PENTAGRAMA · Enquanto vida e substância, Deus é dois. Ele-Ela, Pai-Mãe. Ele é a vida, Ela é a...

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PENTAGRAMA SUMÁRIO 2 AS ÁGUAS DO NÃO- SER 10 O JOVEM DA CICATRIZ 13 CHIDR, O VERDE 18 O SONHO DA IMORTALIDADE 24 O GRITO, A PONTE E O ESPÍRITO 27 QUANDO NÚMEROS E FIGURAS JÁ NÃO FOREM... 34 O SEGREDO DO GRANDE TAMBOR ANO 29 NÚMERO 1 FEVEREIRO 2007 Capa A deusa grega Ártemis. Detalhe dos frisos do leste do Partenon (Péricles, 447-432 a.C.) em Atenas Introdução Enquanto substância viva, Deus é um. Enquanto vida e substância, Deus é dois. Ele-Ela, Pai-Mãe. Ele é a vida, Ela é a substância. Ele, Espírito; Ela, substância eterna, natureza, substância primordial, espírito e natureza. A substância primordial não é a matéria terrestre, mas a matéria de construção cósmica, incalculavelmente mais leve. O Espírito é o agente mágico que dá movimento e crescimento a tudo que vive. O buscador perseverante descobre isso em dado momento, tanto no cosmo como no microcosmo, o homem. “Assim como é em cima, assim é embaixo.” Neste número, a revista Pentagrama oferece ao leitor algumas considerações sobre o papel do homem na eterna interação entre espírito e natureza. É algo único e extraordinário o fato de o homem que se tornou uma nova criatura poder refazer a união harmoniosa dos dois graças à nova alma que, de novo, se tornou vivente. Desse modo ele se torna aquele que testifica da trindade: o Filho, Cristo-em-nós.

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PENTAGRAMA

SUMÁRIO

2 AS ÁGUAS DO NÃO-SER

10 O JOVEM DA CICATRIZ

13 CHIDR, O VERDE

18 O SONHO DA

IMORTALIDADE

24 O GRITO, A PONTE E O

ESPÍRITO

27 QUANDO NÚMEROS E

FIGURAS JÁ NÃO FOREM...

34 O SEGREDO DO GRANDE

TAMBOR

ANO 29 NÚMERO 1FEVEREIRO 2007

Capa

A deusa grega Ártemis.

Detalhe dos frisos do leste

do Partenon (Péricles,

447-432 a.C.) em Atenas

Introdução

Enquanto substância viva, Deus é um.

Enquanto vida e substância, Deus é dois.

Ele-Ela, Pai-Mãe. Ele é a vida, Ela é a substância.

Ele, Espírito; Ela, substância eterna, natureza, substância

primordial, espírito e natureza.

A substância primordial não é a matéria terrestre,

mas a matéria de construção cósmica, incalculavelmente

mais leve. O Espírito é o agente mágico que dá

movimento e crescimento a tudo que vive. O buscador

perseverante descobre isso em dado momento, tanto no

cosmo como no microcosmo, o homem. “Assim como

é em cima, assim é embaixo.”

Neste número, a revista Pentagrama oferece ao leitor

algumas considerações sobre o papel do homem na

eterna interação entre espírito e natureza.

É algo único e extraordinário o fato de o homem que se

tornou uma nova criatura poder refazer a união harmoniosa

dos dois graças à nova alma que, de novo, se tornou vivente.

Desse modo ele se torna aquele que testifica da trindade:

o Filho, Cristo-em-nós.

o Matsya Purana, antigo texto hindu,está escrito: “Se pelo menos pudéssemoscompreender o que diz a divindade verda-deiramente! E quem não gostaria de conhe-cê-la?”1

Pelo fato de o Espírito ser incognoscível,a consciência não pode penetrá-lo nem pelointelecto nem pela razão. Os antigos rishishinduístas escolheram os mitos e as lendas afim de tornar o Espírito mais familiar aoscrentes por meio de imagens. Ainda hojeesses contos podem abrir nossa compreen-são. Suas mensagens não se dirigem aopoder intelectual, mas à intuição do coração,intuição que se torna cada vez mais impor-tante em nossos dias. A consciência dascélulas se expressa através do coração. Éplausível que o desejo original do divino sejauma “lembrança” que, por meio das célulascorporais, surja no coração sob a forma dechamado. Muitas dessas lendas podem serencontradas nos Puranas, ensinamentoshinduístas que transmitem, entre outras coi-sas, os mitos sobre a origem e o fim do

mundo, assim como prescrições rituais.Atualmente, os Puranas são tão considera-dos quanto os Vedas, e foram traduzidos dosânscrito para o inglês sob a égide daUNESCO. Eles podem também ser encon-trados em francês. Quatrocentos anos antesde Cristo já se fazia menção aos Puranas.2

Um dos mais belos desses mitos encontra-seno Matsya Purana, que trata de uma revela-ção do Espírito supremo ao sábio Markan-deya. Eis aqui um resumo.

O mito de Markandeya

No final de uma era, de um dia de Brahma,“quando a sociedade chega a uma condiçãoem que o único prestígio é a riqueza, a únicavirtude são as posses, o único laço entre ohomem e a mulher é a paixão, a única ale-gria é o amor carnal, e em que a confusãoexterior e a fé interior são atiradas no mes-mo tacho [...] então estamos no Kali Yuga.Esta é a imagem do mundo nos dias atuais.Os velhos querem parecer jovens; aos jo-

É possível vivenciar e descrever

uma revelação do Espírito?

De que forma o Espírito nos fala?

Em todas as épocas e culturas os homens

tentaram aproximar-se do Espírito, penetrá-lo,

tornar a consciência receptiva à sua luz.

2

As águas do não-ser

N

vens falta abertura; mestres, comerciantes eservidores se comprazem em enganar e seisolam na mediocridade; o desejo de coi-sas superiores desaparece, e reina o egocen-trismo”.4

Quando esses males atingem a humani-dade, já não há possibilidade de libertação, eo Universo está maduro para sua desinte-gração. A substância divina de Vishnu, adivindade suprema, absorve uma vez mais ocosmo, que se tornou um caos estéril:homens, animais, plantas, Universo, siste-mas solares, planetas. Ele dissolve o conjun-to de criaturas, das entidades divinas aosseres viventes e até as pedras: tudo funde emseu ser soberano. O excesso de calor e oexcesso de água se alternam; o que outroranutria agora destrói.

Vishnu cega o sol e todas as criaturas. A

terra se resseca, as águas terrestres desapare-cem, assim como as águas divinas.

Vishnu se transforma em vento. Ele privado ar vivificante o conjunto de criaturas.

Vishnu se transforma em fogo. Ele acendeum gigantesco incêndio mundial.

Vishnu se transforma em nuvens. Umachuva que cai pura e doce como o leiteextingue o incêndio.

E os mundos se dissolvem no Nirvana, aTerra retorna ao oceano original, os elemen-tos se fundem numa massa fluida, indivisí-vel. A lua e as estrelas se apagam. Nada maisresta que o oceano primordial infinito.

Vishnu adormece. Sozinho, solitário, eleforma um imenso leito sobre o oceano pri-mordial, metade imerso, metade flutuandosobre as ondas, ele, só, meio adormecido,desprovido de todo o conhecimento.

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À esquerda: Os sete chacras numa ilustração do Sul da Índia.

Acima: Reprodução contemporânea do nascimento

de Markandeya 3

Vishnu sonha. Ele sonha com o Universocomo ele deveria ser. O seio da divindadeencerra o embrião de seu filho, o cosmo,que segue de modo harmonioso as vias se-gundo as quais ele se manifestará em segui-da. E, no sonho, um santo homem vagueiasobre a terra ideal, um peregrino que con-templa, pleno de alegria, o mundo divino. Osanto homem tem milhares de anos. Seunome é Markandeya. Ele é grande, forte,sábio, e visita os lugares santos, as fontes eoutros locais; ele observa os seres que, porsuas ações, dão provas de que amam a Deus.Markandeya está perfeitamente unido aomundo em que a divindade sonha no seio desi mesma.

Porém um milagre acontece: enquanto adivindade dorme com sua boca aberta noprofundo silêncio da noite, repentinamente,o velho sábio, em seu caminhar, escorrega daboca do deus que sonha, e cai no oceano.

De início, Markandeya não vê mesmo odeus que dorme. Ele flutua sobre o oceanonoturno e, desencorajado, se pergunta:“Será que estou sonhando? Será imagina-ção? Estou louco? Onde estão o sol, a lua eas estrelas? Foram extintos? Este mundo jánão vale a pena! Aqui não há vento. Ondeestá a terra? Onde estou?” Cada vez maisdesesperado, Markandeya luta para perma-necer vivo, mas de repente percebe o corpoimenso da divindade que dorme. Ele acredi-

Gravura colorida do pagode de Conjeveram, em

“Journal of a Voyage in 1811 and 1812 to Madras and

China”, de James Wathen, 1814.

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“Após ter atravessado os sete círculos de luz divina, ele entra no imenso firmamento sem

limites, sem fim, e o percorre a nado, ou antes, flutuando, pois ele não produz nenhuma

onda suscetível de freá-lo. E alcança em paz o que lhe parece ser o centro do último

círculo. Ele não vai além, pois este é o último limite das possibilidades humanas... a harmonia

com o verdadeiro estado de ser.”

Ram Chandra.9

Gravura colorida do pagode de Conjeveram, em

“Journal of a Voyage in 1811 and 1812 to Madras and

China”, de James Wathen, 1814.

ta tratar-se de uma cadeia de montanhas quese elevam da água. “Sim, eu a vejo cada vezmelhor, esta montanha emite uma luz bri-lhante, maravilhosa!” O santo nada em dire-ção da montanha para melhor contemplá-la,e, em seguida, uma mão gigantesca o agarrae o leva à boca do deus, que o engole.

Por não lhe restar mais nada a fazer, Mar-kandeya continua seu caminho e neleobserva os exercícios sagrados dos iogues edos ascetas, rejubila com a sabedoria dosbrâmanes, surpreende-se com a sabedoriada arte de governar dos reis e penetra cadavez mais no mundo do sonho divino. Du-rante centenas de anos ele cruza o mundotal como ele deveria ser e com o qual a

divindade sonha.Contudo, eis que um dia ele cai novamen-

te da boca do deus num mar negro comotinta. Num imenso e terrível silêncio, ele flu-tua ao acaso até o momento em que percebeuma ilha. Ali, sob uma figueira, uma criançaestá adormecida. Mas que criança! Dela, deseu ser mais profundo, emana uma radiação.Em sua admiração, Markandeya esquece denadar e quase se afoga nas ondas negras.Então, ele começa a nadar mais rápido, semdeixar de examinar a ilha, e vê que a criançaradiante brinca livre, espontânea, no meiodo espaço terrificante, imenso, infinito. Umbrilho sobrenatural irradia dela.

