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Relógio D’Água EditoresRua Sylvio Rebelo, n.º 15

1000 ‑282 Lisboatel.: 218 474 450

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Título: Com Esta ChuvaTítulo original: Bei diesem Regen (1989)

Autora: Annemarie SchwarzenbachTradução do alemão: Ana Falcão Bastos

Revisão de texto: Isabel Castro SilvaCapa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

sobre fotografia da autora

© Relógio D’Água Editores, abril de 2018

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

Encomende os seus livros em:www.relogiodagua.pt

ISBN 978 ‑989 ‑641 ‑840 ‑3

Composição e paginação: Relógio D’Água EditoresImpressão: Europress, Lda.

Depósito Legal n.º 439707/18

Annemarie Schwarzenbach

Com Esta ChuvaTradução de

Ana Falcão Bastos

Viagens

Com esta chuva

Tobby, Kade e eu avançávamos à chuva. Há três dias que chovia, há três dias que percorríamos a cavalo a região de Dukiane à procura das ruínas de uma cidade bíblica onde, há dois mil e quinhentos anos, estavam enterradas as estátuas de deuses hititas, depois do ataque do exército assírio ter varrido as planícies do norte da Síria e reduzido a cinzas cidades, fortalezas e templos. O comandante da gendarmaria de Dukiane tinha ‑nos dado uma escolta de quatro homens, entre os quais se contava um sargento francês. Os outros eram ára‑bes, que durante a viagem a cavalo comiam doces, farinha, açúcar e gordura de carneiro. Faziam pequenas bolas que nos ofereciam e nós desfazíamos em pedacinhos.

A escolta armada era necessária naquela época dura do ano. Beduínos esfomeados estavam de atalaia à beira das estradas e atacavam automóveis no caminho entre Alepo e Antioquia. Porque não iriam fazê ‑lo connosco? Apareciam de repente, ficavam a gritar na estrada, a agitar as armas, e era raro dispararem. Depois desapareciam, atrás de ruínas romanas, porta do sol, arco caído ou velha torre de vigia, que se erguiam no deserto pedregoso. Soldados árabes podiam negociar com os salteadores e sentíamo ‑nos em segurança na

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sua companhia. Temíamos muito mais a chuva, não por nos molhar, mas porque toda a região ficava exposta a ela, satu‑rada de tristeza e subjugada sob sua bandeira lúgubre e des‑consolada. E que podia fazer por nós a nossa coragem? Ca‑valgávamos em silêncio, uns atrás dos outros, como se cada um fosse sozinho.

Tínhamos desistido das negociações com os habitantes das aldeias por nos parecerem inúteis. Um tell, um montículo de ruínas? Eles apontavam para as redondezas, para lá de rios e planícies: havia centenas deles. Eram santos que os habita‑vam; as modestas povoações desta última geração viviam ao abrigo e à sombra dessas elevações, na superstição e no temor dos espetros. Nomes? A maioria desses montículos não tinha nome, e era frequente o arado passar ‑lhes por cima. Então surgiam à luz fragmentos que a gente da aldeia nos levava. Quase sempre nada tinham de especial, eram cacos vermelhos de fabrico romano, e os tijolos que aqui e ali irrompiam na erva fina também provinham dos romanos. Sabíamos que por baixo havia sucessivas camadas sobrepostas: Assur e Chipre, milhares de povos sírios, influenciados pelos povos marítimos e pelos egípcios e pelos poderosos hititas da Ásia Menor. Mas a chuva lavava principalmente esqueletos romanos e candeias bizantinas. Nomes? Rostos de ave hititas? Os beduínos não sabiam nada. Os seus cães, com orelhas mutiladas, muitas vezes ainda a sangrar, ladravam aos nossos cavalos. E as coi‑sas continuavam, à chuva, o deserto pedregoso transformava‑‑se progressivamente em argila, que pesava colada aos cascos dos cavalos.

