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Carlos Bernardo González Pecotche • RAUMSOL DE SÁNDARA O SENHOR EDITORA LOGOSÓFICA

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Pelo conteúdo que anima suas pá-ginas, O SENHOR DE SÁNDARA éum romance edificante, que abreao leitor um novo campo de possi-bilidades. Reconforta e instruiespiritualmente, porque de cadaepisódio, de cada movimento desua trama emerge um ensinamen-to instrutivo, um conhecimento detranscendência para a vida, ou umacerto digno de ser tido em contana conduta própria.

Tudo neste romance se move emobediência a um pensamento cen-tral, cujo objetivo é descobrir, parao entendimento que o lê atenta-mente, arcanos ignorados da na-tureza humana em seu fundoduplo, o físico e o espiritual. O lei-tor poderá apreciar nele a dife-rença exata entre dois mundos,que são também duas formas deviver e duas culturas. Seus perso-nagens, concebidos com naturali-dade, permitem ao leitor captarnitidamente o processo de rever-são que um casal humano segue,até culminar no reencontro cons-ciente com seus próprios espíritos.

ROMANCE PSICODINÂMICO QUE, AO MESMO

TEMPO QUE DELEITA, INSTRUI SOBRE OS SEGRE-

DOS MAIS PROFUNDOS DOS COMPORTAMEN-

TOS HUMANOS EM RELAÇÃO DIRETA COM OS

MAIS VARIADOS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA.

DESCREVE EM SUAS EXATAS DIMENSÕES DIVER-

SOS MOMENTOS ESPECIAIS DA VIDA HUMANA E

PROJETA, SOBRE O FUTURO DO HOMEM, A

VISÃO DE UM DESTINO DIGNO DE UMA AVANÇA-

DA CIVILIZAÇÃO.

Carlos Bernardo González Pecotche • RAUMSOL

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O SENHOR

EDITORA LOGOSÓFICA

ISBN 978-8570970664

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DE

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ENH

OR Esta obra tem por finalidade iniciar

o leitor nos conhecimentos maisdestacados do mundo tempera-mental e psicológico em que acriatura humana se debate, bemcomo guiá-la pelos caminhos lu-minosos da criação consciente,onde ela encontra a felicidade.Está também no propósito destaobra romper o tom repetitivo dalinguagem que caracteriza o pen-samento contemporâneo, no quetange às cruezas realistas quetanto fizeram baixar o nível moralda sociedade.

O SENHOR DE SÁNDARA é um romance de gênero novo, psico-dinâmico, que, enquanto exalta obelo e o fecundo do pensar esentir do homem e da mulher,afasta tudo o que os perverte edesnaturaliza.

É um chamado de atenção em fa-ce dos excessos de obscenidadede que os romancistas modernostanto se jactam, ao porem em rele-vo os mais denegridores casos daspaixões humanas.

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Esta obra tem por finalidade iniciaro leitor nos conhecimentos maisdestacados do mundo tempera-mental e psicológico em que acriatura humana se debate, bemcomo guiá-la pelos caminhos lu-minosos da criação consciente,onde ela encontra a felicidade.Está também no propósito destaobra romper o tom repetitivo dalinguagem que caracteriza o pen-samento contemporâneo, no quetange às cruezas realistas quetanto fizeram baixar o nível moralda sociedade.

O SENHOR DE SÁNDARA é um romance de gênero novo, psico-dinâmico, que, enquanto exalta obelo e o fecundo do pensar esentir do homem e da mulher,afasta tudo o que os perverte edesnaturaliza.

É um chamado de atenção em fa-ce dos excessos de obscenidadede que os romancistas modernostanto se jactam, ao porem em rele-vo os mais denegridores casos daspaixões humanas.

Pelo conteúdo que anima suas pá-ginas, O SENHOR DE SÁNDARA éum romance edificante, que abreao leitor um novo campo de possi-bilidades. Reconforta e instruiespiritualmente, porque de cadaepisódio, de cada movimento desua trama emerge um ensinamen-to instrutivo, um conhecimento detranscendência para a vida, ou umacerto digno de ser tido em contana conduta própria.

Tudo neste romance se move emobediência a um pensamento cen-tral, cujo objetivo é descobrir, parao entendimento que o lê atenta-mente, arcanos ignorados da na-tureza humana em seu fundoduplo, o físico e o espiritual. O lei-tor poderá apreciar nele a dife-rença exata entre dois mundos,que são também duas formas deviver e duas culturas. Seus perso-nagens, concebidos com naturali-dade, permitem ao leitor captarnitidamente o processo de rever-são que um casal humano segue,até culminar no reencontro cons-ciente com seus próprios espíritos.

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ROMANCE PSICODINÂMICO QUE, AO MESMO

TEMPO QUE DELEITA, INSTRUI SOBRE OS SEGRE-

DOS MAIS PROFUNDOS DOS COMPORTAMEN-

TOS HUMANOS EM RELAÇÃO DIRETA COM OS

MAIS VARIADOS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA.

DESCREVE EM SUAS EXATAS DIMENSÕES DIVER-

SOS MOMENTOS ESPECIAIS DA VIDA HUMANA E

PROJETA, SOBRE O FUTURO DO HOMEM, A

VISÃO DE UM DESTINO DIGNO DE UMA AVANÇA-

DA CIVILIZAÇÃO.

ISBN 978-8570970664

9 7 8 8 5 7 0 9 7 0 6 6 4

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ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES DO AUTOR

Intermedio Logosófico, 216 págs., 1950. (1)

Introducción al Conocimiento Logosófico, 494 págs., 1951. (1) (2)

Diálogos, 212 págs., 1952. (1)

Exégesis Logosófica, 110 págs., 1956. (1) (2) (4)

El Mecanismo de la Vida Consciente, 125 págs., 1956. (1) (2) (4)

La Herencia de Sí Mismo, 32 págs., 1957. (1) (2) (4)

Logosofía. Ciencia y Método, 150 págs., 1957. (1) (2) (4)

El Señor de Sándara, 509 págs., 1959. (1)

Deficiencias y Propensiones del Ser Humano, 213 págs., 1962. (1) (2) (4)

Curso de Iniciación Logosófica, 102 págs., 1963. (1) (2) (4) (6)

Bases para Tu Conducta, 55 págs., 1965. (1) (2) (3) (4) (5) (6)

El Espíritu, 196 págs., 1968. (1) (2) (4) (7)

Colección de la Revista Logosofía (tomos I (1), II (1), III), 715 págs., 1980.

Colección de la Revista Logosofía (tomos IV, V), 649 págs., 1982.

(1) Em português.(2) Em inglês.(3) Em esperanto.(4) Em francês.(5) Em catalão.(6) Em italiano.(7) Em hebraico.

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DE SÁNDARA

O SENHOR

Carlos Bernardo González Pecotche • RAUMSOL

7ª EDIÇÃOEDITORA LOGOSÓFICA

SÃO PAULO2007

ROMANCE PSICODINÂMICO

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Título do originalEl Señor de SándaraCarlos Bernardo González Pecotche

Revisão da traduçãoJosé Dalmy Silva Gama

Projeto gráficoMarcia Signorini

Produção gráficaAdesign

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

González Pecotche, Carlos Bernardo, 1901-1963. O Senhor de Sándara : romance psicodinâmico /

Carlos Bernardo González Pecotche (Raumsol) ; [revisão da tradução José Dalmy Silva Gama]. -- 7. ed. -- São Paulo : Logosófica, 2007.

Título original: El Señor de Sándara ISBN 978-85-7097-066-4

1. Logosofia 2. Romance argentino I. Título.

07-4754 CDD-ar863.080384

Índices para catálogo sistemático:

1. Romances : Pensamento logosófico : Literatura argentina ar863.080384

Copyright da Editora Logosófica

www.editoralogosofica.com.brwww.logosofia.org.brfone/fax: (11) 3885 7340Rua Coronel Oscar Porto, 818 – CEP 04003-004São Paulo - SP - Brasil,da Fundação Logosófica Em Prol da Superação Humana Sede central: SHCG/NORTE Quadra 704 – Área de Escolas CEP 70730-730 – Brasília – DF – Brasil

Vide representantes regionais na última página EDITORA AFILIADA

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PREFÁCIO

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Algumas palavras à guisa de prefácio facilitarão a

leitura reflexiva deste romance e permitirão que se perceba,

além do extraordinário e preponderante papel que os pen-

samentos desempenham nos diversos acontecimentos da

vida, as excelências do sentir humano, que, ao plasmar-se

em vivências reais, neutraliza as reações injustas ou ino-

portunas da personalidade.

É este um romance psicodinâmico. Assim o denomi-

namos porque obedece a uma concepção que move, com

vigor inabitual, os pensamentos e fatos que configuram a

conduta humana em múltiplos aspectos. Sua ação é tenaz

e conseqüente na idéia de forjar a imagem daquilo que o

homem pode ser e fazer, iluminado pelo conhecimento.

Desde o princípio até o fim, corre firme em suas pági-

nas o propósito de levar o leitor, através das inumeráveis e

variadas transições que os personagens experimentam em

suas mudanças mentais e psicológicas, à segurança de que

O SENHOR DE SÁNDARA poderá constituir-se em seu mais

fiel conselheiro. Consulte-o a todo o momento, e ele lhe

responderá após cada leitura com ensinamentos novos,

pois a força de sua expressão vai além de suas palavras.

Seja este romance propício aos que anseiam alcançar

um despertar lúcido e consciente neste mundo tão obscure-

cido pela falácia humana.

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DE SÁNDARA

O SENHOR

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Uma vez mais despontava o verão na paleozóicaserrania de Tandil.

Dom Túlio Larrecochea possuía ali um moderníssi-mo estabelecimento rural, que oferecia na boa estação umaspecto encantador. Convertido em habitual ponto de des-canso, reuniam-se nele numerosos grupos de pessoas vin-culadas a seus proprietários por laços de parentesco ou deamizade. Só excepcionalmente, um ou outro se privava detão alegres e reparadoras férias.

O imponente casarão de estilo basco, erguido sobreformoso parque, abrigava com folga os visitantes, ansiosospor sadio divertimento.

Dona Fermina, esposa de Túlio, entregara-se quaseque por completo à vida social. Afeita à ostentação de suafortuna, seus cinqüenta e cinco anos ainda não tinhamconseguido moderar os brios da passada juventude. Defigura atarracada e busto cheio, seu porte arrogante e amodalidade resoluta deixavam entrever um caráter enérgi-co e autoritário. Dominava com aprumo a ciência domés-tica, bastando um olhar para que a criadagem a entendes-se. Nesse sentido, sua técnica era de uma eficácia tal queos criados, extremando-se em suas obrigações, cumpriamà maravilha suas tarefas e cumulavam os hóspedes deatenções.

Dos três filhos daquele casamento, Nora, a caçula,preenchia o coração ambicioso da mãe, pode-se assim

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dizer, pois Florêncio e Cecília, já casados, pertenciam defato a outra época. Esbelta, de olhos glaucos e nariz gra-ciosamente arrebitado, índice de orgulho, a menina tinhaa adornar-lhe a figura, já quase adolescente, uma bastacabeleira de acentuado tom açafrão. Caprichosa e mima-da, qualquer psicólogo de mediana experiência poderiapredizer, sem hesitar, a tenaz influência que esse binômio,tão fortemente ligado a seu temperamento, haveria deexercer na sua vida.

As predileções dos hóspedes dividiam-se entre aequitação e o tênis. Havia, porém, os que preferiam acaminhada ou formavam grupos para comentar à parte,em amável conversação, as alternativas de algum proces-so político ou as perspectivas de negócios importantes,sem faltar, é claro, os mexericos sociais ou as alusõespícaras e atrevidas a algum caso amoroso recente.

Satisfeito o afã do passeio ou abandonada a raque-te, todos, pequenos e grandes, compareciam invariavel-mente à piscina, onde cumpriam suas horas de nataçãocom magnífica exibição de habilidades por parte dealguns, que saltavam do trampolim em divertidas pirue-tas. No restante do dia, partidas de bridge e pôquer entre-tinham particularmente os mais avançados nos anos,enquanto os jovens optavam pela música e pela dança,transportando para tão privilegiado ambiente campestreas elegâncias e o refinamento da vida urbana.

Um enxame de gente miúda passava boa parte dodia correndo como esquilos, bisbilhotando tudo, brincan-do ou planejando excursões que no mesmo instante reali-zavam, ora em conjunto, ora em pequenos grupos que sedeslocavam em diferentes direções para depois se encon-trarem em determinado lugar. Os garotos costumavamcaçar pássaros ou furtar ovos dos ninhos, que coleciona-

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vam “para uso escolar”, segundo diziam ao justificarem adiabrura.

Era familiar no ambiente a figura de Dom RoqueArribillaga, primo irmão de Fermina. Homem de tratoamável e escrupulosamente honesto, era tido ali em altaestima. Dono de uma fazenda em Balcarce, possuía tam-bém uma firma importadora de máquinas agrícolas naCapital Federal. A intensa atividade que cumpria nosnegócios tinha abalado visivelmente sua saúde, já que-brantada pelos achaques de uma velha lesão cardíaca.

Estava viúvo havia pouco mais de cinco anos, e deseu casamento lhe ficara um filho, Cláudio, nessa épocacom doze anos.

Cláudio era particularmente simpático. Emagre-cido pelo acelerado crescimento, sua comprida silhuetasobressaía entre os demais meninos. Animavam-lhe orosto, ainda infantil, dois grandes olhos escuros e expres-sivos, de extraordinário brilho. Uma mecha de cabelosfinos, luzidios e negros, obstinadamente caída para a fren-te, dava boa conta de suas expansões ao ar livre. Tinha orosto ligeiramente alongado, a tez morena e suave, e umsorriso afável sempre pronto a assomar-lhe aos lábios.Sem a inquietação e a audácia de outros rapazotes de suaidade, Cláudio apesar disso era andador e ativo, desfru-tando com avidez a vida ao ar livre, o que o levava a tirarum proveito verdadeiro de suas férias.

Acostumado de certo modo a uma vida retraída, jáque de costume não contava com outra companhia que ade seu pai e de Patrício, o mordomo de sua casa, Cláudionão trocava por nada deste mundo os veraneios na fazen-da de sua tia Fermina, a quem ele chamava assim nãopropriamente por causa de um vínculo de sangue, maspor disposição espontânea de seu pai e da própria

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Fermina, os quais, criados desde a infância sem maior dis-criminação de parentesco, haviam crescido mantendosempre um tratamento de irmãos. O fato de sentir-se alicomo em sua própria casa sem dúvida aumentava a pre-dileção pelo lugar, que à distância ganhava, em sua ima-ginação de menino, as formas de um paraíso maravilhosa-mente alegre e animado. Por isso, ele jamais titubeavaquando tinha de eleger o lugar para suas férias de verão.

Era habitual que ele partilhasse com Nora, a quempor iguais razões costumava chamar de “prima”, brincadeirase passeios, nos quais geralmente entravam outros meninosda fazenda. Mais por temperamento do que pelo mero fato delevar alguma vantagem em idade, ela exercia sobre Cláudioum acentuado domínio. Tirando proveito, sem dúvida, dapredisposição de seu primo para a amabilidade e a condes-cendência, punha em prática a sua, autoritária e despótica.

Corriam cálidos e aprazíveis os dias daquele vera-neio na estância de Dom Túlio, oferecendo sadios prazerese distrações a todos.

Certa manhã, o sol despontou lançando chispas.Irritado talvez por sua interminável vigília, tirou da camaa todos como por arte de magia, não lhes restando outrasaída senão suportar seu mau humor desde bem cedo.

Cláudio e Nora, sentindo talvez como ninguém oanúncio daquela jornada de calor, encontraram-se noamplo refeitório, ainda silencioso, e festejaram o inespera-do madrugar com um farto desjejum. Depois, bem-dispos-tos e alegres, decidiram sair a caminhar, tomando comesse propósito a direção do riacho. Como sempre, acom-panhava-os Sultão, belo cão pastor de ovelhas, incansávelseguidor das crianças em suas buliçosas aventuras.

Com andar inquieto, chegaram a um bosque deparaísos e acácias, que se estendia por trás dos grandesgalpões destinados às máquinas agrícolas. Dali, o denso

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arvoredo descia rápido, continuando em brusco declive atéum riacho, cujas águas rolavam frescas e alegres à suasombra.

Os meninos desceram a encosta aos saltos, deten-do-se à beira da água, onde começaram a juntar pedri-nhas coloridas. Mas não durou muito aquela concórdia,pois Nora, logo se aborrecendo, fez voarem as que amon-toara em sua saia e se dispôs a incomodar Cláudio comsua ostentosa falação. A cavalo sobre uma pedra, e aomesmo tempo dando repetidos golpezinhos na água comum ramo, falou-lhe pela centésima vez da viagem àEuropa que logo, logo, faria com seus pais. Já era umasenhorita, segundo dizia, e tinha chegado a sua vez de rea-lizar a turnê que sua irmã Cecília havia feito um dia.

Criada entre maiores e com excessiva tolerância,Nora mostrava certo ar de suficiência que apoucava a pos-tura de seu primo, ainda singela e ingênua. Os fumos dou-rados do consentimento haviam propiciado nela, semdúvida, a tendência a se impor.

Absorto na coleção de seixos, Cláudio a escutavasem maior atenção. Subitamente, ele se deteve e, com inu-sitado acento varonil, disse à sua prima:

– Escute, Nora... Sabe de uma coisa? Quando eufor grande, percorrerei os mundos.

Surpresa e sufocada pelo riso, Nora replicou:– Você disse os mundos? Que mundos?– Está rindo de quê? Boba! Não sabe que existe um

Velho Mundo... e um Novo Mundo... e um mundo micros-cópico... e o mundo...

– E o outro mundo! – arrematou a menina, cortan-do-lhe a palavra; e, comemorando sua própria tirada comuma sonora gargalhada, advertiu: – Vá com cuidado, por-que também pode acontecer você viajar até lá, e aí eu nãosei se consegue voltar...

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Ofendido pelo tom debochado da prima, Cláudio ati-rou na água seu punhado de seixos e levantou-se, dando-lhe as costas. Não queria continuar a discussão com ela.

Em seguida, buscando novo passatempo, começou asaltar sobre as pedras que jaziam semi-afundadas no leito doriacho, passando de uma para outra até alcançar a margemoposta, com risco de um escorregão, por causa das algas que aelas sempre se aderem. Dali, voltou a repetir a façanha em sen-tido inverso. A brincadeira fez que ele esquecesse rapidamenteo aborrecimento, e propôs à prima competir com ele. Quando secansaram, decidiram tirar os sapatos e deleitar-se, afundandoas panturrilhas nas águas claras e saltitantes do riacho.

