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••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• c.rJ O Capítulo XIII Teorias Sobre o Valor Éxplicações Psicológicas 85. Discriminamos três esferas fu,ldamentais de objetos, ve· rificando que elas podem ser reduzidas a objetos naturais, a obje· tos ideais, OU a valores, concluindo com uma referência aos cha· mados objetos culturais, cujo sentido nos cabe esclarecer. Lembramos, outrossim, que vários autores sustentam pontos de vista diversos, pretendendo reduzir, por exemplo, OS valores, ora a fenômenos de ordem psicológica, ora a objetos ideais. Como esta matéria é de alto significado para a caracterização da rea· lidade cultural em geral, e da jurídica em particular, façamos rápido apanhado das doutrinas básicas ,' ,ore a natureza do valor. São muitas as teorias sobre o assunto, podendo, no entanto, ser discriminadas entre duas grandes tendências·limite: lima no sentido de estudar·se o valor de modo sllbjetivo, c outra que pro· cura explicação de natureza puramente objetiva, Tudo está em responder a esta pergunta: como e por que os valores valem? Não resta dúvida que sentimos que as coisas valiosas se nos imo põem, determinando nossos atos, prendendo, de certa forma, nosso espírito, Por que essa força enlaçante do valor? A primeira corrente é, como dissemos, a subjetivista, reuniu- rio várias "teorias psicológicas da valoração", como, por exem· pio, a de tipo hedonista, desenvolvida desde Aristipo e Epicuro até Bentham e Meiuong (valioso é o que nos agrada, causando·nos praz< :r) ou a de tipo voluntarista, como a que, desde Aristóteles

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c.rJ O

Capítulo XIII

Teorias Sobre o Valor

Éxplicações Psicológicas

85. Discriminamos três esferas fu,ldamentais de objetos, ve· rificando que elas podem ser reduzidas a objetos naturais, a obje· tos ideais, OU a valores, concluindo com uma referência aos cha· mados objetos culturais, cujo sentido nos cabe esclarecer.

Lembramos, outrossim, que vários autores sustentam pontos de vista diversos, pretendendo reduzir, por exemplo, OS valores, ora a fenômenos de ordem psicológica, ora a objetos ideais. Como esta matéria é de alto significado para a caracterização da rea· lidade cultural em geral, e da jurídica em particular, façamos rápido apanhado das doutrinas básicas ,',ore a natureza do valor.

São muitas as teorias sobre o assunto, podendo, no entanto, ser discriminadas entre duas grandes tendências·limite: lima no sentido de estudar·se o valor de modo sllbjetivo, c outra que pro· cura explicação de natureza puramente objetiva, Tudo está em responder a esta pergunta: como e por que os valores valem? Não resta dúvida que sentimos que as coisas valiosas se nos imo põem, determinando nossos atos, prendendo, de certa forma, nosso espírito, Por que essa força enlaçante do valor?

A primeira corrente é, como dissemos, a subjetivista, reuniu­rio várias "teorias psicológicas da valoração", como, por exem· pio, a de tipo hedonista, desenvolvida desde Aristipo e Epicuro até Bentham e Meiuong (valioso é o que nos agrada, causando·nos praz<:r) ou a de tipo voluntarista, como a que, desde Aristóteles

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1 9~ MIOUJ'L k~AI F

até Ribot e Ehrenfels, liga o problema do valor à sa tisfação de um desejo, de um propô.liro. a uma base sentimental-volit iva (valioso é o que desejomM ou pretendemos) .

No mais das vezes. essas interpretações c outras semelhantes não se excluem, mas se completam, sempre sem abandono de pro­cessos subjetivos no plano da Psicolog ia empírica, prevalecendo soluções de tipo eclético, como quando se afirma: va lioso é o que nos causa prazer. suscitando o nosso desejo.

Na impossibilidade de ana li sar as múltiplas perspectivas do psicologismo axiológicu, di remos que sua tese nuclear consiste na afirmação de que os va lo res existem como resu lt ado ou como re· fl exo de moti vos psíq ui cos, de desejos e inclinações, de sentimento de ag rado o u de desag rado. As co isas valem em razão de algo que em nós mesmos se põe como desejável ou apetecívci, o u capaz de dar-nos prazer; porque existe. em sum a. como fenômeno de cons· c iência e como "vivência estimativa", algo que marca a razão da preferência ex teriorizada. Os valo res seriam, assim, uma ordem de preferências psicolog icamente ex plicável. como oco rre. por exem· pio. na conhec ida fórmula de Ehrenfels: "A grandeza do valor é proporcional à sua desiderabilidade".

A análise das ex periências axiológicas representa . sem dú· vida . um dos capítu los mais dignos de atenção da Psicologia eon· temporânea, pois é incontestável a ligação entre a desiderahili· dade e o ato de valorar, cabendo a esta doutrina o mérito de ter posto em realce um dos elementos do va lor já por nós conside-ado, li preferihilidade. Surge. porém , logo um problema. Se fi ca rmos apegados às va lorações individuais, em si mesmas plenas e intrans­feríveis. ficarão sem ex plicação plausível as preferências estima­ti vas de um grupo ou de lima coletividade, surgindo problemas irredu tíveis a meras explicações subjetivas. Por out-o lado, os valores, assentes que fossem em valorações individ uais, repre.en · tal iam elementos va ri áveis c incertos, não havendo possibilidade de distinguir-se entre bons e maus dese jos. prazeres Que d igni fi· cam ou que degradam, desejos atuais c desejos possíveis. Restari a sem explicação o fa to incontestável de que os va lores subsistem rdesmo depois de cessados os desejos, ou quando os desejos nã" logram ser satisfeitos.

flLO SO IIA 11( 1 !J! K ' 11 ti 197

E mais, se o indivíduo fosse fonte c medida dos valores, como explicar a força ou a pressão social que eles representam. não só ditando comportamentos, como exigindo ações de conformidade ou de subordinação em conflito com as preferências indiv idunis?