Na véspera, ao entardecer, tínhamos chegado a Alepo e encontrado o capitão piloto aviador Poiret no bar Parisiana, embriagado, claro, como sempre. Tinha ‑nos mostrado uma vista aérea, com centenas de montículos de ruínas.

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— Mas quando quiserem qualquer coisa precisa, seus pati‑fes cobiçosos… — pois considerava os arqueólogos america‑nos ladrões de túmulos —, perguntem ao tenente que anda além em cima a fazer a recolha de dados topográficos. Ele diz ‑vos tudo.

Foi para aí que nos dirigimos naquele dia. Foi um trajeto longo, os membros da nossa escolta mostraram ‑se desconten‑tes. Cavalgámos para norte. Atravessámos a planície, seme‑lhante a um mar, deixámos para trás o rio, as ruínas romanas, a estrada, que resistia às tentações, e perdemo ‑nos. Ao longe ficava Dukiane e, muito ao longe, o montículo da cidadela de Alepo, que durante algum tempo ainda se erguera como um consolo na orla deste mundo de chuva.

Os cascos dos cavalos escorregavam na encosta pedregosa. Os seus corpos fumegavam, e o pelo brilhava de suor. A chu‑va corria ‑lhes pelos pescoços.

Lá no alto havia uma única barraca, fustigada pelo vento que, espetral, soprava de uma cumeeira. Ali, exposto àquela grande desolação, afastado da planície, o tenente vivia sozi‑nho.

Batemos à porta e um rapaz árabe com uniforme francês abriu ‑nos. Por uma segunda porta, entrámos no quarto. O te‑nente estava doente. Encontrava ‑se estendido na sua cama de campanha, tapado até ao pescoço. O rapaz segredou:

— É a febre, senhores. Agora o meu patrão está a dormir, que Alá o proteja. Mas quando acordar, a febre vai subir.

— Traz chá — disse Tobby.O rapaz desapareceu, fechando a porta atrás de si.

Entreolhámo ‑nos. No quarto, além da cama de campanha, havia uma mesa e dois baús militares, cobertos de mapas. Na parede, estava pendurado o capacete e o capote do oficial. Afastámos os mapas e sentámo ‑nos num dos baús.

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— E se o acordássemos? — segredou Tobby. — Mas se ele estiver muito doente, não serve de nada. Não vai poder explicar ‑nos nada!

— Deixa ‑o — disse Kade.O rapaz voltou, com os pequenos copos de chá num tabulei‑

ro de alumínio, que poisou cuidadosamente em cima da mesa. — O que tem o tenente? — perguntei. — É a febre — respondeu o rapaz —, mas vai passar. Com

a chuva vai passar. — Isto acontece ‑lhe muitas vezes?O rapaz fez que sim com a cabeça. — Sempre que chove — respondeu. O tenente endireitou ‑se de súbito. — Queiram desculpar ‑me — disse, com uma voz de uma

nitidez surpreendente. — Gostaria de vos receber melhor. — Fique deitado — disse Kade.O doente deixou ‑se cair para trás. Tinha o rosto vermelho e

muito juvenil, como o de um miúdo da escola.Pus ‑me de pé, aproximei ‑me da cama e disse: — Nós é que temos de pedir desculpa. Vimos de Dukiane

e queríamos ver os seus mapas. Estamos à procura de um montículo.

Ele olhou ‑me, sem compreender. — Os meus mapas — disse ele com um suspiro. — Se

soubessem como tudo isto é difícil. — Trata ‑se apenas de um montículo...Vi à minha frente o que ele devia abarcar com a vista da

plataforma da barraca: a grande planície, centenas de montí‑culos, a região onde nos encontrávamos. Aldeias, o Orontes, uma cadeia de montanhas à distância.

E, passo a passo, ele media tudo isso, sozinho com o seu rapaz árabe. É absurdo, pensei, o que exigimos dele, absur‑

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do o que exigem dele, tendo em conta que é quase uma criança.

