revistalampejo.orgrevistalampejo.org/edicoes/edicao-17-vol_9_n_1/Lampejo...EDITORIAL É em meio à...

777
artigos ensaios traduções ensaios fotográficos + dossiê geni revista eletrônica de filosofia e cultura issn 2238-5274 | vol. 9 - nº.1 | 08/2020

Transcript of revistalampejo.orgrevistalampejo.org/edicoes/edicao-17-vol_9_n_1/Lampejo...EDITORIAL É em meio à...

  • artigos

    ensaios

    traduções

    ensaios fotográficos

    +

    dossiê geni

    revista eletrônica de filosofia e culturaissn 2238-5274 | vol. 9 - nº.1 | 08/2020

  • In Memoriam de José Valdo Barros

    Dedicamos a todas as vítimas diretas e indiretas da covid-19

  • EDITORIAL

    É em meio à instabilidade, às ameaças, aos sucessivos atentados contra a vida, que a Lampejo

    publica a sua edição vol.9 n.1, sua décima sétima publicação, que é lançada dentro do caos que cada

    vez mais nos permeia. Estamos imersos em uma complexidade de acontecimentos que torna mais

    difícil ainda um habitar. O que hoje vivemos já vem de muito tempo, é uma longa história, que parece

    estar cada vez mais se aprofundando em seus momentos agônicos, em sua tentativa de

    desestabilizar forças. Contudo, tentamos no manter minimamente presentes para o que está

    acontecendo.

    A presente edição consiste em 29 trabalhos, dentre artigos, ensaios, traduções e um ensaio

    fotográfico. Além da edição corrente, ainda contamos com um longo dossiê do GENi – Grupo de

    Estudos de Nietzsche da UECE – Universidade Estadual do Ceará, que teve o seu segundo encontro

    anual com sede na mesma universidade no final do ano passado (2019). Os trabalhos seguem a já

    conhecida vastidão de assuntos que permeiam o imaginário da revista, e assim pensamos ser uma

    maneira interessante de propagá-los.

    É também com pesar que a presente edição é dedicada a José Valdo Barros Silva Júnior,

    professor, amigo de muitas das pessoas envolvidas na produção desta revista, um pensador, que nos

    deixou nos últimos meses e que nos faz falta. Valdo fez parte da última edição da Lampejo com seu

    artigo Escatologia e drama barroco em Walter Benjamin e Ariano Suassuna, mas não só, Valdo

    contribuiu com a produção de tantos outros acontecimentos desta revista independente fundada

    por outros que são, também como ele, habitantes das periferias do mundo e que almejam pensar

    outros modos de vida, que se inquietam, que se interessam pela potência do pensar e pela expansão

    das experiências. A presente edição ainda conta com um ensaio seu, escrito sob o pseudônimo

    Joaquim Qualquer dos Prazeres, publicado in memoriam. Valdo permeia vários textos desta revista

    pelos tantos momentos que se propôs a fazer algo que hoje é cada vez mais difícil: ouvir o outro.

    Conseguir levar o outro a sério não só tentando escutá-lo, mas também sempre ousando pensar

  • junto. Tantos textos de alunos, professores e outros sujeitos estranhos que habitam este mundo os

    quais Valdo perpassa. Valdo continuará sempre presente.

    Esta é uma revista produzida por professores e pesquisadores cada vez mais precarizados,

    pelos modos de vida que resolvemos abraçar, pelos ataques que sucessivamente sofremos mas que

    não nos afastam da nossa empreitada. Assim ressaltamos a importância das atividades dos grupos

    e coletivos independentes, da sua microfísica dos movimentos, dos pequenos passos que sabemos

    não ser tão pequenos assim. O que nos mostra de fato é que estes acontecimentos ainda

    resguardam uma força que talvez não conheçamos tão bem. Uma força que é difícil mesmo de

    conhecer pela sua complexidade e por isso mesmo elas não se contentam com respostas fáceis.

    Que lampejos continuem acontecendo.

    Boa leitura a todas e todos!

    Os editores

  • ÍNDICEARTIGOS

    [p.10] ÚLTIMA QUIMERA: AUGUSTO DOS ANJOSE AUTOFAGIA NACIONALPedro Henrique Magalhães Queiroz

    [p.24] MODERNIDADES ALTERNATIVAS. DA CRISE DO PÓS-MODERNISMO ATÉ À TRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUTRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUSSELBálint Urbán

    [p.47] DA VOZ À PALAVRA... E DE VOLTA À VOZ: RETÓRICA E SIMULACRO NA POLÍTICA MODERNA Alan Duarte

    [p.77] NECROPOLÍTICA, FIM DO HUMANISMO E A CRISE DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA Rogério Luis da Rocha SeixasRogério Luis da Rocha Seixas

    [p.89] A ESCOLA, A DISCIPLINA E AS NOVAS TECNOLOGIAS: APROXIMAÇÕES FOUCAULTIANAS Deyvison Rodrigues Lima Sanna Chris Moura Nunes

    [p.115] ARTE PÓS-MODERNA: ENTRE APROXIMAÇÕES E RUPTURAS Tiago Nunes Soares Tiago Nunes Soares

    [p.127] (SER)TÃO NORDESTINO NA SALA DE AULA: UM NOVO DESENHO SITUADO DE ENSINO Adriana dos Santos Pereira José Roberto Alves Barbosa

    [p.142] A CARTOGRAFIA COMO MÉTODO DE PESQUISA FILOSÓFICA. O FILÓSOFO-CARTÓGRAFO MAPEANDO TERRITÓRIOS, ACOMMAPEANDO TERRITÓRIOS, ACOMPANHANDO PROCESSOS E CRIANDO PROCEDIMENTOS DE PESQUISA Francisca de Jesus Cardoso Moura Luizir de Oliveira

    [p.163] CÉREBRO, CORPO E INCONSCIENTE NA FILOSOFIA DE BERGSON YYago Antonio de Oliveira Morais

    [p.180] NIETZSCHE CONTRA WAGNER, CONTRA OS FILÓLOGOS E CONTRA ELE MESMO: CRÍTICAS E AUTOCRÍTICAS A O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA Luís Francisco Fianco Dias

    [p.195] O DUALISMO LIBERAL VERSUS REPUBLICANO SOBRE A QUESTÃO DA LIBERDADE: UMA ANÁLISE BASEADA NAS TEORIAS BASEADA NAS TEORIAS LOCKEANA E ROUSSEAUNIANA Ana Beatriz Borges R. Duarte

    [p.212] ZOOPOÉTICA E ZOONTOLOGIA. A QUESTÃO DO ANIMAL ENTRE A LITERATURA E A FILOSOFIAMateus Uchôa

    [p.222] O CONCEITO DE TECNOLOGIA NO PENSAMENTO DE HERBERT MARCUSE: ESTUDO INTRODUTÓRIO ESTUDO INTRODUTÓRIO Renê Ivo da Silva Lima

    [p.235] VIRTUDE MORAL, SOCIABILIDADE E PODER NO GÓTICO DO SÉCULO XVIII: RADCLIFFE E LEWIS Mariana Dias Pinheiro Santos

    [p.251] ENTRE A PAIXÃO E O AMOR FATI: ANÁLISE DO RETRATO COM FRIEDRICH NIETZSCHE E LLOU ANDREAS-SALOMÉ Francisco Xavier de Oliveira Neto

    [p.259] A MAGIA NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO: INTERLÚDIOS ENTRE ETNOLOGIA E TEORIA CRÍTICA José Ygor de Almeida Barros

    [p.266] A JUSTIÇA POPULAR E OS ATOS JURÍDICOS: O TRIBUNAL E SEUS REGIMES DE VERDADE O TRIBUNAL E SEUS REGIMES DE VERDADE JURÍDICA Raquel Célia Silva de Vasconcelos

    [p.273] A AÇÃO DA LEI E DO LEGISLADOR EM DETRIMENTO DA LIBERDADE E DO PODER SOBERANO DENTRO DA SOCIEDADE CONTRATUAL EM JEAN JACQUES ROUSSEAUCarlos Frederyck Machado Cavalcante Carlos Frederyck Machado Cavalcante

    [p.289] CONSIDERAÇÕES SOBRE MORTE E SILÊNCIO EM A RETORNADA DE LAURA EREBER Douglas Santana Ariston Sacramento

    ENSAIOS

    [p.303] JUROS E CULPA: A PAIXÃO NO CORPO DA COISA Joaquim Qualquer dos Prazeres Joaquim Qualquer dos Prazeres (Valdo Barros) In Memoriam

    [p.307] CRÍTICA DA MÁQUINA MÍNIMA Airton Uchôa Neto

    [p.322] TRÊS ESTRATOS Alex da Rosa

    [p.329] A CRISE NO SISTEMA EDUCACIONAL PÚBLICO BRASILEIRO: RELPÚBLICO BRASILEIRO: RELATO DE EXPERIÊNCIAMarcelo Queiroz Oliveira Júnior

    [p.333] MONTECCHIOS E CAPULETOS DIALÉTICA NEGATIVA E FILOSOFIA DA DIFERENÇAThiago Mota

    ENSAIO FOTOGRÁFICO

    [p.342] GEOPERCEPÇÕES DO OLHAR: O SER E O ESESPAÇO EM INTERFUSÃO Tatiana Prevedello

  • DOSSIÊ

    TRADUÇÕES

    [p. 355] O SÉCULO E O PERDÃO Por Jacques Derrida Tradução: Robson Breno Dourado de Araújo

    [p. 389] PSIQUIATRIA E LOUCURA Por Leopoldo María Panero TTradução: Cássio Robson Alves da Silva

    [p. 393] A REFORMA DA IMPRENSA Por Albert Camus Tradução: Leandson de Vasconcelos Sampaio

    [p. 397] NOTAS SOBRE A “QUESTÃO DOS IMIGRANTES”Por Guy DebordTTradução: Inácio José de Araújo da Costa

    ARTIGOS

    LINGUAGEM, CONHECIMENTO E VERDADE

    [p. 414] A INTRANSPONIBILIDADE DA VERDADE E A NECESSIDADE DA MENTIRA EM UMA PERSPECTIVA NIETZSCHEANA Roberto Barros

    [p. 434] [p. 434] A TRAMA FICCIONAL: PARA ALÉM DA “MENTIRA SAGRADA” Miguel Angel de Barrenechea