Enquanto desfrutavam tudo aquilo, entregues a tão ale-gres improvisações, Cláudio perguntou a Nora com interesse:

– Que aconteceu com a vaca mocha? Não vi ela nafazenda este ano.

– Está na chácara de Dom Pedro – respondeu ela,que emendou de pronto, veloz como a idéia que lhe acaba-va de ocorrer: – Não quer ir ver?

– Iurruuu!... – Cláudio exclamou, imitando o gritoindígena. – Vamos!

E, sem pensar duas vezes, saíram a toda a pressa.Dom Pedro, o velho e muito estimado Dom Pedro

Laguna, havia sido até um ano atrás capataz da fazenda deTúlio Larrecochea. Pesando-lhe já a responsabilidade dessetrabalho, decidiu deixá-lo, ocupando desde então uma casade sua propriedade, que fazia limite com aquela. Morava aliem companhia de seu filho Bartolomé, médico estudioso,que recentemente se radicara na região com sua família,devido à saúde transitoriamente delicada de sua filhinha.

Dom Pedro era homem de larga experiência no cam-po, instruído e perspicaz. Forte como um carvalho, bondo-so e escrupulosamente honrado, soubera granjear a consi-

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deração e o respeito dos que tinham convivido com ele. Aafeição pela vida do campo o havia levado a escolher aque-le trabalho, e disso nunca pareceu arrepender-se.

Nessa mesma manhã, quando os dois meninoschegaram à chácara do velho capataz, ele se achava ocu-pado em podar a ramagem excessiva de algumas plantas.Ao vê-los, abandonou com gosto sua tarefa e os convidoua entrar, aplicando um sermão carinhoso em Nora, por terela passado tanto tempo sem visitá-lo.

– Tem razão, Dom Pedro – a menina disse, tentan-do desculpar-se, – mas temos estado tão entretidos nafazenda, que me passou despercebido.

– Não, não!... – protestou ele com fingida energia. –O que acontece é que agora ninguém liga mais para mim...

– Por favor, Dom Pedro, não diga isso! Nós semprelembramos do senhor! Papai até tem o propósito de convi-dar o senhor, num dia desses, para uma churrascada...

– Não deixe de ir, Dom Pedro! – Cláudio rogou, comespontaneidade.

– E quando for – Nora adicionou, muito aduladora,– não esqueça o violão. O senhor sabe como papai gostadas suas melodias e de seus ritmos regionais*.

– Oh!... Eu estou velho para isso, menina Norinha!Mas, se Dom Túlio me convidar, não vou ter mesmo outroremédio que não seja agradar a ele.

Sultão não parava, enquanto isso, de fazer festapara Dom Pedro, que com agrado devolvia ao fiel cão suasefusões. Durante os últimos anos passados na fazenda,Sultão havia sido seu cachorro favorito.

– Este aqui é que não me esquece! – disse satisfei-to. – A gente está sempre vendo ele por aqui.

Com ruidoso alvoroço pela presença dos desconhe-

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(*) N.T.: No original, “melodías y ritmos criollos”.

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cidos, nesse momento se aproximava em direção a eles umbatalhão de gansos, alinhados em fila indiana, que volta-vam de seu passeio matinal. Ao compasso de seus carac-terísticos grasnidos, passaram muito cheios de si pertodos visitantes, gingando seus pesados corpos. Com asasas coladas à plumagem, pareciam arremedar essesrapazes que passam assobiando com as mãos nos bolsos.

Dando um salto brusco em direção a eles, Nora osespantou, divertindo-se com a correria estabanada dosbichos, que, agora com as asas abertas em atitude de levan-tar vôo, começaram a descrever curiosos semicírculos sobrea extremidade de suas membranas, como se executassemum passo de valsa.

Atraída pelo riso dos meninos e pela inusitada baru-lheira dos palmípedes, Griselda, a encantadora neta deDom Pedro, surgiu da casa e, ao vê-los, aproximou-se quaseque correndo.

Uma grande surpresa experimentou Nora, que nãoesperava achar-se ante aquela bonita criatura.

Griselda era formosa, indiscutivelmente. Embele-zava-a ainda mais sua delicadeza, que, realçada por umaexpressão limpa, cândida, fazia dela uma menina extrema-mente agradável.

Ainda não havia completado os dez anos. Uns cabe-los sedosos, quase louros e levemente ondulados, forma-vam-lhe uma dourada moldura em torno do rosto, roçando-lhe os ombros. Seus olhos castanho-claros, de longuíssimoscílios, e o expressivo desenho de seus lábios, revelavamuma modalidade afável e bondosa.

Se grande foi a surpresa de Nora, Cláudio sentiu-se,ao contrário, sob os efeitos de uma suave emoção, mesclade turbação e simpatia; daí que a princípio mal se atreves-se a olhá-la.

Um pequeno e comum incidente veio tirá-los daque-

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le embaraço, quando Sultão entrou em luta com um gato,que, com o rabo eriçado e rígido e o lombo arqueado, bufa-va e se defendia a unhadas, encarapitado num pessegueiro.

As risadas com que os meninos festejaram os sal-tos cada vez mais impetuosos do ovelheiro, que sem dúvi-da já sentia entre os dentes o atávico adversário, favorece-ram a cordialidade, estimulada ainda mais por DomPedro, que os convidou a visitar o viveiro, onde os coelhos,aos quais dedicava especial estimação, eram criados den-tro das mais estritas normas de alimentação e higiene.

Dom Pedro levou consigo uma cesta repleta de hor-taliças, para que os meninos se deliciassem ao vê-loscomer.

– Vocês vão ver que lindos são os filhotes das últi-mas ninhadas! – dizia, entusiasmando-os. – Este anoderam muitas crias.

– Eu gosto muito desses animaizinhos, Dom Pedro!– Cláudio exclamou. – Que boa idéia a gente ir ver eles! Nãotem coelhos na fazenda de meu tio nem na do meu pai.

Jogando o topete para trás, num gesto presumido,e com muito comedimento, ofereceu-se para levar a cesta.

A carga se mostrava um tanto pesada para ele. Nãoobstante, agüentou-a com brio até que Dom Pedro, calcu-lando que o mocinho já havia feito o bastante em defesa desua hombridade, voltou a carregá-la.

Na coelheira, as crianças admiravam os formososexemplares guardados em gaiolas, a maior parte comcrias, e os cômodos cercadinhos onde os filhotes de váriasraças, tanto mais graciosos quanto mais novos, formiga-vam sem cessar ao redor dos frescos manjares que lheseram atirados por turnos.

Griselda, vendo quanto agradavam a Cláudio, apro-ximou-se deles e, escolhendo dentre todos o melhor, ofere-ceu-o com inocente satisfação.

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– Gosta deste? Tome!Com alegria nos olhos, Cláudio fitou primeiro o

filhote e depois a menina, estendendo em seguida as mãospara pegar aquele estremecido e rebelde montinho depêlos brancos e suaves.

– Que lindo!... Como é lindo!... – ele repetia, acari-ciando-o.

– Quer levar? Meu avô vai ficar muito alegre. Vocêpode criar ele manso e também pôr um lindo nome nele...

– Bem que eu gostaria. Mas, que pena!... não tenhoonde pôr ele.

A generosa atitude de Griselda contrariou Nora,testemunha daquela cena. Sem poder conter-se, arrancoucom gesto decidido o animalzinho das mãos de Cláudio eo devolveu com energia a seu cercado.

– Por que fez isso? – o garoto protestou, entre abor-recido e surpreso.

Nora, sem dar tempo a nada, e como se experimen-tasse uma queimação interna, voltou-se para Griselda ecensurou-a com aspereza:

– Que idéia, pegar nesses bichos sujos!– Sujos, os coelhinhos? – Griselda replicou, sem

zangar-se. – Mamãe sempre anda com eles e me dá algunspara eu acariciar...

O sorriso irônico de Nora cortou-lhe a réplica.Silenciosa e no fundo envergonhada, a pequena examinousuas mãos e lançou uma olhadela para seu aventalzinhobranco de cambraia. Como visse que tudo estava emordem, sentiu-se satisfeita, talvez porque a comprovaçãotivesse sido feita sob a fiscalização daquele olhar exigentee intempestivo.

Não passou inadvertido a Dom Pedro esse inciden-te, próprio de crianças, e para apagar seus efeitos propôsvisitarem o curral das vacas e tomarem leite recém-tirado.

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– Oba! – exclamou Nora, batendo palmas. – A gentequeria mesmo ver a vaca mocha!

– Vai ser um pouco difícil, menina Nora. A sapequi-nha costuma ir longe, buscando os melhores pastos parao bezerro.

– Ela continua sempre tão mansa como era, DomPedro? – Cláudio perguntou, não refeito ainda do maumomento por que havia passado.

A resposta não pôde chegar a seus ouvidos, porqueNora, pegando-o por uma das mãos, obrigou-o a correratrás dela, com o tolo pretexto de chegarem ao curralantes dos demais.

Não foi fácil para Cláudio desprender-se de suaincorrigível prima. Tomando, porém, a contra-ofensiva,desfez-se em protestos ao chegarem, repreendendo-aduramente, o que lhe valeu uma chuva de censuras e nãopoucos olhares de desprezo, enquanto permaneciam àespera de Dom Pedro, que se aproximava sem pressa comsua neta.

No estábulo, um peão dispunha-se a cumprir atarefa de ordenhar. Dom Pedro havia mandado um recadoa sua nora para que as crianças fossem convenientemen-te atendidas. Por isso, eles ali mal tinham chegado e já acriada lhes levava, juntamente com tudo o indispensável,uns deliciosos pasteizinhos.

– Que delicioso está o leite! – disse Nora, esvazian-do o copo com ânimo de repetir.

Cláudio bebeu o seu com menor entusiasmo e, aover que Griselda não participava, perguntou:

– Você não quer leite?– Não – ela respondeu, sorrindo. – Tomei tarde o

café da manhã.Pelo caminho arborizado, que desde a casa se esten-

dia na distância, Dom Pedro viu sua nora aproximar-se.

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– Lá vem vindo sua mãe, minha pequena – ele disseà neta, com carinho.

A menina, que nesse instante talvez desejasse maisque em outros a companhia materna, não esperou mais ecorreu a seu encontro.

Nos dias cálidos de verão, um umbu anoso fazia asdelícias daquela paragem. Sobre suas raízes corpulentasse assentou Dom Pedro, a observar a aproximação de mãee filha. Cláudio fez o mesmo, com mostras de agrado e deadesão a ele.

Desejosa de partir, Nora começava a dar sinais deimpaciência.

– Por que você se senta? – perguntou secamente aCláudio. – Já é hora de voltar.

– Mas a fazenda não está longe daqui, meninaNora! – Dom Pedro exclamou. – Além do mais, se vocêsestão cansados ou quiserem chegar cedo, nossos cavalosestão aí, à disposição...

– Não é preciso, Dom Pedro. Estou preocupada écom mamãe, que poderá estar intranqüila. Contra nossocostume, hoje saímos sozinhos e pensamos em voltar logo.

Nesse momento, chegavam Griselda e sua mãe. Aconversa se interrompeu.

A nora de Dom Pedro, com seu particular afeto, ofe-receu aos meninos uma cálida acolhida, reiterando-lhesseu agrado por aquela visita.

– Tenho certeza de que vocês fizeram Griseldamuito feliz, ela que está sempre tão sozinha – disse-lhes,entre outras coisas.

Dona Laura Estévez Ursain, mãe de Griselda, per-tencia a uma honorável família portenha. Havia-se casadomuito jovem e aparentava não ter ainda trinta anos. Erabondosa, atraente e, além de contar com uma respeitável

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cultura, tinha grande confiança em si mesma. Griselda separecia muito com ela, já que fisicamente pouco havia her-dado dos Lagunas, morenos e com traços típicos doshomens ligados faz tempo ao solo argentino.

Também em vão, como o de Dom Pedro, foi o convi-te que ela fez aos meninos para que prolongassem sua visi-ta. Decidida a partir, Nora estendeu-lhes a mão e, despedin-do-se com um sorriso forçado, encaminhou-se para a saídada chácara. Estava contrariada. Entretanto, depois de unspassos se deteve à espera de Cláudio, que, mais solícito eatencioso, ainda prolongava sua despedida afetuosa.

Obedecendo a um impulso involuntário, Griselda oacompanhou alguns passos, mas foi detida por sua habi-tual timidez.

Chegando Cláudio junto a Nora, partiram apressa-damente, mas nada impediu que ele, varão afinal, voltas-se a cabeça várias vezes para seus amigos, acenando coma mão direita numa saudação, gesto que repetiu a partirde certa distância.

Calculando que já se tinham aproximado da fazen-da o bastante, ambos decidiram descansar, demorando-secom esse objetivo junto a um moinho que alimentava ostanques aonde os animais iam a beber. Sentaram-se alisobre uns troncos grossos estendidos no chão. Nesse lugar,a sombra dos grandes cedros, cujas copas unidas mal dei-xavam a luz filtrar, colaborava com a terra úmida em silen-ciosa e aprazível refrigeração. Para um dia tão quente,aquilo se oferecia a eles com as delícias de um oásis.

Não obstante, o mau humor de Nora persistia.Subitamente, querendo talvez imitar o tom áspero comque algumas vezes ouvira os mais velhos falarem, desaba-fou com Cláudio:

– Eu não sei o que você vê nessa garotinha paraque ela chame tanto sua atenção!

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– O quê?... Ficou louca?– Louca, eu?– Você mesma! Mas que pergunta! O que eu vejo

nela?... Vejo que é bondosa... e que me dá muita pena quenão tenha amigos.

Levado pelo influxo de um sentimento generoso,freqüente nele, Cláudio acrescentou:

– Por que não convidamos Griselda para brincarcom a gente na fazenda?

– Convidar para ir à fazenda?! Ela?! Como você temcoragem, se ela não é de nossa condição? Mamãe não iagostar nada se soubesse disso!

– Não acho que ela ia achar ruim, Norinha...Griselda é neta de Dom Pedro...

– Ah! Ah!... E quem é Dom Pedro? Você é cabeçudo,Cláudio, muito cabeçudo! Diversões é o que não falta paraGriselda na chácara dela. Além do mais, ela mesma nãodisse que vai com o pai dela até a vila para tomar lições demúsica? – E, lançando mão de seus dramáticos recursos,exclamou: – Oh! Você é insuportável!

Emburrados, sem se reconciliarem, prosseguiram amarcha pela trilha deixada pelos carros que diariamentefaziam o percurso entre o povoado e o moinho. Sultão osseguia, sem que sua nobre cabeça de cão conseguisseentender as mudanças que se operavam nas de seus donos.

Cláudio se ressentia da falta de companheirismo desua prima. Mesmo assim, tratou de apaziguá-la, propon-do-lhe uma nova excursão para a tarde.

– Não vou! – foi a resposta taxativa. – Não querosair com você, nem me interessa!

Para felicidade dele, já estavam chegando ao pomar,onde outras crianças se reuniram a eles, acossando-os comperguntas e contando as novidades. Nora evitou comentários

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e, pretextando urgência para cumprimentar uns tios queestavam sendo esperados na fazenda naquela mesmamanhã, deu-se pressa em entrar no casarão.

Erguida sobre seus diminutos pés, Griselda tinhapermanecido imóvel, com o olhar fixo nos meninos dafazenda, até eles desaparecerem entre as árvores do cami-nho. Em seguida, voltando-se com o modo displicente queas crianças adotam quando são contrariadas, foi aoencontro de sua mãe. Pensativa, as mãos entrelaçadasatrás do corpo, percorreu um trecho, a princípio comdesânimo; mas logo, como se outros pensamentos a inci-tassem, acelerou o passo até chegar correndo junto aDona Laura.

Pendurada em seu braço, do qual amiúde se solta-va para andar sozinha a pequenos saltos, a fim de satisfa-zer a inquieta mobilidade infantil, Griselda foi narrandoem partes, durante o trajeto até a casa, algumas impres-sões colhidas naquela manhã.

Quando chegaram, sentaram-se ambas ao frescorda ampla varanda, que fazia as vezes de pórtico.

A casa de Dom Pedro luzia o branco caiado de suasparedes por entre a moldura alegre da vegetação. Suaarquitetura antiga havia-se renovado notavelmentemediante uma esmerada reforma, ganhando em comodi-dade e aparência. Tinha somente um andar e era rodeadade janelas em verde-claro, defendidas por negras barrasde ferro. A simplicidade e a monotonia de seu traçadosimétrico animavam-se com o detalhe das plantas e dasflores, nas quais Dona Laura vertia seu bom gosto, com a

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escolha de variedades apropriadas e de lugares ondemelhor cumprissem sua função decorativa.

Durante o verão, a varanda era o lugar preferido, eainda o era nos serenos dias invernais, quando as árvores,despojadas de sua folhagem, permitiam o deslocamentodo manto solar sobre a carreira de seus velhos mosaicosde mármore.

Griselda, em cuja mente pareciam revolutear cominsistência os mesmos pensamentos, perguntou a sua mãe:

– Por que será que ficou daquele jeito comigo?– Quem?... Norinha?– Sim, Nora.– Oh, filha! Você não deve levar tão a sério essas

coisas – respondeu Dona Laura, procurando afastar delaaquela impressão. – Nem todas as pessoas são iguais, e asatitudes dessa menina obedecem simplesmente a suamaneira de ser.

Sem compreender muito bem o que escutara,Griselda acrescentou:

– Que pena, mamãe!... Mas Cláudio não é assim.Ele, sim, é que é bom e carinhoso.

– Deve ser, sem dúvida – aprovou a senhora; mas,compreendendo que custava à menina explicar para siaquela atitude de rechaço com que havia sido tratada, adi-cionou: – Não esqueça, querida, que cada família tem seusparentes e amigos com quem convive. Nossos vizinhos sãogente muito rica e vivem, naturalmente, com muito luxo.Nós, não sendo de sua mesma condição, não podemosconviver habitualmente com eles.

– Por quê?– Porque muitas coisas impedem isso, filha, e uma

delas, talvez a principal, é a falta de dinheiro para compe-tir com eles em luxos, gostos e caprichos.

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Do interesse com que escutava sua mãe, Griseldapassou à perplexidade, o que a impediu de objetar.