— Conheço todos os montículos — disse ele —, mas não têm nomes. Também não sou arqueólogo. — E, a respirar com dificuldade, acrescentou: — Não percebo nada de montículos, nem nada deste país. É tudo tão difícil...

— É malária? — perguntou Tobby.O tenente olhou para ele e respondeu: — Dizem que aqui não há malária, mas eu fui lá uma vez,

às regiões onde há malária — não perguntámos onde —, e agora, com esta chuva...

Calou ‑se e vimos a febre apoderar ‑se do seu corpo. Ficou muito pálido, a tremer de frio, de nada servia dar ‑lhe chá. Pu‑semos o capote em cima dos cobertores, as tremuras subiram dos pés até aos ombros, e passaram para o queixo. O rosto dele transformou ‑se, ficou contraído, ele estava com medo, a sua mão agarrou o meu joelho. — Há três dias — lamentou ‑se —, há três dias, esta chuva!

Vi Tobby sentado à mesa, curvado para um mapa, Kade de pé ao lado dele, hesitante. Eram cinco horas, altura de regres‑sarmos. Estava quase escuro. Íamos enganar ‑nos no caminho. Não íamos encontrar o montículo. Não íamos conseguir dar com o caminho para casa.

— Isso não vai durar muito — disse eu ao tenente. — Sabe como é, os acessos de malária não duram eternamente.

— Ah — disse ele —, não é por causa da malária. Na ver‑dade, não é por causa de um pouco de febre.

Agora a vermelhidão alastrava rapidamente à sua testa de criança. A febre estava a subir depressa, ele iria sentir ‑se me‑lhor.

— Devia pedir uma licença e ir até casa — disse eu, incli‑nada para ele.

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O tenente olhou ‑me fixamente, já um pouco mais calmo. — Estão a ver como a febre tem pouco significado — disse

ele com um ligeiro sorriso. — Agora estou muito quente e depois começo a sonhar.

— Não lhe mandam um médico? — De Alepo? Mas não os posso avisar. Além disso, ofereci‑

‑me como voluntário. Tenho de acabar os mapas. Tem de ser! — Quando estiver curado.De súbito, ele virou ‑se para o lado, afastou um pouco o

cobertor e aproximou ‑se de mim. — Não me vou curar — segredou —, tenho a malária tro‑

pical, e bebi tanto que não vou aguentar. Não aguento as inje‑ções de quinino. E não vou aguentar… esta chuva. — Olhou‑‑me aterrorizado. — Foi por isso que pedi que me transferissem para aqui — acrescentou. Voltei a tapar ‑lhe o peito com o cobertor.

— Que idade tens? — perguntei ‑lhe. — Vinte e três. — Com essa idade aguenta ‑se tudo. Vamos mandar que te

levem para Alepo. Ainda hoje o nosso motorista vai para lá. Como se chama o teu comandante?

Não respondeu. O seu corpo distendeu ‑se, agora que as tremuras e o frio tinham desaparecido. Parecia dormir, quase sem respirar, como dormem as crianças.

Tobby estava de pé ao meu lado. — Agora temos de ir — disse baixinho. À porta estava o

sargento francês. — Agora temos de ir — repetiu.Lá fora a chuva tinha parado. Um céu noturno suave, tolda‑

do de neblina, estendia ‑se sobre a planície. Montámos os ca‑valos e os soldados seguiram ‑nos. A passo, descemos a encos‑ta pedregosa.

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Nessa mesma noite, Tobby foi com Hussein até Alepo e informou a guarnição. Não era possível chegar de carro à barraca do tenente, este foi transportado por enfermeiros até à estrada e passou a noite que se seguiu agonizante. Deram ‑lhe injeções de quinino, mas o coração dele não resistiu. Tobby, Kade e eu ainda o quisemos visitar, fizeram ‑nos aguardar muito tempo na sala de espera do hospital militar. Durante metade da noite, os médicos não sabiam se o jovem de vinte e três anos ainda estava agonizante, ou se já estava morto.