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Patriarcado, civilização e as origens do gênero

John Zerzan

Civilização, fundamentalmente, é a história dadominação da natureza e da mulher. Patriarcado sig-nifica o domínio sobre a mulher e a natureza. Seriamestas duas instituições, na sua base, sinônimas?

A filosofia tem ignorado, principalmente, avasta esfera do sofrimento que se desdobrou desdeo início da divisão de trabalho e ao longo de suatrajetória. Hélène Cixous chama a história da filo-sofia de "uma corrente de pais”. As mulheres nãosó estão ausentes, como também sofrendo seusefeitos. Camille Paglia, teórica literária antifemi-nista, meditando sobre a civilização e a mulher:

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“Quando eu vejo um guindastegigante se movendo num caminhão,eu paro em respeito e admiração,como alguém que estivesse numaprocissão religiosa. Que poder deconcepção! Que grandiosidade! Esteguindaste nos remete ao Egito Anti-go, onde a arquitetura monumentalfoi primeiramente imaginada e exe-cutada. Se a civilização tivesse sidodeixada em mãos femininas, estaría-mos ainda vivendo em cabanas depalha” (PAGLIA, 1990, p.38).

As "glórias" da civilização e o desinteresseda mulher por elas. Para alguns de nós, as "ca-banas de palha" representam não penetrar no ca-minho errado, o da opressão e da destrutivida-de... em função da pulsão de morte global, ad-vinda da civilização tecnológica, se apenas vi-vêssemos ainda em cabanas de palha. A Mulhere a natureza são universalmente desvalorizadaspelo paradigma dominante, quem não percebecomo isto foi forjado? Ursula Le Guin corrige erejeita o argumento de Paglia:

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O homem civilizado diz: Eu souauto-suficiente, eu sou o Mestre,todo o resto é o outro – o exterior,abaixo, inferior, subserviente. Eupossuo, eu uso, eu exploro, eu apro-prio, eu controlo. O que eu faço é oque importa. O que eu quero é o queé importante. Eu sou o que eu sou eo resto é mulher ou selvagem, paraser usado como eu achar convenien-te (LE GRIN, 1989, p.45).

Certamente, muitos crêem que as primeirascivilizações existentes foram matriarcais. Porém,nem antropólogos, nem arqueólogos, incluindoas feministas, encontraram evidencias de tais so-ciedades. "A busca por um igualitarismo genuí-no, de cunho matriarcal, tem se mostrado infrutí-fera", conclui Sherry Ortner (1996, p.24).

Todavia, houve um longo período de tempono qual a mulher não era, de modo geral, tão su-bordinada ao homem, antes que a cultura mas-culinamente definida se fixasse, ou torna-se uni-versal. Desde da década de 1970, antropólogascomo Adrienne Zihlman e Nancy Tanner

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(1978), Elizabeth Fisher (1979) e Frances Dahl-berg (1981) têm redirecionado o foco para alémdos estereótipos sobre a origem do mundo pré-histórico, do "Homem Caçador" para a "MulherColetora". A chave aqui são os dados, os quais,na média geral, revelam que nas sociedades pré-agricolas, os bandos obtinham cerca de 80% dasua subsistência através da coleta e 20% atravésda caça. É possível exagerar a distinção entrecaça/coleta e observar estes grupos, nos quais,em grau significativo, as mulheres caçavam e oshomens coletavam. Mas, a autonomia da mulhernas sociedades coletoras tem raízes no fato dosrecursos materiais para subsistência estaremigualmente disponíveis para as mulheres e oshomens em suas respectivas esferas de ativida-de. No contexto do ethos igualitário generaliza-do das sociedades caçadoras-coletoras. Antropó-logos como Eleanor Leacock (1978) e MinaCaulfield (1988) descrevem uma relação iguali-tária generalizada entre homens e mulheres.1

1 Leacock está entre as mais insistentes, reivindicando que ondequer que o domínio masculino exista em sociedades sobreviventesdeste tipo é devido aos efeitos da dominação colonial.

