— #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

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no. 04 nov-dez 2011 overmundo.com.br #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema #arte urbana #rádio

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no 04nov-dez 2011 overmundocombr

mdashfantaacutesticomaravilhosomitoslendasassombraccedilatildeocinemaarte urbanaraacutedio

editorialmdash

mdash nordm4 mdash novdez 2011

Fantaacutestico incriacutevel inimaginaacutevel Natildeo faltam sinocircnimos nem concepccedilotildees diferentes para esta palavra Daquilo que soacute existe na fantasia ao excep-cional inusitado maravilhoso Acredite se quiser o mundo estaacute cheio de coisas inexplicaacuteveis como a aacutervore em forma de mulher graacutevida que virou ateacute ponto de refe-recircncia em Nova Iguaccedilu na Baixada Fluminense Reza a lenda que uma mulher teria sido assassinada por um marido ciumento bem no exato local onde hoje se encon-tra uma frondosa mangueira Parece histoacuteria de acam-pamento natildeo

Quem quer que ande por este Brasil afora ouve histoacuterias de fantasmas e assombraccedilotildees sacis lobiso-mens procissotildees de almas como mostra a pesquisa-dora que mapeou lendas e mitos do folclore capixaba Haacute tambeacutem o nego drsquoaacutegua imortalizado no Lago Serra da Mesa em Goiaacutes paisagem represada construiacuteda pelas matildeos do homem Se eacute certo que a eletricidade e o des-matamento afetaram radicalmente a ecologia do mundo fantaacutestico tambeacutem as cidades produziram mitos urba-nos como a mulher da capa preta que tem ateacute tuacutemulo

e fieis admiradores em Maceioacute (aleacutem de um bloco car-navalesco em sua homenagem)

Alguns desses casos extraordinaacuterios jaacute foram parar na imprensa como as feiticeiras de Curitiba retratadas na coluna ldquoVitrine do Diabordquo do jornal Diaacute-rio da Tarde Outros foram inventados pela proacutepria imprensa A guerra dos mundos que assustou os ame-ricanos quando narrada em tom jornaliacutestico por Orson Welles tambeacutem pregou uma peccedila nos moradores da capital maranhense em 1971 quando transmitida pela Raacutedio Difusora Devido agrave credibilidade do raacutedio naquela eacutepoca ndash quando televisatildeo era coisa de poucos ricos ndash e do formato jornaliacutestico do programa com flashes ao vivo entrevistas de repoacuterteres locais com especialis-tas e moradores e sonoplastia caprichada teve gente jaacute se preparando para o fim dos tempos

Mas nem sempre o fantaacutestico se confunde com a ficccedilatildeo Agraves vezes tem um tom real dramaacutetico e assustador Em 2005 por exemplo um surto de ldquotreva pretardquo aco-meteu 252 moradores em Araguatins Norte do Tocan-tins Nenhum meacutedico ou cientista foi capaz de explicar

Realizaccedilatildeo

Instituto Overmundomdash

Conselho Diretor

Hermano ViannaRonaldo LemosJoseacute Marcelo Zacchi mdash

Direccedilatildeo Executiva

Oona Castro mdash

Coordenaccedilatildeo Editorial

Viktor Chagas mdash

Coordenaccedilatildeo de Tecnologia

Felipe Vaz mdash

Coordenaccedilatildeo de Economia

da Cultura

Oliacutevia Bandeira mdash

Editora-Chefe

Cristiane Costa mdash

Editores Assistentes

Viktor Chagas Inecircs Nin mdash

Ediccedilatildeo de arte

Bemvindo Estuacutediomdash

Projeto graacutefico original

para versatildeo estaacutetica

Retina 78mdash

Projeto e desenvolvimento

de aplicativo para iPad

Metaesquema Projetos em Arte e TecnologiaSistemas

Cabot Technology Solutions Pvt Ltdmdash

Colaboraram para esta ediccedilatildeo

Glecircs Nascimento (TO)Henrique Reichelt (RS)Janaiacutena Serra (SE)Jean Marconi (DF)Joatildeo Xavi (Alemanha)Marcelo Cabral (AL)Marcos Paulo (RO)Mariana Filgueiras (RJ)Renata Melo (RJ)Sinvaline (GO)Tiago Rubini (RJ)Zema Ribeiro (MA)e muitos outrosmdash

Capa

Evandro Pradomdash

Imagens

Evandro PradoJanaiacutena SerraJean MarconiJoatildeo XaviLeocircnidas VidalMarcelo CabralMarcos PauloRenata MeloToniolo+ reproduccedilotildees autorizadase outrosmdash

A Revista Digital Overmundo eacute resultado do Precircmio SESC Rio de Fomento agrave Cultura na categoria Novas Miacutedias 2010 e derivada do site Overmundo patrocinado desde seu lanccedilamento pela Petrobras

O conteuacutedo desta revista eletrocircnica integra o site Overmundo e estaacute disponiacutevel sob uma licenccedila Creative Commons Atribuiccedilatildeo-Uso natildeo-comercial-Compartilhamento pela mesma licenccedila 30 Brasil (CC BY-NC-SA 30)

Pautas e sugestotildees de pautas para a Revista Overmundo podem ser publicadas diretamente no site Overmundo A equipe editorial da revista estaacute de olho nos conteuacutedos que circulam na rede Quem sabe natildeo eacute uma boa oportunidade para vocecirc exercer a sua veia de repoacuterter e contar pra gente o que de bacana acontece na cena por aiacute na sua cidade -)

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashA Mulher da Capa PretamdashAs raiacutezes de uma gravidezmdash40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livromdashReza bravamdashA Lenda do Nego DrsquoAacuteguamdashmdashOvermundo em piacutelulasmdashParnaso de aleacutem tumulomdash

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Poemas sobrenaturais do Conde BelamortemdashT O N I O L O O L O I N O TmdashQuando as aacuteguas dormem mdashUm mundo que continua girando a 33 e 13 mdashO corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifremdashOuro do sertatildeomdashIconogafia pop

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sumaacuteriomdash

por que as pessoas que se banhavam no Rio Araguaia ficaram cegas

Do fantaacutestico ao improvaacutevel a Revista Over-mundo traz ainda a histoacuteria da Copacabana Records uma loja de LPs especializada em muacutesica brasileira que faz sucesso na Alemanha E eacute real mas poderia ser inventada a figura do Conde Belamorte poeta mineiro que sai pela rua com sua manta negra coberta por ade-reccedilos de caveiras

Bem conhecido da populaccedilatildeo local eacute o caso natildeo menos incomum do policial TONIOLO iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre que deixou sua marca gra-vada ateacute no Palaacutecio do Planalto E caacute para noacutes comum tambeacutem natildeo eacute a histoacuteria do radialista JC que haacute 30 anos transformou o sofrimento de uma traiccedilatildeo amorosa no programa dominical ldquoHora do Boirdquo sucesso da raacutedio Transamazocircnica de Porto Velho Natildeo haacute remeacutedio para chifre mas para quem vai dar a volta por cima e comeccedilar uma nova relaccedilatildeo deve ficar atento numa frutinha do cer-rado que garantem ser oacutetimo afrodisiacuteaco o pequi Pode ser lenda ou ateacute desculpa esfarrapada mas em Minas o pequi eacute quase um boto fala-se em ldquofilhos do pequirdquo para denominar as crianccedilas que nascem nove meses depois da colheita da fruta Natildeo acredita A Revista Overmundo estaacute aiacute para (vocecirc) provar

Cristiane CostaViktor Chagas

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07 | nov-dez 2011 |06

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashDocumentaacuterio relata o surto de ldquotreva pretardquo que acometeu 252 moradores em Araguatins Norte do Tocantins em 2005mdashGlecircs Nascimento

Joatildeo Batista tomou banho agraves mar-gens direitas do Rio Araguaia Em algumas horas os olhos comeccedilaram a coccedilar e arder Dias depois ele estava cego Uma massa branca cobria o olho esquerdo e ele natildeo enxergava mais nada Depois dele vieram outros Todos com os mesmos sintomas Parece com algum filme que vocecirc jaacute viu ou com algum livro que vocecirc jaacute leu Sim Lembra muito a obra Ensaio sobre a cegueira claacutessico de Joseacute Saramago filmado por Fernando Meirelles e exibido nas salas de cinema de todo o mundo em 2008

Mas natildeo eacute A histoacuteria que parece ficccedilatildeo eacute real e aconteceu de fato em 2005 em Araguatins Norte do Tocantins localizada a 601 km de Palmas De tatildeo inusi-tado o caso virou filme o documentaacuterio O misteacuterio do globo ocular do cineacutefilo jornalista e documentarista Wherbert Arauacutejo

ldquoFernando Meirelles e Saramago que me perdoemrdquo afirma o jornalista Ele faz a mea culpa das semelhan-ccedilas porque natildeo podia deixar de filmar a doenccedila miste-riosa que acometeu 252 moradores de Araguatins entre 2005 e 2007

O documentaacuterio fez parte do 4ordm Concurso DocTV Brasil e foi exibido em 2010 para todo o paiacutes pela TV

Brasil ldquoO slogan do DocTV dizia assim quando a reali-dade parece ficccedilatildeo estaacute na hora de fazer um documen-taacuterio E foi o que fizrdquo disse Arauacutejo

Um mais igual que o outroAs histoacuterias se parecem mas tambeacutem haacute diferenccedilas No filme de Arauacutejo as pessoas declaram enxergar a escuri-datildeo ldquoTudo preto eu vejo tudo escurordquo disse Joatildeo Batista Jaacute em Ensaio sobre a cegueira a treva eacute branca como leite ldquoClaro que me baseei no livro Quando entrega-mos o roteiro o filme ainda natildeo tinha sido lanccedilado estava em produccedilatildeo mas fiz questatildeo de reler o livrordquo afirmou Arauacutejo

Segundo ele a histoacuteria de Saramago marcou muito uma fase de sua vida ldquoLi num periacuteodo muito ruim era 2001 estava desempregadordquo O livro foi revisitado quando ele teve a ideia do filme Arauacutejo trabalhava num jornal local e viajou assim como dezenas de jornalistas do Brasil para relatar a histoacuteria de Araguatins ldquoEssa conexatildeo com o Ensaio sobre a cegueira aconteceu por-que quando as pessoas estatildeo numa situaccedilatildeo extrema como esta acabam perdendo o caraacuteter de humanidade Entram em desesperordquo lembrou

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lgaccedilatildeo

09 | nov-dez 2011 |08

Em O Misteacuteriohellip a afliccedilatildeo eacute tanta que um dos personagens quis cortar a retina com uma lacircmina para tirar a agonia Ele pensou em tomar cachaccedila e arran-car o mal pela raiz levando a dor e o desconforto que a treva ocular o causou Ouvi-lo falar isso chega a dar tristeza em quem assiste ao documentaacuterio Outro per-sonagem sofreu tanto com a dor que colocou uma proacute-tese no lugar do olho

A vida imita a arte ou vice-versaAraguatins era um municiacutepio que jamais mereceria destaque nacional ateacute entatildeo Com 30 mil habitantes a cidade eacute pacata e se movimentava mesmo de julho a setembro durante a temporada de praia ndash de aacutegua doce

ndash que lotava de banhistas o Rio Araguaia Mas o cenaacuterio mudou quando comeccedilou o surto de

cegueira Em trecircs anos muitas pessoas comeccedilaram a per-der a visatildeo depois de tomar banho no rio ndash ironicamente o mesmo que dava sustento atraveacutes da pesca e movimentava o turismo local ldquoFoi uma situaccedilatildeo atiacutepica para a cidade de Araguatins e para o mundordquo relembra o jornalista

O episoacutedio marcou o Tocantins e na eacutepoca atraiu a imprensa nacional e internacional meacutedicos pesquisadores e muitos curiosos ldquoEu tive a sorte de

ser repoacuterter do Jornal do Tocantins e ter sido enca-minhado para aquela cidade por diversas vezes para noticiar o problema Com o passar do tempo jaacute fora do jornal mas realizando vaacuterias viagens agravequele muni-ciacutepio percebi que muito daquela histoacuteria ainda natildeo tinha sido contadardquo

Acampamentos foram montados na beira do rio para abrigar jornalistas doutores e autoridades da medi-cina A cada dia um novo boletim era divulgado mais viacutetimas apareciam e mais possibilidades e nomes estra-nhos tomavam conta do imaginaacuterio popular Uns diziam que era um caramujo outros que era uma alga havia aqueles que afirmavam serem os produtos quiacutemicos jogados na aacutegua os causadores do mal Mas de verdade ateacute hoje natildeo haacute explicaccedilatildeo para a cegueira em Aragua-tins Amostras da aacutegua do rio foram levadas para Satildeo Paulo e para o exterior E nada de respostas

O misteacuterio do globo ocular natildeo traz a soluccedilatildeo nem aponta suas causas mas mostra a histoacuteria pela oacutetica ndash sem trocadilho ndash de vaacuterias pessoas quem viveu o problema os meacutedicos as autoridades e o povo A nar-rativa foi inspirada no filme Elefante (Gus Van Sant 2003) cuja perspectiva eacute mostrada a partir de vaacuterios pontos de vista E tambeacutem em filmes da deacutecada de

1980 como A coisa (Larry Cohen 1985) ldquoEacute como se algo estranho viesse e invadisse uma cidade pacata Os filmes que falavam dessas questotildees tudo isso me ins-pirourdquo conta o diretor

Dos planosldquoAinda quero transformar O misteacuteriohellip em uma ficccedilatildeo ou refilmar sob a oacutetica de quem natildeo ficou cego Assim como no Ensaio sobre a cegueira em que um persona-gem permanece enxergando Laacute tambeacutem uma irmatilde de umas viacutetimas que tambeacutem se banhou no rio natildeo ficou cegardquo diz Arauacutejo

Por enquanto ele trabalha em outra obra parte real parte ficcional A hora maacutegica retrataraacute momen-tos luacutedicos de sua infacircncia em Pedro Afonso interior do Tocantins ldquoEacute um filme autobiograacutefico e muito mais doloroso de fazerrdquo revelou Wherbert Arauacutejo Vamos esperar para verhellip

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accedilatildeo

11 | nov-dez 2011 |10

A Mulher da Capa Preta

Antes de qualquer coisa esta eacute uma histoacuteria de fantasma Portanto quem tem um coraccedilatildeo com tendecircncia a fraquejar ou eacute desprovido do sangue frio necessaacuterio para seguir adiante pare a leitura agora e procure outro assunto pra entreter o juiacutezo deixando de lado essas coisas do aleacutem Jaacute para quem aprecia uma bela histoacuteria de amor um romance juvenil este causo maceioense pode ser um prato cheio

Conheccedila o pouco que todos em Maceioacute conhecem sobre a jovem e bela Carolina Sampaio ou Carol cuja histoacuteria foi contada em trova e verso por toda a cidade e jaacute virou ateacute bloco de carnaval De boca em boca inuacute-meras versotildees de sua suposta histoacuteria foram repassadas entre os maceioenses por pelo menos trecircs geraccedilotildees

Uma noite romacircnticaNa Maceioacute de outros tempos menor e mais ingecircnua a cidade vivia noites de festa e alegria nos grandes bailes que lotavam clubes que natildeo existem mais Talvez apenas na memoacuteria dos mais velhos Certa noite nesta Maceioacute romacircntica Carolina estava apreciando o grande baile com banda de fora e tudo quando percebeu os olhares interessados de um simpaacutetico rapaz bem vestido que segurava no braccedilo uma capa de chuva preta

O desconhecido tomou coragem e foi falar com ela

ndash Olaacute moccedila bonita Qual o seu nomendash Carolina ndash disse ela risonhandash Bela noite natildeo

E os dois engataram na conversa e na danccedila noite adentro Sorriam e cantavam como em um filme de eacutepoca Tudo era perfeito O olhar do rapaz dizia que ele poderia muito bem se interessar por aquela pequena Finalmente quem sabe ele namorava algueacutem firme e largava aquela boemia Talvez ateacute casasse Controlou a empolgaccedilatildeo Mas estava decidido a rever a garota no dia seguinte Daria um jeito

Ao final do baile com os corpos moles de tanto dan-ccedilar o rapaz fica surpreso quando ela aceita o convite de uma carona para casa Perfeito de novo Ele mal acredita

Chove muito e ele oferece sua capa para Carolina que se protege enquanto correm para o carro do rapaz Quando chegaram ao bairro do Prado entre a Praccedila da Faculdade e o Cemiteacuterio da Piedade a garota pede que ele a deixe ali na esquina de sua rua Ele insiste para ir ateacute a porta da casa que ficava bem proacutexima Ela res-ponde que prefere assim e falou firme Ele aceita Natildeo queria contrariar a moccedila no fim de uma noite perfeita

ndash Deixo minha capa contigo Amanhatilde venho buscar certo

Ela concorda com um sorriso desce do carro e segue pela rua escura natildeo sem antes deixar seu ende-reccedilo e roubar um beijo do rapaz Ele espera um pouco e quando acha que ela estava na seguranccedila de casa segue seu proacuteprio caminho atraveacutes da garoa fina Jaacute ansioso pelo dia seguinte

Sob a luz de um novo diaNa manhatilde seguinte o rapaz acordou ainda sonhando com a moccedila do baile Voltaria para buscar a capa mera desculpa queria era conquistar Carolina Esperou a manhatilde passar para natildeo incomodar a garota e a famiacutelia em seus afazeres Por volta das 2h da tarde ele foi um tanto nervoso ateacute o endereccedilo indicado no papel na rua em que deixara a jovem na noite anterior

ndash Boa tarde ndash disse uma senhora simpaacutetica que o rapaz identificou como matildee de Carolina Ele apresentou--se muito educado e falou sobre a noite anterior quando conheceu sua filha e explicou que estava ali para buscar a capa e conversar com a moccedila se lhe fosse permitido

A matildee de Carolina Sampaio natildeo conteve as laacutegri-mas e reagiu com agressividade

ndash Minha filha Carolina morreu anos atraacutesO rapaz ficou branco e sentiu como se perdesse o

chatildeo sob seus peacutes Pensou por um segundo e natildeo acre-ditou Imaginou que a matildee natildeo queria a filha tatildeo viccedilosa e sabida de conversa com homem estranho Mas a matildee mostrou a foto de Carolina pendurada na parede e ele a reconheceu Era uma foto de defunto Morta e maquiada como nunca em vida Com data de chegada e saiacuteda deste mundo impressa na moldura

O rapaz cambaleou Primeiro se sentiu mal o estocirc-mago revirou Depois insistiu e teimou Natildeo podia ser A matildee abismada com aquilo o convidou ao Cemiteacuterio da Piedade que ficava a poucos metros daquela mesma rua para ver o tuacutemulo de sua filha

Eles caminharam ateacute a sepultura Laacute estava escrito ldquoCarolina Sampaiordquo com a foto da moccedila do baile E sobre a laacutepide o rapaz encontrou sua capa de chuva preta

Cemiteacuterio da PiedadeMuitas versotildees desta histoacuteria satildeo contadas na capital alagoana Haacute versotildees em que o rapaz eacute um caminho-neiro outras um taxista Versotildees de uma Carolina do seacuteculo XIX Outras dos anos 1980 E talvez seja esta

mdashLenda urbana repercutida em vaacuterias cidades Brasil afora a mulher da capa preta tem homenagem e seacutequitos de curiosos em tuacutemulo do Cemiteacuterio da Piedade em MaceioacutemdashMarcelo Cabral

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13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

riqu

e Alvim

Correcirca p

ara a ediccedilatildeo belga

de ldquoA

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dosrdquo p

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06

27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

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Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

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Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 2: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

editorialmdash

mdash nordm4 mdash novdez 2011

Fantaacutestico incriacutevel inimaginaacutevel Natildeo faltam sinocircnimos nem concepccedilotildees diferentes para esta palavra Daquilo que soacute existe na fantasia ao excep-cional inusitado maravilhoso Acredite se quiser o mundo estaacute cheio de coisas inexplicaacuteveis como a aacutervore em forma de mulher graacutevida que virou ateacute ponto de refe-recircncia em Nova Iguaccedilu na Baixada Fluminense Reza a lenda que uma mulher teria sido assassinada por um marido ciumento bem no exato local onde hoje se encon-tra uma frondosa mangueira Parece histoacuteria de acam-pamento natildeo

Quem quer que ande por este Brasil afora ouve histoacuterias de fantasmas e assombraccedilotildees sacis lobiso-mens procissotildees de almas como mostra a pesquisa-dora que mapeou lendas e mitos do folclore capixaba Haacute tambeacutem o nego drsquoaacutegua imortalizado no Lago Serra da Mesa em Goiaacutes paisagem represada construiacuteda pelas matildeos do homem Se eacute certo que a eletricidade e o des-matamento afetaram radicalmente a ecologia do mundo fantaacutestico tambeacutem as cidades produziram mitos urba-nos como a mulher da capa preta que tem ateacute tuacutemulo

e fieis admiradores em Maceioacute (aleacutem de um bloco car-navalesco em sua homenagem)

Alguns desses casos extraordinaacuterios jaacute foram parar na imprensa como as feiticeiras de Curitiba retratadas na coluna ldquoVitrine do Diabordquo do jornal Diaacute-rio da Tarde Outros foram inventados pela proacutepria imprensa A guerra dos mundos que assustou os ame-ricanos quando narrada em tom jornaliacutestico por Orson Welles tambeacutem pregou uma peccedila nos moradores da capital maranhense em 1971 quando transmitida pela Raacutedio Difusora Devido agrave credibilidade do raacutedio naquela eacutepoca ndash quando televisatildeo era coisa de poucos ricos ndash e do formato jornaliacutestico do programa com flashes ao vivo entrevistas de repoacuterteres locais com especialis-tas e moradores e sonoplastia caprichada teve gente jaacute se preparando para o fim dos tempos

Mas nem sempre o fantaacutestico se confunde com a ficccedilatildeo Agraves vezes tem um tom real dramaacutetico e assustador Em 2005 por exemplo um surto de ldquotreva pretardquo aco-meteu 252 moradores em Araguatins Norte do Tocan-tins Nenhum meacutedico ou cientista foi capaz de explicar

Realizaccedilatildeo

Instituto Overmundomdash

Conselho Diretor

Hermano ViannaRonaldo LemosJoseacute Marcelo Zacchi mdash

Direccedilatildeo Executiva

Oona Castro mdash

Coordenaccedilatildeo Editorial

Viktor Chagas mdash

Coordenaccedilatildeo de Tecnologia

Felipe Vaz mdash

Coordenaccedilatildeo de Economia

da Cultura

Oliacutevia Bandeira mdash

Editora-Chefe

Cristiane Costa mdash

Editores Assistentes

Viktor Chagas Inecircs Nin mdash

Ediccedilatildeo de arte

Bemvindo Estuacutediomdash

Projeto graacutefico original

para versatildeo estaacutetica

Retina 78mdash

Projeto e desenvolvimento

de aplicativo para iPad

Metaesquema Projetos em Arte e TecnologiaSistemas

Cabot Technology Solutions Pvt Ltdmdash

Colaboraram para esta ediccedilatildeo

Glecircs Nascimento (TO)Henrique Reichelt (RS)Janaiacutena Serra (SE)Jean Marconi (DF)Joatildeo Xavi (Alemanha)Marcelo Cabral (AL)Marcos Paulo (RO)Mariana Filgueiras (RJ)Renata Melo (RJ)Sinvaline (GO)Tiago Rubini (RJ)Zema Ribeiro (MA)e muitos outrosmdash

Capa

Evandro Pradomdash

Imagens

Evandro PradoJanaiacutena SerraJean MarconiJoatildeo XaviLeocircnidas VidalMarcelo CabralMarcos PauloRenata MeloToniolo+ reproduccedilotildees autorizadase outrosmdash

A Revista Digital Overmundo eacute resultado do Precircmio SESC Rio de Fomento agrave Cultura na categoria Novas Miacutedias 2010 e derivada do site Overmundo patrocinado desde seu lanccedilamento pela Petrobras

O conteuacutedo desta revista eletrocircnica integra o site Overmundo e estaacute disponiacutevel sob uma licenccedila Creative Commons Atribuiccedilatildeo-Uso natildeo-comercial-Compartilhamento pela mesma licenccedila 30 Brasil (CC BY-NC-SA 30)

Pautas e sugestotildees de pautas para a Revista Overmundo podem ser publicadas diretamente no site Overmundo A equipe editorial da revista estaacute de olho nos conteuacutedos que circulam na rede Quem sabe natildeo eacute uma boa oportunidade para vocecirc exercer a sua veia de repoacuterter e contar pra gente o que de bacana acontece na cena por aiacute na sua cidade -)

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashA Mulher da Capa PretamdashAs raiacutezes de uma gravidezmdash40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livromdashReza bravamdashA Lenda do Nego DrsquoAacuteguamdashmdashOvermundo em piacutelulasmdashParnaso de aleacutem tumulomdash

6

101620

26303436

Poemas sobrenaturais do Conde BelamortemdashT O N I O L O O L O I N O TmdashQuando as aacuteguas dormem mdashUm mundo que continua girando a 33 e 13 mdashO corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifremdashOuro do sertatildeomdashIconogafia pop

38

404854

60

6468

sumaacuteriomdash

por que as pessoas que se banhavam no Rio Araguaia ficaram cegas

Do fantaacutestico ao improvaacutevel a Revista Over-mundo traz ainda a histoacuteria da Copacabana Records uma loja de LPs especializada em muacutesica brasileira que faz sucesso na Alemanha E eacute real mas poderia ser inventada a figura do Conde Belamorte poeta mineiro que sai pela rua com sua manta negra coberta por ade-reccedilos de caveiras

Bem conhecido da populaccedilatildeo local eacute o caso natildeo menos incomum do policial TONIOLO iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre que deixou sua marca gra-vada ateacute no Palaacutecio do Planalto E caacute para noacutes comum tambeacutem natildeo eacute a histoacuteria do radialista JC que haacute 30 anos transformou o sofrimento de uma traiccedilatildeo amorosa no programa dominical ldquoHora do Boirdquo sucesso da raacutedio Transamazocircnica de Porto Velho Natildeo haacute remeacutedio para chifre mas para quem vai dar a volta por cima e comeccedilar uma nova relaccedilatildeo deve ficar atento numa frutinha do cer-rado que garantem ser oacutetimo afrodisiacuteaco o pequi Pode ser lenda ou ateacute desculpa esfarrapada mas em Minas o pequi eacute quase um boto fala-se em ldquofilhos do pequirdquo para denominar as crianccedilas que nascem nove meses depois da colheita da fruta Natildeo acredita A Revista Overmundo estaacute aiacute para (vocecirc) provar

Cristiane CostaViktor Chagas

Eva

nd

ro P

rad

o

07 | nov-dez 2011 |06

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashDocumentaacuterio relata o surto de ldquotreva pretardquo que acometeu 252 moradores em Araguatins Norte do Tocantins em 2005mdashGlecircs Nascimento

Joatildeo Batista tomou banho agraves mar-gens direitas do Rio Araguaia Em algumas horas os olhos comeccedilaram a coccedilar e arder Dias depois ele estava cego Uma massa branca cobria o olho esquerdo e ele natildeo enxergava mais nada Depois dele vieram outros Todos com os mesmos sintomas Parece com algum filme que vocecirc jaacute viu ou com algum livro que vocecirc jaacute leu Sim Lembra muito a obra Ensaio sobre a cegueira claacutessico de Joseacute Saramago filmado por Fernando Meirelles e exibido nas salas de cinema de todo o mundo em 2008

Mas natildeo eacute A histoacuteria que parece ficccedilatildeo eacute real e aconteceu de fato em 2005 em Araguatins Norte do Tocantins localizada a 601 km de Palmas De tatildeo inusi-tado o caso virou filme o documentaacuterio O misteacuterio do globo ocular do cineacutefilo jornalista e documentarista Wherbert Arauacutejo

ldquoFernando Meirelles e Saramago que me perdoemrdquo afirma o jornalista Ele faz a mea culpa das semelhan-ccedilas porque natildeo podia deixar de filmar a doenccedila miste-riosa que acometeu 252 moradores de Araguatins entre 2005 e 2007

O documentaacuterio fez parte do 4ordm Concurso DocTV Brasil e foi exibido em 2010 para todo o paiacutes pela TV

Brasil ldquoO slogan do DocTV dizia assim quando a reali-dade parece ficccedilatildeo estaacute na hora de fazer um documen-taacuterio E foi o que fizrdquo disse Arauacutejo