Dona Laura explicou-lhe, então:– Para conviver com eles, filhinha, a gente tem de

ter vestidos luxuosos, que a moda exige e a sociedadeadota para exibir de acordo com a ocasião.

Num gesto maquinal, Griselda olhou para suasroupas e, com encantadora inocência, perguntou à mãe seos vestidos que usava quando ia à cidade não eram boni-tos o suficiente.

Aproveitando essa insinuação, e tratando de tirarpartido de seu argumento, a boa mãe lhe explicou que,com efeito, seus vestidos eram muito bonitos, mas não detodo adequados às festas e às exigências que configura-vam a vida de Nora.

Após um suspiro, que foi a forma involuntária de lin-guagem com que a menina expressou seu pesar, exclamou:

– Eu ia gostar tanto de brincar com eles, mãezinha!– Não se preocupe muito com isso – Dona Laura

então a consolou. – Nora é uma criança, e as criançascomo você pensam uma coisa hoje e outra amanhã. Quemgarante que eles não vão voltar logo procurando você, comoutra disposição de ânimo?

Griselda passou o resto do dia menos alegre que decostume. Anoitecia quando seu pai voltou da cidade,aonde ia diariamente para atender em seu consultório. Aointeirar-se da contrariedade vivida pela menina, aconse-lhou sua esposa a levá-la mais cedo para a cama, para queo sono dissipasse aquela primeira luta que seus ternossentimentos enfrentavam.

Bem depressa a criança adormeceu. Seu espírito,porém, extremamente comovido, naquela noite ofereceu àsua dona um sonho original.

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Levada em lúcido vôo, Griselda viu-se de imediatona luxuosa mansão de seus vizinhos, transformada emNora. Em sobressalto, ia percorrendo corredores e aposen-tos, até que se deteve no dormitório dessa menina, muitodiferente do seu. Contemplou extasiada aquele recintoencantador, por cujas amplas janelas a luz entrava comímpeto. Aqui e ali, colocados com inimitável acerto, sun-tuosos móveis pareciam oferecer à sua dona a beleza e acomodidade neles reunidas. De um lado, um grandearmário sedutoramente entreaberto deixava ver primoro-sos vestidos e sapatos, numa variedade invejável de mode-los e cores. Também as paredes atraíam o olhar, por seusquadros artísticos ajustados aos gostos e à vida de umaadolescente. E não faltavam as atraentes estantes, reple-tas de livros profusa e lindamente ilustrados. Enfim, osmais refinados detalhes adornavam aquele quarto comtoques principescos. Não obstante, o pensamento queguiava o sonho de Griselda fê-la afastar-se do que via ebuscar Cláudio por toda parte, até que finalmente oencontrou sentado num banco do alpendre. O rosto dojovem revelava inquietação e, a julgar pela freqüência comque olhava para um e outro lado do extenso parque, seriade dizer que esperava por alguém. Esquecendo a meta-morfose operada em sua pessoa, a menina se aproximou,mas ele, ao vê-la, levantou-se com desdém, descendo sempressa os poucos degraus que uniam o alpendre ao jar-dim. Comovida com aquele descaso, Griselda voltou-se e,com o olhar aflito, saiu em busca do oculto refúgio que lhepermitisse desafogar sua dor. Tudo lhe era estranhonaquela casa, e, ainda que não pudesse ser mais formosae cobiçada, teve a impressão de que alguém a espiava portrás dos móveis e poltronas, e que suas expressões e tre-jeitos zombeteiros pareciam figuras de densa fumaça que

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se desvaneciam ao serem vistas. Turbada pelo desespero,ela começou a chorar e, angustiada, despertou. Com mos-tras de agitação, ergueu-se no leito, afastou com lentidãoda testa os cabelos graciosamente revoltos e exalou umprofundo suspiro.

Que alívio, Griselda!... Felizmente havia sido umsonho!

Livre de sua perplexidade, a menina sorriu. Sentia-se novamente em si mesma, com a alegria de seguir sendoa Griselda de sempre.

Uma tarde, quando as sufocantes horas da sestahaviam ficado para trás e a vida na fazenda voltava a seuritmo normal, Nora procurava Cláudio sem achá-lo.Impelida por um súbito pensamento de receio, encami-nhou-se para a chácara de Dom Pedro, certa de que ali oencontraria.

Não se havia enganado. Avistou-o muito antes dechegar aos limites da quinta, em companhia de Dom Pedroe Griselda. Os três caminhavam ao longo de um milharal,que já verdejava ansioso por ganhar altura.

Cortando caminho, ela chegou até a cerca de arame,de onde chamou o garoto com mostras de urgência, comose realmente algo a apressasse. Cláudio suspeitou o tem-poral iminente e, cedendo ao impulso de obedecer, correuem direção a ela. A pressa fez que esquecesse tudo; dessavez não houve escusas nem despedidas amáveis.

Isso não impediu que Dom Pedro, passado o pri-meiro efeito da brusquidão, com simpático gesto de acolhi-mento e camaradagem, acenasse bem alto com sua mão

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direita, convidando Nora para entrar. Ela recusou e, semdispensar-lhe a menor benevolência, afastou-se comCláudio.

Nora não podia tolerar que aquele a quem semprehavia submetido a seu capricho agora lhe escapasse, ouque agisse por conta própria quando lhe aparecesse oca-sião propícia. Por isso, com todos os ares de um justo abor-recimento, acusou Cláudio de falta de companheirismo.

– Ih! – replicou ele. – Você sempre pensa umasbobagens... Me deu vontade de sair e caminhar, só isso!

– Você não está falando a verdade!– Nora! – Cláudio gritou, perdendo a paciência. –

Por acaso eu não sou livre para ir aonde eu quiser?– Sim... claro!... E é por isso que agora você só

pensa em ir à chácara de Dom Pedro.Foram inúteis as explicações do garoto, naturais e

singelas: sua prima não se conformava. Por último, ocor-reu-lhe prometer que não voltaria mais à chácara, e comisso conseguiu apaziguá-la.

O cumprimento daquela promessa se fez cada vezmais duro para Cláudio. A falta de liberdade para mover-se estava intolerável, principalmente quando lhe vinha àmente a recordação de Griselda. Imaginava-a triste e priva-da das alegrias que as brincadeiras em conjunto oferecem.

Chegou, contudo, a oportunidade de emancipar-se,ainda que fosse só por algumas horas, e ele a aproveitou.Certa manhã, alegando pretextos fúteis, não quis ir numaexcursão às colinas, da qual participariam adultos e crian-ças. Resolvido a sacudir de si suas limitações, montou acavalo e logo se viu nas imediações da casa de Dom Pedro.

Sultão havia-se adiantado e, a julgar pela alegriacom que o animal avançava rumo a um ponto fixo, saltan-do e acelerando os movimentos de sua cauda, Cláudio com-

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preendeu que o nobre cão havia descoberto seus morado-res. Seguindo na mesma direção, não tardou em avistarGriselda, que acompanhava sua mãe no cuidado das flores.

A timidez do menino ao saudá-las se desvaneceucomo por encanto, com a acolhida carinhosa que lhe dis-pensaram. Desmontou num salto e amarrou seu cavalo auma estaca. Depois, por insistência de Griselda, que aca-riciava Sultão com entusiasmo, estimulou o animal a mos-trar algumas de suas habilidades.

Com as calças e botas de montar, Cláudio aparen-tava maior estatura e corpulência. A menina notou isso enão demorou em dizer:

– A última vez que você veio, parecia que eramenor.

– Acho que você está enganada, Griselda – ele con-testou. Refletindo, porém, em seguida adicionou: – Mastalvez você tenha razão; meu pai diz que tudo o que eucomo entra logo no meu comprimento.

– Que engraçado! Papai também diz que estou espi-chando que nem uma espiga.

Enquanto riam, cada um fazendo inocente chacotade sua figura, Dom Pedro foi se aproximando, puxandoseu tordilho pelo cabresto.

– Vai sair, Dom Pedro? – Cláudio perguntou, avan-çando em sua direção.

– Sim, meu amigo; tenho que dar uma vistoriada nocampo.

– Não quer que eu acompanhe o senhor?– Como não, rapaz? Pois venha!E, com satisfação, Dom Pedro apressou-se em

arrear seu cavalo.Com suas bombachas largas, suas botas de caval-

gar gastas pelo uso e a camisa folgada, Dom Pedro Laguna

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revivia o gaúcho que animou, com perfis de epopéia e mito,o cenário interiorano, salpicado de tradições e lendas.

– E sua prima? – perguntou a senhora Laguna aCláudio, voltando ao grupo do qual momentaneamente sehavia afastado.

– Saiu cedo numa cavalgada.– Que novidade você não ter ido!– Preferi sair sozinho, senhora – respondeu o meni-

no, enrubescendo um pouco.Dom Pedro parecia já disposto a montar. Voltando

de súbito para sua neta a cabeça prateada, semi-ocultasob o chapéu, disse-lhe risonho, saboreando a surpresa:

– Não quer vir com a gente, meu pimpolhinho?– Claro que quero, vovô! – a menina respondeu, ale-

gremente. – Posso ir, mamãe?– Deixe ela vir, senhora... – Cláudio rogou, entu-

siasmado com a perspectiva. – Não a prive desse passeiozinho, minha filha! –

intercedeu Dom Pedro. – Daremos uma volta curta.– Como posso dizer não?! – Dona Laura acedeu,

sorrindo, tão alegre como eles. – Pelo visto, vou ter de passar a manhã inteira enci-

lhando... – resmungou o bom Dom Pedro, fingindo descon-tentamento.

Sua reclamação era desmentida pela diligência comque se pôs a colocar a rédea no cavalo que um peão aca-bava de trazer-lhe, belo exemplar de potro zaino que eledera de presente a sua neta quando ela chegou à chácara.Cláudio secundava-o na tarefa.

Para sair da quinta, Dom Pedro escolheu a portei-ra lateral que dava para um caminho lindeiro. Os doismeninos avançaram por ele, mal contendo o sentimentoque pugnava por lhes saltar do peito, numa explosão de

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júbilo. Iam juntos, ao lado de Dom Pedro, que se divertiaa escutá-los com simulada indiferença.

– Você gosta do campo, Griselda?– Muitíssimo; se bem que Buenos Aires também me

agrada – a menina respondeu.– Faz quanto tempo que você vive em Tandil?– Pouco. Desde o outono. Viemos porque o avozinho

estava muito só e, também, eu precisava me recuperar.Papai e mamãe diziam isso.

– E você, não?– Eu não entendo bem essas coisas.– Comigo é igualzinho; papai está sempre temeroso

por minha causa. Você nem imagina quantas vezes ele melevou ao médico sem necessidade...

Quase em seguida, Cláudio disse com pesar:– É uma pena que o verão não dure o ano todo! – E,

voltando-se para Dom Pedro, completou: – Por mim, euviveria no campo para sempre!

Este se pôs a rir, mostrando de lado a lado suavigorosa dentição, e rapidamente emendou ao diálogo oseu habitual estribilho:

– A vida no campo, meu amigo, tem lá seu lado cus-toso... e isso a gente tem de saber!... É claro que, quandotomamos carinho pelo pedaço de terra que nos toca lavrar,não há coisa mais linda. Aqui tudo é paz, alegria e sossego.Enquanto nós desfrutamos o sol cem por cento, nas cida-des mal-e-mal ele é visto... Aqui a gente respira a plenospulmões, mas lá tem de disputar o ar em parques e jardins,misturado com a fumaça dessas cafeteras* que assustam ospangarés e deixam os bichos brabos que nem potrosxucros. Eles vivem tão apertados por ali, que não sobra nemmesmo um lugarzinho para fazer um churrasco.

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(*) N.T.: Veículos barulhentos que soltam muita fumaça.

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– O senhor tem razão demais, D. Pedro – Cláudioapoiou, com seriedade. – E deve ser por isso que, quandovenho ao campo, não quero voltar mais para a cidade.

Chegavam, então, a uma lombada, onde o caminholindeiro cruzava uma larga estrada. O ex-capataz de D.Túlio, apontando com o chicote uma nuvem de poeira queavançava em direção a eles pela direita, mostrou:

– Lá vem o pessoal da fazenda!Cláudio empalideceu. Seu primeiro impulso foi

esporear seu cavalo e desaparecer. Mas freou a tempo opensamento e propôs a Dom Pedro com angústia:

– O que o senhor acha se a gente atravessar aestrada antes deles chegarem?

– Não, amiguinho! Era só o que faltava!... Vamosficar aqui até eles passarem; depois seguiremos. Por quevocê quer atravessar?

– Por nada, Dom Pedro...– Tem vergonha deles verem você conosco? – o

velho gaúcho insistiu, com ar de gracejo, provocando depropósito o jovem.

– Não, Dom Pedro; é que eu disse que estava doen-te para não ir com eles.

– Ah, já entendi!... O que você não quer é quedescubram sua enganação, não é isso? Mau, mau!... Ohomem não deve criar situações que o levem a seesconder de seus semelhantes. Pois não faça issonunca, nem submeta jamais sua vontade ao caprichode ninguém.

A frase pareceu cumprir seu objetivo, pois Cláudio,erguendo o corpo sobre seu cavalo, adiantou-se valente-mente uns metros, assumindo uma postura de desafioque decerto só foi percebida por Dom Pedro, que sorriapara si mesmo.

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Entre os cavaleiros estavam os irmãos de Nora eoutras pessoas da fazenda, que no passar saudaram DomPedro afetuosamente, uns com a cabeça, outros com amão direita. Levantando seu negro chapéu chambergo, elerespondia a todas essas mostras de simpatia.

Do lado oposto do compacto grupo, Nora fingiu nãovê-los.

Quando os excursionistas se perderam atrás dalombada, Dom Pedro e seus acompanhantes retomaram amarcha.

Com essa facilidade que têm as crianças paraesquecer seus contratempos, logo desapareceu a nuvenzi-nha que pesava sobre o ânimo de Cláudio, e ele voltou amostrar-se tão conversador e alegre como antes.

– Você está cansada, Griselda? – perguntou, comcortesia.

– Eu?... Que esperança!... – ela respondeu, espo-reando com energia seu potro e lançando-o a galope.

Dom Pedro e Cláudio a alcançaram, após ter-lhedeixado uma boa dianteira para que ela desfrutasse suademonstração travessa.

A marcha através de um pasto foi divertida. Umainfinidade de perdizes e quero-queros alçava vôo à passa-gem dos cavalos. Sultão, instigado pelos gritos de Cláudio,perseguia em vão as aves alvoroçadas.

– Se eu tivesse trazido minha espingarda, derrubariaum punhado – lamentou-se o garoto, alardeando pontaria.

– Isso é que não, meu amigo! Seria um crime mataras aves agora, quando cada uma está cuidando de suaninhada. Além do mais, a caça está proibida nesta época.

– É verdade, Dom Pedro, eu tinha esquecido!– Então – Griselda insinuou, sorrindo com picardia,

– terá de ficar contente por não ter trazido a espingarda.

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– Também acho! – respondeu ele, sorrindo por suavez, mas encabulado.

O sol já caía a prumo sobre a terra, assinalando omeio-dia. Cláudio considerou prudente despedir-se por fimde seus amigos. Uma vez longe, afrouxou as rédeas e lançouseu cavalo a galope, procurando chegar quanto antes à fazen-da. Sultão o escoltava, exausto.

Os dias que se seguiram transcorreram tensos entre Norae Cláudio. Ela, ao invés de externar suas habituais reclamações,adotou uma atitude de indiferença que manteve o garoto retraídoe amolado. Por último, a tiranazinha decidiu trocar sua friezapor uma postura mais conciliadora, o que não melhorou ascoisas, porque a situação afetava o ânimo do menino, tirandode suas férias grande parte da alegria que ele trouxera consigo.

Chegou finalmente o dia do regresso. Cláudio, comardente anelo, desejava despedir-se de seus amigos.Entretanto, não pôde fazê-lo, porque não soube escapar davigilância de Nora. Com o coração oprimido, e internamentese repreendendo por sua falta de valentia, foi-se embora deTandil, aonde nunca mais voltaria.

Como sempre, custou-lhe a princípio a readaptaçãoao ritmo do viver portenho. Sentia saudades das gratashoras do campo e, desta vez, a imagem de Griselda, envol-ta em cândida inocência, chegava com freqüência até suaalma com acentos de nostalgia.

O reinício das aulas veio tirá-lo daquela situação. Seuingresso no Colégio Nacional e as novas obrigações, entre-meadas com as necessárias práticas esportivas, chegaram aabsorvê-lo quase que por completo. Apesar disso e do tempoque lhe demandavam os passeios semanais com seu pai, nãoperdia oportunidade de conviver com Patrício, o fiel mordo-mo, o qual, tendo chegado à casa quando ainda estava viva amãe de Cláudio, havia mais de um lustro que nela servia.

O menino sempre encontrou nele um bom amigo. E

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ele soube adaptar-se bem aos poucos anos de Cláudio,preenchendo com compreensão muitas necessidades afe-tivas surgidas com o desaparecimento da mãe.

Dom Roque desvelava-se pelo bem-estar do filho;daí que soubesse valorizar as condições de seu mordomoe o recompensasse com mostras de crescente confiança.Espanhol de origem, Patrício tinha um caráter excelente emodos muito ajustados a suas funções de mordomo. Poroutra parte, era homem muito lido e contava, ao cabo deseus quarenta e cinco anos vividos aos trambolhões, comum valioso acervo de experiências, que seu juízo claro esensato havia sabido extrair de erros e penúrias, o quecontribuía para fazer dele um homem ideal nas tarefasque desempenhava. Justificava-se, então, que o menino obuscasse com freqüência em seus momentos livres e, nãopoucas vezes, como auxiliar nos estudos.

Passaram-se alguns anos.À medida que Cláudio crescia e, com suas asas

eternas, o senhor das longas e prateadas barbas distan-ciava os prístinos episódios da infância, iam se apagandono jovem as recordações daquelas férias. A prolongadaausência de seus tios, em viagem pela Europa, e diversascircunstâncias relacionadas com sua saúde contribuíram,pouco a pouco, para fomentar o esquecimento.

Quando os tios de Cláudio regressaram do VelhoMundo, a figura de sua prima havia experimentado asmudanças naturais que a adolescência impõe.