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Neste cenário, onde a pessoa que coleta tambémdistribui e onde a mulher é responsável peloprovimento de 80 % da subsistência, é ela majo-ritariamente quem determina os movimentos e oslocais de acampamento das sociedades de bando.Similarmente, as evidências indicam que ambos,homens e mulheres, construíram as ferramentasde pedras usadas por povos pré-agrícolas.

Entre os grupos matrilocais como Pueblo, Iro-quis, Crow e outros grupos indígenas america-nos, a mulher podia terminar uma relação conju-gal a qualquer hora. Em toda parte, homens emulheres nos bandos se moviam livre e pacifica-mente de um bando a outro, assim como de umarelação a outra. De acordo com Rosalind Miles,os homens não apenas não comandavam comonão exploravam o trabalho da mulher: „"elesexerciam pouco ou nenhum controle sobre o cor-po da mulher ou das crianças, não havia fetichessobre a virgindade ou castidade, e não havia exi-gência de exclusividade sexual da mulher"” (MI-LES, 1986, p.16). Zubeeda Banu Quraishy nos

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fornece um exemplo africano: "As associações degênero dos Mbuti são caracterizadas pela harmo-nia e cooperação." (QURAISHY, 2000, p.196).

Embora se possa questionar: mas a situaçãoera realmente assim tão cor de rosa? Dada a apa-rente desvalorização universal da mulher, que va-ria nas formas, mas não na essência, a questão dequando e como isto se inverteu, persiste. Existeuma divisão fundamental da existência social deacordo com o gênero, e uma óbvia hierarquiainerente á essa divisão. Para a filósofa Jane Flax(1983), o mais profundo dualismo estabelecido,incluindo sujeito/objeto, mente/corpo é um meroreflexo da divisão estabelecida entre os gêneros.

Gênero não é o mesmo que a distinção natu-ral/fisiológica entre os sexos. Gênero é uma cate-gorização cultural, uma classificação baseada nadivisão sexual do trabalho, apresentada como aúnica forma cultural que importa. Se o gênero in-troduz e legitima a desigualdade e a dominação,o que seria mais importante a ser colocado emquestão? Tanto em termos de nossas origens,

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quanto para o nosso futuro – apresenta-se a ques-tão da sociedade humana sem gênero. Sabemosque a divisão sexual do trabalho conduz à do-mesticação e à civilização, que, por sua vez pro-duziu o sistema globalizado de dominação atual.Também parece que a divisão sexual do trabalho,artificialmente imposta, foi a primeira forma e aresponsável pela formação daquilo que hoje en-tendemos como gênero.

Compartilhar alimentos tem sido a marca re-conhecida do estilo de vida dos bandos coletores,da mesma forma a divisão das responsabilidadesdo cuidado da prole, o que ainda pode ser vistoentre as poucas sociedades remanescentes de ca-çadores-coletores, em contraste com a vida fami-liar isolada e privatizada na civilização. O queentendemos como família não é uma instituiçãoeterna, nem a exclusividade da maternidade fe-minina foi inevitável para a evolução humana. Asociedade está integrada por meio da divisão detrabalho, a família está integrada com fundamen-to na divisão sexual de trabalho. A necessidade

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de integração indica uma tensão, uma rupturaque demanda uma base de coesão ou solidarieda-de. Neste sentido, Testart acerta: “A hierarquia éinerente ao parentesco" (TESTART, 1989, p.5).E, escoradas na divisão do trabalho, as relaçõesde parentesco tornam-se relações de produção."Gênero é inerente à própria natureza da relaçãode parentesco", como Cucchiari destaca, "a qualnão poderia existir sem ele" (CUCCHIARI,1984, p.36).2 É nesta seara que as raízes da domi-nação da natureza, bem como a dominação damulher, devem ser exploradas.

