomento nos intérpretes-criadores de Avesso, valorizando o

potencial criativo individual de cada dançarino e instigando-os a descobrir o movimento que o

corpo quer executar. Esta é a noção de movimento autônomo e, logo, uma meta que direciona os

princípios e procedimentos para dissecar o corpo no fazer do espetáculo.

O desvelar do movimento autônomo, porém, encontra-se na dependência do auto-

conhecimento do intérprete-criador. Quanto maior o nível de percepção e consciência

corporal, maiores as chances de desenvolver uma linguagem e, para Avesso, uma

metalinguagem, de movimentos autônomos.

A conscientização do movimento “é um trabalho que, partindo de inquietações, busca

um conhecimento consciente do corpo, por meio do aumento da capacidade de percepção”

(RAMOS, 2007, p. 29). É esta inquietação que move o processo criativo de Avesso. O intuito

maior, a partir do espetáculo, é tornar o intérprete-criador consciente do corpo por meio de

uma associação de métodos e, conseqüentemente, desenvolver, de forma criativa e autônoma,

o movimento a ser dançado.

Teixeira (2003, p. 75) ressalta, a partir da proposta de conscientização do movimento,

quatro formas de consciência que retratam sua presença num indivíduo. Para a autora, cuja

fundamentação teórica sustenta-se em Damásio (apud TEIXEIRA, 2003, p. 75), para quem a

consciência é “seletiva, contínua e pessoal”, podem ser consideradas quatro maneiras de

consciência. São elas:

a) Consciência interior – “enfatiza a noção de movimento constante que os sistemas do corpo

produzem, estando o corpo inerte ou não: circulação, pulsação, respiração, vibração”.

b) Consciência seletiva – “fixa a atenção num ponto do corpo para aumentar as

possibilidades de conexões, fluidez e aprimoramento”.

c) Consciência contínua – “percepção e sensação corporal vão tornando evidentes as partes

do corpo mapeadas no cérebro”.

d) Consciência pessoal – “sinaliza-se a privacidade do indivíduo, cada um com seu corpo,

sem se projetar no outro, resultando em conteúdos subjetivos, próprios da mente”.

Essas consciências são ativadas no processo criativo de Avesso, pois o que se pretende

é desenvolver uma linguagem de movimentos autônomos cujos princípios básicos são o auto-

conhecimento e a auto-percepção, conforme repetido várias vezes nesta tese. O metacorpo vai

se criando a partir do corpo visivo, instigando as consciências interior, seletiva, contínua e

pessoal do corpo imanente.

Essas consciências se fazem evidentes em todas as etapas do processo criativo de

Avesso, desde a interior que é, a priori, a mais óbvia, por ser o elemento fundador do

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espetáculo, até a pessoal, que engloba outros aspectos subjetivos dos intérpretes-criadores,

abrindo espaço para a implementação do movimento autônomo a que tanto me refiro.

Voltar a atenção para as estruturas anatômicas internas é, contudo, a prioridade desta

experiência coreográfica. Por essa razão, a seguir dedicarei uma sessão deste capítulo às

opções promovedoras da consciência dessas estruturas, isto é, da consciência interior que se

faz exercida no processo de dissecação do corpo por intermédio do método Body-mind

Centering®. Por enquanto, deterei meus esforços sobre os métodos de consciência corporal

cujas propostas partem dos princípios difundidos por Angel Vianna.

Imbassaí (2003) sugere uma maneira muito eficaz para trabalhar os princípios

metodológicos da conscientização do movimento e, conseqüentemente, a geração do que

chamo de imagens visivas do corpo. Trata-se da chamada conscientização corporal, que pode

ser entendida como um desdobramento da proposta pedagógica de Angel Vianna.

De acordo com os parâmetros da autora, esta vertente de trabalho corporal tem como

objetivo “controlar os níveis de estresse e promover a integração corpomental, por meio da

sensibilização: reativação de órgãos sensórios” (IMBASSAÍ, 2003, p. 51). Seu princípio,

segundo a autora, é justamente voltar a atenção para as sensações, dinâmica, postura,

tonicidade e equilíbrio do corpo.

A conscientização corporal não é psicologia, doutrina religiosa ou

fisioterapia. Trata-se de um trabalho de auto-regulação do tônus muscular e

de organização postural, com técnicas de relaxamento, micromovimentos

(consciência mio-ósteo-articular = músculos, ossos, articulações),

criatividade, dança livre.

De acordo com Imbassaí (2003, p. 52), uma aula de conscientização corporal é

composta de quatro etapas que, “abordadas sob o princípio de simultaneidade do trinômio

mover/sentir/pensar”, consistem em:

a) Espreguiçamento: momento de desprendimento das tensões acumuladas por meio de

alongamentos fisiológicos.

b) Relaxamento consciente: experiência em que o indivíduo entrega-se a um estado de

passividade sem perder a atenção sobre os acontecimentos vigentes em seu corpo.

c) Micromovimentos: etapa cujo objetivo é fazer com que haja conscientização por meio das

sensações corpóreas percebidas a partir dos comandos direcionadores da atividade.

d) Uso do espaço: momento de dança livre em que possa ser experimentada uma espécie de

improvisação a partir de estímulos diversos que estejam, preferencialmente, relacionados

com as sensações provocadas pelas etapas anteriores.

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158

Na proposta coreográfica em estudo nesta tese, a percepção a qual me refiro não

possui prioritariamente uma finalidade preventiva ou terapêutica, funções primeiras da

conscientização corporal, mas sim um sentido de estímulo à pesquisa e criação de vocabulário

de movimentos. Esta percepção, portanto, caracteriza-se como uma experiência de auto-

percepção semelhante ao entendimento que Lowen (1984) propõe.

Segundo o autor,

a auto-percepção contém o potencial para a expressão criativa. É um estado

de ser que permite a fusão de opostos dentro do self e entre o self e o mundo

externo. Todo ato criativo é um reflexo da auto-percepção, que, em si

mesma, é a expressão da força criativa dentro da personalidade. Toda pessoa

criativa é dotada de auto-percepção na área de seu talento criativo. Toda

pessoa auto-consciente possui um potencial criativo em todas as áreas de sua

consciência. [...]. Quanto mais auto-consciente for a pessoa, mais criativa

será e vice-versa (LOWEN, 1984, p. 218).

Lowen (1984) relaciona diretamente a auto-percepção com o potencial criativo do

indivíduo. Para ele, o conhecimento que alguém possui de si é contributivo para sua vida por

instigar, por meio da consciência, a criatividade. Por essa razão, creio ser possível, através da

sensibilização proposta, tanto pela conscientização corporal quanto pela conscientização do

movimento, despertar e desenvolver a criatividade daqueles que vivenciam experiências da

natureza dessa prática. No caso específico da dança, a opção de aplicação de exercícios pode,

portanto, contribuir no modo como os intérpretes e coreógrafos implementam suas maneiras de

dançar.

É fato que as tendências da dança cujo referencial é o próprio corpo, conforme

acontece com a Companhia Moderno de Dança, se encontram em profundo diálogo com as

práticas de auto-percepção e consciência, razão pela qual utilizo a referida estratégia no

processo criativo de Avesso.

Conforme argumentado diversas vezes nesta tese, este processo adota como premissa a

noção de intérprete não como repetidor de algo que eu, enquanto coreógrafa, venha a

desenvolver, mas sim como criador de sua própria movimentação. Por essa razão, o uso dos

princípios de consciência aqui abordados, seja a partir dos métodos de conscientização do

movimento ou de conscientização corporal, gera um material relevante para a criação da

coreografia. Relevante e altamente condizente com a poética de dança que se quer encenar.

As etapas descritas por Imbassaí (2003) são experimentadas em diversos laboratórios

da Companhia Moderno de Dança, mesmo naqueles que não dizem respeito ao espetáculo

Avesso. A partir dos princípios vigentes nessas etapas, são desenvolvidos diferentes exercícios

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de auto-percepção com finalidade criativa. À auto-percepção e à conscientização é atribuída,

portanto, a qualidade de meio para atingir um fim, que é artístico.

O que se pode verificar especificamente nos laboratórios de Avesso, porém, é um

verdadeiro aprimoramento da consciência do corpo e, por conseqüência, uma expansão

significativa da capacidade de exteriorização das sensações corporais.

As impressões dos intérpretes-criadores corroboram este pensamento. Dizem eles:

O Avesso mudou completamente a companhia. A coisa da consciência

corporal é absurdamente diferente depois do Avesso. O corpo está muito

mais consciente. Eu tenho certeza que o nosso amadurecimento enquanto

pessoa contou pra isso, mas se não houvesse laboratórios e pesquisa teórica

e prática, nós não seríamos como somos hoje. Esse estudo coletivo, esse

diálogo contribui muito pra isso (Nelly Brito)49

.

No Avesso fica bem claro pra mim a questão do meu tremor. Desde a agonia

que me dá de não conseguir fazer direito as coisas algumas vezes por causa

dele, até a forma como eu me utilizo disso pra descobrir o movimento. [...].

É a própria história da minha vida, que eu trago muito, desde os primeiros

exercícios do processo. Ao mexer com isso de percepção, consciência

corporal e dança, eu percebo que ali, na minha história de tremor, é onde eu

sempre chego, de alguma forma. Eu uso isso e isso acaba tendo um enfoque

muito grande na dança (Ercy Souza)50

.

Por meio da auto-percepção, os intérpretes são estimulados a experimentar diferentes

estados corporais e, a partir disso, diferentes movimentos para a cena da dança. Esses estados

de corpo, vivenciados pelos intérpretes criadores, informam a criação da coreografia tanto no

sentido da forma quanto no da expressividade dos movimentos.

4.3.2 Princípios de Body-mind Centering® na criação do corpo visivo

O Body-mind Centering® (BMC®) é um método de trabalho corporal inserido no

campo da educação somática51

. Segundo Cohen (2005, p. 1), “é uma viagem experimental ao

território do corpo vivo e em constante transformação” (tradução minha). A partir dessa

49

Depoimento concedido no dia 14/11/2007. 50

Ibidem. 51

A educação somática é uma área pedagógica de abordagem teórico-prática, interessada nas relações entre a

motricidade humana, a consciência e o aprendizado e que valoriza como estratégia o aprendizado pela vivência e

a compreensão da percepção. Cf. BOLSANELLO, Débora. EDUCAÇÃO SOMÁTICA: o corpo enquanto

experiência. Disponível em: <http://www.rc.unesp.br/ib/efisica/motriz/11n2/11n2_08DBB.pdf>. Acessado em:

04/01/2008.

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160

jornada, o indivíduo torna-se apto a compreender como se dá a expressão do pensamento por

meio do movimento corporal.

A fundamentação desta terapia está nas bases anatômicas e fisiológicas e nas emoções

originadas de diferentes pontos do corpo. O BMC® investiga a comunicação entre o corpo e a

mente por meio de sistemas corporais, observando como essa comunicação afeta o equilíbrio

orgânico, seja na respiração ou nas percepções de um modo geral. Além disso, o BMC®

analisa os padrões neurológicos e a integração deles com o movimento, aprimorando a auto-

consciência do indivíduo.

As aplicações do BMC® são diversas, abrangendo finalidades educacionais, artísticas

(dança, teatro, artes visuais e música, dentre outras) e terapêuticas (ocupacional, massagem,

psicoterapia, etc.). Carcacker (2007, p. 7) explica que a beleza do BMC® consiste justamente

nas suas possibilidades para o indivíduo. De acordo com a autora, “por causa da maneira

como o BMC® atinge níveis muito diferentes do indivíduo, o criativo, o terapêutico e o

espiritual parecem particularmente conectados” (tradução minha).

Como integrante do campo da somática, vale ressaltar o papel que este método tem na

reeducação do movimento. É importante salientar, contudo, que:

A maioria das disciplinas somáticas não são práticas de dança, no entanto,

[...] princípios e métodos encontrados nas disciplinas somáticas podem,

certamente, ser aplicados em treinamento de dança e processos criativos

(CARCACKER, 2007, p. 3) (tradução minha).

A educação somática tem profunda relação com os objetivos desta tese, sendo uma

prática absolutamente adequada à proposta metodológica de criação utilizada em Avesso. Por

esta razão, é justo destacar a relevância desta experiência criativa que, além de sua

contribuição estética, colabora com o campo somático de abordagens corporais.

Assim como nas proposições da Companhia Moderno de Dança,

Nas disciplinas somáticas [...], o aprender é centrado no aluno e dirigido

para o aluno. O aprendizado somático estimula o senso sinestésico,

contando com as sensações físicas como princípio de experiência e

expressão. Os alunos aprendem a organizar a atenção em torno de suas

sensações físicas em movimento, contando, primeiramente, com a

percepção visual das formas externas e, em seguida, transferindo a ênfase

para o seu próprio corpo. Este procedimento, situa o corpo como lugar e

origem da informação e aprendizado, validando a experiência subjetiva do

conhecimento e criando, desse modo, um novo paradigma para a educação

do movimento (CARCACKER, 2007, p. 3) (tradução minha).

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161

Tomei conhecimento da existência do BMC® no primeiro semestre do curso de

doutorado em artes cênicas, mais especificamente por intermédio de aulas práticas

ministradas pela Profa. Dra. Leda Muhana Iannitelli na disciplina Seminários Avançados II.

Logo nos primeiros contatos, observei que se tratava de algo não apenas interessante, mas

absolutamente coerente com o que eu propunha no projeto de pesquisa que originou esta tese.

As sensações corporais percebidas nessas aulas imediatamente me remeteram à idéia

de dissecação artística do corpo que, até então, eu pensava em desenvolver apenas com uso

das tecnologias médicas e dos métodos de consciência corporal inspirados no trabalho de

Angel Vianna. Não tive dúvida, o BMC®, definitivamente, precisava ser integrado à minha

proposta, pois ele possibilitava um nível de percepção corporal muito mais interior,

penetrando nas camadas mais submersas da fisicalidade humana.

Para trabalhar com este método, é necessário realizar um curso de formação e, assim,

obter uma certificação tornando-se apto a aplicar as técnicas. A formação visa “aprofundar a

compreensão da relação entre corpo e mente. Essa compreensão é desenvolvida através do

toque, do movimento, de estudos cognitivos de anatomia e fisiologia, além do diálogo verbal”

(CARCACKER, 2007, p. 3) (tradução minha).

Como não tive a oportunidade de obter esta formação52

, minhas pretensões de

utilização do método limitaram-se à compreensão de seus princípios e ao desenvolvimento de

minhas próprias propostas de exercícios, fundamentados, é claro, na idéia de aprimorar nos

intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança, a percepção dos órgãos e sistemas do

corpo. Esta estratégia garantiu fidelidade aos objetivos do processo e, ao mesmo tempo,

flexibilidade no que diz respeito aos níveis de comprometimento com o método.

Carcacker (s/d, p. 4) afirma que o mínimo contato com o BMC® faz com que o

indivíduo descubra “quais sistemas corporais são como alicerces e quais estão escondidos nas

sombras, presentes, porém não sendo expressos” (tradução minha). A tomada de consciência

desses sistemas e, a partir daí, a sua melhor expressão, são um exemplo de que o método

amplia consideravelmente os níveis de consciência do corpo.

52

Cursos de formação em BMC® são disponibilizados principalmente na Europa e Estados Unidos. No Brasil, é

possível certificar-se em São Paulo, através de módulos mensais, o que não foi viável para mim até então, tendo

em vista o fato de minha pesquisa ser desenvolvida em Belém do Pará. Apesar disto, tive a oportunidade de

vivenciar uma semana intensiva de experiências com o método em maio de 2006 na capital paulista, com Mark

Taylor, seguidor de Bonnie Bainbridge Cohen (criadora do método) e Adriana Pees (profissional responsável

pelas certificações no método em São Paulo). Nesta ocasião, os ministrantes enfatizaram a sensibilização da pele

e dos ossos, mergulhando, ainda, na percepção de vísceras e do sistema nervoso. Alguns dos exercícios aos quais

me submeti nesta vivência serviram de inspiração para o desenvolvimento de minha proposta metodológica na

criação do espetáculo Avesso.

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162

Na experiência de Avesso, a eficácia do método, inclusive, ultrapassou os objetivos

criativos, promovendo aos intérpretes-criadores uma auto-percepção muito aguçada,

surpreendendo até mesmo profissionais da área médica, conforme é possível observar no

depoimento a seguir.

Uma coisa que eu devo muito ao Avesso, pelo menos é isso que eu acho, é

que eu descobri que tinha areia nos rins por causa da atenção pro meu

corpo. Se eu não tivesse essa consciência corporal toda, que foi

proporcionada pelo processo do espetáculo, eu não iria perceber essa areia

nos rins, só se eu tivesse pedra. O médico falou que é muito difícil sentir

dor quando ainda se está no estágio de areia. É muito difícil mesmo. Estava

muito no começo, tanto é que eu tratei em uma semana. O médico só

constatou que era areia por causa do exame de urina porque na

ultrasonografia não dava pra ver. Eu tenho certeza que eu devo isso ao

Avesso (Christian Perrotta)53

.

A mais significativa contribuição do BMC®, porém, foi direcionada para o campo

criativo do espetáculo, favorecendo a implementação de vocabulário de movimentos para a

dança, pois, como afirma Carcacker (2007, p. 4),

o BMC® ajuda os dançarinos a se tornarem mais amplamente sabedores e

incorporadores de todos os seus tecidos, sistemas e padrões motores. A

partir da expansão de nosso alcance de escolhas quando iniciamos o

movimento, podemos encontrar mais equilíbrio e liberdade por meio da

utilização dos corpos de modo mais eficiente e com mais sutileza e

especificidade de expressão (tradução minha).

Se o objetivo prioritário desta pesquisa é dissecar para desenvolver uma linguagem

metacorporal, devo admitir a eficiência do BMC® neste processo criativo. Associado aos

princípios das conscientizações do movimento e do corpo e, ainda, às tecnologias médicas das

quais tratarei a seguir, os princípios do BMC® são recursos extremamente úteis para a criação

do corpo visivo, cujas imagens exteriorizam-se por meio das imanências do intérprete-criador,

transformando-se, por fim, no que chamo de poética da dança imanente.

53

Integrante do elenco da Companhia Moderno de Dança em depoimento concedido no dia 14/11/2007.

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163

4.3.3 A visibilidade por meio das tecnologias médicas

Dentre os recursos metodológicos elencados para a criação de Avesso lanço mão de

tecnologias médicas, que nada mais são do que fontes de observação do corpo humano

próprias da medicina. Entendendo a tecnologia como um conjunto de procedimentos técnicos,

é possível dizer que as tecnologias médicas usadas para a construção do espetáculo

compreendem o manancial de técnicas de estudo do corpo formalmente utilizadas no campo

das ciências da saúde. No processo criativo aqui refletido, essas técnicas são selecionadas e

têm sua aplicabilidade adequada ao campo artístico da dança.

Como opções técnicas de estudo do corpo constituintes destas tecnologias médicas,

utilizo Atlas de anatomia, vídeos didáticos sobre o funcionamento corporal, práticas em

laboratórios de anatomia54

e, com maior ênfase, a observação de diagnósticos de exames

médicos por imagem. Este último recurso é diferencial para a pesquisa de Avesso, tendo em

vista o fato de funcionar como uma espécie de espelho do interior do corpo.

A estratégia de uso das tecnologias médicas tem como objetivo possibilitar a

ampliação do conhecimento dos intérpretes-criadores do espetáculo sobre as estruturas

orgânicas e seu funcionamento. Isto significa que o processo criativo propõe aprofundar no

dançarino o conhecimento do corpo por meio de estudos de anatomia e fisiologia humanas

para que, associando a isto os exercícios inspirados nos métodos de consciência corporal aos

quais me referi nas sessões precedentes, seja criado um vocabulário metacorporal de

movimentos imanentes.

Conforme explicado anteriormente, das tecnologias médicas relacionadas na pesquisa

coreográfica aqui analisada, é dada maior proeminência aos exames médicos com

diagnósticos por imagem. Enquanto os Atlas e vídeos possibilitam a visualização de imagens

fictícias produzidas por artistas/desenhistas ou por computação gráfica, os exames médicos

configuram imagens verdadeiras do interior do corpo. Essas imagens, porém, mediadas e

propiciadas por máquinas, ainda que verdadeiramente próprias do corpo humano, apresentam-

se de modo estranho e quase irreconhecível para o olhar humano do senso comum, que não

possui a aptidão necessária para fazer a leitura exata de formas, texturas e, logo, de

diagnósticos, como fazem os especialistas no assunto.

54

Essas práticas consistem em estudos a partir de cadáveres, monitorados por professores e universitários da área

de saúde. Durante o processo criativo de Avesso isto foi possível de forma geral e panorâmica mediante as feiras

de anatomia periodicamente promovidas pelo Centro de Ciências da Saúde da Universidade da Amazônia

(UNAMA).

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164

Por este motivo, levando em consideração o quesito veracidade da matéria biológica, é

possível questionar se o estudo prático da anatomia em cadáveres, que também é utilizado

como recurso nesta pesquisa, ainda que panoramicamente, não seria mais eficaz. Entendo,

entretanto, que a visualização do interior do corpo propiciada pelos diagnósticos médicos por

imagem, vale-se do corpo humano vivo, ao contrário da estratégia desenvolvida nos

laboratórios de anatomia. Isto se configura em uma diferença significativa, já que o intuito

maior aqui é pensar sobre o corpo em movimento, isto é, sobre a vida. Esta possibilidade de

enxergar o corpo por dentro em movimento, até então, apenas as técnicas de diagnose por

imagem podem propiciar.