    [p. 449] UMA TEORIA EXTRAMORAL DA VERDADE? Evaldo Sampaio

    [p. 468] DA VERDADE AO PERSPECTIVISMO: UMA ABORDAGEM NIETZSCHIANA APLICADA À FIFILOSOFIA DA CIÊNCIA Bruno Camilo de Oliveira

    [p. 486] HISTORICISMO MODERNO E FILOSOFIA DA HISTÓRIA: INTERPRETAÇÕES DE JOVEM NIETZSCHE Nara Lívia Timbó de Oliveira

    [p. 495] NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: O AATOMISMO LÓGICO E A IMPOSSIBILIDADE DE UNIVERSALIZAÇÃO Leandro Maciel de Lira; Mayara Rocha de Sousa

    [p. 512] O PROBLEMA DA VERDADE NO JOVEM NIETZSCHE: PERCEPÇÃO E CORRESPONDÊNCIA NA CRÍTICA DE MAUDEMARIE CLARK Edilson Miranda Junior

    AARTE, VERDADE E LITERATURA

    [p. 524] A FILOSOFIA RENITENTE AO DESTINO NOS PENSAMENTOS DE GIACOMO LEOPARDI: CONTRAPONTO À INTERPRETAÇÃO NIETZSCHIANA SOBRE O PESSIMISMO LEOPARDIANO Taís da Silva Brasil

    [p. 535] NIETZSCHE E A DANÇA: O CORPO COMO OBRA DE AOBRA DE ARTE Raquel Rodrigues Rocha

    [p. 547] O GÊNIO METAFÍSICO NO PENSAMENTO DO JOVEM NIETZSCHE David Rogério Costa de Lima

    [p. 568] SOBRE UM POSSÍVEL DIÁLOGO ENTRE LIMA BARRETO E NIETZSCHE André Mesquita Penna Firme

    [p. 585] [p. 585] SÓCRATES E NIETZSCHE: ARTE, VERDADE E DÉCADENCE Jéssyca Aragão de Freitas

    MORALIDADE, EDUCAÇÃO E FILOSOFIA DA CULTURA

    [p. 599] A FORMAÇÃO DA UNILATERALIDADE POLITICO-MORAL DA PEQUENA POLÍTICA DO OCIDENTE EM NIETZSCHE Cristiane Maria MarinhoCristiane Maria Marinho

    [p. 613] AS IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO DO JOVEM NIETZSCHE PARA A EDUCAÇÃO Lucas Josef Lima Brun; Giovanni Perruci RibeiroMárcio Acselrad; Lucas Caminha Cândido Vieira

    [p. 624] NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO E ARTISTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA QUE TRANSCENDA TRANSCENDA VALORES Alysson da Silva Lopes; Kallyandra dos Santos Nunes

    [p. 634] O GRANDE ACONTECIMENTO: A MORTE DO DEUS-MORAL Hedy Carlos Santos de Pina

    [p. 642] O RESSENTIMENTO ENQUANTO DOENÇA EM NIETZSCHE Igor Alysson Lemos PintoIgor Alysson Lemos Pinto

    [p. 652] O SENTIDO DA REINTEGRAÇÃO DO HOMEM NA NATUREZA EM NIETZSCHE Helly Lucas Barros Crispim

    [p. 671] SOFRIMENTO HUMANO E A “PROPOSTA TERAPÊUTICA” NIETZSCHIANA Danielly Maia de Queiroz

    NIETZSCHE E A FINIETZSCHE E A FILOSOFIA FRANCESA CONTEMPORÂNEA

    [p. 685] ARTE-EXPRESSÃO: QUANDO SE ESTRANHA A VERDADE Gisele Gallicchio

    [p. 705] “FIM DO JUÍZO”, SINTOMATOLOGIA E 7EXISTÊNCIA EM DELEUZE Leandro Lélis MatosLeandro Lélis Matos

    [p. 722] HOMEM, ARTE E VERDADE: APROXIMAÇÕES(DES)NECESSÁRIAS ENTRE NIETZSCHE E SARTREPaulo Willame Araújo de Lima

    [p. 750] NOTAS SOBRE A ANÁLISE FOUCAULTIANADA PARRESIA E SUA POTENCIALIDADE NA CRIAÇÃODE SUJEITOS ÉTICOS NA ATUALIDADEAntônio Alex Pereira de SousaAntônio Alex Pereira de Sousa

    [p. 767] O DESAMPARO HUMANO E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE E SARTRE Renan Soares Esteves

    Revista Lampejo ISSN 2238-5274

    Editores Gustavo CostaL

  • Revista Lampejo ISSN 2238-5274

    Editores Gustavo CostaLeonel Olimpio Luana Diogo Thiago MotaWWilliam Mendes

    Comissão editorial Átila MonteiroDaniel CarvalhoDavid BarrosoFabien LinsGustavo FerreiraHenrique AzevedoHenrique AzevedoJuliana Braga GuedesPaulo Marcelo BritoRogério MoreiraRuy de Carvalho

    Conselho editorial Prof. Dr. Ernani ChavesPProf. Dr. Ivan Maia de MelloProf. Dr. José Maria ArrudaProf. Dr. Luiz Felipe SahdProf. Dr. Luiz OrlandiProf. Dr. Miguel Angel de BarrenecheaProf. Dr. José Olímpio PimentaProf. Dr. Peter Pál PelbartPProf. Dr. Roberto MachadoProf. Dra. Rosa Maria DiasProf. Dr. Sylvio Gadelha

    Diagramação e editoraçãoLuana DiogoLeonel Olimpio

    Capa - Linguagem visualJuliana De BoniJuliana De Boni

  • ARTIGOS

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 10

    ÚLTIMA QUIMERA:

    AUGUSTO DOS ANJOS E AUTOFAGIA NACIONAL

    Pedro Henrique Magalhães Queiroz

    RESUMO: O presente artigo foi escrito em tom de entrevista e estruturado em quinze tópicos. Pretende-se, com ele, não mais que apresentar alguns elementos de uma possível reflexão entre a lírica do poeta paraibano Augusto dos Anjos e a configuração atual do capitalismo. Largos são os arcos conceituais, apenas pontes possíveis para apontamentos vindouros. Buscou-se o máximo possível o tom prosaico sem sobrecarregar de citações o texto. PALAVRAS-CHAVE: Augusto dos Anjos; Última Quimera; Autofagia Nacional. ABSTRACT: This article was written in an interview tone and structured in fifteen topics. It is intended, with him, no more than to present some elements of a possible reflection between the lyric of the Paraíba poet Augusto dos Anjos and the current configuration of capitalism. Wide are the conceptual arches, only possible bridges for future notes. It was sought either as much as possible or prosaic without overloading citations in the text. KEYWORDS: Augusto dos Anjos; Last Chimera; National Autophagy.

    Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected].

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 11

    Tome, Dr., esta tesoura, e... corte

    Minha singularíssima pessoa.

    Augusto dos Anjos

    A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-se objeto de sua

    própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível vivenciar sua própria aniquilação como

    fenômeno estético de primeira ordem.

    Walter Benjamin

    Por que última quimera?

    Última, uma modulação da vontade de fim. Heidegger falava de um ser para a morte.

    Benjamin entrevia na caveira barroca uma ambígua oportunidade: se Deus (o pessoal) está morto,

    então... cabe elaborar ludicamente o luto. Configurando com a segunda versão, alemã, do ensaio

    sobre a reprodutibilidade técnica: cabe a passagem do sacrifício da primeira natureza a um jogo de

    segunda, porque, na segunda, repôs-se, em um patamar quantitativamente qualitativo, o sacrifício

    da primeira nas condições da segunda. O trabalho como sacrifício, como tripalium, como “comerás

    com o suor do teu rosto”, encontrando uma possibilidade lúdica de jogo com o desenvolvimento das

    forças produtivas: o reino da liberdade, enfim, travado e entrevado pelo ritual de sacrifício mercantil;

    nem tão ritual, porque a instrumentalização entre meios e fins há muito quebrou a lâmina, a astúcia

    da razão há muito opera no inconsciente. Um ritual de sacrifício impessoal – objetivado e

    autonomizado –, impagável e sem descanso, sem trégua e sem sono/sonho: da guerra finita à

    infinita; da dívida finita à infinita; do eu finito ao eu infinito, sem entraves, narcísico.

    Última, várias figuras do fim, de uma morte que já ocorreu e, no entanto, não fizemos o

    devido enterro, o devido luto prático e crítico – e, assim, o Erisícton de Augusto dos Anjos come seus

    olhos crus no “cemitério dinâmico” do capitalismo, essa doença crônica –, e o cadáver, que já não se

    esconde no porão, medo, exala seu cheiro sob a forma de figuras, de tipos a um flâneur no tempo do

    fim, sob o manto do Cristo Redentor, na cidade pós-maravilhosa; tipos como: a senhora K., por volta

    dos quarenta anos de idade, negra, vinda do interior de Minas, chamando o primeiro que passa de

    filho na Praça Quinze, sem fazer nexo sua palavra com os fatos; a jovem N., negra, por volta dos

    vinte e cinco anos, na parada de ônibus do Amarelinho da Glória, assustada e, assim, assustando,

    fazendo pessoas se afastarem dela, enquanto um olha para o outro querendo saber quem mais está

    desempregado, como se se tratasse de uma doença contagiosa. Ambas moradoras de rua, ambas

    padeciam do esquecimento e a fantasia parecia ser a única maneira de simbolizar o trauma do real

    abandono, nosso realismo fantástico encontrado nas ruas: quimera, quiprocó e quimera. Várias

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 12

    figuras do fim: último ciclo de modernização nacional, o petista; última etapa da pré-história

    humana. A nossa pretendida dialética centro-periferia.

    Dialética centro-periferia?

    Marx diz, n'O capital, que a imagem do país mais desenvolvido é a imagem futura do menos

    desenvolvido. Noutras palavras, o centro não é mais que a imagem futura da periferia. De modo

    geral, o que no século XIX se apresentou como autocrítica da ilustração europeia, sobretudo com os

    três divisores de água, Marx, Nietzsche, Freud, consistia em mostrar um outro lado do pretenso

    universalismo esclarecido, no caso, a exploração do trabalho (desigualdade e desequivalência) e a

    alienação mercantil (estranhamento e fetiche); o inconsciente pulsional; a afirmação ou negação da

    vida como fator originário das verdades e valores morais. Havia um fundo falso que era preciso dar

    conta.