Quantas e quantas vezes, o valo r de um ato não result a do sacrifício de um desejo, da renúncin a um prazer? Sobre haver valores, como os estéticos, q ue independem de qua lquer de~ejo .

não é menos certo que os atos moralmen te mais valiosos, como os do mártir e do herói, ficariam sem sentido. ES las C out ra s ohje­ções têm levado a lguns intérpretes a alargar tanto o significado dos termos "prazer" e "volição" que, imperceptivelmente , acabam transpondo os lindes da explicação psicológica. reconhecendo a validez objeti va que pretendiam contestar ...

Compreende-se, pois , o predomínio das expli cações ohjetivis· tas, que passa remos a examinar . destacando apenas três dentre elas: a sociológica, a ontológica e a histórico·cul tural.

Interpretação Sociológica dos Valores

86, A teoria sociológica assume um a atitude crí tica perante as conclusões das doutrinas psicológicas da va loração. em cujo âmbito já se nota, ali ás, tendência no sentido de se situ ar o pro­blema, não à luz da Psicologia dos indivíduos, mas segundo as exigências da Psicologia social' .

Assim é que alguns autores preferem admitir que os valores não são produto de um indivíduo empírico, mas algo qu e deve se r estudado como fato da sociedade no seu todo como expressão de crenças ou desejos sociais (Gabriel T arde) ou prod utos da cons­ciência coletiva (E.mile Durkheim).

I. A rundamen(aÇ~O objetiva dos v.dores tem ,ido tentada pur (\ulra~ tetl ri:l ~

empíricas como a dos "biologistas" que apresentam ohjeliv"-menlc 0 '1 valore'\ como

"rdaçõc:s de adaplaç50" de um objeto n um sujc:ilO OU a muitos ~uieito'i ; a do .. "economiSlas" que OS apreciam em lermos de rel ação no plano da técnicn e da~

forças produtivas etc. (Cf, POI'lTES D~ MIRANDA , Sis/~mlJ de O;ncia PnJ;ti vn (lo Dirt;to, cit, págs. 169 e segs.) Esta e outras teorias sit uam-se no mesmo plano da sociol6gka, cujos pressupostos vamOs exa minar.

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198 MIGUEL REALE

Põe-se, pois, o problema de uma Sociologia dos valores, que é uma ordem de pesquisas de grande relevo, resultante da consi­deração de que a sociedade não representa um simples ajuntamen­to de homens, mas algo de irredutível a cada um de seus elemen­tos componentes. Esta idéia da sociedade como um todo, que não se reduz aos indivíduos que a formam, constitui idéia nuclear na Sociologia francesa. especialmente na de inspiração durkheimiana. Nos estudos sociológicos de Durkheim (1858-1917) e de seus con­tinuadores, é de importância primordial a teoria de uma cons­ciência coletiva irredutível e superior à consciência dos indivíduos componentes. Assim como o hidrogênio e o oxigênio se compõem para formar a água, e esta não reúne as qualidades de seus ele­mentos formadores, líqu ido que é, não comburente nem combus­tível , assim também a sociedade formaria um todo uno e diverso, que r 'io seria explicável tão-somente pela simples soma dos in­divíduos que se congregam para viver em comum. O elemento dis­tintivo do fato social seria dado pela consciência coletiva, insus­cetível de ser explicada à luz da Psicologia individual.

O conceito durkheimiano de consciência coletiva não se apre­senta sempre com as mesmas notas determinantes, de modo que já se discriminaram várias maneiras de sua formulação, marcando momentos diversos da investigação do autor de As Regras do Mé­todo Sociol6gico.

Uma das últimas expressões desse c.onceito verificou-se exa­tamente quando Durkheim, na última fase de sua produção cien­tífica, tomou contaeto com o problema axiológico, vendo a cons­ciência coletiva como reposit6rio de valores, daí tirando a con­clusão de que os valores obrigam e enlaçam nossa vontade, porque representam as tendências prevalescentes no todo coletivo, exer­cendo presscio ou coaçcio exterior sobre as consciências individuais.

Cada homem de per si subordinar-se-ia ao mundo dos valores, pOi' serem eles a expressão, não de cada membro em sua singula­ridade pessoal , mas da consciência coletiva considerada em sua unidade, podendo ser explicado, desse modo, o seu caráter ideal sem ser necessário recorrer "a um mundo transcendente": "O va­lor", esclarece Durkheim em um famoso ensaio, "provém da rela­ção das coisas com os diferentes aspectos do ideal; mas o ideal r.ão é uma fuga para um além misterioso; ele está na natureza e

FILOSOfIA DO OIRl:IT O 199

é da natureza" '. Como jamais do desejável pode resultar a obri­gação moral, nem o desejável definir a obrigação, é prec iso re­correr à Idéia de consciência coletiva lj ue é "ao mesmo tempo transcendente com referência às consciênc ias ind ividuais e está nelas imanente, e nós a sentimos como ·.al " . Desse modo, o obri­gatório e o desejável, o dever e o valor "não são mais que dois aspectos de uma única e mesma realidade. que é a realidade da consciência co letiva" ".

Essas teses foram desenvolvidas amplamente por grande nú­mero de seus discípulos, bastando lembrar dois nomes. por terem cuidado de problemas ligados à vida jurídica - Georges Davy , e C. Bouglé ' - ambos acen tuando a tese durkheimiana do di­reito como "símbolo visível da solidariedade social".

A obra de Davy é de inegável importância neste campo do conhecimento. por ter ele procurado most rar como na história da sociedade vão surgindo valores, quc depois se impõem ao homem, com um caráter de objetividade e ideal idade. Até mesmo a idéia de personalidade jurídica seria a expressão de algo elaborado na consciência coletiva. fruto de uma longa experiência.