Por outro lado, existe um fator com o qual se precisa contar, mesmo com o uso dos

recursos visuais gerados pelos exames médicos: a impossibilidade de compreensão literal do

interior do corpo. Trata-se de uma questão relevante no fazer do espetáculo Avesso. Para os

dançarinos, observar o cérebro por meio de uma tomografia computadorizada é uma atitude

absolutamente imprecisa do ponto de vista prático da medicina. No entanto, a precisão que se

faz necessária para diagnosticar um problema de saúde, seja ele funcional ou morfológico,

não é prioritária para o processo artístico, pois o que se pretende aqui é, simplesmente,

fomentar a criatividade de quem dança.

A título de esclarecimento, então, ressalto que todas as vezes que me utilizar do termo

tecnologias médicas, faço referência ao agrupamento das técnicas médicas de estudo do corpo

selecionadas para a criação de Avesso e, principalmente, aos exames médicos diagnosticados

por imagem, já que este é, dentre os recursos médicos, o mais acessado pelo espetáculo, em

processo e produto.

Como forma de contemplar o objetivo estético da dança teórica e prática que engendra

esta pesquisa, inicialmente pensei em usar exames médicos realizados com os próprios

intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança. Por uma série de questões legais e

éticas da medicina, esta idéia não foi levada a termo, cabendo a mim, enquanto pesquisadora,

redefinir as táticas de ação. Assim, optei por aceitar a oferta de alguns médicos consultados,

que se dispuseram a doar imagens em vídeo de exames de alta resolução de pacientes não

identificados. Além disto, fiz uso da internet, encontrando um vasto material disponibilizado

em sites de pesquisa médica, e de exames com imagens estáticas dos próprios dançarinos, que

lançaram mão de seus arquivos pessoais.

Uma vez que a não utilização dos sujeitos da pesquisa nos referidos exames não

implicaria problemas de ordem conceitual ou organizacional para o espetáculo e a tese,

optei por investir no emprego do material coletado como indutor para os laboratórios de

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165

experimentação coreográfica, sempre associando a observação dessas imagens aos

exercícios de improvisação inspirados nos métodos de consciência corporal55

aplicados ao

elenco.

Mesmo ciente de que a realização de exames médicos nos próprios intérpretes-

criadores e seu uso como recurso criativo dariam ao espetáculo um outro perfil, ao longo do

processo considerei que o grupo vinha atingindo um resultado estético satisfatório, de modo

que a opção por não mais recorrer a comitês de ética em pesquisa médica para o

desenvolvimento do projeto, tornou-se definitiva.

Para desenvolver esta pesquisa artística, escolhi três formatos de exames médicos por

imagem, priorizando informações de forma, cor e textura propiciadas pelas imagens, além do

movimento interior do corpo. São eles: tomografia computadorizada do sistema nervoso

central, endoscopia e ecocardiograma, cujas imagens estáticas podem ser aqui observadas.

Fig. 74 – Tomografia computadorizada do sistema nervoso central

Fonte: Vídeo-cenografia do espetáculo Avesso

55

A menção ao termo métodos de consciência corporal, sempre faz referência aos métodos empregados no

processo criativo do espetáculo, que são: conscientização do movimento, conscientização corporal e Body-mind

Centering®.

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166

Fig. 75 – Endoscopia

Fonte: Vídeo-cenografia do espetáculo Avesso

Fig. 76 – Ecocardiograna

Fonte: Vídeo-cenografia do espetáculo Avesso

O uso desses exames no estímulo à descoberta do movimento tem relação com as

poéticas contemporâneas de dança que se valem das novas tecnologias como recurso criativo

e cênico.

Segundo Santana (2002), novas tecnologias, no sentido dessas poéticas, são as

tecnologias da era digital. Suas relações com o homem têm origem nas pesquisas espaciais da

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167

Nasa, a partir do uso de simuladores e, também, nos estudos de biomecânica e ergonomia e na

produção cinematográfica.

Na dança, Miranda (2000) explica que Löie Füller seria uma espécie de precursora do

gênero dança com novas tecnologias, a partir de seus experimentos para vídeo com variações

de cores, mas esta observação não leva em consideração a noção de novas tecnologias como

algo relativo à era digital. Santana (2002, p. 29), por sua vez, tecendo abordagem em torno do

universo tecnológico da era digital, explica que “a primeira pesquisa conhecida no uso do

computador como assistente coreográfico data de 1964 – realizada por Jeanne Beaman e Paul

Le Vasser”.

Santana argumenta ainda que, após este marco, foram desenvolvidos vários programas

auxiliares para a composição e notação coreográfica, tais como o Benesh Editor, o Laban

Writer e o Life Forms, utilizado para que o coreógrafo crie a coreografia, inicialmente, no

computador e, em seguida, transporte-a a para a cena. Este último foi desenvolvido para

utilização do coreógrafo norte americano Merce Cunningham, em quem a autora focaliza suas

investigações para pensar a dança e as novas tecnologias.

Ao longo dos anos, outros programas e elementos computacionais vêm sendo

desenvolvidos para a dança. Um desses recursos de destaque chama-se Improvisation

Tecnologies, do coreógrafo e intérprete-criador William Forsythe. Este programa é um

recurso auxiliar na compreensão dos princípios que regem a técnica de improvisação

desenvolvida por ele. De um modo geral, tecnologias como esta têm como objetivo, além da

criação, a possibilidade de pesquisa, análise, registro e ensino em dança.

Paralelo ao desenvolvimento desses programas, porém, surgem outras poéticas cênicas

em que o corpo se faz dança por meio de recursos digitais. Assim acontece com o vídeo-

dança, por exemplo, que acaba se configurando como mais uma categoria neste ambiente

coreográfico e tecnológico. O palco para a dança deixa de ter sua formatação tradicional e a

cena coreográfica pode acontecer na tela do computador, na projeção de um dvd, dentre

outros lugares, a priori, improváveis. O corpo é ressignificado, ganhando inclusive, por meio

da sua digitalização, possibilidades de onipresença.

Desse modo, pensar em dança e novas tecnologias requer compreender esta forma de

dança como poética que centra a pesquisa coreográfica não apenas em máquinas, mas nas

interfaces entre homens e máquinas, focalizando, para tanto, a interatividade como palavra-

chave nesta relação. Neste sentido, pode-se evidenciar a existência das novas tecnologias

tanto como ferramentas para a criação, isto é, como procedimentos benéficos para um

resultado artístico que não depende delas, quanto como matéria artística em que elas próprias

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se fazem presentes no resultado artístico. As novas tecnologias, então, podem ser entendidas

como recurso cenográfico, metodológico ou podem exercer ambas as funções, como acontece

no espetáculo Avesso.

Assumo a tecnologia médica dos exames diagnosticados por imagem, utilizados no

espetáculo, como recurso tecnológico da era digital e, logo, como nova tecnologia, conforme

define Santana (2002). Partindo deste princípio, essa nova tecnologia em Avesso tem como

papel principal, servir metodologicamente à pesquisa coreográfica, mas também exerce a

função cenográfica, uma vez que é levada à própria encenação.

Sobre este segundo caso, tratarei mais detalhadamente quando fizer referência aos

elementos cênicos do espetáculo que vão além da coreografia. Por enquanto, interessa-me

refletir sobre a primeira função das tecnologias médicas utilizadas no processo criativo, que

colaboram enquanto método de investigação do corpo, de estímulo à improvisação e, por

conseguinte, à própria criação do corpo visivo, transfigurado em visível na cena da dança.

Para tanto, recupero aqui uma das vivências da Companhia Moderno de Dança,

relativas ao processo do espetáculo, em que os três exames escolhidos para informar a

construção do espetáculo foram utilizados em um mesmo laboratório de improvisação.

Nesta ocasião, os intérpretes-criadores foram, inicialmente, submetidos à visualização

exaustiva das imagens em dvd desses exames. Nesta visualização, foi solicitada a observação

minuciosa de quatro aspectos estruturais das imagens: cor, forma, textura e velocidade dos

movimentos. Cada dançarino observou detalhadamente, desenvolvendo analogias com objetos

e/ou situações comuns ao cotidiano.

Em seguida, foi realizado um laboratório de improvisação motivado por uma espécie

de viagem pelo interior do corpo, mais ou menos como no roteiro do filme de ficção científica

Viagem Fantástica56

. Foram utilizados como estímulo: mudanças de temperatura no

ambiente, propiciadas pelo uso e não-uso de aparelhos de ar condicionado na sala de ensaios

do grupo; mudanças de textura, mediante a utilização de tecidos, telhas e outros objetos

propiciadores de variações na superfície da sala; líquidos frios e quentes colocados em contato

com a pele dos dançarinos, além do uso de diferentes estímulos sonoros, sempre buscando

relação com as imagens dos exames médicos apresentados no início daquela experiência.

O resultado apresentou, entre os intérpretes-criadores, uma enorme diversidade de

imagens visivas do corpo que desencadearam a descoberta de movimentos relevantes para a

56

Este filme trata de uma tentativa de cura para um paciente com tumor cerebral. Para isto, cientistas são

diminuídos de tamanho, dentro de uma espécie de submarino, e injetados na circulação do paciente, percorrendo

vários órgãos do interior do corpo na perspectiva de chegar ao sistema nervoso central. O filme foi assistido

coletivamente pelos integrantes da Companhia Moderno de Dança.

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169

pesquisa coreográfica, contribuindo, assim, para a formatação multisensorial da dança

imanente.

Maiores detalhamentos sobre o processo criativo do espetáculo, tanto no âmbito da

utilização das tecnologias médicas, quanto no do método de conscientização do movimento

por Angel Vianna e no BMC®, serão dados a partir de agora. Antes, porém, vale destacar o

caráter de inseparabilidade das estratégias metodológicas de investigação do corpo em

Avesso, o que é reflexo da interação das experiências no desencadeamento da pesquisa. É o

agrupamento dessas opções metodológicas que propicia a criação de corpos visivos e suas

conversões semióticas, por meio da cena de dança, em corpos visíveis.

4.4 POR UMA ESTRUTURAÇÃO METODOLÓGICA DE CRIAÇÃO DA DANÇA

IMANENTE

Retomo as reflexões lançadas nos capítulos anteriores para reportar-me ao plano de

imanência aplicado à dança, de que fala Gil (2004) e que subsidia a instituição do conceito de

corpo imanente, próprio desta pesquisa. Conforme abordado há pouco, percebo que tanto os

métodos de consciência corporal que partem dos princípios defendidos por Angel Vianna,

quanto o BMC® e as próprias tecnologias médicas, propiciam a consciência interior do corpo

para o espetáculo Avesso. Essa consciência, apontada por Gil (2004), no plano de imanência,

como elemento necessário à compreensão da dança como linguagem, é evidenciada na

proposta metodológica do espetáculo aqui estudado.

Ao passo que Gil sugere o contato-improvisação57

como técnica adequada para a

aplicação do plano de imanência à dança, pode-se também assumir os recursos metodológicos

aqui explicados, como apropriados ao emprego deste plano na dança. Isso se explica pela

eficácia desses recursos no que tange à consciência interior do corpo, comprovada nos

experimentos desta tese. A partir do processo de Avesso e, logo, das estratégias metodológicas

de que lança mão a Companhia Moderno de Dança na implementação da sua poética da dança

imanente, os recursos aqui elencados podem ser compreendidos também como modos de

operacionalização do plano de imanência desenvolvido conceitualmente por Deleuze.

57

Técnica esta que, por sinal, também é utilizada em Avesso, conforme explicado anteriormente no capítulo dois.

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170

Essa constatação surge no sentido de valorizar os procedimentos desenvolvidos para a

criação de Avesso, como recursos passíveis de estruturação metodológica, a qual se

materializa pelo processo criativo, sendo descoberta e desenvolvida durante o próprio

processo. Conforme verificado na sessão anterior, em concordância com os conceitos

contemporâneos de estética, o processo de Avesso é caracterizado pela formação de uma

matéria cuja forma não é pré-existente, mas se faz formada conforme se descobrem os

procedimentos que regem sua prática criativa.

Essas descobertas gerenciam a criação do espetáculo que se forma enquanto obra e

poética cênica de dança cujos princípios regentes são os princípios da pós-modernidade,

dentre os quais merecem destaque a multiplicidade e a liberdade criativa, aos quais me referi

no capítulo dois.

Cria-se, assim, uma espécie de estrutura de procedimento(s) criativo(s) que se

justifica(m) e encontra(m) subsídio justamente nos princípios da pós-modernidade

coreográfica. Os capítulos dois, três e quatro desta tese apresentam, cada um, um princípio a

partir do qual se cria o procedimento criativo maior e, logo, os sub-procedimentos que

possibilitam a criação da dança imanente. Para cada um desses princípios há um raciocínio

teórico fundante, que pode ser sintetizado pelas seguintes nomenclaturas: corpo imanente,

metacorpo e corpo visivo.

No capítulo dois, trago a imanência como primeiro princípio criativo de Avesso e, por

conseguinte, da dança imanente. No capítulo três, evidencia-se a metalinguagem como

princípio e no presente capítulo, o princípio da visibilidade. É como se os princípios da pós-

modernidade coreográfica fossem os propiciadores da criação dos três princípios criativos da

dança imanente, conforme resumido no diagrama abaixo.

Fig. 77 – Diagrama dos princípios da dança imanente

A pós-modernidade coreográfica como possibilidade para a imanência, a metalinguagem e a visibilidade

Fonte: Ana Flávia Mendes

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171

O processamento desses princípios dá-se pelo procedimento da dissecação, à qual me

reporto no capítulo um e cuja síntese conceitual se manifesta na noção de corpo dissecado. O

corpo dissecado é, portanto, resultado do procedimento de dissecação, para o qual são

utilizados os sub-procedimentos metodológicos, isto é, exercícios de aprimoramento da

consciência corporal pautados nos métodos de conscientização do movimento,

conscientização corporal, Body-mind Centering® e no uso das tecnologias médicas, além da

própria técnica de contato-improvisação e, é claro, das técnicas corporais58

experimentadas

pelos dançarinos no decurso de suas vidas.

Neste procedimento, a sensibilidade e a percepção são aguçadas nos intérpretes-

criadores. As imanências dos artistas emergem, gerando, primeiramente, imagens visivas.

Essas imagens se transfiguram em movimentos repletos de subjetividades, aos quais chamo de

movimentos autônomos, que apontam para um vocabulário de linguagem particular

fundamentada no próprio corpo.

Este é o procedimento da dissecação, que instaura a poética da dança imanente. Não

obstante, é no conceito de corpo imanente, personagem principal do processo criativo, que se

evidenciam as transfigurações e conversões semióticas de corpo, que nada mais são do que o

próprio ato da dissecação artística. Cria-se, assim, um ciclo que centra no corpo imanente as

suas transfigurações em corpo visivo e metacorpo, devolvendo no plano visível da dança, um

corpo imanente transfigurado, como demonstra a imagem a seguir.

Fig. 78 – Diagrama do procedimento de dissecação

As transfigurações do corpo imanente no processo criativo da dança

Fonte: Ana Flávia Mendes.

58

No sentido que imprime Marcel Mauss em sua noção de técnica corporal, já evidenciada no capítulo dois.

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172

Neste percurso de transformações e conversões semióticas, o processo criativo de

Avesso apresenta como resultado estético uma grande diversidade de informações relativas ao

vocabulário de movimentos criados para a dança. Evidencia-se, desse modo, uma trajetória de

construção cênica em que as imagens visivas, caracterizadas por abstrações de natureza

individual, implicam em qualidades de movimento, formas e características expressivas ricas

em subjetividades, como querem os conceitos de movimento autônomo e corpo imanente.

Para analisar o resultado estético das experiências laboratoriais do processo criativo do

espetáculo em questão, proponho observar as três etapas de transfiguração/conversão

semiótica do corpo imanente. Essas etapas são as seguintes:

1. Proposição de exercício de sensibilização/percepção/improvisação para os intérpretes-

criadores, aplicado a partir de um repertório criado pelo coreógrafo/diretor nos

laboratórios de pesquisa coreográfica.

2. Geração de imagens visivas pelos intérpretes-criadores, etapa em que o corpo visivo é

vislumbrado na imaginação dos dançarinos.

3. Observação do resultado estético da experiência, que compreende as qualidades de

movimento predominantes, as formas evidenciadas a partir dessas qualidades e, por fim,

as características expressivas do corpo.

Na terceira etapa, isto é, na observação do resultado estético da experiência criativa,

foram estabelecidos três itens de análise partindo da perspectiva da instauração de um

vocabulário de movimentos próprio da Companhia Moderno de Dança, em que os elementos

individuais são tornados grupais por meio de apreciações, trocas de idéias e informações ou,

simplesmente, diálogos. Essas individualidades, na medida em que se interpenetram, ganham

maior sentido de grupo, instalando uma espécie de subjetividade coletiva na coreografia.

O primeiro dos três itens de análise selecionados para esta pesquisa diz respeito às

qualidades de movimento. As qualidades de movimento referem-se à categoria expressividade

da Análise de Movimento Laban (Labananálise). Segundo Fernandes (2002), a Labananálise

ou LMA (Laban Movement Analysis) é um sistema de análise de movimentos desenvolvido

pelo Instituto Laban/Bartenieff de Estudos do Movimento, localizado em Nova Iorque,

compreendendo tanto as categorias pré-estabelecidas por Laban em suas pesquisas de

movimento quanto os fundamentos corporais criados por Bartenieff. A autora explica que a

Labananálise

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173

funciona como um meio sígnico multiplicador, em que os intérpretes

relêem a partitura (de movimentos) para recriar vários de seus elementos,

porém mantendo sua característica principal a cada momento. [...]. O

método funciona como uma estrutura para improvisação em sala de aula,

auxiliando o aluno a descobrir seus potenciais de movimento e

desenvolvê-los de forma organizada, codificados em um sistema

(FERNANDES, 2002, p. 31).

As categorias de análise de movimento que a Labananálise propõe englobam Corpo,

Expressividade, Forma e Espaço, uma separação de natureza metodológica para melhor

observar e descrever o movimento analisado. Interessa-me aqui falar sobre a categoria

Expressividade, da qual brotam as chamadas qualidades de movimento. As qualidades do

movimento podem ser classificadas por quatro fatores que são: fluxo, espaço, peso e

tempo.

Fernandes (2002) argumenta que o fator fluxo diz respeito à tensão muscular utilizada

para deixar o movimento fluir livremente (fluxo livre) ou para controlá-lo (fluxo controlado).

O fator espaço classifica-se em direto e indireto, conforme a atuação e foco do indivíduo no

ambiente durante o ato de mover-se. O fator peso faz referência à força empregada pelo corpo

no movimento, podendo ser leve ou forte e, por fim, o fator tempo indica a velocidade com

que se executa um movimento, seja ela lenta ou rápida. Claro que as variações entre esses

opostos (livre X controlado, direto X indireto, leve X forte, lento X rápido) implica em pensar

nas possíveis características intermediárias de qualidades de movimento, entretanto, os

parâmetros de análise da expressividade dessas qualidades e suas variantes intermediárias são

sempre relacionados aos quatro fatores que Laban propõe investigar.

Laban também classifica os movimentos a partir de algo que chama de ações básicas.

Essas ações caracterizam-se pelos modos de atuação do corpo no espaço. O

coreógrafo/pesquisador classifica, portanto, oito ações básicas do movimento. São elas:

pontuar, chicotear, socar, flutuar, torcer, deslizar, sacudir e empurrar.

A professora e pesquisadora norte-americana Valerie Hunt propõe trabalhar as

qualidades de movimento e as ações básicas indicadas por Laban de forma sintetizada, a partir

do que, em seus estudos de cinesiologia, denomina de Padrões de Excitação Neuromuscular.

Hunt utiliza os princípios básicos que norteiam e diferenciam o funcionamento neuromuscular

e identifica quatro qualidades distintas de movimento: sustentada, ondulatória, explosiva e

condensada.

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174

De acordo com Iannitelli (s/d), o movimento sustentado utiliza o mínimo de contração

dos músculos agonistas59

, ou parte deles, para o deslocamento e movimentação no espaço.

Sua característica expressiva assemelha-se ao ato de flutuar. A qualidade de movimento

ondulatória ou movimento ondulatório é decorrente da alternância de contrações entre grupos

musculares opostos ou alternância entre contrações de um mesmo grupo muscular, resultando

em movimentos de ondas, conforme sua própria denominação.

Os movimentos explosivos são resultantes da máxima contração de músculos

agonistas seguida de relaxamento, acontecendo com variações de amplitude, de modo súbito e

até mesmo brusco, como sugere sua denominação. Os movimentos condensados, por sua vez,

utilizam contrações simultâneas de grupos musculares agonistas e antagonistas, exigindo um

grande desprendimento de energia e gerando qualidades fortes e densas na movimentação.

Sem pretender realizar um estudo cinesiológico da coreografia de Avesso, julgo

interessante utilizar as nomenclaturas instituídas por Hunt no processo criativo do espetáculo

no sentido de realizar minha análise de acordo com a natureza expressiva dos movimentos

qualificados pela pesquisadora, refletindo, principalmente, acerca de suas características

formais. Tal opção justifica-se pela possibilidade de desenvolvimento de uma análise

simplificada do resultado estético dos procedimentos de pesquisa de movimento, sem precisar

adentrar nas minúcias da Labananálise. Nesta análise, porém, não deixo de considerar as

possíveis variações de tempo e espaço explicadas pelo sistema da Labananálise. Em minha

proposta, portanto, considero as qualidades de movimento - sustentada, ondulatória, explosiva

e condensada e suas variantes de sentido (direto/indereto/estágios intermediários) e

velocidade (lento/rápido/estágios intermediários) - para observar os resultados dos

laboratórios de sensibilização/percepção/improvisação.

O segundo item de análise do resultado estético da experiência da dança imanente

refere-se às formas evidenciadas na improvisação. Classifico as formas nesta observação em

quatro possibilidades que são: retas, sinuosas, quebradas e mistas. Esta idéia origina-se das

teorias do Design, campo de estudo que se destina a desenvolver projetos de produtos para o

consumo humano. Dentre os produtos concebidos pelos designers estão as jóias e os móveis,

além de outros objetos de utilidade e decoração.