O ancião a observa timidamente enquan-

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O cisne sublime não conhece frio nem calor, nem dor nem prazer, nem honra nem desonra. Ele

ultrapassou as seis ondas – fome, sede, pesar, ilusão, declínio e morte – ao renunciar à crítica, ao orgu-

lho, ao ciúme, à cólera, à cupidez, à exaltação, à inveja e ao egoísmo. Uma vez que o declínio do corpo

provoca dúvida e falta de inteligência, ele considera seu corpo inanimado, estado esse que se torna,

então, o seu.“Eu sou a consciência pacífica, simples, imutável, o Espírito [...] Graças ao conhecimento

da ligação do Espírito e do eu superior, o Espírito faz suas diferenças desaparecer. É aqui que desponta

a aurora da verdadeira Gnosis” (Paramahamsa Upanishad).10

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to abre caminho através da água. “Eu já viesta cena... mas onde? Quando?” De repen-te, ele se dá conta da profundidade insondá-vel do oceano, e o pânico o invade, porémele ouve uma voz ribombar como um tro-vão à distância: “Bem-vindo, Markandeya!”É a criança que lhe fala: “Não temas, apro-xima-te, meu filho!”

Desde que nasceu, jamais alguém se diri-gira a ele chamando-o diretamente por seuprenome. Que falta de respeito! Markandeyase esquece de nadar mais uma vez, e, quan-do já estava quase se afogando, prossegue,irritado: “Quem me falta assim com o res-peito? Quem acha que pode ter tal intimi-dade comigo, eu, que tenho mais de milanos? Não estou acostumado a ser tratadoassim. Mesmo os mais elevados deuses merespeitam e me chamam ‘o ser de vida lon-ga’. Quem arrisca a vida e procura a morte

À esquerda: Índia moderna, escultura em madeira do salvamento

de Markandeya por Shiva.

À direita: Visita de um rajá a uma ermida do “Madhandeya Purana”,

Escola Guler Pahari, 1756. Guaxe e tinta sobre papel,

Victoria & Albert Museum, Londres, Inglaterra.

Diz-se que Markandeya foi o último sobrevivente dos sábios, ao final de um “Dia de Brahma” anterior ao

nosso, quando tudo mergulhou no não-ser. Ele estudou os Vedas e observou atentamente suas regras. Foi

um homem bom que permaneceu celibatário toda sua vida. Serviu à Divindade suprema durante milhões

de anos, saindo-se, assim, vitorioso sobre a morte, ao contrário dos outros. São suas estas palavras:

“O homem é o artesão de seu próprio destino. Comprova-se que os atos praticados em vidas anteriores

têm suas conseqüências na vida atual.A alma renasce carregada de carma.A virtude e as ações puras lhe

permitem alcançar o estado celeste. Contudo, em razão da ação do bem e do mal, ele permanece humano

[...] Eis por que é preciso praticar a virtude e renunciar ao que não é correto”.

O Markandeya Purana, a parte do Mahabarata atribuída a Markandeya, relata como a deusa Chandi (força e

poder) aniquila os demônios Shumba (o orgulho) e Nishumba (confusão). Chandi penetra o cosmo inteiro,

ela é a guardiã e protetora do darma, a ordem cósmica. Por sua “força e poder” ela aniquila a negação e o

desregramento, e restabelece o equilíbrio indispensável para se chegar à perfeição. Alternadamente, ela

cria, mantém e destrói. Quando as relações cósmicas são ameaçadas, ela se manifesta sob diversas formas

para proteger o Universo. Extraído de Georg Feuerstein: Yogaleheren. East West Publ. 2000.

chamando-me desse modo?”A criança divina conserva sua calma e

diz: “Meu filho, sou teu pai, teu avô, todosos teus ancestrais, a origem que dirige todaa vida. Vem até mim. Conheci bem o teupai e há muito tempo dei-lhe um filho deforça vital inesgotável. Teu pai conhecia ofundamento secreto da existência, delesaíste, e por isso tens o poder de me verrepousando sobre o grande oceano e brin-cando como uma criancinha debaixo destaárvore”.

Então os olhos de Markandeya se abremà semelhança de flores que desabrocham.Ele parece querer inclinar-se enquanto con-tinua a nadar: “Senhor do Universo, comque nome és chamado?”

“Eu sou o começo, o primeiro ser, a fontede tudo. Eu sou o fogo sagrado, os ciclos dotempo, o malabarista do mundo, o mago deestratagemas maravilhosos. O desdobra-mento do Universo é minha criação. E eusou o fim, a forte corrente, o turbilhão des-truidor que aspira finalmente tudo o que semanifestou. Neste caso meu nome é: morte

do Universo”.Em seguida, a criança recomeça: “Eu sou

a sagrada ordem, a luz do céu, do vento e daterra, o espaço que se estende em todas asdireções. Eu sou o ser da origem e o últimorecurso. De mim provém o que foi, o que ée o que será. Eu vivo em tudo o que vês noUniverso. Eu vejo além das metas da vidahumana: a satisfação dos sentidos, o esforçopor prosperidade e cumprimento dos deve-res sagrados, mas considero-os metas apro-priadas para a existência terrestre. Continuaalegremente a percorrer o Universo em meucorpo. Nele se encontram os deuses e ossantos profetas”. E, num movimento rápi-do, o Ser da origem faz novamente o santodeslizar em sua boca e o engole.

Desta vez, o coração de Markandeya estátão pleno de beatitude que ele pára de lutare busca por um abrigo secreto. Ali, ele per-manece em silêncio e é penetrado pelo cantodos imortais gansos selvagens, que a princí-pio é difícil de ser ouvido, detectado, masque é penetrante melodia da inspiração eexpiração divinas. E Markandeya ouve o

7

alento da divindade: “Eu me revisto de mui-tas formas... e quando o sol e as estrelas tive-rem desaparecido, eu nadarei lentamentesobre as águas vertidas até o infinito... Eusou o Senhor... Eu gero o Universo e vivono ciclo dos tempos até que os desintegro”.5

Vishnu

Na tradição hindu, Vishnu é o mantene-dor do Universo. “Trata-se do deus que fazemanar de si os mundos com todas as suasentidades, e que aí perpetua a vida por umcerto tempo até sua desintegração”.6

Esse deus se manifesta a Markandeya demaneira especial. De início, o santo vagueiano sonho da divindade. Ele está no Espíritodivino, mas seu estado se assemelha aosono: ele não tem consciência de si mesmo.Ele mergulha completamente no sonho dodeus, está completamente familiarizadocom ele e segue seu caminho da justa manei-ra. Entretanto, essa condição não pode per-durar. A boca do deus é o símbolo de seuórgão criador: o deus fala e isso “é”. Nalenda, Markandeya cai da boca de Vishnupara dentro das grandes águas – o mar dasubstância primordial.

O caminho da consciência

Então, Markandeya, virgem, emborainconsciente, deve, portanto, encarnar nasubstância a fim de adquirir consciência.Essa criatura não encarnada no Espírito nãomanifestado (o sonho de Vishnu) é vomita-da, poder-se-ia dizer, no oceano do “não-ser” espiritual. Essa primeira experiênciaestimula a consciência latente de Markande-ya. Ele é tomado de angústia e perturbaçãoe aflige-se desesperadamente na água negra.Ele se sente separado do divino e percebe operigo do oceano cósmico. Embora se apro-xime do deus, ele não vê senão uma monta-nha gigantesca que tudo domina. Mas, sema compreensão justa, eis que novamente éabsorvido por Vishnu, e mais uma vez par-

tilha o sonho com ele. Contudo, essa pri-meira experiência nas águas da substânciaprimordial é o germe de sua consciênciaulterior e a possibilidade de sua lembrançade uma outra realidade.

A criança radiante

Quando, éons mais tarde, Markandeyacai novamente da boca de Vishnu, ele nãoluta, ele nada. E quando vê a radiante crian-ça divina, vem-lhe a lembrança da luz doEspírito. É após essa segunda experiênciaque Markandeya começa a compreender asituação, enquanto percebe a profundidadedo oceano original. Ele se torna conscientede si mesmo! Quando a criança lhe dirige apalavra, ele fica descontente, pois acha quejá compreendeu muitas coisas, ao passo quea criança o trata... como uma criança! Mar-kandeya é diretamente interpelado por Vis-hnu, o Espírito universal que se apresentasob a forma de criança divina. No entantoele o ouve, e, nesse instante, sua visão inte-rior se abre. Doravante, ele se encontraamadurecido para entender “a palavra”, amanifestação do Espírito, e torna-se silen-cioso.

“O Universo em movimento move-se emmim, que jamais me movo. No fim de umciclo, a criatura se dissolve em minha subs-tância primordial, e, então, a natureza entraem repouso”.7

A união com o Espírito

Markandeya entra, então, no mundodivino. Ele permanece no sonho da divinda-de, silencioso, num lugar secreto e protegi-do do mundo, assim como deve ser. Porfim, ele ouve o chamado do ganso selvagem,o alento de tudo o que existe. Ele progrediude tal maneira que pode ouvir incessante-mente esse chamado. Em muitos países oganso e o cisne selvagens são símbolos bas-tante conhecidos que representam o Espíri-to que penetra todos os mundos e inspiram

8

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os sábios que se tornaram conscientes. Pelofato de Markandeya ouvir o chamado e sen-tir o alento de tudo o que existe, ele se tornaconsciente de si mesmo e do Espírito, e logosua fusão com Vishnu se torna perfeita.

“Em Vishnu penetram aqueles cuja cons-ciência rejeita todo pecado, e, após teremnele ingressado, já não reencarnam”.8

FONTES

1 Hohenberger, A., Die Indische Flutsage und dasMatsyapurana, 1930, Leipzig.

2 Id.3 Zimmer, H. Mitos e Símbolos na Arte e Civilização

da Índia. São Paulo: Palas Athena, 19894 Id.5 Ibid. 6 Springmann, T. , Bhagavad Gita, Der Gesang des

Erhabenen, Gelnhausen, 1962. 7 Ibid.8 A. Hohenberger, ibid.9 Schleberger, E. Die Indische Götterwelt.

Munique: 1986.10 A. Hohenberger, ibid.

Veda significa, literalmente,“conhecimento divino”. Há quatro Vedas: o Rigveda, o Ajurveda, o Samaveda e o

Atharvaveda. Eles são compostos de uma parte externa e de uma parte interna. A primeira, karma-kanda,

“a parte das obras”, a segunda, inana-kanda,“a parte da sabedoria”. Os Vedas são obra de numerosos autores,

mas supõe-se que foram reunidos e ordenados em sua forma atual por Vedavyasa, suposto filho de um rishi.

A origem dos Vedas é bastante antiga e remonta a milhões de anos antes da civilização ocidental.

Os pandits (sábios) asseguram que eles foram transmitidos oralmente durante todo esse tempo e que

Vedavyasa finalmente os agrupou para formar um ensinamento enquanto se encontrava às margens do lago

sagrado de Manasasarovara, atrás do Himalaia, no atual Tibete.