A obra de Bouglé sobre a evolução sociológica dos valores distingue-se pela clareza de seus conceitos e por mostrar-nos eomo determinadas posições espirituais de natureza estimativa não sur­giram na consciência histórica repentinamente, mas marcam, ao contrário, o amadurecimento, digamos assim, de um processo mu l­tissecular.

Quaisquer que sejam as restrições que possam ser feitas a estes estudos, .0 certo é que eles representam um esforço notabi­líssimo no sentido de explicar a objetividade dos valores, a razão pela qual os valores se impõem aos indivíduos, muitas vezes con­trariando frontalmente seus desejos .

2. E. Ot)RKH~IM. "Jugement de réalité el jugemcm de vuleur", ill Sociologi~

(" PhiloJophie, Paris, 19.51, pág. 137. 3. t. DURKHEIM, Dirumination du Fail Moral , op. '/l . , págs. 49 e segs. Sobre o caráter metafísico dessas concepções, v. GEORliE GURVJTCH, E.u(ljs dt'

StJâologie, Paris, págs. 113 e segs. 4. DAVI. Lt Droit, /'ldt>ali.tme er J'lirperil!l!n:,. Paris. Alcan , 1922. e La Foi

furrl' f êtude sociologique du probleme úu contral). Paris. 1922 . 5. C. BOUCitÉ. Leço1l.s de Socjolo;:ie .\'ur tEv. :II/ioll deJ Valeu r.!', Paris, 1922. -O ,-'"

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1.0 ~

200 MIGUEL RE.,\,L E

f: inegável que o homem não segue apenas o 4UC deseja ou quer; ao contrário, subordina sua conduta, em muitas e muitas ocasiões, a algo que contraria suas tendências naturais ou espon· tâneas. O valor de um ato resulta, bastas vezes, da não·satisfação de um desejo, do superamento daquilo que seria inclinação ime­diata de nosso ser.

Certos valores brilham com uma luz dominadora em dadas conjunturas, levando indivíduos e povos a vencer algo que, no fundo , seria a sua tendência "natural". O homem eleva-se ao mundo do valioso graças a seu autodomínio, à sua capacidade única de superar, não só as inclinações naturais dos instintos. como os estímulos rudimentares da vida afetiva . Sob esse prisma, o mundo do valioso é a da Juperamenra ético.

Oualquer explicação puramente socio lógica dos valores co· loca·nos, porém , diante de uma dificuldade de ordem filosófi ca. dificuldade esta que surge toda vez que se quer buscar uma expli. cação meramente empírica e causal para o mundo axiológico, ou, mais particularmente, para o mundo moral.

Não resta dúvida que tanto a Psicologia social como a Sacio· logia dos valores lançam luz sobre vários aspectos do processo ou da gênese dos fatores estimativos, mas mostrar-nos como nascem e se desenvolvem não é desvendar as razões de sua obrigatoriedade objetiva. Depois que Georges Davy contrapõe, ao idealismo a prio­ri dos valores inatos e insc ritos nas tábuas do Direito Natural, os valores revelados paulatinamente na obra civilizadora da espécie h umana, ficam sempre de pé as perguntas sobre a legitimidade dos ideais. Como é que os valores surgem na sociedade e na psique individual é, repetimos, um problema de inegável relevo. Mas o fato de sabermos como surgem os valore.s bastará para explicar por que os valores abriRam?

Desde Kant se pode declarar verdadeira a afirmaçãú de que do mundo do ser não se passa para o do dever ser. Da simples verificação de que um fato "é" não resul ta que ele "deva ser" . o que é não envolve. como nexo necessário, a'l uilo que deve ser. O dever ser, muitas ve7.es, é o contraposto daquilo que é. Isto não representa uma novidade Dara o jurista. A vida jurídi ca é uma lUla inccssank contra a transg ressão legal e o delito , pa'a sa lvaguarda de oens l' de vab es.

folLOS OF IA 11 0 UJRI· ITo 201

t possível a um sociólogo demonstrar que () 110Illicídin 11;\(1

ê algo de estran ho à sociedade, mas inerente ao sell prm.: esso. olK' decendo a determinadas causas, segundo c(' rt as lei s gl'ra is de n:ltll ­

reza estatística. Recordamos um livro que, em sua época . ca usou grande lC­

Icuma. a monografia de Durkheim sobre o sui cíd io ', estudado objetiva mente como um "fato natural ". il luz de gráficos que de· mOnstra vam a sua ocorrência em fun ção de ce rtos fatores ope· rant es no meio soc ial. Este trabalho de natureza soc iológico·esla· tística foi reproduzido em muitos outros campos. Já foi demons· trado que O homicíd io, o furto etc . va riam segundo os índi <:es de mobilidade socia l, de crescimento demográfico, de cri s,' d,' produção etc. Há uma funcionalidade entrc os delitos c uma ,érie de causas sociais dc ordem econômica, psicológica, racial c demográfica, Trata·se, portanto, dc fenômenos susce tí ve is de se· rem ex plicados segundo esquemas de valor gcnérico ou constant e. Daí resultará , porém, que os delitos del'a /ll se ,. ? Evident emelll C que não, nem Durkheim jamais o pretendeu. Do falo de que algo seja não se infere que deva ser. O dever ser , ao contrúrio, marca Ullla atitude de crítica ou de estimativa daquilo que (; e nüo raro de contrapos ição de algo valioso ao processu·se cios aconteci· mentos

Desse modo, cabe reconhecer que a exp li cação soc iológica c psicológica é válida para a gênese do mundo cstimativo, m", nào para sua va lidade intrínseca. Por que os valores obrigam ? Valcrüo apenas pelo fato de screm revelados pela consc iência total ? Mas, quem nos garante que, em dados momentos da História, () parti . dário do valor autêntico não seja aq uele que se divorcia das médias estimativas dominantes e se contrapõe, heroicamente, ao comu· mente consagrado como concreção do valor mais altoo A Hi stória está aí para demonstrar-nos que mártires e heróis revelam, muitas vezes, num ato singular, um valor contestado pela sociedade intei· ra , e que é só o decurso do tempo que logra desvelar o seu signifi · cada altíssimo, arrancando os véus dos preconceitos e da rotina.