Souza (2006) propõe uma pesquisa interdisciplinar envolvendo o design e a dança e,

para tanto, projetando uma coleção de móveis inspirada nas linhas de movimento

59

Músculo agonista é o principal responsável pela execução de um movimento, contrapondo-se ao músculo

antagonista, que se opõe ao trabalho para reduzir o potencial do agonista. (Cf. Dicionário da atividade física e

saúde. Disponível em: <http://www.cdof.com.br/dicionario.htm>. Acessado em: 04 jan. 2008).

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175

predominantes na coreografia do espetáculo Avesso, tema de estudo desta tese. A intérprete-

criadora da Companhia Moderno de Dança, bacharel em design e pesquisadora nesta área, em

sua monografia de pós-graduação em design de móveis, explica a importância das linhas no

projeto de um mobiliário como elemento básico de maior relevância, tendo em vista seu

elevado poder atrativo sobre os consumidores.

A linha é um elemento fluido que define a forma, é um conjunto de pontos

distribuídos de forma seqüencial. Alguns tipos de linha são: horizontal,

vertical, diagonal, sinuosa, espiral, quebrada e mista. Dependendo do tipo, o

estilo do produto refletirá qualidades diversas, tais como: estaticidade,

dinamismo, mais dinamismo, linha feminina, sugestão de infinito,

fragmentação e caos (SOUZA, 2006, p. 23-24).

A autora estuda essas linhas e suas respectivas qualidades sugeridas na dança de

Avesso para desenvolver seu projeto de mobiliário, garantindo ao produto, além de seu já

esperado valor comercial, um significativo valor artístico. Interessa-me nesta tese empregar as

características das linhas usadas na pesquisa de Souza como lente para a análise das formas

predominantes na pesquisa de movimentos do espetáculo. Para isto, seleciono as quatro

formas às quais me referi anteriormente, compreendendo que as chamadas linhas horizontal,

vertical e diagonal, caracterizam-se pela forma reta, assim como as linhas sinuosas acarretam

forma sinuosa para o movimento, podendo ainda esta forma estender-se à linha espiralada. As

linhas quebradas conferem ao movimento forma predominantemente quebrada e as mistas

associam todas as formas já explicadas.

O terceiro e último item de análise aqui evidenciado congrega as características

expressivas do movimento, levando em consideração aquilo que o corpo pode significar a

partir de suas formas e qualidades de movimento predominantes. As características

expressivas variam muito de uma experiência laboratorial para a outra, podendo, muitas vezes

serem confundidas entre si. Outra constatação que esta pesquisa aponta é o fato de que uma

única pessoa pode congregar diversas características expressivas na exteriorização do corpo

visivo, corroborando a idéia do corpo rizomático e do próprio conceito de corpo sem órgãos,

já discutidos no capítulo dois desta tese.

A noção de características expressivas fundamenta-se no conceito de expressão,

oriundo das teorias do teatro, que a entendem como a totalidade dos recursos utilizados pelo

ator na encenação. Pavis (1999) explica que a expressão realiza-se pela expressividade

corporal e gestual do ator e pela significação que se observa através desses recursos

interpretativos. No caso desta pesquisa, a expressão relaciona-se com esta idéia teatral da

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176

expressividade do ator60

, referindo-se, sobretudo, ao modo como o intérprete-criador, por

intermédio de sua movimentação, faz com que o movimento remeta a um determinado tipo de

comportamento humano e, logo, a um determinado estado corporal, uma maneira de proceder.

Nesta perspectiva, as qualidades de movimento e formas evidenciadas determinam os

comportamentos do intérprete-criador no momento da pesquisa de movimento e, até mesmo,

no próprio instante da execução coreográfica. Minha pretensão nesta análise é, portanto,

relacionar essas características expressivas aos movimentos que emergem na experiência da

dança imanente.

Para o desenvolvimento desta análise, criei um quadro facilitador da observação das

etapas de transfiguração do corpo imanente em corpo visivo e, posteriormente, em metacorpo.

Neste quadro, inicialmente relaciono o tipo de exercício de improvisação aplicado em

laboratório, junto aos intérpretes-criadores. Em seguida, partindo dos diálogos reflexivos

realizados ao final de cada aula/ensaio e dos próprios diários de bordo do espetáculo, cito as

impressões que esses intérpretes tiveram na aplicação da atividade prática, isto é, as imagens

por eles produzidas, criadoras do que chamo de corpo visivo. Por fim, relaciono no quadro o

resultado estético da experiência, enfatizando os três itens de análise aos quais me reportei

anteriormente (qualidades de movimento, formas e características expressivas).

No quadro de análise, foram contempladas as impressões individuais dos intérpretes-

criadores. Revendo os diários de bordo e escutando os diálogos reflexivos registrados,

selecionei essas impressões, procurando conferir à minha observação o máximo de

diversidade. Trata-se, portanto, de informações individuais, porém tornadas coletivas pelo

próprio processo, em que as opiniões e os modos de pensar as experiências, são elementos de

impregnação de toda a equipe participante do espetáculo que, desta maneira, cria um corpo

visivo maior, formado por imagens corporais coletivas/coletivizadas.

O resultado da análise mostra, de um modo geral, como as qualidades de movimento,

a forma e as características expressivas influenciam-se mutuamente na classificação do

movimento. A partir desta fase do estudo, verifiquei que a expressividade agressiva,

normalmente é resultante da qualidade de movimento explosiva e gera formas

predominantemente retas. Do mesmo modo, foi possível observar que os movimentos

60

A idéia teatral da expressividade do ator é trabalhada no espetáculo pelos laboratórios de pesquisa de

movimento dirigidos por mim e auxiliados pelo intérprete-criador Márcio Moreira. Este intérprete, que também é

ator, exerce na Companhia Moderno de Dança a função de diretor teatral, à qual cabe preparar os dançarinos

para a cena por meio do exercício desta chamada expressividade teatral. Em espetáculos anteriores deste grupo,

Márcio Moreira atuou de forma mais enfática. Em Avesso, pela própria condição conceitual e temática do corpo,

sua função é mais de assistente de direção. Sua contribuição, porém, é determinante para a coreografia tendo em

vista seus processos de significação das cenas do espetáculo.

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177

ondulatórios geralmente são decorrentes de experiências laboratoriais que se reportam a

formas sinuosas e assim por diante.

Esses elementos de análise encontram-se detalhados no quadro desenvolvido para a

verificação das transfigurações do corpo imanente, conforme apresentado a seguir.

Tabela 01 – Análise das transfigurações do corpo imanente

ATIVIDADE

PROPOSTA

(EXERCÍCIO DE

IMPROVISAÇÃO

APLICADO EM

LABORATÓRIO)

IMAGEM VISIVA

GERADA PELO

INTÉRPRETE-

CRIADOR

RESULTADO ESTÉTICO

QU

AL

IDA

DE

(S)

DE

MO

VIM

EN

TO

PR

ED

OM

INA

NT

E(S

)

FO

RM

A(S

)

PR

ED

OM

INA

NT

E(S

)

CA

RA

CT

ER

ÍST

ICA

(S)

EX

PR

ES

SIV

A(S

)

PR

ED

OM

INA

NT

E(S

)

Sensibilização das

vísceras

Briga do pulmão

fanqueiro (funk)

contra o fígado

roqueiro

Movimentos explosivos

com velocidade rápida

Retas Agressividade

Contato-

improvisação

cumulativo

Eu-gosma Movimentos

ondulatórios

lentos com mini-

explosões súbitas

Sinuosas Desprendimento

Sensibilização das

articulações

Pedaços de madeira

que se ligam por

pregos de má

qualidade

Movimentos

ondulatórios de

velocidade mediana com

pausas curtas

Quebradas e

sinuosas

Contentamento

Percepção dos

fluidos corporais

Líquido transitório

(estados da água –

sólido, líquido e

gasoso)

Movimentos

sustentados,

ondulatórios, explosivos

e condensados com

velocidades variadas

Mistas Agressividade,

desprendimento,

contentamento e

atentamento

Relações com

imagens estáticas

do interior do corpo

(estômago, ânus,

coração e cérebro)

Passeios por

espaços com

texturas variadas

Movimentos sustentados

com mini-explosões

Sinuosas e retas Atentamento

Relações com o

peso do corpo

(etapas repetidas

ciclicamente:

percepção,

mudança de

posição e pausa)

Boneco João Bobo Movimentos sustentados

e ondulatórios

alternados com pausas

Sinuosas Relaxamento e

contentamento

Relações com

imagens dinâmicas

de uma endoscopia

Superfície com

dobras e ranhuras

Movimentos

ondulatórios com

alternância de

velocidades

Sinuosas Instabilidade

Relações com

imagens dinâmicas

de um

ecocardiograma

Eu-bomba Movimentos explosivos

súbitos com pequenas

pausas

Retas e

quebradas

Instabilidade e

agressividade

Cont.

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178

ATIVIDADE

PROPOSTA

(EXERCÍCIO DE

IMPROVISAÇÃO

APLICADO EM

LABORATÓRIO)

IMAGEM VISIVA

GERADA PELO

INTÉRPRETE-

CRIADOR

RESULTADO ESTÉTICO

QU

AL

IDA

DE

(S)

DE

MO

VIM

EN

TO

PR

ED

OM

INA

NT

E(S

)

FO

RM

A(S

)

PR

ED

OM

INA

NT

E(S

)

CA

RA

CT

ER

ÍST

ICA

(S)

EX

PR

ES

SIV

A(S

)

PR

ED

OM

INA

NT

E(S

)

Sensibilização das

camadas

musculares

Esponja Movimentos

condensados com

velocidade lenta,

intercalados com mini-

explosões e movimentos

sustentados

Mistas Instabilidade

Relações com

imagens dinâmicas

de uma tomografia

do cérebro

Teia Movimentos sustentados

(velocidade lenta)

alternados com

movimentos explosivos

súbitos (velocidade

rápida)

Mistas Atentamento e

instabilidade

Relações com a

respiração

Balão enchendo e

esvaziando

Movimentos sustentados

com mini-explosões

Mistas Atentamento,

instabilidade e

desprendimento

Sensibilização dos

esqueletos axial e

apendicular

enfatizando a

distinção entre

cabeça, tronco e

membros

Eu-gigante/Eu-anão Movimentos

sustentados,

condensados e

explosivos com

alternância de

velocidades

Retas e

quebradas

Instabilidade e

agressividade

Sensibilização da

pele

Cascata Movimentos sustentados

com explosões súbitas

Sinuosas e retas Desprendimento e

instabilidade

O que mais salta aos olhos nesta análise, porém, não está contido de maneira detalhada

neste quadro. Acredito que o maior valor da experiência, além de seus resultados estéticos

formais, que são a grande ênfase dada na tabela anteriormente apresentada, sejam as

manifestações escritas e as falas dos próprios intépretes-criadores a respeito das experiências.

Este material auxilia não somente minha observação como também a composição do

espetáculo, validando a implementação desta poética de dança à qual chamo de dança

imanente. Esta constatação é a própria verificação da existência de adequação entre as teorias

selecionadas para subsidiar esta tese e a prática coreográfica que orienta a pesquisa e é por ela

orientada. Em síntese, os resultados dos exercícios laboratoriais no que tange à instigação dos

intérpretes para a criação de imagens visivas do corpo confirmam-se nos depoimentos desses

intérpretes, legitimando a visibilidade como princípio elementar na construção da dança

imanente.

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179

Isto pode ser observado nos relatos e documentos a seguir. Os intérpretes-criadores

comentam a respeito de como se sentem e de como se vêem no instante dos laboratórios de

conscientização do corpo e das experimentações de movimento.

Eu me vejo como uma gosma que às vezes entra nas pessoas e causa

movimentos, ou a gosma passando entre as pessoas e elas se afastando. Mas

as pessoas também vêm pra cima da gosma (Ana Paula Siqueira)61

.

Eu posso ser uma mola ou outra coisa qualquer. Eu pensei uma vez nuns

pedaços de madeira velha pregadas por uns pregos velhos, meio frouxos.

Uma hora eu sou um saco de batata... Eu sou vários objetos. Os objetos

podem ter várias propriedades assim de peso e tal... (Bruna Cruz)62

.

Eu vejo as imagens, procuro os próprios órgãos, e vejo texturas, formas e

líquidos, como isso se move, como o meu corpo estaria dentro disso. Como

és tu dançando nessa textura? Eu penso nisso, mas a sensação que eu tenho

é que me faz dançar, não as imagens (Feliciano Marques)63

.

Percebe-se que a criação de imagens é o cerne das experiências. É como se as imagens

visivas fossem o ponto de partida para a execução de qualquer movimento e, sem elas, não

fosse possível chegar à exteriorização de nenhuma sensação. A dissecação somente acontece

se, antes do movimento, for criado o corpo visivo, que está na dependência da captação de

sensações. Como se vê, o metacorpo não existe sem o corpo visivo e, conseqüentemente, a

dança imanente não é possível sem a dissecação.

Esta assertiva confirma-se também por intermédio de outras formas de reflexão dos

intérpretes-criadores, como, por exemplo, a produção literária, em prosa e poesia, e a

produção de cartas falando a si mesmos sobre as experiências vivenciadas na criação do

espetáculo Avesso, conforme demonstrado a seguir.

O que toca o corpo?

Fechar os olhos

Fechar o peito

Fechar-se dentro

O que cabe à pele?

Nem se percebe

Só importa o que se vê

O invisível fica calado

Estranho é o quarto dentro do eu

Fechar os olhos

Calar o peito

61

Integrante do elenco da Companhia Moderno de Dança em depoimento concedido no dia 14/11/2007. 62

Ibidem. 63

Ibidem.

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180

Os sentidos só são sentidos,

São só sentidos

Nada além

Mas o que toca a alma

É o que não teme...

A rotina

A comida

O papel

E,

Naquela hora

Sentir o espelho

É ver-se por dentro

Tocar o universo que o eu sempre

Escondeu

Chuviscos no tempo...

E o que me toca não é meu

Abrigo o estranho

O gigante é negro

Nas cores da pele

Do tudo,

Do breu

Mentiras falam o que querem

Verdades impressas na pele

Afluentes sem mares

Sombras sem pares

Onde a

Chuva tocou64

Tac-tac-tac-tac-tac. O ruído cai feito cascata antiga, primeiramente em

minha cabeça, depois espalha-se por toda a extensão de minha estrutura:

braços, ventre, pernas; lembrei de meu irmão pendurado em minhas costas;

eu devia ter uns 10 anos e havia uma cascata no canto da piscina; a água

caía fortemente, primeiramente em minha cabeça, depois espalhava-se por

toda a extensão do líquido. Este todo tremia, eu tremia, e inaugurava em

mim uma espécie de liberdade (Daiane Gasparetto)65

.

Caro-osso,

Venho perguntar por qual motivo, ao mesmo tempo em que és tão

importante para minha sustentação e os meus movimentos, tenho que

admitir que, às vezes, quero te arrancar e te jogar pra fora?

Sinto-me bem por tê-lo, mas digo e questiono tudo isso porque ao mesmo

tempo és extremamente desconfortável, justa e simplesmente na parte em

que és mais importante e vital não só para mim, mas para todos: a coluna

vertebral (Wanderlon Cruz) 66

.

64

Poema sem título, de autoria da intérprete-criadora Nelly Brito, resultante dos laboratórios de improvisação

para pesquisa coreográfica de Avesso. 65

Trecho de texto em prosa produzido pela intérprete-criadora Daiane Gasparetto, resultante dos laboratórios de

improvisação para pesquisa coreográfica de Avesso. O texto na íntegra, bem como a produção de outros

dançarinos podem ser observados no anexo deste trabalho. 66

Trecho da carta que o intérprete-criador escreveu aos ossos, como resultado dos laboratórios de improvisação

e pesquisa coreográfica para o Avesso.

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181

As experiências vividas no processo criativo do espetáculo trazem à tona questões

históricas da própria vida dos intérpretes, confirmando mais uma proposta conceitual aqui

vigente, que é a idéia da imanência. Por meio dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa,

expressos em diferentes formatos, é possível verificar que o procedimento de dissecação pode

até mesmo ser doloroso, por fazer emergir questões pessoais e subjetivas relativas à vida de

quem dança. Por isso é que, quem dança a dança imanente, dança a si mesmo.

Dessa maneira, é impossível deixar de considerar o quanto esta poética, que é um

reflexo da prática coreográfica da Companhia Moderno de Dança, encontra maturação no

processo do espetáculo Avesso. Seu resultado, entretanto, não é apenas estético. Não se trata

simplesmente de mais uma obra cênica inserida na vertente das poéticas contemporâneas de

dança que se propõem a criar movimentos a partir dos padrões corporais do dançarino, mas de

uma obra cujas ponderações teóricas abrem espaço para o lançamento de uma proposição

metodológica de criação, configurando os fazeres artístico e pedagógico do coreógrafo.

Enquanto resultante de uma intensa e extensa experimentação eminentemente coletiva,

a dança imanente é, ao mesmo tempo, singular e plural. Ela reflete, no conjunto dos

intérpretes-criadores, a minha própria particularidade enquanto coreógrafa/diretora-artística

que descobre como e o que fazer, revelando a mim mesma o meu papel na coletividade do

grupo e a minha contribuição na construção desta assinatura artística múltipla.

Assim, além de pensar as conversões semióticas do corpo imanente no processo do

espetáculo e refletir sobre os sub-procedimentos para a materialização do ato de dissecar na

criação da dança imanente, proponho definir as etapas do procedimento de dissecação em

Avesso a partir de minha atuação enquanto coreógrafa no processo criativo.

Para Laban “coreografia significa, literalmente, a escrita da dança. No início da

fundamentação de seu método, era neste sentido que ele aplicava este conceito. Depois Laban

serviu-se deste termo tanto para tratar da notação como da criação coreográfica” (RENGEL,

2000, p. 35). O que se evidencia, portanto, é que a coreografia é um produto do trabalho de

seu feitor, o coreógrafo. A idéia de coreógrafo nas danças de caráter formal é justamente a de

que cabe a ele conceber e desenvolver a escrita da dança. O que a maioria das poéticas

contemporâneas de dança propõe, entretanto, é que o coreógrafo não seja o único responsável

por essa escrita, ficando esta função, portanto, distribuída entre os dançarinos. O coreógrafo,

conforme já observado em outros momentos desta tese, passa a exercer muito mais uma

função de diretor, no sentido daquele que mostra a direção, o caminho, organizando, assim, as

frases escritas pelos dançarinos.

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182

É com base neste raciocínio que sugiro, a partir da minha experiência pessoal na

Companhia Moderno de Dança, trabalhar com três maneiras de pensar a noção de coreógrafo

de acordo com suas funções67

. São elas: coreógrafo-pesquisador, coreógrafo-instigador e

coreógrafo-editor.

Na primeira, cabe ao coreógrafo investigar e descobrir os métodos para aprimorar a

consciência do corpo nos intérpretes-criadores. O coreógrafo-pesquisador analisa, seleciona e

estuda os métodos de consciência corporal, procurando desenvolver suas próprias propostas

de atividades a serem aplicadas no grupo com que trabalha. Na perspectiva da dança

imanente, maturada a partir de Avesso, cabe a mim, enquanto coreógrafa-pesquisadora,

selecionar técnicas de estudo e observação do corpo próprias da área da saúde, além de

selecionar e estudar os métodos de consciência corporal aos quais faço referência nesta tese.

Na ação do coreógrafo-instigador, evidencia-se a aplicação de exercícios baseados nos

métodos estudados, criados e desenvolvidos enquanto se exerce a função de coreógrafo-

pesquisador. No caso da dança imanente de Avesso, trabalho, paralelamente, a criação e a

aplicação de um repertório de exercícios de improvisação com ênfase no aprimoramento da

consciência corporal. Evidencia-se nesta função do coreógrafo a etapa de transfiguração do

corpo imanente em corpo visivo.

Enquanto coreógrafa-editora, disponho-me a apreciar a transfiguração do corpo visivo

em metacorpo, isto é, observar a exteriorização das imagens visivas em movimentos visíveis

e, por conseguinte, a geração de vocabulário de movimentos na dança imanente. Após a

aplicação dos exercícios de improvisação, analiso e estruturo esses vocabulários, tanto

individualmente, com cada intérprete-criador, quanto no conjunto da Companhia Moderno de

Dança. Ressalto, portanto, enquanto funções do coreógrafo-editor, além da já referida

apreciação, a seleção de materiais, a coletivização das experiências e a edição das células

coreográficas.

A seleção e a edição das células coreográficas pode se dar tanto por meio de uma

estrutura convencional, organizada a partir de seqüências de movimentos, quanto por

intermédio de seqüências de sensações experimentadas pelos intérpretes-criadores,

observadas, analisadas, refletidas e coletivizadas. Cabe ao coreógrafo-editor, portanto,

direcionar seu elenco na configuração da coreografia, podendo este direcionamento ser

estruturado por um roteiro de movimentos ou de sensações.

67

A síntese das funções pensadas para o coreógrafo pode ser evidenciada em uma tabela constituinte dos anexos

desta tese.

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183

Destaco, na função do coreógrafo-editor, a coletivização das experiências, pois

acredito que neste aspecto esteja presente uma particularidade significativa no fazer da

Companhia Moderno de Dança. O que existe neste procedimento é um princípio de troca e

experimentação do corpo do outro e, por fim, de apreensão e transformação das informações

de um corpo por parte de um outro corpo, como argumenta uma intérprete-criadora do grupo.