Krishna dançando sobre a serpente Kaliya, que ele vencera.

Escultura em bronze do século 19, Índia.

10

ssim começa um conto dos índiosPés-negros de Montana (EstadosUnidos da América) e de Alberta, noCanadá.

Os mais valorosos jovens queriamdesposar a donzela, mas ela recusavatodos os pedidos de casamento.Quando por fim seus pais decidiramcasá-la, ela confiou-lhes seu segredo:

“É preciso que agora eu vos diga averdade. O sol me disse: Não casescom nenhum desses homens, pois tume pertences. Se confiares em mim,

viverás por muito tempo e serás sem-pre feliz”.

Os jovens da cidade não paravamde aborrecer um deles, um jovemrapaz pobre e desfigurado por umafeia cicatriz. Eles o ridicularizavam eo provocavam, obrigando-o a pedir amão da donzela. Por fim, ele acabaaceitando o desafio, mas sem nenhu-ma esperança. Para seu grande espan-to, ela não o recusa prontamente, maslhe diz: “Vai até o Espírito do sol ediz-lhe que tu queres me desposar.Diz-lhe para fazer desaparecer tuacicatriz; esse será o sinal de sua apro-vação”.

O Espírito do sol, a pura donzela eo infeliz desfigurado representam aunião do espírito, da alma e do corponuma nova vida. Todo ser humano,caso queira obter esse tesouro, deveseguir a voz da alma e seguir o cami-nho do Espírito. Neste conto apare-cem numerosos símbolos que expli-cam a verdadeira evolução do homem.

Sem muito ardor, o jovem se enga-ja na difícil via da renúncia à vida quelevava até então. Ele interroga o lobo,o urso e o texugo, mas é o bicho pre-guiça que lhe indica onde fica a mar-gem da extensão de água que ele deveatravessar. Ele chega ali, no outro ladodo mundo, completamente exausto: aágua parece estender-se ao infinito, jánão há víveres e seus mocassins estãofurados. Ele sente enjôo e diz que nãopode atravessar o imenso rio, que jánão tem força para retornar à sua terrae que logo irá morrer sobre essa mar-gem.

O jo

vem d

a c

ica

triz e a

do

nzela

“Nos tempos antigos, não existia

a guerra.A paz reinava entre

os povos. Havia um homem

que tinha uma filha muito bela.”

À esquerda:Wladimir Stenberg, Composição colorida

número 4, óleo sobre tela, 1920.

À direita: Pawel Kusnezow, Uvas vermelhas, óleo sobre

tela, 1930-1931. Kusnezow foi presidente da

Comunidade das Quatro Artes instituída em Moscou

e em São Petersburgo em 1925.

A

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12

Mas, não; o conto continua relatan-do como o auxílio vem até ele “dooutro lado”, na forma de dois cisnesque vêm em sua direção e o tomam eatravessam a água cintilante. Não é olobo cheio de coragem, nem o ursocheio de força, nem o texugo que oajudam, mas a preguiça. Este animal,que dorme catorze horas por dia epassa o resto do tempo penduradonum galho de árvore quase sem semexer, nunca é agressivo e jamaisataca. Para os índios, ele é o símboloda paz. Aqui, ele simboliza o estadode ser necessário para chegar à outramargem. O homem isolado, despro-vido de força espiritual da Luz, éincapaz de atravessar o abismo funda-mental que representa essa grandeextensão de água, mas o homem equi-librado, cioso de suas palavras e queage em silêncio recebe o auxílio. E oque acontece na margem oposta émuito surpreendente. O infeliz desfi-gurado descobre uma armadura mag-nífica, porém não a toca. Ela pertencea Estrela da Manhã, o último filho doEspírito do Sol. Este confia no rapaze o apresenta a seu pai, o Espírito doSol, e a sua mãe, Luz Vermelha daNoite. No dia seguinte, Estrela daManhã ataca, imprudentemente, osperigosos pássaros da morte, quevivem próximo do grande rio e que jáhaviam matado sua mãe e seusirmãos, os filhos do Espírito do Sol.O jovem da cicatriz reconhece o peri-go e mata os pássaros com sua lança.Após essa proeza, ele recebe autoriza-ção para desposar a donzela.

“Retorna à tua casa”, diz-lhe oEspírito do Sol, “escuta-me, sê intré-pido, eu sou o único mestre, tudo mepertence. Sou eu que concedo o alen-to de vida, fui eu que criei a terra, asmontanhas, os prados, os rios e as flo-restas. Eu criei os homens e todos osanimais”.

Como um sinal para a donzela,apaga a cicatriz do rosto do rapaz e oensina a construir uma cabana ondeele exerceria a arte da cura. Carregadode presentes, ele retorna, através daVia Láctea, para sua aldeia. Emboravestindo roupas estranhas, e já nãoapresentando a cicatriz, ele é reconhe-cido e recebido alegremente peloshabitantes. Ele se casa com a donzelae, em ligação com o Espírito do Sol,eles constroem a primeira cabana naterra com a finalidade de praticar aarte médica.

O fim da narrativa transmite amensagem: o ser humano unido aoGrande Alento, ao Espírito, obtém opoder de auxiliar os outros. Ele cons-trói um campo de força pleno de sere-nidade no qual todos os que alcançama compreensão e aspiram consciente-mente ao grande poder salvadorobtêm a purificação e a cura.

a narrativa de Sohravardi, quando a al-ma buscadora indaga ao sábio como se des-fazer da “cota de malha da matéria”, comose desembaraçar dos laços da natureza ter-restre, ele lhe responde: “Torna-te seme-lhante a Chidr”

“Torna-te semelhante a Chidr”

A alma percebe que a libertação dessaarmadura de ferro é algo doloroso. Cons-ternada, ela faz a seguinte pergunta:

– Mestre, o que é preciso fazer para aliviaressa miséria?

E o mestre responde:– Vai à fonte da Vida, verte essa água

sobre tua cabeça até que a cota de malhapossa facilmente cair, protegendo-te aindados golpes de espada, pois essa água afina asmalhas de modo que os golpes se tornammenos duros de suportar.

– Mestre, onde se encontra a fonte daVida?

– Nos lugares escuros. Se tu queres alichegar, calça os sapatos corretos e toma ocaminho da esperança, até que chegues aoslugares escuros.

– De que lado começa o caminho?– Não importa onde. Se o segues verda-

deiramente, alcançarás teu objetivo.– O que é que caracteriza esses lugares

escuros?– Tu te encontras neles sem o saberes.

Quem quer que encete o caminho vê-se naescuridão, na qual já se encontrava, e perce-be que jamais viu a luz.

Esse é o primeiro passo do peregrino. Apartir daí é possível avançar. Uma vez alcan-çado esse ponto, ele pode prosseguir.

– Nosso destino é começar por aí?– Quem deseja encontrar a fonte da Vida

vagueia desesperadamente na escuridão.Mas, no momento em que se torna digno,vê a luz.

Quem descobre a fonte da Vida e nela selava torna-se semelhante a Chidr.

13

N

Chidr, o Verde

O encontro do homem com o Espírito

Quando o homem sintoniza sua vida

com o divino novamente desperto

dentro dele, após um período de

preparação se desenvolve uma nova

consciência, ligada ao Espírito divino.

Essa bem-aventurada experiência é a

da personagem chamada Chidr nos

ensinamentos islâmicos.

14

Sohravardi menciona muito concisamen-te esse personagem misterioso associado àfonte da Vida tanto na tradição popularortodoxa do Islã como no sufismo. A ele éatribuída toda uma gama de qualificaçõesque vão desde curador miraculoso até Serespiritual supremo, e os muçulmanos oveneram em numerosos santuários onde eleé reputado como portador de felicidade.

O encontro com Chidr

Numerosos textos sufis descrevem oencontro com Chidr. Essa é uma experiên-cia marcante que transforma completamen-te a vida e que freqüentemente gera umgrande desgosto pelas coisas destemundo. Contudo, no que dizrespeito a certos sufis, essaexperiência essencial nãoparece modificar muitosua vida exterior. Há osque fazem de Chidrseu irmão, outros oconsideram seu paiespiritual, e há os que ovêem na forma de umhomem que os guia nocaminho.

Seria possível igualmenteconsiderá-lo um ser espiritualmicrocósmico que acende a chama danova consciência. No plano cósmico, ele éo guia espiritual da humanidade. Nessepapel de guia interior, a tradição islâmica oapresenta como o servidor anônimo deDeus que guia Moisés. Segundo o Corão,Moisés deve passar por três tentações, eesse servidor que possui a sabedoria divinao adverte: “Tu não poderás ficar comigoaté o fim. Como poderias suportar certascoisas se não as compreendes?” (Surata18:65-82)

Ele leva Moisés consigo com a condiçãode que ele não faça nenhuma pergunta arespeito de suas ações. Como é evidente,ocorrem três coisas que levam Moisés a

achar a maneira de agir de seu guia tãofalsa e repreensível que ele não conseguemanter sua palavra e acaba interrogando-o. Moisés, o homem da lei, não consegueexplicar esses incidentes, falta-lhe ainda apercepção interior, pois ele os interpretasegundo a lógica, a moral e os critérioscomuns. Em seguimento a essa passagemdo Corão, o sufismo faz uma distinção en-tre o “conhecimento chídrico” e o “conhe-cimento mosaico”. Moisés representaria,neste caso, o “imame dos homens exterio-res” e Chidr seria o possuidor do verda-deiro conhecimento, a gnosis (Ma´rifa emárabe). Chidr é “o senhor dos mistérios”:“Sabe que Chidr é o reflexo do nome

secreto de Deus e que seu lugar é odo Espírito”, declara o sufi

persa Abd ar-Razzaq.

Chidr e o conhecimento

Para o sufismo, o co-nhecimento especial en-carnado por Chidr, oconhecimento divino, é

o saber “proveniente deDeus” ou “na presença de

Deus”, descrito na 18ª sura-ta. O grande mestre Ibn al-

Arabi afirma numa carta:“Sabe, ó irmão, que, para nós, o conhe-

cimento somente é perfeito quando vemdiretamente de Deus, sem passar pelamediação da tradição ou de um xeique.

Quem se ocupa apenas do que diz a tra-dição em todos os seus detalhes deixaráescapar a felicidade de seu Senhor. A pes-soa que passa sua vida a perscrutar as tradi-ções de maneira científica não encontrará averdade. E se, ó irmão, tu segues o cami-nho acompanhado dos guias divinos, che-garás à contemplação de Deus e de Deusreceberás o conhecimento de todas as coi-sas mediante justa inspiração, como o ensi-na Chidr, e isso sem nenhum esforço, nemdor, nem insônia.”