A opinião da maioria não traduz, de forma alguma, a certeza ou a verdade no mundo das estimativas. Poderá ser indício de

6. cr. D UKKIl.l:.IM, Le Suiât!(,. P;tri ". 1 ~1j 7.

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202 MIOl1~L REALP.

verdade ou de validade, como já Santo Tomás de Aquino o obser­vara, a propósito do problema do bem, ao dizer que se pode espe­rar que o bem seja aquilo que acontece mais freqüentemente ... Mas, o acontecer com freqüência é apenas indício, que poderá ser contrariado no decurso da História. Daí a idealização que Dur­kheim fez da consciência coletiva para conciliar o mundo do ser com o do dever ser, passando do campo da Sociologia para o da Filosofia Social'.

Ontologismo Axiológlco

117. Em virtude dessa c de outras dificuldades que se opõcm a qualquer explicação puramente empírica do problema dos valo­res , surgiram duas outras grandes correntes, que hoje preponde­ram nos domínios da Axiologia.

A primeira atitude é a do chamado ontologismo axiológico, que conta com vários representantes, sobretudo com dois grandes éticos contemporâneos, que são Max Scheler e Nicolai Hártmann, o primeiro de posição menos extremada quanto à "objetividade" dos valores.

Max Scheler, falecido em 1928, é autor de uma obra à qual já fizemos referência, e que representa uma crítica admirável do formalismo ético de Kant para a elaboração de uma ética material de valores. Seu livro fundamental intitula-se O Formalismo na Ética e Uma Ética Material de Valores (1913-16), no qual foram lançadas com maestria as bases de uma Btica de conteúdo, a Btica de conteúdo estimativo ou axiológico.

'Nicolai Hartmann é autor de duas outras obras básicas no pensamento contemporâneo: - Os Princípios de Uma Metafísica do Conhecimento (1921) e Ética (1926). B exatamente neste últi­mo livro, cujo texto pode ser encontrado também em tradução inglesa, que Nicolai Hartmann desenvolve a idéia de Scheler e as

7. Sobre esses ponlOS, cf. M IGUEL REALE. FUl1dame'ltos do Direito, 2' ed., São Paulo. 1972, págs. S9 e segs. No mesmo sentido a crítica de MOR RIS GINSBERC, O" ,fie D iJ.·usity 01 Morais, Londres-Toronto, 1956, págs. SI e s.~gs.

FILOSOFI :\ DO DIREITO zm

próprias, mas no sentido de rigoroso ontolog/Slno axioiógico '. De certa maneira podemos dizer que se volta no campo dos valo· res à posição platônica. Segundo Scheler c Hartmann. os \ a­lores não result am de nossos desejos, nem são proieção de nossas inclinaçôes psíquicas ou do fato social, mas algo que se põe antes do conhecimento ou da conduta humana, embora podendo ser ra­zão dessa conduta. Os valores representam um ideal em si e de per si, com uma consistência própria, de maneira que não seriam projetados ou constituídos pelo homem na História. mas "desco­bertos" pelo homem através da História . .

A História seria a descoberta incessante desse mundo ideal ou modelo, não se podendo confundir ~ :eoria pura dos valores com um sistema de preferências esti" ,ativas. A concepção de idéias-modelo, de arquétipos marcando o processar-se da História humana, ressurge, assim, dando uma atualidade ao idealismo pla­tônico, de certa maneira inédita . Os valores seriam objetos ideais ou a eles correspondentes em sua "irrealidade". anteriores a qual­quer processo histórico, porque eternos. A História marcaria uma tentativa incessante de atingir esse mundo transcendente (0/1 sich seiendes, como diz Hartmann), através de intuições, que seriam as únicas vias de acesso até às realidades estimativas.

Segundo Hartmann e Scheler, é graças à intuição que pode­mos penetrar no mundo dos valores. Os valores só podem ser captados por um contacto direto do espírito. quer emocionalmente, segundo Scheler, quer emocional e eideticamente, segundo Hart­

mann. Este segundo pensador leva tão longe a separação entre o

mundo dos valores e o mundo histórico que chega a dizer que só podemos captar os valores na sua singularidade, porque eles não se comunicam uns com os outros, nem tornam possível qualquer processo. O seu objetivismo culmina, pois, em um verdadeiro o/1tologismo axiológico. Na teoria de Hartmann, os valores repre­sentam um mundo subsistente e cerrado em si mesmo, com todas as características de uma realidade ontológica.

8. Cf. N. HAItTMANN, t;,IIit',f, tr"lI. úç 1. H. Muirhclu.I , Londres. 2l:1 ed ., 1950,

Cf., também. Ontologiu, ciL e 11 prub/c'mu de/l't."J.I(:r(' .\'pjrilllole, Irad. de Alfredo

Marini, Florença, 1971. -~

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Estas doutrinas. que encontram seguidores L'lltllsiaSlas nu campo da Filosofia Jurídica , notadamente na cultura hispano-alllc­ricana, estabelecem, a nosso ver, uma separação entre () problellla do. valor e o da história , [icando esta vazia de sentido ". A ex pli­cação que nos parece mais plausível da experiência dos va lores c de sua obrigatoriedade, é-nos dada por várias teorias, cujas teses fundamentais reunimos sob a denominação genérica de dOlltri"as histórico-cult urais.

Teoria Histórico-Cultural dos Valores

88. As correntes histórico·culturais não desconhecem. em primeiro lugar, as contribuições preciosas, tanto da Psicologia co­mo da Sociologia nesta matéria, mas procuram resolver as difi­cu ldades de ordem lógica e [ilosófica encontradas na crítica da posição puramente empírica.