Nora já era uma jovem de dezesseis anos. A ruivade olhos glaucos e narizinho arrebitado se havia transfor-

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mado numa senhorita muito viva e tagarela. De estaturamais para baixa, de linhas arredondadas, graciosa e portemperamento inquieta, parecia envolta num vistoso halode frivolidade. Havia-se adiantado em demasia no desper-tar dos feitiços femininos, com atrevidos ensaios de coque-teria, encobrindo desse modo os encantos naturais datenra idade. O desejo de ser admirada havia feito dela umamocinha extremamente presunçosa, acentuando-se emsua psicologia os traços que a caracterizaram na infância.

Esta foi a impressão que teve Cláudio, ao renovar-se entre ambos a intimidade própria de seu parentesco.

Ele também tinha experimentado transformações,mas conservando sempre, através de suas mutações,aquela expressão inteligente à qual devia, sem dúvida,muito de sua simpatia pessoal. Havia crescido excessiva-mente durante esses três anos, advertindo-se em sua pro-nunciada magreza o sinal de transtornos recentementesofridos em sua saúde. Os olhos, aureolados ainda poruma leve sombra azulada, pareciam ter-se tornado maio-res, e em seu olhar flutuava ainda a inocência entre as iri-sações da mudança de idade. A marca dessa transição,que pouco a pouco burila sobre o rosto adolescente aestampa do homem, nele se delineava tão-somente com ostraços de um esboço.

Comumente afetuoso e despreocupado, sua almanão parecia haver recebido ainda o batismo de fogo que avida sofre ao ingressar na idade da poesia. A caixa dePandora permanecia fechada, e talvez não se lhe abrissenunca se, ao invés de tentar-se como Epimeteu, ele ativas-se os olhos de seu entendimento para descobrir por foraseus segredos e precaver-se contra eles.

Através da freqüente convivência que procuravamanter com ele, Nora advertia seu estado incerto e, encon-

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trando nisso um estímulo, procurava recobrar sua ante-rior ascendência. Mas as angústias do verdor varonildavam lugar em Cláudio a sentimentos de outra natureza,e, ainda que ela, com argúcia feminina, tivesse feito seusangue jovem excitar-se mais de uma vez, os impulsosafetuosos do rapaz ficavam freados quando a aspirante aCirce pretendia convertê-lo em idólatra de sua pessoa.

O coração do jovem sentia-se penosamente oprimi-do diante das investidas da prima, a quem só podia olharcom indiferença, como se a visse órfã dos dons para elemais apreciados. Não havia dúvida de que tais atitudes,longe de atraí-lo, promoviam nele resistências e rechaço,já que entre ambos ocorriam, por isso mesmo, periódicosdistanciamentos. Isto foi acontecendo com maior freqüên-cia nos anos seguintes, como se uma secreta obstinaçãodo fado pretendesse impor seus cânones fatalistas.

Aproximava-se Cláudio dos trechos finais da encos-ta que marca um quarto de século quando recebeu seudiploma de advogado. Naquele então, a precária saúde deseu pai o havia obrigado a substituí-lo momentaneamenteno atendimento parcial de seus negócios, retardando-lhe opropósito de exercer sua carreira. Não obstante, restava-lhe dessa atenção um tempo livre, que ele dedicava, porinclinação, ao cultivo de sua sensibilidade espiritual.Atraído irresistivelmente pelo desconhecido, Cláudio bus-cava nas estantes das bibliotecas a palavra sábia ou a ins-piração feliz que, a modo de tapete mágico, o transportas-se a outros hemisférios, que ele intuía de beleza e magni-ficência incomparáveis. Tal inquietude de seu espírito o

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havia levado a formar com seus amigos uma peña*, umcírculo de debates, no qual, à falta de melhor orientação,discutiam com senso crítico idéias filosóficas e produçõesliterárias de autores antigos e modernos.

Além disso, ao cumprimento mais amplo de suas ati-vidades contrapunham-se as atenções que a saúde lhedemandava, embora fosse evidente que ele se preocupavacom ela além da conta. Observava, com efeito, certas precau-ções que o acompanhavam desde a adolescência, devido aum grave debilitamento que pusera sua vida em risco, decujas conseqüências ele viria a cuidar durante anos, semprepreocupado com a predisposição a uma nova ocorrência. Issocontribuiu para que traçasse uma linha de vida moderada emseus compromissos e predileções mundanas e se habituasse,quando seus estudos o permitiam, a passar breves tempora-das em lugares montanhosos. Seu aspecto exterior não dei-xava entrever, entretanto, quebrantamento algum. De boaestatura e garboso na aparência, ágil e desenvolto, sua cons-tituição física estava mais para robusta. Não fora assim, nãoteria podido partilhar com seus amigos as diversões de todaíndole, próprias das grandes cidades como a urbe portenha.Contudo, forçoso é reconhecer, não passava da medida queconsiderava prudente. A seu juízo, não devia evitar os afagosdo mundo, nem o trato com os diferentes tipos de pessoasque formam a sociedade humana, a fim de conhecê-las nasrespectivas funções; isso, sem exclusão daquelas que, porsuas inclinações ou vícios, atentam contra as normas da con-vivência e da moral dessa mesma sociedade. Alguém lhehavia dito certa vez que o homem do mundo deve conhecertudo, e a essa regra tratou de ajustar sua conduta, para nãoser surpreendido por nenhuma argúcia revestida de boa-fé

(*) N.T.:“Peña”: círculo geralmente fechado e de difícil acesso, cujos participantes sãona maioria intelectuais com interesses, gostos e preferências comuns.

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que voltasse a mira diretamente para sua candidez, com o fimde enganá-lo. Desse modo, pôde conhecer homens e mulhe-res de índole variada; Cláudio passava por ingênuo anteaqueles e, ante estas, por párvulo, propenso a cair nas redesde suas seduções. Tudo isso, somado à honesta influência doambiente familiar, foi cimentando no inexperiente advogado opropósito de viver de uma forma diferente de como as pessoascomumente viviam, deixando adivinhar que sua luta interiorhavia começado, mais que nada como simples encontro dereações que se enfrentavam por causa dessa determinaçãodeliberadamente adotada.

A essa altura da vida, porém, todos os estímulos dajuventude parecem sofrer um eclipse psicológico, porque oaparecimento do juízo freia os ímpetos juvenis e conectaos pensamentos, palavras e atos aos centros internos daresponsabilidade. E, ainda que à primeira vista pareçaparadoxal, este é, justamente, o momento em que ohomem se acha mais propenso aos sentimentalismos maisvariados.

Recostado certa noite no divã de seu quarto, Cláudiocomprazia-se em retardar o instante de se vestir para com-parecer à festa que sua prima Cecília, irmã mais velha deNora, dava em sua residência particular. Era a última noi-tada que seus parentes ofereciam ao círculo de amizadesdurante a temporada de inverno. Cláudio tinha tratado defugir, no possível, a toda circunstância que o aproximassede Nora, embora sempre evitasse prejudicar as boas rela-ções com o restante de sua família, particularmente comseus tios. Tendo isso em conta, e antes que sua tia Ferminaviesse visitá-los para lançar sobre ele suas vigorosas recla-mações, mostrou-se condescendente desta vez, aceitando oconvite.

Cumprida a intencional demora, começou a vestiras roupas que com todo o esmero Patrício lhe havia prepa-

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rado. Meia hora mais tarde, saía de casa em direção à deseus parentes, luzindo com sua particular distinção osrefinamentos impostos pela etiqueta.

Quando entrou na residência de sua prima, a festacomeçava a animar-se, e não tardou a ver-se rodeado deparentes e amigos que festejavam sua chegada. Em meiodaquele vaivém e daquela vozearia ininteligível, de repen-te se viu diante de um conjunto de rostos bonitos e viço-sos, que o cumprimentaram entre risos e brincadeiras,mas que, aos primeiros compassos de um foxtrote, convi-dados para dançar, desapareceram um após outro, fican-do ele inesperadamente a sós junto a Nora. Ambos surpre-sos – ele mais que ela –, riram, convidando-a Cláudio,amavelmente, a acompanhar os outros pares.

Em razão do tratamento que ambos haviam mantidodesde criança, perdurava nele um afeto que o fazia desfrutar,de certo modo, o contato com ela, sempre que – como aconte-cia nesse momento – um adequado distanciamento tivesseconseguido apagar as contrariedades surgidas anteriormente.

Sem outra intenção que a de ser atencioso com ela,Cláudio teve para Nora palavras de fina cortesia; além domais, não era difícil dedicá-las, uma vez que, graciosa epródiga em insinuações, ela parecia esperá-las comoresultado de suas artificiosas manobras.

Dançaram uma após outra várias músicas e, não tendoele premência em variar de companheira, deixou-se levar porsua entretida e saborosa conversa. Sagaz e ardilosa, não eraem vão que ela usava nesse momento sua engenhosidade.

– Parece-me, Nora – disse ele enquanto conversa-vam, sentados num canto do salão, – que estou tirando devocê a oportunidade de dançar com alguém que poderiaser mais interessante do que eu. A propósito, posso lheperguntar por que ainda não se casou?

– Ah!... Simplesmente porque ainda não encontrei

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ninguém que me convença a abandonar os prazeres que avida de solteira oferece... Você já sabe que o flerte é um demeus hobbies preferidos.

– Como sempre, tomando a vida em brincadeira.Você é incorrigível!

– E não será você, por outro lado, um tanto puritano?– Os extremos excedem sempre as medidas justas,

anulando toda reflexão. Por isso, eu me sinto feliz em sercomo sou.

– Eis você de novo formal!... Quer dizer que, peloque pensa, a medida justa eu encontraria se me casasse...

– Não exatamente isso, mas sim mostrando umafisionomia menos mutável.

Enquanto mantinham esse diálogo, Cláudio pensa-va consigo em quão longe estava Nora de se ajustar às exi-gências de seu ideal de mulher, doendo-lhe ao mesmotempo, em virtude do vínculo de sangue que os unia, queela confundisse tão lamentavelmente, por influência dogume duplo de seus pensamentos, o conceito sobre a vida.Esses, ao mesmo tempo que a seduziam com sua falácia,cortavam-lhe a prerrogativa de desfrutar um lar em quepudesse viver, um dia, feliz com seu marido e seus filhos.“A frivolidade e o caráter dominador”, dizia-se ele mental-mente, “quando não se contrabalançam com algumas vir-tudes sequer embrionárias, que prosperem ao calor denobres sentimentos, acabam por criar em volta do ser todaespécie de temores e desventuras, além da desdita de quemas promove.” Esse era o caso de sua prima, cujas caracte-rísticas Cláudio analisava, sem que ela tivesse a menoridéia do que nesse momento passava por sua mente.

Conversavam ambos com a familiaridade de costu-me, embora ele se sentisse mais cômodo que de outrasvezes, sem dúvida pela incomum brandura e moderação

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com que Nora se lhe apresentava. Já quase chegando ofinal da festa, deu ela rédea solta ao plano que febrilmen-te havia concebido, com vistas a criar uma situação com-prometedora para seu primo.

Situados num lugar um tanto afastado do burburi-nho, ela fez o impossível, com hábeis e sedutores enredos,para que se confundisse a postura de seu primo com a deum cortejador. A trama enganosa teria assim o efeito quebuscava.

Era evidente que Nora se havia proposto, naquelanoite, conseguir a qualquer preço o que queria. Assim,levado seu plano até esse ponto, só faltava fazer corrersutilmente – como fez – o rumor de seu recente compro-misso com Cláudio. Irmãos, primos e amigos, sem conhe-cimento prévio da trama, espalhariam a notícia, elaboradatão-só à força de argúcia e impostura.

Posta a bola a rolar, dias depois eclodiram oscomentários. Ao darem a volta e chegarem aos ouvidos deCláudio, sentiu-se ele numa situação embaraçosa. Às pri-meiras brincadeiras e felicitações, respondeu como setudo não passasse de simples insinuações de mau gosto.Mas em seguida, ao perceber que algo de maiores propor-ções acontecia à sua volta, dispôs-se a desmentir commais empenho o boato, o qual – segundo pensou – deviaser fruto da fantasia de algum brincalhão. Quando,porém, observou que sua prima aprovava e até estimula-va tais sugestões, não hesitou em mudar decididamente orumo das coisas. Disposto, pois, a encarar o assuntoseriamente, visitou um dia a casa de seus tios.

– É por demais desagradável para mim – disse aNora – que as pessoas nos façam de alvo de suas brincadei-ras, e que você não procure fazer nada para desmentir isso.

– Mas, Cláudio! – exclamou ela, fingindo surpresa.– Que tem isso de mais? Por que haveríamos de esconder?

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– Esconder o quê?! – Cláudio perguntou, dominan-do-se a custo diante de tanto cinismo. – Por acaso houvealguma vez, entre você e mim, algo mais do que o meroafeto de primos?

– Cláudio! Você é capaz de negar que gosta de mim?– Nora queixou-se, mostrando-se sofrida.

– Jamais pensei que uma situação como esta pudes-se acontecer entre nós dois! E muito menos deste modo!

Calou-se por um instante. Entretanto, cada vezmais excitado por tudo aquilo, acrescentou em seguida,com firmeza:

– Não é possível que você pretenda me comprome-ter ante os demais, porque não faria mais do que revoltarmeus sentimentos em prejuízo de você mesma. Eu nãovou poder tolerar jamais que me forcem a aceitar o que emnenhum momento esteve em meus pensamentos nem emmeu sentir, você me entende?

Nora ainda pretendeu dominar a situação.Valendo-se de um choramingo histérico, insinuou estasutil conjectura:

– Você não compreende, Cláudio, que, depois denos ver juntos a noite toda, as pessoas haviam de pensarque não foi só porque somos primos? Será uma tarefamuito difícil convencê-las do contrário...

– Mas não resta outro caminho – Cláudio arrema-tou, resolutamente.

Nenhuma outra palavra saiu de seus lábios parasuavizar a situação, deixando nos olhos de sua prima umaexpressão sombria de ressentimento. Naquele mesmo ins-tante, Nora se retirou para seu quarto. O momento haviasido forte demais para ela, e necessitava de um parêntesepara recompor-se. Ali, deixou-se cair de bruços sobre oleito. A sós consigo mesma, enquanto sentia que a indife-

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rença de Cláudio roía seu amor-próprio com insistênciainsuportável, reprovou-se por ter-se dado conta demasia-damente tarde de que sentia por ele algo mais do que umsimples afeto. Só fugazmente, porém, chegou a intuir quetudo havia ocorrido por sua exclusiva culpa. Desde meni-na, havia-se esmerado em tê-lo submisso às suas veleida-des e caprichos e, à medida que avançava em idade, maisde uma vez experimentou reações muito contraditórias emrelação a ele. Enquanto por um lado o buscava, levada poruma atração sentimental – amor, talvez –, por outro,pondo de lado esse sentimento, era impulsionada por suanatureza distorcida para a busca do amor de alguém quea fizesse sentir, com maior força, as instâncias de umapaixão que Cláudio não lhe havia despertado nunca.

Estabelecia-se nela, com relativa freqüência, umaluta interior que lhe produzia desassossego, em virtude denão ter resolvido os conflitos que criava para si mesma,por causa de seu temperamento absorvente e dominador.Acreditando atrair a Cláudio, afastava-o irremediavelmen-te e, obstinada nisso, empenhava-se em mantê-lo sujeitoa sua vontade caprichosa. Daí partia seu grande erro; erroque havia atraído sobre ela muitas amarguras, como asque sofria nesse momento, em que resistia a aceitar umtratamento que tanto feria seu orgulho e sua vaidade.

Nora fazia parte desse tipo de mulheres que se defi-nem pela volubilidade de seus pensamentos e pela vacui-dade espiritual, o que não lhes permite apurar dentro desi nenhuma das virtudes que fazem o encanto mais cati-vante da alma feminina. Com tal desvantagem cegamenteprovocada, havia imaginado que seria fácil pôr em xeque,com hábeis jogadas, os pontos fracos de Cláudio, e a issohavia confiado o êxito de sua tática. Ante o rotundo fracas-so, teve de render-se, sem extrair, uma vez mais e parainfelicidade sua, nenhum ensinamento proveitoso.

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Apesar de tudo, aquele pensamento travesso per-maneceu flutuando no ambiente e se manteve comocomentário obrigatório na pauta social.

A chácara de Dom Pedro achava-se abandonada.Quantas mudanças e transformações acontecem

no transcurso do tempo!... A casa de paredes brancas, queDona Laura enfeitara com os tons e semitons cromáticosde suas flores, jazia ziguezagueada por musgosas gretas.Trepadeiras silvestres, misturadas entre a erva daninha,substituíam a alegre floração de outrora. Árvores vetustas,de aspecto severo e sofrido, em cujos ramos musculosos evencidos parecia perceber-se a nostalgia de tempos extin-tos, davam idéia do cúmulo de anos que se passaramdesde o instante em que o dono desaparecido as plantara,pensando talvez passar junto a elas, em silenciosa compa-nhia, as horas de sua velhice. Dom Pedro, o simpáticoDom Pedro Laguna, que fora a alma daquele lugar, aoabandonar este mundo havia rompido, sem dúvida, o fei-tiço que mantinha sua família apegada a tudo aquilo a queele queria e de que cuidava com singular carinho. Mortoele, seu filho, o doutor Laguna, não tardou em deixar aherdade, radicando-se outra vez em Buenos Aires na com-panhia dos seus.

Ali ele reabriu seu consultório. Dedicado por intei-ro à profissão, sem demora alcançou um sólido prestígio,alcançando uma situação que lhe permitiu ocupar, maistarde, um confortável apartamento no centro de um dosmais elegantes bairros residenciais da cidade. Afeito à inti-midade do lar, o doutor Laguna ressarcia-se das privações

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que as afanosas horas de trabalho e estudo lhe impu-nham, desfrutando o carinho da esposa e de sua filhaGriselda.

Esta já tinha completado vinte e um anos, querefletiam em seu belo rosto, formoso e expressivo, as finu-ras de um perfil psicológico apuradamente configurado emsuas preferências, gostos e modalidades. Propensa a con-centrar o pensamento nas intimidades de sua alma,abriam-se ante sua inteligência não poucas interrogaçõessobre a vida. Engolfava-se com freqüência nelas, como seà sua perícia – e só a ela – devesse confiar a solução dasmesmas. Retraída e silenciosa, com o pensamento postoem indefinida distância, seus olhos, de mirada tranqüila,se mostravam mais de uma vez velados por inexplicáveltristeza. Que nostalgias palpitavam ali, nas insondáveisregiões de sua alma, que nem ela mesma talvez pudessedecifrar? Enamorada da boa leitura, muitas vezes sonha-va ser um daqueles seres que a arte idealiza e eleva acimadas realizações humanas.