Se eu estou perto do Ercy, o que ele faz, mesmo que seja um simples

movimento, já me estimula a fazer algo de outro jeito. Eu percebo que todos

se influenciam mutuamente e eu me vejo contribuindo nisso (Luiza

Monteiro)68

.

Exemplos práticos dessa coletivização são as maneiras como distribuo as atividades

para os dançarinos ao trabalhar como coreógrafa-editora. Uma dessas maneiras é a seleção de

uma célula coreográfica de cada intérprete-criador, a qual deve ser compartilhada com o

grupo todo ou com parte do grupo, que se apropria do movimento do outro sem deixar de

levar em consideração suas individualidades.

Algumas cenas de Avesso são construídas a partir desta estratégia, baseadas também

na divisão da música e no encaixe das células coreográficas em cada trecho musical. Nesse

processo, muitas vezes o movimento autônomo de um dançarino, ao chegar no corpo do

outro, se transforma, se modifica e, até mesmo, se perde. Quem cria perde a noção do que

criou e do que, por meio do aprendizado, transformou, como explica a dançarina Nelly Brito.

O Avesso é tão coletivo que eu não sei mais em que momento eu fui só

eu ou eu fui o grupo. Eu acho que eu contribuo a todo momento

porque o tempo inteiro eu estou a disposição, então eu sempre sou o

coletivo69

.

A coletivização é parte do conjunto de atividades que o procedimento da dissecação

propõe para o coreógrafo, sendo, portanto, o conjunto de funções por mim acumuladas na

criação do espetáculo Avesso. O dançarino Ercy Souza exemplifica, através de sua fala

reflexiva, como procedem as relações entre intérpretes-criadores e coreógrafa, destacando esta

minha função e, com isto, contribuindo para a instauração das categorias aqui propostas. Diz o

dançarino:

68

Depoimento concedido em 14/11/2007. 69

Ibdem.

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184

É interessante perceber que a relação dessa nossa arte é muito parecida com

a de um quadro. É que nem aquelas coisas do museu, cheia de cores, riscos

e pontos e que a gente acaba não entendendo. O que seria pra gente isso

aqui? Esse nosso quadro é pintado por várias pessoas, vocês vão

observando esse quadro sendo pintado com som, com forma, ao mesmo

tempo em que vocês estão assistindo, pelo menos essa é a imagem que eu

posso passar do meu entendimento. E tem também essa história de estar

dentro da Flávia e da gente absorver. Foi ela quem comprou as tintas, os

pincéis e a tela e distribuiu pra gente. Foi dela que a gente sugou esse amor

que a gente tem pelo que faz70

.

Meu papel de coreógrafa, portanto, não pretende ter unicamente minha assinatura.

Procuro, por meio de minha função, abrir espaço para as descobertas do intérprete acerca de si

mesmo e para as trocas entre minhas proposições e essas descobertas. Acontece que, ao passo

que um intérprete se descobre e revela um determinado movimento, é como se eu também

estivesse sendo descoberta e revelada para o público espectador, para o dançarino e, porque

não dizer, para mim mesma. A dança imanente, assim, é não somente de quem dança, mas

também de quem instiga o dançarino para esta dança.

4.5 O CORPO VISÍVEL: os elementos cênicos do espetáculo Avesso como reflexos da

dissecação do corpo para a dança imanente

O resultado estético visualizado na poética da dança imanente encontra-se

materializado na coreografia e no roteiro de Avesso, além de estar presente os demais

elementos cênicos componentes do espetáculo e colaboradores de suas diversas

interpretações. Proponho argumentar sobre esses elementos, também, na perspectiva de tornar

visíveis para o leitor, recursos como o uso do espaço, a seqüência das cenas, o cenário, a

iluminação, o figurino e a trilha sonora, originalmente criada para este trabalho.

Para falar da transfiguração do visivo em visível no âmbito dos elementos cênicos do

espetáculo Avesso, proponho validar meu olhar pela noção de análise do espetáculo,

apresentada por Pavis (2003), uma vez que ela compreende uma observação de caráter amplo,

englobando todos os aspectos de uma encenação. De acordo com os pressupostos do autor, a

análise do espetáculo tem como referência aquilo que o próprio espetáculo diz ao espectador.

Ela é tida como ferramenta auxiliar para a compreensão do público acerca daquilo que assiste.

70

Depoimento concedido no dia 07/10/2007.

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185

É claro que, no caso específico de minha análise, não posso simplesmente assumir um

olhar de espectadora, como sugere Pavis aos seus leitores. Uma vez que me encontro inserida

no espetáculo como responsável pela sua concepção, torno-me, também, fonte de informação

sobre o Avesso. Trata-se, assim, de uma análise adequada ao que, em etnopesquisa, se chama

observação participante, como expliquei na introdução desta tese. Entretanto, isto não é

impedimento para considerar meu formato de análise como algo que se constrói a partir das

idéias de Pavis, para quem analisar é, além de olhar as condições de recepção de um

espetáculo, observar atentamente todos os componentes da cena.

Minha análise de espetáculo, portanto, conta com a ajuda do Questionário Pavis, que

utilizo parcialmente e por meio do qual amplio minhas reflexões, lanço minhas impressões

sobre os elementos cênicos criados por outros artistas a partir da conversão semiótica do

corpo visivo em metacorpo e, logo, construo o texto para esta tese. Como recurso de análise,

utilizo também o que chamo de diálogos reflexivos com os espectadores e participantes do

espetáculo, a exemplo do que fiz na sessão anterior deste capítulo e, por fim, as entrevistas de

estrutura aberta e flexível que realizei com os criadores do cenário, figurino, iluminação e

trilha sonora do espetáculo.

4.5.1 A história de vida de um corpo dissecada no roteiro coreográfico do espetáculo

Conforme explicado anteriormente, a coreografia do espetáculo Avesso é resultante da

dissecação do corpo dos próprios intérpretes-criadores do elenco do espetáculo. Os

movimentos utilizados na cena são, assim, reflexo da percepção de sensações, formas e

movimentos dos corpos que encenam o espetáculo.

Ao longo da trajetória deste trabalho, a Companhia Moderno de Dança realizou

encenações seguidas de reflexões coletivas entre os integrantes do grupo e os espectadores, o

que colaborou para a análise do processo criativo do espetáculo como um todo, mas

principalmente para pensar sobre a construção da coreografia. Um dos espectadores, após

assistir ao Avesso, argumenta sobre o aspecto diferencial da dança imanente, isto é, o fato de a

mesma não sustentar-se em padrões de dança já existentes. Diz o espectador:

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186

Num balé, o bailarino sai dando uns rodopios e você sabe que aquilo é

dança porque são gestos que fazem parte da dança, estão codificados como

sendo dança. Pode fazer bem, pode fazer não tão bem, mas aquilo está

classificado como dança. [...]. Eu acho que esse espetáculo, quer dizer, o

valor experimental desse trabalho, é que ele surpreende a cada momento,

usando coisas que normalmente não se gosta de usar na dança, como o

silêncio, por exemplo, usando a respiração, um movimento do próprio

corpo, o suor, enfim... É uma forma de você extrair o movimento como

dança do movimento que não é dança (João de Jesus Paes Loureiro)71

.

Essa transformação do movimento corporal que não é dança em movimento de dança é

a conversão semiótica do visivo em visível. A coreografia do Avesso é a visualização dos

corpos visivos que os intérpretes-criadores engendram ao longo do processo criativo, por

meio das estratégias metodológicas apresentadas e discutidas nesta tese.

O sentido que esses movimentos pretendem expressar pela coreografia podem ser os

mais diferentes possíveis, a depender do olhar do observador. A intenção do roteiro do

espetáculo, porém, é revelar acontecimentos em vigor no corpo humano, relacionando-os às

experiências desse corpo no mundo e suas mudanças culturais refletidas no âmbito orgânico

ao longo do curso da vida.

Pavis (1999) explica que o termo roteiro é usado no teatro, geralmente, quando se

refere a espetáculos que não são baseados em textos literários já existentes, sendo abertos à

improvisação e compostos de ações cênicas, mais do que palavras ditas. Levando em

consideração esta noção de roteiro, é possível admitir que Avesso, ao criar sua seqüência de

acontecimentos por meio da coreografia, constrói seu roteiro baseado não em uma história

literária, mas na história de vida dos próprios corpos dançantes.

O roteiro deste espetáculo foi criado por mim, em parceria com os intérpretes-

criadores Nelly Brito, Ercy Souza e Márcio Moreira. Apesar dos acontecimentos permitirem

leituras não-lineares, a concepção coreográfica apresenta uma certa linearidade, relacionando

o início, meio e fim do espetáculo à condição de vida de um ser humano, que nasce, cresce,

reproduz-se e morre.

Este roteiro, no entanto, pode possuir ainda outras interpretações, conforme queira o

espectador. Levar em consideração a história da humanidade no planeta, em seu início, meio e

fim, é uma delas. Se equiparado à evolução do Homem na Terra, o roteiro de Avesso pode ser

tido como uma maneira de significação do surgimento da vida, da evolução das espécies,

71

Poeta paraense, professor de estética e história da arte e teórico proponente do conceito de conversão

semiótica, abordado nesta pesquisa. Sua fala aqui é na qualidade de espectador, em depoimento concedido no dia

07/10/2007.

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187

passando por mutações e seleções naturais, até o surgimento da espécie humana, apontando

novas mutações e seleções para a transformação desta espécie.

Mas este olhar macro pode ter significação micro, na medida em que o observador se

proponha a olhar o espetáculo pelo prisma microscópico. É como se os acontecimentos da

cena pudessem ser entendidos como as histórias de vida de cada célula habitante do

organismo humano. São essas células que se agrupam e formam tecidos e órgãos do corpo.

No ciclo da vida, essas células nascem, transformam-se, reproduzem-se e morrem a cada dia

dentro do corpo.

As cenas do espetáculo acontecem na seguinte seqüência:

1. Prólogo: entrada dos espectadores em que todos transitam por um determinado percurso

até chegarem aos seus lugares na platéia. Os integrantes do elenco do espetáculo ficam

estrategicamente posicionados, interagindo com o cenário e, aos poucos, tomam seus

lugares para a execução da coreografia.

2. A formação do corpo/ sinais vitais (batidas do coração): início de tudo. São os primeiros

sinais vitais, a formação do corpo a partir de células que se juntam e se multiplicam, como

na constituição de um embrião humano.

3. Monólogos do sistema nervoso central: cena de transição com deslocamentos. A

descoberta da morfologia do corpo a partir do processo de formação das células do

sistema nervoso.

4. Trânsito neuronal: comunicação entre os neurônios. Informações chegam e saem

(aferentes e eferentes).

5. Socos de estroterona (estrógeno e progesterona, hormônios masculino e feminino) e outras

viagens endócrinas: passagem de informações entre os hormônios e os órgãos.

6. Movimentos peristálticos ou cadeia do DNA: ondas de movimentos involuntários dos

órgãos digestivos ou a dança do DNA.

7. Absorção gastro-intestinal: passagem de nutrientes e absorção dos mesmos pelos órgãos

do sistema digestivo.

8. Trocas gasosas (respirações): funcionamento harmônico dos pulmões. A respiração como

acesso para entrada de antígenos no corpo.

9. Organismos de contaminação: agentes externos que chegam pelas vias respiratórias e

comprometem o bom funcionamento do corpo, contaminando células.

10. Formação de uma célula cancerosa: desenvolvimento e expansão da célula infectada do

organismo.

11. Metástase: transmissão da contaminação de uma única célula para demais células.

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188

12. Anticorpos: reação do organismo aos seus agentes degradantes. “Auto-quimioterapia” do corpo.

13. Recomeço do corpo: o corpo se reconstrói, num ciclo ininterrupto, para formar-se novamente.

Esta seqüência, contudo, não permite unicamente a interpretação que seus criadores

propuseram imprimir por meio do roteiro. Na encenação, são permitidas múltiplas leituras

sobre o Avesso e essas leituras são verificadas, inclusive, dentro da própria Companhia

Moderno de Dança.

No grupo não há uma única forma de ver o espetáculo e compreender a coreografia,

ainda que o ponto em comum entre as diversas opiniões seja a idéia de dissecação, ou seja, a

compreensão do corpo como motivo para a criação. Assim, as interpretações dos resultados

estéticos são complementares entre si, apesar de diferentes. Uma pretensa síntese dessas

interpretações é propiciada pelas reflexões dos dançarinos, que dizem:

Eu acho que o Avesso é o nascimento de uma célula, a união de cada

partícula do corpo. Daí uma partícula maior se forma e começa a pulsar de

várias formas, porque não é só aquela parte ou aquele órgão que está

pulsando, mas sim o corpo inteiro. A cada crescimento desse corpo ele vai

conhecendo as suas funções. Durante o espetáculo e o processo eu me vejo

descobrindo o que cada parte do meu corpo faz e de que maneira eu posso

utilizar. E parece que essa evolução chega num tamanho que para que isso

continue acontecendo eu preciso morrer pra começar outras coisas (Danielly

Vasconcellos)72

.

Eu sempre fiz analogias com sentimentos. Assim, uma diferença é que antes

eu imaginava um ser sendo criado. Então iam acontecendo etapas até que

chegava um momento em que ele realmente nascia, entendeu? É como se

fosse uma morte da vida do útero pra vida daqui de fora. Hoje eu vejo como

se fossem os seres humanos acontecendo. Tudo ao mesmo tempo no

organismo, só que é... sabe quando a gente está no computador e seleciona

só aquela parte pra aumentar? Pois é... eu vejo o organismo inteiro, só que

eu vou em determinados pontos, acesso e vejo melhor. [...]. A respiração, o

corpo estranho, um antígeno entrando... Eu vejo um corpo e é como se eu

pegasse uma lupa e fosse lá. Não é uma cadeia crescente, ela já existe e eu

vou lá. E tem a coisa dos diferentes sentimentos, mas eu imagino a co-

relação com o ambiente e como as pessoas na sociedade, de acordo com as

relações, elas sentem diferentes emoções (Nelly Brito)73

.

Eu comecei a transportar a coisa micro do corpo de um ser só, numa coisa

macro de um universo inteiro. Sabe, uma coisa meio gênese da Bíblia,

aquela massa... Não foi exatamente o Gênese que eu quis dizer, mas é sobre

o surgimento do mundo. É como se os corpos todos fossem aquela massa

energética que vai se juntando e como se aquilo explodisse no momento em

que acontece a nossa primeira batida do coração. E aquele coração iria soar

como aquele único vestígio de vida, talvez o planeta Terra tenha surgido

ali... Não sei, mas é uma coisa assim como os sete dias em que Deus criou o

mundo. É super fiat lux! Depois tem umas falas humanas como se fossem o

72

Integrante do elenco da Companhia Moderno de Dança em depoimento concedido no dia 14/11/2007. 73

Depoimento concedido no dia 14/11/2007.

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189

surgimento dos seres vivos e depois a evolução disso até a chegada da

espécie humana sobre o planeta Terra. É um transporte macro pra esse

micro que é o corpo (Christian Perrotta)74

.

Eu acho que não é uma coisa que vai nascendo. As coisas vão se mostrando

e... A gente pega certa região e reproduz. Só que é uma coisa muito grande

e muito rica e, então, parece que a gente nunca vai conseguir terminar, dar

conta de tudo (Ana Paula Siqueira)75

.

Como se percebe, assim como são intermináveis as possibilidades de descoberta do

movimento para a dança a partir do corpo, também são infindas as interpretações sobre o

espetáculo. Isto é evidenciado não somente na fala de quem dança, mas também na de quem

assiste as cenas, conforme comenta o seguinte espectador:

Bom, eu acho que é a terceira ou quarta vez que eu assisto o Avesso e eu

continuo achando que eu preciso assistir outras vezes para ver outras coisas.

[...]. Mas, sendo terceira ou quarta vez é muito legal perceber algumas

coisas quando as pessoas comentam. Olha, eu nunca vi as projeções, por

exemplo. Eu sei que elas estão lá, mas eu não consigo olhar pra elas. O que

interessa mesmo está no corpo dos dançarinos. E eu procuro distribuir

realmente meu olhar. Cada dia que eu vejo eu penso “ah, hoje eu vou

assistir com tal pessoa”, aí eu sigo o percurso do espetáculo a partir de uma

pessoa, de um dançarino. Cada vez que eu assisto, eu descubro emoções

diferentes e fico muito feliz por isso porque eu percebo que eu nuca vou ter

um concepção fechada do espetáculo. A cada apresentação eu posso criar

uma história, pois o corpo é infinito (Hudson Andrade)76

.

Seguindo esta linha, surgem os demais elementos do espetáculo, nos quais se

evidencia o mesmo caráter de abertura, característico do roteiro, além de uma crescente

complexidade no que tange às leituras e interpretações sobre o Avesso como um todo e,

conseqüentemente, sobre a poética da dança imanente.

4.5.2 O cenário mesclado que dialoga com a complexidade do corpo em funcionamento

Nesta pesquisa, os termos cenário e cenografia são utilizados indistintamente, pois

ambos possuem o mesmo sentido. Eles não mais designam aquilo que as origens francesa

(décor) e grega (skênographia) imprimem, isto é, as idéias de pintura e ornamentação.

74

Ibidem. 75

Ibidem. 76

Ator, diretor teatral e dramaturgo, na qualidade de espectador, em depoimento concedido no dia 07/10/2007.

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190

“O cenário, como o concebemos hoje, deve ser útil, eficaz, funcional. É mais uma

ferramenta do que uma imagem, um instrumento e não um ornamento” (BABLET apud

PAVIS, 1999, p. 43). A cenografia, por sua vez, é vista hoje como a arte de organizar o

espaço teatral. Pavis (1999, p. 45) afirma:

Hoje, a palavra impõe-se cada vez mais em lugar de decoração, para

ultrapassar a noção de ornamentação e de embalagem que ainda se prende,

muitas vezes, à concepção obsoleta de teatro como decoração. A cenografia

marca bem seu desejo de ser uma escritura no espaço tridimensional [...], e

não mais uma arte pictórica da tela pintada, como o teatro se contentou em

ser até o naturalismo.

O elemento cenário, no espetáculo Avesso, possui função instrumental de significação

do que a coreografia apresenta, além de ser uma forma de escritura tridimensional do espaço

de atuação dos intérpretes, como é compreendido o conceito de cenografia atualmente. Este

elemento, portanto, possui características referentes a ambas as denominações (cenário e

cenografia) observadas por Pavis em seu Dicionário de Teatro, razão pela qual utilizo ambas

as nomenclaturas para refletir sobre o objeto de investigação desta tese.

A encenação de Avesso acontece no Teatro Experimental Waldemar Henrique, em

Belém do Pará. Este espaço, normalmente, é destinado a espetáculos de cunho experimental,

como o próprio nome do teatro já diz, isto é, trabalhos que se pretendem fora do eixo dos

teatros tradicionais de palco italiano em Belém do Pará. O Teatro Experimental Waldemar

Henrique, por sua arquitetura, permite aos artistas provarem diversas possibilidades de

configuração de cena.

Avesso propõe a utilização do palco em formato retangular, dispondo os espectadores

em arquibancadas, nos dois lados maiores da cena, ficando os dois lados menores ocupados

por parte do cenário.

Antes de ocupar as arquibancadas, porém, os espectadores, ao entrarem no teatro, são

convidados a caminhar por um percurso que compreende parte dos bastidores do espetáculo,

ambientado por tecidos com os quais os intérpretes-criadores e também os espectadores interagem

ao longo do trajeto. Após este caminho, os espectadores chegam até o retângulo ao qual me referi

anteriormente e buscam acomodar-se em seus lugares para assistir ao restante do espetáculo.

Tarik Alves, produtor técnico da Companhia Moderno de Dança, iluminador e

cenógrafo do espetáculo Avesso, explica:

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191

Nossa maneira de utilizar o espaço na chegada do público tem como

intenção fazer o espectador atiçar os sentidos ao passar pelo cenário, para

poder, ao assistir o espetáculo, ter a possibilidade de perceber mais ainda os

conceitos apresentados na coreografia. O claro e o escuro, a fumaça, a

dificuldade de subir, os obstáculos no meio do caminho, que fazem com que

o espectador tenha que modificar seu modo de andar, dentre vários outros

aspectos, tudo é criado para que o espectador possa chegar ao espetáculo

ambientado com o mesmo.77

Entrar no teatro nestas condições é como entrar no próprio corpo, descobrindo seus

espaços e suas surpresas. O espectador é chamado a ingressar no ambiente micro do

organismo humano por meio desta estratégia cênica que se torna viável pelas possibilidades

oferecidas pelo espaço do Teatro Experimental Waldemar Henrique, que o cenário trata de

ocupar e ressignificar, dando-lhe caráter de corpo, como mostram as seguintes imagens.

Fig. 79 – Plano de uso do espaço para o Avesso

O percurso do espectador como sugestão de uso do espaço para a coreografia e para a concepção do cenário

Fonte: Diário de bordo do espetáculo Avesso

77

Depoimento registrado em entrevista realizada no dia 01/12/2007.

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192

Fig. 80 – Geral do espaço cênico do espetáculo

O retângulo da encenação e a proximidade com o espectador

Foto: Mauro Moreira

Como se percebe, a relação entre o público e o espaço da representação é muito

próxima. O espectador entra no espetáculo e compõe o espaço cênico tornando-se parte do

contexto do cenário e em seguida acomoda-se muito próximo dos intérpretes-criadores. O

corpo de Avesso cria-se pela junção de várias células dançantes que são, além dos intérpretes-

criadores, os próprios espectadores da encenação.