Um mais igual que o outroAs histoacuterias se parecem mas tambeacutem haacute diferenccedilas No filme de Arauacutejo as pessoas declaram enxergar a escuri-datildeo ldquoTudo preto eu vejo tudo escurordquo disse Joatildeo Batista Jaacute em Ensaio sobre a cegueira a treva eacute branca como leite ldquoClaro que me baseei no livro Quando entrega-mos o roteiro o filme ainda natildeo tinha sido lanccedilado estava em produccedilatildeo mas fiz questatildeo de reler o livrordquo afirmou Arauacutejo

Segundo ele a histoacuteria de Saramago marcou muito uma fase de sua vida ldquoLi num periacuteodo muito ruim era 2001 estava desempregadordquo O livro foi revisitado quando ele teve a ideia do filme Arauacutejo trabalhava num jornal local e viajou assim como dezenas de jornalistas do Brasil para relatar a histoacuteria de Araguatins ldquoEssa conexatildeo com o Ensaio sobre a cegueira aconteceu por-que quando as pessoas estatildeo numa situaccedilatildeo extrema como esta acabam perdendo o caraacuteter de humanidade Entram em desesperordquo lembrou

divu

lgaccedilatildeo

09 | nov-dez 2011 |08

Em O Misteacuteriohellip a afliccedilatildeo eacute tanta que um dos personagens quis cortar a retina com uma lacircmina para tirar a agonia Ele pensou em tomar cachaccedila e arran-car o mal pela raiz levando a dor e o desconforto que a treva ocular o causou Ouvi-lo falar isso chega a dar tristeza em quem assiste ao documentaacuterio Outro per-sonagem sofreu tanto com a dor que colocou uma proacute-tese no lugar do olho

A vida imita a arte ou vice-versaAraguatins era um municiacutepio que jamais mereceria destaque nacional ateacute entatildeo Com 30 mil habitantes a cidade eacute pacata e se movimentava mesmo de julho a setembro durante a temporada de praia ndash de aacutegua doce

ndash que lotava de banhistas o Rio Araguaia Mas o cenaacuterio mudou quando comeccedilou o surto de

cegueira Em trecircs anos muitas pessoas comeccedilaram a per-der a visatildeo depois de tomar banho no rio ndash ironicamente o mesmo que dava sustento atraveacutes da pesca e movimentava o turismo local ldquoFoi uma situaccedilatildeo atiacutepica para a cidade de Araguatins e para o mundordquo relembra o jornalista

O episoacutedio marcou o Tocantins e na eacutepoca atraiu a imprensa nacional e internacional meacutedicos pesquisadores e muitos curiosos ldquoEu tive a sorte de

ser repoacuterter do Jornal do Tocantins e ter sido enca-minhado para aquela cidade por diversas vezes para noticiar o problema Com o passar do tempo jaacute fora do jornal mas realizando vaacuterias viagens agravequele muni-ciacutepio percebi que muito daquela histoacuteria ainda natildeo tinha sido contadardquo

Acampamentos foram montados na beira do rio para abrigar jornalistas doutores e autoridades da medi-cina A cada dia um novo boletim era divulgado mais viacutetimas apareciam e mais possibilidades e nomes estra-nhos tomavam conta do imaginaacuterio popular Uns diziam que era um caramujo outros que era uma alga havia aqueles que afirmavam serem os produtos quiacutemicos jogados na aacutegua os causadores do mal Mas de verdade ateacute hoje natildeo haacute explicaccedilatildeo para a cegueira em Aragua-tins Amostras da aacutegua do rio foram levadas para Satildeo Paulo e para o exterior E nada de respostas

O misteacuterio do globo ocular natildeo traz a soluccedilatildeo nem aponta suas causas mas mostra a histoacuteria pela oacutetica ndash sem trocadilho ndash de vaacuterias pessoas quem viveu o problema os meacutedicos as autoridades e o povo A nar-rativa foi inspirada no filme Elefante (Gus Van Sant 2003) cuja perspectiva eacute mostrada a partir de vaacuterios pontos de vista E tambeacutem em filmes da deacutecada de

1980 como A coisa (Larry Cohen 1985) ldquoEacute como se algo estranho viesse e invadisse uma cidade pacata Os filmes que falavam dessas questotildees tudo isso me ins-pirourdquo conta o diretor

Dos planosldquoAinda quero transformar O misteacuteriohellip em uma ficccedilatildeo ou refilmar sob a oacutetica de quem natildeo ficou cego Assim como no Ensaio sobre a cegueira em que um persona-gem permanece enxergando Laacute tambeacutem uma irmatilde de umas viacutetimas que tambeacutem se banhou no rio natildeo ficou cegardquo diz Arauacutejo

Por enquanto ele trabalha em outra obra parte real parte ficcional A hora maacutegica retrataraacute momen-tos luacutedicos de sua infacircncia em Pedro Afonso interior do Tocantins ldquoEacute um filme autobiograacutefico e muito mais doloroso de fazerrdquo revelou Wherbert Arauacutejo Vamos esperar para verhellip

div

ulg

accedilatildeo

11 | nov-dez 2011 |10

A Mulher da Capa Preta

Antes de qualquer coisa esta eacute uma histoacuteria de fantasma Portanto quem tem um coraccedilatildeo com tendecircncia a fraquejar ou eacute desprovido do sangue frio necessaacuterio para seguir adiante pare a leitura agora e procure outro assunto pra entreter o juiacutezo deixando de lado essas coisas do aleacutem Jaacute para quem aprecia uma bela histoacuteria de amor um romance juvenil este causo maceioense pode ser um prato cheio

Conheccedila o pouco que todos em Maceioacute conhecem sobre a jovem e bela Carolina Sampaio ou Carol cuja histoacuteria foi contada em trova e verso por toda a cidade e jaacute virou ateacute bloco de carnaval De boca em boca inuacute-meras versotildees de sua suposta histoacuteria foram repassadas entre os maceioenses por pelo menos trecircs geraccedilotildees

Uma noite romacircnticaNa Maceioacute de outros tempos menor e mais ingecircnua a cidade vivia noites de festa e alegria nos grandes bailes que lotavam clubes que natildeo existem mais Talvez apenas na memoacuteria dos mais velhos Certa noite nesta Maceioacute romacircntica Carolina estava apreciando o grande baile com banda de fora e tudo quando percebeu os olhares interessados de um simpaacutetico rapaz bem vestido que segurava no braccedilo uma capa de chuva preta

O desconhecido tomou coragem e foi falar com ela

ndash Olaacute moccedila bonita Qual o seu nomendash Carolina ndash disse ela risonhandash Bela noite natildeo

E os dois engataram na conversa e na danccedila noite adentro Sorriam e cantavam como em um filme de eacutepoca Tudo era perfeito O olhar do rapaz dizia que ele poderia muito bem se interessar por aquela pequena Finalmente quem sabe ele namorava algueacutem firme e largava aquela boemia Talvez ateacute casasse Controlou a empolgaccedilatildeo Mas estava decidido a rever a garota no dia seguinte Daria um jeito

Ao final do baile com os corpos moles de tanto dan-ccedilar o rapaz fica surpreso quando ela aceita o convite de uma carona para casa Perfeito de novo Ele mal acredita

Chove muito e ele oferece sua capa para Carolina que se protege enquanto correm para o carro do rapaz Quando chegaram ao bairro do Prado entre a Praccedila da Faculdade e o Cemiteacuterio da Piedade a garota pede que ele a deixe ali na esquina de sua rua Ele insiste para ir ateacute a porta da casa que ficava bem proacutexima Ela res-ponde que prefere assim e falou firme Ele aceita Natildeo queria contrariar a moccedila no fim de uma noite perfeita

ndash Deixo minha capa contigo Amanhatilde venho buscar certo

Ela concorda com um sorriso desce do carro e segue pela rua escura natildeo sem antes deixar seu ende-reccedilo e roubar um beijo do rapaz Ele espera um pouco e quando acha que ela estava na seguranccedila de casa segue seu proacuteprio caminho atraveacutes da garoa fina Jaacute ansioso pelo dia seguinte

Sob a luz de um novo diaNa manhatilde seguinte o rapaz acordou ainda sonhando com a moccedila do baile Voltaria para buscar a capa mera desculpa queria era conquistar Carolina Esperou a manhatilde passar para natildeo incomodar a garota e a famiacutelia em seus afazeres Por volta das 2h da tarde ele foi um tanto nervoso ateacute o endereccedilo indicado no papel na rua em que deixara a jovem na noite anterior

ndash Boa tarde ndash disse uma senhora simpaacutetica que o rapaz identificou como matildee de Carolina Ele apresentou--se muito educado e falou sobre a noite anterior quando conheceu sua filha e explicou que estava ali para buscar a capa e conversar com a moccedila se lhe fosse permitido

A matildee de Carolina Sampaio natildeo conteve as laacutegri-mas e reagiu com agressividade

ndash Minha filha Carolina morreu anos atraacutesO rapaz ficou branco e sentiu como se perdesse o

chatildeo sob seus peacutes Pensou por um segundo e natildeo acre-ditou Imaginou que a matildee natildeo queria a filha tatildeo viccedilosa e sabida de conversa com homem estranho Mas a matildee mostrou a foto de Carolina pendurada na parede e ele a reconheceu Era uma foto de defunto Morta e maquiada como nunca em vida Com data de chegada e saiacuteda deste mundo impressa na moldura

O rapaz cambaleou Primeiro se sentiu mal o estocirc-mago revirou Depois insistiu e teimou Natildeo podia ser A matildee abismada com aquilo o convidou ao Cemiteacuterio da Piedade que ficava a poucos metros daquela mesma rua para ver o tuacutemulo de sua filha

Eles caminharam ateacute a sepultura Laacute estava escrito ldquoCarolina Sampaiordquo com a foto da moccedila do baile E sobre a laacutepide o rapaz encontrou sua capa de chuva preta

Cemiteacuterio da PiedadeMuitas versotildees desta histoacuteria satildeo contadas na capital alagoana Haacute versotildees em que o rapaz eacute um caminho-neiro outras um taxista Versotildees de uma Carolina do seacuteculo XIX Outras dos anos 1980 E talvez seja esta

mdashLenda urbana repercutida em vaacuterias cidades Brasil afora a mulher da capa preta tem homenagem e seacutequitos de curiosos em tuacutemulo do Cemiteacuterio da Piedade em MaceioacutemdashMarcelo Cabral

foto

s M

arce

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abra

l

13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

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71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 3: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashA Mulher da Capa PretamdashAs raiacutezes de uma gravidezmdash40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livromdashReza bravamdashA Lenda do Nego DrsquoAacuteguamdashmdashOvermundo em piacutelulasmdashParnaso de aleacutem tumulomdash

6

101620

26303436

Poemas sobrenaturais do Conde BelamortemdashT O N I O L O O L O I N O TmdashQuando as aacuteguas dormem mdashUm mundo que continua girando a 33 e 13 mdashO corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifremdashOuro do sertatildeomdashIconogafia pop

38

404854

60

6468

sumaacuteriomdash

por que as pessoas que se banhavam no Rio Araguaia ficaram cegas

Do fantaacutestico ao improvaacutevel a Revista Over-mundo traz ainda a histoacuteria da Copacabana Records uma loja de LPs especializada em muacutesica brasileira que faz sucesso na Alemanha E eacute real mas poderia ser inventada a figura do Conde Belamorte poeta mineiro que sai pela rua com sua manta negra coberta por ade-reccedilos de caveiras

Bem conhecido da populaccedilatildeo local eacute o caso natildeo menos incomum do policial TONIOLO iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre que deixou sua marca gra-vada ateacute no Palaacutecio do Planalto E caacute para noacutes comum tambeacutem natildeo eacute a histoacuteria do radialista JC que haacute 30 anos transformou o sofrimento de uma traiccedilatildeo amorosa no programa dominical ldquoHora do Boirdquo sucesso da raacutedio Transamazocircnica de Porto Velho Natildeo haacute remeacutedio para chifre mas para quem vai dar a volta por cima e comeccedilar uma nova relaccedilatildeo deve ficar atento numa frutinha do cer-rado que garantem ser oacutetimo afrodisiacuteaco o pequi Pode ser lenda ou ateacute desculpa esfarrapada mas em Minas o pequi eacute quase um boto fala-se em ldquofilhos do pequirdquo para denominar as crianccedilas que nascem nove meses depois da colheita da fruta Natildeo acredita A Revista Overmundo estaacute aiacute para (vocecirc) provar

Cristiane CostaViktor Chagas

Eva

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07 | nov-dez 2011 |06

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashDocumentaacuterio relata o surto de ldquotreva pretardquo que acometeu 252 moradores em Araguatins Norte do Tocantins em 2005mdashGlecircs Nascimento

Joatildeo Batista tomou banho agraves mar-gens direitas do Rio Araguaia Em algumas horas os olhos comeccedilaram a coccedilar e arder Dias depois ele estava cego Uma massa branca cobria o olho esquerdo e ele natildeo enxergava mais nada Depois dele vieram outros Todos com os mesmos sintomas Parece com algum filme que vocecirc jaacute viu ou com algum livro que vocecirc jaacute leu Sim Lembra muito a obra Ensaio sobre a cegueira claacutessico de Joseacute Saramago filmado por Fernando Meirelles e exibido nas salas de cinema de todo o mundo em 2008

Mas natildeo eacute A histoacuteria que parece ficccedilatildeo eacute real e aconteceu de fato em 2005 em Araguatins Norte do Tocantins localizada a 601 km de Palmas De tatildeo inusi-tado o caso virou filme o documentaacuterio O misteacuterio do globo ocular do cineacutefilo jornalista e documentarista Wherbert Arauacutejo

ldquoFernando Meirelles e Saramago que me perdoemrdquo afirma o jornalista Ele faz a mea culpa das semelhan-ccedilas porque natildeo podia deixar de filmar a doenccedila miste-riosa que acometeu 252 moradores de Araguatins entre 2005 e 2007

O documentaacuterio fez parte do 4ordm Concurso DocTV Brasil e foi exibido em 2010 para todo o paiacutes pela TV

Brasil ldquoO slogan do DocTV dizia assim quando a reali-dade parece ficccedilatildeo estaacute na hora de fazer um documen-taacuterio E foi o que fizrdquo disse Arauacutejo

Um mais igual que o outroAs histoacuterias se parecem mas tambeacutem haacute diferenccedilas No filme de Arauacutejo as pessoas declaram enxergar a escuri-datildeo ldquoTudo preto eu vejo tudo escurordquo disse Joatildeo Batista Jaacute em Ensaio sobre a cegueira a treva eacute branca como leite ldquoClaro que me baseei no livro Quando entrega-mos o roteiro o filme ainda natildeo tinha sido lanccedilado estava em produccedilatildeo mas fiz questatildeo de reler o livrordquo afirmou Arauacutejo

Segundo ele a histoacuteria de Saramago marcou muito uma fase de sua vida ldquoLi num periacuteodo muito ruim era 2001 estava desempregadordquo O livro foi revisitado quando ele teve a ideia do filme Arauacutejo trabalhava num jornal local e viajou assim como dezenas de jornalistas do Brasil para relatar a histoacuteria de Araguatins ldquoEssa conexatildeo com o Ensaio sobre a cegueira aconteceu por-que quando as pessoas estatildeo numa situaccedilatildeo extrema como esta acabam perdendo o caraacuteter de humanidade Entram em desesperordquo lembrou

divu

lgaccedilatildeo

09 | nov-dez 2011 |08

Em O Misteacuteriohellip a afliccedilatildeo eacute tanta que um dos personagens quis cortar a retina com uma lacircmina para tirar a agonia Ele pensou em tomar cachaccedila e arran-car o mal pela raiz levando a dor e o desconforto que a treva ocular o causou Ouvi-lo falar isso chega a dar tristeza em quem assiste ao documentaacuterio Outro per-sonagem sofreu tanto com a dor que colocou uma proacute-tese no lugar do olho

A vida imita a arte ou vice-versaAraguatins era um municiacutepio que jamais mereceria destaque nacional ateacute entatildeo Com 30 mil habitantes a cidade eacute pacata e se movimentava mesmo de julho a setembro durante a temporada de praia ndash de aacutegua doce

ndash que lotava de banhistas o Rio Araguaia Mas o cenaacuterio mudou quando comeccedilou o surto de

cegueira Em trecircs anos muitas pessoas comeccedilaram a per-der a visatildeo depois de tomar banho no rio ndash ironicamente o mesmo que dava sustento atraveacutes da pesca e movimentava o turismo local ldquoFoi uma situaccedilatildeo atiacutepica para a cidade de Araguatins e para o mundordquo relembra o jornalista

O episoacutedio marcou o Tocantins e na eacutepoca atraiu a imprensa nacional e internacional meacutedicos pesquisadores e muitos curiosos ldquoEu tive a sorte de

ser repoacuterter do Jornal do Tocantins e ter sido enca-minhado para aquela cidade por diversas vezes para noticiar o problema Com o passar do tempo jaacute fora do jornal mas realizando vaacuterias viagens agravequele muni-ciacutepio percebi que muito daquela histoacuteria ainda natildeo tinha sido contadardquo

Acampamentos foram montados na beira do rio para abrigar jornalistas doutores e autoridades da medi-cina A cada dia um novo boletim era divulgado mais viacutetimas apareciam e mais possibilidades e nomes estra-nhos tomavam conta do imaginaacuterio popular Uns diziam que era um caramujo outros que era uma alga havia aqueles que afirmavam serem os produtos quiacutemicos jogados na aacutegua os causadores do mal Mas de verdade ateacute hoje natildeo haacute explicaccedilatildeo para a cegueira em Aragua-tins Amostras da aacutegua do rio foram levadas para Satildeo Paulo e para o exterior E nada de respostas

O misteacuterio do globo ocular natildeo traz a soluccedilatildeo nem aponta suas causas mas mostra a histoacuteria pela oacutetica ndash sem trocadilho ndash de vaacuterias pessoas quem viveu o problema os meacutedicos as autoridades e o povo A nar-rativa foi inspirada no filme Elefante (Gus Van Sant 2003) cuja perspectiva eacute mostrada a partir de vaacuterios pontos de vista E tambeacutem em filmes da deacutecada de

1980 como A coisa (Larry Cohen 1985) ldquoEacute como se algo estranho viesse e invadisse uma cidade pacata Os filmes que falavam dessas questotildees tudo isso me ins-pirourdquo conta o diretor

Dos planosldquoAinda quero transformar O misteacuteriohellip em uma ficccedilatildeo ou refilmar sob a oacutetica de quem natildeo ficou cego Assim como no Ensaio sobre a cegueira em que um persona-gem permanece enxergando Laacute tambeacutem uma irmatilde de umas viacutetimas que tambeacutem se banhou no rio natildeo ficou cegardquo diz Arauacutejo

Por enquanto ele trabalha em outra obra parte real parte ficcional A hora maacutegica retrataraacute momen-tos luacutedicos de sua infacircncia em Pedro Afonso interior do Tocantins ldquoEacute um filme autobiograacutefico e muito mais doloroso de fazerrdquo revelou Wherbert Arauacutejo Vamos esperar para verhellip

div

ulg

accedilatildeo

11 | nov-dez 2011 |10

A Mulher da Capa Preta

Antes de qualquer coisa esta eacute uma histoacuteria de fantasma Portanto quem tem um coraccedilatildeo com tendecircncia a fraquejar ou eacute desprovido do sangue frio necessaacuterio para seguir adiante pare a leitura agora e procure outro assunto pra entreter o juiacutezo deixando de lado essas coisas do aleacutem Jaacute para quem aprecia uma bela histoacuteria de amor um romance juvenil este causo maceioense pode ser um prato cheio

Conheccedila o pouco que todos em Maceioacute conhecem sobre a jovem e bela Carolina Sampaio ou Carol cuja histoacuteria foi contada em trova e verso por toda a cidade e jaacute virou ateacute bloco de carnaval De boca em boca inuacute-meras versotildees de sua suposta histoacuteria foram repassadas entre os maceioenses por pelo menos trecircs geraccedilotildees

Uma noite romacircnticaNa Maceioacute de outros tempos menor e mais ingecircnua a cidade vivia noites de festa e alegria nos grandes bailes que lotavam clubes que natildeo existem mais Talvez apenas na memoacuteria dos mais velhos Certa noite nesta Maceioacute romacircntica Carolina estava apreciando o grande baile com banda de fora e tudo quando percebeu os olhares interessados de um simpaacutetico rapaz bem vestido que segurava no braccedilo uma capa de chuva preta

O desconhecido tomou coragem e foi falar com ela

ndash Olaacute moccedila bonita Qual o seu nomendash Carolina ndash disse ela risonhandash Bela noite natildeo

E os dois engataram na conversa e na danccedila noite adentro Sorriam e cantavam como em um filme de eacutepoca Tudo era perfeito O olhar do rapaz dizia que ele poderia muito bem se interessar por aquela pequena Finalmente quem sabe ele namorava algueacutem firme e largava aquela boemia Talvez ateacute casasse Controlou a empolgaccedilatildeo Mas estava decidido a rever a garota no dia seguinte Daria um jeito

Ao final do baile com os corpos moles de tanto dan-ccedilar o rapaz fica surpreso quando ela aceita o convite de uma carona para casa Perfeito de novo Ele mal acredita

Chove muito e ele oferece sua capa para Carolina que se protege enquanto correm para o carro do rapaz Quando chegaram ao bairro do Prado entre a Praccedila da Faculdade e o Cemiteacuterio da Piedade a garota pede que ele a deixe ali na esquina de sua rua Ele insiste para ir ateacute a porta da casa que ficava bem proacutexima Ela res-ponde que prefere assim e falou firme Ele aceita Natildeo queria contrariar a moccedila no fim de uma noite perfeita

ndash Deixo minha capa contigo Amanhatilde venho buscar certo

Ela concorda com um sorriso desce do carro e segue pela rua escura natildeo sem antes deixar seu ende-reccedilo e roubar um beijo do rapaz Ele espera um pouco e quando acha que ela estava na seguranccedila de casa segue seu proacuteprio caminho atraveacutes da garoa fina Jaacute ansioso pelo dia seguinte

Sob a luz de um novo diaNa manhatilde seguinte o rapaz acordou ainda sonhando com a moccedila do baile Voltaria para buscar a capa mera desculpa queria era conquistar Carolina Esperou a manhatilde passar para natildeo incomodar a garota e a famiacutelia em seus afazeres Por volta das 2h da tarde ele foi um tanto nervoso ateacute o endereccedilo indicado no papel na rua em que deixara a jovem na noite anterior

ndash Boa tarde ndash disse uma senhora simpaacutetica que o rapaz identificou como matildee de Carolina Ele apresentou--se muito educado e falou sobre a noite anterior quando conheceu sua filha e explicou que estava ali para buscar a capa e conversar com a moccedila se lhe fosse permitido

A matildee de Carolina Sampaio natildeo conteve as laacutegri-mas e reagiu com agressividade

ndash Minha filha Carolina morreu anos atraacutesO rapaz ficou branco e sentiu como se perdesse o

chatildeo sob seus peacutes Pensou por um segundo e natildeo acre-ditou Imaginou que a matildee natildeo queria a filha tatildeo viccedilosa e sabida de conversa com homem estranho Mas a matildee mostrou a foto de Carolina pendurada na parede e ele a reconheceu Era uma foto de defunto Morta e maquiada como nunca em vida Com data de chegada e saiacuteda deste mundo impressa na moldura

O rapaz cambaleou Primeiro se sentiu mal o estocirc-mago revirou Depois insistiu e teimou Natildeo podia ser A matildee abismada com aquilo o convidou ao Cemiteacuterio da Piedade que ficava a poucos metros daquela mesma rua para ver o tuacutemulo de sua filha

Eles caminharam ateacute a sepultura Laacute estava escrito ldquoCarolina Sampaiordquo com a foto da moccedila do baile E sobre a laacutepide o rapaz encontrou sua capa de chuva preta

Cemiteacuterio da PiedadeMuitas versotildees desta histoacuteria satildeo contadas na capital alagoana Haacute versotildees em que o rapaz eacute um caminho-neiro outras um taxista Versotildees de uma Carolina do seacuteculo XIX Outras dos anos 1980 E talvez seja esta

mdashLenda urbana repercutida em vaacuterias cidades Brasil afora a mulher da capa preta tem homenagem e seacutequitos de curiosos em tuacutemulo do Cemiteacuterio da Piedade em MaceioacutemdashMarcelo Cabral

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abra

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13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

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40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

arte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

ilu

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 4: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

07 | nov-dez 2011 |06

O verdadeiro ensaio sobre a cegueiramdashDocumentaacuterio relata o surto de ldquotreva pretardquo que acometeu 252 moradores em Araguatins Norte do Tocantins em 2005mdashGlecircs Nascimento

Joatildeo Batista tomou banho agraves mar-gens direitas do Rio Araguaia Em algumas horas os olhos comeccedilaram a coccedilar e arder Dias depois ele estava cego Uma massa branca cobria o olho esquerdo e ele natildeo enxergava mais nada Depois dele vieram outros Todos com os mesmos sintomas Parece com algum filme que vocecirc jaacute viu ou com algum livro que vocecirc jaacute leu Sim Lembra muito a obra Ensaio sobre a cegueira claacutessico de Joseacute Saramago filmado por Fernando Meirelles e exibido nas salas de cinema de todo o mundo em 2008

Mas natildeo eacute A histoacuteria que parece ficccedilatildeo eacute real e aconteceu de fato em 2005 em Araguatins Norte do Tocantins localizada a 601 km de Palmas De tatildeo inusi-tado o caso virou filme o documentaacuterio O misteacuterio do globo ocular do cineacutefilo jornalista e documentarista Wherbert Arauacutejo

ldquoFernando Meirelles e Saramago que me perdoemrdquo afirma o jornalista Ele faz a mea culpa das semelhan-ccedilas porque natildeo podia deixar de filmar a doenccedila miste-riosa que acometeu 252 moradores de Araguatins entre 2005 e 2007

O documentaacuterio fez parte do 4ordm Concurso DocTV Brasil e foi exibido em 2010 para todo o paiacutes pela TV

Brasil ldquoO slogan do DocTV dizia assim quando a reali-dade parece ficccedilatildeo estaacute na hora de fazer um documen-taacuterio E foi o que fizrdquo disse Arauacutejo

Um mais igual que o outroAs histoacuterias se parecem mas tambeacutem haacute diferenccedilas No filme de Arauacutejo as pessoas declaram enxergar a escuri-datildeo ldquoTudo preto eu vejo tudo escurordquo disse Joatildeo Batista Jaacute em Ensaio sobre a cegueira a treva eacute branca como leite ldquoClaro que me baseei no livro Quando entrega-mos o roteiro o filme ainda natildeo tinha sido lanccedilado estava em produccedilatildeo mas fiz questatildeo de reler o livrordquo afirmou Arauacutejo

Segundo ele a histoacuteria de Saramago marcou muito uma fase de sua vida ldquoLi num periacuteodo muito ruim era 2001 estava desempregadordquo O livro foi revisitado quando ele teve a ideia do filme Arauacutejo trabalhava num jornal local e viajou assim como dezenas de jornalistas do Brasil para relatar a histoacuteria de Araguatins ldquoEssa conexatildeo com o Ensaio sobre a cegueira aconteceu por-que quando as pessoas estatildeo numa situaccedilatildeo extrema como esta acabam perdendo o caraacuteter de humanidade Entram em desesperordquo lembrou

divu

lgaccedilatildeo

09 | nov-dez 2011 |08

Em O Misteacuteriohellip a afliccedilatildeo eacute tanta que um dos personagens quis cortar a retina com uma lacircmina para tirar a agonia Ele pensou em tomar cachaccedila e arran-car o mal pela raiz levando a dor e o desconforto que a treva ocular o causou Ouvi-lo falar isso chega a dar tristeza em quem assiste ao documentaacuterio Outro per-sonagem sofreu tanto com a dor que colocou uma proacute-tese no lugar do olho

A vida imita a arte ou vice-versaAraguatins era um municiacutepio que jamais mereceria destaque nacional ateacute entatildeo Com 30 mil habitantes a cidade eacute pacata e se movimentava mesmo de julho a setembro durante a temporada de praia ndash de aacutegua doce

ndash que lotava de banhistas o Rio Araguaia Mas o cenaacuterio mudou quando comeccedilou o surto de

cegueira Em trecircs anos muitas pessoas comeccedilaram a per-der a visatildeo depois de tomar banho no rio ndash ironicamente o mesmo que dava sustento atraveacutes da pesca e movimentava o turismo local ldquoFoi uma situaccedilatildeo atiacutepica para a cidade de Araguatins e para o mundordquo relembra o jornalista