Quando os grupos coletores das sociedades debandos deram lugar a funções especializadas, asestruturas de parentesco formaram a infraestrutu-ra das relações que se desenvolveram na direçãoda iniquidade e do poder diferenciado. As mu-lheres foram imobilizadas quando se privatizouo cuidado com as crianças – modelo que foiaprofundado posteriormente, para além das exi-gências dos papéis de gênero. Esta separação

2 Este ensaio é de grande importância para a temática apresentada.

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baseada no gênero e divisão de trabalho começoua ocorrer na transição da Era Paleolítica Médiapara a Superior. O gênero e o sistema de paren-tesco são construtos culturais definidos acima econtra os sujeitos biológicos envolvidos, "acimade tudo, trata-se de uma organização simbólicado comportamento", de acordo com Juliet Mit-chell (MITCHELL, 1984, p.83). Pode ser maisrevelador olhar para a própria cultura simbólica,como requer a sociedade gendrada, pela "neces-sidade de mediação simbólica num cosmo seve-ramente dicotomizado" (Cucchiari, op. cit, p.62).A questão de "o que veio primeiro?" é introduzi-da e torna-se difícil de resolver. Está claro, con-tudo, que não há evidências de atividade simbóli-ca (pinturas rupestres, por exemplo) até que osistema de gêneros baseado na divisão sexual detrabalho estivesse aparentemente em curso.

Por ocasião do Paleolítico superior, uma épo-ca imediatamente anterior à Revolução Neolíticada domesticação e civilização, a revolução de gê-nero teve lugar. Sinais masculinos e femininos

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estão presentes na primeira arte da caverna, acerca de 35.000 anos atrás. A consciência de gê-nero surge como um conjunto abrangente de dua-lidades, um espectro da sociedade dividida.

Na nova polarização, as atividade se tornam re-lativas ao gênero, ou definidas por gênero. O papeldo caçador, por exemplo, se desenvolve associadoaos machos, aos atributos requisitados para o gêne-ro masculino como as características desejadas.

Aquilo que era muito mais unitário ou genera-lizado, como os grupos de coleta ou responsabili-dades comunais para o cuidado com as crianças,agora compõe esferas separadas nas quais sur-gem o ciúme e a possessividade sexual. Ao mes-mo tempo, o plano simbólico emerge como umaesfera separada, ou como uma realidade. Isto nosé revelado no conteúdo da arte, no ritual e emsua prática. É arriscado extrapolar do presentepara um passado remoto, mas as culturas sobre-viventes não-industriais podem ajudar a lançaralguma luz. Os Bimin-Kushusmin da PapuaNova Guiné, por exemplo, experienciam a divisão

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masculino-feminino como fundamental e defini-tiva. A "essência" masculina, chamada finiik, nãosignifica apenas poderoso, qualidades guerreiras,mas também qualidades para o ritual e o contro-le. A "essência" feminina, ou khaapkhabuurien, éselvagem, impulsiva, sensual, e ignorante do ri-tual. De forma similar, os Mansi da região noro-este da Sibéria colocam severas restrições ao en-volvimento das mulheres nas práticas rituais. Nassociedades de bando, não é exagero dizer que apresença ou ausência de ritual é crucial para definira questão da subordinação da mulher.3 Gayle Rubinconclui que "a derrota mundial e histórica da mu-lher ocorreu com a origem da cultura, sendo umpré-requisito da cultura" (RUBIN, 1979, p.176).

3 Steven Harrall, Human Families (Westview Press:Boulder CO, 1997), p. 89. "Exemplos de ligações entre oritual e a desigualdade entre as sociedades recolhedoras sãocomuns", de acordo com Stephan Shennan, "SocialInequality and the Transmission of Cultural Traditions inForager Societies," in Steele and Shennan, op.cit., p. 369.

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O crescimento simultâneo da cultura simbólicae da vida generificada não é uma coincidência.Cada uma delas envolve uma mudança básica noestilo de vida não-separada e não hierarquizada. Alógica do seu desenvolvimento e extensão é a res-posta às tensões e desigualdades que elas encar-nam; ambas estão dialeticamente interconectadasa divisão de trabalho original e artificial.