Predominavam em Griselda interesses que, vigori-zados provavelmente pela educação recebida de sua mãe,a mantinham resguardada de todo excesso capaz de afe-tar suas próprias determinações com respeito à condutaque se havia proposto, a qual seguia sem que sua juven-tude sofresse privação alguma. Por isso, sabia conciliar oscompromissos sociais, bem como o ritmo agitado da vidamoderna, com as predileções de seu espírito. Com amelhor disposição para freqüentar festas e reuniõessociais, Griselda no entanto recusava os convites de suasamigas quando se tratava de compartilhar dessas diver-sões ou entretenimentos que a desprevenida juventudeaceita, crendo emancipar-se com isso de preconceitos econvencionalismos, enquanto ata sua vida a uma seqüela

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de extravagâncias que a envolvem e prejudicam irremedia-velmente.

Sua mãe contava com um considerável número deamizades, de onde provinham em grande parte as amigasde Griselda. A estas se somavam as três filhas de sua tiaEulógia, irmã mais nova de Dona Laura, a cujo caráteralegre e dinâmico se devia, sem lugar a dúvidas, a entu-siasmada disposição com que costumava animar suacasa, oferecendo a seus amigos festas ou tertúlias. Ajovem dificilmente faltava a elas, pois isso sua tia não lhepermitia, a menos que houvesse razões muito claras. Nãoobstante, gostava de simular algumas vezes indecisão ouapatia, pois achava divertido quando a tia, alarmada esobretudo confiante em sua reconhecida eficácia paralevantar o ânimo, lhe dizia como estímulo: “Vamos lá,minha filha! Deixe-se de bobagem! Está querendo ficar pratitia? As jovens como você precisam dançar e se divertir!”

Foi justamente numa daquelas festas que Griseldaouviu falar, depois de muitos anos sem nada saber deles,sobre Nora Larrecochea e, misturado no cochicho, o nomedo agora doutor Arribillaga. Tratava-se do recente compro-misso amoroso entre ambos; e a notícia, pelo que parecia,era de boa fonte, já que provinha de uma senhora estrei-tamente vinculada a ambas as famílias.

Griselda, que havia escutado tudo aquilo com ointeresse próprio do caso, reparou como se acendiam nela,por esse fato, velhas recordações. Veladas em parte pelotempo, viu deslizarem por sua mente, em fugaz reminis-cência, passagens diversas de sua infância em Tandil,quando, na quinta ancestral dos Lagunas, a família recebiaas furtivas visitas do filho de Dom Roque. A evocação purae simples de tais ocorrências parecia devolver ao semides-vanecido eco das sensações de outrora sua plena nitidez.

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Nessa mesma noite, estando já quase entre sonhos,voltaram a representar-se para ela os emotivos episódiosde sua infância; mas as imagens, com reiterada obstina-ção, pareciam empenhadas em projetar-lhe a pequenaNora, frívola e orgulhosa, situando-a como algo incom-preensível dentro do acontecimento que lhe tinham acaba-do de contar. Por último, a figura do avô, a quem venera-va, encheu-lhe o coração de ternura, e, reconfortada porsua recordação, adormeceu placidamente.

No dia seguinte, Griselda deteve-se mais que ohabitual nas anotações de seu diário íntimo; pegou emseguida um de seus livros prediletos e mergulhou, comavidez, na leitura de suas páginas.

Setembro havia chegado. Um sinfônico prelúdio decores orquestrava o cântico primaveril dos pássaros,anunciando a boa estação em todos os parques e jardinsportenhos.

A família Laguna viajava rumo às serras cordobe-sas. Após um período de intensa atividade profissional, ocompetente médico resolveu desfrutar com os seus umasbreves férias. A proposição encontrou eco favorável no seiofamiliar, e com tal disposição de ânimo os preparativosforam feitos sem demora.

Enquanto o carro avançava pela estrada, cortandoos campos aquecidos pelo sopro que estimula e apressa amanifestação dos primeiros brotos, cada um, responden-do a essa renovação da vida, sentia palpitar seu alentocom o estímulo dos projetos que forjava.

Sobre o fundo triste e incolor dos pastos castigadospor densas geadas invernais, insinuavam-se já as cores

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alegres com que a natureza se reveste anualmente, mos-trando, através de suas mudanças uniformes, a eternida-de que a substancia. Logo a relva voltaria a cobrir os pra-dos, e a ondear sobre os campos o cereal nascente. Nasvilas, por entre a policromia das primeiras flores, as rosasabririam seus botões, as mesmas rosas que em todos ostempos encheram de sã alegria o coração dos homens, eque sempre – como antes e agora – falarão à alma sobreSua Criação maravilhosa, com o acento inefável do misté-rio oculto entre suas pétalas. Quem, então, a convite doque seus olhos vêem, impedirá que se renovem em suaintimidade os propósitos e promessas de realizar aquiloque consagrou digno de ser desfrutado?

Avançando pelo caminho, passaram por Rosário. Odoutor Laguna recordou ali que alguém havia chamado,certa vez, a urbe da província de Santa Fé de “cidade tris-te”, “cidade sem atrativos”. Que razão existiria? Por acasoalgum pecado não absolto, cometido em seu seio, houve decondená-la a permanecer de joelhos ante a majestosaCapital portenha? Expiaria algum dia sua inocente culpa?

Anoitecia quando chegaram à douta cidade medi-terrânea, com sua velha e prestigiosa universidade, e tam-bém seus casarões senhoriais, vestígios da vida patriarcalde outrora, que ainda evoca o incenso e a mirra pelas igre-jas que proliferaram em seu seio. Ali se detiveram parapassar a noite.

Pela manhã, foram surpreendidos pelo mau tempo,que cedeu no transcurso da viagem, dando lugar a um solradiante. Ao chegarem ao destino, avistaram do alto alocalidade de La Falda, salpicada de telhados avermelha-dos, ainda brilhantes por causa da recente chuva.

O hotel onde se hospedaram lhes era conhecido deanteriores permanências; pelas comodidades que ofereciae por sua localização, mereceu a preferência unânime.

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Situado a certa altura no sopé da serra, de suas janelas eterraços podia-se contemplar a pitoresca topografia dolugar, bem como os luxuosos chalés que a urbanizaçãoestendia por aqueles lugares, dia após dia. Do caminhoprincipal, sombreado por espessa ramagem, abriam-seruas e trilhas para os mais variados lugares.

Como sempre ocorre na serrania cordobesa, a prima-vera havia chegado com pressa e pujança. Já se podia con-templar a maravilhosa dança das borboletas, que semelha-vam papeizinhos de cores arrojados pelas mãos invisíveis danatureza. Nos lugares agrestes, o ervaçal, em avanço expan-sivo, ao agitar-se com a brisa, esparzia em torno o conheci-do e fresco aroma da piperina, mesclado ao do poejo. O eter-no mistério da clorofila dilatava-se na vistosa tonalidade dafolhagem, renovando-se ao conjuro da primavera.

Já refeita do cansaço, a família Laguna saiu cedopara recrear a vista e respirar, com o oxigênio, a paz e as for-ças sutis que emanam da natureza livre de contaminações.A novidade que o traslado a um ponto qualquer de turismooferece, impulsionava-os a acalmar as ânsias de renovaçãoque cada ser experimenta ante os chamados naturais. Nãohá minuto que não se aproveite, como se inconscientemen-te o homem percebesse que os ciclos da vida se tornam tantomais longos quanto mais intensamente são vividos.

Ao final da jornada, com a satisfação de haver usadobem seu tempo, o doutor Laguna retirou-se cedo para des-cansar. Sua esposa e Griselda o seguiram bem mais tarde,sendo Dona Laura a última a adormecer. Absorta na leitu-ra de um livro de Hugo, deixou que seu espírito se deleitas-se ante o soberbo espetáculo que a imaginação de um autoroferece em seus transportes quiméricos.

Às duas e meia da manhã, a campainha do telefo-ne soou no quarto do casal, despertando-os bruscamente.

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O doutor Laguna atendeu ao chamado inoportuno, sendoinformado pelo porteiro de que, da vizinhança, lhe solici-tavam atendimento médico de urgência.

Bastante habituado a tais premências, o doutor sevestiu com rapidez. Momentos mais tarde, acompanhadopelo guarda-noturno do hotel, chegava em seu carro ao domi-cílio do paciente. Foi ali recebido por um amigo deste, que embreves palavras informou sobre o que havia acontecido.

Bastou ao médico uma rápida olhadela para avaliaro inequívoco sintoma de um espasmo laríngeo. Sem perdade tempo, aplicou-lhe a medicação de praxe e, momentosdepois, deixava seu paciente livre do desagradável aciden-te respiratório.

O jovem – oh! caprichos aparentes do acaso! – nãoera outro que Cláudio Arribillaga. Tão logo se sentiu recu-perado, expressou ele a Laguna seu profundo agradeci-mento e, com voz franca e desimpedida, pediu desculpaspelo incômodo que acabava de ocasionar-lhe.

– Não se preocupe com isso, amigo – o médicomanifestou, em tom cordial. – O essencial é que você con-tinue bem; o mais não tem importância.

E, após receitar o necessário e assegurar que difi-cilmente a moléstia voltaria a se repetir, despediu-se dele,augurando-lhe um pronto restabelecimento.

Durante o trajeto, algo intrigado, o doutor Lagunaperguntou ao guarda-noturno:

– Como foi que esses jovens souberam que soumédico e onde me hospedo?

– Muito simples, doutor: quando não se dá com osmédicos da vila, recorre-se aos hotéis, para ver se nelesestá hospedado algum. Geralmente dá bom resultado.

Sem esperar por novas perguntas, o guarda foirelatando, com pesada verborragia, vários casos de cha-

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mados urgentes ao hotel, tentando em vão, vez por outra,arrancar alguma informação sobre o enfermo.

Enquanto o doutor Laguna subia a seu apartamen-to, ainda o seguia o eco da fala do homem, simples e enfa-donha, e o tom fanhoso de sua voz, obstruída por carno-sidades.

Ao entrar, encontrou sua esposa acordada. Emseguida, fez-se ouvir a voz sonolenta de Griselda, que, doaposento contíguo, perguntou a seu pai se se tratava dealgo grave.

– Não, nada disso – ele replicou, relatando em pou-cas palavras o motivo do chamado. E adicionou: – O queacontece é que de noite os males parecem ficar maiores.

As noites, ainda frias, costumavam reunir um bomnúmero de turistas no salão do hotel. Jovens e maisvelhos encontravam ali os mais variados motivos deexpansão. Falava-se de passeios e excursões, com seusprazeres e contratempos; de política, de cinema e de tudomais que faz parte da vida isenta de preocupações – semfaltar, é claro, o diz-que-diz, que quase sempre punhamais de um ausente exposto na berlinda.

Um grande piano deixava escutar os compassos demúsicas preferidas para dançar, que muito poucos desa-proveitavam.

Foi ali que Griselda travou íntima amizade com asirmãs Liana e Albina Etchegaray, hospedadas com a mãeno mesmo hotel. As duas eram mais ou menos de suaidade. Joviais, atraentes, simpáticas, pareciam estar sem-pre dispostas a encarar tudo com bom humor e alegria.

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Contrastavam em comedimento com Griselda, aindaquando coincidissem em gostos e em muitas inclinações.

Uma tarde, enquanto cavalgavam pelos arredoresda vila, Griselda notou a curiosidade com que ambas asirmãs observavam um chalé situado estrategicamentesobre uma encosta, por cujo bem cuidado parque desciagraciosamente, como que incrustada na relva, uma esca-da de pedra que chegava até a borda do caminho.

Intrigada pela insistente bisbilhotice de suas ami-gas, quis saber:

– Vocês conhecem os donos?– Só de vista – uma delas respondeu.– Mora nele um jovem muito charmoso – disse a outra,

certa de que a informação era sumamente interessante.– Ah! então deve haver algum segredinho perdido

por aí...– Oh, não! – Liana exclamou, pondo-se a rir.Mas não houve tempo para outros comentários,

porque o aludido personagem do chalé, surgindo nessemomento por um dos lados da casa, dirigiu-lhes do altouma saudação, com gesto muito cortês.

Responderam turbadas ao cumprimento, pondo-senovamente em marcha. Quando já se haviam afastado umtrecho, um desejo súbito de fugir dali fê-las fincar com forçaas esporas em seus cavalos, levando consigo o desconcertode terem sido surpreendidas naquela indiscrição. Quandoestavam longe, riram do motivo que as havia sobressaltado,ficando, não obstante, um pouco preocupadas.

– Passou-me pela cabeça – dizia Griselda a seu pai,horas mais tarde, enquanto jantavam, referindo-se aopequeno incidente da tarde, – que aquele jovem poderiaser o mesmo que solicitou seus serviços naquela noite.Não lembra como ele se chama?

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– Não prestei atenção a esse detalhe. A verdade éque sou bastante desmemoriado em questão de nomes. –E acrescentou, no mesmo instante: – Por que você me per-gunta isso?

– Por simples curiosidade, nada mais – respondeuela, encarando com naturalidade seu pai, em quem obser-vou uma leve expressão inquisitiva.

Percorrendo com o olhar o espaçoso restaurante,que reunia nos fins de semana grande número de turistas,a atenção de Griselda foi atraída pela presença de doisrecém-chegados, que ocuparam uma mesa próxima.Prontamente reconheceu um deles, José Gutiérrez, aquem dias atrás ela fora apresentada. Não sabia quem erao outro, mas lhe chamou particularmente a atenção. Àamável saudação do primeiro, o segundo acrescentou umareverente inclinação de cabeça.

Ia ele sentar-se de costas para ela, mas, mudandorepentinamente de idéia, pegou outra cadeira e se pôs defrente. O detalhe não escapou a Griselda, que experimen-tou uma fugaz turbação. A sensibilidade, cuja sutil lingua-gem se articula na alma por sinais inequívocos que a inte-ligência acaba por aceitar, parecia haver expressado a seusentir, nesse momento, alguma mensagem particular degrata repercussão.

Desejosa de satisfazer uma curiosidade que a intri-gava por demais, perguntou então a seu pai se não eraaquele o mesmo a quem ele havia assistido noites atrás.Laguna, acedendo a seu pedido, aproveitou um breve diá-logo com o garçom e olhou de soslaio para o indicado, con-firmando que de fato se tratava da mesma pessoa.

Dona Laura, enquanto isso, havia seguido todos osmovimentos, sem perder um detalhe, inclusive observan-do que a comprovação havia agradado a sua filha.

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No decorrer do jantar, os olhares de ambos osjovens encontraram-se repetidas vezes. Finalmente, con-fusa, Griselda não se atreveu a dirigir mais a vista paraaquele ponto.

Nessa noite, mãe e filha deixaram o restauranteantes do horário costumeiro, para assistirem à estréia deum filme. Um pouco pressionadas pela hora, pois deviamsubir a seus aposentos para retocar o penteado e pegaragasalhos, prescindiram do café. Radiante de juventudeuma, mais avançada na trajetória de sua vida a outra, masestampando ambas a beleza de duas épocas em sucessãoharmônica, passaram junto à mesa onde se achavam osjovens. Uma saudação amável e graciosa de Griselda rema-tou o efeito grato deixado em quem, durante todo aquelejantar, a havia contemplado com interesse e enlevo.

Nesse meio tempo, o doutor Laguna terminavade saborear seu café e acendeu um cigarro. Após duasou três deleitosas tragadas, decidiu também deixar amesa.

Como se um fio invisivelmente estendido se encarre-gasse de enlaçar todos os episódios afins, ao deter-seLaguna a trocar algumas palavras com certos conhecidos, oeco de sua voz chegou até o jovem do chalé, o qual, ao fitá-lo, reconheceu imediatamente seu ocasional benfeitor.Pondo-se de pé discretamente, alcançou-o quando ele chega-va à porta do salão e, interceptando-lhe respeitosamente ospassos, estendeu-lhe a mão. Conversaram um instante comsatisfação de ambas as partes e, ao final, com mais especu-lação que reconhecimento, Cláudio convidou-o a uma excur-são pelas altas serras, que o doutor não se havia animado apercorrer por falta de perícia ao volante. Este recusou emtermos corteses, pretextando seu próximo regresso à Capital

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e outros motivos habilmente encontrados. Em realidade,considerava o convite um tanto prematuro.

Sem demonstrar a contrariedade que o invadia, ojovem aceitou seus argumentos. Talvez ali tivesse termina-do o episódio, se não ocorresse a Laguna perguntar-lhe onome.

– Oh, perdão! Eu me chamo Cláudio Arribillaga, aseu inteiro dispor.

– Arribillaga?... Eu conheço esse sobrenome...Diga-me, você não é o filho de Dom Roque?

– O próprio. O senhor o conhece?– Ora, se conheço! Você não se recorda de Dom

Pedro Laguna, que há muitos anos foi capataz da fazendade seu tio Larrecochea, lá em Tandil?

– Claro que me recordo!... – e, golpeando a testa coma palma da mão, Cláudio exclamou: – Quer dizer que osenhor é o filho de Dom Pedro!... Como não percebi antes?!

Mas, nem bem terminou de dar vazão a tais mos-tras de surpresa, outro pensamento se apresentou a suamente e o fez exclamar, com alvoroço:

– Então... quem acompanhava o senhor era DonaLaura e Griselda?

– Com toda a certeza – o doutor confirmou, sorrindo.– Quem diria!... – Cláudio exclamou novamente,

como se lhe custasse acreditar.Os dois estreitaram efusivamente as mãos, e houve

ali um instante de íntima emotividade.O passado, feito presente na recordação, unia-se ao

momento que começava. Para muitos, é a casualidade aque rege os encontros dessa índole; para as almas sensí-veis e intuitivas, porém, tais circunstâncias encerram umsignificado muito maior, que se desprende dos profundosenigmas da vida.

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Talvez no fundo de seu ser Cláudio conservasseinalterável, e com aquela força virginal que animara seudespertar, um afeto que nesse instante irradiava suasondas sutis. Os corações têm às vezes tão engenhosas for-mas de se buscarem, que a própria reflexão fica perplexaquando o encontro se produz.

Em ato contínuo, tomado pela idéia de realizar opasseio oferecido e vislumbrando uma possibilidade deêxito, Cláudio insinuou, sorridente:

– O senhor não acha, doutor, que este feliz encon-tro mereceria ser festejado?