O episoacutedio marcou o Tocantins e na eacutepoca atraiu a imprensa nacional e internacional meacutedicos pesquisadores e muitos curiosos ldquoEu tive a sorte de

ser repoacuterter do Jornal do Tocantins e ter sido enca-minhado para aquela cidade por diversas vezes para noticiar o problema Com o passar do tempo jaacute fora do jornal mas realizando vaacuterias viagens agravequele muni-ciacutepio percebi que muito daquela histoacuteria ainda natildeo tinha sido contadardquo

Acampamentos foram montados na beira do rio para abrigar jornalistas doutores e autoridades da medi-cina A cada dia um novo boletim era divulgado mais viacutetimas apareciam e mais possibilidades e nomes estra-nhos tomavam conta do imaginaacuterio popular Uns diziam que era um caramujo outros que era uma alga havia aqueles que afirmavam serem os produtos quiacutemicos jogados na aacutegua os causadores do mal Mas de verdade ateacute hoje natildeo haacute explicaccedilatildeo para a cegueira em Aragua-tins Amostras da aacutegua do rio foram levadas para Satildeo Paulo e para o exterior E nada de respostas

O misteacuterio do globo ocular natildeo traz a soluccedilatildeo nem aponta suas causas mas mostra a histoacuteria pela oacutetica ndash sem trocadilho ndash de vaacuterias pessoas quem viveu o problema os meacutedicos as autoridades e o povo A nar-rativa foi inspirada no filme Elefante (Gus Van Sant 2003) cuja perspectiva eacute mostrada a partir de vaacuterios pontos de vista E tambeacutem em filmes da deacutecada de

1980 como A coisa (Larry Cohen 1985) ldquoEacute como se algo estranho viesse e invadisse uma cidade pacata Os filmes que falavam dessas questotildees tudo isso me ins-pirourdquo conta o diretor

Dos planosldquoAinda quero transformar O misteacuteriohellip em uma ficccedilatildeo ou refilmar sob a oacutetica de quem natildeo ficou cego Assim como no Ensaio sobre a cegueira em que um persona-gem permanece enxergando Laacute tambeacutem uma irmatilde de umas viacutetimas que tambeacutem se banhou no rio natildeo ficou cegardquo diz Arauacutejo

Por enquanto ele trabalha em outra obra parte real parte ficcional A hora maacutegica retrataraacute momen-tos luacutedicos de sua infacircncia em Pedro Afonso interior do Tocantins ldquoEacute um filme autobiograacutefico e muito mais doloroso de fazerrdquo revelou Wherbert Arauacutejo Vamos esperar para verhellip

div

ulg

accedilatildeo

11 | nov-dez 2011 |10

A Mulher da Capa Preta

Antes de qualquer coisa esta eacute uma histoacuteria de fantasma Portanto quem tem um coraccedilatildeo com tendecircncia a fraquejar ou eacute desprovido do sangue frio necessaacuterio para seguir adiante pare a leitura agora e procure outro assunto pra entreter o juiacutezo deixando de lado essas coisas do aleacutem Jaacute para quem aprecia uma bela histoacuteria de amor um romance juvenil este causo maceioense pode ser um prato cheio

Conheccedila o pouco que todos em Maceioacute conhecem sobre a jovem e bela Carolina Sampaio ou Carol cuja histoacuteria foi contada em trova e verso por toda a cidade e jaacute virou ateacute bloco de carnaval De boca em boca inuacute-meras versotildees de sua suposta histoacuteria foram repassadas entre os maceioenses por pelo menos trecircs geraccedilotildees

Uma noite romacircnticaNa Maceioacute de outros tempos menor e mais ingecircnua a cidade vivia noites de festa e alegria nos grandes bailes que lotavam clubes que natildeo existem mais Talvez apenas na memoacuteria dos mais velhos Certa noite nesta Maceioacute romacircntica Carolina estava apreciando o grande baile com banda de fora e tudo quando percebeu os olhares interessados de um simpaacutetico rapaz bem vestido que segurava no braccedilo uma capa de chuva preta

O desconhecido tomou coragem e foi falar com ela

ndash Olaacute moccedila bonita Qual o seu nomendash Carolina ndash disse ela risonhandash Bela noite natildeo

E os dois engataram na conversa e na danccedila noite adentro Sorriam e cantavam como em um filme de eacutepoca Tudo era perfeito O olhar do rapaz dizia que ele poderia muito bem se interessar por aquela pequena Finalmente quem sabe ele namorava algueacutem firme e largava aquela boemia Talvez ateacute casasse Controlou a empolgaccedilatildeo Mas estava decidido a rever a garota no dia seguinte Daria um jeito

Ao final do baile com os corpos moles de tanto dan-ccedilar o rapaz fica surpreso quando ela aceita o convite de uma carona para casa Perfeito de novo Ele mal acredita

Chove muito e ele oferece sua capa para Carolina que se protege enquanto correm para o carro do rapaz Quando chegaram ao bairro do Prado entre a Praccedila da Faculdade e o Cemiteacuterio da Piedade a garota pede que ele a deixe ali na esquina de sua rua Ele insiste para ir ateacute a porta da casa que ficava bem proacutexima Ela res-ponde que prefere assim e falou firme Ele aceita Natildeo queria contrariar a moccedila no fim de uma noite perfeita

ndash Deixo minha capa contigo Amanhatilde venho buscar certo

Ela concorda com um sorriso desce do carro e segue pela rua escura natildeo sem antes deixar seu ende-reccedilo e roubar um beijo do rapaz Ele espera um pouco e quando acha que ela estava na seguranccedila de casa segue seu proacuteprio caminho atraveacutes da garoa fina Jaacute ansioso pelo dia seguinte

Sob a luz de um novo diaNa manhatilde seguinte o rapaz acordou ainda sonhando com a moccedila do baile Voltaria para buscar a capa mera desculpa queria era conquistar Carolina Esperou a manhatilde passar para natildeo incomodar a garota e a famiacutelia em seus afazeres Por volta das 2h da tarde ele foi um tanto nervoso ateacute o endereccedilo indicado no papel na rua em que deixara a jovem na noite anterior

ndash Boa tarde ndash disse uma senhora simpaacutetica que o rapaz identificou como matildee de Carolina Ele apresentou--se muito educado e falou sobre a noite anterior quando conheceu sua filha e explicou que estava ali para buscar a capa e conversar com a moccedila se lhe fosse permitido

A matildee de Carolina Sampaio natildeo conteve as laacutegri-mas e reagiu com agressividade

ndash Minha filha Carolina morreu anos atraacutesO rapaz ficou branco e sentiu como se perdesse o

chatildeo sob seus peacutes Pensou por um segundo e natildeo acre-ditou Imaginou que a matildee natildeo queria a filha tatildeo viccedilosa e sabida de conversa com homem estranho Mas a matildee mostrou a foto de Carolina pendurada na parede e ele a reconheceu Era uma foto de defunto Morta e maquiada como nunca em vida Com data de chegada e saiacuteda deste mundo impressa na moldura

O rapaz cambaleou Primeiro se sentiu mal o estocirc-mago revirou Depois insistiu e teimou Natildeo podia ser A matildee abismada com aquilo o convidou ao Cemiteacuterio da Piedade que ficava a poucos metros daquela mesma rua para ver o tuacutemulo de sua filha

Eles caminharam ateacute a sepultura Laacute estava escrito ldquoCarolina Sampaiordquo com a foto da moccedila do baile E sobre a laacutepide o rapaz encontrou sua capa de chuva preta

Cemiteacuterio da PiedadeMuitas versotildees desta histoacuteria satildeo contadas na capital alagoana Haacute versotildees em que o rapaz eacute um caminho-neiro outras um taxista Versotildees de uma Carolina do seacuteculo XIX Outras dos anos 1980 E talvez seja esta

mdashLenda urbana repercutida em vaacuterias cidades Brasil afora a mulher da capa preta tem homenagem e seacutequitos de curiosos em tuacutemulo do Cemiteacuterio da Piedade em MaceioacutemdashMarcelo Cabral

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13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

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ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

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40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

arte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

T O Ni O L OO L O iN O T

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

ilu

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ccedilotildees

Pro

jeto

Men

inos

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 5: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

09 | nov-dez 2011 |08

Em O Misteacuteriohellip a afliccedilatildeo eacute tanta que um dos personagens quis cortar a retina com uma lacircmina para tirar a agonia Ele pensou em tomar cachaccedila e arran-car o mal pela raiz levando a dor e o desconforto que a treva ocular o causou Ouvi-lo falar isso chega a dar tristeza em quem assiste ao documentaacuterio Outro per-sonagem sofreu tanto com a dor que colocou uma proacute-tese no lugar do olho

A vida imita a arte ou vice-versaAraguatins era um municiacutepio que jamais mereceria destaque nacional ateacute entatildeo Com 30 mil habitantes a cidade eacute pacata e se movimentava mesmo de julho a setembro durante a temporada de praia ndash de aacutegua doce

ndash que lotava de banhistas o Rio Araguaia Mas o cenaacuterio mudou quando comeccedilou o surto de

cegueira Em trecircs anos muitas pessoas comeccedilaram a per-der a visatildeo depois de tomar banho no rio ndash ironicamente o mesmo que dava sustento atraveacutes da pesca e movimentava o turismo local ldquoFoi uma situaccedilatildeo atiacutepica para a cidade de Araguatins e para o mundordquo relembra o jornalista

O episoacutedio marcou o Tocantins e na eacutepoca atraiu a imprensa nacional e internacional meacutedicos pesquisadores e muitos curiosos ldquoEu tive a sorte de

ser repoacuterter do Jornal do Tocantins e ter sido enca-minhado para aquela cidade por diversas vezes para noticiar o problema Com o passar do tempo jaacute fora do jornal mas realizando vaacuterias viagens agravequele muni-ciacutepio percebi que muito daquela histoacuteria ainda natildeo tinha sido contadardquo

Acampamentos foram montados na beira do rio para abrigar jornalistas doutores e autoridades da medi-cina A cada dia um novo boletim era divulgado mais viacutetimas apareciam e mais possibilidades e nomes estra-nhos tomavam conta do imaginaacuterio popular Uns diziam que era um caramujo outros que era uma alga havia aqueles que afirmavam serem os produtos quiacutemicos jogados na aacutegua os causadores do mal Mas de verdade ateacute hoje natildeo haacute explicaccedilatildeo para a cegueira em Aragua-tins Amostras da aacutegua do rio foram levadas para Satildeo Paulo e para o exterior E nada de respostas

O misteacuterio do globo ocular natildeo traz a soluccedilatildeo nem aponta suas causas mas mostra a histoacuteria pela oacutetica ndash sem trocadilho ndash de vaacuterias pessoas quem viveu o problema os meacutedicos as autoridades e o povo A nar-rativa foi inspirada no filme Elefante (Gus Van Sant 2003) cuja perspectiva eacute mostrada a partir de vaacuterios pontos de vista E tambeacutem em filmes da deacutecada de

1980 como A coisa (Larry Cohen 1985) ldquoEacute como se algo estranho viesse e invadisse uma cidade pacata Os filmes que falavam dessas questotildees tudo isso me ins-pirourdquo conta o diretor

Dos planosldquoAinda quero transformar O misteacuteriohellip em uma ficccedilatildeo ou refilmar sob a oacutetica de quem natildeo ficou cego Assim como no Ensaio sobre a cegueira em que um persona-gem permanece enxergando Laacute tambeacutem uma irmatilde de umas viacutetimas que tambeacutem se banhou no rio natildeo ficou cegardquo diz Arauacutejo

Por enquanto ele trabalha em outra obra parte real parte ficcional A hora maacutegica retrataraacute momen-tos luacutedicos de sua infacircncia em Pedro Afonso interior do Tocantins ldquoEacute um filme autobiograacutefico e muito mais doloroso de fazerrdquo revelou Wherbert Arauacutejo Vamos esperar para verhellip

div

ulg

accedilatildeo

11 | nov-dez 2011 |10

A Mulher da Capa Preta

Antes de qualquer coisa esta eacute uma histoacuteria de fantasma Portanto quem tem um coraccedilatildeo com tendecircncia a fraquejar ou eacute desprovido do sangue frio necessaacuterio para seguir adiante pare a leitura agora e procure outro assunto pra entreter o juiacutezo deixando de lado essas coisas do aleacutem Jaacute para quem aprecia uma bela histoacuteria de amor um romance juvenil este causo maceioense pode ser um prato cheio

Conheccedila o pouco que todos em Maceioacute conhecem sobre a jovem e bela Carolina Sampaio ou Carol cuja histoacuteria foi contada em trova e verso por toda a cidade e jaacute virou ateacute bloco de carnaval De boca em boca inuacute-meras versotildees de sua suposta histoacuteria foram repassadas entre os maceioenses por pelo menos trecircs geraccedilotildees

Uma noite romacircnticaNa Maceioacute de outros tempos menor e mais ingecircnua a cidade vivia noites de festa e alegria nos grandes bailes que lotavam clubes que natildeo existem mais Talvez apenas na memoacuteria dos mais velhos Certa noite nesta Maceioacute romacircntica Carolina estava apreciando o grande baile com banda de fora e tudo quando percebeu os olhares interessados de um simpaacutetico rapaz bem vestido que segurava no braccedilo uma capa de chuva preta

O desconhecido tomou coragem e foi falar com ela

ndash Olaacute moccedila bonita Qual o seu nomendash Carolina ndash disse ela risonhandash Bela noite natildeo

E os dois engataram na conversa e na danccedila noite adentro Sorriam e cantavam como em um filme de eacutepoca Tudo era perfeito O olhar do rapaz dizia que ele poderia muito bem se interessar por aquela pequena Finalmente quem sabe ele namorava algueacutem firme e largava aquela boemia Talvez ateacute casasse Controlou a empolgaccedilatildeo Mas estava decidido a rever a garota no dia seguinte Daria um jeito

Ao final do baile com os corpos moles de tanto dan-ccedilar o rapaz fica surpreso quando ela aceita o convite de uma carona para casa Perfeito de novo Ele mal acredita

Chove muito e ele oferece sua capa para Carolina que se protege enquanto correm para o carro do rapaz Quando chegaram ao bairro do Prado entre a Praccedila da Faculdade e o Cemiteacuterio da Piedade a garota pede que ele a deixe ali na esquina de sua rua Ele insiste para ir ateacute a porta da casa que ficava bem proacutexima Ela res-ponde que prefere assim e falou firme Ele aceita Natildeo queria contrariar a moccedila no fim de uma noite perfeita

ndash Deixo minha capa contigo Amanhatilde venho buscar certo

Ela concorda com um sorriso desce do carro e segue pela rua escura natildeo sem antes deixar seu ende-reccedilo e roubar um beijo do rapaz Ele espera um pouco e quando acha que ela estava na seguranccedila de casa segue seu proacuteprio caminho atraveacutes da garoa fina Jaacute ansioso pelo dia seguinte

Sob a luz de um novo diaNa manhatilde seguinte o rapaz acordou ainda sonhando com a moccedila do baile Voltaria para buscar a capa mera desculpa queria era conquistar Carolina Esperou a manhatilde passar para natildeo incomodar a garota e a famiacutelia em seus afazeres Por volta das 2h da tarde ele foi um tanto nervoso ateacute o endereccedilo indicado no papel na rua em que deixara a jovem na noite anterior

ndash Boa tarde ndash disse uma senhora simpaacutetica que o rapaz identificou como matildee de Carolina Ele apresentou--se muito educado e falou sobre a noite anterior quando conheceu sua filha e explicou que estava ali para buscar a capa e conversar com a moccedila se lhe fosse permitido

A matildee de Carolina Sampaio natildeo conteve as laacutegri-mas e reagiu com agressividade

ndash Minha filha Carolina morreu anos atraacutesO rapaz ficou branco e sentiu como se perdesse o

chatildeo sob seus peacutes Pensou por um segundo e natildeo acre-ditou Imaginou que a matildee natildeo queria a filha tatildeo viccedilosa e sabida de conversa com homem estranho Mas a matildee mostrou a foto de Carolina pendurada na parede e ele a reconheceu Era uma foto de defunto Morta e maquiada como nunca em vida Com data de chegada e saiacuteda deste mundo impressa na moldura

O rapaz cambaleou Primeiro se sentiu mal o estocirc-mago revirou Depois insistiu e teimou Natildeo podia ser A matildee abismada com aquilo o convidou ao Cemiteacuterio da Piedade que ficava a poucos metros daquela mesma rua para ver o tuacutemulo de sua filha

Eles caminharam ateacute a sepultura Laacute estava escrito ldquoCarolina Sampaiordquo com a foto da moccedila do baile E sobre a laacutepide o rapaz encontrou sua capa de chuva preta

Cemiteacuterio da PiedadeMuitas versotildees desta histoacuteria satildeo contadas na capital alagoana Haacute versotildees em que o rapaz eacute um caminho-neiro outras um taxista Versotildees de uma Carolina do seacuteculo XIX Outras dos anos 1980 E talvez seja esta

mdashLenda urbana repercutida em vaacuterias cidades Brasil afora a mulher da capa preta tem homenagem e seacutequitos de curiosos em tuacutemulo do Cemiteacuterio da Piedade em MaceioacutemdashMarcelo Cabral

foto

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arce

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abra

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13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 6: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

11 | nov-dez 2011 |10

A Mulher da Capa Preta

Antes de qualquer coisa esta eacute uma histoacuteria de fantasma Portanto quem tem um coraccedilatildeo com tendecircncia a fraquejar ou eacute desprovido do sangue frio necessaacuterio para seguir adiante pare a leitura agora e procure outro assunto pra entreter o juiacutezo deixando de lado essas coisas do aleacutem Jaacute para quem aprecia uma bela histoacuteria de amor um romance juvenil este causo maceioense pode ser um prato cheio

Conheccedila o pouco que todos em Maceioacute conhecem sobre a jovem e bela Carolina Sampaio ou Carol cuja histoacuteria foi contada em trova e verso por toda a cidade e jaacute virou ateacute bloco de carnaval De boca em boca inuacute-meras versotildees de sua suposta histoacuteria foram repassadas entre os maceioenses por pelo menos trecircs geraccedilotildees

Uma noite romacircnticaNa Maceioacute de outros tempos menor e mais ingecircnua a cidade vivia noites de festa e alegria nos grandes bailes que lotavam clubes que natildeo existem mais Talvez apenas na memoacuteria dos mais velhos Certa noite nesta Maceioacute romacircntica Carolina estava apreciando o grande baile com banda de fora e tudo quando percebeu os olhares interessados de um simpaacutetico rapaz bem vestido que segurava no braccedilo uma capa de chuva preta

O desconhecido tomou coragem e foi falar com ela

ndash Olaacute moccedila bonita Qual o seu nomendash Carolina ndash disse ela risonhandash Bela noite natildeo

E os dois engataram na conversa e na danccedila noite adentro Sorriam e cantavam como em um filme de eacutepoca Tudo era perfeito O olhar do rapaz dizia que ele poderia muito bem se interessar por aquela pequena Finalmente quem sabe ele namorava algueacutem firme e largava aquela boemia Talvez ateacute casasse Controlou a empolgaccedilatildeo Mas estava decidido a rever a garota no dia seguinte Daria um jeito

Ao final do baile com os corpos moles de tanto dan-ccedilar o rapaz fica surpreso quando ela aceita o convite de uma carona para casa Perfeito de novo Ele mal acredita

Chove muito e ele oferece sua capa para Carolina que se protege enquanto correm para o carro do rapaz Quando chegaram ao bairro do Prado entre a Praccedila da Faculdade e o Cemiteacuterio da Piedade a garota pede que ele a deixe ali na esquina de sua rua Ele insiste para ir ateacute a porta da casa que ficava bem proacutexima Ela res-ponde que prefere assim e falou firme Ele aceita Natildeo queria contrariar a moccedila no fim de uma noite perfeita

ndash Deixo minha capa contigo Amanhatilde venho buscar certo

Ela concorda com um sorriso desce do carro e segue pela rua escura natildeo sem antes deixar seu ende-reccedilo e roubar um beijo do rapaz Ele espera um pouco e quando acha que ela estava na seguranccedila de casa segue seu proacuteprio caminho atraveacutes da garoa fina Jaacute ansioso pelo dia seguinte

Sob a luz de um novo diaNa manhatilde seguinte o rapaz acordou ainda sonhando com a moccedila do baile Voltaria para buscar a capa mera desculpa queria era conquistar Carolina Esperou a manhatilde passar para natildeo incomodar a garota e a famiacutelia em seus afazeres Por volta das 2h da tarde ele foi um tanto nervoso ateacute o endereccedilo indicado no papel na rua em que deixara a jovem na noite anterior

ndash Boa tarde ndash disse uma senhora simpaacutetica que o rapaz identificou como matildee de Carolina Ele apresentou--se muito educado e falou sobre a noite anterior quando conheceu sua filha e explicou que estava ali para buscar a capa e conversar com a moccedila se lhe fosse permitido

A matildee de Carolina Sampaio natildeo conteve as laacutegri-mas e reagiu com agressividade

ndash Minha filha Carolina morreu anos atraacutesO rapaz ficou branco e sentiu como se perdesse o

chatildeo sob seus peacutes Pensou por um segundo e natildeo acre-ditou Imaginou que a matildee natildeo queria a filha tatildeo viccedilosa e sabida de conversa com homem estranho Mas a matildee mostrou a foto de Carolina pendurada na parede e ele a reconheceu Era uma foto de defunto Morta e maquiada como nunca em vida Com data de chegada e saiacuteda deste mundo impressa na moldura

O rapaz cambaleou Primeiro se sentiu mal o estocirc-mago revirou Depois insistiu e teimou Natildeo podia ser A matildee abismada com aquilo o convidou ao Cemiteacuterio da Piedade que ficava a poucos metros daquela mesma rua para ver o tuacutemulo de sua filha

Eles caminharam ateacute a sepultura Laacute estava escrito ldquoCarolina Sampaiordquo com a foto da moccedila do baile E sobre a laacutepide o rapaz encontrou sua capa de chuva preta

Cemiteacuterio da PiedadeMuitas versotildees desta histoacuteria satildeo contadas na capital alagoana Haacute versotildees em que o rapaz eacute um caminho-neiro outras um taxista Versotildees de uma Carolina do seacuteculo XIX Outras dos anos 1980 E talvez seja esta

mdashLenda urbana repercutida em vaacuterias cidades Brasil afora a mulher da capa preta tem homenagem e seacutequitos de curiosos em tuacutemulo do Cemiteacuterio da Piedade em MaceioacutemdashMarcelo Cabral

foto

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arce

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abra

l

13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

riqu

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ara a ediccedilatildeo belga

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 7: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

13 | nov-dez 2011 |12

universalidade atemporal que torne uma lenda urbana como esta tatildeo duradoura na histoacuteria de uma cidade como Maceioacute Vamos laacute eacute uma histoacuteria de fantasma bem cli-checirc Daiacute o sucesso A ponto de construiacuterem um monu-mento com a forma de uma capa preta em sua sepultura

Estive laacute no uacuteltimo dia 2 de novembro dia de fina-dos para conversar com as pessoas sobre a personagem e tentar descobrir mais sobre Carolina ou do seu efeito no imaginaacuterio fantaacutestico alagoano O que esta fantasmi-nha baladeira fez para merecer uma noitada com o belo rapaz Seraacute que eacute uma compensaccedilatildeo pela morte prema-tura Um conto sobre a perda da juventude

Vaacuterias questotildees como estas passavam pela minha cabeccedila naquela manhatilde ensolarada no Cemiteacuterio da Pie-dade bairro do Prado em uma parte bem antiga da cidade Muito movimento de floristas e vendedores de velas de todos os calibres aleacutem de outros jornalis-tas como eu procurando histoacuterias de morte e saudade Enquanto isso as famiacutelias visitavam o repouso final de seus entes queridos

Quando cheguei agrave sepultura de Carolina a Mulher da Capa Preta encontrei um arranjo de flores apenas

sobre seu tuacutemulo a aquela capa preta construiacuteda em sua laacutepide Tomei um susto com a presenccedila silenciosa encostada em outro tuacutemulo proacuteximo de Socircnia Maria 41 anos empregada domeacutestica que observava compene-trada o tuacutemulo de Carolina Sampaio ldquoOlaacuterdquo puxei con-versa Figura engraccedilada Socircnia me contou que vai laacute visitar a Mulher da Capa Preta sempre seja dia de fina-dos ou natildeo ldquoEstando viva eu venho Acho muito bonita a histoacuteriardquo Dito isto comeccedilou a contar a sua versatildeo uma das tantas que ainda iria escutar naquele mesmo dia

Socircnia acredita no caso e afirma que ainda hoje quando algum solitaacuterio a chama Carolina vai ao baile com ele Ela diz que se natildeo for real tambeacutem tudo bem ldquoAlgueacutem pode fantasiar em sair na noite misteriosa e fingir ser ela aproveitar uma noite apenas e desapare-cer Eu por exemplo acho lindas aquelas moccedilas de capa nos filmes de Nova Iorquerdquo

Arquitetura da morteUma jovem apareceu por laacute tambeacutem e percebi que res-pondia questotildees e curiosidades dos visitantes Falei com ela Regina Barbosa 24 anos eacute arquiteta e estaacute

fazendo mestrado Seu tema eacute a arquitetura funeraacute-ria onde estuda a importacircncia do Cemiteacuterio da Pie-dade como patrimocircnio histoacuterico e cultural da cidade de Maceioacute Segundo ela este foi o primeiro cemiteacuterio ofi-cial da cidade e data de 1850 solicitado via carta reacutegia Houve um estudo na eacutepoca para a escolha do local Hoje ambientalistas contestam a escolha por conta dos gases liberados pelos mortos

Regina tambeacutem informou sobre um livro de 1972 que segundo ela natildeo se encontra mais agrave venda uma espeacutecie de raridade e que traz muitas informa-ccedilotildees sobre o local Ela me contou algumas curiosida-des sobre alguns mausoleacuteus pomposos ndash como um de 1902 ndash e que ficam agrave vista de quem passa fora dos por-totildees do cemiteacuterio para demonstrar o poder da famiacutelia perante a sociedade Ou ainda a divisatildeo natildeo compro-vada entre aacutereas separadas para catoacutelicos protestantes e ateus estes uacuteltimos na verdade proscritos da socie-dade daquela eacutepoca como prostitutas e indigentes Mas segundo ela natildeo eacute possiacutevel constatar estas divisotildees ldquoO Cemiteacuterio da Piedade sempre foi conhecido como dos ricos enquanto que o Cemiteacuterio Satildeo Joseacute construiacutedo depois eacute o cemiteacuterio dos pobresrdquo

Sua monografia de conclusatildeo de curso tambeacutem foi sobre cemiteacuterios de Maceioacute e consta como docu-mento de referecircncia na Secretaria de Controle e Con-viacutevio Urbano da capital SMCCU Regina jaacute planeja um doutorado onde vai pesquisar sobre como o traccedilado das cidades eacute influenciado pelos cortejos fuacutenebres Em nada Regina parece algueacutem de gostos moacuterbidos ou integrante de algum grupo goacutetico ou qualquer coisa do tipo Muito pelo contraacuterio jovem loira bonita e simpaacutetica a pes-quisadora parece uma moccedila comum a natildeo ser por um detalhe ldquoSempre gostei de cemiteacuterios e durante o curso resolvi estudar o temardquo revela

Visitaccedilatildeo intensaAgrave medida que o tempo passava mais e mais pessoas apareciam para visitar aquele tuacutemulo cada qual com uma teoria e uma nova versatildeo do fato Alguns ateacute inventam como a estudante de psicologia Maryana Santos de 23 anos com sua versatildeo Cinderela ldquoFosse eu a personagem deixaria um sapato em vez da capardquo Muitos ndash a maioria ndash especulam Outros afirmavam que o tuacutemulo ao lado era com certeza do pai de Caro-lina Vi uma garotinha de uns 8 anos perguntando ao avocirc enquanto caminhavam laacute fora na calccedilada ldquoEacute o pai da Capa Preta do lado delardquo Ele acenou com a cabeccedila confirmando

Consegui desvendar alguns desses misteacuterios com a ajuda de outros maceioenses como o analista de siste-mas Marcio Martins e sua esposa Irna que decifraram a data de nascimento e morte gravada em algarismos romanos da seguinte forma

Y XXI ndash III ndash MDCCCLXIXU XXII ndash XI ndash MCMXXIV

Ou seja Carolina (1869-1924) natildeo morreu tatildeo jovem Aos 55 anos natildeo era a garota na flor da idade da histoacuteria Com este misteacuterio resolvido vamos ao tuacutemulo vizinho do suposto pai de Carolina dentro da mesma aacuterea de jazigo da famiacutelia