Além disso, corroborando a idéia de ferramenta para a atuação e escritura

tridimensional do espaço, vale lembrar como o cenário é determinante na coreografia do

espetáculo. Os intérpretes criadores não somente dançam no espaço preenchido pela

cenografia, mas em alguns momentos a cenografia e coreografia se confundem, tendo em

vista o envolvimento dos dançarinos com o espaço. O cenógrafo e intérprete-criador

Wanderlon Cruz comenta:

No início do espetáculo tudo acontece com o cenário tendo uma influência

mais direta na improvisação e execução dos movimentos. Neste momento o

público acaba tendo que explorar esse universo para contemplar a

encenação, pois os bailarinos ficam entrelaçados e incorporados de fato ao

cenário78

.

Um exemplo desta interação entre o dançarino e o cenário pode ser observado na

imagem abaixo.

78

Ibidem.

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193

Fig. 81 – Cenografia 1

O corpo do dançarino incorporado ao cenário do espetáculo

Foto: Jorge Luiz Castro

O cenário do espetáculo Avesso é predominantemente composto pelo branco,

sobretudo no piso e nas laterais do espaço cênico. A estratégia de utilização dessa cor tem

como pretensão permitir o uso de projeções de imagens digitais com melhor qualidade. O

cenário do espetáculo, deste modo, é formado por duas criações distintas, porém

complementares entre si. É o que chamo de cenário mesclado.

A primeira dessas criações é constituída por panadas, linóleo e estruturas montadas

com tecidos. Criado pelos cenógrafos Tarik Alves e Wanderlon Cruz, em parceria com alguns

intérpretes-criadores e com o diretor executivo da Companhia Moderno de Dança, este

material tem como referência, partes diversas do interior do corpo, como os órgãos do sistema

digestivo, circulatório, respiratório e outros, além das formas que possuem as células ósseas

do esqueleto humano, mostradas na imagem a seguir.

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194

Fig. 82 – Imagem microscópica de células ósseas

A informação morfológica que será transfigurada em cenário

Fonte: Projeto de vídeo-cenografia do espetáculo Avesso

Fig. 83 – Cenografia 2

As referências orgânicas das imagens microscópicas do corpo na concepção do cenário do espetáculo

Foto: Tarik Alves

Para compor este material, desenvolvi, pessoalmente, a segunda criação referente ao

cenário do espetáculo. Trata-se do que chamo de vídeo-cenografia digital, isto é, um conjunto

de imagens digitais, editadas para serem utilizadas no cenário por meio de projeções

propiciadas por data shows. As imagens desta vídeo-cenografia são trechos de alguns exames

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195

médicos utilizados no processo criativo da coreografia, trechos de um vídeo documentário

sobre o corpo produzido com animações de computação gráfica e imagens do processo

criativo do espetáculo com ênfase na ampliação de determinadas partes do corpo, sugerindo

semelhanças com o interior da fisicalidade humana. Ao longo do espetáculo esses materiais

são mesclados e fundidos, transformando a unicidade do branco em um colorido múltiplo

intenso, colaborador, inclusive, do sistema de iluminação criado para Avesso.

Fig. 84 – Vídeo-cenografia digital 1

Projeções de imagens internas do corpo criadas por computação gráfica

Foto: Ana Flávia Mendes

Fig. 85 – Vídeo-cenografia digital 2

Imagens de exames médicos fundidas ao branco do cenário e à pele dos intérpretes-criadores

Foto: Mauro Moreira

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196

Fig. 86 – Vídeo-cenografia digital 3

Parte externa do corpo ampliada pelo recurso da fotografia, tratada em programa de

computador e utilizada na vídeo-cenografia do espetáculo

Foto: Ana Flávia Mendes

A cenografia acompanha a coreografia. Enquanto a coreografia evolui dialogando com

a complexidade do corpo em natureza e cultura, o cenário, da mesma forma, evolui, tornando-

se cada vez mais complexo, seja pela transformação de cores, seja pela transformação de

formas. Os cenógrafos de Avesso concordam com esta assertiva e demonstram como

procuraram desenvolver o projeto de cenário em harmonia com a composição coreográfica.

A coreografia do espetáculo influencia muito na criação do cenário, tanto

que a concepção inicial foi totalmente transformada. Percebi que não

poderia ser muito ‘real’ na materialização de minhas idéias e que eu

precisava abstraí-las, assim como a coreografia faz. [...]. Acho que há muita

harmonia na relação entre o cenário e a dança, o que se dá na abstração que

conseguimos dar aos dois aspectos (Tarik Alves)79

.

De um modo geral, observo que o cenário movimenta-se entre as simples tentativas de

neutralidade, como no corpo em repouso, e as complexas formas e colorações da fisicalidade

humana. O sentido do cenário é dado pelo próprio sentido criado para o roteiro. A idéia de

formação do corpo e desenrolar de vida desse corpo é o que, assim como dá sentido ao

movimento dançado, significa as transformações do cenário.

79

Ibidem.

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197

4.5.3 O colorido do interior do corpo colorindo a encenação

A iluminação do espetáculo Avesso foi concebida por Sônia Lopes, profissional

atuante no campo em Belém do Pará. A partir de conversas com a direção, cenógrafos e

elenco do espetáculo, Sônia desenvolveu um sistema de iluminação que, assim como os

demais componentes da encenação, teve a propriedade de revelar a organicidade interior do

corpo humano, procurando dialogar com a estratégia de projeção de imagens da vídeo-

cenografia digital.

Ao longo do processo, o diálogo entre a iluminadora e o cenógrafo Tarik Alves foi

sendo ampliado, de modo que o segundo passou a contribuir sobremaneira com a primeira,

encontrando diversas soluções técnicas apropriadas para desenrolar a concepção e promover a

colaboração entre os elementos luz e vídeo-cenografia.

Um fato relevante a ser mencionado é a semelhança entre minha maneira de pensar o

interior do corpo e o modo como Sônia Lopes acredita ser este interior. Sempre imaginei a

anatomia interior do corpo vivo de forma muito colorida, com variações de vermelhos, azuis,

lilases e outros tons, porém tudo muito intenso. Partindo de minha imaginação enquanto

proponente de Avesso, a iluminadora sugeriu opções para seu trabalho, associando minhas

solicitações às suas próprias fantasias sobre o reverso da anatomia humana, fantasias essas

bastante similares às minhas. Como reflexo deste diálogo entre direção e iluminação, a

concepção de luz vigente no espetáculo apresenta grande riqueza de cores. Esta informação

pode ser constatada nas imagens em destaque.

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198

Fig. 87 – Sistema de iluminação 1

O colorido da luz dialogando com o colorido das projeções

Foto: Mauro Moreira

Fig. 88 – Sistema de iluminação 2

As tonalidades do corpo dissecadas nas variações de cor da iluminação do espetáculo

Foto: Mauro Moreira

Outra estratégia presenciada na iluminação é o uso de retro-projetores como

propiciadores de efeitos que se remetem a micro estruturas do corpo. Exemplo disso são as

similaridades das imagens geradas pela iluminação com células sangüíneas e células nervosas,

conforme ilustrado nas imagens a seguir.

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199

Fig. 89 – Sistema de iluminação 3

Efeito de uma projeção que se remete às células sangüíneas

Foto: Mauro Moreira

Fig. 90 – Sistema de iluminação 4

Teste de projeção buscando referências nas células nervosas

Foto: Ana Flávia Mendes

Algumas fontes foram bastante contributivas para a concepção da luz no espetáculo.

São elas: o filme de ficção científica Viagem Fantástica, já mencionado anteriormente, e os

vídeos documentários que apresentam imagens do interior do corpo produzidas por

computação gráfica, além, é claro, dos próprios exames médicos diagnosticados por imagem.

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200

De um modo geral, o que se pode dizer do sistema de iluminação em Avesso, é que ele

é, também, um reflexo da dissecação do corpo. Assim como o cenário, o que a luz quer no

espetáculo é ratificar o procedimento criativo norteador desta tese, instigando o espectador a

criar seu próprio corpo visivo a partir do todo da composição cênica.

4.5.4 As texturas do corpo dissecadas no figurino do espetáculo

O figurino do espetáculo, apesar de concebido inicialmente pelo diretor executivo do

grupo, Gláucio Sapucahy, foi desenvolvido de forma coletiva. Os tecidos, materiais e

modelos, para colocar em prática a idéia do diretor, foram decididos coletivamente. O

estímulo criativo foi originado nas texturas e cores dos órgãos humanos visualizadas em

imagens microscópicas de células.

Essas imagens foram observadas pela equipe envolvida na produção do figurino em duas

fontes informativas. Uma delas foi o vídeo-documentário, também utilizado como recurso na

elaboração da coreografia, do cenário e da iluminação e a segunda, um conjunto de fotografias

produzidas por microscopia celular, úteis ainda à produção do cenário. Um exemplo de imagem

que informa a concepção do figurino em Avesso pode ser evidenciado a seguir.

Fig. 91 – Imagem microscópica de fibras musculares

O tecido muscular como recurso criativo para o figurino do espetáculo

Fonte: Projeto inicial de vídeo-cenografia do espetáculo Avesso

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201

Fig. 92 – Figurino do espetáculo 1

A textura dos tecidos humanos trabalhadas nos tecidos do figurino

Foto: Ana Flávia Mendes

Para a Companhia Moderno de Dança, o figurino segue a idéia de mergulho no

interior do corpo. O elenco inicia o espetáculo com uma composição de sunga e top na

tonalidade da pele e, ao longo da encenação, somam-se a esta composição peças de roupa

confeccionadas com os tecidos estampados em diferentes cores e texturas, como nas imagens

que as inspiraram. Na medida em que o espetáculo se desenrola, o elenco vai tendo o corpo

transformado, para além do efeito coreográfico, também pela ação do figurino. A idéia de

vestir traduz, na verdade, o desvestir, o desvelar das camadas subcutâneas.

Fig. 93 – Figurino do espetáculo 2

A pele dos intérpretes-criadores transfigurada pelo figurino

Foto: Mauro Moreira

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202

Contrariando a opinião dos fazedores do espetáculo, pode-se destacar aqui a colocação

de um espectador que, após assistir a encenação comentou:

O espetáculo vai crescendo também com a questão da roupa.

Como se o corpo fosse crescendo e ganhando certas armaduras,

couraças mais elaboradas, alguma coisa assim (espectador não

identificado 2)80

.

Esta fala do espectador revela a abrangência de interpretações a que fiz referência

anteriormente, ao reportar-me ao roteiro. Enquanto para o elenco o figurino é sinônimo de

uma dissecação no nível físico do corpo, para este observador o figurino é um elemento que

remonta ao comportamento humano frente à sociedade, o que posso compreender como uma

dissecação no nível comportamental do indivíduo.

De uma forma ou de outra, em Avesso, o figurino complementa a noção de corpo que a

coreografia pretende imprimir pela pesquisa dos movimentos. O figurino, portanto, corrobora

aquilo que os movimentos do espetáculo dizem ao espectador, fornecendo subsídios para a

apreciação e interpretação das cenas. É como afirma Gláucio Sapucahy:

O figurino surge depois dos movimentos e, portanto, deve adequar-se a eles,

valorizando, significando, facilitando a plástica dos movimentos. [...]. Na

minha visão, o figurino torna-se parte do corpo dos dançarinos e, às vezes,

representações abstratas de tecidos de órgãos do corpo humano, realçando,

também, nuances que o projeto de iluminação concebe ao espetáculo.81

4.5.5 Os sons do corpo transfigurados em música na trilha sonora de Avesso

A música de Avesso origina-se dos pensamentos que o músico José Mário Mendes,

compositor da trilha sonora original do espetáculo, tem acerca das diversas sonoridades do

corpo, sejam elas interiores ou exteriores, porém todas exteriorizáveis em melodias e ritmos.

A interioridade, entretanto, é o motivo maior para a criação deste elemento cênico, ficando a

cargo da imaginação do músico, a materialização sonora do corpo imanente. Se a mim,

enquanto coreógrafa, coube instigar a criação de corpos visivos para desvelar as imanências

80

Depoimento concedido por espectador não identificado em 07/10/2007. 81

Depoimento do diretor executivo da Companhia Moderno de Dança em entrevista concedida no dia

10/04/2007.

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203

dos intérpretes-criadores, para José Mario Mendes, o corpo tornou-se visível por meio da

criação de sons. O compositor explica:

Inicialmente utilizei em minha composição sons e elementos do

próprio corpo, como o compasso regido por nosso coração e os ruídos

orgânicos que acontecem dentro de nós, como por exemplo, o

estômago “roncando”82

.

Para criar esta trilha, o autor participou, na qualidade de observador, de alguns dos

laboratórios de pesquisa de movimentos vivenciados pelo elenco. Nesses laboratórios, o

músico manteve-se atento não somente à plasticidade dos movimentos autônomos surgidos

durante o processo, mas, sobretudo, às imagens sonoras às quais aqueles movimentos se

remetiam. Foram observadas, ainda, as próprias sonoridades emitidas pelos dançarinos no

momento dos laboratórios, experiência a partir da qual José Mario compôs melodias e outros

tipos de interferência sonora para as cenas do espetáculo.

Na medida em que esses laboratórios informavam a criação musical, o músico

compunha sons e os combinava. Esses sons eram utilizados em outros laboratórios, gerando

assim novos movimentos e novos sons. Trilha e coreografia foram criadas a partir de uma

noção de interdependência entre ambas. No processo criativo de Avesso, a trilha e a

coreografia funcionam como as relações corpo e ambiente, natureza e cultura, apresentadas

nesta tese. Diz o compositor sobre sua metodologia de criação musical para o espetáculo:

Desenvolvi minha função de compositor através da participação nos

ensaios, onde observava cada movimento realizado pelos intérpretes. A

partir desses movimentos e do que eles significavam para mim, fui

realizando as composições. [...]. Com os movimentos criados foi realizada a

trilha, e tendo a trilha composta, esses movimentos foram evoluindo cada

vez mais, existindo então uma obra em conjunto. [...]. Procurei criar,

primeiramente, uma linha lógica com os sons e efeitos orgânicos (como se

fossem a letra da música) e em cima desses sons, criar a parte harmônica da

trilha (melodias e acompanhamentos), utilizando recursos como

sintetizadores e computador83

.

Na trilha sonora estão presentes músicas instrumentais, interferências sonoras que não

possuem necessariamente uma linha melódica e silêncios que são preenchidos pela sonoridade

corpórea dos intérpretes-criadores em cena. Neste sentido, há momentos em que podem ser

evidenciadas a predominância de recursos eletrônicos, como sintetizadores, e outros em que

82

Depoimento do compositor da trilha sonora original do espetáculo Avesso em entrevista concedida no dia

19/12/2007. 83

Ibidem.

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204

se destacam, ainda que de modo muito sutil, referências da música paraense, como as

guitarradas e o carimbó. Na imagem a seguir, o compositor experimenta a interação entre o

computador e a guitarra, instrumento musical participante da concepção musical de Avesso.

Fig. 94 – O músico José Mario Mendes compondo para o Avesso

Recursos eletrônicos utilizados na concepção musical do corpo

Foto: Ana Flávia Mendes

A crença coletiva de que o corpo, mesmo em repouso, nunca está parado, assim como

observado na coreografia, é verificada também na trilha sonora. Por este motivo, os

momentos de silêncio são quase inexistentes. Quando não há música propriamente dita, a

ambientação sonora é criada pela respiração, pela pulsação e pelas relações do elenco com o

espaço cênico.

Ao longo do processo, é possível detectar, também, a presença do som como recurso

criativo para o corpo visivo e sua conseqüente visualização no movimento dançado, conforme

explica a dançarina Daiane Gasparetto: “Eu sinto durante os exercícios como se o que há de

interno gerasse sonoridades e a movimentação vem a partir das sonoridades. É o som que eu

vou usar na hora que eu vou exteriorizar.”84

Além de colaborar com a materialização do metacorpo na coreografia, percebo que os

sons, tanto aqueles que emergem da fisicalidade dos intérpretes-criadores quanto o que é

produzido musicalmente por José Mario, acompanham o princípio da liberdade criativa

84

Depoimento concedido no dia 14/11/2007.

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205

vigente na pós-modernidade coreográfica. Um dos espectadores de Avesso, ao assistir a

encenação, observou e comentou:

O espetáculo tem uma música que pra mim é extremamente interessante

porque em alguns momentos parece que as notas musicais fogem. Você tem

sonoridades que fogem de um certo padrão melódico (espectador não

identificado 3)85

.

Assim como o padrão de movimento foge às regras formais das linguagens de dança

pré-concebidas, os padrões musicais da trilha de Avesso fogem do conforto melódico das

concepções formais de música. Isto reflete a integração entre os elementos cênicos,

contribuindo para o valor da coletividade que a Companhia Moderno de Dança preza e, com

isto, para a amplitude de possibilidades estéticas na leitura do espectador.

O espírito coletivo da Companhia Moderno de Dança acompanha a criação de todos os

elementos cênicos do espetáculo Avesso, impregnando, como não poderia deixar de ser, a

composição da trilha sonora e reforçando, portanto, a idéia central do espetáculo que é falar

ao público da história do corpo que está em cena. Essa história, por sinal, pode ser confundida

com a história do próprio corpo que a assiste.

Na análise de Avesso, ressalto que o que sustenta o espetáculo como um todo é o

conceito de metalinguagem que a dança quer imprimir. A trilha sonora e os demais elementos

cênicos passam pela idéia de que o corpo quer falar ao espectador, assim como na coreografia

o corpo fala sobre ele mesmo. É claro que, no caso do cenário, da iluminação, do figurino e da

trilha sonora, não é o corpo que fala de si e, logo, não é possível considerar que se trate de

metalinguagem, mas o corpo enquanto complexo bio-psico-social é a noção da qual todos os

elementos cênicos partem. O conceito de metalinguagem, vigente na coreografia, norteia a

concepção de todos os elementos cênicos em Avesso.

85

Depoimento concedido por espectador não identificado em 07/10/2007.

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206

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: para onde vai a dança imanente?

Esta pesquisa traz, além do produto teórico, um produto estético, sobre o qual houve

um intenso mergulho reflexivo no sentido de produzir conhecimento, conceitos e,

principalmente, declarar um determinado tipo de fazer artístico como poética contemporânea

de dança cujos princípios estão alicerçados nas características da arte pós-moderna e nos

conceitos contemporâneos de corpo.

Atribuo à Companhia Moderno de Dança, na qual me insiro, a responsabilidade pela

assinatura coletiva daquilo que, a partir desta pesquisa, chamo de “poética da dança

imanente”, em que o corpo que dança dialoga consigo mesmo para criar sua dança.

Para chegar à conceituação desta forma de dança, foi necessário cumprir etapas de

caráter teórico e prático, as quais estão devidamente relacionadas ao longo dos quatro

capítulos desta tese, compreendendo, cada uma delas, um conjunto de princípios norteadores

para o procedimento metodológico de criação do espetáculo Avesso.

No capítulo um, o conceito de corpo dissecado surge como resultado da motivação

dada pela história das artes plásticas, apresentadas como estratégias de dissecação do corpo.

Diante dos resultados desta pesquisa observo que a dissecação em arte é um procedimento

metodológico de criação que pode ser compreendido como conversão semiótica.

Reitero que, para dançar a dança imanente, o dançarino precisa dissecar a si mesmo,

desvelar sua organicidade, sua história de vida, englobando em sua compreensão de corpo,

configurações biológicas e culturais e a idéia de instabilidade, como esclarecem as noções de

corpo de passagem (SANT’ANA, 2001), corpomídia (KATZ; GREINER, 2002), corpo aberto

(SANTANA, 2002), corpo sem órgãos (ARTAUD apud LINS, 1999), rizoma (DELEUZE;

GUATARRI, 1995) e corpo sujeito (MERLEAU-PONTY, 1994), todas contributivas para a

análise aqui realizada. Partindo deste princípio, a dissecação artística é tida, assim, como a

chave que abre a porta de entrada das inconstâncias dos corpos que criam a dança imanente.

No capítulo dois é lançado o conceito de corpo imanente, o qual somente pode ser

pensado em função dos princípios da pós-modernidade coreográfica e das noções

contemporâneas de corpo, anteriormente rememoradas. Tais noções, oriundas de áreas do

conhecimento distintas, têm, nas poéticas contemporâneas de dança e, logo, na dança

imanente, maneiras de ser absolutamente interdisciplinares.

Já o conceito de metacorpo, apresentado no capítulo três, mostra-se como abordagem

cênica de corpo própria das poéticas contemporâneas de dança. Este conceito propicia a

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207

compreensão de que o corpo, na sua dimensão orgânica e cultural, pode ser o informante da

obra coreográfica, ratificando a dança imanente como metalinguagem.

O capítulo quatro, por sua vez, localiza no conceito de corpo visivo a presença de uma

auto-imagem do corpo imanente na perspectiva criativa. Ele se torna visível na medida em

que é dissecado artisticamente, isto é, em que é convertido semioticamente. Pode-se ressaltar

como aspecto conclusivo, então, que o corpo imanente, na sua expressão visiva, é dissecado

pela imagem, enquanto o corpo imanente, na sua expressão metacorporal, é dissecado como

linguagem.

Dissecar acaba sendo um resultado do objetivo geral traçado para esta análise. Se,

inicialmente, a pesquisa propunha conceber e encenar o espetáculo Avesso, tal meta não

poderia ter sido atingida sem o desenvolvimento dos procedimentos metodológicos para sua

criação coreográfica.

É nesta perspectiva que surge, portanto, o ato da dissecação, que consiste em

desenvolver uma linguagem de movimento pautada no corpo do dançarino, processando-se

por meio de uma iniciativa do coreógrafo de fomentar no intérprete a criação de imagens

visivas de si mesmo. É desta visibilidade que emergem os movimentos para a cena

coreográfica e de onde são obtidos os objetivos específicos propostos para esta investigação,

os quais findam por lançar as categorias de coreógrafo-pesquisador, coreógrafo-instigador e

coreógrafo-editor, conforme a atuação do mesmo no processo criativo.