– Você tem razão! – ele respondeu, compreendendoa que o jovem se referia. – Muito bem, amigo; venha entãoamanhã, lá pelas dez horas, e conversaremos, porque nes-tes casos, como é natural, meu consentimento fica sujeitoao que minha família resolver.

Momentos depois, enquanto subia a escada, Lagunaadvertiu-se de algo que, mesmo sem compreender, nãopodia deixar de relacionar com a curiosidade de sua filha, emurmurou, coçando a cabeça: “Agora matei a charada!”.

Abriu a porta do apartamento. Esposa e filha esta-vam prontas para sair. Laguna fez que não percebeu e, fin-gindo preocupação, deixou-se cair sobre a poltrona maispróxima.

– Tenho um assunto que me está dando o que fazer!– manifestou, com seriedade muito suspeita; – um assuntotão difícil, que demanda uma imediata reunião de família.

– Mas que cara!... Até parece que ninguém aquiconhece você!... – brincou graciosamente Dona Laura,malogrando-lhe o plano.

O doutor ainda fez um esforço para manter ambasas mulheres na expectativa do assunto que ele havia dei-xado entrever.

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– Mas, papai... quanta chacota! – Griselda excla-mou. – Diga de uma vez o que está acontecendo. Não vêque estamos ficando atrasadas?

Por fim, depois de tanto rodeio, a curiosidade ficousatisfeita, promovendo-se em torno da notícia vivas mani-festações de espanto.

O escutado pasmou particularmente a Griselda,que não podia vincular a atitude da pessoa que havia vistomomentos antes, no restaurante, com a que correspondiaa um homem que, como Cláudio Arribillaga, estava com-prometido. Não obstante, sobrepondo-se à impressão quea coibia, participou dos comentários de seus pais e mani-festou-se favorável a que o convite fosse aceito. O “difícil”assunto havia ficado, portanto, resolvido com o benepláci-to de todos, se bem que persistisse alguma reserva porparte de Griselda.

Horas mais tarde, já de regresso, a jovem despediu-se com pressa de seus pais e se deitou. Queria estar a sóscom seus pensamentos. Aconteceu, porém, que estes a tor-turaram por longo tempo, amargurando-lhe as horas pre-cedentes ao sono. Por momentos logrou, não obstante,deleitar com eles seu espírito, mas a realidade, apresentan-do-se ante ela uma e outra vez, a sacudia de súbito, fazen-do-a sentir-se como se saísse de um desses sonhos formo-sos que se desvanecem tão logo as luzes da alvorada dissi-pam o fulgor das estrelas.

No dia seguinte, por causa de sua longa vigília,Griselda se levantou algo tarde, embora estivesse serena eestimulada por inexplicável confiança. Com presteza, des-ceu ao restaurante, a fim de juntar-se aos seus, que semdúvida alguma a aguardavam para o desjejum. Seu corpo,leve e esbelto, de estatura média, vestia um traje esportivo,composto por uma saia justa de casimira cinza-escura e

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um suéter branco, que lhe cingia belamente o busto.Sobre os ombros, levava uma jaquetinha de cor azul-clara, que combinava com os brincos. Os cabelos, suavese ligeiramente ondulados, da mesma cor castanho-clarados que outrora haviam acariciado sua face infantil, ape-nas roçavam sua fronte e, penteados com esmero paratrás, estavam presos em sedoso coque sobre a nuca, dei-xando-lhe livre o pescoço. Tinha Griselda a pele clara erosada, a boca corada e bem traçada, e nos olhos umaserenidade de espírito que, em certos momentos, faziacontraste com sua expressão juvenil, dando-lhe um ar deprecoce seriedade.

– Parece que estou um pouco atrasada, não? – per-guntou a seus pais.

– Chegou bem na hora – Dona Laura respondeu,apontando para o garçom, que se aproximava com a ban-deja repleta de apetitosos biscoitos e doces.

Eram dez e meia da manhã quando os Lagunas eCláudio, sentados numa galeria que o sol transformavanessa hora em agradável soalheiro, conversavam alegre-mente, repostos – sobretudo os jovens – da emoção provo-cada por aquele encontro.

Dona Laura, conversadeira e cordial, e os demais,não menos cordiais que ela, haviam contribuído, apósuma breve troca de notícias sobre a vida de ambas asfamílias, para um rápido acercamento.

Num momento oportuno, a senhora Laguna per-guntou a Cláudio por Nora, felicitando-o por seu recentecompromisso.

– Nada mais inverídico do que isso, senhora – ojovem esclareceu, a toda a pressa. – Trata-se de uma notí-cia surgida de uma brincadeira de mau gosto, e lamentodeveras que tenha chegado até vocês.

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– Entretanto – ela insinuou, – vocês dois sempreforam muito companheiros, e não seria estranho que, jágrandes, tivesse surgido um vínculo mais estreito entreambos.

– Mas a verdade, senhora, é que nunca deixei deconsiderar Nora como uma irmã. Francamente, eu nãopoderia ter outro tipo de relacionamento com ela.

– Será que não é alguma contrariedade que leva vocêa dizer isso? As contrariedades, apesar de tudo, passam...

– E que razão poderia me levar a ocultar isso?– Nenhuma, absolutamente. Isso é verdade.– Vocês nem imaginam quanto eu me alegro por ter

podido esclarecer este incômodo assunto. Griselda, que havia seguido com o coração em sus-

penso o desenvolvimento do diálogo, sentiu que ele seaquietava, pouco a pouco.

– Sua estada aqui é sem dúvida conseqüência dessefato, não? – tornou a senhora, tenaz em sua indagação.

– Só em parte. Problemas de saúde também meobrigam, de tempos em tempos, a buscar um revigora-mento neste clima. Meus empenhos no estudo de umacarreira que levei a cabo em poucos anos e, além disso,atividades circunstanciais de outra ordem foram a prin-cipal causa de meu afastamento momentâneo daCapital.

– Você se sente doente?– Não propriamente doente, senhora, mas devo

prestar alguns cuidados a minha saúde.– Apesar do que disse, não vejo por que sua saúde

tenha que exigir tanto de você... – apressou-se em objetaro doutor Laguna, acentuando suas palavras como noscasos em que devia usar, para dissipar alguma obstinaçãode seus pacientes, o recurso psicológico de algum pensa-

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mento convincente. – Faz um momento ouvi você dizer,com pessimismo, que estava se acostumando à idéia deviver só. Nada pior do que isso, amigo Arribillaga. Você,como todos, necessita formar um lar.

– O conselho não é mau, desde que não inclua Nora– Cláudio condicionou, festejando sua própria saída.

– Não posso recomendar-lhe isso – tornou o doutor,alegremente, – embora o fato de conhecê-la por toda umavida talvez fosse para você uma vantagem.

– Mas só se eu não soubesse que o longo relaciona-mento familiar não garante o bom entendimento... – insis-tiu o jovem. – Às vezes, seu excesso destrói o bom senso ea consideração mútua.

– Você terá lá suas razões para dizer isso – manifes-tou de modo bondoso Dona Laura.

O doutor Laguna recordou, então, que deviamalmoçar na casa de uns amigos, situada a grande distân-cia. Por isso, interrompeu a conversa para tratar do pas-seio proposto por Arribillaga, combinando-se finalmentesua realização para o dia seguinte, quando então sairiamcedo rumo à Pampa de Achala.

O inesperado tem sempre a virtude de alterar tem-porária ou definitivamente o ritmo monótono da vida. ParaGriselda, Cláudio surgia agora como o astro que, após oeclipse, volta a brilhar esplendorosamente. Diante dorumo imprevisto que os acontecimentos tomavam, comonão haveriam de pulsar as fibras mais sensíveis de suaalma?

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O pequeno deus que ensaiara sua pontaria quandocrianças voltava a colocá-los, desta vez em tom sentencio-so, frente a seu arco em tensão. Era impossível, pois, queGriselda não tecesse mil conjecturas no tear de sua ima-ginação.

Sem senti-las, quase voaram as horas compreendi-das naquele parêntese. O retraimento aparta discretamen-te a vida do externo para fixar a atenção naquilo queimpressionou vivamente o mundo interno do ser. Mesmo avida carecendo de saber e de experiência, nesse prudenterecolhimento da natureza, a sensibilidade, mais lúcidasempre do que o entendimento, chama o amor por seunome e não se abandona cegamente a ele, como faz o ins-tinto com a paixão. A sensibilidade humana, que acusanobreza e sinceridade, exige correspondência na honesti-dade de um afeto. Por isso, sem deixar de afirmar dentrode si estes claros preceitos que a moral do sentimentoantepõe à ilusão e à esperança, Griselda experimentouindizível alegria e, com esse ânimo, iniciou desde muitocedo o ansiado dia.

Despertou tão logo os primeiros reflexos do ama-nhecer chegaram às janelas de seu quarto, e correu feliz aabri-las, levada pelos pensamentos que buliam em seuinterior, em comunicativo desejo de fazê-los desfrutar asdelícias da brisa matinal. Como a ave que promete a simesma um dia de expansão, a jovem pôs a voar seus pen-samentos; eles, porém, como os pássaros que permanece-ram longo tempo em suas gaiolas, prontamente voltaram,temerosos de perder sua deliciosa intimidade. Assim pare-ceu haver sua alma compreendido, ao retrair-se de repen-te e reservar os impulsos de seu sentir para ocasiões queo futuro lhe pudesse oferecer. Sem deixar de reforçar den-tro de si a reflexão formulada, cedeu não obstante à ale-

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gria que a embargava e, com ágeis movimentos, abriu oguarda-roupa e selecionou as peças que vestiria. Queriaestar primorosa naquele dia, queria agradar.

Por sua parte, fascinado com a recordação deGriselda, Cláudio havia passado longas horas jogandopaciência com as novas cartas que a Providência haviaposto em suas mãos. Entretendo-se com elas a modo deoráculo, consultava-as acerca da agradável surpresa queo destino lhe havia deparado e, envolto na felicidade quelhe sorria, sentiu as angústias da incerteza. Que mãosmovem o curso da vida? Que força desconhecida operanisso? Que secretos desígnios a deusa Fortuna guardapara si, não concedendo às almas o privilégio de penetrarnos prodígios de seu poder irresistível? Devia esperar ine-xoravelmente que Éon esclarecesse suas dúvidas.

Também ele saltou muito cedo do leito e, após a habi-tual prática de saudáveis exercícios corporais, vestiu-se compresteza. Enquanto aguardava o momento de reunir-se aseus amigos, comprazia-se na espera, entregue à influenciasedutora de alados pensamentos, que a imaginação cobriacom os véus celestes e rosados do encantamento.

Aproximou-se finalmente a hora, que Cláudio quissuperar em pontualidade, chegando ao hotel antes docombinado. Entretanto, grande foi sua surpresa ao verque a família Laguna já o estava aguardando para inicia-rem a jornada.

O carro do jovem partiu velozmente, deixando paratrás, em pouco tempo, a zona que marca o acesso à imen-sa extensão de pedra que se eleva mais e mais, à medidaque o caminho se interna, traçando curvas e contracur-vas, entre cimos e precipícios.

Tão logo ultrapassaram as primeiras encostas, quese sucedem sem interrupção enquanto o caminho escala

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os pontos íngremes, Arribillaga deteve seu carro, convi-dando a fazerem uma parada. Estavam no cimo de umpenhasco. Dali, o panorama se abria amplo, deixandover as cordilheiras serranas, que se perdiam à distânciasobre a planície nebulosa. Às suas costas, flutuandosobre os vértices rochosos, as nuvens se confundiamcom eles. O silêncio, quebrado às vezes pelo sibilo dealguma rajada audaz, contribuía para a imponênciadaquele espetáculo eternamente imóvel. Cumes e abis-mos, com sua rusticidade inóspita, formavam um todoinseparável, e era fácil sentir, em se aproximando desuas bordas abruptas, a sucção produzida por suas for-ças, a qual mais de uma vez fez o homem refletir sobreo poder imenso que a natureza exerce sobre a vidahumana.

Os quatro caminharam um trecho juntos. DonaLaura, atraída por uma fenda que aparecia a grande dis-tância sobre um solo plano, aferrou-se ao braço do espo-so, adiantando-se com ele para observar de perto aquelaestranha boca, cujas fauces – segundo puderam compro-var – eram refrescadas por um sussurrante regato.

Griselda fez menção de segui-la, mas Cláudio adeteve gentilmente. A oportunidade de falar com ela a sósse lhe havia oferecido, e por nada queria perdê-la.

– Não consigo sair de meu assombro, Griselda.Quase não posso acreditar nesta felicidade que é ver vocêde novo...

– Tampouco eu me recuperei ainda da surpresa.Até me parece impossível que você seja o mesmo queconheci quando menina.

– Estou muito mudado?Olhando-o no rosto e em seguida sorrindo-lhe

sugestivamente, ela disse:

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– Eu não sei se é verdade, mas me disseram que oesquecimento costuma mudar muito as pessoas...

– Em alguns casos pode ser assim, não tenho dúvida,mas não no meu. Internamente, não mudei em absoluto.

E, como se de súbito o assaltasse uma inquietude,perguntou:

– Você por acaso não estará comprometida? Ela sorriu e, num gesto brincalhão, levou para trás

a mão esquerda*, ocultando-a; mas em seguida a apresen-tou, com faceirice, mostrando-a tal como ele desejava vê-la.

– Só mesmo acreditando em aparições!... – Cláudioexclamou, extasiado.

– Por quê?– Não é você a mais preciosa de todas as aparições?!Um sorriso, em resposta à frase galante, enlevou-os

docemente, interrompendo-os a voz de Dona Laura, que seaproximava com o esposo.

Retomando a caminhada e tendo atingido a meta,consideraram prudente iniciar o regresso. Ao descerem,demoraram-se ainda alguns momentos junto a um ranchopara observar uma cena do ambiente. Sobre algumaspedras, em grelha improvisada, dourava-se ao fogo um ape-titoso cabrito, aos cuidados de um velho montanhês fundi-do no molde da vida áspera e agreste. No dizer dele, a carnecomeçava a “llorisquear” – a corar, gotejando a gordura quecrepitava e chiava na brasa –, significando que o manjarentrava no ponto mais tentador para ser saboreado. Istolhes recordou que se aproximavam do meio-dia, confirman-do-o o característico reflexo estomacal produzido por aque-le estimulante cheirinho, o que os levou a apressar o passopara alcançar as zonas povoadas e almoçar no caminho.

Regressaram do passeio aproximadamente no meio

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(*) N.T.: Na Argentina, é na mão esquerda que se usa a aliança de noivado.

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da tarde. Ao separar-se deles, Cláudio perguntou a Griseldase no dia seguinte voltaria a vê-Ia.

– Talvez – ela respondeu, num tom de voz que suge-ria mais do que as palavras.

Liana e Albina, que do terraço haviam visto acena, picadas pela curiosidade alcançaram Griseldaquando ela chegava ao final da escada. Para as duas,havia sido um verdadeiro acontecimento vê-la acompa-nhada de Cláudio Arribillaga; daí que a acossassem comperguntas, mostrando-lhe a veemência do pensamentoque as intrigava.

Com graça inigualável, Griselda contornou aqueletiroteio verbal e cobriu sua retirada com a promessa dedepois tratar do assunto. Mas, quando de noite voltarama vê-la, não a perdoaram, e ela teve então de contar-lhessem rodeios a origem de sua amizade com Cláudio.

– Você teve uma sorte tremenda! – Liana exclamou,perplexa ante a série de detalhes que haviam contribuídopara aproximá-los novamente.

– É mesmo! – Albina assentiu. – Para mim é quenunca ia aparecer uma sorte desse tamanho, com certeza...

– Ih! você tem cada uma! Por que se queixa dasorte, se ela pode nos favorecer quando menos espera-mos? Além do mais, o simples fato de a gente se encontrarna vida com um amigo não significa nada fora do comum.

– Isso é o que eu não sei! – objetou Liana, rindo compicardia. – Eu percebo em tudo isto o aroma de umromance. Ele, um magnífico rapaz, com nome, carreira efortuna; ela, nem se fala!... Os dois se conheceram na

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idade das brincadeiras e voltam a se encontrar na flor daidade. Como haverá de acabar isto, senão com o despertarde um amor que vai uni-los por toda a vida?

– Ai! Ai! Está bem, querida, está bem... Você voamais que o vento. No final das contas, será o que Deusquiser – disse Griselda, que lhes pediu, fazendo já mençãode retirar-se: – Não fiquem aborrecidas comigo se deixovocês agora; é que estou muito cansada.

Em seguida, a jovem foi despedir-se de seu pai, quejogava bridge próximo dali. Dona Laura havia-se recolhidocedo naquela noite, e Griselda, que desejava falar com ela,subiu a seu aposento na esperança de encontrá-la acorda-da. De fato, ela se achava folheando uma revista.

Sentada à beira de sua cama e movida pelo profun-do afeto que a unia a sua mãe, a jovem não tardou emconfiar-se a ela.

– Francamente, filha, não sei o que dizer a você...Não pense que estou alheia ao interesse de Cláudio, masacho que devemos esperar, para termos uma certeza sobreseus propósitos.

Griselda permaneceu pensativa, sem compreendernum primeiro instante o que tais palavras significavam.

Para Dona Laura, o momento que sua filha atraves-sava exigia de sua parte o esforço de evitar que a chamado amor, recém-acesa, eclipsasse sua razão, entregandosua vontade ao fatalismo dos sentidos. Compreendendo,pois, o que se passava em sua alma, precavida como sem-pre, observou com tato:

– Não posso deixar de associar, minha filha, cer-tas recordações que este encontro com Cláudio metraz. O orgulho dos Larrecocheas me fez sofrer bastan-te quando fomos viver com seu avô. Eles jamais tive-ram este traço que distingue o bom berço: o de se apro-

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ximarem com simplicidade dos que não possuem benstão numerosos. Seu próprio avô, embora dissimulasseisso, sentia na própria carne a dureza dessa distância.

– Eram orgulhosos, eu lembro muito bem, masCIáudio é diferente.

– Mesmo assim, você deve pensar que ele pertenceà família e à mesma classe social.

– Mas, mamãe!... Por acaso não se pode ser bom,ainda que os parentes não sejam?

– Sim, filha, sim... naturalmente!... Sempre háexceções. Mas eu penso que as circunstâncias aconse-lham prudência. Não se esqueça do que eu lhe disse fazum momento. Você deve conhecer bem o que Cláudiopensa, antes de dar vôo a qualquer esperança.