No rastro, relativamente falando, da modifica-ção de gênero/simbólico vem outro Grande Saltoa Frente: da agricultura e civilização. Isto é o "gol-pe contra a natureza" definitivo, que veio sobrepu-jar os primeiros dois milhões de anos anteriores,de inteligibilidade não-dominante e intimidadecom a natureza. Esta mudança foi decisiva para aconsolidação e a intensificação da divisão de tra-balho. Meillasoux nos lembra de suas origens:

Nada na natureza explica a divi-são sexual de trabalho, nem institui-ções como o casamento, conjugali-dade ou descendência /linhagem pa-terna. Tudo é imposto sobre a mu-lher através de coerção, todos são,

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portanto, fatos da civilização quedevem ser explicados, e não usadoscomo explicação. (MEILLASOUX,op.cit, p.20/21)

Kelkar e Nathan (2003), por exemplo, não en-contraram grande especialização de gênero entreos caçadores-coletores na Índia Ocidental, quan-do comparado aos agricultores da mesma região.A transição da coleta para a produção de alimen-to trouxe mudanças radicais similares nas socie-dades de todos os lugares. É instrutivo citar outroexemplo próximo do presente, o do povo Musko-gee, no Sudeste Americano, que acredita no valorintrínseco da floresta não-dominada, não-domes-ticada; enquanto os colonos civilizadores contrari-am esta postura e tentam substituir a tradição ma-trilinear dos Muskogee por relações patrilineares.

O locus da transformação do selvagem para ocultural é o domicílio, a mulher se torna progres-sivamente limitada a seus horizontes. A domesti-cação é fundamentada aqui (etimologicamente,do latim domus, ou cuidados da casa): trabalho

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árduo, menos robustidade do que na coleta, mui-to mais filhos e menor expectativa de vida que oshomens são características encontradas na vidada mulher agricultora.4 Aqui surge uma outra di-cotomia, a distinção entre trabalho e não-traba-lho, que, para muitos e para muitas gerações, não

4 A produção do milho, uma das contribuiçõesnorteamericanas para a domesticação, "provocou umtremendo efeito no trabalho e na saúde da mulher". O statusda mulher "foi definitivamente subordinado ao dos homensna maioria das sociedades horticultoras (como é agora ) noleste dos Estados Unidos, no período do primeiro contatocom o europeu. A referência é do trabalho de Karen OlsenBruhns e Karen E. Stothert, Women in Ancient America(University of Oklahoma Press: Norman, 1999), p. 88. Damesma forma, por exemplo, Gilda A. Morelli, "Growing UpFemale in a Farmer Community and a Forager Community,"in Mary Ellen Mabeck, Alison Galloway and AdrienneZihlman, eds., The Evolving Female (Princeton UniversityPress: Princeton, 1997): A jovem criança Efe (Zaire) sedesenvolve numa sociedade onde as relações entre homem emulher são muito mais igualitárias do que as relações entrehomem e mulher agricultores"(p. 219).Ver tambémCatherine Panter-Brick and Tessa M. Pollard, "Work andHormonal Variation in Subsistence and Industrial Contexts,"in C. Panter-Brick and C.M. Worthman, eds., Hormones,Health, and Behavior (Cambridge University Press:Cambridge, 1999), Em termos de quanto mais trabalho feito,comparado com o homem agricultor, pela mulher agricultoraem relação aqueles que caçam e coletam.

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existe. A partir da produção dos gêneros e da suaconstante extensão, surgirão as fundações de nos-sa cultura e mentalidade. Confinada, senão total-mente pacificada, a mulher é definida como pas-siva, assim como a natureza, com valor intrínse-co para tornar-se algo produtivo, a espera da fer-tilização, de estimulação externa para se realizar.

As mulheres experienciaram o movimento daautonomia e equidade relativas nos pequenos gru-pos anárquicos e móveis, para um status controla-do em amplos e complexos povoados e governos.