Chidr e Alexandre, o Grande

Nem sempre Chidr representa o guiaespiritual, mas com freqüência ele tambémrepresenta o próprio buscador. No decorrerdos tempos, os autores muçulmanos liga-ram-no às várias tradições antigas com ofito de mostrar a evolução que o faz tornar-se o “servidor imortal de Deus”. Um mitobastante divulgado nas culturas grega e si-ríaca, conta que Alexandre, o Grande, bus-cava a fonte da Vida. No século X, porexemplo, o teólogo Ibn Baboye relata oseguinte:

“Escreveu-se que ele era a fonte da Vida,e que os que bebessem dessa fonte não mor-reriam até que ouvissem o chamado paradespertar, no dia da ressurreição. Quando,então, Alexandre partiu para sua busca, che-gou a um local onde havia trezentas e ses-senta fontes. Chidr era responsável pelocomando e Alexandre era, entre todos, omais amado. Ele deu a Chidr e também acada um de seus companheiros um peixesalgado, dizendo: ‘Mergulhai vosso peixenuma fonte, não importa em qual delas’.Chidr dirigiu-se para uma das fontes e mer-gulhou seu peixe, e eis que este reviveu efugiu”. Ao ver isso, Chidr soube que haviaencontrado a fonte da água da Vida.”

Para os últimos autores sufis, a fonte daVida é, sobretudo, a fonte da compreensão,e “esta se encontra oculta em vossa casa”,dizem eles. Ali al Qari, indiretamente, liga oconhecimento à luz: “É dito: a água da Vidaevoca o conhecimento, e a escuridão, a ig-norância”. Para ele, assim como para Sohra-vardi, a fonte da Vida guardada por “Chidr,o tempo” encontra-se nas trevas, e quemnela se banha ou dela bebe se eleva na luzeterna.

Chidr, o Verde

A íntima relação entre Chidr e a fonte daVida explica igualmente o seu nome, quesignifica “verde”, em árabe. Dizem que toda

vez que Chidr toca a terra, os campos e asflores, tudo desabrocha. Esta é uma idéiabastante profunda, pois a cor verde repre-senta um papel importante no islamismo eno sufismo. Em certos textos, os diferentesestágios do desenvolvimento da consciênciae da alquimia são comparados às cores.Aqui, os ensinamentos do sufismo ligados àalquimia comparam-se aos ensinamentosdo persa Nadjm ad-Din al Kubra, do sécu-lo XII. Nadjm afirma claramente, no iníciode sua obra: “Nosso método é alquímico.Odores deliciosos da amizade e da manifes-tação da sublimidade”.

Para ele, a cor verde é a cor da “força vital do coração”. Essa cor é a última quesubsiste; dela emanam as irradiações cintilantes banhadas de um clarão radiante.Embora às vezes turva, essa cor pode serperfeitamente límpida. Sua turvação indicaum retorno à escuridão da natureza,enquanto sua pureza traduz a soberania daLuz divina. No século XI, o persa Simnanilevantou a hipótese de que o homem possuisete órgãos sutis (os sete centros energéticosou chacras), e a cada um deles ele deu onome de um profeta. Assim ele explica oCorão de forma penetrante: não se trata depersonagens históricos, mas sim de símbo-los que mostram o crescimento da alma. Osétimo órgão sutil (latifa) é “Maomé em teuser”.

Esses sete centros de força interior dãonascimento a um novo organismo, e as luzesde cores diferentes que circundam os órgãossutis nos dão a conhecer os estágios dedesenvolvimento.

O verde é a cor do sétimo órgão. Essesimbolismo sugere que Chidr, o Verde, estáassociado ao crescimento do novo corpo-alma. E é somente em um corpo-alma sufi-cientemente sutil que o Espírito pode mani-festar-se e unir-se à alma.

Chidr e o Reino do Norte

Na obra cosmológica de Abd al-Karim al

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16

As lendas e poemas sobre Chidr foram tão numero-

sos e propagados durante tantos séculos que acaba-

ram chegando depressa ao Ocidente. Goethe não é,

nem de longe, o primeiro autor a fazer alusão a

Chidr quando escreve em West-östlicher Diwan (O

Diwan ocidental-oriental):

“Norte, Oeste e Sul se estilhaçam,

Tronos se fendem, reinos estremecem;

Foge agora para o puro Oriente,

A fim de experimentar o ar dos patriarcas;

Entre amores, bebidas e cânticos,

A fonte de Chidr (em ti) rejuvenescerá.”

Gustav Meyrink retomou o personagem de Chidr

em seu livro A face verde, e nele faz referência ao sig-

nificado da palavra árabe “chidr”, que significa

“verde”.

Dschili (morto em 1428) Chidr é um serespiritual do Universo que, segundo ele,compreende sete esferas celestes e sete terrasconcêntricas, das quais a melhor é a terradas almas. Deus a criara mais branca que oleite e mais doce que o almíscar, mas quan-do Adão nela ingressou após sua queda, elatomou a cor da matéria. Contudo, no extre-mo norte existe ainda um lugar onde jamaispenetrou um pecador e que permaneceu tãobranco como na origem. Essa é a morada“dos homens do Mistério”, cujo rei é Chidr.

Todos esses exemplos mostram que ocaminho que conduz ao reino de Chidrcomeça na escuridão do mundo da matéria,na fonte de Vida onde a natureza e o Espíri-to se encontram. A água da Vida conferecompreensão e conhecimento divinos. Ohomem se eleva nesse conhecimento e coma nova consciência ele se “torna semelhantea Chidr”. A partir desse momento, ele per-manece no mundo da Luz, embora aindaviva na escuridão, a fim de indicar o cami-nho a todos os que buscam Chidr, até quetambém eles o encontrem interiormente.

FONTES

Corbin, H. En Islam Iranien: Aspects Spirituels etphilosophiques, (4 Vols). Gallimard, 1971-1973.Corbin, H. L’Archange empourpré de Sohravardi,Franke, P. Begegnung mit Khidr, Stuttgart: FrankSteiner, 2000.Quinze tratados e relatos místicos. França: Fayard,1976.

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À esquerda: Jardim idílico (o paraíso), de um manuscrito

francês do século 15.

essa época será difícil distinguir entre ohomem e esse tipo de aparelho: os compu-tadores terão emoções e desejos humanos,formularão desejos e objetivos. Chegare-mos a isso mediante a troca de elétrons dosácidos nucléicos e da impressão de reprodu-ções de modelos de pensamentos sobre osprocessadores de silício. Será que a humani-dade vai ser a primeira espécie neste planetaa se transformar por meio de suas própriasdescobertas?

Segundo Kurzweil “os aparelhos darãoprova de possuir uma consciência e teremos

de cooperar com eles, caso contrário seucérebro perderá a razão. A evolução da inte-ligência se tornará um caso de upload edownload. Os computadores inteligentesnão se oporão ao homem nem o farão desa-parecer, porém se fundirão com ele”.

No início da era de Aquário se tem a im-pressão de que o ser humano e a naturezaquerem engajar-se num processo de mudan-ça profunda, partindo da materialidade parauma desmaterialização de um tipo ou de

outro. A consciência vê surgir no horizon-te grandes possibilidades e imagina poderlibertar-se do aprisionamento à matéria des-te mundo. Desmaterialização como fugapara a liberdade digital?

O bem-aventurado caminho de retorno

O caminho da verdadeira desmaterializa-ção começa pela purificação do coração.Que é o coração? Que tipo de processosacontecem dentro dele? São passivos, dirigi-

dos por nossos impulsos e orientados paraas coisas banais, ou são um processo deconscientização que nos faz compreenderque o princípio superior em nós pertence auma grande cadeia de vida, ligado a tudo oque partilha a mesma vida? Dificilmente te-mos consciência da riqueza latente que pos-suímos. Nossa visão muda quando sabemosque nossa vida está estreitamente ligada à denosso próximo. Nossa visão, por assimdizer, se aprofunda. Começamos a perceber

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N

O sonho da imortalidade

O espírito humano e os futuros nano-robôs1 da tecnologia genética poderão

cooperar de modo perfeito: pelo menos é nisso que as últimas pesquisas

acreditam. Elas permitiriam criar um “aparelho neuronal” por meio de uma

combinação de microprocessadores e estruturas biológicas.“Dentro de apro-

ximadamente trinta anos será possível reproduzir completamente o cérebro

por meio de um aparelho neuronal”, afirma o cientista Ray Kurzweil.

Dificilmente temos consciência da riqueza latente que possuímos

as dificuldades dos outros e de onde pro-vêm suas paixões; passamos a compreendero sofrimento que acompanha toda a vida.Desse modo, a expansão do raio de ação docoração – que é a conseqüência dessa com-preensão – gera um novo poder mentalincapaz de conceber qualquer coisa que sejacontra a verdadeira vida. Esse poder forma-rá a base sólida de uma nova atividade davontade e do comportamento! Ora, essecaminho de impulsos puros e verdadeiros

do coração leva à experiência e à consciên-cia. A experiência mostra o lugar que ocu-pamos em nosso meio ambiente e nossopapel na sociedade. Da experiência advém oconhecimento e o autodomínio. De início,ela nos mostra nossa quase impotência, oque, de modo natural, nos torna humildes,até que por fim compreendemos que o au-todomínio é, antes de tudo, uma autodoa-ção. Isso parece simples e fácil e, ao mesmotempo, sutil e difícil. Ora, a autodoação des-

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Fotografia aérea de areia e água de Karel Tommei.

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perta uma nova capacidade que é indissociá-vel de nós mesmos: percebemos que pode-mos fazer muita coisa. Ligados à cadeia deseres e munidos de novo entusiasmo, passa-mos a exibir um poder de ação bastantedinâmico.

Isso significa, igualmente, o retorno ao nos-so ponto de partida, ao axioma hermético“assim como é em cima, assim é embaixo”,pois os resultados das ações puras se fazemsentir no cosmo, no macrocosmo e em todoo Universo, isto é, desde embaixo até emcima!

Esboçamos aqui, em poucas palavras, overdadeiro caminho a seguir: o único desen-volvimento justificado da humanidade quepodemos conceber e que confere uma felici-dade perfeita. Porque, quando o esforço e aação coincidem, existe unidade entre cora-ção, cabeça e comportamento. Como umacriança que se alegra com uma nova ativida-

de, o ser humano que dispõe dos novos as-pectos da consciência do coração e do cérebrosente um profundo bem-estar, ao mesmotempo que mergulha no êxtase e na paz, es-tado este que ocasiona a cura e a boa saúde.

Esse é exatamente o princípio centralbuscado pela rosa-do-coração: o perfeitodesabrochar do ser humano. Nesse caso, épossível receber muita ajuda e inspiração deuma escola espiritual. E cada um de seusmembros se esforça diariamente para darum passo nessa direção.

Desmaterialização negativa

Contudo, sejamos realistas. O ser huma-no não pode sempre reagir de modo positi-vo a todos os impulsos da força de Aquário,pois geralmente ele não reconhece essedesenvolvimento, pois não sabe quais sãosuas exigências. Ele acredita que sua perso-

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nalidade mortal deverá tornar-se imortal, ouentão que seu eu mortal e seu corpo físicoque vivem artificialmente deverão sobrevi-ver infinitamente neste mundo. Esta é aidéia que fatalmente leva ao erro e ao mauuso das possibilidades que Aquário irradia.