Fui dar uma volta e fazer umas fotos Quando vol-tei encontrei um grupo de jovens conversando com as pessoas proacuteximas ao tuacutemulo Eram trecircs estudantes da Universidade Federal de Alagoas Rafaela Albuquerque e Ludmila Monteiro estudam Jornalismo e Victor Mata eacute do curso de Letras Ele sugeriu a pauta de lendas urba-nas para a publicaccedilatildeo Mar Sem Oacute produzida pelos alu-nos de Comunicaccedilatildeo

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

riqu

e Alvim

Correcirca p

ara a ediccedilatildeo belga

de ldquoA

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

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Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 8: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

15 | nov-dez 2011 |14

ldquoNoacutes conversaacutevamos sobre como Maceioacute tatildeo diurna e tropical tem na verdade um lado noturno e macabro principalmente neste bairro e na regiatildeo do Centro Temos o Edifiacutecio Brecircda (um dos preacutedios mais altos do centro da cidade e notoacuterio local de suiciacutedios) o IML os Cemiteacuterios da Piedade com a Mulher da Capa Preta e o Satildeo Joseacute com o Menino Petruacutecio a quem se atribuem milagres Entatildeo resolvemos pesquisar o assuntordquo conta Enquanto conversava com Victor foi Ludmila que percebeu a data de morte e nascimento do tuacutemulo vizinho O morto tinha poucos anos de diferenccedila de idade em relaccedilatildeo agrave Carolina Natildeo era seu pai e todos os investigadores presentes concordaram o tuacutemulo vizi-nho seria muito provavelmente do irmatildeo de Carolina

A questatildeo do respeito aos mortosChega de solucionar misteacuterios Afinal grande parte da graccedila do interesse das pessoas da magia e longevidade de uma histoacuteria como esta reside justamente em estar encoberta de misteacuterios E natildeo tenho a intenccedilatildeo de desmi-tificar ou desmentir causo tatildeo popular da minha querida Maceioacute Afinal trata-se de um verdadeiro patrimocircnio cultural

Durante toda a minha visita conversando com os visitantes que passavam pelo tuacutemulo da Mulher da Capa Preta percebi que o assunto do bloco de carnaval que sai da porta do cemiteacuterio agrave meia-noite era tabu Escu-tei muitas vezes que se tratava de ldquocoisa de mau gostordquo ou que ldquonatildeo eacute certo brincar com os mortosrdquo

ldquoCoincidecircncia ou natildeo Sempre tem acidente briga e morte quando sai esse bloco Coincidecircncia ou natildeordquo reforccedilou Vanancir da Costa de 32 anos referindo-se ao atentado do ano passado quando um sujeito saiu dirigindo seu automoacutevel por cima dos foliotildees do bloco Mulher da Capa Preta deixando dezenas de feridos

Vanancir visitava o cemiteacuterio com sua matildee Vanuzia da Costa 70 anos que tambeacutem deu sua opiniatildeo ldquoEu mesma que natildeo tinha coragem de brincar com quem estaacute morto Esta histoacuteria da Capa Preta meu filho eacute real Real mesmo Aconteceurdquo

Mas ningueacutem leva a histoacuteria tatildeo a seacuterio como Mil-ton da Silva 40 anos estudante de quiacutemica na Ufal e pro-fessor em escolas particulares de Maceioacute Milton chegou ao tuacutemulo e abriu a portinhola da pequena cerca em volta das sepulturas de Carolina e seu provaacutevel irmatildeo Comeccedilou a limpar tudo e acender velas para a Mulher da Capa Preta ldquoVocecirc eacute parente delardquo perguntei ldquoNatildeordquo ele respondeu

Milton eacute espiacuterita e acredita que Carolina eacute um espiacuterito de luz ldquoNenhum espiacuterito aparece para algueacutem como ela fez por nada Acredito muito nela e sempre estou aqui cuidando e acendo velas para iluminar seus caminhosrdquo Quase um devoto Milton condena com ar de revolta a questatildeo do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa Preta ldquoUm desrespeito Um absurdo Para mim aquilo eacute uma vergonhardquo

Uma pergunta me veio agrave mente ldquoJaacute que a histoacute-ria eacute verdadeira o que aconteceu com o rapaz apaixo-nado do bailerdquo Milton respondeu coberto de certeza ldquoO rapaz morreu loucordquo

Desejei-lhe melhor sorte me despedi dele de Carolina e do Cemiteacuterio da Piedade

Bloco PolecircmicoPassado o Dia de Finados fui conversar com Marcos Catende criador do Bloco Carnavalesco Mulher da Capa e proprietaacuterio de uma churrascaria onde aproveitei para comer uma carne de sol no intervalo do almoccedilo enquanto conversaacutevamos Marcos confirmou que mui-tas pessoas satildeo contra o bloco que completa 12 anos de existecircncia no carnaval do ano que vem ldquoRecebo muitos

telefonemas anocircnimos me esculhambando por causa disso e ateacute ameaccedilas por mexer com os mortosrdquo Sobre o acidente do ano passado ele daacute sua versatildeo ldquoA mulher do sujeito foi para o bloco pular o carnaval disse a ele que saiacutea todos os anos e natildeo seria este ano que deixa-ria de ir Enciumado o sujeito ficou esperando em uma esquina e saiu atropelando todo mundordquo conta

Catende se defende e explica que o bloco natildeo passa de uma brincadeira com uma personagem do bairro Ele conta como tudo comeccedilou ldquoEu fui dono de um bar aqui perto Um dia estava com os caras em uma farra e eles me contaram a histoacuteria Resolvi montar o bloco Os colegas ficaram com medo e desistiram Jaacute eu passei dez dias no Cemiteacuterio da Piedade e arredores pesquisando o assunto e desde o ano 2000 o bloco sai todos os anos a partir da meia noiterdquo

Aleacutem deste bloco Marcos que eacute natural de Per-nambuco fundou outro no municiacutepio de Catende (PE) o Bloco Mulher da Sombrinha histoacuteria parecida do cemi-teacuterio de laacute sobre bela mulher que seduz homens na noite e apoacutes o romance o sujeito acorda sobre sua sepultura Aleacutem disso sua churrascaria fica em frente ao Cemiteacute-rio Satildeo Joseacute ldquoEu natildeo sei o que eacute isso Certa vez fui a um centro espiacuterita e laacute me disseram que eu natildeo deveria ir aos cemiteacuterios Disseram que quando eu vou sai um bloco de mortos atraacutes de mimrdquo

Ele ainda me contou alguns casos da Capa Preta como o taxista que pegou um passageiro nas imedia-ccedilotildees do cemiteacuterio rumo ao bairro da Pajuccedilara ldquoalvoro-ccedilado branco e suando que jurava ter visto a Mulher da Capa Pretardquo Ele mesmo diz ter visto a assombraccedilatildeo em um bar certa vez Os foliotildees do bloco tambeacutem juram de peacutes juntos terem encontrado uma mulher muito paacutelida vestida de negro e com a pele gelada curtindo o bloco de carnaval no meio da multidatildeo

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

foto

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

arte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

ilu

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 9: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

17 | nov-dez 2011 |16

A mulher aacutervoreO ciuacuteme e a ira muitas vezes tornam o ser humano incon-trolaacutevel capaz de realizar os maiores atos impensaacuteveis de uma relaccedilatildeo inconstante e fria Natildeo ocorreu diferente haacute alguns anos na Rua Travessa Estrada de Ferro onde uma mulher loira prestes a dar a luz que depois de ter discutido com o marido foi brutalmente assassinada Muitos do bairro falam que ela foi morta a facada e outros relatam que foi a tiro Mais o impressionante do fato foi que logo apoacutes a sua morte (no mesmo local) nas-ceu uma aacutervore que com o tempo adquiriu o formato de uma mulher com tanta semelhanccedila que podemos obser-var os traccedilos das pernas seios barriga braccedilos e quadris aleacutem da sombra e dos seus frutos ela ainda serve de refe-rencia para os moradores da localidade

Os moradores do bairro relatam que ela eacute mal assombrada e tinham medo de passar na rua a noite porque ela balanccedilava e jogava areia e outros acendiam velas e faziam trabalhos religiosos no local Por temor tentaram cortar a aacutervore mas foram impedidos pelo Baixinho (Sr Luiz Carlos - falecido) morador vizinho da aacutervore que natildeo permitiu que isso acontecesse por achar que ela renderia uma histoacuteria Seu sonho era escrever uma carta para um programa de TV (Gugu ou Faustatildeo) natildeo sendo realizado pois faleceu em um traacutegico acidente na Rodovia Presidente Dutra

Nova Iguaccedilu 2 de Setembro de 2008

Trecho de redaccedilatildeo escrita pela estudante do Pro Jovem Luana Mendes

As raiacutezes de uma gravidezmdashO curioso caso da aacutervore graacutevida de Rodilacircndia em Nova Iguaccedilu no Estado do Rio que virou curta-metragem e foi parar ateacute na tevecircmdashRenata Melo

foto

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elo

19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

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ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

foto

s M

arco

s P

aulo

61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

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19 | nov-dez 2011 |18

afirma a nordestina Maria de Lourdes A lendaacuteria man-gueira jaacute foi tambeacutem um siacutembolo de feacute Houve quem rezasse para ela e quem fizesse ldquomacumbardquo

A populaccedilatildeo se divide entre o amor e o medo ldquoO fruto que ela daacute eacute muito gostosordquo garante Manoela Ela conta que jaacute pensou em cortar a aacutervore para construir um muro mas natildeo teve coragem ldquoEssa aacutervore tem muita histoacuteriardquo suspira a moradora da casa em cujo terreno fica a aacutervore

Jaiacutelson apesar de ser um dos protagonistas das cenas de medo que envolve a aacutervore reproduz com res-peito e em tom de misteacuterio ldquoMeu irmatildeo disse que um dia estava passando por aqui natildeo estava ventando nem nada e a aacutervore comeccedilou a mexer sozinha se tremendo todardquo Erick tambeacutem da turma que gosta de assustar as pessoas diz desconfiado ldquoEu passo aqui de noite numa boa se natildeo tiver falta de luz clarordquo afirma rindo

Seu Joseacute Marques da Silva eacute vizinho da aacutervore Aos 78 anos caminha com dificuldade encosta a ben-gala na parede e com olhar compenetrado em direccedilatildeo agrave mitoloacutegica mangueira afirma ldquoVi ali de madrugada um homem de chapeacuteu todo de courordquo E ai de quem duvidar dele ldquoEu jaacute vi e natildeo sou de andar com mentirardquo Ape-sar dos quase 30 anos no Rio de Janeiro o sotaque per-nambucano permanece Se tem medo Franze logo as sobrancelhas e com a voz gasta pelo tempo resmunga

ldquoMedo de quecirc Medo de nada Dizem que tambeacutem apa-rece uma mulher por ali mas eu soacute acredito naquilo que eu vejordquo Mas o homem esse ele garantiu ter visto

A aacutervore como inspiraccedilatildeo A lenda da aacutervore graacutevida jaacute inspirou a produccedilatildeo de dois viacutedeos Um apresentado ao ar livre em Rodilacircndia o outro uma animaccedilatildeo feita por alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu exibido na TV no programa Fantaacutestico Tudo comeccedilou em 2008 com uma redaccedilatildeo escrita por Luana Mendes que mora a poucos metros da famosa mangueira Na eacutepoca com 22 anos e aluna do Pro jovem Luana participou do ldquoMinha rua tem histoacuteriardquo um programa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaccedilu que reuniu cerca de 3 mil jovens para contar histoacuterias sobre seus bairros Entre essas histoacuterias a de uma aacutervore graacute-vida chamou atenccedilatildeo Por sua redaccedilatildeo Luana ganhou 10 horas de internet em uma lan house proacutexima agrave sua casa e um mp4 player mas o grande orgulho da jovem foi ver na tela a histoacuteria que crescera ouvindo protagoni-zada pelos proacuteprios personagens do bairro A motivaccedilatildeo para escrever sobre o tema veio de um desejo antigo do vizinho marido de dona Manoela e dono do quintal que

abriga a aacutervore ldquoJaacute tentaram cortar a aacutervore mas o Seu Baixinho nunca deixava O sonho dele era ver a histoacuteria no cinema e na televisatildeordquo lembra Luana Luiz Carlos o Seu Baixinho natildeo sobreviveria para ver seu sonho reali-zado Ele faleceu num traacutegico acidente na Rodovia Presi-dente Dutra antes que a histoacuteria virasse notiacutecia

Mas a lenda iria tambeacutem para a televisatildeo como sempre quis o Seu Baixinho Para a mateacuteria do Fantaacutes-tico foram trecircs os temas sugeridos A escolhida eacute claro foi a pauta sobre uma certa aacutervore que habita Rodilacircn-dia ldquoEscolhemos o tema da aacutervore graacutevida porque era o mais curioso Como pode uma aacutervore engravidarrdquo ques-tiona Jonathan Lacerda de Jesus um dos integrantes da equipe de reportagem mirim que produziu um curta-

-metragem sobre a histoacuteria O viacutedeo foi exibido no pro-grama no dia 8 de outubro de 2009 Aleacutem de Jonathan mais quatro alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu participaram da reportagem Michele Wagner e Roni na eacutepoca todos com 10 anos de idade Jonathan os mais velho com entatildeo 14 anos contou que chegando em Rodilacircndia a turma ficava apreensiva diante de qual-quer aacutervore ldquoNatildeo fiquei com medo ateacute porque era de manhatilderdquo desconversa o jovem cineasta Sabiamente do auge dos seus 16 anos Jonathan garante que natildeo eacute pre-ciso se amedrontar afinal ldquoessa aacutervore jaacute se tornou parte da cultura do bairrordquo

Haacute seis anos ele lida com a seacutetima arte na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaccedilu O talentoso rapaz conta que apesar de gostar de criar roteiros seu forte mesmo eacute produzir e confessa envergonhado que precisa se dedicar mais agrave leitura ldquoFaz parte de mim jaacute O cinema me encanta de um jeito que natildeo daacute para explicarrdquo diz o menino ldquoEu pensava que filme era feito soacute nos outros paiacuteses Soacute que natildeo Descobri que se produzia tambeacutem no Brasil perto de onde eu morava Entatildeo eu achei o maacuteximo estar aquirdquo revela o rapaz os olhos brilhando de encantamento

O aqui ao qual ele se refere eacute especificamente Miguel Couto um dos principais bairros de Nova Iguaccedilu Lugar onde vive e onde funciona a Escola Livre de Cinema Entre pastelarias e o comeacutercio informal em meio agrave caracteriacutestica poeira das ruas e agrave quase morta linha do trem se faz cinema Laacute se produzem e se repro-duzem histoacuterias fantaacutesticas e reais ndash fabulosas como a de uma aacutervore que eacute capaz de engravidar Como a aacutervore que quase foi cortada a Escola tambeacutem esteve amea-ccedilada de fechar as portas no final do ano passado Com novo focirclego e novos patrocinadores agora estaacute mais feacuter-til do que nunca

Madrugada em Rodilacircndia pequeno bairro de Nova Iguaccedilu no estado do Rio de Janeiro Esta-mos na Travessa Estrada de Ferro Seria soacute mais uma rua como as outras natildeo fosse a existecircncia de um elemento estranho uma aacutervore com formas de uma mulher ou melhor com as formas de uma mulher graacutevida Em noite de apagatildeo soacute as velas ao redor dela iluminam o lugar Pas-sos apressados olhares apreensivos respiraccedilotildees ofegan-tes Quem jogou areia De onde vem o barulho de crianccedila chorando Eacute soacute o vento ou a aacutervore estaacute se mexendo Uma voz ao relento avisa que eacute melhor ser raacutepido antes que a mulher vestida de noiva possa alcanccedilar

ldquoEu natildeo tenho medo mas que parece com uma mulher parece neacuterdquo brinca dona Maria de Lourdes Mendes de 63 anos e haacute mais de 20 moradora da regiatildeo Seraacute mesmo assombrada a mangueira com ares de ges-tante que habita Rodilacircndia As formas da planta intri-gam ateacute os mais ceacuteticos O tronco arredondado os galhos como dois braccedilos abertos ateacute as ldquocostasrdquo lembram as de uma mulher

Reza a lenda que uma moccedila graacutevida foi assassi-nada no local onde nasceu a aacutervore Ela a aacutervore teria essas curiosas formas porque guardaria a alma da mulher morta viacutetima dos ciuacutemes do marido Para muitos a aacutervore eacute motivo de medo Mas natildeo para os meninos de peacutes descalccedilos que sob a sombra da assustadora man-gueira se divertem ao lembrar das travessuras realizadas

ldquoNo dia do apagatildeo a gente botou um monte de velas na aacutervore e uma garrafa de vinho do lado Quando algueacutem passava a gente jogava de cima da aacutervore uma boneca vestida de noiva [risos]rdquo conta Jaiacutelson Rodrigues de 14 anos ldquoO Gabriel chorou e o pastor mandou a gente ir para igrejardquo interrompe Erick Maciel de 13 anos O vinho era ki-suco e a areia peripeacutecia de Ricardo amigo de Jaiacutelson

Com uma sacola de patildeo nas matildeos e expressatildeo triunfante Felipe Costa de 13 anos se aproxima e esclarece o misteacuterio ldquoEssa aacutervore eacute mais velha do que eurdquo diz indiferente E explica a origem do mito ldquoFala-ram que uma mulher graacutevida morreu aqui e logo nas-ceu uma aacutervore nesse formatordquo Quem ldquofalaramrdquo natildeo se sabe Como toda lenda esta tambeacutem surgiu espontane-amente fruto da necessidade das pessoas de explicar alguns fenocircmenos e agora pertence ao coletivo Assim como Felipe qualquer morador de Rodilacircndia eacute capaz de contar o tal ldquocausordquo

A mangueira jaacute se tornou ponto de referecircncia no repetido mantra ldquologo ali perto da aacutervore graacutevidardquo Eacute a grande atraccedilatildeo no bairro Dona Manoela Luiza Passos da Silva proprietaacuteria da casa em frente agrave aacutervore conta

que vem gente de longe para tirar fotos e conferir se uma aacutervore realmente engravidou Ela jaacute vive no lugar haacute 24 anos e diz que quando chegou a lenda jaacute existia

ldquoDe primeiro todo mundo tinha medo Ningueacutem pas-sava por aqui de noite natildeordquo lembra Acostumada com tanta badalaccedilatildeo a dona de casa natildeo hesita em contar mais uma vez a histoacuteria aos visitantes e curiosos ldquoAh minha filha os antigos falaram que no lugar onde existe a aacutervore foi morta uma mulherrdquo

A menccedilatildeo aos ldquoantigosrdquo estaacute sempre presente na fala dos moradores da rua ldquoEu acredito porque as pes-soas mais velhas meus vizinhos que jaacute morreram viramrdquo

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40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

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populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

riqu

e Alvim

Correcirca p

ara a ediccedilatildeo belga

de ldquoA

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

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Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 11: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

21 | nov-dez 2011 |20

40 anos depois A guerra dos mundos eacute recontada em livro

mdashFruto do trabalho de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhatildeo livro reconta ldquoo dia em que os marcianos invadiram a terrardquo no caso a capital Satildeo LuiacutesmdashZema Ribeiro

Natildeo foram poucas as vezes em que adentrei o Bar do Leacuteo e dei com sua presenccedila a ele-gacircncia de um Viniacutecius de Moraes o cachorro engarra-fado amarrado na coleira o abraccedilo efusivo de Parafuso vinha cumprimentar-me feliz senha Agraves vezes dividia a mesa com ele agraves vezes ocupava outra onde ele cedo ou tarde parava nas suas idas e vindas ao banheiro ou outra andanccedila qualquer no recinto onde ambos nos sentimos em casa Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro ganhou o ape-lido Parafuso ainda no coleacutegio um dia o diretor passou pelo corredor olhando para dentro da sala de aula e o viu sapateando sobre a mesa do professor ldquoCarrapeta era mais apropriado Eu estava danccedilando Parafuso vocecirc bota ele ali ele morre ali enferrujado Dizem que ape-lido soacute pega se vocecirc se zangar Eu nunca me zanguei e esse pegourdquo relembra

Entre vaacuterias outras histoacuterias que conta estaacute a de A guerra dos mundos transmitida pela Raacutedio Difusora em outubro de 1971 prima menos conhecida da famosa transmissatildeo da adaptaccedilatildeo do livro de H G Wells por Orson Welles cineasta que viria a se tornar mundial-mente famoso com o claacutessico Cidadatildeo Kane tido por muitos como o melhor filme de todos os tempos ldquoEacute um filme paideacuteguardquo define Parafuso que tambeacutem con-taraacute a histoacuteria dA guerra dos mundos em um livro de memoacuterias em fase de revisatildeo ldquoA histoacuteria jaacute estaacute con-tada mas natildeo posso deixaacute-la de forardquo diz

Em 1898 H G Wells publicou A guerra dos mun-dos encerrando a trilogia iniciada com A maacutequina do tempo (1895) e O homem invisiacutevel (1895) Quarenta anos depois em 30 de outubro de 1938 veacutespera do dia das bruxas americano para comemoraacute-lo Welles levou ao ar uma adaptaccedilatildeo radiofocircnica da mesma histoacuteria Em 31 de outubro de 1971 um dia depois de a Raacutedio Difu-sora completar 16 anos era a vez de a histoacuteria ganhar uma versatildeo maranhense A diferenccedila a populaccedilatildeo dos Estados Unidos que chegou a ouvir o programa na CBS agrave eacutepoca sabia tratar-se de uma obra de ficccedilatildeo e ldquoqual-quer semelhanccedila eacute mera coincidecircnciardquo No Maranhatildeo o programa se passou por ficccedilatildeo justamente para natildeo ser censurado pela Poliacutecia Federal pois se fosse anun-ciado como jornaliacutestico fatalmente seria retirado do ar

ldquoDifusora ficccedilatildeo cientiacutefica baseada em Orson Wellesrdquo anuncia a vinheta de vez em quando O detalhe eacute que ela foi colocada depois toque de gecircnio de Para-fuso espeacutecie de Garrincha da sonoplastia driblando a censura e a ditadura vigentes ndash a censura preacutevia havia liberado o programa em um provaacutevel cochilo do fun-cionaacuterio da Poliacutecia Federal

O Jornal Pequeno de 31 de outubro de 1971 estampou na capa a manchete ldquoO fim do mundo do Bacelarrdquo alusatildeo ao na eacutepoca proprietaacuterio da raacutedio que veiculou o tal ldquoapocalipserdquo O Imparcial na mesma data cravou em sua capa ldquoFicccedilatildeo cientiacutefica alarmou a

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

riqu

e Alvim

Correcirca p

ara a ediccedilatildeo belga

de ldquoA

Gu

erra dos M

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dosrdquo p

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06

27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

Diaacute

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

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ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 12: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

23 | nov-dez 2011 |22

populaccedilatildeordquo O episoacutedio ficou nas lembranccedilas de quem o fez e ouviu depois caindo no esquecimento

Somente em 2004 o professor Ed Wilson Arauacutejo jogou luz agrave questatildeo o artigo O dia em que os marcia-nos invadiram Satildeo Luiacutes publicado no quarto nuacutemero do jornal da Rede Alfredo de Carvalho redescobria o acontecimento Foi por conta dele que o inglecircs John Gosling dedicou um capiacutetulo agrave Guerra maranhense em Waging the war of the worlds [Jefferson and London Mc Farland amp Company 2009] algo como ldquoTravando a guerra dos mundosrdquo em traduccedilatildeo livre No entanto a versatildeo maranhense dA guerra dos Mundos foi igno-rada em Raacutedio e pacircnico a guerra dos mundos 60 anos depois [Insular 1998] organizado pelo pesquisador Eduardo Meditsch

Mas a histoacuteria fantaacutestica soacute teria versatildeo defini-tiva com o lanccedilamento de Outubro de 71 memoacuterias fantaacutesticas da guerra dos mundos [EdufmaFapema 2011] organizado pelo pesquisador Francisco Gonccedilal-ves da Conceiccedilatildeo jornalista doutor em Comunicaccedilatildeo e Cultura (UFRJ) professor do Departamento de Comu-nicaccedilatildeo Social da UFMA Eduardo Meditsch autor do livro com o lapso citado assina o prefaacutecio

Outubro de 2011 40 anos depois do fato Gon-ccedilalves e sua equipe de alunos-pesquisadores contariam a histoacuteria daquela manhatilde de saacutebado os ouvintes espe-ravam o tradicional Difusora Hit Parade ndash programa tambeacutem conhecido como Satildeo Luiacutes Hit Parade ou sim-plesmente Paradatildeo do Rayol em oacutebvia alusatildeo ao nome do apresentador ndash que trazia as 24 muacutesicas mais tocadas

da semana A certa altura o locutor comeccedila a narrar uma suposta invasatildeo alieniacutegena agrave Terra em particular agrave capital maranhense e seus arredores o Campo de Peri-zes uacutenica saiacuteda da ilha por via terrestre

O fantaacutestico ganhava tons reais dada a credibili-dade do raacutedio agravequela altura ndash quando televisatildeo era ldquocoisa de poucos ricosrdquo ndash com flashes ao vivo entrevistas com especialistas e a sonoplastia de Parafuso Outros ldquoenvol-vidosrdquo Joseacute de Jesus Brito o Seacutergio Brito (roteirista) Manoel Joseacute Pereira dos Santos o Pereirinha (dire-ccedilatildeo teacutecnica) Joseacute Marinho Raiol Filho o Rayol Filho (locuccedilatildeo) e Joseacute Faustino dos Santos Alves o Jota Alves (repoacuterter) ndash este morria durante a transmissatildeo con-forme previa o script do programa escrito por Brito a partir de mateacuteria que ele leu na Ele amp Ela sobre o episoacute-dio americano Detalhe a matildee do repoacuterter natildeo havia sido avisada e podia estar ligada no programa de raacutedio mais ouvido da eacutepoca enquanto cuidava dos afazeres domeacutes-ticos Todos estatildeo viviacutessimos e datildeo longas detalhadas e engraccediladas entrevistas ao projeto que virou livro publi-cadas na iacutentegra mantendo os coloquialismos e mesmo as contradiccedilotildees entre umas e outras lembranccedilas

Para Kamila de Mesquita Campos uma das pes-quisadoras envolvidas na feitura do livro estas entre-vistas realizadas entre 2005 e 2006 foram o momento mais marcante do processo ldquoOs relatos deles nos pro-porcionaram uma viagem natildeo soacute aos bastidores do programa mas ao raacutedio na deacutecada de 70 e agrave sociedade maranhense da eacutepoca como um todordquo relembra Ela como os outros pesquisadores nunca tinha ouvido falar

nA Guerra dos mundos ateacute receber de Francisco Gon-ccedilalves a sugestatildeo de pesquisar o tema formando um grupo orientado por ele com Aline Cristina Ribeiro Alves Andreacuteia de Lima Silva Elen Barbosa Mateus Karla Maria Silva de Miranda Mariela Costa Carvalho Rocircmulo Fernando Lemos Gomes e Sarita Bastos Costa Agrave eacutepoca estudantes hoje todos formados em Jornalismo ou Relaccedilotildees Puacuteblicas

As entrevistas nos levam a descobrir que a ideia era festejar o aniversaacuterio da Difusora ganhar audiecircn-cia e demonstrar o poder do raacutedio Lida a sinopse da adaptaccedilatildeo radiofocircnica americana Brito acresceu deta-lhes maranhenses agrave trama apresentando sua versatildeo da histoacuteria O poeta e compositor Joatildeozinho Ribeiro nas-cido no abril anterior agrave fundaccedilatildeo da Difusora recorda aquela manhatilde ldquoAs imagens que residem na minha memoacuteria satildeo de uma manhatilde de saacutebado mamatildee ocu-pada com os afazeres domeacutesticos e o nosso raacutedio ligado numa cocircmoda feita de caixote de madeira transmitindo o programa que era o mais ouvido em toda ilha Lem-bro-me do desespero que tomou conta dela e do rapaz ouvintecurioso que naquela manhatilde natildeo saiu de casa e ficou com o ouvido coladinho nas notiacutecias tentando traduzir para ela a todo momento o que estava aconte-cendo Ele (eu) tambeacutem envolvido pelo clima de pacircnico e certo de que o final dos tempos estava chegando e que iriacuteamos todos literalmente ser reduzidos a poacute Muito choro e desespero e ateacute a possibilidade de nos atirarmos do alto do mirante da Travessa da Lapa laacute do bairro do Desterro Lembro do noticiaacuterio da morte de Jota Alves

nas proximidades do aeroporto do Tirirical ou dos Cam-pos de Perizes natildeo sei precisar agora Da minha irmatilde Graccedila a princiacutepio gozando da gente para depois asso-ciar-se ao clima de terror generalizado na famiacutelia mas lembro de alguma coisa que natildeo casava com a minha curiosidade de menino inventor que no momento tam-beacutem natildeo sei precisar Acho que foi a sintonia com alguma outra emissora cuja programaccedilatildeo natildeo batiardquo