Griselda beijou sua mãe e dirigiu-se a seu quarto,deitando-se em seguida. As advertências maternas, repi-cando em seus ouvidos, impediram-na por longo tempo deadormecer. Pela primeira vez em sua vida, a jovem experi-mentava rebeldia, pois, embora não deixasse de reconhe-cer o valor daqueles conselhos, eles pareciam incompatí-veis com a confiança que Cláudio lhe inspirava. Custava-lhe muitíssimo superar esse conflito nascente, promovidoem seus sentimentos. Os carvõezinhos que o acaso acen-dera um dia em seu coração de criança, e que ficaram porlongo tempo inanimados pelas cinzas de escondidas recor-dações, tinham agora sua influência reavivada, ao atiçá-los Cláudio com sua presença.

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Após a espera, o amor trouxe em célere vôo umacarta para Griselda: a carta que Cláudio lhe prometera. Obranco e alado tapete – sem ser como os que iam da Pérsiaà Índia, cruzando os espaços que a imaginação enchia commaravilhosas lendas – transportava, com prodigiosos encan-tos para os anelos de sua alma, a confidência que, com pala-vras de fogo, o príncipe encantado lhe enviava, o mesmo queaparece se ajoelhando ante a ilusão do primeiro amor.

Com nervosismo, Griselda rasgou o envelope e reti-rou uma carta cuidadosamente dobrada, que leu com avi-dez. Já mais serena, sentou-se na pequena poltrona desua alcova e voltou a pousar nela seus olhos, relendo-acom calma. Dizia assim:

“Griselda:“Ontem, quando expressei meu desejo de escrever-

lhe, já tinha resolvido o que agora não faço mais que con-firmar, isto é, que nada nem ninguém poderá desviar-medo caminho que haverá de conduzir-me aos umbrais dafelicidade com a eleita de meu coração.

“A estranha circunstância que acaba de nos aproxi-mar, suscitou em mim um verdadeiro turbilhão de interro-gações e muitas reflexões. Há oportunidades que se apresen-tam uma só vez na vida, e, se tivéssemos de recorrer a umelemento de juízo que denunciasse às claras a existência detal realidade, bastaria assinalar que tanto você quanto eupermanecemos até agora alheios aos dardos de Cupido.

“Terei que acrescentar algo? Sim, claro que sim; nemos ouvidos nem o coração se conformam tão-somente coma doçura de uma frase amável. É necessário que escutem esintam essa maravilhosa palavra que aflora aos lábiosamantes, quando a ternura do amor reclama, ao pronun-ciá-la, o direito de ser correspondida. Amo você, Griselda. Enão é a veemência fugaz de um instante o que me impulsio-

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na a expressar isso; é o acesso, ao trono de meu coração, domais delicado e terno dos sentimentos humanos.

“Mas devo fazer-lhe uma confissão, uma confissãoque me tira boa parte da felicidade que hoje sinto. Trata-se dos inconvenientes de saúde que você conhece. Já lherelatei quanto isso tem influído sobre meu temperamento,atormentado pelas rebeliões contra um destino que maisde uma vez ameaçou tirar minha vida. Daí o pesar, a afli-ção que neste momento me invade. Será o temor de quevocê se mostre indiferente às minhas demandas de cari-nho? Ou talvez o temor de que, sendo você tão bela, tãosuave e doce, não possa ser eu, pelas razões expostas,aquele em quem sua preciosa alma haverá de depositarseu amor e sua confiança?

“Esta carta há de parecer-lhe estranha; sei disso, oumelhor, eu adivinho. Porém, só à mulher amada se podem con-fiar os sentimentos mais preciosos, sem vacilação e sem temo-res. Falo-lhe com toda a franqueza, seguro de que você com-preenderá a natureza do sentir que inspira minhas palavras. Opapel é um magnífico confidente do sentimento que anseiaexpandir-se, e o simples fato de pensar que estas folhas con-servam viva a oferenda que a elas confiei, tranqüiliza meu cora-ção com a esperança de que serei bem interpretado.

“Quando, dias atrás, você me mostrou suas mãos,livres de sugestiva aliança, invadiu-me uma ternura sin-gular, e o secreto e ardente aviso de que em breve pudes-se ser minha a que luzisse nelas, dissipou as nuvens queturvavam meu ânimo.

“Eis aqui, Griselda, o ditado de meu coração.Agora, espero merecer umas palavras suas. Não temafazê-lo com sinceridade, pois sua resposta, seja ela qualfor, me achará em perfeitas condições para recebê-la.

“Com todo o amor e respeito, cumprimenta-aCláudio Arribillaga.”

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Um pouco mais tarde, entrou Dona Laura no quar-to, buscando a companhia da filha. Ao vê-la absorta, ecom a carta entre as mãos, perguntou-lhe:

– Quem escreveu para você? – Cláudio, mamãe – a jovem disse, estendendo-lhe

a missiva. – Ele me expressa seu carinho e manifesta, aomesmo tempo, sérias preocupações...

Leu a mãe a carta até o final e, vendo depois queGriselda reprimia um soluço, acercou-se dela, solícita.

– Que bobinha, minha filha! Estou certa de que vocêse aflige pelo que ele disse sobre sua saúde. Não lhe dêtanta importância, Griselda. Uma viagem de carro, como aque fizemos dias atrás, requer pulmões sadios e certa resis-tência física. Ontem mesmo, seu pai me dizia algo sobre osexagerados temores de Cláudio, que obedecem, segundoobservou, a uma espécie de mania, a uma obsessão que fazo rapaz acreditar em supostas deficiências pulmonares.Explicou-me que muito disso provém, sem dúvida, dos cui-dados desmedidos que o pai teve com ele, por causa deuma doença que sofreu na adolescência. Em parte é expli-cável: para Dom Roque, esse filho é o único afeto com queele conta na vida. Mas tudo isso há de passar, não duvide,quando ele tiver preocupações mais absorventes.

Griselda suspirou feliz.– Você pensa assim deveras, mamãe?– Sim, minha querida; nesse sentido, você pode estar

tranqüila... A meu juízo, porém, há algo mais importante queisso. Suponha que Dom Roque, por influência de Fermina,que tanto interfere em sua vida, se negasse a consentir norelacionamento de Cláudio com você. Você acha que ele seriacapaz de opor resistência às determinações do pai, que eletanto respeita e a quem ele mostra ser tão dedicado?

Sem sentir-se afetada pelas últimas palavras damãe, a jovem disse com atitude tranqüila:

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– Eu também havia pensado nisso, mamãe. Mas, ajulgar pela segurança que ele põe em suas afirmações, eudiria que isso está descartado.

– Não tenha tanta confiança, filha. É melhor vocêesperar e ver que atitude o pai dele vai tomar.

Quando ficou novamente a sós, Griselda aproxi-mou-se da janela de seu quarto, buscando talvez, na sere-na calma do entardecer, um sedativo para sua alma.Ainda tinha em suas mãos a carta, que apertou contra seupeito. Era indubitável que a cálida mensagem a comoveraprofundamente. Sentia-se feliz com aquele carinho. Suavida, até então indiferente aos afagos do amor, experimen-tava o delicioso encanto de sentir-se correspondida. “MeuCláudio”, murmurou, levando a carta aos lábios, “paravocê são minhas esperanças e meus pensamentos maispuros. Hoje sei que era por você que meu coração aguar-dava... Minha emoção me anunciou isso, sem saber aindaque era você aquele a quem eu estava vendo.”

Após um suspiro feliz, como faz o coração quandodesaparece a dúvida que o oprime, Griselda perguntavapouco depois a sua mãe:

– Papai já sabe alguma coisa sobre tudo isto?– Ah, filha!... Seu pai, nem o vaivém de uma folha

lhe escapa.– E o que é que ele acha?– Não fez outros reparos além daqueles que eu já

expressei a você.Nesse mesmo dia, Griselda confiava à ponta de sua

pluma as seguintes linhas:

“Cláudio:“Li sua carta e refleti muito. Certamente, este é um

momento tão especial, que não consigo encontrar palavras

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capazes de traduzir com fidelidade meu pensamento. Algocoíbe meu espírito e me impede de ser mais explícita.Compreenda minha situação, eu lhe peço.

“Amanhã à tarde, depois do chá, aguardarei suavisita.

“Afetuosamente, Griselda.”

As horas que se seguiram ao envio dessas linhaspareciam ter transcorrido em branco para Griselda, absor-ta como estava em emotivas reflexões. Entretanto, o céu deseu pequeno mundo apresentou-se no dia seguinte ligeira-mente manchado de cinza. Expectativa e temor se confun-diam com ilusões e esperanças, numa tênue mistura. Suaincerteza a respeito de com que olhos a família de Cláudioveria seu namoro a enervava ao aproximar-se a hora de seencontrarem, temendo não saber encarar a situação.

Sob o efeito de tais pensamentos, ela caminhavanessa tarde pelas veredas do parque, entre o verde brilhan-te da relva recém-regada e o colorido alegre da vegetação.

A freada de um carro ao deter-se na esplanada dohotel fê-la virar a cabeça. Dele descia Cláudio Arribillaga.Voltando sobre seus passos, ela encaminhou-se a seuencontro e, em poucos segundos, ambos cobriram a dis-tância que os separava.

Com palavras a princípio emocionadas, depoismais serenas à medida que se ia recompondo de sua tur-bação, Cláudio renovou suas declarações de amor,enquanto caminhavam em direção ao hotel. Notando nela,porém, certa reticência, deteve-se.

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– O que está acontecendo, Griselda? – perguntou. –Estou vendo que você está preocupada.

– Um pouco, nada mais... São pensamentos que eugostaria de afugentar.

– Se eu pudesse ajudar!... Se estivesse a meualcance, é claro...

Dona Laura, saindo-lhes ao encontro, interrom-peu-os:

– Que nos conta de novo, Cláudio?– Que me sinto outro de uns dias para cá, tanto que

eu mesmo ando admirado do quanto estou bem em todosos sentidos.

– Os ares serranos são maravilhosos – a mãe deGriselda insinuou, esquivando-se da hiperbólica frase.

– Muito bons, não tenho a menor dúvida; mas issonão é tudo – ele respondeu, incitado por seu entusiasmo.– Eu comprovei que a nostalgia, o aborrecimento, a indife-rença, podem também nos asfixiar, mesmo que a genterespire oxigênio puro.

Várias senhoras, que nesse momento organizavamuma partida de cartas, aproximaram-se do grupo paraconvidar a senhora Laguna, a qual, deixando livres os doisenamorados, permitiu-lhes ir em busca de um lugar dis-creto onde pudessem conversar à vontade.

Diante da insistência de Cláudio, interessado emconhecer o motivo de sua preocupação, Griselda expres-sou-lhe:

– Estou inquieta, talvez além da conta, por causadas dificuldades que seu pai poderia criar para você, aosaber de seus propósitos. Sei muito bem que você é livre,e que ele terá de ceder ao que você resolva, mas eu senti-ria tanto se acontecesse um desentendimento que pudes-se ferir os afetos...

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– Oh, não vejo motivo, Griselda!... Que razões pode-riam existir para ele se opor? Além do mais, se isso acon-tecesse, só duraria o tempo que as circunstâncias exigis-sem para convencê-lo de sua postura inadequada e inútil.Confio muito em meu pai, cuja única preocupação foi sem-pre a de me ver feliz. Já lhe adiantei algumas coisas sobreo assunto, e sua resposta não deve demorar a chegar.

– Que apressado! – Griselda exclamou, sentida. –Não seria mais eficaz encarar o assunto pessoalmente?

– Talvez, mas agora já não há remédio, nem tenhomedo de nenhuma conseqüência. O que me preocupamuitíssimo mais, pode acreditar, é a predisposição de meuorganismo a indispor-se.

– E não seriam infundadas tais preocupações?– Por quê?– Porque me parece que você é apreensivo demais.

Eu acho que, com a desculpa de sua saúde, você se acos-tumou a mimar em demasia sua própria pessoa.

Cláudio olhou-a fixamente por uns instantes, semque se pudesse avaliar se a perplexidade que repontavaem seu rosto obedecia a uma reação ante a dúvida expres-sada por ela, ou a um sobressalto produzido de súbito peloreconhecimento de um erro em que, até então, não haviareparado. Estariam as palavras de Griselda operandosobre ele, nesse momento, a modo de exorcismo? Estariacaindo aos pedaços o feitiço que lhe causara obsessão,induzindo-o a exagerar os sintomas de uma doença pade-cida tempos atrás, e praticamente extinta? Suas própriaspalavras deram a resposta:

– Só uma circunstância como esta poderia produzirem mim o efeito que produziu, Griselda. Se antes deconhecer você outra pessoa me tivesse feito a mesma refle-xão, eu a teria rechaçado cegamente. Não existia em mim,

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como existe agora, o menor desejo de modificar minha cren-ça. Mas assim como antes eu alimentava isso, levado porpensamentos de rebeldia contra mim mesmo, que vinhamdessa minha crença, de agora em diante eu vou rechaçá-la,porque quero me sentir sadio, gozar a vida, e nesse empe-nho vou aplicar minhas melhores energias. Você sabe quepôs, sem querer, o dedo na minha ferida? Sinto-me curado,eu garanto a você, milagrosamente curado.

– É de assustar a rapidez com que você afasta osobstáculos de seu caminho! Eu me pergunto se não convi-ria que você pensasse com mais calma nas coisas. Que pen-sasse, por exemplo, nesse passo tão sério que pretende dar.

– Por favor, Griselda! O amor se sente, não sepensa... e mesmo no caso de se recorrer a algum raciocí-nio, este não escaparia à influência do sentimento.

– Mas você tem certeza de ser correspondido? – elainsinuou, com simulada e prazerosa provocação.

– Certeza absoluta, porque a linguagem das almasé mais expressiva que as palavras. Antes que pronuncie-mos uma só delas, já estaremos secretamente convencidosde que não somos indiferentes ao ser em quem pusemos oolhar e o sentir... Neste momento, eu poderia acrescentarque seus olhos me dizem isso... e também seus lábios, aosorrirem, apesar de ainda não se terem pronunciado.

– Até parece que você não precisa – ela disse, gra-ciosamente.

– Agora mais do que nunca, Griselda. Mas eu dis-penso você de tal exigência, pois considero que ela já foicumprida.

Ela baixou os formosos olhos, e um suave ruborcoloriu suas faces.

O encanto inexpressável do momento os envolveu comsuas asas imateriais. Nesse fugaz instante, Cláudio tomouentre as suas a mão da jovem e a beijou com ternura.

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– Griselda, quero que seus pais conheçam semdemora o que penso.

– É um pouco prematuro, Cláudio. Será melhor quevocê o faça em Buenos Aires.

– Não; não pode ser. Quero deixar cumprida quan-to antes esta formalidade. É para mim uma necessidadeabsolutamente imperiosa.

Com a presença dos que chegavam antes do jantar,o hotel voltava já a animar-se.

O dia seguinte amanheceu chuvoso.Durante o café, Griselda lamentava esse fato com

visível mortificação. Seus pais sorriam de si para si ante ovolume que o imprevisto contratempo ia assumindo noânimo da filha.

– Quanto bem esta chuva vem fazer às searas! – odoutor manifestou, com certo tom matreiro. – Mas nãoacho que elas vão desfrutá-la por muito tempo. Estachuva logo vai passar...

– Eu penso a mesma coisa. Com certeza, lá pelomeio-dia ela já terá acalmado... – adicionou Dona Laura,fazendo também seu prognóstico.

– Pois meu medo é que ela dure o dia todo! – lamen-tou-se Griselda, para quem o aspecto do céu pressagiavao contrário.

O doutor Laguna não perdia de vista a inapetênciade sua filha. Enquanto passava manteiga e geléia numpedaço de pão, recomendou-lhe furtivamente, sempre como mesmo tom matreiro, que não deixasse de comer por

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esse motivo. Fez isso com tal graça que conseguiu final-mente fazê-la sorrir.

Mas o mau tempo não tinha remédio. A chuva nãocessava e, a cada escurecimento do céu, novas forças otemporal ganhava. Densas nuvens, impelidas pelo ventoem fortes empurrões, cumpriam com premência a tarefade descarregar seus odres repletos, a ponto de fazerempensar que se haviam inundado os domínios do supostoguardião das chaves do céu.

Ao entardecer, Griselda observava com incontidodesalento o tumulto atmosférico, que por instantes setomava de violência. O pesado carroção das horas pareciadeter-se de tempos em tempos. Sua lentidão hierática con-trastava com o angustioso olhar da jovem, que contempla-va a luta tenaz entre chuva e vento por trás das janelas dohall. De tempos em tempos, consultava seu relógio, cujosdiminutos ponteiros, alheios a sua impaciência, percor-riam sua rota circular com imperturbável monotonia.

A voz de Cláudio fê-la virar de pronto a cabeça, trans-mudando-se instantaneamente sua angústia em alegria plena.

– Oh! mas que imprudência!... Como você conse-guiu vir com este tempo? – disse a ele, buscando as pala-vras mais apropriadas para disfarçar sua complacência. –Não vai lhe fazer mal?

– Eu tinha de cumprir uma missão inadiável,Griselda... A razão que está por trás supera todas as demais.

Sentaram-se para prosseguir a conversa, que maisde uma vez interromperam para falar do tempo e de outrasamenidades, ao serem abordados pelos amigos que per-maneciam no hotel, presos pelo temporal.

– Desde ontem – Cláudio manifestou, – não tenhofeito outra coisa que tecer projetos sobre nosso futuro.Veja você como são as coisas: aquele mesmo que um dia

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atrás duvidava de poder mudar o curso de sua vida, agoraentrega a você a chave simbólica de seu destino.

– E por acaso é a primeira vez que faz isso?– Sim, Griselda. Digo com toda a honestidade.

Jamais me aconteceu nada parecido, pela simples razãode que nenhuma das mulheres que conheci despertou emmim a simpatia que você me inspira. Qualquer um diriaque vivo com atraso, mas a Eva atual, tão emancipada, àsvezes tão sem limites, não atende ao meu gosto.

– Pode-se saber onde é que você vê tanta diferença?Você ainda mal me conhece!... Quem pode dizer se depoiseu vou merecer o mesmo conceito?

– Não, Griselda, você não. Toda a sua pessoa é umaexceção, não combina com o vulgarismo de uma socieda-de que perdeu o encanto da antiga intimidade familiar.

– Você fala que nem meus pais, sem tirar nem pôr!Eles não vêem com bons olhos o modo de vida de nossaépoca. Você não imagina as vezes que já ouvi mamãe com-bater suas amigas, porque elas defendem a idéia de queresistir aos novos costumes é cair no ridículo.