    No interior da “tradição crítica” brasileira – tríade Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Celso

    Furtado, apresentada por Antônio Cândido no segundo prefácio de Raízes do Brasil –, retomando

    particularmente o Roberto Schwarz de Ao vencedor as batatas, no seu ensaio As ideias fora do lugar,

    tratava-se de, a respeito do descompasso entre centro e periferia, ou entre metrópole e colônia,

    situar criticamente o enunciado inicial: o país menos desenvolvido é a verdade do país mais

    desenvolvido; a periferia, a colônia carrega consigo a verdade, negativa, da metrópole, do centro.

    Ou, ainda, o lugar de relevância da vida nacional, seu lugar dentro de uma pretensa história

    universal, é sua contribuição para a crítica, como momento da verdade, do discurso centrista,

    europeu, esclarecido, universalista. Autocrítica e crítica, em resumo.

    Talvez, neste momento – século XXI –, trate-se de revertermos as reversões desta dialética,

    seja na direção centro-centro, centro-periferia, periferia-centro: a imagem do país menos

    desenvolvido é a imagem futura do mais desenvolvido. E, assim, assinalamos a marca do “nosso

    tempo” (Drummond): a regressão; o progresso experimentado como refluxo, em que a imagem

    mais arcaica das relações burguesas, a acumulação primitiva e o despotismo (sob a figura do estado

    de exceção, de sítio ou de emergência), se apresenta como a verdade, crítica, de nossa experiência

    mais contemporânea. Nem centro, nem periferia, diriam o Subcomandante Marcos e os zapatistas.

    Como situar a noção de autofagia nessa dialética centro-periferia?

    Há um certo consenso em assinalar a catástrofe (René Girard), a urgência ou emergência

    (Paulo Arantes), como paradigma do tempo presente, um presente perpétuo, como diria Guy

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 13

    Debord nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo: um presente perpétuo sob o signo da

    catástrofe e da emergência/urgência.

    Segundo Benjamin, no Prólogo epistemológico-crítico do Drama barroco alemão, o extremo –

    teoria também da melancolia – é o momento da verdade e, assim, podemos dizer que torna-se

    também o trivial, na medida em que esse extremo, a exceção, se apresenta como regra da história

    humana. Agamben dá sequência no argumento ao dizer que, em Auschwitz, o campo ainda era uma

    experiência fora do enquadramento e, assim, isolável num topos, num lugar; essa exceção tornar-

    se-ia regra tendencial até esse mesmo campo tornar-se, hoje, o paradigma dominante e

    generalizado da política.

    São diagnósticos da extremidade do mal. Mas existe um realmente determinante, o da

    contradição, do descompasso entre forma e conteúdo no interior da produção capitalista, que Marx

    assinala como contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de

    produção: a tendência deste desenvolvimento de reduzir a um mínimo a substância daquela relação,

    o tempo de trabalho. Essa é a contradição interna, a autocontradição, por que não a autofagia –

    trabalho morto devorando o trabalho vivo sem nos libertar –, inerente ao capital.

    Essa contradição interna, por sua vez, precisa de uma compensação externa; assim, tal

    compensação vem a aparecer como (i) aumento da produtividade – mais valia relativa; (ii) redução

    dos salários – em determinados contextos; (iii) expansão colonial – acumulação prévia – e

    neocolonial – novos mercados, compensação da queda da taxa de lucro pelo aumento da massa de

    lucro; mas, sobretudo, (iv) a guerra e a especulação – crédito-dívida, capital financeiro, fictício – se

    apresentam como dois fatores determinantes dessa compensação, que pode receber, ironicamente,

    o nome de antropofagia.

    E onde fica Augusto dos Anjos nesse cenário?

    Seria preciso situar esses elementos não na passagem biopolítica de Auschwitz ao 11 de

    Setembro, mas econômico-política da crise de 1929 a 2008. Augusto dos Anjos e sua lírica, e não

    Machado de Assis e sua prosa, parece ser o fantasma capaz de figurar essa opereta. Existe um

    problema de forma, outro de conteúdo, e ambos articulados com realidade social e forma literária.

    Do ponto de vista da forma literária, a relação prosa e poesia, por que optar por uma e não outra; do

    ponto de vista da realidade social, centro e periferia, modernização e atraso. Mas isso é uma questão

    que merece uma atenção própria noutro momento.

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 14

    Em resumo, parece que a prosa do mundo aproximou-se mais da lírica de Augusto que do

    mundo da prosa de Machado. Se estamos lidando com a falência de uma forma-de-vida (Giorgio

    Agamben), se estamos lidando com a decomposição e autofagia capitalistas (Anselm Jappe), parece

    que aquilo que aparecia apenas como elemento cosmológico, cosmo-agonia segundo Lúcia Helena,

    ou mesmo subjetivo, Eu, aquela sua “estranha esgrima” (Charles Baudelaire) com a morte, o verme,

    a putrefação, as visões de sangue, o urubu, o corvo, enfim, parece ser a paisagem própria, a alegoria

    que melhor apresenta o “sentimento do mundo”, que melhor capta a “precária síntese” do “nosso

    tempo” (Drummond).

    Benjamin, por exemplo, que tomou As flores do mal de Baudelaire como alegoria do século

    XIX, nos ajuda, metodologicamente, a pensar que Augusto dos Anjos não é em si mesmo a melhor

    leitura de um tempo e de uma conformação social, mas apenas quando seus versos reagem com o

    momento em que o télos do progresso falha, sendo como o recalcado que retorna; assim, Benjamin

    diz, no seu ensaio As afinidades eletivas de Goethe, que o distanciamento temporal é uma condição

    para a crítica, esse o seu conceito de crítica retirado do primeiro romantismo alemão: o teor de coisa

    (Sachgehalt) da obra torna-se objeto da reflexão; e o distanciamento, o desdobramento temporal

    (filosofia da história) é elemento determinante nesta tarefa.

    Por que poesia e não prosa?

    Há uma resposta quanto à natureza dos gêneros; no mundo helênico antigo, a prosa

    comunicava a história, mas num relato escrito entre dominantes, tendo, portanto, um caráter

    estatal, vertical; a poesia não estava na escrita, estava na oralidade e, assim, atravessava as camadas

    populares, além de carregar consigo uma dimensão sublime, inspirada, enquanto a prosa tinha um

    teor laico.

    A poesia estava ligada, assim, à épica, às grandes narrativas. A prosa, no sentido que o

    mundo moderno lhe deu, não como relato do poder, mas como forma de comunicação própria de

    uma época fundada sob a separação do indivíduo de qualquer comunidade, sendo-lhe, por isso, mais

    adequada, tem caráter de drama privado. Ainda que em Dom Quixote possamos encontrar o

    impasse fundamental da cultura no mundo moderno, o da separação entre arte e vida, sonho e

    realidade, é a poesia moderna – e em alguns uma prosa poética – que apresenta um “programa” de

    “mudar a vida” (Arthur Rimbaud).

    Em Marcuse, n'O homem unidimensional, a poesia aparece com o significado dialético de

    fazer o não-ser vir a ser; entre os situacionistas (Internacional Situacionista), toda revolução nasceu

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 15

    da poesia (All the kings men), ela “Põe em jogo as dívidas da história que não foram pagas”;

    Maiakovski dizia que sem forma revolucionária não há poesia revolucionária; em solo brasileiro, o

    elemento poético é determinante na viravolta do conceito de antropofagia; e Benjamin tomou

    Baudelaire como epicentro das descrições das fantasmagorias de seu tempo. É como se a poesia,

    algo mais do que versos, fosse de encontro à prosa do mundo, e a tensionasse. Mas isso diz pouco,

    ainda é preciso situar o problema prosa-poesia na dialética centro-periferia.

    Retomando Augusto...

    É que o problema anterior tem algo do seguinte: é como se, segundo Roberto Schwarz, o

    romance machadiano fosse a melhor configuração, a melhor unidade literária da eclética e ambígua

    experiência nacional, sobretudo porque situa-se na sua capital, o Rio de Janeiro, sobretudo porque

    Machado viveu a ascensão social (elemento sociológico da transição da primeira à segunda fase),

    mas principalmente porque foi na prosa que a “unidade [precária] do diverso” foi possível; algo que

    Benjamin pode encontrar, do ponto de vista do centro europeu, Paris, na lírica de Baudelaire – “Mas

    isso ainda diz pouco:/ se ao menos mais cinco havia/ com nome de Severino/ filhos de tantas Marias/

    mulheres de outros tantos,/ já finados, Zacarias,/ vivendo na mesma serra/ magra e ossuda em que eu

    vivia”.

    A questão que se apresenta a nós é: a opção por Augusto, de um modo ainda precário, parece

    ser, hoje, mais fecunda do que encontrar na dialética paternalismo-ilustração os tipos da nossa

    configuração social. Optar por Augusto é distinto, por exemplo, de optar pela prosa. É como se

    aquilo que na sua obra poderia ser apenas intuível se tornasse, hoje, algo de bastante perceptível.

    Sobre alguns temas na lírica de Augusto.

    Na Dialética negativa, Adorno ressalta a importância de um real irredutível para o

    pensamento dialético; de modo geral, a prosa do ensaio tem algo a ver com essa compreensão de

    uma epistemologia marcada pelo tensionamento com um real irredutível. Falar de Augusto para,

    com ele, tratar da decomposição capitalista tem algo nesse sentido. O pano de fundo que nos

    interessa retirar dele é duplo: o niilismo como contrapartida do cientificismo, de seu desencanto do

    mundo; a figuração alegórica, barroca, da morte como algo histórico, e não meramente natural. É

    preciso casar esse apontamento com outro: a inscrição da culpa como destino e sua relação com o

    sacrifício, particularmente no interior da crise capitalista contemporânea. Essa é a constelação.