Parafuso lembra um pito que levou ldquoEu fui escu-lhambado por um pastor protestante que fazia um pro-grama na raacutedio Ele chegou laacute e disse Seu Elvas Seu Parafuso natildeo se faz uma coisa dessasrdquo A pesquisa-dora Karla Miranda lembra o depoimento de uma tia ao saber de seu envolvimento no projeto ldquoEla lem-brou que minha avoacute ficou preocupada e pensou com quem e onde iria morrer Minha avoacute queria reunir toda a famiacutelia e por isso pensou se iam morrer no Satildeo Francisco ou no Monte Castelo [bairros ludovicenses proacuteximos ao Centro]rdquo

Para quem natildeo lembra ou como eu nem existia em 1971 o livro traz encartado um CD com o aacuteudio do programa Estaacute quase tudo laacute Parafuso chegou atrasado agrave raacutedio e o uacutenico gravador da emissora usado para regis-trar tudo o que ia ao ar por conta da censura em voga ficava trancado na sala do sonoplasta Das muacutesicas do hit parade satildeo tocados apenas os trechos iniciais por conta da duraccedilatildeo do programa ndash a coisa toda demorou cerca de trecircs horas entre o iniacutecio do susto e o exeacutercito invadir a sede da Raacutedio e TV Difusora natildeo permitindo que a programaccedilatildeo fosse ao ar aquele dia

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

e Hen

riqu

e Alvim

Correcirca p

ara a ediccedilatildeo belga

de ldquoA

Gu

erra dos M

un

dosrdquo p

ublicad

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06

27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

Diaacute

rio

da

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

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ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

foto

s M

arco

s P

aulo

61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 13: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

25 | nov-dez 2011 |24

Narrativa de um acontecimento fabulosoO professor Francisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo tinha 11 anos quando ouviu sua matildee conversando com uma vizinha sobre uma invasatildeo alieniacutegena agrave terra O evento havia sido transmitido pelo raacutedio a Raacutedio Difusora que agrave eacutepoca havia completado 16 anos e era liacuteder de audi-ecircncia no Maranhatildeo O menino Chico teve ali uma das chaves para entender A guerra dos mundos transmis-satildeo radiofocircnica de ldquoficccedilatildeo baseada em Orson Wellesrdquo ndash antes de se tornar o cineasta de Cidadatildeo Kane ele havia adaptado para o raacutedio o livro homocircnimo de H G Wells em 1938 ndash cujo roteiro foi escrito por Seacutergio Brito

Gonccedilalves organizou o livro Outubro de 71 memoacute-rias fantaacutesticas da guerra dos mundos em que reconta minuciosamente ndash mantendo inclusive as contradiccedilotildees entre entrevistados ndash o episoacutedio ao contraacuterio do ameri-cano no Maranhatildeo soacute depois se soube que se tratava de ficccedilatildeo cientiacutefica Sobre o assunto ele conversou conosco

Como surgiu a ideia de resgatar a histoacuteria da trans-missatildeo radiofocircnica dA guerra dos mundos pela DifusoraFrancisco Gonccedilalves da Conceiccedilatildeo ndash

A ideia surgiu da constataccedilatildeo de que

existia uma lacuna nos estudos sobre

o raacutedio o jornalismo e A guerra dos mundos De modo geral a biblio-

grafia que tratava da adaptaccedilatildeo do

livro de H G Wells para o raacutedio

natildeo incluiacutea o programa da Difusora

que no dia 30 de outubro de 1971

assustou a populaccedilatildeo e parou a cidade

Esse como outros programas faz

parte dos efeitos provocados pela

histoacuterica versatildeo da CBS de 1938

produzida por Orson Welles No

entanto a versatildeo da Difusora em

termos locais teve efeitos semelhantes

agrave versatildeo americana Isto aconteceu

sobretudo por conta do modo como

o programa foi inserido na progra-

maccedilatildeo a participaccedilatildeo de cronistas

locutores e jornalistas conhecidos

do puacuteblico a traduccedilatildeo da histoacuteria

para o universo simboacutelico do estado

a trilha sonora e os efeitos de som

O estudo desse episoacutedio acrescenta

assim novos elementos ao conhe-

cimento do raacutedio e do jornalismo

mdashAteacute que ponto confundiam-se os dois Franciscos Gonccedilalves Um o professor-pesquisador outro a crianccedila que ou ouviu a transmissatildeo no raacutedio ou histoacuterias dos mais velhosEu diria que os dois se reencontraram

na reconstituiccedilatildeo das narrativas

sobre esse episoacutedio Uma das chaves

de interpretaccedilatildeo do programa me

foi dado pela minha matildee em 1971

quando a escutei conversando

com uma vizinha sobre a invasatildeo

marciana a serpente encantada e

a volta de Dom Sebastiatildeo [lendas maranhenses que preveem o desapa-recimento da capital Satildeo Luiacutes] Ao

longo da pesquisa e da produccedilatildeo do

livro ouvimos outras histoacuterias sobre

esse momento Por isso mesmo a

nossa ideia era organizar um livro

que interessasse e fosse lido tanto por

pesquisadores estudantes profis-

sionais de comunicaccedilatildeo como tambeacutem

pelos ouvintes da eacutepoca Natildeo tiacutenhamos

a pretensatildeo de escrever uma histoacuteria

oficial da Guerra dos mundos mas

em apresentar as vaacuterias narrativas dos

produtores e interpretes sobre aquele

acontecimento A nossa narrativa

embora tenha o objetivo de contextua-

lizar os dados apresentados no livro eacute

outra narrativa de um acontecimento

fabuloso que tornou os produtores e

ouvintes cuacutemplices de uma histoacuteria

que faz parte do imaginaacuterio da cidade

de Satildeo Luiacutes Pelos comentaacuterios que

temos ouvido a publicaccedilatildeo do livro

fez com que muita gente voltasse agrave sua

infacircncia ao relembrar o dia em que os

marcianos teriam chegado agrave Satildeo Luiacutes

mdashHaacute algum outro episoacutedio pouco estudado das comunicaccedilotildees no Maranhatildeo que tu tenhas vontade de preencher a lacunaA pesquisa sobre esse episoacutedio me chamou a atenccedilatildeo para os processos de ficcionalizaccedilatildeo da notiacutecia Diferente do programa produzido por Orson Welles em que participaram apenas atores e foi veiculado em um horaacuterio destinado ao radioteatro o programa da Difusora foi apresentado nos horaacuterios reservados ao entreteni-mento e agrave informaccedilatildeo contou com a participaccedilatildeo de cronistas locutores e jornalistas consagrados pelo puacuteblico e utilizou as marcas noticiosas da emissora como a vinheta de notiacutecias

extraordinaacuterias Do grupo apenas um era ator profissional Reynaldo Faray Como a ficccedilatildeo natildeo trata necessaria-mente do futuro mas do presente esse episoacutedio aponta para uma das questotildees centrais em nossa eacutepoca ndash as relaccedilotildees entre o jornalismo e a ficccedilatildeo A investigaccedilatildeo desse tema pode nos ajudar a compreender por exemplo algumas das caracteriacutesticas do jornalismo poliacutetico praticado em nosso estado profundamente marcado pelo fabuloso e pelas fabulaccedilotildees que povoam o mundo da poliacuteticamdashQuais as maiores dificuldades enfrentadas na pesquisaO acesso a fontes Infelizmente

durante o processo de pesquisa natildeo

conseguimos localizar Fernando Melo

Fernando Costa e os comandantes

militares Somente depois do livro

finalizado conseguimos entrevistar

Fernando Melo Do mesmo modo

natildeo conseguimos localizar uma ediccedilatildeo

da revista EleampEla citada por Seacutergio

Brito que publicou uma sinopse do

programa de Orson Welles A nossa

expectativa eacute que a gente localize

essas pessoas e encontre essa revista

e faccedila uma segunda ediccedilatildeo do livro

mdashQual a maior alegria eou emoccedilatildeo vivida durante o processo de pesquisaA nossa maior alegria foi quando

Joseacute de Ribamar Elvas Ribeiro o

Parafuso nos passou a gravaccedilatildeo do

programa e ouvimos pela primeira

vez o famoso A guerra dos mundos

produzido e interpretado por Seacutergio

Brito Parafuso Pereirinha J Alves

Rayol Filho Fernando Melo Fernando

Costa e outros profissionais de raacutedio

Ateacute aquele momento poucas pessoas

tinham tido a oportunidade de ouvi-lo

ilustraccedilotildees d

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ara a ediccedilatildeo belga

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27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 14: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

27 | nov-dez 2011 |26

O jornal Diaacuterio da Tarde come-ccedilou a circular em Curitiba a partir de 1899 No seu pri-meiro ano saiu uma de vaacuterias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga O tiacutetulo e o subtiacutetulo respectivamente foram Feiticeira ndash Artes de Satanaz e no corpo do texto consta o endereccedilo residencial desta mulher que dizia ldquoter rela-ccedilotildees com Satanaz cuja vontade dominardquo segundo o peri-oacutedico Poucos tecircm notiacutecia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga e infelizmente entre estes natildeo estatildeo os pesquisadores que resgataram a memoacuteria da mulher ateacute agora Em compensaccedilatildeo buscando rapida-mente o seu nome na rede chegamos agrave lenda urbana da bruxa com quadril avantajado devoradora de doces e assassina de crianccedilas ndash a fugitiva que veio esconder numa vida pacata em Curitiba uma histoacuteria suposta-mente cheia de magia negra sacrifiacutecios e voos a vassoura

Ela morava na Rua Dr Pedroza que hoje se chama Benjamin Lins Com o passar do seacuteculo XX a regiatildeo progrediu economicamente e hoje a conhece-mos pelo nome de Batel um dos bairros mais ricos da cidade Sobrevivia principalmente de consultas maacutegicas que eram pagas pela vizinhanccedila com dinheiro comida e

favores Foi infame ndash e natildeo por coincidecircncia o comeccedilo do seacuteculo XX foi difiacutecil para os curandeiros cartoman-tes e benzedeiras da capital paranaense No centro e adjacecircncias diversos escritoacuterios de advocacia e consul-toacuterios meacutedicos comeccedilaram a aparecer principalmente depois da fundaccedilatildeo da Universidade Federal do Paranaacute em 1912 e a populaccedilatildeo foi deixando de confiar nas praacute-ticas que natildeo tinham o selo de aprovaccedilatildeo cientiacutefica e o respaldo da imprensa

Natildeo soacute a maioria dos consultoacuterios esoteacutericos foi desaparecendo do centro de Curitiba como tam-beacutem a boemia e as casas de madeira A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro a prefeitura botou abaixo construccedilotildees natildeo-rentaacuteveis abrindo alas para os bondes e os negoacutecios A cidade se urbanizava aos pou-cos apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais cuja economia estava conectada agrave erva-mate e agrave extraccedilatildeo de madeira Aleacutem da prefeitura a poliacutecia os meacutedicos e outros profissionais se engajavam no esta-belecimento de um estilo de vida especiacutefico na cidade Enquanto isso benzedeiras e curandeiros foram per-dendo espaccedilo e virando notiacutecia na seccedilatildeo ldquoVitrina do Diabordquo no Diaacuterio da Tarde

Reza bravamdashA coluna ldquoVitrina do Diabordquo do jornal curitibano Diaacuterio da Tarde mostra como a imprensa execrava e ao mesmo tempo se encantava com a magiamdashTiago Rubini

Diaacute

rio

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29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

foto

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

foto

s M

arco

s P

aulo

61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 15: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

29 | nov-dez 2011 |28

Este jornal foi importante e conhecido no periacute-odo Era o que tinha mais anuacutencios e notiacutecias locais e internacionais sendo bastante lido ateacute 1951 quando comeccedilou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular Na eacutepoca o jornal pretendia dar conta dos embates poliacuteticos do periacuteodo sem privilegiar nenhuma orientaccedilatildeo partidaacuteria Ser ldquoa folha imparcialrdquo de maior circulaccedilatildeo do Paranaacute era a sua ambiccedilatildeo para a infeli-cidade dos muitos cidadatildeos que sem condiccedilotildees finan-ceiras e poliacuteticas de se defender apareciam como personagens de mateacuterias sensacionalistas sobre mis-ticismo e feiticcedilaria

As praacuteticas do espiritismo kardecista e da quiro-mancia apesar de tudo natildeo foram tatildeo estigmatizadas O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veiacuteculo como cientistas que atendiam negociantes intelectuais e artistas a elite residente do centro da cidade Aleacutem disso o Diaacuterio da Tarde mesmo reprovando Formiga e outros personagens ndash como uma famiacutelia de cartoman-tes que em 1901 residia na Rua Satildeo Joseacute e segundo o jornal organizava ldquoSabbats infernaisrdquo ndash contava com espiacuteritas kardecistas como fontes de mateacuterias investi-gativas e com anuacutencios de consultoacuterios de quiroman-cia nos anos 1930

Outro caso famoso e cercado de misteacuterios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa em Entre Rios municiacutepio de Santa Catarina Em uma mateacuteria de capa de 1934 lecirc-se que ldquoPessoa muito rela-cionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje agrave nossa reportagem um fenocircmeno em que fora parte No decorrer desta noite teve a seguinte visatildeo ndash Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa E interrogava-o [] A visatildeo foi clara e o nosso informante pocircde registrar os seguintes sinais do assassino [] Esses sinais combinam com os de certo indiviacuteduo em cuja pista se acham a poliacutecia e a nossa reportagem Tratar-se-aacute de um sensacional fenocircmeno espiacuteritardquo Em 1933 o consul-toacuterio de um quiromante localizado proacuteximo agrave redaccedilatildeo do Diaacuterio da Tarde teve um grande anuacutencio publicado na primeira paacutegina com os dizeres ldquoConsultae vosso futuro em vossas matildeosrdquo Felizmente hoje sabemos que a auto-ridade para praticar e discorrer sobre as artes miacutesticas nesta eacutepoca foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graccedila divina Natildeo agrave toa em 1942 houve um cadastramento de centros espiacuteritas da cidade organi-zado pela poliacutecia por meacutedicos e farmacecircuticos que qui-seram evitar a confusatildeo daqueles centros com lugares

de praacuteticas populares semelhantes que recebiam a clas-sificaccedilatildeo de ldquobaixo espiritismordquo

Denuacutencias de caccedila agraves bruxasNome tambeacutem cercado de lendas urbanas e supersticcedilotildees eacute o do bairro Umbaraacute que no comeccedilo do seacuteculo XX natildeo foi tatildeo contemplado pelo processo civilizatoacuterio quanto outras regiotildees curitibanas Ateacute hoje eacute dito que no uacuteltimo bimestre de cada ano acontece uma reuniatildeo de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de laacute e que a noite naquela regiatildeo eacute macabra e cheia de assombra-ccedilotildees ndash melhor passear no Batel Novamente uma pes-quisa informal na internet confirma a existecircncia desses boatos Mais assustador que ouvi-los eacute saber que anti-gamente a populaccedilatildeo local majoritariamente catoacutelica apostoacutelica romana pretendia fazer a justiccedila divina com as proacuteprias matildeos

Somente em 1958 o Umbaraacute foi abastecido com energia eleacutetrica Ateacute entatildeo o estilo de vida da vizinhanccedila era rural a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar entatildeo natildeo eacute de se estranhar que a Igreja Catoacutelica tenha se esta-belecido na regiatildeo Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educaccedilatildeo do lazer e da integridade fiacutesica e psicoloacutegica da comunidade O Padre Claacuteudio Morelli por exemplo paroquiano da Igreja Matriz do Umbaraacute receitou remeacutedios para os seus fieacuteis ateacute a sua morte em 1915

Em 1906 poreacutem o Diaacuterio da Tarde jaacute trazia uma maacute notiacutecia um morador conhecido na regiatildeo foi espan-cado pelos seus vizinhos que atiraram as suas roupas ao fogo acreditando que desta maneira iriam dizimar forccedilas demoniacuteacas do ambiente O seu nome era Joatildeo Baquiano e o seu crime ldquoespiritualrdquo foi trocar rezas encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro que nunca chegaram a tiraacute-lo da sua situa-ccedilatildeo de miseacuteria e muito menos contribuiacuteram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate Aleacutem do mais seguindo o coacutedigo penal de 1891 Joatildeo Baquiano era um fora-da-lei em relaccedilatildeo ao charlatanismo o artigo 156 fazia uma distinccedilatildeo criminal agrave praacutetica do ofiacutecio de curan-deiro Do charlatanismo miacutestico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo e hoje o Diaacuterio da Tarde tem circulaccedilatildeo modesta e esporaacutedica como jornal popu-lar Seu conteuacutedo eacute composto quase que exclusivamente por repescagens de mateacuterias da Gazeta Haacute vida apoacutes a morte tambeacutem para os jornais

Do charlatanismo aos tribunais inquisitoacuteriosApesar de o Brasil nunca ter sediado um tribu-

nal inquisitoacuterio as praacuteticas da inquisiccedilatildeo foram difun-didas na nossa cultura As perseguiccedilotildees populares que sofreram Anna Formiga Joatildeo Baquiano e diver-sas outras pessoas de Curitiba satildeo exemplos claros disso Uma boa leitura sobre o assunto eacute da autoria de Laura de Mello e Souza O estudo chamado O Diabo e a Terra de Santa Cruz (Companhia das Letras 2009) traccedila uma genealogia desde o periacuteodo colonial que evi-dencia a estrateacutegia inquisitoacuteria mais recorrente por aqui a difamaccedilatildeo Cartazes com nomes de suspeitos de bruxaria eram afixados natildeo pela Igreja mas pela comunidade cristatilde que com muito mais frequecircncia resolvia com esta estrateacutegia questotildees pessoais que estavam longe de servir o divino

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

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ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

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Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 16: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

31 | nov-dez 2011 |30

A construccedilatildeo do Lago de Serra da Mesa trouxe grande impacto ambiental e social para a regiatildeo Norte de Goiaacutes Contudo trouxe o turismo a pesca e tambeacutem fez surgir lendas e lendas Algumas antigas agora reviveram assombrando a populaccedilatildeo do norte goiano

Com o lago cheio cavernas preacute-histoacutericas ficaram debaixo do volume imenso de aacutegua cuja superfiacutecie se estende ao longo de 1780km2 transformando fazendas antigas em casas assombradas Povoados inteiros foram alagados gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo ouro enter-rado e tantas outras de arrepiar o cabelo

Satildeo histoacuterias que se tornaram lendas populares na regiatildeo de Serra da Mesa onde outrora havia mui-tos garimpos Essas lendas se repetem com tempo e mesmo mudando um pouco no fundo expressam duacutevi-das e anseios do homem goiano

Os causos fazem ateacute perder o sono Alguns satildeo tatildeo assombrosos que os adultos natildeo contam perto das crian-ccedilas mas continuam arraigados na memoacuteria popular Com o surgimento do Lago de Serra da Mesa a lenda do

Nego DrsquoAacutegua reviveu Eacute possiacutevel coletar hoje depoimen-tos de pessoas que se diziam viacutetimas do ldquobichordquo assim como outros que ouviram dos mais velhos histoacuterias de vaacuterias apariccedilotildees do Nego DrsquoAacutegua na regiatildeo

Na cidade de Juazeiro na Bahia foi construiacuteda uma escultura do Nego DrsquoAacutegua pelo artista Ledo Ivo Gomes de Oliveira com mais de 12 metros de altura no leito do rio Satildeo Francisco

A lenda do Nego DrsquoAacutegua pode ser ouvida em todo o Brasil Em Goiaacutes ela jaacute era contada pelos mais anti-gos que juravam ter visto nos rios principalmente nas cachoeiras o bicho danado De onde ela surgiu natildeo se sabe Muitos como o Sr Maacuterio natildeo gostam muito de falar no assunto Se pergunto ele desconversa

ndash Vamo deixaacute esse assunto pra laacute Fico sonhano de noite quando iscuto falaacute de Nego DrsquoAacutegua Quando era piqueno esse bicho afundou a canoa do meu pai Noacuteis num gosta de falar disso natildeo

Um mergulhador que natildeo quis se identificar afir-mou ter deixado de mergulhar porque viu alguma coisa estranha surgindo do fundo do lago o que julga ser o

A Lenda do Nego DrsquoAacutegua

mdashCom a construccedilatildeo de uma hidreleacutetrica na regiatildeo de Uruaccedilu no Norte de Goiaacutes muitas fazendas minas e uma cachoeira foram alagadas gerando histoacuterias de assombraccedilatildeo de arrepiarmdashSinvaline Pinheiro

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33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

T O Ni O L OO L O iN O T

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 17: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

33 | nov-dez 2011 |32

tal de Nego DrsquoAacutegua Assim a histoacuteria tomou forccedila e ateacute virou tema de peccedila teatral nas escolas da regiatildeo e em outros locais

Antes da construccedilatildeo da hidreleacutetrica existia no rio Maranhatildeo a Cachoeira do Machadinho hoje coberta pelo Lago de Serra da Mesa Segundo moradores mais anti-gos ela surgiu a partir de um grande paredatildeo de pedras construiacutedo por escravos para garimpar ouro no fundo do rio Quando o paredatildeo natildeo resistiu a aacutegua levou escra-vos e ouro formando a cachoeira que tem entre 10 e 12 metros de altura Os pescadores que dormiam na casa de pedra diziam ouvir gritos e ateacute uivos vindo da cachoeira seriam os gemidos dos escravos mortos com o desaba-mento que revoltados apareciam como Negos DrsquoAacutegua assombrando as pessoas

Agora o grande lago estaacute cheio de misteacuterios especialmente na regiatildeo de Uruaccedilu Debaixo de suas aacuteguas ficaram os garimpos as cavernas e os foacutesseis E as lendas que vatildeo ressurgindo em vaacuterios pontos do imenso reservatoacuterio de aacutegua

Quem perdeu sua terra deu jeito de comprar uma aacuterea pequena um lote e fazer um barraco ou um rancho agraves margens do novo lago Foi o modo encontrado para garantir o local da pesca principalmente do peixe tucu-nareacute que ainda existe em abundacircncia por ali

Seu Pedro morador afirma com certeza que foi viacutetima do Nego DrsquoAacutegua Seu ranchinho agraves margens do

lago eacute cercado de arame Laacute ele plantou mandioca milho e pimenta Construiu uma canoinha de pau e assim se sente como um verdadeiro fazendeiro

Todas as tardes pega a canoa de pau e vai atraacutes dos peixes Pesca ateacute anoitecer Com olhos estatalados revive uma experiecircncia aterradora

ndash Outro dia o sol jaacute ia entrano e vi um vurto nrsquoaacutegua Natildeo dicifrei o qui era Entonse remei mais perto pra vecirc Chegano perto o vurto afundou nrsquoaacutegua Pensei que fosse peixe grande entatildeo amarrei minha canoinha acendi o pito pra espantaacute as muriccediloca e fiquei por ali

Faz um gesto cristatildeo em nome do Pai e continuandash Num gosto nem de alembraacute Dona A canoa

comeccedilou a balanccedilar forte nem vento tinha Peguei o facatildeo e fiquei procurano num via nada e a canoa balan-

ccedilano mais forte Dirrepente vejo uma matildeo preta de dedo torto sacudino a canoa Nem pensei desci o facatildeo e nem sei se o grito foi meu ou do bicho

Eufoacuterico ele continuandash Eu fiquei sem forgo e num conseguia sair do

lugar A canoa acarmou e remei pra dentro do rancho bem depressa

Segundo ele com calma coletou os dedinhos na canoa e colocou numa lata Nem olhou direito soacute viu que eram magros e enrugados

Seu Pedro conta que passou a noite sem dormir direito Lembrou das histoacuterias do pai que os antigos rios

Maranhatildeo Passa Trecircs Cachoeira do Machadinho eram assombrados e o Nego DrsquoAacutegua aparecia sempre Longa noite de pesadelos

Lembrou do amigo Zeacute contandondash Noacuteis ia atravessando o gado de nado e os cano-

eiro acompanhano e os Nego DrsquoAacutegua ia nadando de pareia com o gado Eles tinha cara de gente e peacute de pato igual um reminho

Jaacute seu compadre Ademar diziandash O Nego DrsquoAacutegua tem dois forgos um da aacutegua e

outro de fora O bicho eacute braboO avocirc descreviandash Os Nego DrsquoAacutegua soacute tem um zoacutei grande no meio

da testa ele afoga os pescadocircDe manhatilde Seu Pedro diz que foi pegar a lata para

levar para a cidade e natildeo havia nada Sumiu a lata com os dedos e tudo

ndash Dona do ceacuteu a lata sumiu com os dedo aiacute fiquei apavorado e corri para a cidade pra pidi socorro E agora eu ia contaacute e o povo num ia acreditar

Chegando agrave cidade de Uruaccedilu ele contou a his-toacuteria para muitas pessoas Uns riram outros acredita-ram e ateacute confirmaram que com certeza o Nego DrsquoAacutegua tinha voltado

Joseacute Ameacuterico vizinho conta que realmente Seu Pedro ficou muito assustado tendo ateacute adoecido E nunca mais foi pescar sozinho Ele narra

ndash Eacute verdade o que ele conta eacute um home seacuterio num ia inventaacute essas coisa E o medo que ele tem agora num sai mais sozinho pra canto nenhum Esse ldquobichordquo jaacute apa-receu pra muita gente aqui na redondeza eu cridito sim

Dona Nega esposa de Seu Pedro confirmandash Eacute certo que Pedro viu arguma assombraccedilatildeo

ele ficou medroso Ainda bem que se for o tar de Nego DrsquoAacutegua agora ele vai aparecer mas eacute fartando os dedos da matildeo

Seu Pedro coccedilou o queixo pensou e disse para a mulher

ndash Eacute agora eu cridito em Nego Drsquoaacutegua que meu pai contava Por pouco ele natildeo afundou minha canoa Danado esse bicho

Aiacute a histoacuteria cresceu tomou estrada e o fantasma continua aparecendo em vaacuterias partes do lago Os assus-tados que o veem soacute ainda natildeo notaram se eacute o mesmo Nego Drsquoaacutegua sem os dedos da matildeo

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35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

arte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 18: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

35 | nov-dez 2011 |34

Overmundo em piacutelulas

mdashEm todas as ediccedilotildees a Revista Overmundo seleciona o que de mais bacana circulou e gerou discussatildeo entre os conteuacutedo do site nos uacuteltimos meses Leia mais em overmundocombrmdash

02 Vai no passinho do menor da favelaDas duplas de MCs agraves montagens

o funk carioca natildeo parou de se

reinventar A cultura funk movida

por um turbilhatildeo de modas encontra

no passinho um misto de diversatildeo

e disputa ganhando cada vez mais

adeptos Joatildeo Xavi narra essa

trajetoacuteria de encontros de raiacutezes com a

contemporaneidade e desenvolve sua

curiosa tese sobre como o ldquopassinhordquo

pode representar uma espeacutecie de

libertaccedilatildeo do corpo e da expressatildeo

corporal tipicamente masculina

nos bailes

mdash

06O ataque do Saci UrbanoChega de mitos despolitizados O

folclore toma conta das grandes

cidades em forma de criacutetica social

Trata-se do Saci Urbano Andreolli

Costa da Revista Poranduba conta

como o saci este diabrete siacutembolo

nacional surgiu nos muros e paredes

de Satildeo Paulo e outras metroacutepoles com

cara de ldquopobre sofredorrdquo na arte e nas

palavras do grafiteiro Thiago Vaz

mdash

04O saudoso sebo da florestaQual eacute a importacircncia de um sebo

para seus frequentadores Pois o

Arquipeacutelago em Manaus era mais que

uma livraria com preccedilos acessiacuteveis Era

um ponto de encontro com direito a

batalhas de RPG aleacutem de um acervo

consideraacutevel de quadrinhos Rosiel M

compartilha um pouco desse momento

de despedida

mdash

07Andando na pranchaAi que vida filme de Ciacutecero Filho

que ganhou fama circulando na

forma de DVD pirata no Piauiacute eacute

objeto de pesquisa do projeto Open

Business alguns anos depois O

diretor fala sobre modos de produccedilatildeo

profissionalismo e contradiccedilotildees

05Metal paraense tipo exportaccedilatildeoQuem disse que o Paraacute soacute exporta

tecnobrega Disgrace and Terror

banda paraense de thrash e heavy

metal comemora 10 anos de carreira

com uma turnecirc pela Europa

mdash

01 Caccediladores de mitosProcura-se Caboclo DrsquoAacutegua

Recompensa R$10mil (pela foto)