Não é demais esclarecer, desde logo, que sob a rubri ca gené­rica de "doutrinas histórico-culturais" enfeixamos várias tendên-

~ cias. como, por exemplo, a de tipo hcgcliano, a de tipo dilthcyano CJ1 ou a de inspiração heidcggeriana ou marxista, para não lembrar­

mos senão algumas das orientações de maior projeção em nossos dias. O que as unifica é a convicção da impossibilidade de com­preender-se o problema do valor fora do âmbito da História , en­tendida esta como realização de valores ou como projeção do espírito sobre a natureza , visto dever-se procurar a universa lidade do idea l ético com base na experiência histórica e não com abstra­ção dcla.

O problema fundamental será melhor examinado dentro em pouco, a propósito do conceito de cultura , mas o fulcro da dou­trina é dado pela idéia de que o homem é o único ser capaz de inovar ou de instaurar algo de novo no processo dos fenômenos naturais, dando nascimento a um mundo que é, de certo modo, a sua imagem na totalidade do tempo vivido. Poderíamo~ lembrar

9. Para majore~ desenvo lvimentos, v. in/ra, ca po XXXV e respc~livu biblio­grafia. Cf .. outro!~im. nOS50 estudo "Políticâ e Direilo na doutrina de NicoJai Hart­munn", no Rt'I·j.trtl Rrn.filr'Írt. tlt' Fi/(),lofirl, vol. X X V I , fôl~c . 101 , juneiro/março de 1976, págs. 3 e segs.

,.- I LOSO,.lA 00 n'lI..l 1 1" 20~

aqui a fórmula de Louis Lavelle segundo a qual "o aIO pelo '1//,,1 o eu assume o sell ser próprio é que fUllda o valor de si mesmo, e, concomitantemente, de todos os objctos a que se aplica, de todos os fins que se propõe atingir" '''.

Acrescenta o mesmo pensador [rancês que, por outro lado, a autoconsciência fundante do valor não implica o seu insu la­menta, mas ao contrário, exige a Sua participação e ins~rção no todo, até ao ponto de poder-se dizer que "é na relação do cu· com o todo que reside a or;gem mesma do va lor".

Se a natureza, como natureza , obedcce a leis de lima previsão pelo menos cstatística, e sc os fatos naturais marcam um nexo de causa a efeito ou de funcionalidade, segundo o princípio de que nada acontece que não seja através de uma transformação do jú existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certa maneira, se repete, já o espírito rep rescnta a inserção de algo de contingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particular cm uma comprecnsão de totalidade.

Já foi dito muito bem que a natureza se repete e que só o homem inova e se transcende. ~ a essa atividade il1ov~dora, capaz de instaurar formas novas de ser e .de viver, que chamamos de espírito" _ O ponto de partida não é, , .. mo se vê, uma hipótese artificial, mas a verificação irrecusável de que o homem adicio­nou e continua adicionando algo ao meramente dado. A natureza de hoje não é a mesma de um, dois. ou três mil anos atrás, por­que o mundo circundante foi adaptado à feição do homem . O homem, servindo-se das leis naturais, quc são instrumentos ideais, erigiu um segundo mundo sobre o mundo dado: é o nWl1do hisln­rico, O mundo cultural , só possível por ser o homem um ser espi­ritual, isto é, um ente livre dotado de poder de sílllese, que lhe permite compor formas novas e estruturas inéditas, reunindo em unidades de sentido, sempre renovadas e nunca exauríveis, os elementos particulares e dispersos da experiência.

10. LAVELLl:!, Traité des Valeurs, Paris. 1951, I. I, págs. 299 e segs. 11. "O va lor", diz UVELLI:!, "não pode proceder senão de uma alividadl:: qUI::,

fundando se a si mesma, funda ao mesmo tempo o seu próprio \'alcor e o va lor de todas as coisas; de uma atividade que se engendra a !o i mesma e que, ao fazê-lo, engendra as sua s próprias raz.(k!> : ora, essa é preci :.amen l~ a definição de espíritn", op. clt ., t. I, pág. ]15.

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206 MIGUEL JlEALE

Ora, graças à verificação de tais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre a natureza, conferindo-lhe di­mensão nova. Esta dimensão nova são valores, como a fonte de que promanam.

O valor, portanto, não é projeção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mesmo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora, como consciência histórica, no processo dia lógico da história que traduz a interação das consciências individuais, em um todo de superações sucessivas.

Que é que move o espírito nessa realização histórica, que não pertence a fulano ou a beltrano, mas à totalidade da espécie humana, em sua universalidade? Que move o homem nesse pro­jetar-se histórico? Na resposta, divergem as diferentes do utrinas . Dirão uns que são tendências profundamente éticas, outros que é o anseio de liberdade, outros ainda que nos determinam neces­sidades econômicas inelutáveis no sentido do progressivo domínio sobre a natureza.

Diferentes teorias surgem, desse modo, mas todas reconhecem existir a possibilidade da transformação da natureza como natu­reza, em virtude, a nosso ver, de algo próprio somente do homem e que é capaz de subordinar a natureza aos fins específicos do ho­mem: o poder nomotético do espírito".

O elemento de força , de domínio ou de preponderância dos elementos axiológicos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciência do espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, em última análise, obrigam, porque repre­sentam o homem mesmo, como autoconsciência espiritual; e cons­tituem-se na História e pela História porque esta é, no fundo, o reençontro do espírito consigo mesmo, do espírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes do que chamamo~ "ciclos culturais", ou civilizações.

A essa projeção do espírito para fora de si, no plano da História , como História, é que Hegel denominava espírito objetivo

12. Para maiores esclarecilm'ntos. Y, MIGUEL Rl!ALE - Experiência t CII/. IUm, cito

FILOSOFIA DO DIREIT O 207

_ expressão que podemos conservar sem aderir aos pressupostos do filósofo germânico : é, em suma, o mundo da cultura. ou o mundo histórico-cultural.