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 16

    Os motivos, para isso, são encontrados: no Poema negro e no Monólogo de uma sombra. No

    primeiro, a figura do poeta e de seu ofício é central. No segundo, a sombra se apresenta como

    arcaico. Seguindo adiante, nas Cismas do destino encontramos uma figura do medo e do destino, já

    de saída: “Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo em direção à casa do Agra,/ Assombrado com a

    minha sombra magra,/ Pensava no destino e tinha medo!”. Em Budismo moderno encontramos o par

    ciência-niilismo que pode nos ser fecundo do ponto de vista da crítica: “Tome, Dr., esta tesoura e...

    corte/ A minha singularíssima pessoa”.

    Aqui, a ciência objetifica o sujeito e isso pode ser pensado em três níveis: i) a viravolta

    paradigmática da medicina de urgência como modelo político (Paulo Arantes); ii)

    dessubstancialização e esvaziamento subjetivo do “budismo moderno” mercantil; iii) nós somos

    também o médico, o doutor, a crítica e a clínica a cortar Augusto, encontrar nele narcisismo (Eu),

    niilismo, melancolia e, assim, diagnosticarmos o caráter de decomposição do cadáver das relações

    mercantis – a marteladas, a fórceps ou ao bisturi, faremos essa estranha intervenção cirúrgica? Ao

    bisturi seria uma delicadeza despudorada, certamente. No mesmo poema temos, ainda, a figura do

    “Ah, um urubu pousou na minha sorte!”: o corvo, em todas as suas nuances, e a paisagem de urubus

    sobre as jangadas na orla do Fundão. Mas, sobretudo, a Psicologia de um vencido, sua última quimera

    e pantera.

    E quimera, por que quimera?

    Fetichismo da mercadoria, o ponto de partida. Se a história humana pode ser compreendida,

    segundo Robert Kurz, como uma história de relações fetichistas, em que a figura do sagrado

    ocupava um lugar determinante nas sociedades ditas pré-modernas, esse sagrado torna-se secular

    no interior das relações modernas, sendo a mercadoria – “nossa velha inimiga” – a célula germinal

    (Marx) dessa sacralização secular. O fetichismo, segundo Kurz no ensaio Dominação sem sujeito

    contido no livro Razão sangrenta, pode ser pensado numa articulação entre o conceito de a priori em

    Kant (i), o de inconsciente em Freud (ii) e a configuração invertida do ser social em Marx (iii);

    estendendo um pouco mais o assunto, o fetichismo baseia-se em três níveis, ao menos, segundo

    Anselm Jappe n’As aventuras da mercadoria: projeção, transferência e autonomização. Ora, não é

    outra a noção de sagrado; sagrado é justamente uma instância que se aparta do todo e a ele se

    sobressai.

    O sagrado como as quimeras no percurso da história humana. E inscrito nessa mediação

    social do sagrado, um terceiro termo que medeia invertidamente as partes, está toda uma história

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 17

    do sacrifício, e por que não uma história da dívida, e assim da culpa, e assim da expiação. Esse é um

    tema decisivo no último livro de Kurz, Dinheiro sem valor, que se encerra com o capítulo O sacrifício

    e o regresso perverso do arcaico. No caso, a mercadoria – certamente mediada pelo capital como

    totalidade negativa – é o arcaico que medeia as relações humanas e seu fetichismo, e seu segredo,

    é aquele para o qual humanos e natureza tornam-se meros objetos para a sua realização, e hoje cada

    vez mais sob a forma do descarte e extermínio.

    É com base nessa noção de sacrifício e regresso perverso do arcaico que precisamos retomar

    dois textos de Walter Benjamin, O capitalismo como religião e A obra de arte na era de sua

    reprodutibilidade técnica. De maneira genérica, da noção de capitalismo como (als) religião

    precisamos retomar: seu caráter ritualístico, sem descanso (permanente) e sem sacralidade; seu

    caráter impagável, infinito, que nenhuma expiação o encerra, o apazigua – “É a Morte — esta

    carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo que acha no caminho, come.../

    — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro

    não lhe mata a fome!” (Poema negro). Do ensaio sobre a reprodutibilidade técnica a relação entre

    primeira (tendente ao sacrifício) e segunda (tendente ao jogo) técnicas coloca o problema de até

    que ponto as condições da segunda técnica, no interior do arcaísmo mercantil, atualizam o sacrifício

    da primeira num patamar high tech e, assim, entramos em uma imagem genérica desse sacrifício:

    “A humanidade, que em Homero fora um dia objeto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-

    se objeto de sua própria contemplação. Sua autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível

    vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético de primeira ordem”. Essa uma possível

    constelação global da crise.

    Qual a relação entre sacrifício e autofagia?

    Diria que quando Benjamin fala que a “autoalienação atingiu tal grau que se lhe torna possível

    vivenciar sua própria aniquilação como fenômeno estético”, de alguma maneira, é isso que está sendo

    indicado. Não custa lembrar que, como no ensaio Experiência e pobreza, esse apontamento está

    tratando da experiência da primeira guerra mundial, na qual o “minúsculo corpo humano” se

    encontra (se perde) diante de uma batalha técnica de material, retornando sem narrativa, tamanho

    o trauma. É como se Drummond estivesse certo em seu poema O sobrevivente no livro Alguma

    poesia: “O último trovador morreu em 1914./ Tinha um nome de que ninguém se lembra mais”.

    O ponto é: o desenvolvimento das forças produtivas alcançou tal grau de aperfeiçoamento

    que a “humanidade” encontrou-se com a possibilidade de sua própria autoaniquilação, técnica e

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 18

    estética (caráter contemplativo); com a bomba atômica essa configuração se torna patente. Não à

    toa ser a segunda guerra mundial o limite de uma guerra entre Estados soberanos; a partir de então

    a entropia do capital não se escoa mais a uma apoteótica guerra mundial, mas retroage como guerra

    civil no interior das sociedades nacionais. De par com essa configuração bélica, no terreno do

    monopólio estatal (e mundial) da violência, está o cerne do problema: o descarte do trabalho

    humano diante do desenvolvimento técnico, que produzirá o capital fictício como instância

    compensatória – nossa grande bolha mundial de crédito-dívida, nosso Baal, nosso Moloch, nosso

    Mamon, nosso Bezerro de Ouro –, como consumo do futuro, e produzirá também uma massa de

    seres humanos supérfluos, não mais capturáveis nem como exército de reserva. Em resumo, a

    autofagia do trabalho morto comendo o trabalho vivo tem duplo efeito: descarte humano em larga

    escala (i), hipertrofia do capital fictício (ii).

    Autofagia nacional, enfim.

    Esse o quiprocó. Em um certo sentido, pensar com Augusto nos leva a perceber que, nele,

    não há ingenuidade possível, não há um tropicalismo ingênuo (afirmativo), um modernismo ingênuo

    (afirmativo), uma “alegria como prova dos nove” (Oswald), se assim nos for legítimo colocar a

    questão; Augusto quase não dá margem a um projeto afirmativo, e isso pode ser, no mínimo,

    sintomático.

    Outro ponto é que Augusto está situado no declínio da economia escravocrata e açucareira,

    sua educação veio deste espólio. Podemos dizer que a República possui nas guerras do Paraguai,

    externa, e de Canudos, interna, um elemento determinante na construção do militarismo como

    força modernizadora, seja ideologicamente no positivismo, seja industrialmente de Getúlio Vargas

    à Ditadura civil-militar de 1964-1985. O espectro desse militarismo é um ponto importante também.

    Vinculando declínio da economia escravocrata açucareira e dividendos da guerra contra

    Canudos, é no mínimo sintomático que a origem do termo favela, onde se refugiaram em Exílio – no

    interior do Reino – os escravos recém-libertos e soldados com promessa de casas próprias, seja

    proveniente de um morro no interior da Bahia, onde se aquartelou Canudos, a segunda maior cidade

    do Império, perdendo apenas para a capital nordestina de então, a própria Bahia.

    Mas o principal problema talvez seja nosso dualismo, nossa interpenetração arcaico-

    moderno, nosso “arcaísmo como projeto”, nossa autossabotagem e automartírio sacrificial

    permanente em nome da metrópole, dos grandes centros e de uma elite no momento sem adjetivos

    e seus caprichos e arbítrios. Falar de autofagia nacional tem esse tom.

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 19

    Do capitalismo como religião.

    A ética protestante dignifica o trabalho e estabelece uma aberta correspondência entre

    progresso material e benção, predestinação espiritual, ao contrário da conotação cristã negativa do

    “comerás com o suor do teu rosto”, do tripalium e da usura, ainda que esta não deixasse de possuir

    terras nem de acumular riquezas com indulgências; e mesmo os mais anacoretas, os religiosos dos

    mosteiros, deixaram também sua contribuição para o surgimento de um ritual diário baseado num

    tempo mecânico, quantitativo, hora a hora.

    Essa religião do trabalho, se assim quisermos chamar, é peça central na modernidade.

    Falando mais precisamente, é o trabalho, o “dispêndio de nervos, músculos e cérebro humano”

    (Marx), o sacrificado a um deus secular que tem seu ser no valor, sua essência-fenômeno no dinheiro

    e seu conceito no capital: D-M-D'. Assim, a dignificação do trabalho é antes sua imolação no altar

    cotidiano do capital, nos termos de Benjamin (O capitalismo como religião), um culto extremado,

    sem teologia, sem dogmática, nos seguintes moldes: a) permanente, sem trégua e sem piedade; b)

    culpabilizador, de caráter não expiatório e universalizante ao ponto de circunscrever “o próprio Deus

    nessa culpa”; c) oculto, apenas manifesto no ponto máximo, no auge, no extremo da culpabilização.

    Portanto, segundo Benjamin, o capitalismo tem um caráter cultual em três níveis: permanência,

    culpabilização, ocultamento.

    Essa noção do trabalho dignificado como o sacrificado também está fortemente atrelada à

    experiência das guerras mundiais na primeira metade do século XX. Hoje, na medida de uma

    consolidação da substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto – elemento autofágico do

    capitalismo –, a noção de sacrifício vem não apenas com a mobilização exploratória e alienante da

    força de trabalho, nem apenas com a mobilização das forças produtivas para a guerra, mas

    sobretudo sob a forma do descarte e extermínio, com clivagens territoriais, de gênero, raça, etnia,

    daqueles que não podem ser mais sacrificados no ritual do trabalho: desemprego estrutural.

    Podemos compreender também a partir daqui o elemento da guerra civil, da guerra contra as

    populações como elemento autofágico.