Andriolli Costa conta sobre grupo

que planeja a captura de monstros do

imaginaacuterio mineiro lanccedilando novos

olhares sobre o folclore regional

mdash

03Sinhozinho em busca do profetaSinhozinho personagem miacutetico de

Bonito MS era um profeta mudo

que arrastava multidotildees para suas

pregaccedilotildees silenciosas Curandeiro

realizava milagres deixando

importante legado na cidade Laryssa

Caetano investiga seus rastros e sua

histoacuteria

mdash

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

arte

sob

re r

epro

du

ccedilotildees

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O C

ruze

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onio

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arq

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esso

al)

41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

foto

s M

arco

s P

aulo

61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 19: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

37 | nov-dez 2011 |36

O Conde Belamorte nasceu Joviano Martins Soares Filho em Nova Lima Minas Gerais no dia 2 de novembro de 1938 um Dia de Finados Foi livreiro vendedor barbeiro costureiro trompista atleta professor mas principalmente poeta Em seus versos a alcunha e temaacutetica funestas sempre o acompanharam Desde o primeiro livro Rosas do meu altar publicado em 1955 Depois em A danccedila dos espectros lanccedilado em 1963 e Tonico Tinhoso o afilhado do diabo de 1985

Belamorte experimentou fama repentina no iniacute-cio dos anos 60 quando um repoacuterter da revista O Cru-zeiro descobriu sua Barbearia Belamorte no bairro Santa Efigecircnia em Belo Horizonte Pelo estilo pecu-liar participou de programas de raacutedio e tevecirc ao lado de Chico Xavier e Zeacute do Caixatildeo E sua poeacutetica sofisti-cada foi comparada agrave de Augusto dos Anjos Belamorte vive de maneira modesta em Vila Kennedy no Rio de Janeiro onde dorme num sarcoacutefago improvisado e cuida da filha mais nova Semiacuteramis de 10 anos (a mais velha Euterpes tem 42 e vive em Belo Horizonte com o resto de sua famiacutelia) Pela dedicaccedilatildeo com a pequena ganhou no ano passado um diploma de ldquoMelhor Pai da Vilardquo da Associaccedilatildeo de Moradores de Vila Kennedy

E laacute virou o meu quintal Eu cresci

achando que laacute era um jardim como

qualquer outro Nunca tive medo

Laacute eu tive muitas inspiraccedilotildees fiz

muitas reflexotildees Eu gosto tanto de

cemiteacuterio que levei um pedaccedilo para

dentro de casa fiz um tuacutemulo laacute em

casa As pessoas acham estranho

mas eu acho bonito Eacute um excelente

lugar para meditar A coisa mais

certa que haacute eacute a vida apoacutes a morte

mdash

O senhor tambeacutem levou o apreccedilo pela morte para a indumentaacuteriahellipFiz curso de corte e costura e eu

mesmo faccedilo minhas roupas Hoje

em dia soacute desenho Fiz o curso para

estar mais proacuteximo das mulheres

Adoro estar entre elas As cavei-

rinhas levo comigo como um siacutembolo

de humildade Elas nos lembram de

deixar a presunccedilatildeo laacute fora Elas nos

lembram quem somos de verdade

Tambeacutem gosto muito de turbantes Eu

enfeito minha cabeccedila porque acho ela

bonita Gosto do que tem dentro dela

Quando enfeito minha cabeccedila estou

lanccedilando uma mensagem de amor agrave

Iacutendia Ateacute fiz uns versos sobre isso

ldquoDemonstro natural gosto emoldu-

rando meu rosto com um indiano

turbante Que em artiacutestica linguagem

de amor fraterno uma mensagem

que mando agrave Iacutendia distanterdquo

[aplausos] Hoje levo ela [a cabeccedila]

pelada e uso turbante Antigamente

os poetas eram cabeludos Era

meu fracasso como barbeiro laacute em

Minas na deacutecada de 60 Fechei

minha barbearia e vim para caacute

mdash

Quais satildeo suas influ-ecircncias literaacuteriasEdgar Allan Poe Lord Byron

Charles Baudelaire Augusto

dos Anjos e Jorge de Lima

mdash

E sobre a sua relaccedilatildeo com as mulheres Aleacutem dos poemas

A qualquer hora do dia Belamorte pode ser visto impecavelmente vestido com sua manta negra coberta por adereccedilos de caveiras como se a morte fosse fanta-siosa e ordinaacuteria E terna como eacute a sua voz Aos 73 anos o senhor negro de barba branca foi redescoberto pelo muacutesico pernambucano Armando Lobo que musicou um dos seus poemas ldquoAtraacutes das maacutescarasrdquo encontrado por acaso num sebo Belamorte vive de aposentadoria e ainda escreve versos todos os dias agrave matildeo haacute seis meses acabou a fita da maacutequina de escrever e ele natildeo encontra outra de jeito nenhum No armaacuterio jazem pas-tas e mais pastas de sonetos ineacuteditos uns macabros outros lascivos todos fantaacutesticos ndash como os que vocecirc lecirc na sequecircncia

macabros vocecirc tambeacutem tem muitos poemas lascivosPor que todo miacutestico eacute eroacutetico Eu me

indago sempre Mas eacute um fato Eu sou

muito lascivo Quanto mais envelheccedilo

quanto mais perto da morte eu chego

tanto mais vivo por dentro me sinto

Eu era um tanto apagado sexualmente

no iniacutecio da vida Aos 50 e poucos

anos comecei a praticar caratecirc e meu

sangue entrou em ebuliccedilatildeo No meu

primeiro casamento natildeo tive lua-de-

mel Hoje em dia todo dia eu quero

lua-de-mel A vida me chama para

isso Ateacute no gozo eroacutetico Deus estaacute

presente Escrevo tantas coisas sobre as

mulheres apesar de ter sofrido tanto

nas matildeos delas Eu amo as mulheres

Faccedilo tudo para ficar perto delas Sou

muito fatilde do Casanova Natildeo tem uma

mulher que eu conheccedila que natildeo ganhe

um soneto (Abre a pasta de poesias

e mostra uma foto antiga recortada

de revista nela se vecirc a atriz Luma de

Oliveira graacutevida do filho Thor hoje

com 20 anos) Fiz um soneto para ela

na eacutepoca Olha que coisa mais linda

uma mulher graacutevida Como algueacutem

pode abandonar uma mulher assim

Por isso entre meus sonhos estaacute o de

construir um lar para matildees solteiras

mdash

Mas no prefaacutecio de seu livro A danccedila dos espectros vocecirc diz que a morte merece mais o seu afeto do que a mulher Tem um toque de humor ali natildeo eacuteFaccedilo muito humor quando escrevo

Nos sonetos que faccedilo para minhas

amantes dou apelidos com nomes

estapafuacuterdios como Madame

Morcego Madame Coruja Caveirinha

esses nomes engraccedilados Mas o

poeta tambeacutem eacute triste escrevi muitas

coisas tristes para a minha Condessa

Belamorte [em 1962 a modelo italiana

Gillida Bettoni apaixonou-se por

Belamorte em Belo Horizonte ficando

no paiacutes com ele e trabalhando em sua

barbearia Deu-lhe uma filha Euterpes

mas voltou para a Europa anos depois

Numa pasta guarda uma mecha dos

cabelos dela] Chamei-a de Harpia

e me arrependo muito Nenhuma

mulher merece que falemos mal delas

principalmente quando nos datildeo filhos

mdash

Belamorte vocecirc tem religiatildeoMuitas vezes estou no meu tuacutemulo e

medito de tal maneira que o espiacuterito

sai vai longe Acredito em bicorpo-

reidade Mas eu natildeo sou um espiacuterita

completo Eu simplesmente achei no dia

do meu aniversaacuterio certa vez o Paacuternaso de aleacutem tuacutemulo [de Allan Kardec]

Fiquei empolgado E aiacute me converti ao

espiritismo Mas natildeo apregoo acho feio

Natildeo faccedilo proselitismo Mas o que eu

escrevo queira ou natildeo acaba fazendo

uma pregaccedilatildeo com a vida do aleacutem

mdash

No prefaacutecio do livro A danccedila dos espectros o senhor se pergunta ldquonatildeo acharia este luacutegubre poeta tantos outros temas interessantes e alegres dentro da vidardquo Eu repito a pergunta agora quase 50 anos depois que o livro foi lanccediladoOs temas mais bonitos da muacutesica

e da pintura tecircm ligaccedilatildeo com a

morte Por que natildeo a poesia

E a morte natildeo eacute morte natildeo eacute

um fim mas uma sequecircncia

mdash

Vocecirc jaacute tem preparado o seu veloacuterioNo meu veloacuterio natildeo quero nenhum

fanaacutetico religioso nenhum carola

Quero que contem piadas picantes

que riam que contem como eu vivia

Porque eu continuarei vivendohellip

A morte revela o homem Como eu

jaacute escrevi em algum soneto [ldquoRosas

do meu altarrdquo 1955] ldquoO homem vive

enganando o mundo inteiro E a si

mesmo conscientemente engana

Ateacute cair nas garras do coveirordquo

Como teve iniacutecio o seu interesse pela morteEm Nova Lima quando eu era

crianccedila sempre gostei de ficar

quietinho pensando sozinho Um

dia meus pais se mudaram para

uma casa ao lado de um cemiteacuterio

Parnaso de aleacutem-tuacutemulo

mdashAos 73 anos Joviano Martins Soares Filho que assume na poesia a alcunha de Conde Belamorte ainda guarda bela obra literaacuteria desconhecida do grande puacuteblicomdashMariana Filgueiras

arte sobre reprod

uccedilotildees d

e O C

ruzeiro

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Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

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Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

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Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 20: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

39 | nov-dez 2011 |38

Nasce o Conde Belamorte50 anos faz na capital mineiraum cidadatildeo surgiu com negra indumentaacuteriacom longa capa negra emblema de caveirae cavanhaque hirsuto igual visatildeo lendaacuteria

Era um poeta feral que do sepulcro agrave beirafugindo ao ramerratildeo da urbe tumultuaacuteriapensara e crera enfim que a vida verdadeiracontinua depois da tuba funeraacuteria

Disseram que era louco idiota cabotinopor na morte encontrar veraz encantamentoe discernir o nosso espiritual destino

Eu sou este varatildeo audazde acircnimo forte que adotou atraveacutes do Novo Testamento o nome original de Conde Belamorte

A mosca agonizante

Termino a refeiccedilatildeo Vou agrave janelaA soacutes no parapeito me debruccediloContemplo ao longe as nuvens da alegriaQue se esgarccedilam Agora o ouvido aguccediloEacute uma cantiga de ninar plangenteEacute da aragem o lacircnguido soluccedilo

Desvanecem-se as nuvens da tristezaDos montes entre as riacutegidas cortinasNo seu manto radioso de belezaE estende ainda o sol pelas campinhasBeijos de oiro no altar da Natureza

Que poesia me embala nesta horaQue baladas de amor a brisa cantaPor que cantando tudo tudo choraMinhrsquoalma comovida alto levantaA lira alegremente mas agoraSinto uma anguacutestia sublimada e santa

ldquoThe day is donerdquo Oacute liacuterico LongfellouComo voacutes nesta hora de agoniaUm sentimento de tristeza caiSobre o meu coraccedilatildeo e a tarde friaAfaga-me com a muacutesica meliacutefluaDa vossa melancoacutelica poesia

Baixo os olhos No plaacutecido jardimHaacute rosas merencoacutereas que se fanamAgrave voluacutepia dos ruacutetilos e ardentesBeijos do sol tambeacutem doutras emanamSuaviacutessimos olores Neste ambienteAlgo me torna o coraccedilatildeo mais doente

Vejo um pequeno inseto rebrilhanteE de asas transparentes que agonizaSobre uma pedra Oacute pobre mosca zulDe asas leves porosas como a brisaAo contraacuterio daqueles que te odeiamPor ti natildeo sinto laivo de ojeriza

FilosofandoSendo idoso com mais de 80 anosA morte jaacute me espreita a cada passoE em meio aos afazeres cotidianos Vai dar-me o seu inesperado abraccedilo

Irei felizMeu coraccedilatildeo devasso pararaacute de baterOs desumanos natildeo mais me picharatildeo pelo que faccediloNem maldirei seus atos insanos

Morte eacute libertaccedilatildeo fim de sequecircnciaFim da nossa mateacuteria transitoacuteriaContinuaccedilatildeo da espiritual essecircncia

Minha vida eacute riacutegida e notoacuteriaSempre exaltei a minha incontinecircnciaQue no aleacutem natildeo expotildee peremptoacuteria

Poemas sobrenaturais do Conde Belamorte

arte

sob

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epro

du

ccedilotildees

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al)

41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

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estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

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Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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foto

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arco

s P

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

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Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 21: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

foto

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41 | nov-dez 2011 |40

Embora desprovido da instantanei-dade da Internet o correio funcionava e ainda funciona como um importante meio de diaacutelogo para a produccedilatildeo de notiacutecias Atraveacutes dele por vezes as discussotildees entre redatores e leitores ganhavam sua devida publicizaccedilatildeo pela seccedilatildeo ldquocartas do leitorrdquo por exemplo Poucas pes-soas sabem que o lendaacuterio Toniolo antes de se destacar como o maior pichador de Porto Alegre tambeacutem foi o recordista nacional de publicaccedilotildees deste espaccedilo segundo confirma a reportagem de Marcelo Campos

Toniolo o policial escrivatildeoNascido em Porto Alegre no dia 17 de outubro de 1945 morador do bairro Petroacutepolis escrivatildeo da policia civil Sergio Joseacute Toniolo era um perito da objetividade Sua narrativa teacutecnica somada ao conhecimento para o levan-tamento de provas garantiram-lhe espaccedilo de destaque nos jornais de todo o paiacutes Ocupava-se dos mais diversos temas muitos dos quais entravam em pauta e geravam uma seacuterie de notiacutecias Eram mateacuterias sobre irregula-ridades no tracircnsito reformas da liacutengua portuguesa organizaccedilatildeo de campeonatos de futebol e em meio agrave ditadura militar tambeacutem realizava denuacutencias a respeito

da proacutepria poliacutecia Em 1976 Toniolo criticou o trata-mento que os policiais davam aos menores abandonados deixando os verdadeiros criminosos agirem livremente Em janeiro de 1978 tambeacutem denunciou o sistema pri-vado de guinchos do Detran de Porto Alegre que fun-cionaria segundo interesses financeiros dos prestadores

Segundo Toniolo a primeira carta publicada lhe rendeu uma repreensatildeo por parte de seus superiores que a julgavam desfavoraacutevel ao bom comprimento das atividades policiais Jaacute a segunda (ambas publicadas no jornal Zero Hora) rendeu uma detenccedilatildeo de 42 dias no Hospital Espiacuterita de pronto-atendimento psiquiaacutetrico Em 7 de marccedilo de 1978 Toniolo foi internado sem pas-sar por quaisquer exames de avaliaccedilatildeo tendo recebido licenccedila para tratamento de um mecircs soacute apoacutes sua saiacuteda

Em julho de 1978 o delegado Sergio Oliveira Gus-matildeo emitiu um parecer considerando Toniolo um ldquoele-mento perigosordquo e uma ameaccedila agrave organizaccedilatildeo policial Tambeacutem sugeriu a instauraccedilatildeo de um inqueacuterito adminis-trativo visando seu afastamento Em dezembro de 1978 Toniolo foi devidamente examinado pelo meacutedico Gildo Vissoky que diagnosticou natildeo haver nada de errado em sua sauacutede mental

T O N i O L O O L O i N O TmdashToniolo a histoacuteria do responsaacutevel pela palavra mais pichada nas paredes de Porto AlegremdashHenrique Reichelt

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43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

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O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

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65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 22: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

43 | nov-dez 2011 |42

Toniolo o poliacuteticoCom mais de 2 mil cartas publicadas desde 1972 Toniolo ganhou reconhecimento e destaque o que levou o pro-grama Fantaacutestico da Rede Globo a realizar uma entre-vista com ele em 31 de agosto de 1980 No entanto apoacutes ganhar projeccedilatildeo nacional Toniolo afirmou em nota publicada no jornal Hora do Povo intitulada ldquoFeliz-mente ainda existem jornais como o HPrdquo que a par-tir dessa data gradativamente todos os jornais do paiacutes deixaram de publicar suas cartas devido a ameaccedilas das autoridades No mesmo artigo denunciando que a tatildeo esperada liberdade de imprensa ainda natildeo chegara ao Brasil citou o caso do editor regional Delfim Moreira responsaacutevel pela mateacuteria do Fantaacutestico que teria sido sumariamente demitido em funccedilatildeo dela

Jaacute em marccedilo de 1982 periacuteodo de retomada das eleiccedilotildees as coisas pareciam mais favoraacuteveis Toniolo recebeu um telegrama do entatildeo senador Tancredo Neves dizendo ldquoNosso partido (PP) necessita sua ajuda Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua pre-ferecircncia Abraccedilos Tancredo Nevesrdquo

Toniolo prontamente aceitou o convite Solicitou ao TRE-RS candidatura a deputado estadual pelo PMDB que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo Frente agrave nova empreitada Toniolo passou a dedicar o conteuacutedo de suas cartas agrave discussatildeo do recente processo de aber-tura poliacutetica Dentre muitas criacuteticas contundentes agrave rede-mocratizaccedilatildeo e as eleiccedilotildees em especial cabe destacar a dirigida agrave aplicaccedilatildeo da Lei Falcatildeo que garantia espaccedilo gratuito na miacutedia para todos os partidos Usando o proacute-prio PMDB como exemplo Toniolo criticou os criteacuterios adotados na reparticcedilatildeo do tempo de propaganda o qual deveria ser equacircnime para todas as candidaturas Os partidos estariam dividindo o ldquohoraacuterio eleitoral gratuitordquo em funccedilatildeo dos investimentos de campanha Quem con-seguisse alocar maiores recursos para se autopromover ficava com mais tempo situaccedilatildeo que o prejudicava em particular Fruto desta insatisfaccedilatildeo Toniolo comeccedila a esboccedilar as primeiras pichaccedilotildees de seu sobrenome como confirmado tanto pela ldquomemoacuteria da comunidaderdquo quanto em um dos muitos processos judiciais pelos quais pas-sou nos anos seguintes

Entretanto a carreira poliacutetico-partidaacuteria de Toniolo natildeo foi para frente A Justiccedila Eleitoral alegou que o escrivatildeo jaacute era filiado ao PTB e embargou sua can-didatura fato que Toniolo caracteriza como uma fraude arbitraacuteria para barraacute-lo de concorrer Coincidentemente ou natildeo em 25031983 Toniolo foi oficialmente aposen-tado por invalidez ao ser diagnosticado como portador de

esquizofrenia paranoacuteide A partir de entatildeo o ex-escrivatildeo da policia civil de Porto Alegre radicalizou sua atuaccedilatildeo puacuteblica No mesmo ano enviou carta ao Jornal de Bra-siacutelia intitulada ldquoMentiras de um Coronelrdquo denunciando Atila Rohrsetzer entatildeo diretor do SCI ndash Serviccedilo Centra-lizado de Informaccedilotildees da Poliacutecia Civil que pediu demis-satildeo do cargo dias depois da publicaccedilatildeo da carta que dizia

Posso afirmar com absoluto conhecimento de causa que o coronel Atila Rohrsetzer mentiu ao Jornal de Brasiacutelia [hellip] quando negou que comandou o sequumles-tro de Liacutelian Celiberti e Universindo Dias [hellip] Inclusive eacute de meu conhecimento que o coronel Atila foi quem comandou toda a fraude das eleiccedilotildees de 82 neste Estado

Indignado converteu aquilo que viria a ser uma accedilatildeo de propaganda poliacutetica clandestina em um protesto simboacutelico A partir de entatildeo Toniolo passou a pichar fra-ses ofensivas agrave Justiccedila e a deixar sua assinatura a todos os cantos da cidade de modo agressivo

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

ilu

stra

ccedilotildees

Pro

jeto

Men

inos

eu

ou

vi (

rep

rod

uccedilatilde

o au

tori

zad

a)

49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 23: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

45 | nov-dez 2011 |44

Toniolo o pichadorEm 1984 a onipresenccedila que a palavra ldquoTONIOLOrdquo ganhava em Porto Alegre despertou o interesse do jor-nalista Lasier Martins que convidou o tal pichador para uma entrevista em seu programa de curiosidades cha-mado Guaiacuteba Revista na Raacutedio Guaiacuteba Muito astuto Toniolo aproveitou essa oportunidade para realizar um feito que ficaria marcado na histoacuteria da pichaccedilatildeo a pichaccedilatildeo com hora marcada

Em sua ida ao programa Toniolo anunciou ldquoNo dia 17 deste mecircs (janeiro de 1984) vou pichar o palaacutecio Piratini (Palaacutecio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul)rdquo A repercussatildeo chegou aos ouvidos do governador Jair Soares que disponibilizou 200 policiais de pronti-datildeo para evitar o atentado No entanto estes homens dispunham de uma foto antiga de quando Toniolo ainda natildeo era careca Aleacutem disso na raacutedio Toniolo convocou a imprensa para uma entrevista coletiva na Praccedila da Matriz localizada logo em frente do palaacutecio onde fala-ria pouco antes de realizar a accedilatildeo Na verdade tratava-se de uma estrateacutegia engenhosa Com a atenccedilatildeo de todos voltada para frente do palaacutecio Toniolo apareceu natildeo na praccedila mas na Igreja da Matriz localizada ao lado do Piratini Saindo da catedral Toniolo sorrateiramente se dirigiu ao palaacutecio Mesmo assim vaacuterios policiais volta-ram-se contra ele mas antes que dissessem qualquer coisa Toniolo os saudou Boa tarde irmatildeos Os poli-ciais acreditaram que aquele homem calvo e paciacutefico que vinha da igreja certamente seria um padre inofensivo e o deixaram passar Deste modo exatamente no horaacute-rio que anunciara Toniolo cumpriu o prometido Con-seguiu escrever TONIOL ateacute o momento em que foi detido deixando a letra ldquoOrdquo de seu sobrenome faltando

Mas a historia natildeo termina aqui Toniolo sabia que ao ser preso seria encaminhado ao Hospital Psi-quiaacutetrico Satildeo Pedro para uma avaliaccedilatildeo de sua sauacutede mental No entanto para os funcionaacuterios do hospital Toniolo era conhecido como o escrivatildeo de poliacutecia que frequentemente trazia os loucos para serem avaliados Aproveitando-se deste contexto no momento em que foi conduzido para a internaccedilatildeo Toniolo adiantou-se em relaccedilatildeo aos guardas que o acompanhavam e anun-ciou agrave recepccedilatildeo que estava trazendo dois doentes peri-gosos com ldquomania de poliacuteciardquo Quando os enfermeiros foram para cima dos policiais Toniolo aproveitou da confusatildeo gerada entre todos e conseguiu fugir Nunca mais foi detido por esse delito

Meses depois Toniolo planejou o retorno da pichaccedilatildeo com hora marcada Alvo Palaacutecio do Planalto Nacional Aproveitando o movimento Diretas Jaacute anun-ciou por meio de cartas em jornais que no dia 151184 picharia a sede do poder executivo em protesto a natildeo rea-lizaccedilatildeo das eleiccedilotildees diretas que caso aprovadas seriam realizadas na mesma data e convidou a populaccedilatildeo bra-sileira a unir-se a ele nessa accedilatildeo Diferentemente do que se sucedeu em Porto Alegre Toniolo afirmou em outra carta publicada no Jornal de Brasiacutelia que o objetivo principal natildeo era pichar mas denunciar que ldquono Bra-sil natildeo se tem liberdade nem para pichar muros que eacute a mais livre e primitiva expressatildeo popular da humani-daderdquo Toniolo previu que seria preso na divisa de Bra-siacutelia por agentes da Presidecircncia da Repuacuteblica numa demonstraccedilatildeo de forccedila do governo Sendo assim natildeo levou seu ldquospray carregado ateacute a boca de tintardquo e nem ao menos dinheiro Ficaria por conta do general Joatildeo Batista Figueiredo entatildeo Presidente da Repuacuteblica

Ao entrar no ocircnibus PortoAlegre-Brasiacutelia do dia 11 onze de novembro daquele ano Toniolo de antematildeo alertou a todos os passageiros que seria preso e pediu a eles que avisassem a imprensa Quando os agentes chegaram informaram que se tratava de uma inspe-ccedilatildeo de rotina e que natildeo iriam prender ningueacutem Nesse momento Toniolo interveio reafirmando a todos que eles estavam ali para prendecirc-lo o que de fato ocorreu Apoacutes ser levado para um hospital psiquiaacutetrico de Bra-siacutelia foi mandado para casa em sua primeira viagem de aviatildeo Seja como for o anuacutencio de Toniolo surtira efeito pois aleacutem dos jornais terem produzido charges dele pichando o Palaacutecio do Planalto na alvorada do dia seguinte ele amanheceu com os dizeres TONIOLO em suas paredes

O jornalista Marcello Campos que o entrevistou e investigou a histoacuteria confirma-a no documentaacuterio Toniolo Mas chama a atenccedilatildeo para um ponto impor-tante ldquoAiacute eacute importante a questatildeo do mito eacute onde o mito extrapola a questatildeo da transgressatildeo em si para se tor-nar algo aceito socialmente e ateacute visto de uma maneira condescendenterdquo

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

ilu

stra

ccedilotildees

Pro

jeto

Men

inos

eu

ou

vi (

rep

rod

uccedilatilde

o au

tori

zad

a)

49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 24: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

47 | nov-dez 2011 |46

Toniolo o perseguidor perseguidoCom o passar dos anos Toniolo apoacutes protagonizar essa seacuterie de desventuras teve seu sobrenome convertido em um siacutembolo Sua pichaccedilatildeo de marcante caraacuteter autoral natildeo podia mais ser atribuiacuteda somente a ele pois pau-latinamente foi se tornando um iacutecone das pichaccedilotildees de Porto Alegre Ao longo dos anos 80 e 90 Toniolo con-tinuou pichando e escrevendo para os jornais enfren-tando sindicacircncias sofrendo processos por danos ao patrimocircnio puacuteblico e reagindo a mandados de interdiccedilatildeo por doenccedila mental Criou o Toniolo Voador pichaccedilatildeo disposta em uma pipa que ele empinava no terraccedilo de seu edifiacutecio e em meio aos jogos nos estaacutedios de futebol Esta invenccedilatildeo era habilitada para vocircos noturnos pois contava com luzinhas alimentadas a pilha Criou tam-beacutem uma espeacutecie de escolinha de pichaccedilatildeo no bairro Petroacutepolis onde mora Botava a gurizada para pichar distribuindo sprays pinceacuteis atocircmicos adesivos e para os menorzinhos giz como conta na recente entrevista agrave revista Tabareacute No entanto mesmo impedido de con-correr agraves eleiccedilotildees devido agrave atestaccedilatildeo de insanidade men-tal o anti-heroacutei natildeo recuou Em todo ano eleitoral ele se candidatava a vereador a deputado a governador e

ateacute a presidente da repuacuteblica pelo fictiacutecio ldquopartido anar-quistardquo Distribuiacutea adesivos seus para serem colados na ceacutedula de votaccedilatildeo incentivando o voto nulo Nestes periacute-odos de forte manifestaccedilatildeo poliacutetica o aumento da inci-decircncia de suas pichaccedilotildees era niacutetido mas jaacute natildeo se podia atribuiacute-las somente a ele Curiosamente no ano de 2002 a prefeitura de Porto Alegre fez um levantamento sobre a ldquodepedraccedilatildeo atraveacutes de pichamento de bens puacuteblicos inclusive de natureza artiacutesticardquo e moveu um processo contra Toniolo Um dossier com vaacuterias fotos das picha-ccedilotildees fora produzido e apresentado por ela como prova do delito No processo Toniolo adimitiu ser o responsaacute-vel maior pelas pichaccedilotildees ldquoTONIOLOrdquo tendo gasto 3 mil sprays e realizado 70 mil pichos desde 1982 as quais jaacute havia acertado suas contas com a Justiccedila No entanto negou ter sido o autor das pichaccedilotildees apresen-tadas como prova e disse conhecer o responsaacutevel dis-pondo-se a identificaacute-lo Segundo Toniolo o autor das pichaccedilotildees em questatildeo seria seu acusador o entatildeo pre-feito de Porto Alegre Tarso Genro Toniolo argumen-tou em sua defesa que o prefeito promovia as pichaccedilotildees TONIOLO ao financiar grafiteiros atraveacutes de editais por exemplo Estes por sua vez se apropriavam de seu sobrenome e o utilizavam na composiccedilatildeo das pinturas dos muros da cidade como foi o caso dos localizados na Avenida Mauaacute e Ipiranga Natildeo satisfeito Toniolo tam-beacutem percorreu a cidade e produziu ele mesmo seu proacute-prio dossier no intuito de comprovar que na verdade seu acusador eacute que era o grande pichador de Porto Ale-gre e quem deveria ser punido Como aquele era um ano eleitoral natildeo foi difiacutecil para ele reunir o um bom nuacutemero de fotos de pichaccedilotildees escritas Tarso Genro