Pode-se considerar que o desenvolvi-mento do “virtual” resulta da atividade deAquário, e que isso terá grande repercussãono mundo do trabalho e da própria vida nassociedades ocidentais. Grande parte dascomunicações que anteriormente aconte-ciam por meio do contato pessoal ou porescrito acontece agora por via eletrônica.Essa é uma característica da atividade deAquário. As crianças e os jovens estão cres-cendo neste mundo virtual. No entanto,essa área apresenta excessos que são preju-diciais e acarretam um alto percentual deproblemas mentais.

Pela aliança da medicina com a micro-

tecnologia e a nanotecnologia aparecemnovas técnicas virtuais. Como dissemos noinício deste artigo, hoje é possível implantarmicroprocessadores no cérebro, no coraçãoe em outros órgãos. Em alguns anos, haveráno corpo humano milhões de “nano-robôs”que, como guardiões da saúde, farão suasrondas nas artérias, nas veias, e mesmo nosvasos capilares, agindo e reagindo de modocompletamente autônomo. Não se sabeainda o que acontecerá, então, nos corpossutis. A ciência ainda desconhece essa ques-tão, pois ela não é assim tão simples. O queacontecerá no plano da alma, da consciên-cia? Quais são os perigos de uma manipula-ção como esta?

Um outro exemplo é o do emprego de

À esquerda: Mênades dançando. Projeto de escultura, ca.

século 1 a. C., Museo delle Terme, Roma, Itália.

Abaixo: Joop Willems, A última vida. Óleo sobre tela, 1984.

sistemas “biométricos” de segurança. Umacâmera digital filma a íris e um computadorcompara as trezentas pequenas impressõesem relação aos dados de um modelo carac-terístico. Na impressão digital clássica, ape-nas quarenta características são comparadas.A íris é, portanto, única e impossível de sercopiada. Mas a radiação eletrônica enviadaao olho também não atravessa diretamenteo cérebro? O que se passa, então, ainda noplano da alma, da espiritualidade? Issoinfluencia as glândulas de secreção interna,ativas no cérebro? Os olhos, o “espelhos daalma”, estão ligados de maneira sutil à pi-neal que, segundo as teorias científicas mo-dernas, tem a mesma estrutura que os olhos.Raramente se fazem perguntas como essas,e elas jamais recebem respostas. Os pesqui-sadores norte-americanos vão ainda maislonge porque, como acabamos de mostrar,eles estudam a possibilidade de combinar osmicroprocessadores e a biologia a fim deobter um “aparelho neuronal”.

O sonho da imortalidade

O objetivo dos pesquisadores científicosé, portanto, separar o espírito humano, ou oque eles consideram como tal, do corpomaterial vulnerável, não confiável, supér-fluo, e implantá-lo em microprocessadorese nano-robôs. Se digitalizarmos a vida, nósa racionalizaremos, tornando, assim, inútilo corpo iludido pelos sentidos, e criaremossistemas dinâmicos auto-estruturados. Édesse modo que o homem se volta para osonho da imortalidade.

Os Extropianos, grupo de especialistas daárea da eletrônica que se qualificam como“trans-humanistas futuristas”, inventamtodo tipo de tecnologia a fim de realizar omais rápido possível a transformação do

mundo em um sistema virtual hiper-econô-mico. Eles prevêem que, depois que ohomem tiver adestrado seu corpo e seumental, ele deverá evoluir até tornar-se um“proto-super-homem” com grande talentotecnológico, bem superior ao restante dahumanidade – o que, conseqüentemente,resultará no desaparecimento do antigogênero humano.

Hans Moravec, pesquisador pioneiro decomputadores, falou, pela primeira vez, nosanos 80, sobre o declínio do gênero huma-no, com grande entusiasmo. Ele não achaque seja necessário sobrar grande coisa dohomo sapiens, que afinal não passa de um“cidadão de espírito limitado, nativo do pla-neta terra”. A transformação dessa forma devida biologicamente limitada é iminente:“Todos nós nos transformaremos em robôs.Isso é tão inelutável quanto admirável. Aevolução é mais poderosa que nós. Nóssomos apenas uma parte do grande todo”.

Grande esperança, grande erro

De que evolução falam Moravec e oscientistas? E de que grande todo? O queeles entendem por “proto-super-homem”,por imortalidade? O que significam inteli-gência, espírito e alma? Que significado tempara eles a consciência, a autoconsciência e aonisciência?

Num certo sentido, pode-se dizer queum ímpeto apaixonado impele os intelec-tuais à pesquisa desesperada da imortalida-de. Na base dessa pesquisa sempre existemmotivos inferiores. Aí quase nunca seencontram bases sólidas nem a verdadeirasabedoria a respeito do significado do ser,da humanidade, do Universo. Todos sevêem envolvidos por um desejo nervoso deperfeição, de harmonia e de sabedoria, com

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A essência eterna do homem aguarda libertar-se da matéria a fim de ingressar

na vida de um mundo completamente diferente.

veementes votos de união, a fim deescapar de todo separatismo – issosem contar com a aspiração à onipre-sença. O único problema é que todaessa pesquisa acontece no mundomortal.

Na área da ciência eletrônica vive omito da imortalidade, do onipoder eda onisciência. Mas como é possívelsuprimir as próprias características danatureza, que são a transitoriedade e amortalidade?

Tudo o que aqui aparece um dia de-saparece. A mudança é a marca prin-cipal de nossa existência. Nem os mi-croprocessadores nem mesmo osnano-robôs são eternos. Cedo ou tar-de eles desaparecerão. O que é eternono homem deve sempre se desemba-raçar de seu invólucro mortal incom-patível com a condição de imortalida-de. A substituição pela eletrônica nãomudará nada. O que é eterno nohomem não espera viver eternamenteneste mundo da morte onde ele seencontra em permanente exílio.

A essência eterna do homem aguar-da libertar-se da matéria a fim deingressar na vida de um mundo com-pletamente diferente.

A diferença crucial

Geralmente a ciência parte de umaimagem material do mundo. Ohomem, com seu cérebro extrema-mente complicado e sua faculdadeintelectual, está persuadido de que umdia desvendará os últimos segredos davida, e que isso é apenas uma questãode tempo. A Rosacruz vê o mundo demaneira totalmente diferente. Seuponto de partida para a renovação davida encontra-se justamente no cen-tro espiritual eterno do coração. Éisso o que guia toda sua conduta. E,quando o rosacruz se encontra na

senda da libertação desse centro espi-ritual, seus pensamentos diferemtotalmente das considerações co-muns. Esse novo poder mental não éintelectual. Ele é uma inteligênciaplena de razão, o fundamento de umanova consciência esclarecida, que seorigina de um estado de vida total-mente diferente.

A solução

Trata-se, portanto, de uma lutaancestral entre a luz e as trevas. Essaluz chega, atualmente, no início da erade Aquário, a uma fase decisiva. Adesmaterialização negativa age nosindivíduos, e também na evolução dahumanidade inteira, do cosmo, donosso sistema solar e do Universo. Eessa luta acontece no interior de cadaum. É ali que as forças que agem emsegundo plano medem forças com aluz. É a luta milenar que objetiva oextermínio das almas, ou pelo menossua degradação, para que permane-çam para sempre prisioneiras damatéria. Porém, tudo acaba seguindoum plano. Tudo acontece segundo asleis da natureza e, segundo o princí-pio de Fausto de Goethe, nós nos tor-naremos livres: aqui atuam as forçasdo mal, mas o mal sempre pode trans-formar-se em bem. Por outras pala-vras, nós recebemos uma força e umasustentação verdadeiras quando esta-mos preparados e permanecemosreceptivos. O que poderia ainda nosreter?1 N. R.: 1 nanômetro tem aproximadamente agrandeza de uma molécula.

FONTES

Kurzweil, R., Homo Sapiens, entrevista noperiódico Konrad, 2000.

Moravec, H., Robot: Evolution from meremachine to transcendent mind. OxfordUniversity Press, 1998.

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Espírito na natureza

O homem moderno crê apenas no que elevê e mede, ou como dizem algumas pessoas,no que pode ser sustentado por provas. Asciências do Espírito perderam a posiçãocentral que ocupavam no início dos temposmodernos. Apesar de tudo, o homem con-servou a fascinação de discutir a respeito dosobrenatural, do Espírito, de Deus. Dolimite onde os cientistas encontram asinconsistências de seu próprio sistema depensamento surgem sempre novos estímu-los para o pensamento científico.

Será uma realidade espiritual divina queconduz o homem? Ou será a curiosidade deum espírito jovem e hábil que avança atétocar os confins de seu próprio domínio? Osimples fato de essa pergunta ser feita aindae sempre mostra que a resposta não é assimtão simples. É evidente que a inteligênciatem limites e que existem áreas sobre asquais a mente não possui nem pode possuiro controle.

Muitas obras mundiais ressaltam a idéiade que o ser humano possui dentro de si umsol espiritual. Antigamente esse sol se en-contrava em plena atividade e o dirigia. Emnossos dias, ou ele é buscado ou sua presen-ça é negada.

A oposição entre o Espírito e anatureza

O filósofo russo Nicolai Berdiaev escre-veu: “É preciso considerar que a oposiçãoentre Espírito e natureza é fundamental [...]O espírito não é absolutamente realidade,no sentido de que ele é natureza ou entãouma realidade claramente visível”.

Ele diz que tudo o que pertence ao ho-mem natural – sua alma bem como seu cor-po físico – pertence a este mundo e apenasdifere dos animais em qualidade e materiali-dade.

O espírito humano, entretanto, a verda-deira natureza original do homem, perten-ce a uma realidade totalmente diferente.Sobre este ponto, pergunta-se se o Espíritoage diretamente neste mundo. Com relaçãoa isso, Berdiaev declara: “É nas profunde-zas inconcebíveis que o Espírito toma omundo e nele faz brilhar uma luz totalmen-te diferente”.

Portanto, o Espírito somente toca o “pe-queno mundo”, o “microcosmo” humano,em suas profundezas inconcebíveis. Se ohomem consegue intuir isso, ele se cons-cientiza de que é seu intenso desejo quecausa semelhante toque. No entanto, se seudesejo não estiver verdadeiramente voltadopara o Espírito mas apenas para o seu refle-xo na matéria, esse fenômeno não passa deum fogo-fátuo. O homem busca o Paraíso,mas, como não possui nenhuma sabedoria,ele se conecta cada vez mais com a selva domundo civilizado e erudito da natureza.

24

O

O grito, a ponte e o espírito

O ser humano tem uma natureza dupla. A isso se referem todos os escritos

gnósticos e herméticos que dão testemunho das grandes capacidades humanas.

A Gnosis ensina que o homem, em sua verdadeira essência, é um deus, idéia

esta que a ciência moderna torna muito difícil de compreender.