    Três etapas, então, dessa religião: exploração, guerra, descarte.

    Não necessariamente lineares, mas com uma certa linearidade.

    O minotauro global.

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 20

    O Minotauro antropófago de Wall Street. Varoufakis, ministro das finanças pelo Syriza na

    querela grega com a Troika, escreve um livro no qual ele periodiciza o nascimento de um minotauro

    global da dívida. Após a segunda guerra, no conselho de Bretton Woods acerca dos caminhos que o

    mundo seguiria a partir de então, há uma polêmica entre Keynes, que defendia um dinheiro mundial

    sem conotação nacional, e um outro economista em favor dos americanos, que acabam tomando a

    medida de passarem por cima do conselho, na medida em que eram a potência nacional vitoriosa,

    militar e financeiramente, e estabelecem o dólar como dinheiro mundial lastreado em ouro. Essa

    etapa irá fundar os trinta gloriosos (1945-1975), época de ouro do capitalismo em termos de estado

    de bem-estar social, operando a potência global numa dinâmica superavitária (i).

    Essa época de ouro declinou, diz Varoufakis, nos anos de 1970, conjuntura de reestruturação

    produtiva, microeletrônica, retirada do padrão-ouro do dólar (1971), crise do petróleo (1973), e a

    potência EUA faz nascer o tal do Minotauro, com alguns serviçais, sendo o touro de Wall Street –

    “preferiria não”, poderia dizer novamente Bartleby a essa altura – sua representação visível. Nessa

    guinada de época, entra em jogo o elemento da desregulamentação financeira e uma dinâmica

    deficitária (ii) da potência mundial que, de uma maneira que ainda não conseguimos apontar, faz o

    mundo inteiro pagar sua dinâmica deficitária. O touro de Wall Street tem, assim, uma natureza

    antropófoga: “É a Morte — esta carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo

    que acha no caminho, come.../ — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o

    mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!” (Poema negro). O estouro dessa dinâmica se

    dá nos anos de 2008, com a crise financeira advinda das hipotecas no setor imobiliário, e desde então

    o cenário do mundo passa a ganhar novos contornos, teríamos que inserir, no mínimo, China e

    Rússia no jogo.

    A sociedade autofágica.

    Varoufakis parece não ter uma teoria do valor de fundo, sua análise é bastante

    fenomenológica. Encontraremos esse elemento em falta na crítica do valor (Wertkritik), em Robert

    Kurz e Anselm Jappe, por exemplo. Apontaremos, mas não desenvolveremos aqui, os dois circuitos

    da dívida que Kurz nos diz – na coletânea de ensaios sobre poder mundial e dinheiro mundial: i) do

    Pacífico, entre EUA e China; ii) o da Europa, entre Alemanha credora e os países sulistas endividados:

    “Cresce o buraco negro entre a criação de valor real no passado e o futuro ficticiamente antecipado. Esta

    construção de uma conjuntura de déficit global tem dois eixos principais: um maior, o circuito de déficit

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 21

    do Pacífico, entre China/Ásia Oriental e Estados Unidos, e um menor, entre a Alemanha e o restante da

    União Europeia, ou melhor, a Zona do Euro”. São apontamentos que ainda precisam de mais atenção.

    Particularmente Anselm Jappe, depois de apontada as principais contribuições da Wertkritik acerca

    de crise e crítica no seu livro As aventuras da mercadoria, insiste em pensar a correspondência

    subjetiva à dinâmica autofágica do capitalismo – que ele retoma a partir de um outro mito, o de

    Erisícton, um rei que devorou a si mesmo – a partir do paradigma narcísico-fetichista, epicentro do

    seu livro A sociedade autofágica.

    Longa, dura caminhada apresentar seu percurso (i) acerca de Descartes, Kant, Sade, Stirner,

    Quincey como tipos subjetivos de um narcisismo moderno e seus contornos em vias de consumação

    em nosso tempo, ou seja, o percurso que leva a um diagnóstico do sujeito não mais à Ética

    protestante e o 'espírito' do capitalismo (Max Weber), paradigma neurótico, mas a um paradigma

    narcísico que passa a ser retomado nas discussões psicanalíticas desde os anos de 1970. Longa, dura

    caminhada (ii) o percurso das posições acerca do narcisismo. Longa, dura caminhada (iii) percorrida

    por Jappe de Freud a Cristopher Lasch, passando por Fromm, Reich, Marcuse, enfim, por aqueles

    que não se limitaram a compreender o paradigma narcísico como privado, meramente clínico, mas

    público, social, marca de uma forma histórica de subjetividade. A contribuição de Jappe será inserir

    a relação do narcisismo com o fetichismo da mercadoria e, assim, encontrar a chave do niilismo

    autofágico em curso.

    As ideias fora ou em seu devido lugar?

    Walter Benjamin pensa o mundo, com Baudelaire, a partir de Paris como a capital do século

    XIX. Roberto Schwarz escreve em Paris, exilado no contexto ditatorial brasileiro, o ensaio As ideias

    fora do lugar, contido no livro sobre José de Alencar e a primeira fase do romance machadiano: Ao

    vencedor as batatas; está, nele, o problema do descompasso entre centro e periferia e,

    particularmente, que forma social e ideológica – mediação do favor, paternalismo esclarecido –,

    literária – romance machadiano – e subjetiva – volubilidade de caráter consolidada na segunda fase,

    com Brás Cubas – nos é própria na passagem do século XIX ao século XX. José Ramos Tinhorão

    escreve, no Rio de Janeiro, um texto intitulado A província e o naturalismo, no intuito de pensar

    como, no Ceará-Fortaleza, no mesmo século XIX, uma geração de escritores das camadas médias –

    a partir dos anos 70 – encontra no naturalismo sua principal forma literária, tendo muitos deles ido

    estudar na Escola do Recife, ou seja, na capital da metrópole da província Fortaleza, Recife; ora, é a

    experiência da seca o principal elemento que estabelece as continuidades e rupturas dessa geração,

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 22

    e marca seu tom. Descompassos por descompassos, descontinuidades por descontinuidades,

    centros e periferias relativos para chegar ao trato de um paraibano chamado Augusto dos Anjos, e

    dar-lhe o trunfo lírico – nem tão triunfal – do Abgesang das relações de mercado contemporâneas,

    sua política da morte tendo como raiz a voracidade da acumulação de capital, que gravita no entorno

    de um vazio chamado valor.

    REFERÊNCIAS:

    ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

    2009.

    ADORNO, Theodor; BENJAMIN, Walter. Correspondência; trad. de José Marcos Mariani de Macedo. 2. ed.

    São Paulo: Editora Unesp, 2012.

    AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo; tradução, notas e posfácio de Cláudio de Oliveira. Belo

    Horizonte, 2012.

    ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e outros textos. São Paulo: Penguin e Companhia

    das Letras, 2017.

    ANJOS, Augusto dos. Toda a Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976.

    ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.

    . O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

    BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa; tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra,

    2011.

    BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo; tradução de José Martins

    Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Obras escolhidas; v. 3).

    . Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe; tradução de Mônica Krausz Bornebusch, Irene Aron e

    Sidney Camargo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.

    . O conceito de crítica de arte no romantismo alemão; tradução de Márcio Seligmann. 3. ed. São

    Paulo: Iluminuras, 2011.

    . Origem do drama trágico alemão; tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora,

    2011.

    . Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,

    2006.

  • Última quimera: Augusto dos Anjos e autofagia nacional, pp. 10-23

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 – issn 2238-5274 23

    DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,

    1997.

    HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

    JAPPE, Anselm. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. Portugal: Antígona,

    2019.

    KURZ, Robert. Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política;

    tradução de Lumir Nahodil. Lisboa: Antígona, 2014.

    ______. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Trad. Boaventura Antunes,

    Lumir Nahodil e André Villar Gomez. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2015.

    . Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores

    ocidentais; tradução de Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2010.

    LUKÁCS, Georg. Teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica;

    tradução, posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 200.

    MARCOS, Subcomandante Insurgente. Nem o centro e nem a periferia: sobre cores, calendários e

    geografias. Tradução brasileira de Coletivo Protopia e Danilo Ornelas Ribeiro. Porto Alegre: Deriva, 2008.

    MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos sobre a ideologia da sociedade industrial

    avançada. Trad. Robespierre de Oliveira, Deborah

    Cristina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015.

    MARX, Karl. Grundrisse; tradução de Mário Duayer, Nélio Schneider (colaboração de Alice Helga Werner e

    Rudiger Hoffman). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.

    . O capital: crítica da economia política: livro I; tradução de Reginaldo Sant’Anna. 26. ed. Rio de

    Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

    . Para a crítica da economia política. In: . Coleção Os Economistas. São Paulo: Abril

    Cultural, 1982.

    MIRANDA, Ana. A Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance

    brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.

    . Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

    SITUACIONISTA, Internacional. Antologia. Trad. Júlio Henriques. Lisboa: Antígona, 1997.

    TINHORÃO, José Ramos. A província e o naturalismo. Fortaleza: NUDOC, UFC, 2006.

    VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia

    global. São Paulo: Autonomia Literária, 2016.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 24

    MODERNIDADES ALTERNATIVAS. DA

    CRISE DO PÓS-MODERNISMO ATÉ À

    TRANSMODERNIDADE DE ENRIQUE DUSSEL

    Balínt Urbán1

    RESUMO: Partindo da crise e da crítica do pós-modernismo, presente estudo, depois de apresentar um panorama de propostas teóricas da reflexão contemporânea sobre a modernidade, pretende dar uma leitura da teoria da transmodernidade de Enrique Dussel. O filósofo argentino-mexicano elabora um modelo original da modernidade da perspectiva do Sul subalterno que além de desconstruir os princípios eurocêntricos da modernidade singular propõe uma reavaliação crítica da história européia e do colonialismo. Deste modo, a transmodernidade de Dussel, articula-se como um caso exemplar das modernidades alternativas cujo objectivo é criar um diálogo entre o pensamento ocidental e as epistemologias marginais. PALAVRAS-CHAVE: modernidade, pós-modernismo, modernidades alternativas, transmodernidade, epistemologias do Sul, Enrique Dussel ABSTRACT: Departing from the critic of post-modernism this study focuses on the theory of transmodernity elaborated by the Argentinian-Mexican philosopher, Enrique Dussel. In my opinion Dussel’s approach on modernity can be understood from the perspective of alternate modernities and their critical stance towards the Eurocentric narrative of modernity. Transmodernity provides not only a complex ideology to deconstruct the singular-occidental character of modernity but also

    1 Universidade Eötvös Loránd de Budapeste. E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 25

    opens up a space where emancipation and local epistemologies can interact in order to create a new, alternative form of modernization. KEYWORDS: modernity, post-modernism, alternative modernities, transmodernity, epistemologies of the South

    Apesar da tese vastamente propagada e aceita sobre o fim definitivo da modernidade enquanto

    complexo período histórico-político e econômico-social, ideologia e epistemologia particular de

    origem e inspiração europeia, parece que a cultura mundial não se quer separar do paradigma do

    moderno que continua fazendo parte dos modelos descritivos destinados para interpretar o estado

    atual das sociedades e dos sistemas econômicos vigentes. „Modernist culture has come to penetrate

    the values of everyday life; the life-world is infected by modernism.”2 Formulou um dos principais

    pensadores do debate sobre o desfecho da modernidade nos anos oitenta do século passado,

    enfatizando a penetração incondicional da vida pelas mais diversas manifestações da modernidade,

    supondo uma indissociabilidade evidente entre a vida e a própria máquina metafórica da

    modernidade. Portanto, ainda hoje, as mais diversas tentativas de definição com a ajuda das quais

    pretendemos compreender a complexidade dos fenômenos socioeconômicos e tecnológicos da era

    contemporânea, dum modo ou outro, se relacionam com a grande narrativa da modernidade, e

    procuram inventar novas formas alternativas para continuar, superar, criticar, reposicionar ou

    simplesmente expandir a herança da própria modernidade histórica, remetendo-nos para a acima

    referida inseparabilidade ontológica da humanidade do paradigma moderno. O facto de que a

    maioria dos modelos sintéticos das últimas décadas que tentaram formular respostas à questão da

    transformação radical do espaço socioeconômico nos finais do século XX e no início do novo milénio,

    define-se em relação à modernidade clássica (classical modernity)3, torna-nos evidente por um lado

    a viabilidade da tese sobre a impossibilidade de conclusão e de terminação do projeto emancipatório

    moderno, defendido entre outros por Jürgen Habermas4 e Anthony Giddens,5 e por outro lado revela

    uma certa obsessão cultural com o paradigma da modernidade que assombra a consciência das

    sociedades e dos sujeitos já há vários séculos.

    2 HABERMAS, Jürgen. Modernity – an incomplete project. In: FOSTER, Hal (org.). The Anti-Aesthetic. Essays on Post-modern Culture. Port Townsend-Washington: Bay Press, 1983, p. 6. 3 PEUKERT, Detlev. The Weimar Republic: The Crisis of Classical Modernity. New York: Hill & Wang, 1992. 4 HABERMAS, 1983, pp. 12-13. 5 GIDDENS, Anthony. The Consequences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1996, pp. 47-48.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 26

    Uma série de autores que por motivos diferentes manifestaram uma certa aversão para com o

    paradigma popularizado e vastamente usado do pós-moderno enquanto estado socioeconômico e

    cultural do capitalismo tardio,6 sugeriu e elaborou matrizes distintas para substituir o pós-

    modernismo e para suprir suas falácias. Enquanto Anthony Giddens compartilhando as mesmas

    premissas com Jürgen Habermas acerca do caráter incompleto do movimento emancipatório, fala

    sobre uma modernidade tardia (late modernity) enquanto uma fase autêntica do projeto moderno

    que se baseia na separação do tempo e do espaço, no desencaixe das instituições sociais e na

    apropriação reflexiva do conhecimento,7 Gilles Lipovetsky opta pelo termo da hipermodernidade

    (hypermodernity) e define-a como o segundo período moderno ou o próprio cumprimento total do

    projeto capitalista em cujo centro se encontra o conceito do excesso8 (daí a preferência pelo prefixo

    –hiper em vez do prefixo –pós que sugere a conclusão dum certo tipo de desenvolvimento).

    Zygmunt Bauman cunha o conceito da modernidade líquida (liquid modernity) para referir à

    substituição da antiga solidez das instituições, formas de produção, relações interpessoais, etc. por

    uma incerteza total e desconcertante,9 e Marc Augé de acordo com as bases teóricas de Lipovetsky,

    no seu livro Non-Places – Introduction to an Anthropology of Supermodernity elabora uma teoria da

    supermodernidade (supermodernity) enfocada na expansão excessiva das fronteiras do tempo, do

    espaço e da individualidade e que apresenta como o outro lado mais positivo do pós-modernismo

    niilista-desconstrucionista.10 Tanto Lipovetsky como Bauman e Augé tomam como ponto de partida

    nas suas análises o fenômeno da aceleração incondicional e a consequente extremização do

    processo moderno. Para eles o desenvolvimento e o movimento da modernidade considera-se um

    facto inquestionável o que os leva para rejeitar a suposição do fim definitivo do projeto iluminista e

    a conclusão do progresso moderno explicado duma posição nietzschiana por Gianni Vattimo.11

    Como Bauman enfatiza

    As time flows on, ‘modernity’ changes its forms in the manner of the legendary Proteus… What was some time ago dubbed (erroneously) 'post-modernity' and what I've chosen to call, more to the point, 'liquid modernity', is the growing conviction that change is the only permanence, and uncertainty the only certainty. A hundred years ago 'to be modern' meant to chase 'the final state of perfection' -- now it means an infinity of improvement, with no 'final state' in sight and none desired.12

    6 JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 2001. 7 GIDDENS, 1996.; vide também LUVIZOTTO, Caroline Kraus: Modernidade e modernidade tardia. In: LUVIZOTTO, Caroline Kraus: As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia. São Paulo: Editora UNESP, 2010, pp. 60-61 (53-63) 8 LIPOVETSKY, Gilles. Hypermodern Times. Cambridge: Polity Press, 2005, pp. 31-32. 9 BAUMAN, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2012. 10 AUGÉ, Marc. Non-Places – Introduction to an Anthropology of Supermodernity. London-New York: Verso, 2000, pp. 24-37. 11 VATTIMO, Gianni. La fine della modernitá. Milano: Garzanti, 2011, p. 176. 12 BAUMAN, 2012, viii.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 27

    Nas esteiras da ideia do caráter proteano da modernidade e da sua transformação permanente

    Robert Samuel, Alan Kirby e os autores holandeses Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker

    partem da tese de que o novo milénio trouxe não só o fim do paradigma pós-moderno mas também

    e a necessidade da sua superação. Todos eles expressam uma forte insatisfação para com o código

    vigente do pós-modernismo e ressaltam a inadequação deste com o estado socio-cultural e

    tecnológico do século XXI. As suas propostas, assim, consideram-se reações à crise epistemológica

    do pós-modernismo e procuram formular modelos alternativos de descrição e de análise. Alan Kirby

    declara a morte do pós-modernismo e acredita que através da reestruturação dos espaços digitais e

    da emergência do assim chamado web 2.0 que aposta muito mais na representação visual e na

    própria criatividade interveniente dos usuários, entramos num período além do reino pós-moderno

    que podemos chamar modernismo digital (digimodernism). Segundo Kirby o modernismo digital

    constitui „the dominant cultural, technological social and political expression of our times.”13 Robert

    Samuel, por sua vez, argumenta que a abordagem e a análise da cultura, da identidade e da

    tecnologia não se pode basear mais nas dicotomias tradicionais da modernidade como a oposição

    entre as esferas públicas e privadas, a separação cartesiana do objeto e do sujeito e a relação

    hierárquica entre o humano e a máquina. As novas formas da mídia e da tecnologia e os modos como

    a humanidade as usa diariamente exigem um repensamento dinâmico das narrativas correntes da

    modernidade. Portanto, em vez de ver e interpretar a liberdade individual e a alienação mecanizada

    como forças sociais opostas, temos que reconhecer que o sujeito contemporâneo recorre à

    automatização para expressar e desenvolver a sua própria autonomia. Além disso, na opinião de

    Samuel no caso da automodernidade (automodernity) não se trata da aceleração e da extremização

    acima descrita do avanço do projeto moderno, senão de uma certa unificação numa estrutura

    globalizada e altamente tecnicizada das esferas do capitalismo, da democracia e da ciência cuja

    separacao constitui um dos passos fundamentais do nascimento do discurso da modernidade.14

    Finalmente os teóricos holandeses Thimoteus Vermeulen e Robert van den Akker declaram que os

    tempos pós-modernos do último quartel do século XX que cultivaram um forte relativismo cultural

    e fizeram da ironia e da paródia autênticos modelos ontológicos e interpretativos tanto do passado

    como do presente, definitivamente acabaram. Na perspectiva deles o novo milênio caracteriza-se

    muito mais por uma certa reativação de determinados traços da modernidade clássica dezenovista

    13 KIRBY, Alan. Digimodernism: How New Technologies Dismantle the Postmodern and Reconfigure our Culture. London-New York: Continuum, 2009, p. 2. 14 SAMUELS, Robert. New Media, Cultural Studies, and Critical Theory after Postmodernism: Automodernity from Zizek to Laclau. New York: Palgrave Macmillan, 2009, pp. 3-27.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 28

    como por exemplo o idealismo, a esperança, a participação política e ética, e por uma nova

    disposição pela sensibilidade, pelo sentimentalismo, pelos horizontes pessoais e pela integridade

    das histórias (vinculadas parcialmente pelo uso incondicional das redes socias).15

    Além do pendor de ultrapassar e criticar o pós-modernismo típico dos anos 70, 80 e 90, o que

    relaciona estes conceitos mais recentes do moderno é a influência e a penetração das novas formas

    de telecomunicação que redimensionaram não só as interações sociais mas também as formas de

    perceber, conceber o construir a realidade. Enquanto as grandes teorias do pós-modernismo

    frequentemente usaram como metáfora principal a televisão e o vídeo,16 estas novas abordagens

    que propagam a superação do pós-modernismo, tornam-se aos produtos mais recentes da

    revolução tecnológica, nomeadamente à internet e ao mundo das redes socias, para explicar a

    transformação da modernidade.