Os recursos metodológicos utilizados para a atuação do coreógrafo na dissecação

artística do corpo em Avesso, foram determinantes para alcançar os objetivos desta pesquisa.

Entendo, no entanto, que poderiam ter sido utilizados outros recursos, mas certamente eles

seriam menos apropriados. Acredito ter feito uma opção coerente, escolhendo as proposições

pedagógicas de Angel Vianna, a especificidade do Body-mind Centering® e os avanços das

tecnologias médicas na construção de minha própria metodologia criativa, tendo em vista a

evidente ampliação do vocabulário gestual dos intérpretes-criadores com os quais trabalhei.

Por esta razão, confirmo aqui a hipótese apresentada na introdução desta tese, que

aposta em alternativas metodológicas não ligadas a técnicas de dança pré-concebidas, mas sim

a uma combinação de métodos de aprimoramento da consciência do corpo, com ênfase para o

uso de tecnologias médicas cuja finalidade primeira é diagnosticar doenças, a fim de

desenvolver uma dança livre de aspectos técnico-formais. No processo de Avesso foi criada,

por meio da dança imanente, uma linguagem particular de movimentos para a dança,

resultante da transfiguração do próprio corpo que dança.

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208

Vale ressaltar, assim, que o desenvolvimento desta pesquisa encontra subsídio teórico,

e até mesmo prático, na associação entre a conversão semiótica e os princípios da pós-

modernidade coreográfica. É claro que todo o manancial teórico da pesquisa, abrangendo

diversas áreas do conhecimento, é determinante para o seu desenrolar, entretanto, é a partir da

compreensão dos dois referenciais anteriormente citados, em especial, que a dança imanente

se constrói e que, portanto, são lançados os conceitos de corpo vigentes nos quatro capítulos

desta tese, confirmando sua hipótese.

Existem neste processo, porém, outros aspectos que, a priori, não têm finalidade

estética, mas que acabam contribuindo para a poética da dança imanente. De acordo com as

impressões dos dançarinos do espetáculo, um desses aspectos é o uso de estudos teóricos na

compreensão da prática que a coreografia produz. Estabelece-se, então, mais um aspecto

valorizado pelo grupo no seu fazer artístico, isto é, a importância de uma fundamentação

teórica acerca daquilo que se pretende dançar.

Esta fundamentação não somente esclarece os acontecimentos vividos pelos artistas no

processo criativo, mas também faz com que esses artistas ganhem outros subsídios para a

missão de convencer o público da idéia que querem imprimir. A intérprete-criadora Bruna

Cruz esclarece esta constatação por meio de sua reflexão, dizendo:

As pessoas às vezes dizem que a dança não é expressão, mas eu acho que é.

E eu também achava que algumas outras coisas em arte também não se

expressavam, mas agora eu acho que sim, eu procuro. Além da consciência

corporal e do aumento do vocabulário, eu acho que os debates teóricos

deixam a gente melhor, mais interados sobre o que estamos fazendo e,

principalmente, ajudam a ter ainda mais consciência. Por mais que as

pessoas nos assistam e não entendam nada, elas começam a ver na nossa

consciência corporal a expressão da dança86

.

Por outro lado, para além dessas descobertas em torno do corpo imanente, que é algo

tão particular e subjetivo, de onde partem as informações para a composição desta dança,

existe ainda uma outra estratégia sempre presente nos processos criativos da Companhia

Moderno de Dança e, por conseguinte, presente em Avesso. Essa estratégia, que também

promove um diferencial no tratamento estético concedido ao gesto na dança, é a coletivização

das imanências, que pode ser compreendida como exemplo claro das relações corpo e

ambiente.

De fato, o grupo funciona a partir de um forte espírito corporativo, valendo-se da

referida coletivização para fins criativos. Coletivizar as descobertas pode ser uma atitude

86

Depoimento concedido em 14/11/2007.

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209

compreendida também como procedimento gerador de elementos para a construção do

vocabulário coreográfico e da composição cênica, como explica o intérprete-criador Christian

Perrotta ao referir-se a uma das cenas do espetáculo.

Seria muito estranho ver esse espetáculo sem essa coisa cheia e coletiva,

muito estranho se uma única coisa no espetáculo não tivesse conseqüências

em todo ele. É como se o corpo tivesse uma coisa isolada que não precisa

de mais nada. É como se existisse um órgão dentro de uma bolha. Não

existe isso, e essa cena mostra que não existe sabe? Qualquer coisa que

entre em qualquer parte do corpo traz conseqüências nos arredores87

.

De acordo com os intérpretes, o corpo funciona de modo coletivo, criando conexões e

estratégias de comunicação entre suas diferentes partes e conferindo ao todo uma harmonia

que parte da diversidade. É desta forma que a coreografia e os demais elementos cênicos de

Avesso são construídos.

De minha parte, procuro apenas contribuir para a criação desta arte estimulando o

dançarino para a descoberta de si mesmo. Não entrego nada pronto, mas mostro os caminhos,

tentando fazer com que eles sigam por esses caminhos. Muitas vezes acontece de, durante o

percurso, os dançarinos surpreenderem-me com brechas que eu não imaginava existir e, então,

trato de entrar por essas brechas e descobrir o que há do outro lado para poder convidar os

demais participantes. O processo de troca é constante e ele faz toda a diferença no produto

estético que o espectador contempla.

E assim como acontece no Avesso, acontece nas relações interpessoais na Companhia

Moderno de Dança. A coletivização não fica restrita apenas ao âmbito criativo da dança. Ela

vai além, fazendo com que os reflexos da dança imanente ultrapassem o campo estético e

atinjam outros domínios, como os terrenos das decisões burocráticas e organizacionais, em

destaque na fala de Gláucio Sapucahy. O diretor executivo do grupo reflete sobre sua função e

o estímulo que dá à coletivização fora do terreno artístico.

Minha função é, de modo geral, organizacional. Procuro traduzir para a

prática os pensamentos de outros artistas sobre cenário, luz, e tudo o mais

que se refere à produção do espetáculo, mas essa função também vai além

das questões técnicas, chegando até a administração do emocional dos

bailarinos e procurando alimentar o espírito coletivo, valorizando as

opiniões de cada um, seja no sentido da criação artística, seja no sentido das

relações pessoais88

.

87

Ibidem. 88

Depoimento registrado em entrevista realizada no dia 10/04/2007.

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210

Em face destas últimas constatações, ressalto aqui um dos interesses de

desdobramento desta pesquisa, que é realizar um estudo mais detalhado e minucioso de todas

essas características existentes na proposta metodológica de dança aqui lançada. Para tanto,

penso que seria importante considerar questões como a já salientada coletivização também no

âmbito das relações para além da criação artística. Ultrapassando os valores estéticos, é

possível desenvolver o estudo detalhado sobre o conjunto da obra da Companhia Moderno de

Dança, verificando a aplicabilidade dos princípios do grupo em outras realidades.

Apresento, assim, como possibilidade de desdobramento, o estudo desta proposta

metodológica nos campos da pedagogia, da psicologia, da sociologia, e tantas outras áreas de

conhecimento, pois percebo nesta prática artística um papel social, uma intenção ética e, até

mesmo, uma utopia de bem feitoria para a formação do indivíduo. Não se trata apenas de uma

metodologia de criação artística, mas de uma estratégia de educação e descoberta de soluções

para a vida por meio da dança.

Acredito existir na prática deste grupo um diferencial que não é apenas estético. O que

vivencio com essas pessoas é um engajamento cuja explicação não pode ser dada apenas por

este estudo, cujas pretensões investigativas são, elementar e prioritariamente, artísticas.

É por isso que reconheço, como aspecto de continuidade desta pesquisa, a real

possibilidade de difusão desta poética da dança imanente como uma maneira de fazer com

predicados de prática artístico-pedagógica, assim como idealiza Isabel Marques (2001) em

sua dança centrada no contexto. Sinto que tudo isto que a Companhia Moderno de Dança vem

construindo não é para uso próprio, mas sim para o aproveitamento de outros, com fins de

investir em formação cidadã.

Ao que parece, todos nós, envolvidos no Avesso e nas demais produções do grupo, nos

propusemos a ser cobaias de nós mesmos, para experimentar e descobrir coisas que possam

ser úteis para outros artistas, estudantes, pesquisadores ou quem quer que tenha interesse.

Tenho clareza de que os intérpretes-criadores da companhia, em função de suas outras

atividades profissionais e dos próprios rumos da vida, talvez não dancem para sempre, mas

acredito que, para sempre, eles possam fazer outros dançarem. E, de fato, penso que isto já esteja

acontecendo de alguma forma por meio de projetos paralelos, em que outros jovens vêm se

juntar a esta filosofia de trabalho, composição em dança e experimentação de vida com

“tempero” artístico.

Neste sentido, vale ressaltar que, ao longo de sua existência, a Companhia Moderno de

Dança já fundou dois novos grupos de dança em Belém do Pará, nos quais aplica suas

estratégias de criação. Um deles é oriundo do próprio Colégio Moderno, o Grupo de Dança

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211

Moderno em Cena89

, formado por alunos concluintes do ensino médio desta instituição, e o

outro é o Projeto Aluno-Bailarino-Cidadão90

, projeto social idealizado, coordenado e

desenvolvido pela Companhia Moderno de Dança junto a estudantes de ensino fundamental e

médio da rede pública de ensino, como fazem alusão as imagens a seguir.

Fig. 95 – Grupo de Dança Moderno em Cena

Trecho do espetáculo Aconteceu Contorcido, dirigido por integrantes da Companhia Moderno de Dança

Fonte: Catálogo do Circuito das Artes 2007 do Instituto de Artes do Pará

Fig. 96 – Projeto Aluno-Bailarino-Cidadão

Alunos de 13 a 17 anos coordenados pelos intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança

Foto: Wanderlon Cruz

89

O Grupo de Dança Moderno em Cena tem um ano de existência e um espetáculo produzido, chamado

Aconteceu Contorcido. O grupo é liderado por intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança e recebeu,

em 2007, a bolsa de pesquisa e experimentação artística do Instituto de Artes do Pará (IAP). 90

Fundado em 2006, o Projeto Aluno-Bailarino-Cidadão tem dois espetáculos produzidos. São eles Identidade Aberta

e Sentimentos do Mundo, ambos com direção artística de intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança.

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212

Aliada a estas formas de extensão da sua prática artística, a Companhia Moderno de

Dança ainda produz juntamente com o Colégio Moderno, desde 2002, o Festival Escolar de

Dança do Pará, evento que reúne grupos de dança pertencentes a instituições de ensino

formal.

Por conta dessas evidências, penso que a poética da dança imanente, ainda que

assinada pela força deste coletivo chamado Companhia Moderno de Dança, não está sendo

construída somente para a Companhia Moderno de Dança dançar, mas sim para que entrem na

cena aqueles que observam apenas o produto estético, ou seja, uma síntese de tudo o que

acontece nos bastidores do grupo. O que move esta companhia, de fato, é a imensa vontade de

tornar a dança verdadeiramente acessível a todo e qualquer indivíduo, sem qualquer

preconceito técnico ou estilístico.

O que se manifesta nesta pesquisa é a proposição de uma linguagem que se inscreve

no campo das poéticas contemporâneas de dança cuja ação predominante é focalizar a criação

sobre o próprio corpo criador. Lembrando Siqueira (2006), é possível afirmar que a dança

imanente é, então, um jeito a mais de dançar participando do “guarda-chuva” da dança

contemporânea.

Entretanto, ainda que inserida num contexto coletivo maior, esta poética possui suas

peculiaridades, pois é um modo particular de descobrir o movimento para a cena da dança,

utilizando recursos cujo propósito primeiro não é artístico. Além disso, trata-se de uma

poética com nomenclaturas particulares e caracteres construídos e originados das histórias de

vida de cada dançarino e de minha história pessoal também, em que saliento as

transformações artísticas a partir das experiências acadêmicas e vice-versa.

Tudo parte de uma necessidade de criar e encenar dança permeada por valores

estéticos diferenciados, sem a preocupação em seguir princípios e procedimentos vigentes em

outras poéticas ou metodologias coreográficas. Muito mais que isso, no entanto, tudo parte da

construção de uma aspiração que se pretende realização, de uma quimera que se quer

efetivação, de uma visibilidade de mundo que se quer visível nos Homens por meio da arte do

movimento.

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213

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A N E X O S

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ANEXO 1: DIÁLOGOS REFLEXIVOS 1

Exemplo de reflexão coletiva com os intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança,

integrantes do elenco do espetáculo Avesso. Neste exemplo constam depoimentos gravados em uma

sessão de trabalho realizada no dia 14/11/2007, durante o desenvolvimento desta tese. Alguns trechos

desta reflexão foram incluídos, funcionalmente, ao corpo do texto, a fim de contribuir com a análise do

objeto desta pesquisa.

01. De onde, como e por que vocês acreditam ter surgido o espetáculo Avesso?

Christian – Olha, eu lembro muito bem que tu colocavas umas músicas com sons de coração batendo

e mandavas a gente ficar andando, fazendo umas experimentações com o corpo. Acho que foi quando

tu voltaste de Salvador e depois que viste o Não-dito pronto. Eu comecei a ver dali. Eu acho que é

algo que já existia em ti antes essa vontade de falar do corpo de uma forma mais interna. Acho que é

muito pessoal. Pra mim veio de ti, passou pra gente e nós desencadeamos o processo.

Ana Paula – É muito difícil porque não lembro quando começou a idéia. Acho que surgiu quando tu

estavas buscando o que pesquisar pro doutorado e a partir daí desenvolver a tese. Tu quiseste que

fosse isso porque era uma coisa muito individual. Cada um teria sua idéia, só sua e dali se tiraria

outras idéias. Isso te fez enxergar que o Avesso seria uma coisa muito ampla, muito rica.

Luiza – Eu acho que o Avesso surgiu por causa da nossa necessidade de descoberta do movimento.

Seria como se fosse assim: estamos entrando numa fase na qual o que estamos criando já não nos

basta, então, temos que procurar ou, de alguma forma, encontrar movimentos diferenciados, mais

nossos, que partam mais de dentro, da nossa experiência de vida e consciência corporal. Partindo

desse princípio, como criar alguma coisa sem me conhecer? Se a idéia era começar a criar

movimentos diferentes partindo de mim mesma, então eu precisava me conhecer.

Nelly – Eu lembro de uma coisa que foi o livro da Capela Sistina. Eu lembro de ti mostrando isso pra

gente, faz um tempão... e... a tua idéia tinha alguma coisa a ver com mostrar, através da arte, o corpo

humano. Mas eu lembro que tu falavas em mostrar de uma forma diferente, dissecar o corpo sem ser

através da maneira concreta, mas de um modo artístico, tal qual aconteceu na Capela Sistina com a

pintura, mas dessa vez com a dança.

02. Como foi que essas idéias chegaram pra vocês?

Ercy – Pra mim casou perfeitamente a questão de pesquisar movimento no próprio corpo com a idéia

do trabalho de consciência corporal. No período que tu começaste a produzir os exercícios pro

Avesso, foi quando se deu o meu maior entendimento do que era consciência corporal. Pra mim

surgiu como o casamento da consciência corporal e a pesquisa do próprio corpo como tema do

espetáculo. Parece que a idéia do Avesso é um tema e uma técnica e não só um ou o outro. Por

exemplo, quando nós fizemos o Não-dito, a gente pesquisou a história do Brasil, que a gente já tinha

estudado. Já o Avesso não foi bem assim. Como pesquisar um corpo sem ter uma teoria? Então, me

parece que vem uma técnica de pesquisar sobre o próprio corpo junto com a idéia do espetáculo, com

o assunto.

03. O que significa o espetáculo pra vocês?

Daiane – Eu acho que ele é a materialização de vários exercícios, porque se eu não me engano, desde

que eu entrei na companhia, no processo do Metrópole, os primeiros exercícios que eu comecei a

fazer tinham estímulos sonoros que remetiam ao coração e a partir dos exercícios isso foi sendo

incorporado à minha própria atividade dentro da companhia. O espetáculo veio pra materializar de

uma forma estruturada todo esse processo de exercício e compreensão teórica, me parecendo um

modelo de instigação para projetos futuros, que se estendem além do Avesso. Ele é como se fosse um

ponto de partida para outros pontos porque a partir do entendimento do corpo eu posso ter vários

outros entendimentos em outras áreas de atuação.

Márcio – Pra mim o Avesso é a descoberta de muitas coisas. Significa não só descobrir o corpo, mas

ele trouxe pra mim a descoberta do meu papel na companhia, do que a companhia significava pra

classe artística. Não é só o espetáculo em si, mas através das técnicas do espetáculo eu consegui abrir

os olhos pra outras coisas. É como se fosse pra muito além do espetáculo e pra muito além da própria

companhia. E as coisas de dentro do espetáculo ganharam significado depois.

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Feliciano – Eu acho que o Avesso é a poética mais profunda da companhia. Ele é a poética mais

profunda de questão corporal. É um marco pra outras coisas também que a companhia possa fazer,

seja no quesito técnica ou consciência, enfim...

04. Em termos de roteiro, como vocês lêem o espetáculo hoje?

Danielly – Eu acho que o Avesso é o nascimento de uma célula, a união de cada partícula do corpo.

Daí uma partícula maior se forma e começa a pulsar de várias formas, porque não é só aquela parte

ou aquele órgão que está pulsando, mas sim o corpo inteiro. A cada crescimento desse corpo ele vai

conhecendo as suas funções. Durante o espetáculo e o processo eu me vejo descobrindo o que cada

parte do meu corpo faz e de que maneira eu posso utilizar. E parece que essa evolução chega num

tamanho que para que isso continue acontecendo eu preciso morrer pra começar outras coisas.

Christian – Olha, eu tenho várias visões sobre isso. Eu comecei a transportar a coisa micro do corpo

de um ser só, numa coisa macro de um universo inteiro. Sabe, uma coisa meio gênese da Bíblia,

aquela massa... Não foi exatamente o Gênese que eu quis dizer, mas é sobre o surgimento do mundo.

É como se os corpos todos fossem aquela massa energética que vai se juntando e como se aquilo

explodisse no momento em que acontece a nossa primeira batida do coração. E aquele coração iria

soar como aquele único vestígio de vida, talvez o planeta Terra tenha surgido ali... Não sei, mas é

uma coisa assim como os sete dias em que Deus criou o mundo. É super fiat lux. Depois tem umas

falas humanas como se fossem o surgimento dos seres vivos e depois a evolução disso até a chegada

da espécie humana sobre o planeta Terra. É um transporte macro pra esse micro que é o corpo.

05. E vocês fazem analogias com outras coisas?

Nelly – Sim. Eu sempre fiz analogias com sentimentos. Assim, uma diferença é que antes eu

imaginava um ser, mais ou menos como a Danielly falou, um ser sendo criado. Então iam

acontecendo etapas até que chegava um momento em que ele realmente nascia, entendeu? É como se

fosse uma morte da vida do útero pra vida daqui de fora. Hoje eu vejo como se fossem os seres

humanos acontecendo. Tudo ao mesmo tempo no organismo, só que é... sabe quando a gente está no

computador e seleciona só aquela parte pra aumentar? Pois é... eu vejo o organismo inteiro, só que

eu vou em determinados pontos, acesso e vejo melhor. Por exemplo, eu vou no DNA e vejo que ele

gruda e desgruda e parece um velcro. Eu vou naquela cena das andadas e vejo as conexões das

sinapses acontecendo. Eu vou na cena dos movimentos peristálticos, que pra mim já nem são

movimentos peristálticos, eu acho que é a divisão celular, porque é isso que parece perfeitamente.

Então, vai acontecendo tudo isso. A respiração, o corpo estranho, um antígeno entrando... Eu vejo um

corpo e é como se eu pegasse uma lupa e fosse lá. Não é uma cadeia crescente, ela já existe e eu vou

lá. E tem a coisa dos diferentes sentimentos, mas eu imagino a co-relação com o ambiente e como as

pessoas na sociedade, de acordo com as relações, elas sentem diferentes emoções.

Feliciano – Eu vejo a formação de alguma coisa, mas não exatamente de um ser. Sei lá... Parece

aquelas coisas que a gente vê em filme, aquelas coisas que vão se pegando e se juntando e formando

algo.

Ercy – É, eu faço analogia com essa idéia de origem de várias coisas. De coisas que a gente vê no

dia-a-dia mesmo, tem um pouco a ver com evolução da espécie humana mesmo. O que eu vejo de

diferente de quando começamos a pensar nesse roteiro pra hoje... Bom, antes eu via mesmo essa idéia

completa de nascer, viver, morrer e nascer de novo. Hoje eu já vejo muitos momentos da

complexidade do corpo e ainda podemos mostrar milhões de coisas porque a gente mostrou uma ou

outra reação, mas parece que tem bilhões de coisas que ainda faltam.

Ana Paula – É por isso que eu acho que não é uma coisa que vai nascendo. As coisas vão se

mostrando e... A gente pega certa região e reproduz. Só que é uma coisa muito grande e muito rica e,

então, parece que a gente nunca vai conseguir terminar, dar conta de tudo.

06. Digam um trecho do espetáculo que vocês gostem muito. Por que ele é o trecho preferido?

Wanderlon – Pra mim é do meio da primeira cena. É a cena do espetáculo. Aquilo me remete a várias

coisas. Aquilo me lembra muito os vídeos que a gente assistia no início do processo do espetáculo, um

coração bombeando sangue, a passagem do sangue de um átrio pra um ventrículo e pra outro... A

estrutura interna da orelha, os ossinhos. Eu acho que esse trecho é a cena onde dá pra ler mais

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informações e também tem a plástica da coreografia, que eu adoro. Pra mim, o que complementa essa

cena é o final, a última cena. A precisão dos corpos se acoplando àquele funcionamento.