Não basta, portanto, tecer uma explicação genérica do mun­do estimativo, pois é mister procurar a razão de ser daquilo que se põe como valor, e o valor não se compreende sem referência à História.

Os valores não são, por conseguinte, objetos ideais, modelos está ticos segundo os quais iriam se desenvolvendo. de maneira reflexa, as nossas valorações, mas se inserem antes em nossa expe­riência histórica, irmanando-se com ela. Entre valor e realidade não há, por conseguinte, um abismo; e isto porque entre ambos existe um nexo de polaridade e de implicação, de tal modo que a História não teria sentido sem o valor : um "dado" ao qual não fosse atribuído nenhum valor, seria como que inexistente; um "va­lor" que jamais se convertesse em momento da realidade, seria algo de abstrato ou de quimérico. Pelas mesmas razões, o valor não se reduz ao real , nem pode coincidir inteiramente, definitiva­mente, com ele: um valor que se realizasse integralmente. con­verter-se-ia em "dado", perderia a sua essência que é a de superar sempre a realidade graças à qual se revela e na qual jamais se esgota.

Realizabi/idade e inexaurihilidade são, por conseguinte. ou­tras características dos valores, quando apreciadas em seu pro­jetar-se histórico. Como realidade e valo r se implicam, sem se reduzirem um ao outro, dizemos que o mWlllo da cultura obedece a um desem'olvimento dialético de complemen(ariedade.

À concepção especial, segundo a qual os valores não são ape­nas fatores éticos (capazes de ilustrar-nos sobre o sentido de expe­riência histórica do homem) mas tamb< _11 elementos constitutivos dessa mesma experiência, é que denominamos hisroricismo axio­lógico , cujos conceitos e exigências estão implícitos sempre nas páginas deste Curso " .

\3 . Cf. nossO estudo "Perlioníl lilimo ~ hjslorici~mll alliolôgicu", na Rrl', /lUH.

dr Filosofin. 19!iS. fase . 20. págs. 539 e segs.; Tl'l1ria T,it/iml''',fill/I(I! do D irC'iW,

São Paulo, 1968. capítulo IV, LiÇf;n I'r"limúwr('! dr Dirt'ito, Silo I'alllo. 1973, capí­

tulo IV e Experi!~nâ(f (' Cultura, cito

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Capitulo XIV

A Cultura e o Valor da Pessoa Humana

Objetividade e Hlstorlcldade dos Valores

89. No capítulo anterior, após a análise das explicações so­ciológicas dos valores, apreciamos as correntes que os estudam como entidades objetivas, culminando em um ontologismo axioló. gico, e concluímos reconhecendo a objetividade dos valores no mundo da cultura.

No nosso modo de ver, os valores não possuem uma existência em si, ontológica, mas se manifestam nas coisas valiosas. Trata-se de algo que se revela na experiência humana, através da História. Os valores não são uma realidade ideal que o homem contempla como se fosse um modelo definitivo, ou que só possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares, através do tempo.

No plano da História, os valores possuem objetividade, por­que, por mais que o homem atinja resultados e realize obras ue ciência ou de arte, de bem e de beleza, jamais tais obras chegarão a exaurir a possibilidade dos valores, que representam sempre uma abertura para novas determinações do gênio inventivo e criador. Trata-se, porém. de uma objetividade relativa, sob o prisma onto­lógico, pois os valores não existem em si e de per si, mas em rela. ção aos homens, com referência a um sujeito. Não se entenda, porém, que os valores só valham por se referirem a dado sujeito empírico, posto como sua medida e razão de ser. Os valores não

"ILUS O"' " uu UrRl:.l1 o 20')

podem deixar de ser referidos ao homem como sujei/o ulli"ersa{ de estimativa, mas não se reduzem às vivê ncias preferenciais deste ou daquele indivíduo da espécie: - referem-se ao homem que se re.aliza na História, ao processus da experiência hum ana de que participamos todos, consdentes ou inconsc ientes de sua signifi ca­ção universal.

Por serem referidos, por estarem sempre em rl'iflçâo com () homem, com o suj eito huma no em sua universalidade . é que di7.e­mos que a objetividade dos valores é rela/iva . que é uma objeti­vidade ill fieri na tela da História , mas não lhes falta illl(1era/i­I'idade ética, dcsdc que se considere a totalidade do processo estimativo que se confunde com o espír ito humano, revelanuo-se em si mesmo e em suas obras, pois, como observa Brightman. não há valores que possam ser apreciados plenamente sem se levar em conta todos os demais, a experiência pessoa l e a coleti va.

t claro que da compreensão dos dementos ax inl<igicos. em sua compenetração total, passa-se necessa riamente para a Meta ­física , que, como cosmovisão, condiciona as experiências valora­tivas. A Axiologia, como tal, não pode ir além dessa referência ao plano metafísieo, onde não poderia subs istir a disti nção ontog­noseológica entre ser e dever ser, por sc colocar, em toda a sua plenitude, o problema do ser enquanto S'! r. Por ou tro lado, () homem como único ente, que só pode 5(1 enquan to rea liza seu dever ser, revela-se como "pessoa" ou ' .,idade esp iritual, sendo a fonte, a base de toda a Axiologia. c dc todo processo cultural , pois (1essoa não é senão o espírito na autocor,sc iênc ia de seu pôr-se constitutiva mente como valor '.

Os psicólogos e sociólogos mostram bem como surgem os va­lores, qual a sua gênese e como se traduzcm no plano da cons-

I . "SÓ ct) /)(',),101/,), afirma Sc.'I lI· I ,I!t , piJ'IJel1l ~I t\ lngin.III,Imenlc t hl), I' uu l1Iá ~;

e tudu U lUiI; ,'" e hum e 1111111 1I1Ih: ... ruenlc (IJI rrfnçti l) com as pt'JJO/H," (l/icn, Irad . eil., vol. 1. pág. 1:!7 , )

Sohre o \,;onl,.ei!o Je pe ... .'~u .. 11 .• A nt rupulugl.J hlusoflC<I, Y , (o.·llliULL KEAU. _

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1.0 00 / .