    Este panorama com as mais diversas tentativas de redefinir e reinterpretar a modernidade, a meu

    ver, representa dum modo axial a tese inicialmente exposta sobre a obsessão e a inseparabilidade

    da cultura do paradigma da modernidade. No entanto, a maioria das soluções apresentadas

    continua a pensar a modernidade como um projeto essencialmente eurocêntrico, ou seja, a

    modalidade econômico-política e socio-discursiva do espaço simbólico da zona euro-atlântica. O

    modelo da transmodernidade elaborado pelo filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel constitui

    um certo contraponto da reflexão eurocêntrica da modernidade, aconselhando uma crítica dos

    princípios do projeto moderno e uma reformulação deste da perspectiva do assim chamado Sul

    global, tendo em conta não só a tensão entre o epistemicídio colonial e as formas de saber locais,17

    e as possibilidades de construir uma modernidade própria, diferente da versão ocidental

    consagrada, mas também as contribuições históricas do Sul para a própria modernidade e a para o

    estabelecimento do seu discurso simbólico. Para entender a argumentação de Dussel e a essência

    da sua teoria da transmodernidade temos que ver primeiro os paradoxos inerentes da própria

    modernidade.

    Segundo as narrativas e teorias principais da modernidade, o padrão substancial do progresso

    socioeconômico cujos pontos referenciais e constituintes são a reforma religiosa, a revolução

    15 VERMEULEN, Timotheus – AKKER, Robin van den. Notes on Metamodernism. Journal of Aesthetics & Culture. Vol. 2., n. 1., 2010. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.3402/jac.v2i0.5677 16 WOODS, Tim. Postmodernism, film, video and televisual culture. In: WOODS, Tim. Beginning Postmodernism. Manchester-New York: Manchester University Press, 1999, p. 194. 17 SANTOS, Boaventura de Sousa – Meneses, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 10.

    https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.3402/jac.v2i0.5677

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 29

    científica de Copernico, Galileu e Newton, a filosofia cartesiana do sujeito, a corrente cultural do

    Iluminismo, a revolução industrial, a emergência do capitalismo enquanto sistema econômico

    dominante, a organização burocrática dos estados e a crescente desencanto do mundo e o controle

    biopolítico das sociedades através das forças invisíveis do bio-poder, tem a ver com uma consciência

    e uma história exclusivamente européias. O ponto comum dos fenômenos acima-referidos, sem

    qualquer dúvida, é o funcionamento duma certa racionalidade teleológica – Zweckrationalitat na

    formulacao de Max Weber18 – que penetra até medula todas as esferas da experiência e da realidade

    partindo da ciência até à

    economia e à sociedade. O sujeito moderno, tanto como a ciência, a tecnologia e a política

    modernas, está baseado na crença incondicional na razão instrumental e nas suas potências

    inquestionáveis de conhecer, conceber, interpretar e controlar.19 No entanto, já durante o período

    da modernidade clássica do século XIX, surgiram algumas dúvidas quanto a essa racionalização total

    do ser e da dominação absoluta da razão que fazem da modernidade um fenômeno bastante

    paradoxal. Por um lado, a complexidade das esferas ontológicas, epistemológicas e discursivas

    envolvidas com o projeto moderno produz uma complexidade extensa dentro da própria dinâmica

    do moderno que nos permite falar não de só diversas fases cronológicas como modernidade precoce

    (early-modern age/frühe Neuzeit), modernidade clássica e modernidade tardia, mas – seguindo a

    lógica do título da monografia magistral de Matei Calinescu Five Faces of Modernity20 – também de

    faces diferentes que refletem certas posturas ideológicas. A metáfora antropológica de Calinescu

    permite-nos, então, fazer distinções nítidas entre as faces diferentes da modernidade. Dilip

    Gaonkar, por sua vez, enfatiza uma dualidade primordial da narrativa moderna que segundo ele

    lembra as duas faces de Jano, ou seja, a modernidade tem um lado afirmativo, positivo e

    emancipatório, mas ao mesmo tempo dispõe de um outro lado sinistro, cruel e dominador.

    The bright side of societal modernization anticipated by Enlightenment philosophers (…) refers to the palpable improvement in the material conditions of life as evident in economic prosperity, political emancipation, technological mastery, and the general growth of specialist knowledge. The dark side refers to the existential experience of alienation and despair associated with living in a disenchanted world of deadening and meaningless routine. This is the Sisyphean world of repetition devoid of a subjectively meaningful telos.21

    18 WEBER, Max. The Vocation Lectures. Indianapolis-Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004. 19 CASCARDI, Anthony J. The Subject of Modernity, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 16-17. 20 CALINESCU, Matei. Five Faces of Modernity. Durham: Durham University Press, 1987. 21 GAONKAR, Dilip Parameshwar. On alternative modernities. In: GAONKAR, Dilip Parameshwar (org.). Alternative Modernities. Durham-London: Duke University Press, 2001, p. 9.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 30

    Entre os aspetos mais negativos do avanço moderno Gaonkar menciona a alienação e o tédio

    produzidos pelo desencanto e pela burocratização do mundo, descritos ambos amplamente por

    Weber. O que o autor do estudo não refere é a própria perversão da razão e da abordagem

    racionalizante da realidade. Estas constituem a base duma certa crítica da modernidade que surge

    depois da Segunda Guerra Mundial, da experiência do terror absoluto dos campos de extermínio e

    das câmaras de gás. Na tradição do pensamento européia foi provavelmente o filósofo alemão,

    Martin Heidegger que numa palestra sua proferida alguns anos após o fim da guerra, falou do

    Holocausto como de um projeto industrializado, como de uma fábrica de morte. Giorgio Agamben

    no terceiro volume da série Homo Sacer em que escreve sobre a catástrofe do Holocausto e as suas

    consequências socio-culturais aponta que „ad Auschwitz non si moriva, venivano prodotti cadaveri.

    Cadaveri senza morte, non-uomini il cui decesso è svilito a produzione in serie”22 Ou seja a

    tecnicização e a industrialização que constituíam os eixos principais da modernidade e em princípio

    serviam a emancipação da humanidade, passaram a ser usados e abusados para cumprir objectivos

    mais sinistros, para realizar aquilo que antes era completamente impensável: o assassinato

    racionalmente organizado de milhões e milhões de pessoas. Sem qualquer dúvida, a crítica mais

    elaborada desta faceta macabra da modernidade foi desenvolvida no livro de Adorno e Horkheimer

    publicado sob o título A dialética do Esclarecimento. Embora Adorno e Horkheimer façam uma

    avaliação crítica do Iluminismo, a sua argumentação pode ser aplicada sem problemas para a grande

    narrativa da modernidade, sendo o Esclarecimento eminentemente inseparável do discurso

    moderno e às vezes até identificado com ele.23 O que Adorno e Horkheimer declaram logo no início

    do livro é que o próprio discurso ideológico do Esclarecimento na verdade se define como uma

    autêntica construção totalitária.24 Na análise deles é a própria razão moderna e a ocupação gradual

    mas quase completa da realidade por ela que faz funcionar a lógica perversa do Terceiro Reich e a

    organização sistemática do genocídio. Desta forma, aquela razão em que o Século das Luzes

    colocou todas as esperanças para emancipar a humanidade, junto com a tecnologia se tornou afinal

    no próprio destrutor dessa mesma humanidade. Nas esteiras das teses de Adorno e Horkheimer

    sobre a dialética do Esclarecimento e a perversão da razão moderna, Zygmunt Bauman falando já

    diretamente de modernidade e não de Iluminismo, salienta que „the Holocaust was a unique

    encounter between the old tensions which modernity ignored, slighted or failed to resolve -- and the

    22 AGAMBEN, Giorgio. Quel chi resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone. Torino: Bollati Boringhieri, 2000, p. 66. 23 GERAS, Norman – WOKLER, Norbert (Org.). The Enlightment and Modernity. London: Macmillan Press, 2000. 24 ADORNO, Theodor Wiesengrund – HORKHEIMER, Max. Dialektik der Aufklärung. Philosphische Fragmente. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2006, p. 12.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 31

    powerful instruments of rational and effective action that modern development itself brought into

    being.”25 O pensador polonês, na verdade, aprofunda de uma perspectiva weberiana as idéias dos

    filósofos da escola de Frankfurt e analisa a relação íntima entre o desenvolvimento da civilização

    moderna, a revolução industrial, o estabelecimento das instituições burocráticas públicas e a

    tragédia do Shoah, afirmando que o extermínio industrializado dos judeus foi o fruto orgânico das

    sociedades modernas e que nele se revela uma certa verdade da modernidade (truth of modernity).26

    Uma outra anomalia da modernidade que dum certo modo se liga às teses críticas acima expostas é

    revelada por Charles Taylor. O filósofo canadiano distingue dois modelos principais e paralelos da

    modernidade: um modelo cultural e particular e um outro modelo aculturado e universal. Dos dois

    conceitos aquele que conseguiu se afirmar como a narrativa primordial e dominante da

    modernidade é a versão aculturada o que, na opinião de Taylor, tem a ver com o facto que a

    ideologia emancipatória e salvacionista da modernidade na verdade nasceu da cultura cristã que

    desde o início se tinha inscrito num horizonte eminentemente universal27 (basta só lembrar as cartas

    de São Paulo sobre as pretensões universais da expansão da fé e do catolicismo, palavra cuja

    etimologia grega aliás se refere à própria universalidade) e depois desenvolveu-se sob a égide

    universalista e humanista do Iluminismo. Esta variante aculturada da modernidade quer eliminar as

    diferenças religiosas, epistemológicas e culturais entre as mais diversas regiões do mundo e

    pretende criar um mundo homogêneo e universal baseado nos mesmos valores ideológicos, nas

    mesmas instâncias políticas, nas mesmas tecnologias de produção e nas mesmas estruturas

    socioeconômicas.