Toniolo livrePerguntar se Sergio Joseacute Toniolo eacute heroacutei ou vilatildeo louco ou gecircnio artista ou vacircndalo eacute uma armadilha que se deve evitar Muito mais importante do que isso eacute per-ceber como que a histoacuteria de Toniolo nos conta uma outra histoacuteria do Brasil e que a objetividade que cons-titui os fatos tem laacute a sua loucura de ser Com preocupa-ccedilatildeo antiga sobre documentaccedilatildeo e gestatildeo de acervos ndash um perito da objetividade ndash Toniolo produziu haacute mais de 40 anos um imenso arquivo de documentos hoje digi-talizados e disponibilizados em seu perfil do Facebook Satildeo um total de mais de mil imagens armazenadas

Desde de 2004 Toniolo estaacute internado no Pensio-nato Lar Esperanccedila sob peacutessimas condiccedilotildees Eacute mantido neste local por determinaccedilatildeo de sua curadora legal Haacute anos arrasta-se na justiccedila um processo de substituiccedilatildeo de curadoria para que um membro de sua famiacutelia possa se responsabilizar por ele e entatildeo livraacute-lo desta inter-diccedilatildeo Neste local que Toniolo denomina ldquohospiacutecio do horrorrdquo reduziu sua alimentaccedilatildeo a ldquoum toddynhordquo pois natildeo encontra estocircmago para refeiccedilotildees em tal ambiente escatoloacutegico Desde que entrou na cliacutenica perdeu mais de 30 quilos Em seu site oficial Toniolo disponibilizou vaacuterios SMS que enviou a amigos denunciando os mal tra-tos por que ele e os outros doentes passam assim como dois atestados meacutedicos que afirmam a natildeo necessidade de internaccedilatildeo para o seu caso Neste endereccedilo tambeacutem constam algumas de suas cartas reportagens viacutedeos e a histoacuteria em quadrinhos ldquoQuem eacute Toniolordquo de Koos-tella Em funccedilatildeo do estado de Toniolo que afirmara sen-tir que seu ldquofim estaacute muitiacutessimo proacuteximordquo o amigo e grafiteiro Trampo lanccedilou no final de 2010 a campanha

ldquoToniolo Livrerdquo para a qual produziu diversos materiais

ldquoIsso eacute um grito contra essa falta de liberdade que tem aqui das pessoas se expressarem Eu acho que o muro eacute do povo Os muros satildeo do povo E eacute o uacutenico lugar que o povo tem para se expressarrdquo(Sergio Joseacute Toniolo escrivatildeo de policia)

JAMAIS vote em quem suja a cidade Ass Sergio Toniolo rei do Sprei

ilu

stra

ccedilotildees

Pro

jeto

Men

inos

eu

ou

vi (

rep

rod

uccedilatilde

o au

tori

zad

a)

49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 25: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

ilu

stra

ccedilotildees

Pro

jeto

Men

inos

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tori

zad

a)

49 | nov-dez 2011 |48

O Espiacuterito Santo comporta paisa-gens exuberantes que vatildeo do mar agrave montanha sob o testemunho de orquiacutedeas bromeacutelias e colibris Palco perfeito para o que haacute de mais fantaacutestico Mas o que mais fascina e desperta curiosidade por aqui eacute que natildeo raro os espectadores participam da cena podendo inclusive passar de coadjuvantes a prota-gonistas ndash na hipoacutetese de algueacutem virar lobisomem por exemplo

O folclore capixaba eacute rico em apariccedilotildees e assom-braccedilotildees A probabilidade de seres como o caboclinho drsquoaacutegua ou o lobisomem aparecerem eacute proporcionalmente relativa agrave presenccedila de matas rios cachoeiras pedras e mar (no caso do mar eacute mar adentro onde vivem as sereias) E quanto mais proacuteximo algueacutem vive de um local onde a natureza se impotildee maior seraacute a incidecircn-cia de mitos e lendas em seu dia-a-dia ou no de pessoas muito proacuteximas

Como em um mundo paralelo os moradores se relacionam com os mitos veem assombraccedilotildees e presen-ciam fatos maravilhosos enquanto vatildeo agrave escola ou agrave casa dos avoacutes O maravilhoso vai respirando e vez ou outra derruba as paredes entre real e imaginaacuterio pra mostrar que ainda eacute possiacutevel

No caminho percorrido ndash norteado pela divisatildeo cultural do estado proposta pelo folclorista Hermoacutege-nes Lima da Fonseca ndash o som dos paacutessaros esteve sem-pre em primeiro plano sonoro Paacutessaros do dia e da noite contando casos presenciando conversas Muitas das len-das que existem para aleacutem dos limites geograacuteficos satildeo contadas por aqui e trazem sempre no tom (como em todo lugar) a graccedila local

Um lobisomem que na verdade eacute um porco Mas tambeacutem pode ser cachorro

ldquoAiacute eu fiz lsquoempleiteirsquo com esse homem e ele virava lobi-somem e eu natildeo sabiardquo diz em tom grave a benzedeira de Satildeo Mateus Continuou ldquoNesse dia ele tinha virado lobisomem Aiacute chegou o pessoal do Sernambi [e disse]

ndash Tava laacute o lobisomem ndash E eu pensando que era outro e era ele Virava lobisomemrdquo Situaccedilatildeo absolutamente corriqueira eacute conhecer ou ateacute mesmo ser parente de um lobisomem ldquoA minha matildee mesmo via tinha um afilhado de minha voacute que virava lobisomem Vovoacute diz que ele tinha aquele viacutecio de virarrdquo acrescenta Dona Edeacutezia integrante do Jongo no mesmo municiacutepio Ateacute aiacute tudo bem pois em lugares onde se tem muitos filhos a chance da maldiccedilatildeo se abater sobre algum aumenta

ExternaNoite ndash As aacuteguas corriam calmas era noite dessas que a paz parece reinar no mundo Laacute no alto a lua brilhava soberana assumindo pra si a luz do sol alumiando um peixe e outro que pulava pra laacute e pra caacute O tempo passava sereno quando de repente NADA Pra um lado NADA pro outro NADA A canoa parou o peixe alvoroccedilou a noite soou com todos os bichos eram os barulhos que soacute se ouviam naquela hora misteriosa Mas faltava alguma coisa Agucei o ouvido estreitei o olhar tentei sentir cheiro de assombraccedilatildeo e NADA Aiacute eu percebi era o correr das aacuteguas Olhei uma vez olhei duas esfreguei os olhos e vi o que um duvida a aacutegua toda dor-mindo Tudo paradinho Mas aiacute eu nem tive muito tempo natildeo porque no meio do sonho da aacutegua ele apareceu Ah eu natildeo tive duacutevida quando senti a canoa balanccedilar agarrei o facatildeo e PAacute ndash cortei os dedos do danado e levei pra quem quisesse ver Caboclinho Drsquoaacutegua nenhum vira minha canoa

A aacutegua acordou e correu Era senhora de tudo

Quando as Aacuteguas Dormem

mdashPesquisadora do projeto ldquoMeninos eu ouvirdquo que mapeou lendas e mitos no interior e na capital capixaba narra a riqueza das histoacuterias do imaginaacuterio popular com que se deparoumdashJanaiacutena Serra

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

foto

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 26: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

51 | nov-dez 2011 |50

estatisticamente falando Mas tem como se precaver e para evitar a maldiccedilatildeo existe a seguinte regra em casa onde nascem sete filhos homens seguidos o mais velho tem que batizar o mais novo do contraacuterio o caccedilula se transformaraacute em lobisomem no caso das mulheres (sete filhas) o procedimento eacute o mesmo com o diferencial que a maldiccedilatildeo as transforma em patas Seguindo as normas a maldiccedilatildeo natildeo pega mas quem deixar passar ndash por des-crenccedila ou negligecircncia ndash ainda pode quebrar o encanto mais tarde quando os olhos de Satildeo Tomeacute virem o futuro e constatarem que a fantasia pode ser real [Para saber tudinho veja o quadro com simpatias para natildeo virar lobisomem e para quebrar o encanto]

As histoacuterias permeiam o dia a dia dos moradores de norte a sul do Espiacuterito Santo trazendo consigo as crenccedilas e supersticcedilotildees de tempos remotos e terras diver-sas A convicccedilatildeo de que esses acontecimentos maravi-lhosos satildeo reais eacute quase uma religiatildeo sem liacuteder em que a feacute eacute alimentada pelo lsquoinexplicaacutevelrsquo da vida e perpetu-ada pelas nuances ora suaves ora contundentes de um poderoso instrumento de seduccedilatildeo e de persuasatildeo a voz Do outro lado o terreno feacutertil dos ouvidos atentos e da mente curiosa abriga guarda e transforma tudo prepa-rando o insoacutelito para a eternidade

Mas voltando ao lobisomem uma lenda contada de norte a sul do estado narra sobre a noite em que uma cidade inteira temeu pela vida do bebecirc que fora levado pelo lobisomem (lobisomem gosta de devorar bebecirc prin-cipalmente se for pagatildeo) ldquoA mulher ia viajando quando topou viu aquele porcatildeo porque diz que quando tem criancinha nova assim ele quer pegar pra comerrdquo conta seu Joatildeo perto da divisa com Minas Gerais ldquoEntatildeo pro-cura daqui procura dali procura dacolaacute e descobriu a crianccedila dentro do galinheiro no ninho A manta da crianccedila toda triturada E quando foi no dia seguinte o marido dela chegou e nos dentes dele estavam as linhas da manta da crianccedila Isso eacute veriacutedico Bem Isso eacute o que contam neacuterdquo completa Penha laacute no sul capixaba

A lenda acima corre leacuteguas mas um detalhe curioso eacute que no Espiacuterito Santo o lobisomem foi des-crito como um porco Isso mesmo um porcatildeo Atente existe lobisomem cachorro aqui tambeacutem mas impera o porcatildeo Essas nuances satildeo a tinta regional que distin-guem com encanto os traccedilos da cultura local A expli-caccedilatildeo pode residir no fato de que no interior onde essas histoacuterias satildeo mais contadas o porco ndash no caso o por-catildeo ndash eacute um animal muito comum e em algumas situa-ccedilotildees pode ser tambeacutem bastante assustador Os ruiacutedos que ele faz no meio da mata arrepiam e aticcedilam a ima-ginaccedilatildeo do mais convicto dos increacutedulos Pode confiar

Eletricidade que atrapalha o imaginaacuterioConvenhamos que se a chegada da eletricidade deu mais conforto agrave vida dos moradores um tanto de magia se perdeu e nossos preciosos seres agora rareiam na apa-riccedilatildeo ldquoAqui tinha saci Mas tinha era saci Toda noite lsquosaci-saperecircrsquo do lado de laacute Quando botou a luz zip

Simpatia pra natildeo virar lobisomemEm famiacutelia com sete filhos homens a sina estaacute posta para evitar a maldiccedilatildeo haacute algumas simpatias

ndash O irmatildeo mais velho deve batizar o mais novo

ndash A crianccedila deve se chamar Inaacutecio

ndash A primeira roupinha deve ser vestida pelo lado do avesso

Obs no caso de sete filhas o procedimento deve ser o mesmo A maldiccedilatildeo nesse caso consiste em transformar a menina em pata (nas noites de lua cheia elas saem voando pela cidade) ou em mula sem cabeccedila (que vagam por sete cidades)

Simpatia pra quebrar o encanto (se vocecirc for lobisomem ou conhecer algum)ndash Ferir o lobisomem com uma agulha virgem

ndash Jogar uma faca pelo cabo para ela cair de ponta O sangue corre expulsando a maldiccedilatildeo

ndash Bater no lobisomem com um instrumento de metal (nas noites de lua e na Sexta-feira da Paixatildeo vocecirc vai perceber alteraccedilotildees no com-portamento da pessoa mas nunca mais ele se transformaraacute em lobisomem)

Obs Quando for quebrar o encanto cuidado ao se aproximar

Botou a energia sumiu o saci acreditardquo ndash Acredito Dona Dorota

O desmatamento eacute outro problema ldquoAi ai Anti-gamente a gente via muito essas coisas hoje em dia a gente natildeo vecirc mais natildeo eacute muita luz eacute tudo claro dimi-nuiu muito a mata Hoje a gente tem medo eacute dos vivos Era melhor ter medo de mula sem cabeccedilardquo diz Tia Mari-quinha sob uma bela castanheira Mas apesar de tudo e em ato de franca resistecircncia mitos e lendas sobrevi-vem no imaginaacuterio e povoam com cores e sons a vida dos moradores O saci eacute um deles danado que soacute ele natildeo se entrega e fica piando por aiacute confundindo os desavisados

Mas saci piaSaci paacutessaro pia Dizem que ele assobia assim

ldquosiiiic siic saci saperecirc saci-saperecirc saciiii-saperecircrdquo e que quando estaacute longe o assobio estaacute perto e quando estaacute perto o assobio estaacute longe Faz isso pra enganar a gente claro afinal ele eacute o saci

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

foto

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 27: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

53 | nov-dez 2011 |52

Peacute do diabo procissatildeo de almas folia de mortoshellip Vocecirc resisteA resposta para a pergunta acima vai mudar de acordo com o grau de sua crenccedila pois as lendas aleacutem de encan-tarem tambeacutem assustam ndash e como

Em Vitoacuteria plena capital do estado por exemplo uma lenda ldquonatildeo-urbanardquo resiste a lenda do peacute do diabo Contam que um homem muito ambicioso e avarento na acircnsia de enriquecer fez um pacto com o tinhoso ofere-cendo o proacuteprio filho como moeda de troca O arrepen-dimento chegou mas o diabo natildeo se comoveu e para tentar salvar a crianccedila inocente Santo Antocircnio entrou na histoacuteria Essa eacute mais uma lenda sobre a eterna luta entre o bem e o mal mas o peculiar aqui eacute que ao con-traacuterio de tantas existe uma prova material do ocorrido a marca do peacute do diabo cravada na pedra

Os moradores cada um a seu modo convivem desde sempre com a pedra e com as ldquolembranccedilasrdquo do acontecimento Versatildeo vai versatildeo vem cada um daacute seu testemunho e seu veredito O triste da histoacuteria eacute que haacute pouco tempo foi levantado um edifiacutecio sobre a pedra

Desrespeito com a memoacuteria dos moradores e a identi-dade do lugar

Mas entre assombraccedilotildees e o medo geral a ima-ginaccedilatildeo transborda trazendo procissatildeo de almas e folia dos mortos para a testemunha dos vivos A procissatildeo que tambeacutem acontece fora dos limites geograacuteficos do estado traz(ia) uma multidatildeo penitente (e morta) para as ruas de Satildeo Mateus no norte capixaba Era proibido olhar a procissatildeo vivo natildeo podia ver porque nem todos resistiam ldquoQuem via quem arresistia ficava de olho quem natildeo guumlentava olhava assim e saiacutea forardquo conta Maria Pastora Parece que hoje a procissatildeo natildeo passa mais vai saber Talvez seja apenas a falta de viva alma preparada para presenciar tanto misteacuterio

Jaacute a folia dos mortos toca laacute no sul do Estado em Muqui Vejam soacute em Muqui existem tantos grupos de folia (eacute laacute que acontece o Encontro Nacional da Folia de Reis) que tem ateacute uma folia de mortos Ningueacutem viu mas todos ouviram Vai duvidar

Para uns o Saci eacute o negrinho de uma perna soacute eternizado por Monteiro Lobato para outros eacute passa-rinho arisco que soacute se deixa ver quando quer elegendo um ou outro para pousar no ombro e proteger acompa-nhando o eleito pelas estradas cercadas de magia como quem diz ldquoCom esse aqui ningueacutem mexerdquo Sendo o Saci quem eacute o mais sensato eacute respeitar

A presenccedila deste saci paacutessaro foi contada e recon-tada em todas as regiotildees do estado foi tambeacutem a uacutenica unanimidade entre as dezenas de pessoas que abriram a casa a memoacuteria o afeto e deixaram correr solta a fanta-sia nos relatos ao projeto Meninos eu ouvi que reuacutene as lendas e mitos do Espiacuterito Santo em peccedilas radiofocircni-cas Gravamos um CD com nove faixas de lendas drama-tizadas Ao todo foram mais de 40 pessoas envolvidas eu participei da direccedilatildeo de todo o projeto e integrei a equipe de roteirizaccedilatildeo das peccedilas Satildeo histoacuterias simpa-tias e muito encantamento Foi maacutegico

Meninos eu ouviMeninos eu ouvi Lendas do Espiacuterito Santo comeccedilou oficialmente como um projeto de pesquisa selecio-nado e patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e pelo Governo Federal atraveacutes da Lei de Incentivo agrave Cultura ldquoOficialmenterdquo porque depois se tornou puro encantamentohellip

O projeto visava ldquodelimitarrdquo o Estado do Espiacuterito Santo atraveacutes de suas lendas e para isso seria feito um trabalho de mapeamento (com pesquisa bibliograacutefica e de campo) de lendas que ainda habitavam o imagi-naacuterio capixaba para depois recriaacute-las e transformaacute-las em peccedilas radiofocircnicas O desejo inicial era de entrar no mundo fantaacutestico do folclore local e levar a magia para outro mundo tambeacutem superlativo que eacute o raacutedio ndash meio por excelecircncia para transmitir lendas e o uacutenico que se vale exclusivamente da oralidade por isso mesmo a pre-senccedila forte da tradiccedilatildeo oral Era esse o intento e foi assim que partimos para ouvirhellip

Escutamos muito E de Boi Tataacute a procissatildeo das almas passando pela fenda da Pedra do Pecado ouvindo consternados a histoacuteria de amor em que os protagonis-tas viram praia e rio escutando estarrecidos agraves versotildees sobre a praga que um padre rogou em uma vila pacata vocecirc pode saber eacute tudo como relatado mesmo natildeo eacute lenda natildeo ndash eu ouvi

[Confira algumas das peccedilas radiofocircnicas do pro-jeto em overmundocombr procurando pela tag revista-overmundo]

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55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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foto

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arco

s P

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

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Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

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Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 28: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

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s J

oatildeo

Xav

i

55 | nov-dez 2011 |54

Um mundo que continua girando a 33 e 13

mdashA loja de discos Copacabana Records especializada em muacutesica brasileira faz sucesso na Alemanha a despeito da crise na induacutestria fonograacutefica e do fim das lojas de CDs no BrasilmdashJoatildeo Xavi correspondente especial

Copacabana fica na Bavaacuteria Mais exatamente em Nuremberg cidade de 600 mil habitan-tes localizada na parte central do estado baacutevaro regiatildeo que carrega a fama de ser a mais conservadora de toda a Alemanha Na Copa daqui natildeo tem aacutegua de coco por trecircs reais nem mesmo Helocirc Pinheiro (ops essa eacute de Ipa-nema) Mas tem Nara Leatildeo Chico Buarque Jorge Ben e tambeacutem um grande acervo do selo Elenco um dos prin-cipais celeiros da bossa nova nos anos 1960 Mauriacutecio Villarinho paulistano artista plaacutestico e ilustrador por profissatildeo eacute o empreiteiro desta viagem ldquoNo final dos anos 50 no Brasil foi inacreditaacutevel a produccedilatildeo de dis-cos com muacutesica de primeira qualidade Tom Jobim Joatildeo Gilberto todo pessoal do Samba-Jazz o Beco das Gar-rafas tinha tanta coisa maravilhosa Natildeo eacute E Copaca-bana eacute uma homenagem a todo este pessoal que deixou um legado fabuloso para o mundordquo conta

A Copacabana daqui natildeo serve de cenaacuterio para o passeio matinal de velinhos babaacutes e crianccedilas tampouco agrave noite de palco para o brilho das meninas que ganham a vida nas calccediladas do bairro O puacuteblico da Copacabana Records eacute formado por apaixonados pelo bom e velho disco de vinil A maioria deles marmanjos laacute pela faixa dos 40 50 anos mas seria um erro engessar os frequen-tadores num estereoacutetipo jaacute que a loja tambeacutem recebe um fluxo de gente mais jovem interessada em diferentes novidades e velharias que aqui satildeo tratadas carinhosa-mente pela alcunha de claacutessicos ldquoTem discos que nin-gueacutem encontra e eu vou atraacutes Agraves vezes demora ateacute uns trecircs meses mas eu encontro e aiacute os caras ficam doidosrdquo diverte-se Mauriacutecio que teve um ldquoempurratildeozinhordquo da esposa como motivaccedilatildeo para iniciar o negoacutecio ldquoOlha de tanto disco que tinha em casa minha mulher falou para eu ir embora ou para abrir uma loja e vender esses dis-cos [risos]rdquo Depois ele mesmo se apressa em explicar

ldquoNatildeo foi isso natildeo foi a paixatildeo pela muacutesica mesmordquo

A princesinha da BavieraConfira trechos da entrevista em viacutedeo onde Mauriacutecio mostra algumas das maiores raridades da loja coisas como a primeira prensagem do disco de estreia de artistas como Beatles Jorge Ben e Mutantes Fala sobre a rotina de procurar discos pelo mundo afora e natildeo poupa piadas e boas risadas

A forccedila do nome e a presenccedila legitimamente brasileira agrave frente do negoacutecio me faziam acreditar que a proposta principal da loja era suprir a carecircncia de europeus e brasileiros apaixonados pelas muacutesicas dos Brasis De fato o acervo de muacutesica brasileira eacute bem grande e plural Vai desde o primeiro aacutelbum do Seacutergio Mendes (Dance Moderno de 1961 raridade orgulhosamente exposta na vitrine) ateacute o claacutessico Punk Deixe a terra em paz da banda paulistana Coacutelera (descanse em paz Redson) A procura pelas bolachinhas made in Brazil eacute grande Discos de gente como Jorge Ben Tom Jobim e Mutan-tes natildeo param na loja Eacute chegar lavar (sim os discos satildeo devidamente lavados numa maquininha especial e saem da loja brilhando como novos) e botar para ven-der Mas mesmo com o bom fluxo de produto nacio-nal fui descobrindo em meio ao nosso bate-papo que o segredo do sucesso desta Copacabana natildeo se resume agrave nossa muacutesica mas tem relaccedilatildeo sim com um ldquojeitinho brasileirordquo Eacute algo que se esconde na sutil relaccedilatildeo que Mauriacutecio desenvolve com cada cliente

ldquoEste tipo de comprador eacute o meu motor da loja minha locomotiva de verdade Eles vecircm da regiatildeo metro-politana aqui de Nuremberg e ateacute de fora satildeo colecio-nadores Mas tem tambeacutem o puacuteblico normal que vem para comprar um disco de cinco dez euros claro Acho

57 | nov-dez 2011 |56

que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

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61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

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Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

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Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 29: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

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que o objetivo natildeo eacute dinheiro isso eacute uma coisa secun-daacuteriahellip Para mim o objetivo maior eacute a muacutesica Entatildeo meu se a pessoa comprar o disco de 1 euro eu jaacute fico feliz de estar vendendo uma coisa boa natildeo importa quanto custa Natildeo faccedilo esta distinccedilatildeo Eacute claro que o cara que gasta mil me deixa mais contente [risos] Mas eu trato todo mundo da mesma formardquo diverte-se

Pode soar cafona mas Mauriacutecio natildeo comercia-liza discos Ele eacute na verdade um ldquovendedor de sonhosrdquo Seu negoacutecio natildeo eacute simplesmente revender muacutesica bra-sileira ou qualquer outro tipo de gecircnero subdivisatildeo ou especialidade Este paulista bom de papo atua como um garimpeiro de raridades que satildeo para seus compradores verdadeiros fetiches objetos de desejos Existem discos que satildeo como lendas procurados anos a fio por colecio-nadores apaixonados e que foram pouquiacutessimas vezes de fato vistos e tidos em matildeos Satildeo justamente estes os dis-cos que lotam a lista de encomendas a serem resolvidas pelo faro e a boa rede de contatos de que Mauriacutecio dispotildee Corresponder aos desejos de seus clientes e ainda ofere-cer as peacuterolas sonoras por um preccedilo bacana satildeo a estra-teacutegia central a alma de um negoacutecio movido a Soul Music Disco natildeo se vende como pedra (nem mesmo como as preciosas) e apesar de existirem cotaccedilotildees estabeleci-das em cataacutelogos rigorosos e um mercado global alta-mente especializado em vinis raros Mauriacutecio procura sempre repassar seus achados a preccedilos justos ldquoEu con-sigo achar os discos relativamente mais baratos do que a moccedilada costuma cobrar por aiacute Tem gente que mete a

matildeo mesmo Mas por que vou repassar supercaro para os caras que vecircm sempre aqui na loja Eu ganho o meu eles ficam felizes e voltam sempre Eacute assim que funcionardquo

Para saciar o desejo de seus compradores Mauriacute-cio precisa enfrentar uma rotina de trabalho bem intensa O ldquocaccedilador de bolachasrdquo chega a viajar regularmente de duas a trecircs vezes por mecircs na busca pelas raridades que movimentam a loja ldquoPara mim juntou as duas coisas que eu mais gosto na vida muacutesica e viajar Eacute maravi-lhoso neacute Eacute sempre interessante Fica sempre assim uma expectativa o que eu vou encontrar Em toda caixa que eu mexo em todo poratildeo que eu vou ver disco ou em feira de rua eacute sempre interessante Pocirc o que eu vou achar meu Agraves vezes aparecem coisas fabulosas agraves vezes natildeo acho nada [risos]rdquo

Os destinos mais frequentes satildeo Estocolmo Ams-terdatilde Rio de Janeiro e Satildeo Paulo Cidades onde em porotildees uacutemidos e empoeirados a maacutegica da descoberta acontece Depois de alguns dias dedicados agrave busca e iso-lado do mundo real Mauriacutecio sempre retorna agrave loja car-regado de peacuterolas sonoras e sofrendo com a alergia a poeira ironia do destino para quem escolheu viver proacute-ximo a uma quantidade tatildeo grande de LPs e compac-tos ldquoComprei nesta uacuteltima viagem cerca de 500 discos Trouxe 120 comigo na mala e o resto eu mandei pelo correio por expediccedilatildeo Cheguei de viagem ontem e olha quantos dos 120 ainda estatildeo aqui (restavam mais ou menos uns 30 discos) Os caras sabem que eu chego de viagem e jaacute vecircm atacando Agraves vezes natildeo daacute tempo nem

de botar na estante Eles jaacute saem levando tudordquo conta Mauriacutecio em meio a gargalhadas

Em um ambiente como este eacute impossiacutevel natildeo se lembrar de claacutessicas referecircncias cinematograacuteficas como Alta fidelidade e Durval Discos O segundo com toda sua dose de psicodelia e um clima forte de anos 60 e 70 parece ter mesmo muito a ver com Mauriacutecio Um cara que de fato natildeo parou no tempo mas que tambeacutem natildeo se deixa iludir por todos os milagres do mundo moderno Mauriacutecio valo-riza muito o contato presencial e estabelece a rotina da loja como um verdadeiro ritual de troca com os clientes Esta eacute uma das razotildees pela qual a Copacabana Records ainda natildeo lanccedilou seus tentaacuteculos no mundo da WWW Para Mauriacutecio a graccedila nesta brincadeira de procurar e revender

discos eacute o bate-papo com outros aficionados pelos vinis Eacute um processo que acontece de forma natural e muitos dos clientes que nestes quase trecircs anos frequentam a loja semanalmente ou mesmo vaacuterias vezes na semana cria-ram viacutenculos de amizade com Mauriacutecio e entre si

A loja virou um ponto de encontro e a boa prova disso eacute a visatildeo desta Copacabana num dia de saacutebado cena que lembra de longe a agitaccedilatildeo do bairro carioca Lotada de gente instigada com o que vecirc e ouve numa troca de energias e informaccedilotildees que gera um burburi-nho quase tatildeo meloacutedico como os discos que laacute satildeo vendi-dos E Mauriacutecio um tiacutepico boa-praccedila atua como regente nessa sinfonia de viciados pelo ldquobarulhinho bomrdquo do mais-vivo-do-que-nunca disco de vinil

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

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foto

s M

arco

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aulo

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O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

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ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