Buna – Pra mim vai desde a cena da forma até a alergia. Pra mim é onde tem as sensações mais

fortes e mais fáceis de mergulher. Acho que esse trecho é muito subjetivo e é no instante que a gente

faz tudo mais do jeito que a gente quer na hora, depende da sensação mesmo.

Ercy – Pra mim, o Avesso é livre. E um dos momentos que tem de maior liberdade é a cena da

respiração. É o meu momento mais livre, assim como os outros todos que não estão marcados. Não

que eu não goste dos momentos marcados, até porque eu acho que eles são necessários, mas os

momentos que eu consigo assimilar melhor as sensações e sentir mais no espetáculo são os momentos

livres porque eu não estou passando só uma informação, mas várias. Nesses instantes eu consigo

mudar a minha energia, a expressão, a qualidade do movimento... Então, é essa complexidade do

corpo que eu acho que nessas partes livres a gente sente muito mais. A gente consegue passar mais

essa informação, a gente passa mais informação em menos tempo.

07. Vocês acham mesmo que cada vez que vocês dançam é diferente? Por que é diferente?

Márcio – Primeiro que na cena, qualquer espetáculo já é diferente, mesmo os espetáculos marcados...

Imagina um espetáculo como o Avesso. Então, se eu tenho tempo e um dia inteiro no teatro, eu

recupero as experiências do processo, abro a consciência, fico mais consciente do meu corpo. Se for

uma apresentação daquelas em que eu tenho que vir correndo da faculdade e não dá nem tempo de

pensar muito, já é uma outra sensação corporal. A diferença depende muito disso. Quando eu chego

em cima da hora eu vou ampliando a minha consciência durante o espetáculo, porque não dá pra

fazer muita coisa antes. Não tem como dançar sem essa consciência, por mais que eu venha correndo.

Durante o espetáculo eu vou recuperando as vivências do processo. Não tem como não mergulhar no

corpo. E esse corpo é sempre outro. Nunca é o mesmo. Eu respiro de uma forma diferente, meu

sangue circula de uma forma diferente.

Ana Paula – Eu acho que por ser uma coisa livre a questão do sentimento muda muito. Uma vez,

durante a nossa primeira temporada, teve uma quarta-feira que a gente dançou e eu lembro bem, eu

estava muito cansada, muito cansada e aquilo se refletia muito na minha movimentação. E dava pra

perceber como a movimentação saía diferente. Eu acho que se fosse pra dançar assim outra coisa não

funcionaria bem, a contagem não sairia da mesma forma, eu iria ficar desencaixada do grupo... Já no

Avesso, não tem muito problema porque é uma outra organização, então eu posso usar meus

sentimentos a favor do espetáculo.

Nelly – Eu acho que uma das coisas que faz o Avesso ser bem diferente de uma apresentação pra

outra é a grande quantidade de estímulos que nós tivemos durante o processo. Uma hora eu posso

lembrar das sensações, dos cheiros, daquela consciência daquele dia, daquele filme... Eu acho que

tem vários estímulos. Fora que ele é muito subjetivo.

Feliciano – Esse espetáculo pode ser o mais difícil ou o mais fácil, dependendo de como tu estejas.

08. Como assim?

Feliciano – Se tu estiveres e quiseres te pesquisar, te perceber, te estudar, ele vai ser mais difícil,

porque tu vais querer te descobrir dentro do espetáculo. Se tu estiveres cansado ele pode ser mais

fácil e te deixar levar, usando uma qualidade que dê menos trabalho.

09. Nesses momentos livres quais são os recursos mais utilizados por vocês. A que vocês se remetem?

Quais os laboratórios dos quais vocês lembram? Alguém pode falar, de forma resumida, quais são os

seus recursos preferidos?

Feliciano – Aquelas fotos logo do início e aquele laboratório das sensações de tato, olfato e tal...

Ercy – O da respiração, o da torneirinha, que era da circulação e hoje em dia, o das ligações entre os

pontos ósseos.

Daiane – Tem um exercício específico que é a sensibilização da pele. Eu lembro várias vezes.

Ana Paula – Eu lembro daquele que tu colocaste as imagens dos exames, principalmente do exame do

coração batendo. Daí tu usaste as telhas e a gente tinha que pisar nelas. E tinha uma história de jogar

álcool na gente e passar um escovão.

Wanderlon – Eu não sei, eu usei essas coisas mais pra criar e quando eu danço me preocupo mais em

observar o meu corpo como está na hora, naquele dia. Eu nem penso muito nos laboratórios porque

eu acho que aquelas coisas já estão impregnadas.

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10. Digam um momento do processo criativo que tenha marcado muito e porque ele marcou.

Christian – Eu não lembro exatamente qual foi o exercício ou o laboratório, mas foi no dia que eu

criei aquele negócio dos pés, que tu falaste pra gente pensar nas partes do corpo uma dialogando com

a outra. Foi no dia em que eu criei a briga do pulmão fanqueiro com o fígado roqueiro.

Danielly – Eu lembro do laboratório que a gente fez lá em São Paulo. Foi muito forte e eu senti essa

coisa do corpo e como as coisas passam e fluem dentro da gente. Acho que foi um momento eu que eu

tava muito sensível.

Bruna – Uma coisa que me marcou muito e que serve até hoje como estímulo foram as discussões

teóricas e até mesmo sobre a poética da companhia. Mas também teve toda aquela reflexão que a

gente fez logo no início.

Luiza – Eu vou falar das conexões, porque eu consegui, a partir disso, descobrir um vocabulário

diferente do que eu já vinha descobrindo.

Feliciano – Eu acho que foi importante as vezes que nós abrimos o espetáculo pra discussão com

outros profissionais. Foi muito bom a gente poder ouvir opiniões diferentes, de pessoas que não

conhecem a nossa rotina e tudo mais.

11. Em que momento do espetáculo ou do processo vocês vêem com maior evidência a contribuição

de vocês?

Taíssa – Eu acho que é na última cena porque é o momento em que vai juntando todo mundo. Parece

até que quando falta um, o corpo não está completo.

Nelly – O Avesso é tão coletivo que eu não sei mais em que momento eu fui só eu ou eu fui o grupo.

Eu acho que eu contribuo a todo momento porque o tempo inteiro eu estou a disposição, então eu

sempre sou o coletivo.

Luiza – Eu acho que são os momentos de improvisação livre mesmo, porque eu tenho percebido que a

minha interferência ela é muito grande. Por exemplo, se eu estou perto do Ercy, o que ele faz, mesmo

que um simples movimento, já me estimula a fazer algo de outro jeito. Eu percebo que todos se

influenciam mutuamente e eu me vejo contribuindo nisso.

Feliciano – Acho que na criação da última parte do espetáculo isso foi bem claro. Tu até designaste

um dever de casa que a gente precisava trazer algo pra trocar com as outras pessoas. Foi meio

rápido, mas tinha que estar lá.

Christian – Eu acho que onde todo mundo contribui muito é na cena do solo do Feliciano. O

espetáculo todo é muito cheio, tem muita gente, e essa cena não é tão cheia assim em relação às

outras. Mas mesmo assim a gente esta lá, o corpo está lá funcionando. Seria muito estranho ver esse

espetáculo sem essa coisa cheia e coletiva, muito estranho se uma única coisa no espetáculo não

tivesse conseqüências em todo ele. É como se o corpo tivesse uma coisa isolada que não precisa de

mais nada. É como se existisse um órgão dentro de uma bolha. Não existe isso, e essa cena mostra

que não existe sabe? Qualquer coisa que entre em qualquer parte do corpo traz conseqüências nos

arredores.

Márcio – Eu acho que é no meu solo. Ele é uma coisa que, da forma como ele é, só eu poderia ter

feito. Não tem marcações nem nada. Ele é muito individual e repercutem no processo a partir do meu

olhar.

12. Que aspectos da sua autopercepção se fazem mais evidentes na abstração coreográfica?

Daiane – Eu entendo o Avesso com um devido grau de abstração. Quando eu vou para algum lugar

onde sei que vou respirar o Avesso, seja processo ou produto, eu vou para aquele momento do Avesso,

eu sinto como se ele fosse um holograma. É... eu sei a seqüência lógica de início, meio e fim, por mais

que tudo dentro dele mudo, mas no memento em que eu me insiro nisso, com a temperatura que

estiver, com os laboratórios que eu tiver vivido, com as experiências que eu tiver passado, esse

holograma se torna um holomovimento, como se essa estrutura concreta que é o Avesso, essa

estrutura de roteiro, ela se transformasse através das coisas mais mínimas. É como um objeto. Por

exemplo essa blusa aqui, ela está parada, mas as moléculas, quem me diz? Quem me garante que elas

não estão em movimento? Ninguém me garante porque as partículas estão lá vivendo... Usando a

palavra que foi usada durante muito tempo pejorativamente, o dinâmico... Bom, querendo ou não, o

Avesso é dinâmico, ele é esse dinamismo. Você pode entender assim que o Avesso é super subjetivo,

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mas quando você falar dele vai haver uma lógica. Aquilo não é tão vago, só que no movimento em que

se materializa, ele se torna o holomovimento, abstrato. Quando eu entro nesse grau de abstração é

exatamente isso. Quando eu estou no processo eu trago tanto as coisas mais micro, minhas, quanto as

mais macro. E é uma dinâmica profunda, um processo.

Feliciano – Eu acho que dá pra pensar no solo. Por ter muitos saltos, que são peculiares da minha

criação, tem muita influência entre o meu corpo físico e o todo do espetáculo.

13. Eu vou ser mais clara... O que é que vocês percebem na carne, a nível de sensação, que é mais

gritante no espetáculo?

Wanderlon – Pra mim é algo que as pessoas mais identificam em mim, que é a precisão. Isso pra mim

marca. Se eu não tenho a precisão, eu até me perco completamente.

Danielly – Eu acho que é muito o controle da respiração.

14. Se eu pedir pra vocês me apontarem uma parte do corpo que você percebe que grita mais na sua

percepção, o que vocês me dizem? O que você mais percebe vivo em você?

Márcio – O meu braço direito, que é o que mais grita pra mim. A partir dele eu descobri muitas

coisas, outras qualidades de movimento e tal... Ele foi fundamental pra definir quais as minhas

qualidades de movimento mais evidentes.

Wanderlon – A coluna.

Feliciano – O abdome, que é o que guia mesmo a minha própria vida. Em todo momento eu fico com o

abdome em prontidão.

15. Quais os aspectos sentimentais da sua vida pessoal que podem ser presenciados no processo/

produto do espetáculo?

Ercy – No Avesso ficou bem claro pra mim a questão do meu tremor. Desde a agonia que me dá de

não conseguir fazer direito as coisas algumas vezes por causa dele até a forma como eu me utilizo

disso pra descobrir o movimento.

16. Então mistura o sentimento e a sensação?

Ercy – É. É a própria história da minha vida, que eu trago muito, desde os primeiros exercícios do

processo. Ao mexer com isso de percepção, consciência corporal e dança, eu percebo que ali, na

minha história de tremor, é onde eu sempre chego, de alguma forma. Eu uso isso e isso acaba tendo

um enfoque muito grande na dança.

Daiane – Essa história de eu ser muito pequena... No Avesso eu me sinto dilatada. E aí a sensação de

ser pequena some porque o meu corpo expande.

17. Que imagens vocês criam quando dançam ou quando estão fazendo um laboratório?

Christian – Eu faço umas coisas meio assim... Por exemplo, quando eu estou experimentando um

movimento eu penso no percurso que ele tem, como se fossem vários quadros, daí eu paro em um

deles e penso como seria eu fazendo aquilo em outro momento da minha vida. Eu me reporto às

coisas que eu faço no cotidiano, tipo abrindo uma gaveta e quando eu improviso, eu paro numa

espécie de foto e me vejo nesse cotidiano.

Daiane – Eu penso muito como se a movimentação reverberasse, chegasse até os outros e depois

voltasse.

Ana Paula – Eu me vejo como uma gosma que às vezes entra nas pessoas e causa movimentos, ou a

gosma passando entre as pessoas e elas se afastando. Mas eu também sou a gosma e as pessoas vêm

pra cima da gosma.

Bruna – Eu sempre me reporto a objetos. Eu posso ser uma mola ou outra coisa qualquer. Eu pensei

uma vez nuns pedaços de madeira velha pregadas por uns pregos velhos, meio frouxos. Uma hora eu

sou um saco de batata... Os objetos podem ter várias propriedades assim de peso e tal...

Nelly – Eu sempre me reporto a imagens muito líquidas, mas pensando nas propriedades que o

líquido pode assumir. Ele pode mudar, pode ficar sólido, pode ficar consistente, duro, mole, pode

evaporar. É a imagem mais parecida com o que eu penso. Uma coisa que pode ser transformar em

várias outras.

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Feliciano – Eu não penso muito em imagens, mas no que eu penso são imagens internas do corpo

mesmo. A maioria das vezes eu penso mais na sensação, do que eu gosto ou não gosto de fazer,

sempre me provocando.

Luiza – Tem muito a questão do líquido e da lubrificação.

Márcio – Eu imagino... Eu penso muito em como as pessoas estão me vendo. Eu me imagino em cena,

como funcionaria. Eu vejo muito as partes do corpo se comunicando, como se eu fosse um fantoche.

18. Como é que o interior não visível a olho nu se transforma em visível pra vocês na processo?

Ercy – Quando eu estou em cena vem uma idéia de que eu estou sempre dentro do corpo. Parece que

vai acendendo e eu vou conhecendo, descobrindo as coisas do corpo, um som, uma forma, uma cor.

Nem sempre eu vejo a mesma coisa, eu sempre descubro coisas diferentes.

Márcio – Eu vejo mais quando eu assisto no vídeo. Eu também uso isso mais pra criação. Eu visualizo

as veias, que pra mim são canos, a pulsação, as velocidades, a respiração em forma de gás, que nem

desenho animado. Quando eu assisto o vídeo eu lembro dessas imagens porque parece que elas se

formam mesmo na cena. Tem a ver com o que eu penso durante a criação.

Feliciano – Pra criação, pra improvisação eu vejo as imagens, procuro os próprios órgãos, e vejo

texturas, formas e líquidos, como isso se move, como o meu corpo estaria dentro disso. Como és tu

dançando nessa textura? Eu penso nisso, mas a sensação que eu tenho é que me faz dançar, não as

imagens.

Nelly – Quando eu estou no espetáculo e eu fico meio parada, eu imagino como ficam os meus

músculos, porque eles nunca param completamente. Aí eu trago essa imaginação pro movimento da

minha mão, através de espasmos, por exemplo. Eu percebo como estou na hora e vou.

Danielly – É uma viagem interna onde eu tento perceber como estou por dentro naquela hora. Depois

eu coloco tudo isso pra fora, no movimento.

Daiane – Eu sinto durante os exercícios como se o que há de interno gerasse sonoridades e a

movimentação vem a partir das sonoridades. É o som que eu vou usar na hora que eu vou exteriorizar

o movimento.

19. O que o processo todo do Avesso mudou na vida de vocês?

Ana Paula – Eu descobri muitas coisas que eu não sabia. Ignorância mesmo de não saber o nome do

osso que eu tenho, sabe? Foi importante descobrir e aprender essas coisas. Enquanto bailarina, eu

acho que o Avesso me ajudou muito no processo de improvisação, foram muitos estímulos que

enriqueceram a nossa capacidade de improvisar. Eu descobri muitas outras coisas que eu sou capaz

de fazer.

Christian – Sabe aquelas coisas de super-homem, que tem a visão de raio-x que vai atravessando,

atravessando... camada por camada? Essa percepção gerou um cuidado maior que eu tenho em

pensar sobre meu corpo, até mesmo no cotidiano. Por exemplo, quando eu estou escrevendo, eu paro,

olho pro meu braço e parece que eu tenho essa visão de raio-x. Uma coisa que eu devo muito ao

Avesso, pelo menos é isso que eu acho, é que eu descobri que tinha areia nos rins por causa da

atenção pro meu corpo. Se eu não tivesse essa consciência corporal toda, que foi proporcionada pelo

processo do espetáculo, eu não iria perceber essa areia nos rins, só seu tivesse pedra. O médico falou

que é muito difícil sentir dor quando ainda se está no estágio de areia, é muito difícil. Tava muito no

começo, tanto é que eu tratei em uma semana. O médico só constatou que era areia por causa do

exame de urina porque na ultrasonografia não dava pra ver. Eu tenho certeza que eu devo isso ao

Avesso. Na vida artística eu acho que foi uma grande maturação pra todos nós da companhia.

Márcio – Além de ter adquirido esse conhecimento básico da biologia que eu nunca havia me ligado.

Eu nunca me preocupei com essas coisas de corpo, como funciona o corpo e o que é o que. Eu até

passei por esse processo sem saber mesmo nome de ossos e tudo mais, mas eu compreendo como eles

estão, como eu posso me comportar em certas situações, como eu respiro melhor, até onde eu posso ir

correndo ou malhando... Essa consciência corporal é pra vida. Enquanto artista, eu acho que o

dinamismo, ele veio muito forte. Eu entrei numa dinâmica muito forte porque eu tinha um outro

tempo. Eu acho que meu tempo artístico era muito aquém do que o Avesso me exige. Qualquer coisa

já me deixava cansado. Ao pensar numa cena, eu já projetava o limite que meu corpo poderia ter e

hoje não. Eu penso em como se inicia a cena, como ela se desenrola, mas eu não penso

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necessariamente como ela vai acabar. Artisticamente eu abri muito a visão de como funcionar

cenicamente.

Feliciano – Eu acho que além das questões relativas ao corpo, o Avesso é um processo longo e ele

trabalha, além do bailarino, a própria maturidade como pessoas, como amigos, como comunidade.

Eu acho que cada um de nós cresceu muito como pessoa, aprendendo como respeitar o outro, essa

coisa de maturidade de cidadão. O Avesso também contribui muito na minha área de educação física.

Por exemplo, na disciplina lutas, onde se vê karatê, capoeira e tal... em todas elas o professor me

usava como exemplo, acho que é por causa das facilidades corporais que o Avesso proporciona. E ele

proporciona de uma forma muito mais abrangente que a dança em si, porque foi pesquisa a partir de

consciência corporal. Ele me ajuda muito em como mostrar o exercício. Pra mim é mais fácil

absorver e demonstrar as informações corporais exigidas pelos professores no meu curso. Eu acho

que o Avesso nos possibilita, enquanto intérpretes de dança, um leque enorme de possibilidades, de

frases de movimento. A gente inventou muito mais letras pra fazer o nosso anagrama.

Luiza – Eu destaco o conhecimento da área biológica, da medicina. Eu não conhecia algumas coisas

e enriqueceu mais a minha pessoa, até pra que eu possa falar sobre isso com as outras pessoas.

Enquanto intérprete-criadora, eu acho que houve uma grande contribuição, não exatamente do

espetáculo, mas das descobertas que nós tivemos pra chegar no espetáculo. Tudo o que é proveniente

dos estímulos que nós tivemos durante o processo forma um leque de opções daquilo que a gente pode

fazer.

Wanderlon – Eu acho que existe uma grande relação entre as nossas experiências aqui dentro e lá

fora. Uma coisa contribui com a outra a partir do processo do espetáculo, tanto no que diz respeito

ao conhecimento do corpo, das pesquisas biológicas que a gente fez, ao conhecimento dos limites do

meu corpo, da consciência que eu tenho do meu corpo. Então, eu acho que há contribuições tanto no

meu lado bailarino quanto no pessoal. Há uma equivalência.

Danielly – Eu concordo. Eu vejo que uma coisa leva à outra. Existe uma consciência do que eu sou

desenvolvida aqui dentro que eu posso usar lá fora. Controle, equilíbrio, limites. Uma coisa

complementa a outra.

Nelly – Eu acho que existe em relação à companhia o período pré-Avesso e pós-Avesso. O Avesso

mudou completamente a companhia. A coisa da consciência corporal é absurdamente diferente depois

do Avesso. O corpo está muito mais consciente. Eu tenho certeza que o nosso amadurecimento

enquanto pessoa contou pra isso, mas se não houvesse laboratórios e pesquisa teórica e prática do

Avesso, nós não seríamos como somos hoje. Esse estudo coletivo, esse diálogo contribui muito pra

isso. Em relação ao campo profissional, por eu ser monitora na faculdade e tal, o tempo inteiro eu

estou em contato com o corpo morto e hoje eu dou outro significado pra isso. O Avesso deu uma

riqueza imensa pra minha vida profissional e também para como eu encaro uma pessoa, entendendo

que ela tem toda uma história de vida por trás daquele corpo.

Bruna – Olha, depois do Avesso eu passei a gostar bem mais de estudar biologia e relacionar isso

com a dança. Com o Avesso eu passei a acreditar mais que qualquer tipo de arte pode ter uma

expressão por si, sem precisar explicação. As pessoas às vezes dizem que a dança não é expressão,

mas eu acho que é. E eu também achava que algumas outras coisas em arte também não se

expressavam, mas agora eu acho que sim, eu procuro. Além da consciência corporal e do aumento do

vocabulário, eu acho que os debates teóricos deixam a gente melhor, mais interados sobre o que

estamos fazendo e, principalmente, ajudam a ter ainda mais consciência. Por mais que as pessoas nos

assistam e não entendam nada, elas começam a ver na nossa consciência corporal a expressão da

dança.

Ercy – Eu concordo com essa coisa do conhecimento biológico, do amadurecimento do homem

mesmo, que aconteceu, de minha parte. Hoje eu penso de forma mais aberta. O Avesso pra mim é uma

janela que me fez enxergar a complexidade da dança contemporânea, como eu posso tratar meu

corpo. É uma janela por onde as pessoas começaram a enxergar a direção, mas ainda tem muito

caminho pela frente.