    (…) traditions impede development. Over against the blazing light of modern reason, all traditional societies look alike in their immobile night. What they hold us back from is ‘‘development,’’conceived as the unfolding of our potentiality to grasp our real predicament and apply instrumental reason to it. The instrumental individual of secular outlook is always already there, ready to emerge when the traditional impediments fall away. Development occurs through modernization, which designates the ensemble of those culture-neutral processes, both in outlook (individuation, rise of instrumental reason) and in institutions and practices (industrialization, urbanization, mass literacy, the introduction of markets and bureaucratic states) which carry us through the transition. This outlook projects a future in which we all emerge together into a single, homogeneous world culture. In our traditional societies, we were very different from each other. But once these earlier horizons have been lost, we shall all be the same.28

    25 BAUMAN, Zygmunt. Modernity and the Holocaust. Ithaca: Cornell University Press, 1989, p. xiv. 26 Idem, p. 6. 27 TAYLOR, Charles. Two theories of modernity. In: GAONKAR, Dilip Parameshwar (org.). Alternative Modernities. Durham-London: Duke University Press, 2001, pp. 174-175. 28 Idem, p. 181.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 32

    Fredric Jameson, por sua vez, escreve também dessa versão aculturada da modernidade. Como

    localiza a essência da modernidade no capitalismo global e na sua expansão mundial, na leitura dele

    a modernidade, desde a sua germinação, é necessariamente universal e singular, e assim

    permanecerá para sempre.29 Para o teórico marxista todas as manifestações da modernidade têm a

    ver com o capitalismo e com as pretensões hegemonizantes do sistema da capital o que não permite

    o desenvolvimento de modernidades locais que não seguem fielmente o padrão da versão euro-

    atlântica e não cumprem rigorosamente as suas normas. Jameson basicamente rejeita a

    possibilidade de existência de modernidades diferentes e declara que só pode existir uma

    modernidade singular (singular modernity) que funciona de acordo com as mesmas leis e princípios

    por todos os lados.30 Jameson não defende nada a narrativa eurocêntrica da modernidade, senão só

    constata que apesar das esperanças de questionar e deslocar essa narrativa, ela continua sendo

    vigente nas dinâmicas econômicas do mundo globalizado. Por isso mesmo, neste ponto vale a pena

    voltar às ideias de Taylor e Gaonkar que ao contrário de Jameson apoiam a tese da possibilidade de

    outras modernidades.

    Taylor, por sua vez, argumenta que as assim chamadas variantes culturais da modernidade como se

    desenvolveram de tradições e epistemologias diferentes, são (e serão) inevitavelmente diferentes.31

    A modernidade como sempre supõe uma base cultural à qual se sobrepõe, e na realidade não se

    pode livrar da influência desse substrato local. "Each repetition of the sign of modernity is different,

    specific to its historical and cultural conditions of enunciation"32 Ressalta Homi Bhabha no seu livro

    The Location of Culture, ou seja, em vez de falar de uma só versão da modernidade em que se

    refletem os valores culturais, políticos e econômicos do continente europeu e as ideologias do

    eurocentrismo, teríamos de falar sobre várias modernidades diferentes que seguindo a sugestão de

    Taylor e de Gaonkar podemos chamar de modernidades alternativas (alternative modernities). Essas

    modernidades alternativas que desconstroem a narrativa de uma modernidade singular e

    eurocêntrica apresentam iterações características e regionais da dominante européia. Desta forma,

    como Matei Calinescu sugere

    „(…) one should not speak of one modernity, one way or pattern of modernization, one unified concept of modernity which would be inherently universalist and would presuppose universal and uniform standards, independent of temporal and geographic coordinates. If modernity is indeed creative-whether economically as development or, at the other end of

    29 JAMESON, Fredric. A Singular Modernity. Essay on the Ontology of the Present. London-New York: Verso, 2002, p. 12. 30 Idem, p. 13. 31 TAYLOR, 2001, p. 182. 32 BHABHA, Homi. The Location of Culture. New York: Routledge, 1992, p. 247.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 33

    the spectrum of possibilities, as growth of knowledge and of insight through unpredictable discoveries- then it cannot but be plural, local, and non-imitative.”33

    Luís Madureira, tratando dos casos específicos da modernidade da região do Caribe e do Brasil fala

    sobre modernidades periféricas ou marginais, e partindo da teoria derridiana ressalta o elemento da

    criatividade no processo da construção da modernidade nos territórios pós-coloniais. Na

    interpretação de Madureira, no caso destas modernidades periféricas, temos sempre que contar

    com um forte potencial crítico que consegue deslocar a narrativa tradicional da modernidade

    singular euro-atlântica e que é capaz de reescrever os eixos discursivos desta da perspectiva das

    epistemologias locais.34

    A teoria da transmodernidade de Enrique Dussel, por um lado encaixa-se na ordem das

    modernidades alternativas que propagam a legitimidade e a autenticidade das variantes nao

    consagradas e nao centrais do avanço socioeconômico e político-cultural, e por outro lado aposta

    naquele potencial crítico das modernidades periféricas que Madureira realça. O modelo da

    transmodernidade de Dussel é uma abordagem crítica da modernidade que nasceu duma

    perspectiva crítica e pós-colonial latino-americana, mas que se aplica para todos os territórios do Sul

    global que enfrentaram e ainda estão enfrentando a necessidade da modernização e da elaboração

    de agendas próprias quanto ao estabelecimento e cumprimento do projeto moderno. A inspiração

    latino-americana da transmodernidade é importante mas não impede o alargamento dela para

    outras regiões periféricas. No entanto o facto de que no caso da América Latina não se trata só dum

    conflito dialético entre a cultura indígena e o mundo do colonizador, mas antes de mais, de uma

    estrutura mais complexa por causa da instituição da escravatura e a forte presença das tradições

    africanas, faz desta região uma conjuntura especial para a modernidade. „Históricamente,

    encontramos que la modernidad en Latinoamérica está llena de contradicciones y, por decirlo de

    algún modo, de paradojas.”35 O objetivo de Dussel com a elaboração da transmodernidade,

    portanto, é dupla. Quer situar a América Latina – e num contexto mais vasto o Sul periférico – na

    história mundial, e ao mesmo tempo reinterpretar e reescrever radicalmente a narrativa tradicional

    desta mesma história mundial. Com essas premissas pretende-se, então, nao só a desconstrução da

    dialética e da hierarquia entre o mundo euro-atlântico, detentor de uma modernidade singular, mas

    33 CALINESCU, Matei. Modernity, Modernism, Modernization: Variations on Modern Themes. In: Symploké, vol. 1., n. 1., 1993, p. 17. 34 MADUREIRA, Luís. Cannibal Modernities. Postcoloniality and the Avant-garde in Caribbean and Brazilian Literature. Charlottesville-London: University of Virginia Press, 2005, pp. 2-5. 35 ANAYA, Mario Magallón. América Latina y la Modernidad. In: Archipélago, n. 62., 2008, p. 46.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 34

    também o questionamento das representações e narrativas do continente europeu que foram sendo

    construídas desde a modernidade, fazendo deste território não só o dominador simbólico do mundo

    inteiro, mas também um exemplo autêntico que as outras regiões devem seguir. Deste ponto de

    vista a empresa de Dussel reflete a influência das teses de Walter Benjamin sobre o conceito da

    história. Para o filósofo alemão a história não é outra coisa que a própria narrativa interpretativa do

    poder, dos fortes, dos vencedores que são capazes de construi-la e de dar-lhe sentido segundo as

    suas premissas políticas e visões ideológicas. O processo histórico é uma mera construção narrativa

    nas mãos do poder, é uma “presa”, uma certa colonização narrativa do passado. O poder tem a

    capacidade de construir uma narrativa forte e totalizante com que se apodera do passado, criando

    dele uma versão única e colonizada. “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo

    «como ele de fato foi». Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung).”36 Para

    podermos chegar ao desmantelamento da visão totalizante da história escrita pela perspectiva dos

    vencedores, Benjamin sugere escovar a história a contrapelo,37 ou seja, concentrar-se naqueles

    eventos, manifestações e sujeitos que passaram a ser excluídos da versão oficializada do processo

    histórico. O próprio Dussel afirma a forte influência do pensamento de Benjamin na elaboração dos

    seus conceitos:

    Benjamín con su «mesianismo materialista» y su interpretación de la teología como el enano oculto debajo del tablero de ajedrez del turco, al decir del propio Michel Löwy anticipando la crítica que efectuaría la teología de la liberación latinoamericana, abre nuevos debates (en los que me encuentran preparado, ya que ha sido la orientación de toda mi vida): el elfrentamiento del helenocentrismo filosófico y su desarollo, como eurocentrismo moderno

    (…).38 Além da profunda insatisfação para com a versão eurocêntrica da modernidade e da narrativa

    histórica escrita e estabelecida por ela, Dussel, como a maioria dos teóricos mencionados neste

    estudo, expressa um descontentamento profundo no que diz respeito ao paradigma pós-moderno.

    O problema de Dussel com o pós-modernismo não é só o niilismo ético, o relativismo e o

    perspectivismo radical que impossibilitam o estabelecimento de qualquer tipo de identidade ou

    posição firme mas crítica ao mesmo tempo, mas também o desaparecimento do horizonte da

    salvação. Além disso, na interpretação do filósofo argentino-mexicano, o pós-modernismo, na

    verdade, apesar da sua aparente sensibilidade para com o ex-cêntrico, continua sendo uma

    36 BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Obras escolhidas de Walter Benjamin. Lisboa:Assírio & Alvim, 2010, p. 11 37 Idem., pp. 12-13. 38 DUSSEL, Enrique. Filosofías del Sur y Descolonización. Buenos Aires: Editorial Docencia, 2014, p. 9.

  • Modernidades alternativas. Da crise do pós-modernismo até à transmodernidade de enrique Dussel, pp. 24-46

    Revista Lampejo - vol. 9 nº 1 - issn 2238-5274 35

    construção teórica fortemente eurocêntrica que não faz outra coisa de que repetir o hubris inicial e

    constitutivo da modernidade singular.

    Na verdade, a partir da problemática „pós-moderna” sobre a natureza da Modernidade – que, em última análise, é uma visão ainda europeia da Modernidade – começamos a perceber que, o que chamávamos como pós-moderno era algo diferente do que aludiam os pós-modernos nos anos 1980 (ao menos davam uma definição diferente do fenômeno da Modernidade daquela que eu havia entendido a partir dos trabalhos realizados para situar a América Latina em confronto com a cultura moderna observada a partir da periferia colonial). Por isso, sentimos a necessidade de reconstruir a partir de uma perspectiva „exterior”, ou seja, global (nao proviniciana como eram as perspectivas europeias), o conceito de „modernidade” que era – e ainda é – na