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O Espírito e os símbolos

Em sua obra intitulada Geest van de Vrij-heid (O espírito da liberdade) Berdiaev se-para a natureza e o Espírito ao citar W.J.Soloviev: “Tudo o que é visível nesta terra éapenas o reflexo, a sombra do que os olhosnão vêem”. Mais adiante, ele diz que nossomundo natural não possui nenhuma profun-didade, e que seu sentido e significado pro-vêm de um outro mundo, o mundo do Espí-rito. A fórmula hermética “assim como é emcima, assim é embaixo” pode ser verificadano que diz respeito ao homem nascido danatureza. Porém, seus poderes de percepçãoestão ligados tão fortemente ao mundo

natural, ao “reflexo”, que ele não possuinada além de uma suspeita da presença doEspírito no mais profundo de si mesmo.

Uma vez que seu lado espiritual lhe ofere-ce pelo menos uma certa intuição, a lingua-gem dos símbolos se torna acessível para ele.Somente os símbolos lhe permitem reconhe-cer o que é “invisível aos olhos”, pois as ima-gens arquetípicas da consciência coletivaestimulam a aspiração ao mundo do Espíri-to, do qual a humanidade provém.

Os símbolos constituem uma ponte pelaqual se pode passar para o mundo espiritual.Nosso profundo desejo nos guia para essaponte, que é a primeira possibilidade de atra-vessar o abismo entre a natureza e o Espírito.

Edvard Munch,

O Grito (Wanhoop)

Oslo, 1893. Nesse

auto-retrato psíquico,

Munch mostra de

maneira bastante

notável que é a

paisagem que lança

um grito acusador;

o personagem sobre

a ponte já não suporta

mais.

A torre de Babel e a confusão de línguas

O significado original dos símbolos espi-rituais revela-se extremamente impreciso.Um símbolo é luz e energia ao mesmo tem-po. Mas quem ainda possui a sensibilidadenecessária para perceber a vibração de umatal energia?

Embora a força-luz do Espírito apele àconsciência original adormecida do homemdivino, nós nos prendemos às nossas pró-prias interpretações predominantementeintelectuais ou então sentimentais, sendoainda estas últimas as mais fortes. Essas rea-ções individuais fazem a luz explodir em mi-ríades de estilhaços inapreensíveis. Nossascapacidades naturais acolhem dela apenasínfimos pedaços.

Essas reações individuais e os contra-sen-sos que lhe são inerentes provocam uma “con-fusão babilônica da linguagem” em que osignificado do símbolo do Espírito se perde.Na Bíblia, pode-se constatar o início destadesestruturação do sentido dos símbolos e atentativa de combater suas conseqüênciascom a construção da célebre torre de Babel.

Há duas maneiras de reagir aos símbolosdo Espírito. As tentativas de explicar e desistematizar o indizível provocam uma dis-sonância da energia que nos toca interior-mente. Ouvimos essa dissonância que, ser-vindo-nos das palavras de Berdiaev, “ressoanas profundezas inimagináveis”, e que passaentão a vibrar interiormente, despertandouma certa compreensão.

Muitas tentativas e decepções nos tornamconscientes do abismo entre o Espírito e anatureza. Como dissemos acima, os símbo-los do Espírito podem constituir-se numaponte sobre o abismo. Depois, pode sucederde a ponte acabar no meio e não vermos suasegunda metade. Ora, o fato de nos encon-trarmos sobre a ponte significa que carrega-mos em nós o homem divino como uma realpossibilidade, e que aprendemos a concebê-lo sob a forma de um deus adormecido.

Em seu quadro intitulado “O grito”, Munchmostra o chamado por socorro daquele quechegou à ponte: é o chamado por socorro danatureza, com a qual ele é uno. Essa represen-tação desperta uma profunda repulsa, mastambém, de modo quase que mágico, somosatraídos para ela. “O grito” é um documentoautobiográfico que relata a angústia crônicade Munch, um relato realista escrito por eleem seu diário íntimo.

“Eu caminhava pela rua com dois amigos,o sol se punha – uma grande melancolia in-vadiu-me – o céu coloriu-se repentinamentede vermelho-sangue. Parei, esgotado, eapoiando-me sobre uma barreira, notei asnuvens flamejantes como espadas sanguino-lentas – o fiorde e a cidade azul-escuro –meus amigos prosseguiam em sua caminha-da, e eu continuava ali, trêmulo de medo,enquanto ouvia o grito longo e dilaceranteda natureza”.

Ao chegar ao meio da ponte, conscienti-zamo-nos de que nós, seres nascidos danatureza, nada sabemos e não temos poderalgum para nos libertar. “Ali parei, esgotado,e apoiei-me sobre uma barreira”. Com umdesespero crescente tentamos despertar, ani-mar o deus adormecido em nós, pois só eletem o poder de nos fazer atravessar a pontelançada sobre o abismo.

O grito recebe uma resposta: ao chegar aomeio da ponte, percebemos que a parte quefalta está apenas dissimulada e que apenas agraça divina tem o poder de despertar o deusinterior adormecido. Nesse instante surgeuma nova vida. É isso que Paulo descrevequando diz: o homem natural não compre-ende as coisas do Espírito divino, pois lheparecem loucura; e não pode entendê-las,embora o espiritual queira ser entendido. “-Semeia-se corpo animal, ressuscitará corpoespiritual” (Paulo, I Cor: 15,44).

FONTE

Berdiaev, Philosophie des Freien Geistes(Filosofia da Liberdade), J.C.B.Mohr, 1930.

26

27

Quando números e figuras já não forem...

Espírito e natureza em um poema de Novalis

O espírito e a natureza, o espírito ou a natureza? Qual a relação

entre essas duas palavras? Essa foi uma questão que sempre perturbou

os pesquisadores. Na Gnosis hermética, elas evocam a idéia alquímica

de um espírito e de uma natureza renovados, reconciliados e

perfeitamente unidos num piscar de olhos.

riedrich von Hardenberg (1772-1806),também conhecido como Novalis, era umjovem esbelto, de olhos trigueiros, claros ebrilhantes. Dele, emanava uma jovial afabi-lidade. Era poeta, jurista e engenheiro deminas. Em 1794, deu aulas a Sophie vonKuhn, que então tinha doze anos de idade.Em uma carta a seu irmão Erasmo, eleescreve: “Um breve quarto de hora decidiumeu futuro destino”, e ambos ficam noivosem março de 1795. Porém ela falece poucotempo depois em 1797. A partir daí, Frie-drich dedica-se a sua carreira de funcioná-rio público nas salinas. Ele parte para Frei-berg, na Saxônia, e ingressa na Faculdadede Geologia.

Ao mesmo tempo que exerce sua profis-são e estuda, Novalis escreve continua-mente e mantém contato com os mais céle-bres poetas e filósofos da Alemanha. Assimele faz uma visita a Schiller, com quem so-nha algumas noites, por ocasião de uma desuas crises de depressão, e a quem devotaprofunda admiração. Ele conhece Goethe,de quem diz: “Se Schiller escreve para o pe-queno homem, Goethe escreve para ogrande homem”. Ele também é amigo dosirmãos Schlegel e de Ludwig Tieck.

Sua obra consiste, sobretudo, em frag-mentos que comportam uma grande rique-za de idéias acerca de todos os aspectos daarte e da religião. Ele possui também umamaneira toda especial de abordar a ciência.É intencionalmente que citamos uma desuas fórmulas: “Tudo é semente”.

Novalis é um fervoroso admirador deJacob Boehme e até mesmo conhece Asnúpcias alquímicas de Christian Rosen-kreutz bem como outras obras de J.V.Andreæ. Em seu poema intitulado Quan-do números e figuras já não forem… e emseu romance Heinrich von Ofterdingenpodemos encontrar aspectos alquímicos eherméticos que lançam uma luz muito par-ticular sobre os conceitos espírito e nature-za tal como eram compreendidas na épocado romantismo.

Esses versos falam para o mundo intei-ro e, para os alemães, eles são os maiscélebres de Novalis; eles dão um exemplodo conceito romântico da relação entreespírito e natureza no final do século 18.De modo geral, eles foram interpretadosde maneira bastante romântica pelo fatode aparecerem no romance de Novalis,Heinrich von Ofterdingen, ficando assimseu fundo hermético ignorado. Por longotempo predominou a figura de um Nova-lis jovem poeta, melancólico, alienado davida, perdido em seus sonhos. Muitos lei-tores (até mesmo os eruditos) compreen-deram mal certas passagens. Os primeirosversos transmitem a idéia errônea de queNovalis sente repugnância por uma linhade pensamento em que a matemática ou ageometria desempenha um papel. Contu-do, o que acontece é o contrário. O adá-gio de Novalis é: “A vida superior é ma-temática”.2

Engenheiro de minas e geólogo, elecumpria seus deveres sociais e profissio-

28

F Quando números e figuras já não forem

a chave de todas as criaturas,

quando os que cantam ou beijam

souberem mais do que os eruditos,

quando o mundo voltar à vida livre e ao

mundo, quando então luz e sombras se

unirem para gerar verdadeira claridade,

quando se reconhecer as verdadeiras

histórias do mundo nos contos de fada e

poemas, então o inteiro ser,

diante de uma palavra secreta,

desorientado fugirá de nós.

(escrito ca. 1800-1801) 1

nais com paixão e da melhor forma possí-vel. Seu trabalho apresenta um alto nívelcientífico. Ele foi também jurista e mem-bro de um conselho administrativo. Jun-te-se a isso uma obra literária original. Eleera um homem que tinha os dois pés nochão enquanto vivia num plano espiritualsuperior. Sua espiritualidade reflete-se emalguns versos de seu poema: nele, Novalisformula de maneira poética cinco condi-ções a serem preenchidas, caso o mundoem derrocada deseje mudar a fim de sersalvo.

Primeira condição:

Quando números e figuras já não forem

a chave de todas as criaturas...