Daiane – O Avesso só veio endossar aquela brincadeira “eu faço arte conceitual”. É como se na vida

rotineira eu pudesse levar as coisas que eu faço na arte e as pessoas percebessem que eu sou assim

porque eu faço arte. E no contexto específico da dança, me parece que foi criada uma extrema

liberdade com o corpo, como se certas limitações que eu me impusesse, até mesmo essas questões

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pudicas de se pegar, esse negócio de tirar a roupa na frente das pessoas, de ficar todo mundo

emaranhado, mas não sei... parece que o outro se torna parte de mim através do Avesso.

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ANEXO 2: DIÁLOGOS REFLEXIVOS 2

Trechos de reflexão coletiva com integrantes do elenco do espetáculo Avesso e espectadores, gravados

após uma sessão de encenação realizada no dia 07/10/2007, durante o desenvolvimento desta tese.

Alguns trechos desta reflexão foram incluídos, funcionalmente, ao corpo do texto, a fim de contribuir

com a análise do objeto desta pesquisa. Esta prática, utilizada como recurso para análise do espetáculo,

encontra-se exemplificada nos presentes depoimentos.

João de Jesus Paes Loureiro (espectador) – Eu gosto muito desse grupo e desse trabalho deles, pelo

modo como eles desenvolvem esse trabalho e eu acho que entre o espetáculo anterior e esse tem uma

densidade de amadurecimento indiscutível. E o que é corajoso no espetáculo é que ele é uma

coreografia simbólica de gestos de dança, mas que não são dançantes, ou seja, é, de saída, uma clara

desconstrução, não é apenas do gesto, mas é uma desconstrução do próprio espetáculo da dança, em

que os gestos são criados a partir de uma expressão simbólica do sentimento, mas que não são

dançantes no sentido tradicional, nem da dança clássica, nem da dança moderna, como também não é

uma experiência de teatro-dança. Ele é, acima de tudo, uma experiência de expressão simbólica do

sentimento através do gesto e que é uma diferença que eu vejo. O que me encantou hoje é que eu senti

uma densidade maior de interiorização de cada um. Tem aquela forma de, digamos, de repente fazer

com que o gesto se imobilizasse no ar, como se fosse um ritual. Essa imobilização do gesto

subitamente no ar dá uma tensão no espetáculo muito brilhante e forte, o que exige o tempo todo de

cada participante uma interioridade muito grande porque eles não estão trabalhando com gestos que

a gente olha de longe e acha logo que é dança. Por exemplo, num balé, o bailarino sai dando uns

rodopios e você sabe que aquilo é dança porque são gestos que fazem parte da dança, estão

codificados como sendo dança. Pode fazer bem, pode fazer não tão bem, mas aquilo está classificado

como dança. A mesma coisa é o espetáculo da dança moderna onde você tem, apesar de não ter

certos passos codificados que se repetem sempre, apenas um faz melhor do que o outro, na dança

moderna e até na dança contemporânea, você também já tem certas coisas codificadas. Eu acho que

esse espetáculo, quer dizer, o valor experimental desse trabalho, é que ele surpreende a cada

momento, usando coisas que normalmente não se gosta de usar na dança, como o silêncio, por

exemplo, usando a respiração, um movimento do próprio corpo, o suor, enfim... É uma forma de você

extrair o movimento como dança do movimento que não é dança. Isso é uma síntese da proposta do

Avesso, que o espetáculo traz como título e que se propõe a apresentar coreograficamente, não é? O

Avesso! Não é assim? O avesso do corpo dissecado. Tem uma expressão que você usa bem e que eu

acho ótima que é uma dissecação estética, não é assim? Ou seja, você não vai mostrando o exterior

do gesto esteticamente, você dissecou esse gesto mostrando aquilo que está por dentro dele, de modo

que é um espetáculo corajoso, que exige muito de cada um dos participantes, porque é indiscutível a

necessidade de tensão interior permanente de cada um, senão essa experiência não tinha condições

de funcionar. Quando o gesto está codificado já como sendo dança, em que a pessoa olha e identifica

que é linguagem da dança, até pode o bailarino fazê-lo artificialmente, porque estará servindo a uma

linguagem que já é reconhecida de todos, mas quando você usa o gesto informal, o gesto físico, o

movimento do corpo, muito próximo, num espetáculo como esse, você ficando próximo de quem

dança, tem aquela respiração tão próxima que se não tiver uma tensão interior vai perdendo a força

do espetáculo, o que não acontece aqui porque na verdade o Avesso mantém essa tensão. Outra coisa

também é que a gente está um pouco acostumado com aqueles espetáculos que tem... existe um termo

teórico que é o triângulo em que você vai fazendo com que o espetáculo chegue num ponto, que é o

ponto culminante dele. Digamos, quando você descobre o assassino, no ponto culminante, há uma

precipitação do restante do espetáculo, porque se perde o interesse, tanto que nas novelas de

televisão, eles usam isso até o último capítulo e depois vem uma brusca precipitação. No caso do

Avesso, me parece que ele mantém o espetáculo até o fim sem precisar criar um momento que atraia a

atenção de todo mundo, até porque desde o começo você vai entrando pelo íntimo do cenário e de

todas as coisas.

Espectador não identificado 1 – Eu acho que o espetáculo não precisa mesmo desse triângulo. Ele

quase um espetáculo comercial, porque você não consegue ver tudo em uma única apresentação. Eu

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fico pensando num dedinho que alguém mexeu ali e eu perdi. Eu acho que o espetáculo tem, ele todo,

um clímax. Não há um ponto que eu possa acreditar ser o clímax. O clímax está lá o tempo inteiro.

Espectador não identificado 2 – Essa questão de ter sido tudo ao mesmo tempo né... Eu fiquei tentando

até ver alguém trocar de roupa, mas eu não consegui. Bom, eu pensei muito na água, que é o símbolo

maior da vida, talvez. Mas o espetáculo vai crescendo também com a questão da roupa. Como se o

corpo fosse crescendo e ganhando certas armaduras, couraças mais elaboradas, alguma coisa assim.

Quanto à questão do clímax, eu acho que apesar de não haver um ápice, existem momentos de pausa.

Parece que o espetáculo faz o contrário para poder depois voltar aquela tensão.

João de Jesus Paes Loureiro (espectador) – A criação artística desse espetáculo não é linear, não é

narrativa. Na hora que ela é apresentada, cada um vai criar sua significação livremente. Esse tipo de

trabalho, quanto mais você assiste, mais vai encontrando significados novos. Um trabalho abstrato

assim, ele tem essa vantagem, ele permite uma interminável significação. Ele é muito corajoso no

sentido de que ele não sofistica nada. E ele não apela para o gosto fácil, de uma bela melodia, de um

jogo de luz muito certinho. Quer dizer, ele procura se valer, em primeira mão, da sua concepção de

movimento e de gesto sem nenhuma retórica, no sentido de atender ao gosto tradicional. Ele rompe

com a comunicabilidade fácil, mas como ele é bem feito, ele cria uma comunicabilidade com a qual

todo mundo fica preso. E ele também termina como uma surpresa, não é porque já chegou o ponto de

saturação não, ele simplesmente termina como uma surpresa. E aí fica aquela coisa suspensa, você

fica desejoso por mais e na sua cabeça você sai desdobrando a coreografia.

Darliene Gasparetto (espectadora) – As sensações que esse espetáculo provoca me levam a crer,

realmente, que todos os movimentos que estão aí partiram do sentimento. Para quem está aí do outro

lado é simples perceber esta constatação, afinal foram muitas experiências vividas, enfim... Mas pra

quem está daqui, é interessante perceber que o sentimento está presente em cada movimento. Isso de

transformar o movimento do cotidiano ou o gesto simples, se não for associado ao sentimento e às

sensações corporais que a dança provoca, o espetáculo fica sem sentido nenhum. É muito bonito ver a

quantidade de informações que vocês passam a respeito desse funcionamento. Pra mim o Avesso,

além das informações dadas sobre o físico, que é o mais evidente, talvez pela minha abordagem

teórica e profissional voltada para a psicologia, eu tenha percebido ele muito mais por esse ângulo

dos sentimentos e de como o meio interfere na sua forma de agir.

Espectador não identificado 3 – Esse espetáculo me tocou muito. É a primeira vez que eu venho a esse

teatro e esse espetáculo já marcou muito a minha relação com esse teatro. Esse espetáculo me

colocou diante de indagações que eu faço a mim mesmo. Eu sou músico auto-didata e me chamou a

atenção a questão da música. O espetáculo tem uma música que pra mim é extremamente interessante

porque em alguns momentos parece que as notas musicais fogem. Você tem sonoridades que fogem de

um certo padrão melódico.

Hudson Andrade (espectador) – Bom, eu acho que é a terceira ou quarta vez que eu assisto o Avesso e

eu continuo achando que eu preciso assistir outras vezes para ver outras coisas. É como eu brinco

dizendo pra vocês que isso é uma estratégia de marketing. Vocês fazem isso que é pra gente assistir

várias vezes e comprar vários ingressos (risos). Mas, sendo terceira ou quarta vez é muito legal

perceber algumas coisas quando as pessoas comentam. Olha, eu nunca vi as projeções, por exemplo.

Eu sei que elas estão lá, mas eu não consigo olhar pra elas. O que interessa mesmo está no corpo dos

dançarinos. E eu procuro distribuir realmente meu olhar. Cada dia que eu vejo eu penso “ah, hoje eu

vou assistir com tal pessoa”, aí eu sigo o percurso do espetáculo a partir de uma pessoa, de um

dançarino. Cada vez que eu assisto, eu descubro emoções diferentes e fico muito feliz por isso porque

eu percebo que eu nuca vou ter um concepção fechada do espetáculo. A cada apresentação eu posso

criar uma história, pois o corpo é infinito. Eu acho que só deixo de assistir esse espetáculo no dia que

eu vier e não sentir absolutamente nada. Fico feliz também porque eu percebo que cada pessoa tem a

sua história e a sua contribuição, e eu acho isso fantástico. Aliás, eu vejo que no trabalho de vocês

toda pessoa, qualquer pessoa, pode vir aqui e ter a possibilidade de se apresentar, de contribuir,

ajudar a criar o espetáculo e de, não sendo bailarino na concepção técnica da palavra, poder

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executar movimentos que as pessoas normais, pobres mortais, podem executar. Isso é muito bom

porque você vê a diversidade dos corpos, dos físicos, enfim, de tudo, mas você consegue com isso

criar um corpo só. Essa unidade que vem dessa diversidade é o que, pra mim, torna o Avesso um

espetáculo agradável.

Ercy Souza (intérprete-criador) – É... a gente fica refletindo sobre a nossa própria história para poder

sair esse resultado que vocês viram. É interessante perceber que a relação dessa nossa arte é muito

parecida com a de um quadro. É que nem aquelas coisas do museu, cheia de cores, riscos e pontos e

que a gente acaba não entendendo. O que seria pra gente isso aqui? Esse nosso quadro é pintado por

várias pessoas, vocês vão observando esse quadro sendo pintado com som, com forma, ao mesmo

tempo em que vocês estão assistindo, pelo menos essa é a imagem que eu posso passar do meu

entendimento. E tem também essa história de estar dentro da Flávia e da gente absorver. Foi ela

quem comprou as tintas, os pincéis e a tela e distribuiu pra gente. Foi dela que a gente sugou esse

amor que a gente tem pelo que faz.

Nelly Brito (intérprete-criadora) – O Avesso é muito guiado pela sensação e não pela forma, como

costumam ser os espetáculos que a gente assiste. Então, você vai em um espetáculo e o que lhe prende

mais é a forma. Geralmente é assim, mas isso não é uma regra. Bom, então vem a forma,

principalmente se ela é agradável. No Avesso o que acontece não é isso porque o mais importante não

é a forma, é a sensação. Então, o que importa não é se agrada, se é bonito ou esteticamente correto.

O que importa é se causa uma sensação. Uma sensação que não sou eu que digo como você tem, você

que vai ter. Por exemplo, não é assim: eu quero que você fique triste agora nesse momento. Você é

que vai ter essa sensação, não necessariamente igual a minha, não necessariamente igual a de outra

pessoa. Isso, a gente só consegue colocar pra fora e fazer com que seja homogêneo através dos

laboratórios. Como é que uma coisa tão heterogênea, que eu não sei o que você está pensando, eu

não sei o que o espectador está sentindo, como é que eu chego a isso? Bom, foram colocados para

nós, através dos laboratórios, muitos estímulos. Não só estímulos visuais ou auditivos, mas cheiros,

gostos, coisas que fizeram a gente mergulhar em certas percepções que a gente não tinha mergulhado

antes. Isso tudo a gente explorou e colocou pra fora mesmo, essa coisa interna. E não só o interno pra

fora, mas também o que tava fora passou a ser percebido de um outro jeito. Então eu olhei pra uma

figura do corpo humano e procurei não ver o óbvio, eu fui vendo o que havia de novo pra mim ali.

Essas novidades vistas nas coisas rotineiras são os recursos principais. E realmente dá pra perceber,

quem conhece a gente deve perceber que provavelmente aquele movimento foi daquela pessoa e

aquele outro daquela outra pessoa. Quando a gente vem pro palco e tem essa coisa heterogênea, que

na verdade é uma só, isso acontece porque um cria e as outras pessoas aprendem, só que elas não

aprendem exatamente como o outro faz, mas sim do seu jeito. A execução não é perfeita,

plasticamente correto, igual, limpa, como a outra pessoa propôs. O importante é que você coloque o

seu toque, do que você faz ali. Eu acho que é isso torna cada movimento, cada parte do espetáculo e

cada forma de perceber, tão diferentes.

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ANEXO 3: DIÁLOGOS REFLEXIVOS 3

Exemplo de entrevista realizada com os integrantes da equipe de produção da Companhia Moderno de

Dança e do espetáculo Avesso

Entrevistado: Gláucio Sapucahy, diretor executivo da Companhia Moderno de Dança e figurinista do

espetáculo Avesso, entrevistado em 10/04/2007.

01. Na sua concepção o que significa o Avesso?

Resposta: É um espetáculo com uma concepção teórica dos movimentos voluntários ou involuntários

do interior do organismo humano, relacionados com o comportamento, sentimentos e posições

políticas e sociais de cada dançarino.

02. Qual a sua função na construção do espetáculo?

Resposta: Minha função é, de modo geral, organizacional. Procuro traduzir para a prática os

pensamentos de outros artistas sobre cenário, luz, e tudo o mais que se refere à produção do

espetáculo, mas essa função também vai além das questões técnicas, chegando até a administração do

emocional dos bailarinos e procurando alimentar o espírito coletivo, valorizando as opiniões de cada

um, seja no sentido da criação artística, seja no sentido das relações pessoais. Além disso, tem ainda

minha contribuição com a criação do figurino.

03. Quais foram suas primeiras idéias para a elaboração do figurino do espetáculo?

Resposta: Externar as cores e texturas do interior do corpo humano que pudessem, de acordo com a

movimentação dos bailarinos, reproduzir formas, movimentos, cores, do interior do organismo.

04. Os movimentos da coreografia do espetáculo influenciaram nas suas idéias e no seu trabalho, isto

é, na concepção do elemento cênico (figurino) que você assina? De que maneira?

Resposta: Sim, de maneira que na concepção, o figurino surge depois dos movimentos e, portanto,

deve adequar-se a eles, valorizando, significando, facilitando a plástica dos movimentos. Acredito que

na dança, os figurinos não podem, sozinhos, desvendar roteiro, enredo... pois eles também devem ser

para o público, pontos de reflexão.

05. A diretora artística do espetáculo e os dançarinos do grupo mantiveram diálogo com você a

respeito da composição do figurino? Como esse diálogo procedeu?

Resposta: O diálogo é profundo, transpassando, inclusive, a placenta dos ensaios, correndo por

outros meios e lugares que não especificamente a sala de ensaios.

06. Eles colaboraram com sugestões? Quais?

Resposta: Sim. Sugeriram tipo de tecido. Logo após o primeiro contato com o figurino, em função da

opinião prática de alguns bailarinos, forma feitas algumas adaptações para que alguns detalhes

fossem valorizados, tanto do figurino, quanto dos dançarinos.

07. Você acha que houve harmonia/adequação entre o seu produto artístico (figurino) e a coreografia

do espetáculo? De que maneira?

Resposta: Eu sou suspeito para falar, mas acredito que houve, de maneira que o figurino, ele passa a

ser a pele do bailarino. Na minha visão, o figurino torna-se parte do corpo dos dançarinos e, às vezes,

representações abstratas de tecidos de órgãos do corpo humano, realçando, também, nuances que o

projeto de iluminação concebe ao espetáculo.

08. De que maneira você acompanhou o processo de criação da coreografia de Avesso?

Resposta: Assistindo aos ensaios, discutindo concepções, observando imagens em fotos, exames

médicos, resgatando a minha vivência com disciplinas como a biologia e a anatomia, que fazem parte

da minha formação de professor de educação física. Participei também interferindo geograficamente

na formação das células coreográficas.

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09. De modo geral, quais as principais idéias e conceitos que você tentou imprimir na sua contribuição

para o espetáculo?

Resposta: A principal idéia é de que o espetáculo consiga, e eu acho que ele consegue, passar um

clima orgânico, visceral, para que o público sinta, de alguma forma, os movimentos do interior do

organismo. Geograficamente, acredito que, por criação divina, o organismo seja perfeitamente

equilibrado. Com isso, o conceito de equilíbrio é por mim muito considerado quando lanço alguma

idéia. Acredito que esse conceito também ajude na não exacerbação do tema, para que ele não se

torne uma demonstração óbvia da biologia do organismo, pois não é esse o foco principal do

espetáculo.

10. Então você acha que parte da sua função é equilibrar o espetáculo para que o grupo não se perca na

complexidade do tema?

Resposta: Mais ou menos isso. Acho que esse equilíbrio se dá através das discussões, dos estudos.

Uma coisa que o grupo tem de bom é que todos têm uma profundidade muito grande nas suas áreas

de estudo e, consequentemente, nos estudos da dança contemporânea, o que se reflete no próprio

espetáculo.

11. Com que momento(s) do espetáculo você mais se identifica? Por quê?

Resposta: Com a cena dos movimentos peristálticos, porque naquela célula coreográfica, naquele

momento do espetáculo, o conjunto do grupo consegue passar a idéia de organização do corpo de

uma forma muito agradável aos olhos e aos sentimentos de quem assiste.

12. O que você menos gostou? Por quê?

Resposta: O que eu menos gosto é de ter que adaptar o espetáculo a diversos lugares. Toda vez que a

gente sai de um lugar para outro, essa adaptação é muito cansativa. O espetáculo pode acontecer em

qualquer lugar, mas a cenotécnica foi criada primeiro para um tipo de ambiente, mas é lógico que ele

não poderia ser realizado sempre nesse ambiente, então, essa transposição se torna cansativa.

13. Qual o melhor formato na tua opinião. Por quê?

Resposta: Arena. Porque possibilita à platéia, assistir o mesmo espetáculo de diversas posições,

dando a ele, diversas concepções, imagens, possibilidades.

14. O que você faria diferente se pudesse começar tudo do zero?

Resposta: Tem uma pessoa no espetáculo extremamente talentosa, criativa, com habilidades

múltiplas, mas, se convivesse mais intimamente com o corpo de bailarinos teria dado mais e,

principalmente, teria crescido mais enquanto artista. Não é que ele pudesse ter criado melhor para o

espetáculo, porque para o espetáculo a criação dele é perfeita, mas ele poderia aproveitar mais para

sua vida alguns conceitos organizacionais. Portanto, se eu fosse começar de novo o trabalho sabendo

de todas essas possibilidades, teria provocado mais essa interação, não pelo espetáculo, mas pelo

artista.

15. Faça um comentário geral sobre as suas contribuições para o processo de criação, tanto no sentido

organizacional, quanto no criativo, em relação ao espetáculo Avesso como um todo.

Resposta: O único comentário que e tenho, é um comentário que eu faria em qualquer grupo. O mais

difícil não é criar o espetáculo, porque a gente convive com pessoas tão inteligentes. O mais difícil é

administrar a vida de seres humanos em constante processo de mudança. O grupo é formado por

pessoas em diversos momentos de suas vidas. Por estarem nessa condição, tem princípios, objetivos,

diferentes. Administrar isso, equalizando e botando em sintonia à filosofia do grupo, é o mais difícil.

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ANEXO 4: SÍNTESE DAS CATEGORIAS DE COREÓGRAFO NO PROCEDIMENTO

DE DISSECAÇÃO PARA A DANÇA IMANENTE

CATEGORIA FUNÇÕES

COREÓGRAFO-PESQUISADOR

Análise, seleção e estudo dos métodos de consciência corporal

(Conscientização do movimento, Conscientização corporal, BMC®,

Contato-improvisação).

Seleção de técnicas de estudo e observação do corpo próprias da área de

saúde (tecnologias médicas).

Criação de repertório de exercícios instigadores do corpo visivo.

COREÓGRAFO-INSTIGADOR Aplicação do repertório de exercícios instigadores do corpo visivo/

transfiguração do corpo imanente em corpo visivo.

COREÓGRAFO-EDITOR

Apreciação da transformação do corpo visivo em corpo visível/

transfiguração do corpo visivo em metacorpo.

Seleção de materiais (movimentos e/ou sensações).

Coletivização das experiências.

Edição das células coreográficas (movimentos e/ou estímulos).

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ANEXO 5: COLETÂNEA DE MATERIAL REFERENTE AOS PROCESSOS DE

CRIAÇÃO E ENCENAÇÃO DO ESPETÁCULO

01. Clip com imagens do processo de criação de Avesso

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02. Parte do material escrito, produzido pelos intérpretes-criadores da Companhia Moderno de

Dança durante o processo de Avesso

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03. Parte do material coletado em jornais impressos e publicações em internet como

demonstração da repercussão do trabalho da Companhia Moderno de Dança

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