Mitologia e religião, compensações de umasociedade dividida, testemunham a redução daposição da mulher. Na Grécia de Homero, a terrainculta (não-domesticada pela cultura de grãos)era considerada feminina, a morada de Calipso,de Circe, das sereias que tentaram Odisseus aabandonar a obra da civilização. Ambas, mulhere terra estão novamente sujeitas à dominação.Mas este imperialismo se trai e revela traços deconsciência culpada, como nos castigos daquelesassociados com a domesticação e a tecnologia,

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como as lendas de Prometeu e Sísifo. O projetoda agricultura foi sentido, em algumas áreas,mais que outras, como uma violação, daí a inci-dência de estupro na história de Deméter. Ao lon-go do tempo, com a escalada das perdas, a gran-de relação mãe-filha do mito grego Deméter-Perséfone, Clitemnestra-Ifigênia, Jocasta-Antigo-na, entre outros, desaparece.

No Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, a mu-lher nasce do corpo do homem. A Queda do Édenrepresenta a morte da vida coletora-caçadora, aexpulsão para a agricultura e o trabalho árduo. Aculpa recai sobre Eva, obviamente, que carrega oestigma da Queda.5 É bastante irônico que nestadomesticação estejam o medo e a recusa da natu-reza e da mulher, o mito do Jardim culpa a prin-cipal vítima, em realidade, da sua situação.

5 O povo Etoro da Papua Nova Guiné possui um mito similarno qual Nowali, conhecida pela suas corajosas caçadas, carregaa responsabilidade pela queda do povo Etoro de um estado debem-estar. Raymond C. Kelly, Constructing Inequality(University of Michigan Press: Ann Arbor, 1993), p. 524.

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A agricultura é uma vitória que conclui aquiloque começou com a formação e desenvolvimentodo sistema de gênero. Apesar da presença de figu-ras de deusas, devotadas à fertilidade, normalmen-te, a cultura neolítica estava muito mais preocupa-da com a virilidade. Da dimensão emocional destamasculinidade, como Cauvin (2000) percebeu, adomesticação animal deve ter sido, principalmen-te, uma iniciativa masculina. O distanciamento eênfase no poder têm estado conosco desde então:expansão de fronteiras, por exemplo, a energiamasculina subjugando a natureza feminina, ven-cendo uma fronteira após outra.

Esta trajetória atingiu proporções esmagadorasaté percebemos que não somos mais capazes deevitar um engajamento com a tecnologia onipre-sente. Porém, o patriarcado também está em todolugar e, mais uma vez, presume-se a inferioridadeda natureza. Felizmente "muitas feministas",como coloca Carol Stabile, defendem "uma rejei-ção à tecnologia é fundamentalmente idêntica arejeição ao patriarcado" (STABILE, 1994, p.5).

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Há outras feministas que reivindicam umaparticipação no empreendimento tecnológico,que postulam um cyborg virtual como uma "es-capada do corpo" e da história gendrada de sub-jugação. Mas esse vôo é ilusório, um esqueci-mento de toda trajetória e da lógica das institui-ções opressivas que compõem o patriarcado. Umfuturo high-tech des-incorporado pode apenas sermais uma dose do mesmo trajeto destrutivo.

Freud considerava a condição/posição do sujeito,enquanto sujeito gendrado, como elemento fundaci-onal, tanto culturalmente, quanto psicologicamente.Suas teorias assumem que haja uma subjetividade degênero já presente, isso nos coloca inúmeros questi-onamentos. Várias considerações permanecem semsolução, tais como o uso do gênero como expressãode relações de poder e o fato de que chegamos a estemundo como criaturas bissexuais.

Carla Freeman (2001) coloca uma questãopertinente no seu ensaio intitulado Is Local: Glo-bal as Feminine: Masculine? Rethinking the Gen-der of Globalization. A crise geral da modernidade

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tem suas raízes na imposição do gênero. Separa-ção e iniquidade começam aqui, no mesmo pe-ríodo em que emerge uma cultura simbólicaque se torna definitiva, do mesmo modo que adomesticação e a civilização: patriarcal. A hie-rarquia de gênero não pode mais ser corrigida,nem o sistema de classes ou na globalização.Sem uma profunda e radical libertação das mu-lheres, estaremos consignados ao logro mortale à mutilação agora dissiminada, como o assus-tador dobrar de um sino que alcança a todos oslugares. A totalidade da existência não-generi-ficada, como na origem do mundo, pode ser aprescrição para nossa redenção.

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