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mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 30: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

da muacutesica Grande parte dos compradores de discos satildeo pessoas que nutrem uma relaccedilatildeo especial com a muacutesica eou que buscam no consumo destes bens apoiar seus artistas favoritos Existe ainda a inegaacute-vel argumentaccedilatildeo da qualidade sonora superior do formato vinil o que sentido pelos ouvidos mais trei-nados e tambeacutem comprovado por teacutecnicos de aacuteudio

Outra coisa que gera estranhamento nessa dis-cussatildeo sobre o suporte em que se consome a muacutesica eacute uma aspiraccedilatildeo tipicamente brasileira de sobrepor as tecnologias em busca da sintonia com uma deter-minada ldquomodernidaderdquo da eacutepoca Eacute claro que com o lanccedilamento de uma nova tecnologia e com uma nova possibilidade de meio de consumo o mercado se modifica e se ldquoretalhardquo Mas muitas das pessoas ldquonor-maisrdquo (natildeo colecionadoras ou aficionadas por muacutesica) seja nos Estados Unidos Europa ou Japatildeo natildeo para-ram de comprar vinil por causa do lanccedilamento do CD A pergunta que fica no ar eacute por que no Brasil essa histoacuteria se desenvolveu de forma diferente A ponto de chegarmos a ter apenas uma uacutenica faacutebrica de vinil em funcionamento a heroacuteica Polysom localizada em Belford Roxo Baixada Fluminense (RJ) que soacute

Vinyl Land conexatildeo BH-Londres viabiliza novos lanccedilamentosDJ old-school que (assim como eu) soacute discoteca com vinil Luiz Valente mineiro radicado em Lon-dres fez nascer de sua frustraccedilatildeo de natildeo poder tocar muitos de seus artistas favoritos a motivaccedilatildeo para colocar na praccedila discos em vinil (sejam eles LPs ou compactos) de muacutesica brasileira contemporacirc-nea Foi assim que em 2008 Luiz trouxe agrave luz um selo batizado como Vinyl Land A iniciativa de Luiz engloba os artistas que estatildeo perfeitamente acos-tumados com a distribuiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de MP3 e que dialogam bem com as miacutedias digitais oferecidas pelo mundo atual mas que nunca tiveram a oportu-nidade de ouvir suas proacuteprias canccedilotildees registradas e reproduzidas a partir do disco preto de acetato

Desde sua estreia (com o EP da banda carioca Autoramas em formato sete polegadas) o selo jaacute soma 18 lanccedilamentos nuacutemero bastante expressivo em um momento em que se fala tanto em crise no mercado de discos E a proposta de retomar a pro-duccedilatildeo em vinil aleacutem de artiacutestica e esteacutetica acaba ganhando tambeacutem apelo econocircmico no mercado

se manteve de peacute por comercializar tambeacutem outros produtos plaacutesticos como copos e pratinhos de fes-tas Por que seraacute que os brasileiros perderam a von-tade de ouvir muacutesicas em discos e fitas Eu natildeo sei Algueacutem sabe Natildeo acredito muito em razotildees econocirc-micas pelo ponto de vista do consumidor final jaacute que aqui na Europa comercializa-se ainda por exemplo fitas K7 novas por preccedilos baixiacutessimos

Voltando agrave Vinyl Land os lanccedilamentos pro-movidos por Luiz em parceria com outros selos e as proacuteprias bandas englobam uma gama bem plural de artistas brasileiros contemporacircneos Uma passada de olho raacutepida no casting revela nomes ligados ao rock como os cariocas do Canastra a galera do Rock Rocket ou mesmo a revelaccedilatildeo indie-suburbana Lecirc Almeida Tambeacutem haacute coisas interessantiacutessimas no que se conveacutem chamar de MPB como por exemplo o single Vermelho da cantora e estilista Nina Becker ou Efecircmera o aclamado aacutelbum de estreia da cantora pau-listana Tulipa Ruiz ou ateacute mesmo um best of comemo-rando os dez anos de carreira de Lucas Santtana (um dos meus favoritos do selo) Vale ainda a pena citar os lanccedilamentos sete polegadas o famoso compacto

do paulistano Curumin (justamente com a muacutesica ldquoCompactordquo que merecia de qualquer forma ser lan-ccedilada neste formato) e tambeacutem o single funkeado de BNegatildeo com duas muacutesicas extraiacutedas do jaacute claacutessico aacutelbum com os Seletores de Frequecircncia

Curioso eacute pensar como o trabalho de Luiz e o de Mauriacutecio de certa forma se complementam Um garimpando as antiguidades e o outro a contempora-neidade Ambos expondo para o proacuteprio Brasil e para o mundo pedacinhos do que nossa a muacutesica tem de interessante Creio que natildeo haacute de se excluir possibi-lidades ou de se criar fundamentalismos purismos e fanatismos Interessante de verdade me parece ser o movimento de pensar e sentir a muacutesica sem anacro-nismos ou devaneios tecnoloacutegicos e seguir vivendo todos os tempos que nosso tempo haacute de nos oferecer

Ah vale ainda lembrar que os discos lanccedilados pela Vinyl Land podem ser comprados das matildeos dos artistas em shows e festivais ou ainda diretamente do site da produtora ndash e chegam bonitinho em casa eu jaacute testeihellip

59 | nov-dez 2011 |58

foto

s M

arco

s P

aulo

61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 31: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

foto

s M

arco

s P

aulo

61 | nov-dez 2011 |60

O corno mais assumido do Brasil na sintonia do chifre

mdashHaacute 30 anos JC comanda a Hora do Boi e afirma ser o primeiro programa a falar abertamente sobre chifre no raacutedio brasileiromdashMarcos Paulo

ldquoMuita gente liga quer falar das suas maacutegoas e a gente conversa dizendo que natildeo eacute daquela maneira que a pessoa vai se livrar do chifre Uma vez chifrudo sempre seraacute ateacute o final Natildeo tem jeitordquo Haacute pelo menos 30 anos este eacute o roteiro seguido agrave risca pelo corno mais assumido do Brasil Joatildeo Carlos ou JC em seu programa dominical A hora do boi O chifrudo mais bem-humorado de Porto Velho fala de ldquochifrerdquo com natu-ralidade iacutempar durante as trecircs horas em que permanece no ar na raacutedio Transamazocircnica ndash do meio dia agraves 15h E ele natildeo estaacute soacute Cerca de 400 pessoas homens e mulhe-res participam atraveacutes de ligaccedilotildees ora para admitir ao vivo que ldquofoi o uacuteltimo a saberrdquo ora para dedicar muacutesica brega ao ex-marido chifrudo Cinco anos apoacutes a primeira entrevista no Overmundo JC afirma que desde 2006 ateacute hoje o nuacutemero de ouvintes dobrou ldquoTem mais boi na linha do que vocecirc imaginardquo sorri

Natildeo demora muito o radialista atende mais uma ligaccedilatildeo Do outro lado da linha uma voz cambaleante pede alocirc para todos os ldquoboisrdquo do bairro Ipase Novo Zona Norte da capital e para um ldquointernacional bolivianordquo Eacute surreal a facilidade de expor o que para alguns eacute uma dificuldade na hora de passar pela porta ldquoAqui quem responde tambeacutem eacute cornordquo frisa JC Pronto O domingo do chifre comeccedilou

Que o diga o funcionaacuterio puacuteblico Jorgiel Nogueira Duarte 55 anos assiacuteduo ouvinte do programa e fatilde decla-rado de JC Sofreu um bocado quando soube haacute trecircs anos que a (ex-)esposa o traiacutera com o melhor amigo Natildeo deu pra evitar Pensou pensou E chegou a conclusatildeo de que amansaria o chifre de forma radical arrumando outra mulher ldquoO cara que natildeo for corno natildeo entra no ceacuteu porque Satildeo Pedro pega pelo chifrerdquo crecirc

Conformado seguiu em frente Comeccedilou a acre-ditar a partir de entatildeo na velha maacutexima de que ldquoo que os olhos natildeo veem o coraccedilatildeo natildeo senterdquo Foi mais aleacutem e profetizou contra si mesmo ldquoChifre eacute a coisa mais nor-mal porque todo mundo tem ou teraacute um diardquo Foi dito e feito Hoje o funcionaacuterio puacuteblico estaacute solteiro porque acredite ficou sabendo outra vez que a (ex-)namorada esteve digamos nos braccedilos de outro rapaz conhecido como ldquoPeacute-de-Panordquo que ldquofez o serviccedilordquo na calada da noite ou no sossego do dia ndash natildeo se sabe ldquoO importante eacute que estou tranquilordquo garante Jorgiel

Para JC o sucesso do programa estaacute em plena sin-tonia com a internet Embora natildeo tenha um canal exclu-sivo para falar com seus ouvintes online o radialista comemora com veemecircncia a banalizaccedilatildeo do assunto e a quebra de um tabu ldquoAntigamente falar a palavra corno jaacute era agressivo hoje virou piada As pessoas estatildeo acei-tando de um jeito mais gostoso mais agrave vontaderdquo provoca Ele confessa ter sido ldquocorneadordquo por vaacuterias mulheres sem carregar nenhum trauma ldquoCara lavou enxugou taacute nova Natildeo eacute assim que diz a muacutesicardquo referindo-se agrave canccedilatildeo ldquoMulher madurardquo de Frank Aguiar Ele classi-fica a traiccedilatildeo como ldquouma coisa da Antiguidaderdquo e acre-dita nos direitos iguais com a plena satisfaccedilatildeo do homem e da mulher em todos os sentidos Justifica sem meias palavras que o sexo eacute na maioria dos casos o fator deci-sivo para ldquopular a cercardquo ldquoIsso aiacute eacute uma necessidade agraves vezes a mulher natildeo eacute bem atendida em casa e acaba sendo fora Eacute a mesma coisa com o homem muitas vezes ele tem uma mulher bonita mas que eacute realmente deva-gar enquanto a outra tem um destaque especial na cama Pocirc o cara quer coisa boa Hoje em dia ningueacutem eacute dono de nadardquo declara

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 32: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

63 | nov-dez 2011 |62

ldquoFazemos um trabalho diferenciado prestando assis-tecircncia natildeo soacute a homem e mulher mas diversificando e abrangendo tambeacutem o puacuteblico LGBT que tem nos procurado a cada dia mais na Ascronrdquo diz Soares que estaacute acima de qualquer preconceito em relaccedilatildeo agrave escolha sexual de cada pessoa ldquoO gay tem o lsquobofersquo tem ciuacuteme e consequentemente agraves vezes leva chifrerdquo explifica

Em 2006 a grande novidade da associaccedilatildeo era a criaccedilatildeo do Plantatildeo do Corno serviccedilo de acompanha-mento para casos de separaccedilatildeo mais conflituosos que voltaraacute agrave cargo no periacuteodo de festas ldquoDurante o fim de ano aumenta o nuacutemero de casos por isso teremos qua-tro advogados e duas psicoacutelogas agrave disposiccedilatildeo para situ-accedilotildees delicadas ou seja de revolta ou natildeo aceitaccedilatildeo do chifrerdquo informa Exaltado pelo reconhecimento da miacutedia o presidente da Ascron revela que cornos de outros esta-dos resolveram aderir ao movimento e fundaram asso-ciaccedilotildees para suprir a necessidade segundo ele crescente e natildeo soacute no Brasil

Pensando nisso Pedro Soares elaborou um pro-jeto audacioso o Habita Corno uma espeacutecie de mora-dia temporaacuteria para quem for chifrado(a) e natildeo tenha nenhum lugar para morar ldquoA ideia eacute construir em breve casas em parceria com a Caixa Econocircmica Federal para o corno natildeo ficar desamparado ao sair de casa sem ter para onde irrdquo planeja o presidente que garante ter boa aceitaccedilatildeo da proposta por parte da direccedilatildeo do banco e apoio de alguns parlamentares locais ldquoCom certeza vai dar polecircmicardquo ri bem-humorado

Soacutecio-fundador da Associaccedilatildeo dos Cornos de Ron-docircnia (Ascron) fundada em 1982 em Porto Velho JC afirma que A hora do boi eacute o primeiro programa de raacutedio no Brasil transmitido ao vivo para um puacuteblico especiacute-fico assumido e simpatizante Em outras palavras o boi eacute a proacutexima viacutetima Com sucessos da deacutecada de 1970 e 1980 ao som de Reginaldo Rossi Valdick Soriano Ovelha Falcatildeo entre outros o apresentador manteacutem o que faz independentemente de estar ou natildeo acompa-nhado ldquo[O programa] sobrevive firme e forte ateacute hoje porque sou capaz de deixar qualquer mulher pelo meu programardquo ressalta

O atual presidente da Ascron Pedro Soares cha-mado ao vivo por JC para conceder entrevista natildeo perde um A hora do boi porque precisa ficar ligado nos pos-siacuteveis futuros soacutecios da associaccedilatildeo que tem hoje regis-trados nada menos que 6788 soacutecios soacute em Rondocircnia Satildeo 3588 homens e 3200 mulheres associados com direito a carteira de corno convecircnio em farmaacutecias e moto-taacutexi acompanhamento psicoloacutegico tratamento meacutedico e atendimento juriacutedico Gente da alta sociedade inclusive Se contar com os simpatizantes aqueles que frequentam a Ascron mas natildeo satildeo soacutecios estima-se que haja um salto para mais de 8 mil chifrudos(as)

Todo esse movimento comeccedilou quando o presi-dente foi chifrado pela (ex-)mulher Achou melhor natildeo esquentar a cabeccedila Foi solidaacuterio e criou na sua proacutepria casa a associaccedilatildeo com objetivo de ajudar quem estaacute com a pulga atraacutes da orelha ou deu de cara com o Ricardatildeo

Conheccedila a seguir alguns tipos de cornos mais comuns segundo o lsquoexpertrsquo no assunto JCGelo natildeo esquenta nuncaCuscuz quando sabe do chifre abafaAdvogado sabe que a mulher eacute culpada mas continua defendendoMecacircnico vive reclamando da mulher mas promete consertaacute-la um diaBoxeador vecirc a mulher com outro e quer dar porradaCorno 120 encontra a mulher em casa fazendo 69 e vai para o bar tomar uma 51Vingativo descobre que a mulher estaacute dando e resolve pagar na mesma moeda

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 33: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

fotos Jean M

arconi

65 | nov-dez 2011 |64

mdashFruto tiacutepico do cerrado o pequi eacute rico em paladar e em mitologia Vocecirc jaacute ouviu falar dos ldquofilhos do pequirdquomdashJean Marconi

Ouro do sertatildeo

Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l Comemos pequi ateacute ldquoenfararrdquo como dizem laacute no norte de Minas Assim como outros frutos do cerrado de alguns anos para caacute o pequi tem sido cada vez mais valorizado Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha tecircm ldquousado e abusadordquo dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas Mas para os povos dos sertotildees e das veredas ele jamais perdeu seu valor O pequi eacute o verdadeiro ouro do sertatildeo

Natildeo acredite em quem diz que o cheiro do pequi eacute forte enjoativo eacute preciso experimentar para realmente conhecer Natildeo tente se convencer que eacute bom deixe-se ser convencido Este eacute o Caryocar brasiliensis mais que um vegetal um siacutembolo de cultura persistecircncia e tra-diccedilatildeo de um povo No livro Cerrado espeacutecies vegetais uacuteteis seus autores dedicam sete paacuteginas ao pequi (tam-beacutem conhecido como piqui piquiaacute ou piqui-do-cerrado) discorrendo sobre sua ocorrecircncia distribuiccedilatildeo floraccedilatildeo botacircnica uso entre outros Pode ser consumido com arroz feijatildeo galinha ou batido com leite e accediluacutecar Seu uso medicinal tem efeito tonificante sendo usado contra bronquites gripes e resfriados eacute expectorante e o chaacute de suas folhas eacute tido como regulador do fluxo menstrual

Mas o pequi eacute mais que issoHaacute histoacuterias de crianccedilas ldquofilhas do pequirdquo ndash aquelas que nascem exatamente nove meses apoacutes a temporada do fruto pois ele eacute tido tambeacutem como afrodisiacuteaco Lamber chapeacuteu de couro eacute a uacutenica alternativa para retirar seus espinhos da liacutengua daqueles mais descuidados Conta-

-se tambeacutem que as iacutendias esfregavam o fruto nas partes iacutentimas para evitar que seus companheiros as procuras-sem (algo que natildeo devia adiantar muito porque para quem gosta o aroma do pequi eacute irresistiacutevel)

O pequizeiro eacute aacutervore robusta e sua flor eacute de excepcional beleza Seu sabor eacute uacutenico (assim como o eacute o do buriti e o do jatobaacute entre outros) natildeo haacute fruta que se possa comparar O pequi deve ser colhido no chatildeo sinal de que estaacute no ponto se for colhido ainda no peacute ele natildeo amadurece e prejudica a proacutexima safra daquela aacutervore E catar pequi natildeo eacute uma tarefa leve por mais simples que possa parecer o ato de se aga-char para pegar um fruta do chatildeo Vocecirc abaixa pega e levanta abaixa recolhe levanta abaixa cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar A casca eacute dura por dentro agraves vezes um dois ou qua-tro frutos amarelos carnudos Dizem que o nome vem do tupi e significaria ldquopele espinhentardquo Se mor-der jaacute era ndash milhares de espinhos minuacutesculos que recobrem o caroccedilo vatildeo encher sua boca e liacutengua Tem que raspar com os dentes roer mesmo E depois de roiacutedo vocecirc ainda pode colocar ao sol para secar abrir o caroccedilo e comer a amecircndoa que em certos lugares chamam de ldquobalardquo

Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano mas ainda natildeo chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura Por ser muito apreciado na regiatildeo Centro-Oeste e em estados adjacentes vaacuterios municiacutepios jaacute realizam uma festa em celebraccedilatildeo ao pequi uma maneira de agradecer agrave daacutediva deste fruto da savana brasileira Comeccedilando por Minas podemos ir a Mon-tes Claros que jaacute vai pra 21ordf Festa do Pequi Indo para Curvelo eacute possiacutevel encontraacute-lo em compotas ou em bar-ras tal como uma rapadura Jaacute em Alto Belo distrito de Bocaiuacuteva haacute uma competiccedilatildeo para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiaccedilatildeo tambeacutem para o maior pequi colhido O do ano passado com casca e tudo chegou a impressionantes 15kg Em Goiaacutes pode-se passar em Damianoacutepolis onde um doce de leite preparado com o oacuteleo do pequi eacute simplesmente inesqueciacutevel

Ainda na divisa goiana em Crixaacutes noroeste do Estado haacute tambeacutem a celebraccedilatildeo da fruta da estaccedilatildeo Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta ediccedilatildeo no uacuteltimo ano No espaccedilo da feira diver-sas barraquinhas onde pratos tiacutepicos da culinaacuteria local eram recriados aproveitando o pequi Em outro canto da cidade uma oficina ensinava a quem quisesse requin-tadas e deliciosas receitas tendo o fruto como principal ingrediente No dia seguinte desfile em comemoraccedilatildeo ao festival e ao aniversaacuterio da cidade Muitos carros alegoacute-ricos com crianccedilas caracterizadas de bandeirantes indiacute-genas mineradores gente que colonizou aquela regiatildeo Quantos deles seratildeo ldquofilhos do pequirdquo

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 34: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

67 | nov-dez 2011 |66

Espuma de mandioquinha com pequi e lacircminas de frango(Receita da chefe Carla Tamyrys)

Lacircminas de frangoIngredientes2 peitos de frango2 colheres de sopa de manteiga de leiteCoentro picadoSalPimenta-do-reino moiacuteda na horaAlho100g de cream cheese

Modo de fazerCorte o peito de frango em lacircminas bem finas Coloque em um recipiente refrataacuterio untado com manteiga Tem-pere com alho sal pimenta e coentro picado a gosto Leve ao forno preacute-aquecido a 180ordmC por quatro minu-tos Corte as lacircminas de frango em fatias monte o prato e finalize com o cream cheese

Espuma de mandioquinha com pequiIngredientes500 ml leite200g pequi descascado em conserva2 colheres de sopa de manteiga4 mandioquinhas grandes

Modo de fazerPegue as mandioquinhas leve para cozinhar por dez minutos Descasque as mandioquinhas ainda quentes e use um espremedor para formar um purecirc

Em uma panela coloque 300ml de leite e 200g de lascas de pequi Deixe cozinhar por 15 minutos Pegue a mistura ainda quente e bata no liquidificador ateacute for-mar uma pasta homogecircnea

Misture o purecirc da mandioquinha com o purecirc de pequi Em uma panela ferva 200 ml de leite com duas colheres de sopa de manteiga e junte ao purecirc de batata com pequi Bata tudo no liquidificador novamente Bata com a batedeira depois que esfriar

Obs O ideal eacute colocar a mistura em uma gar-rafa de chantilly e deixe descansar o gaacutes ajuda a formar melhor a espuma

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 35: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

69 | nov-dez 2011 |68

Profanar dois siacutembolos sagrados logo em seu primeiro trabalho de grande repercussatildeo natildeo eacute para qualquer um Evandro Prado fez isso com a figura do papa e a representaccedilatildeo icocircnica da Coca-Cola em 2006 quando com somente 20 anos de idade jaacute levava ao Marco (Museu de Arte Contemporacircnea de Campo Grande) alguns de seus trabalhos em mostra individual Na seacuterie Habemus Cocam com trabalhos que mistura-vam a marca de refrigerante e a religiosidade cristatilde causou tanta polecircmica que o caso lhe rendeu um processo de um arcebispo local

Do Mato Grosso do Sul a Satildeo Paulo onde vive atualmente o jovem artista conta em entrevista como a relaccedilatildeo entre sagrado e profano tem per-meado sua visatildeo artiacutestica Nascido em 1985 e formado em Artes Plaacutesticas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Prado mapeia sua rede de relaccedilotildees que vai dos artistas plaacutesticos locais a importantes curadores de renome internacional

Iconografia popmdashO artista Evandro Prado satiriza das grandes corporaccedilotildees agraves grandes religiotildees em suas obrasmdashEvandro Prado | Perfil

Papa

Da seacuterie

Estandartes

Tecidos bordados

sobre tecido

140 x 100 cm

2008

Catedral

Pintura oxidaccedilatildeo

de pregos sobre

tecido

180 x 110 cm

2011

Sagrada Coca-

Cola de Jesus

Acriacutelica sobre tela

110 x 150 cm

2005

imag

ens

Eva

nd

ro P

rad

o

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 36: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

71 | nov-dez 2011 |70

Vocecirc eacute um artista jovem ainda com 26 anos e estourou na flor dos 20 causando grande burburinho e polecircmica em Campo Grande Como foi lidar com issoDe forma muito natural E na verdade

nem foi tuuuudo isso Simplesmente

fiz uma exposiccedilatildeo que foi polecircmica

gerou debate Aumentou muito a

visitaccedilatildeo do museu naquele periacuteodo e

ganhei um processo Mas na verdade

mesmo natildeo mudou quase nada minha

vida Soacute posso dizer que foi muito

legal que tudo aquilo aconteceu

ndashEm 2006 a seacuterie Habemus Cocam justamente a que lhe alccedilou ao reconhecimento nacional trazia iacutecones e figuras religiosas inclusive a imagem do papa Joatildeo Paulo II misturadas a siacutembolos do capitalismo e da poliacutetica Vocecirc chegou a sofrer um processo criminal movido pelo arcebispo de Campo Grande que alegava que a exposiccedilatildeo das obras estaria ldquocausando impacto moral e emocional negativo na comunidade local especial-mente na religiosa catoacutelicardquo Mas e em vocecirc Qual foi o impacto que este processo causou em sua produccedilatildeo artiacutesticaEu levei um susto Eu nunca imaginei

que aquelas pinturas fossem causar

tanto impacto na sociedade catoacutelica

de Campo Grande que mobilizaria

tamanho debate puacuteblico envolvendo

o bispo vereadores e deputados e

muito menos que mostrasse essa

face negra da igreja e desses poliacuteticos

que queriam cancelar a exposiccedilatildeo

e destruir as obras Durante aquele

periacuteodo eu fiquei na retaguarda soacute me

defendendo Porque afinal minhas

obras continuaram expostas no museu

Depois disso o que ficou em mim

foi um pouco mais de consciecircncia

da verdadeira face das pessoas das

instituiccedilotildees e de seus interesses

E o que refletiu no meu trabalho

foi justamente a vontade de cada

vez mais mostrar esse lado menos

glorioso da igreja soacute que em trabalhos

de arte que fossem menos literais

A criacutetica pode ser mais sutil ateacute

mesmo passando despercebida

ndashE a Coca-Cola Houve alguma manifestaccedilatildeo da empresa a respeito do uso de suas marcasEu sei que ela foi procurada em muitos

momentos para se colocar tanto pela

imprensa quanto por alguns poliacuteticos

E nunca se manifestou a respeito

ndashEm Feacute na Taacutebua e em Alegorias Profeacuteticas [outras mostras que vieram na sequecircncia] vocecirc revisita temas religiosos Qual a sua relaccedilatildeo com a feacute e a doutrina religiosa Por que esse elemento estaacute tatildeo marcada-mente presente em sua obraEm toda a minha produccedilatildeo aparece

a questatildeo religiosa A princiacutepio

o que me interessa eacute a esteacutetica o

visual a beleza dessas imagens

Em seguida seus significados e o

poder que exercem sobre as pessoas

Entatildeo eu comeccedilo a macular essas

imagens e mostraacute-las de outra

forma Eacute o que mais me interessa

ndashSobre a fase atual em Satildeo Paulo a mudanccedila diz respeito a alguma expectativa de maior alcance na projeccedilatildeo nacional e interna-cional de seu trabalho Como vocecirc encara esta questatildeo da visibilidade para o artista fora do chamado eixo Rio-Satildeo PauloCom certeza vim para Satildeo Paulo em

busca de novos horizontes Novos

desafios E estou muito feliz por aqui

principalmente com o que tenho

aprendido Tenho uma vivecircncia

diaacuteria com as artes plaacutesticas e o

pensamento artiacutestico natildeo para de

mudar Isso eacute muito bom Aqui

faccedilo parte tambeacutem de um grupo de

artistas o ALUGA-SE que tem muitas

propostas ousadas e questionadoras

ndashQual a sua relaccedilatildeo com outros artistas sul-mato-grossenses independentes E nessa mesma linha qual a sua relaccedilatildeo com outro artista do Mato Grosso do Sul jaacute bem conhecido Humberto EspiacutendolaTenho muitos amigos artistas em

Campo Grande Uma relaccedilatildeo oacutetima

de amizade mesmo com a Priscila

Pessoa o Mauro Yanase a Nilvana

Mujica e tantos outros Natildeo parei

de acompanhar a produccedilatildeo da cidade

e estou sempre por laacute afinal a minha

famiacutelia toda continua morando em

Campo Grande Eu sou a uacutenica ovelha

da famiacutelia fora do Mato Grosso do Sul

Humberto [Espiacutendola] eacute um

grande amigo Um grande artista que

me inspirou muito principalmente na

seacuterie Habemus Cocam Admiro muito

ndashComo eacute figurar em cataacutelogos de importantes curadores como o proacuteprio Humberto Espiacutendola e Paulo Herkenhoff ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador do MoMAGraccedilas ao fato de sempre ter parti-

cipado de exposiccedilotildees tambeacutem

fora de Campo Grande sempre

mandei trabalhos para salotildees de

arte Muitas vezes tive trabalhos

premiados e alguns salotildees publicam

cataacutelogos importantes com textos

de grandes nomes da criacutetica como

foi o caso de Paulo Herkenhoff no

salatildeo do Paraacute da Aracy Amaral no

Rumos Itauacute Cultural e em alguns

outros casos Eacute uma forma muito

importante de jaacute ir registrando

nossa produccedilatildeo na histoacuteria

Poenitentia

Instalaccedilatildeo 33 kg

de pregos

200 x 180 x 250 cm

2008

Habemus Cocam

Acriacutelica sobre tela

110 x 180

2005

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

Page 37: — #fantástico #maravilhoso #mitos #lendas #assombração #cinema ...

73 | nov-dez 2011 |72

Ascensatildeo

Instalaccedilatildeo escada e vinil adesivo

600 x 200 cm

2010

Montagem na exposiccedilatildeo sbquoldquoMarco Alugadordquo

do Grupo Aluga-se em Campo Grande MS

Crucificado

Fotografia

17 x 17 cm

2011

Participou da accedilatildeo

Pagou Levou do

Grupo Aluga-se

Peccatoribus

Instalaccedilatildeo tecidos bordados sobre tecidos

280 x 100 x 500 cm

2011

Nossa Senhora Coca-Cola

Acriacutelica sobre tela

100 x 150

2009

Obra montada na exposiccedilatildeo ldquoThe dirty and

the bad from Satildeo Paulo to Sbendborgrdquo do

Grupo Aluga-se na Dinamarca

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