No romance Heinrich von Ofterdingen,trata-se de “números e figuras”. Ambos sereferem ao assim chamado “autor”, na his-tória de Klingsohr, escritor cujas elucubra-ções resistem pouquíssimo à prova da sa-bedoria. Com efeito, o autor apresenta mui-tos números e figuras geométricas que,“com grande zelo, ele enfileira como orna-

Heinrich von Ofterdingen é um belo romance educativo. É a resposta de Novalis ao cicloWilhelm Meister, de Goethe, que ele acha aborrecido e convencional.A ação se passa naIdade Média, e aí descobrimos Henrique, o personagem principal, quando ele tenta entabu-lar conversa com um estrangeiro. Essa conversa lhe vem à memória e o impede de dormir.Mas, por fim, ele acaba compreendendo aquilo que desejava e adormece. Então, aparece-lheo “objetivo supremo”: alcançar uma “flor azul em que flutua o rosto de uma jovem”. Nisso,Henrique parte em viagem com sua mãe. De Eisenach, na Alemanha Central, eles se diri-gem a Ausgburg, onde mora seu avô.Henrique é um personagem do tipo Parsifal, hesitante, modesto, que se inflama pelo bem eé, ao mesmo tempo, extremamente influenciável, sensível à beleza em todos os planos. Eleama as artes, sobretudo a poesia. Sua fantasia e sua imaginação fazem-no ver maravilhas emtudo o que acontece, nas aventuras e nos encontros. Durante a viagem ele conhece merca-dores, um ermitão que também é um filósofo, um minerador e uma jovem oriental. Nacidade de seu avô, Ausgburg, o poeta Klingsohr inicia-o nos segredos da poesia e sua subli-me beleza. Ele sucumbe a uma beleza ainda maior ao enamorar-se de Mathilde, a filha deKlingsohr. A primeira parte do romance termina com uma estória alegórica que traça empoucas linhas a vida de Henrique e de Mathilde.A segunda parte nunca foi terminada. Ela começa com a morte da bem-amada de Henrique.Seu desespero o incita a partir em uma longa peregrinação. Segundo Novalis, o romance“deveria evoluir progressivamente na forma de um conto”; ele quer “aprofundar os temasdas conversações e dos contos da primeira parte: a unidade da vida e da morte, o masculi-no e o feminino, oriente e ocidente.Tudo culminaria na “apoteose dos poemas” que Hen-rique, o poeta perfeito, escreveria.Nesse romance se alternam a prosa, a poesia e as lendas; os diálogos ilustram as realidadesda vida, e as considerações abordam os problemas sérios.

Na p. 27: Selo de John Dee, Londres, British Library.

Na p. 30: Foto Pentagrama.

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“Segundo o mais arbitrário dos preconceitos, é negado ao homem a capacidade de existir para qualquer coisaque lhe seja exterior; é-lhe negada a posse de uma consciência capaz de transpor os limites das percepçõessensoriais comuns. O homem tem a capacidade de se tornar, num instante, um ser supra-sensível, pois do con-trário, em vez de se tornar um cidadão do mundo, ele não passará de um animal. Devemos não somente serhumanos, mas sobre-humanos. O homem é semelhante ao Universo. Ele não é limitado. Ele é simultaneamentedeterminado e indeterminado. Poderíamos dizer que o homem perfeito deve viver em vários lugares e emvários homens; ele deve sempre dispor de um vasto meio social animado por muitos acontecimentos. Entãosurge a verdadeira e grandiosa presença do Espírito, o que o torna um verdadeiro cidadão do mundo.”15

mento ao redor de seu magro pescoço”.3 Éum verdadeiro trapaceiro, um fantasista,uma caricatura daquilo que chamaríamos detecnocrata. É igualmente um fanático peloque é útil: para ele a utilidade é “a chave detodas as criaturas”. É evidente que Novalis,do ponto de vista do destino humano, nãovê nisso nada de libertador.

Segunda condição:

quando os que cantam ou beijam

souberem mais do que os eruditos…

Novalis simpatiza muito mais com osque cantam e se beijam do que com o escri-tor trapaceiro e os doutos cientistas. Essessão os personagens com quem cruzamosnas universidades, os que, de modo umtanto irônico, são considerados especialis-tas, os falsos pilares de um mundo transvia-do. Eles se crêem muito sábios, mas na ver-dade seu saber está morto.

Os que cantam, os artistas e os que amamse dão inteiramente ao que fazem e adqui-rem assim grande saber no tocante à realida-de. Para Novalis, os artistas e os amantestêm isto em comum: toda a sua personalida-de é criativa. A poesia e o amor são os prin-cipais temas de sua obra. Para ele, “o amor éo objetivo último da história das nações” –a unidade do Universo.4 O amor, a “simpatia”cósmica, é o que unirá novamente as infini-tas manifestações do Universo, dissociadase opostas. “Deus é amor. O amor é a reali-dade superior, o fundamento original”,5 a ba-se primordial e o objetivo, o alfa e o ômega.

Isso soa para nós um tanto estranho. Maspoderíamos perguntar: de que tipo de amorconcreto se trata aqui? Será que tudo deve-rá limitar-se ao sentimento? Novalis afirma:“De modo algum! A teoria do amor é aciência suprema,6 a doutrina do Eros supe-rior, acessível somente ao poder mental ele-vado; ela requer uma elevada atividade filo-sófica, ela é o assunto de estudo das ciênciasnaturais”.

Terceira condição:

quando o mundo voltar à vida livre

e o mundo…

Estes dois versos são enigmáticos. É evi-dente que Novalis fala de dois mundos dife-rentes. Poder-se-ia compreender isso daseguinte forma: “Quando o falso mundoencontrar-se na liberdade e retornar aomundo verdadeiro”. Mas como? O poemaimplica, no conjunto, um processo demudança, um processo que pode ser com-preendido como o retorno a uma “idadeáurea”. Não se trata de voltar atrás, mas simde obter um novo estado. Como é possívela um mundo completamente falso se trans-formar? Sob o impulso de quais forças, dequais indivíduos?

Quarta condição:

quando então luz e sombras se unirem

para gerar verdadeira claridade…

Novalis reconhece a dualidade do mundona separação entre luz e trevas. Luz e trevasdevem unir-se a fim de dar ao mundo outraclaridade, a verdadeira luz. Como geólogo,Novalis vê o modelo disso no cristal. EmHeinrich von Ofterdingen ele escreve: “Ocristal é a natureza translúcida”7. O cristal éaqui tomado num sentido positivo e não node endurecimento. As pedras preciosas sãoexemplos de cristais de grande valor; porconseguinte, vemos que uma pedra precio-sa, um rubi, tem um papel importante numromance. A “verdadeira claridade” é umapalavra-chave romântica que descreve oestado em que já nada é dissociado.8

Quinta condição:

quando se reconhecer as verdadeiras histórias

do mundo nos contos de fada e poemas…

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Os mitos e a poesia permitem uma certasublimação da divisão dualista evocadapelos conceitos de preto e branco. Encon-tramo-nos ali no centro exato do realismomágico de Novalis. Por meio dos contos edos poemas, ele nos faz imaginar a magiapoderosa do mundo que permanece ocul-to ao pensamento racional. A magia cósmi-ca é a realidade. Novalis quer desmistificarnosso “mundo falso”, e não era fascinadopor ele como se supõe com freqüência.

Ele nos encoraja: se nos interessarmospelas lendas e mitos do mundo, sua verda-deira estrutura mostrar-se-á por si mes-ma.9 Não se trata, aqui, de nenhuma magiaoculta; não, Novalis é um poeta e nos falade uma antiga alquimia transfigurística, daarte da transmutação pela palavra criado-ra, coisa que um “ser desorientado” nãopode suportar de boa fé.10

A metamorfose

então o inteiro ser, diante de uma palavra secreta,

desorientado fugirá de nós.

Quando a realidade aparente houvermudado, isto é, quando todas as condiçõestiverem sido preenchidas e o mundo cor-rompido, transviado, tiver amadurecido,ele desaparecerá, dissolver-se-á, da mesmaforma que na alquimia hermética a matériavil se transforma em “ouro”. Nesse pro-cesso a “pedra filosofal”, ou a “palavra se-creta” representa um papel catalisador. Épreciso que se compreenda que essa pedra,essa palavra, é o símbolo de uma poderosaação mágica.

Assim como na alquimia hermética oadepto atravessa inúmeras fases existen-ciais com o fito de adquirir essa pedra, nopoema de Novalis surgem circunstânciaspoéticas que parecem utópicas, míticas,para que a palavra secreta jorre no mundo.

Existem muitas palavras e códigos se-cretos tradicionais que permitem decifrartextos e sinais. A Gnosis arcaica põe isso

em prática na forma de sonoridades mági-co-ritualísticas. Mas de onde vem, nessepoema, o conceito “palavra secreta”?

Um rubi vermelho-fogo

No terceiro capítulo de Heinrich vonOfterdingen, alguém conta uma estória.Seu nome é Atlantis, e ele vem do mesmolugar em que a ação se passa, a lendáriailha da Atlântida. Nesse conto, um rubivermelho-fogo tem um papel decisivo: afilha de um rei perde essa pedra preciosa,que é encontrada por um jovem que pas-seia pela floresta. Nessa pedra, há umapalavra secreta gravada em sinais enigmá-ticos. O jovem cai sob o poder da pedra efica contemplando o rubi durante a noitetoda. Pela manhã, ele sente um desejo irre-sistível de expressar seus pensamentos esentimentos amorosos pela princesa emversos poéticos que entregará a ela juntocom a pedra preciosa em seu próximoencontro.

Reunidos pelo rubi, o jovem e a filha dorei celebram seu casamento, e logo se dá atransmutação não somente dos dois aman-tes, mas também do rei e de seu reino:tudo volta ao “mundo verdadeiro”. “Semparar, rolam as lágrimas de alegria, os poe-tas põem-se a cantar, no país inteiro a noi-te se transforma em santa vigília, e a vidase transforma numa festa esplêndida paratodos os habitantes”.11 A palavra secretagravada no rubi produziu a metamorfosedo mundo; “os que cantam ou beijam” ti-veram um papel mediador essencial. O ru-bi representa aqui a “pedra filosofal”.

O projeto de Novalis para a segundaparte do romance, inacabado, é relatar abusca pelo rubi que falta na coroa impe-rial, cujo lugar é indicado por um vazio.12

A pedra preciosa que brilha como umacentelha ígnea é a imagem que Novalis uti-liza para evocar a luz eterna ou a centelhado espírito sepultada em todos os coraçõeshumanos. “O carbúnculo brilha nas trevas

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da noite e despende uma imensa claridadesobrenatural… Quem possui o rubi conhe-ce o segredo do mundo”.13 “A pedra não éum objeto material, ela é o símbolo de umaelevada nobreza potencial adormecida emcada homem”.14 Ela une “o eu terrestre ao euceleste”. Do portador da pedra, emana a “pa-lavra secreta”, e toda falsidade desaparece.

A libertação da natureza

Para Novalis não há dualismo entrenatureza e espírito, embora ele fale sobre aexistência de dois mundos. Ele mostra afusão necessária do espírito e da naturezapela amizade e pelo amor, à medida que astendências egocêntricas são dominadaspela prática de trabalhos criativos ou pelacontemplação de obras de arte em que seconsegue transcender a realidade do “falsomundo”. A natureza em seu conjunto estáapta a se anular e transformar; ela aguardaque os homens se libertem e iniciem a via-gem à “idade áurea”.

A verdadeira libertação exige, contudo,benevolência e amor altruísta bem comouma atividade criadora. Novalis diz tam-bém que a criatividade (no sentido de cria-ção pessoal) não é suficiente. Em nossodescaminho, algo deve vir em nosso auxí-lio: uma “palavra secreta”, um sinal, sem oque a Grande Obra não pode realizar-se.Esse sinal secreto vem do “rubi” ocultoem nosso coração. Nós vagueamos pelomundo com a finalidade de encontrá-lo.Se conseguirmos decifrar seu códigosecreto, finalmente acontecerá a transmu-tação da alma, do céu e, enfim, de todo oreino. A exemplo dos antigos alquimistas,de sábios como Paracelso e Jacob Boehme,devemos aguardar por essa metamorfoseem total abandono, paciência e humildade.