2/0 Ml(j U EL JtEALE

ciência individual, assim como naquilo que podemos chamar de consciência social. Importa, porém, saber por qual motivo o que surge no plano da consciência individual e coletiva está em con­dições de entrelaçar o homem, vinculando-o a uma direção ou a um fim como "mNivo de conduta". Somente superando o elelllen­tQ propriamente empírico é que podemos ver a razão da obriga­toriedade dos valores, impondo-se como única via a análise da essência do homem.

O homem é o valor fundamental, algo que vale por si mesmo, identificando-se seu ser com a sua valia. De todos os seres, só o homem é capaz de valores, e as ciências do homem são insepa­ráveis de estimativas.

Um cientista, como o químico ou o físico, ao realizar uma experiência, não indaga do sentido ou do significado axiológico daquilo que se processa diante de seus olhos, mas procura apenas descrever o fenômeno em suas relações objetivas, embora esteja condicionado por modos de perceber ou teorias que implicam va­lorações. Um estudioso do mundo físico-natural não toma posi­ção, positiva ou negativa, perallte o fato, porque é seu propósito captá-lo em sua objetividade. Quando, porém, o homem, perante os fatos, toma uma posição, estima o mesmo fato e o situa em uma totalidade de significados, dizemos que surge propriamente o fenômeno da compreensão. Não se trata -de explicar o fenômeno nos seus nexos causais, mas de compreendê-lo naquilo que esse fato, esse fenômeno "significa" para a existência do homem: o aIo de valorar é componente intríllseco do ato de conhecer.

Quando, em suma, o homem toma uma atitude perante o fatO' e o insere no processo de sua existência , surge o problema do valor, como critério de compreensão. Renova-se, a esta altura, a distinção já apontada entre explicar e compreender. entre a explicação daquilo que já é dado e que apenas se procura captar e descrever tal como é, c a compreensão de algo na medida em que se integra em uma totalidade de significados, tal como deve ser (cf. págs. 243 c segs.) .

O problema dos valores, portanto, é problema de compreen­são e não de explicação. Só o homem tem esta possibilidade de integrar as coisas e os fenômenos no significado de sua própria

FI L O SO F IA DO DIREI T O 211

existência , dando-lhes assim uma dimensão ou qualidade que em si mesmos não possuem, senão de maneira virtual.

O mesmo homem pode realizar duas pesquisas distintas, uma, cujo conteúdo essencial não é uma valoração; e uma outra que tem o valor como seu principal objetivo. Daí os dois já apontados tipos de ciências, as físico-ma temáticas e as culturais: se ambas pressupõem atitudes axiológicas, só as segundas con­vertem o valor em conteúdo de seus enunciados ' .

A Pessoa como Valor Fonte

90, Quando se estuda o problema do valor, devemos partir daquilo que significa o próprio homem. Já dissemos que o homem é o único ser capaz de valore~. Poderíamos dizer, também, que o ser do homem é o seu dever ser. O homem não é uma simples entidade psicofísica ou biológica, redutível a Ulll conjunto de fatos explicáveis pela Psicologia, pela Física, pela Anatomia, pela Biologia. No homem existe algo que representa ullla possibilidade de inovação e de superamento. A natureza sempre se repete, se­gundo a fórmula de todos conhecida, segundo a qual tudo se transforma e nada se cria. Mas o homem representa algo que é um acréscimo à natureza, a sua capacidade de síntese, tanto no ato instaurador de novos objetos do conhecimento, como no ato constitutivo de novas formas de vida. O que denominamos poder nomotético do espírito consiste em sua faculdade de outorgar sentido aos atos e às coisas, faculdade essa de natureza simboli­zante, a começar pela instauração radical da lillguagem.

No centro de nossa concepção axiológica situa-se, pois, a idéia do homem como ente que, a um só tempo, é e deve ser, tendo consciência dessa dignidade. f. dessa auloconsciência que nasce a idéia de pessoa, segundo a qual não se é homem pelo mero fato de existir, mas pelo significado ou sentido da existência.

2. Como S~ vê, não n05 parece certo afirmar que só a Filosofi a implique uma

"tomada de posição" de natureza axiológica, pois é esta 11m3 condição inevit ável em toda forma de conhecimento. Quanto à tese: que reduz todas as ciências, 1Iinsela e ind istintamente, a meras "tomadas de posse" da realidade!. v. NOkllERTO 808810,

Teoria ddla Scítllza Giuridica, Turim. 1950. -o

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2t2 MIGUE L REAtE

Quando apreciamos o problema do homem, toda Ontologia se resolve em Axiologia, abrindo-se as perspectivas da Metafísica. Em verdade, é só do homem que sabemos que é e, ao mesmo tempo, deve ser, mas é admissível que a mesma questão seja pro­posta com relação à totalidade dos seres, donde a especulação inevitável sobre o sentido do ser enquanto tal. Esta ordem de pro­blemas desenvolve-se, porém, no plano metafísico, podendo ape­nas ser "pressuposta" ou "conjeturada" no momento da pesqui­sa puramente ontognoseológica'.

Repetimos que basta confrontar O que nos cerca, para impor­se a nosso espírito a certeza de que a natureza é transformada pelo homem para satisfação de seus fins. Sobre uma ordem de coisas najuralmcnte dadas, o homem constitui um segundo mun­do, que é o mundo da cultura. Comparando o mundo primitivo com o de nossos dias, imediatamente se verifica que a espécie humana, valendo-se dos conhecimentos obtidos na ordem do ser, dos nexos causais que ligam os fenÔmenos, pÔde subordinar conhe-

~ cimentos neutros a fins que não estavam nos fenÔmenos expli-<..t:> cados: é que o homem soube compreendê-los e integrá-los em sua

existência, como inovador da nalUreza. Só o homem é um ser que inova, e é por isso que somente ele é capaz de valorar. No fundo, chegaremos à conclusão de que o problema do valor reduz­se à própria espiritualidade humAna. Há possibilidade de valores porque quem diz homem diz liberdade espiritual, possibilidade de escolha constitutiva de bens, poder nomotético de s(ntese com liberdade e autoconsciência.