Notas1 Uerlings, H: Novalis. Stuttgart: Reclam, 1998.

p. 118.2 Roder, F., Menschwerdung des Menschen.

Stuttgart: Berlim, 1997, p. 654.3 Novalis, Heinrich von Ofterdingen. Stuttgart:

Reclam, 1987, p. 1264 Id. 2, p. 3185 Mahoney, D. F., Die Poetisierung der Natur bei

Novalis. Bonn: 1980, p. 146 Id.7 Id. 3, p. 1098 Id. 1, p. 1229 Kurzke, H.: Novalis. Munique: C. H. Beck, 2001,

p. 1710 Prólogo do Evangelho de João11 Id. 3, p. 4912 Id. 3, p. 19313 Id. 2, p. 549 f14 Id. 2, p. 536, 54215 Novalis: Die blaue Blume. Stuttgart: Reclam, 1987

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O segredo do grande tambor

Nos últimos anos na Europa tem crescido o

número de apresentações de tambores japoneses nas salas de concerto.

Os tambores taiko pertencem a uma tradição secular, sem qualquer relação

com a dança, e representam um gênero artístico muito específico. Há muito

eles vêm sendo usados para evocar

os ancestrais.Agrupados na praça

da aldeia, os tambores também

permitiam que se delimitasse as

zonas povoadas.A aldeia se estendia

até os limites da propagação do som.

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ara nós, contudo, esses costumes seperdem na distância do espaço e dotempo, e já não perguntamos por que essaforma de arte conhece hoje no Ocidenteum interesse renovado. Qual será o moti-vo de ela exercer tal fascínio sobre o audi-tório?

Tambores com diâmetros gigantescos

Os tambores taiko são talhados emmadeira de pinho e recobertos de courobovino esticado. Existem diferentes tipos,de diferentes dimensões, e cada tamborrecebe um nome apropriado. O maiordeles possui um diâmetro de três metros esetenta centímetros e pesa 1,5 tonelada.Cada um deles tem um suporte que repre-senta um disco solar. O tocador coloca-senuma posição que lembra uma árvore,pernas separadas como raízes plantadasna terra, corpo e cabeça eretos, imóveis,semelhantes ao tronco de uma árvore,enquanto que os braços se agitam a partirdos ombros à semelhança de galhos sacu-didos pelo vento. Tem-se a impressão deque o tocador quer insinuar com isso umatempestade invisível, uma força intangívelque é transmitida diretamente ao tambor,à matéria.

Antes de começar a tocar, ele ajoelhaem silêncio diante do tambor, de formameditativa e extremamente concentrada.Em seguida, de repente, levanta-se, segu-rando duas simples baquetas de madeira.Ele bate com todas as suas forças, numritmo desenfreado e com total maestria.

O batedor do grande tambor, o chefe,dá o ritmo fundamental. Ele apresentacada trecho com uma única batida vigoro-

sa, e o instrumento produz um som pode-roso e profundo, podendo-se senti-lo res-soar até a medula. Os outros tamboresproduzem ritmos rápidos, criando todo otipo de belas estruturas sonoras. Às vezesuma flauta de bambu os acompanha.

O grupo compõe-se de seis a dozemúsicos que tocam com tal sincronismoque se tem a impressão de ouvir apenasuma baqueta. Em matéria de inspiração, anatureza é o tema predileto; eles são capa-zes, por exemplo, de interpretar a beleza eo movimento do céu estrelado. Para umouvinte receptivo, o concerto é uma expe-riência acústica e visual espantosa cujoefeito se prolonga ainda por um longotempo. Mediante qual prodígio? Qual é osegredo do grande tambor?

A libertação da deusa da luz

Na tradição japonesa, há uma lenda quefala do grande tambor. Trata-se da lendade Aratura, a deusa do sol, dispensadorade luz e calor e que concede a vida sobrea terra. Ela tem um irmão de caráter obs-curo e perverso que, com o tempo, setorna cada vez mais irascível. Mergulhadaem aflição, a deusa se retira para umagruta profunda e desaparece da face daterra. Então os homens, privados de luz ede calor, tornam-se tristes, fracos e aca-bam adoecendo. O irmão da deusa da luz,contudo, sente um certo arrependimento.Com o intuito de fazer a deusa retornar, écolocado diante da entrada da gruta umgrande tambor que é tocado até que opobre povo comece a se mover ao seuritmo e a alegrar-se. Por fim a deusa sai, enovamente a luz ilumina a terra e oshomens, curando os seus males.

À esquerda: Tambor da civilização Mochica, ca. 800 d.C.

Essa cultura floresceu do ano 0 até c.a. 800 nos vales de

Moche e de Chicarna, na costa do Peru.

P

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Homens e deuses

O símbolo do grande tambor não éencontrado apenas na mitologia japonesa,mas também em diversos textos sagradose lendas de todos os continentes. As ima-gens impressionantes que o representampossuem sempre dimensões tanto cósmi-cas quanto microcósmicas. Elas se rela-cionam ao mundo dos deuses e ao mundointerior do homem. Tem-se mesmo aimpressão de que o tambor, de modo mis-terioso, une os dois mundos.

Relâmpago e Trovão

O som do grande tambor estrondeiacomo o trovão após o relâmpago. Tão logoo relâmpago brilha, o trovão estrondeia, talcomo a voz da matéria na atmosfera, des-pertada pela descarga do fogo elétrico datempestade. Assim como a matéria, ohomem também possui um microcosmoque o rodeia como uma aura. Para ele, orufar do grande tambor é a voz do filho deDeus, perdido na matéria, que responde aotoque do fogo elétrico do Espírito. Quan-do o som do tambor é puro, seu chamadosobe das profundezas, onde seu corpopoderoso está enraizado, para a luz queparece provir do alto, mas que em realida-de o circunda. O tocador do grande tam-bor, o homem, se dá inteiramente a fim deproduzir esse som, e seu chamado semprerecebe uma resposta.

O sete trovões do Apocalipse

No Apocalipse de João, a hora da séti-ma e última trombeta é anunciada porsete trovões, fenômenos cósmicos inter-pretados como produzidos por um deus.Em O Verbo Vivente, Catharose de Petridiz que eles se relacionam com a ciênciados sete raios.1

Pode-se compreender que se trata doprimeiro toque do ser humano pelo Espí-

rito sétuplo, acontecimento que pressagiafuturos desenvolvimentos. Os sete raiosdo Espírito desencadeiam sete trovões naatmosfera do microcosmo. Nesse mesmoinstante se dá a abertura da consciência.Sete golpes no grande tambor anunciam aúltima trombeta. Os sete trovões simboli-zam, portanto, o processo de evolução daconsciência no microcosmo.

O tambor dos deuses adverte

O “tambor dos deuses” é mencionadonum tratado budista do século XII com ointuito de dar uma idéia do processo deiluminação de Buda: “No palácio da vitó-ria suprema ressoa o tambor dos deuses, otambor do darma, cujo nome único evocao poder do nobre ensinamento. Elechama os deuses despreocupados e lem-bra a eles, com seu ressoar, os quatroaxiomas da doutrina de Buda: ‘Todamanifestação é transitória; todo fenôme-no é desprovido de um “eu”; tudo o queleva a mácula da dualidade é sofrimento, ea cessação do sofrimento é paz’.”

O tambor de Shiva

Na tradição indiana, o tambor é umatributo de Shiva, a divindade mais eleva-da. Ele é o deus que liga o fogo à terra, oEspírito à matéria. Segurando o tamborem sua mão direita, ele cria ou aniquila omundo. Ele cria o mundo quando fazsoar o tambor, e quando pára, o mundodesaparece. O poder de destruição e decriação corresponde à atividade do pri-meiro raio do Espírito sétuplo. O som dotambor pertence à ordem do primeiroraio. Mas o tambor também é um instru-mento que serve para conceder umaestrutura à substância primordial, para

À esquerda:Tambores e instrumentos musicais em um

manuscrito de núpcias indianas, 1561 d.C.

Na p. 38: Marcas de mãos, Patagônia, ca. 10.000 a.C.

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criar os átomos e ordenar o Universo, oque corresponde à atividade do sétimoraio do Espírito sétuplo. O sétimo raio éuma energia que produz uma nova forçade vida. Não é à toa que nos países asiáti-cos o tambor seja considerado um instru-mento mágico e seja utilizado nos rituaise cerimônias religiosas.

Quando retine o som do grande tam-bor, ele não só engendra o ritmo, a ordeme a estrutura de vida, mas também expri-me uma alegria imensa. Na Bíblia se falade louvar a Deus com címbalos sonoros.

O tambor de guerra

O aspecto aniquilador se anuncia quan-do os grandes tambores de guerra fazemouvir seus sons assustadores, que exercemuma atração para o que é inferior, assimcomo é descrito no livro O Senhor dosAnéis: Amaldição do anel, quando os com-panheiros chegam ao ponto mais baixo desua odisséia através do mundo abissal deMória (símbolo da passagem pela matériamais densa), eles são aterrorizados por umabatida surda proveniente das entranhas daterra.2

Segundo alguns autores, o tambor, nostempos da Lemúria, era utilizado paramanter a consciência humana acorrentadaà matéria.

O tambor interior

O tambor existe igualmente no ouvidohumano, que transmite à nossa alma asvibrações do mundo circundante. O tím-pano do ouvido externo (a pele do tam-bor) comunica as vibrações ao ouvidomédio, onde o martelo e a bigorna entramem ação; em seguida, pelo caracol, os im-pulsos acústicos se transformam em im-pulsos nervosos.

O som cria literalmente o mundo emnossa consciência por meio do tambor doouvido. Mas esse fenômeno permanece

seletivo, pois nem todos os sons penetramaté a consciência. O ouvido conserva,com efeito, uma relação bastante particu-lar e direta com a alma: mantendo-se per-feitamente sintonizado com as preocupa-ções e os sentimentos da alma, ele apenasfiltra os sons que lhe são afins.

Contudo, se a consciência entra nosilêncio, o ouvido da alma se abre às vibra-ções internas não habituais. A “voz dosilêncio” chega até ela. As tradições falamcom freqüência sobre um tipo de trovão.Em um coral de J.S. Bach, por exemplo, édito: “Ó eternidade, ó clamor do trovão, óespada que transpassa a alma, ó começosem fim”. 3

O grande tambor da exortação divinaressoa continuamente, porém nós não oouvimos. Esse som poderoso continuaráa se propagar até o final dos tempos, e sedermos ouvidos a ele, suas vibrações nostransfigurarão em criaturas que partici-pam novamente da consciência original.

NOTAS

1 Petri, C. de, O Verbo vivente, Editora Rosacruz,2006.

2 Tolkien, J.R.R. O senhor dos anéis. São Paulo:Martins Fontes, 2003.

3 J.S.Bach, coral, texto de Johann Rist, 1642.