3, Note-se, para evitar equivocas, que, do ponto de visla em que aqui nos situa­mos, que é o ontognoseol6gico, "aO cabe examinar o problema das relações todas enlre ser e valor, e da possibi lidade de reduzir-se eSle àquele . Omognoscologicamente, "va­Iar" contrapõe-se a "ser". tomado este termo como "dado", ou como "realidade fáti­ca". A análise de outros aspectos da correlaçAo "ser" - "valor" cabe propriamente à Metafísica.

Se tudo que é deve ser, de tal modo que o valor possa ser visto como a raiz mesma do ser, eis uma questão que ultrapassa 0$ limites da Ontogno:;eologia, nos quais se en­quadram as pàginas deste Curso. É a mesma razão pela qual nos limitamos a afirmar a natureza dialética do mundo da cultura, isto t, do mundo que reflete a polaridade e a implicação ser-dever ser do homem, deixando de considerar O problema mais vasto da dialeticidade do ser, ou, por QUlras palavras, o caráter dial~~ico de quanto se processa tanto no plano da natureza como no da HiSTória .

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FILOSOFIA DO DIRrlTO 213

O psicólogo poderá instruir-nos sobrc a gênese e o desenvol­vimento das experiências axiológicas, mas cabcrá ao filósofo in­tegrar o processo psíquico e a explicação de ordcm consc icncioló­gica em uma compreensão total que ligará o problema do valor à fonte de que emana. O valor é dimensão do espirito humano, en­quanto este se projeta sobre a natureza e a imegra em seu proces­so, segundo direções inéditas que a liberdade propicia e atualiza.

Se examinarmos os acontecimentos históricos, vcri fi ca remos que compõem uma experiência feliz ou malograda nas conjumu­ras do tempo, com vitórias e com desenganos, mas sempre no propósito de dominar a natureza e de estabelecer formas de con­vivência, segundo uma paz ordenada. Tudo aquilo que o espiril o humano projeta fora de si, modelando a natureza à sua imagem, é que vem a formar paulatinamenle o cabedal da culiura . O pro­blema do valor leva-nos , ponanl o, direlamenle aos dominios da cullura. Não compreendemos, pois, leoria do valor como algo de formalmeme lógico e de esquemálico, quase como modelo cspcc­Iral, mas, ao contrário, só admilimos uma leoria do va lor inseri­da no processo histórico, como momem o ou expressão da expe­riência humana através dos tempos, Iraduzindo o ser mesmo do homem em loda a sua imprevisla alualidadc cr iadora .

O homem, cujo ser é o seu dever ser, conslruiu o mundo da cultura à sua imagem e semelhança, razão pela qual lodo bem cul­tural só é enquanto deve ser, e a "intencional idade da consc iência" se projeta e se revela como inlencionalidade Iransccndclllal na história das civilizações, isto é, como invariante axio/ógica fun ­damental.

90-A. Contra esta nossa tese de que a pessoa é o valor-folllc de todos os valores, foi-nos objelado G . ~ a pessoa é uma cal ego­ria histórica, ou seja, uma conquista da obra civilizadora da es­pécie humana e que, consoante conhecida afirmação de Durk­heim, "essa auréola de santidade da qual está hojc inveslida a pessoa humana é de origem social", devendo-se à evolução hi sló­rica a consciência social do valor da personalidade'.

Não contestamos, evidentemenle, esse dado hislóri co. Ill as não nos parece lícito confundir o aspeclO genético com o aspeclo

4. V. D URKHI 'IM , 11l1!émellls de Vafelln el J UK,éll/f'1I1 de Rt'olllt!, loc. dI.

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2t4 MI GU EL REALE

lógico da questão. A idéia de sociedade, longe de constituir um valor originário e supremo, acha-se condicionada pela sociabili­dade do homem, isto é, por algo inerente a todo ser humano e que é a "condição de possibilidade" da vida de relação. O fato de o homem só vir a adquirir consciência de sua personalidade em dado momento da vida social não elide a verdade de que o "social" já estava originariamente no ser mesmo do homem, no caráter bilateral de toda atividade espiritual: a tomada de cons­ciência do valor da personalidade é uma expressão histórica de atualização do ser do homem como ser social, uma projeção tem­poral, em suma, de algo que não teria se convertido em experiên­cia social se não fosse intrínseco ao homem a "condição trans­cendental de ser pessoa".

Enlfe pessoa e sociedade há, pois, uma correlação primor­dial, um vínculo de implicação e polaridade, de tal sorte que o homem vale como homem na sociedade, ainda que só milênios após tenha podido atingir a consciência de sua individualidade ética e de sua co-participação a uma "comunidade de pessoas".

A sociedade é essencial à "emergência dos valores", como diz Cuvillier', mas essa emergência é condicionada pelo valor transcendental e intrínseco do homem como tal.

Por outro lado, a pessoa, como aUlOconsciência espiritual, é o valor que dá sentido a todo evolver histórico, ou seja, o valor a cuja atualização tendem os renovados esforços do homem em sua faina civilizadora. Como expomos mais longamente em l:.x­periência e Cultura, se surgem sempre novos valores, não é me­nos certo que certos valores - como o da vida humana e, mais recentemente, o da ecologia -, uma vez revelados à consciência humana, tornam-se invariantes axiológicas, atuando universal­mente "como se" fossem inatos.

5. "A sociedade não é a rO IIl <: dos \ alo res: e a fume de emergência do'i valnre'i e