– E você compartilha as opiniões dela?– Sim, mas com uma diferença: nela atua uma convicção

fortalecida pelas observações e pela experiência da vida, enquan-to que em mim tudo vem da educação recebida e de conceitosadotados livremente, por afinidade com minhas necessidadesíntimas, minhas aspirações, meus gostos, meu modo de ser.

– Como me sinto feliz ao ver confirmados meus pró-prios pensamentos!

– Quando eu era menina – ela prosseguiu, – recordoquanto me agradava escutar, do vovô, as lendas que ele con-tava, nas quais sobressaíam personagens em ações de gene-rosidade e heroísmo. Ao ir crescendo, meus pais, conhecendomeus gostos, costumavam me dar de presente romances e

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livros de diversos gêneros, que eu lia com verdadeira pai-xão. Por isso, depois, ao aproximar-me mais da vida, expe-rimentei sensíveis decepções. E não vá você supor que eupretendia achar a cópia exata daquilo que tinha guardadoem minha imaginação, oh, não!...

– Menos mal! – Cláudio exclamou, rindo.– Não se alegre tanto; eu ainda não disse até que

ponto fui reduzindo minhas pretensões...– Só espero que você não as tenha mantido tão no

alto, que seja difícil para mim satisfazê-las.Após um sorriso, Cláudio acrescentou, cheio de

entusiasmo:– Griselda, eu comemoro o fato de você ser tão

reflexiva. Comemoro e aplaudo. Você não sabe como meuamor se exalta ao ouvir você e ao conhecer de perto as inti-midades de sua alma...

Intentou ele com veemência tomar de pronto as mãosde Griselda entre as suas, mas ela se opôs delicadamente.

– Não é sensato, Cláudio, deixar-se levar por arre-batamentos.

– Tem razão. Vejo que você já começa a me guiar,para que o caminho que deverei percorrer até você sejamenos difícil. Isso me deixa satisfeito, e até agradecido. Naverdade, sou um pouco impulsivo.

– Só um pouco?Em seguida, procurando expressar-se de forma a

não se expor a um novo fracasso, Cláudio perguntou:– Por que não nos tratamos com a mesma sem-ceri-

mônia de quando éramos crianças?*

– Porque agora somos crescidinhos, e você, umsenhor muito respeitável... – replicou ela, rindo.

(*) N.T.: No original, “Por qué no nos tuteamos como cuando éramos niños?” NaArgentina, tratar alguém por “tu” (tutear) é sinal de grande intimidade. É o “tuteio”,que em certas regiões do Brasil também é usado, mas sem essa característica.

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E assim, enquanto o pretendente movia com estratégiaseus bispos em hábeis jogadas, a rainha branca se deslocavacom agilidade pelo tabuleiro. Os xeques se repetiram com fre-qüência, mas sem que chegassem a definir a contenda.

Com pesar, chegou finalmente a inevitável e temidahora da despedida. Ao se separarem naquela tarde, guarda-ram ambos dentro de si a doce promessa de uma aproxima-ção de suas vidas, que se iria acentuando nos dias vindouros.

Na noite desse mesmo dia, enquanto aguardavamno salão a chegada de Dona Laura para organizar umapartida de canastra, o doutor Laguna interpelou a filha:

– Fiquei sabendo, através de sua mãe, que CláudioArribillaga se interessa por você.

– É verdade, papai – respondeu Griselda, que, ani-mada pelo tom afetuoso da voz paterna, lhe revelou a atra-ção que mutuamente sentiam, suscitando-se a partir dalium diálogo cordialíssimo.

Dona Laura uniu-se a eles e, entre apreciações e brin-cadeiras, transcorreu um instante de comunicativa alegria.

Iniciado o jogo, suas alternativas não tardaram apromover desavenças – quiçá as únicas que se produziamentre eles –, seja pela simulada vanglória de quem ganha-va, seja pelo aparente inconformismo de quem errava. Nofundo, tudo era parte do entretenimento.

Liana e Albina aproximaram-se deles, para convi-dar Griselda a integrar um grupo juvenil. O já próximoregresso dos Lagunas era motivo mais que suficiente parasua instantânea aceitação. Assim, pois, o remate feliz deuma jogada de Dona Laura permitiu que Griselda aten-desse suas amigas.

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Misturando-se ao grupo, Griselda ocupou um lugarjunto a Liana, que lhe tomou a mão e lhe disse em segui-da, baixo e em tom carinhoso:

– Você não faz idéia de como se fala de seu caso...É o pratinho do dia, querida!

– E o que é que dizem?– Você se assustaria se eu contasse!... – a marota

respondeu, com deliberada exageração.– Pelo que vejo – Griselda manifestou, resignada a

suportar tudo, – aqui ninguém escapa da avidez do mexeri-co, que não fica satisfeito enquanto não passa pelo moinhoda crítica cada grão que consegue tirar da colheita alheia.

– E quando o grão é do tamanhozinho de uma jaca...– acrescentou Liana, soltando uma gargalhada – você podefazer idéia do trabalho que ele vai dar a esse tal moinho!

Seu riso contagiante fez com que os demais quises-sem saber o motivo daquele alvoroço.

– Não, não e não! São assuntos particulares, quenão precisam passar pela peneira da opinião pública –Liana sustentou.

– Queremos saber! Queremos saber! – os do grupoinsistiram, repetindo a meia voz o estribilho.

José Gutiérrez, oportuno e cavalheiro como sem-pre, saiu em defesa das duas jovens e, com gestos nãoisentos de comicidade, propôs que lhes perdoassem poressa vez a travessura, cujo desfecho, disse ele, parecia serde caráter reservado. O episódio terminou numa algazar-ra de risos, brincadeiras e frases jocosas.

Não faltou quem, em tom de troça, expressasseadmiração por não terem convidado Cláudio Arribillaganessa noite, insinuação a que Gutiérrez respondeu, dizen-do que ele mesmo se havia encarregado de fazê-lo, masCláudio se recusara, por estar à espera de uma comunica-ção telefônica de Buenos Aires.

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Griselda não pôde evitar um sobressalto e, fossepossível, de bom grado deixaria seus amigos naquelemesmo instante.

Quando, passada a meia-noite, ela entrou em seuaposento, viu luz no quarto de seus pais e, ouvindo-osconversar, foi até eles.

– Qual dos dois ganhou? – perguntou ela, atenciosa.– Saímos empatados – respondeu o doutor Laguna.

– É difícil ganhar de sua mãe.– Não é isso... – a senhora protestou. – O que acon-

tece é que você se distrai.– Talvez seja como mamãe diz, porque você geral-

mente perde.– E você, como foi?– Muito bem, mamãe. Tivemos uma reunião diver-

tidíssima – respondeu a jovem.Seu rosto, entretanto, não confirmava o que

dizia. Sem dúvida, ela mesma se dava conta disso e,para evitar novas perguntas, manifestou estar um poucocansada, despedindo-se dos pais com seu habitualafeto.

Através da persiana entreaberta, os raios da luaformavam caprichosos desenhos na superfície da colchaque cobria a estilizada silhueta de Griselda. Após persis-tente vigília, arrebatada pelo cântico hipnótico deMorfeu, ela havia enlanguescido por fim em seus braços,adormecendo profundamente. Com a formosa cabeçarepousada com confiança sobre o travesseiro, evocava

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nesse instante o adorável espetáculo daquelas princesasorientais que o nume poético descreve como guardadasem torres inacessíveis. Em suas alcovas, entregues aosono ou ao êxtase, burlavam, sem terem disso intenção,a vigilância de seus brutais guardiães. Essa evasão emespírito lhes permitia alcançar o conúbio divino propicia-do por suas alucinações, que atenuava em parte o mar-tírio de um encarceramento incompreensível, que as con-denava a eterno celibato. A alma de Griselda, como adaquelas cativas régias, sem dúvida se havia remontadoaté as estepes celestiais, das quais se costuma conservarvaga memória ao despertar. A incerteza do futuro, as difi-culdades que poderiam sobrevir nas etapas de seunamoro, constituíam para ela essa prisão simbólica.Profundos suspiros, que de quando em vez escapavam deseu peito, pareciam fazê-la transpor as muralhas lendá-rias, para acariciar contidas expansões no mais íntimode seu coração.

A imensa cúpula celeste, com sua escura tela defundo, deslocava-se prodigiosamente para outras latitu-des, e suas eternas luminárias, como olhos que jamaisconheceram o sono, seguiam-na para sondar novos des-tinos.

O imponente Febo, que não entende a língua dosenamorados, por fim se ergueu altaneiro, devorando comafã de ciclope os minutos que o relógio dos homens seencarrega de anotar com rigorosa precisão.

Tudo parecia favorecer o instante de um agradáveldespertar. Entretanto, após abrir placidamente os olhos,Griselda logo recordou suas preocupações anteriores.Vestiu-se inquieta, dispondo-se, com pouco entusiasmo, aacompanhar seus pais num dos últimos passeios quedurante a estada fariam nas serras.

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Aquela excursão pelas montanhas haveria de ser amenos tranqüila para ela, já que, por um inesperado atra-so ao empreenderem a volta, seu coração enamorado tevede sofrer contínuos sobressaltos, ao ver como se ia malo-grando o feliz encontro com que contara naquela manhã.

Entretanto, tal não ocorreu.Ao penetrarem pelos grandes portões do hotel,

cruzaram com o carro de Cláudio. Voltar seu veículoem rápida manobra, abrir a porta, saltar do assento eestar junto ao carro dos Lagunas no preciso instanteem que Griselda descia dele, tudo isso Cláudio fez numátimo.

– Você já ia embora? – Griselda perguntou, comolhar ansioso.

– Oh, não! Ia até o correio colocar uma carta, pen-sando que vocês iam chegar mais tarde.

– Papai é por temperamento avesso à velocidade.Ouvindo-a, seu pai se justificou, muito calma-

mente:– Eu não confio nas rodas, filha. Além do mais, nem

sempre é bom correr quando queremos ser pontuais.Em breves palavras, Cláudio pôs Griselda a par das

novidades que haviam surgido.– Ontem à noite – disse – ao voltar para casa,

encontrei um telegrama de meu pai, pedindo meu regres-so com urgência. No mesmo instante, achei que seu cha-mado tinha relação com minha carta, e mais tarde confir-mei por telefone que tinha mesmo.

– Oh, Cláudio, eu estava pressentindo isso! Ocomeço de nossas dificuldades não podia demorar...

– Nem pense nisso, Griselda. É natural que meu paiqueira conhecer meus propósitos.

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– Sim, é natural. O estranho é essa pressa por suavolta. O que você pensa fazer agora?

– Ir embora amanhã de madrugada. Não fico tran-qüilo enquanto não resolver a nosso favor esse assunto.

– Você vai um dia na nossa frente. Vamos sairdepois de amanhã.

– É mesmo uma pena a gente não poder ir junto.Quando o doutor Laguna se inteirou do inesperado

regresso de Cláudio, sugeriu a sua esposa que o convidas-sem para almoçar. A proposta foi acolhida com agradounânime.

Laguna e Arribillaga dirigiram-se ao bar, e ali,enquanto esperavam que as damas se reunissem a eles,o jovem enamorado expôs ao doutor os propósitos quetinha a respeito de sua filha, reforçando suas palavrascom a afirmação de que faria todo o empenho em torná-la sua esposa o mais breve possível. Às prudentes refle-xões do doutor, no sentido de que tal proposição teriaque ser ratificada em Buenos Aires após conversar comseu pai, Cláudio respondeu que seguiria essa linha deconduta.

– Seja lá como for – o doutor Laguna concluiu, –conte com toda a nossa simpatia e nossos melhores votosde que seus assuntos se resolvam com acerto.

O almoço transcorreu alegremente. À sobremesa, opai de Griselda brindou à felicidade de todos. Cláudioentão levantou sua taça:

– Ainda que pareça prematuro – manifestou, – meusentir já me faz membro da família, à qual eu desejo umfuturo pleno de ventura.

Momentos depois, discretamente, os pais deGriselda se despediram de Cláudio, retirando-se para des-cansar.

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Quando os dois namorados ficaram a sós, ele,satisfeito com o andamento das coisas, expressou aGriselda:

– Oxalá possamos somar a este dia inolvidável mui-tos outros, ainda mais gratos e felizes.

Convidados em seguida pela placidez atmosférica,saíram a dar um breve passeio pelo parque. Ali, ao estímu-lo da deliciosa soledade, ambos confiaram seus corações àintimidade daquele momento idílico, consentindo-se oobséquio da mais doce das carícias.

Ao separar-se de Griselda, Cláudio levou naquele diaessa amável recordação, que renovaria nele, instante apósinstante, a promessa de fazê-la companheira de sua vida.

Em Buenos Aires, uma situação delicada aguardavaCláudio. Nora, reagindo sem escrúpulos por força de sua ati-tude resoluta e terminante, havia chegado de forma solapa-da até Dom Roque, num atrevido intento de triunfo. Disso ojovem teve noção tão logo trocou as primeiras palavras como pai, pois este, que havia dado crédito à conversa de suaprima, julgando-o com excessiva severidade, não demorouem encher-lhe os ouvidos de repreensões e censuras.

Um grande pesar se apoderou de seu ânimo, sobre-tudo ao considerar os efeitos da intervenção de DonaFermina. Desconhecendo as tramas e manejos da filha,ela havia apresentado o assunto a Dom Roque com plenoconvencimento de que advogava por uma causa justa.

No outro dia, em horas avançadas da tarde, sem terconseguido ainda solucionar aquele imprevisto, Cláudio se

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vestia, disposto a fazer um passeio pelas ruas para apagaros efeitos das anteriores horas de angústia. Todos os seusmovimentos, ao desincumbir-se daquela tarefa, indicavamque a depressão impressa em seu semblante tirava vigor aseus membros. Estava longe de supor que Patrício, aoentrar nesse instante em seus aposentos, lhe anunciaria apresença na casa de Dona Fermina e sua filha Nora.

A novidade consternou o jovem. Mas logo a indig-nação fê-lo reagir e, com a ajuda diligente do criado, con-seguiu vestir-se rapidamente, desejoso de enfrentar quan-to antes aquela desagradável e conturbada situação.

Desceu apressado a escada e, com andar ligeiro,nervoso, resoluto, penetrou no escritório do pai, onde ostrês se achavam reunidos.

Com afetada explosão de surpresa e alegria, DonaFermina o recebeu:

– Cláudio! Como está você?E acrescentou em seguida, repreendendo-o:– Você não nos telefonou! Eu não acredito!...Cláudio desculpou-se com a parcimônia que a pró-

pria situação impunha, cumprimentando Nora em seguida.Depois, tudo foi silêncio. Dom Roque, rijo em sua

poltrona, inibia a todos com sua atitude austera, rigorosa,pouco comum nele, mantendo-os na expectativa do queestaria disposto a dizer. Enquanto as mulheres esperavampor um pronunciamento favorável, Cláudio achava-se pre-venido contra o que, naquele momento, lhe pudesse vir deseu genitor.

Dom Roque, já tendo arrancado suficiente brilhodas hastes de seus óculos, entrou no assunto:

– Vocês chegaram justamente num momento espe-cialíssimo, porque estou planejando uma viagem àEuropa, em companhia de Cláudio.

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– Não pode ser, tio Roque! – Nora protestou.– Mas como você pôde pensar numa coisa dessas! –

a mãe objetou, erguendo-se do assento.Quanto a Cláudio, não lhe foi possível, em tão fugaz

instante, afirmar se adivinhava nas palavras do pai umardil para livrar-se da pesada parentalha, ou se as inter-pretava como uma medida de força esgrimida contra ele,para pressioná-lo. Não obstante, manteve-se impassível.

Fermina apressou-se em tomar novamente a pala-vra, sobressaltada pela intempestiva determinação deDom Roque, a quem repreendeu com energia:

– Mas justamente agora você tem essa idéia de via-jar à Europa?! Agora que planejávamos formalizar o noiva-do de Norinha e Cláudio?!

– Como?!... – este perguntou, perplexo. – Quem éque vai formalizar meu noivado?!... Vocês?!... E eu? Eunão sou ninguém?!... E de onde vocês tiraram esses amo-res que jamais existiram?

– Não é verdade o que você diz! – Nora recriminou, trans-tornada. – Você teve atenções e palavras comigo que diziammuito bem o que neste momento está negando! Eu também lheescrevi cartas, e você nunca refutou o que eu dizia nelas.

– E não foi suficiente para você o fato de eu deixá-las sem resposta?

Dona Fermina enrubescia, sufocada por tudo aqui-lo. Entretanto, confiando que ainda poderia fazer valer suainfluência sobre Cláudio, expressou, conciliadora:

– Mas, filho, o que aconteceu com você? Não oestou reconhecendo! Você por acaso ignora que mais oumenos de um mês para cá, desde a festa de Cecília, todosfalam de seu namoro com Nora? Vamos, rapaz, é precisoacertar este assunto!... Você tem de ser razoável.

– Sinto muito, tia. Não temos nada para acertar,porque nada disso que se falou aqui nunca existiu.

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Nora fitou-o com desdém.– Ah, é assim?! Isso você diz agora, depois que se

envolveu com sua pretensiosa dulcinéia!Cláudio não respondeu. Decidido, porém, a pôr

ponto final, informou a seus parentes que seu namorocom Griselda era um fato que não admitia discussões.

Dona Fermina, que via desmoronar sua ascendên-cia familiar, não apenas sobre Dom Roque, que até alinada havia dito em seu favor, como também sobreCláudio, acabou por censurar duramente a este por seuprocedimento para com elas, que tachou de insensato. E,como se isso fosse pouco, Nora, excitadíssima, lhe dissecom despeito:

– Está na cara que andei fazendo papel de boba.Como se vê, a neta do velho Laguna acabou seguindo osseus passos!

Dom Roque, no íntimo insatisfeito com aquelaáspera controvérsia, com as palavras subindo de tom,interveio então com ânimo de apaziguá-la, explicando embreves palavras as circunstâncias que motivaram o encon-tro de Griselda com seu filho. Mas isso não bastou. Uma eoutra vez, precisou lançar mão de seus recursos, até que,cansado afinal, disse claramente a Fermina que não insis-tisse e deixasse o assunto por sua conta.

Quando ela e sua filha saíram, Dom Roque voltou-se para Cláudio, que permanecia cabisbaixo e como queesmagado em seu assento. Depois de mirá-lo por um ins-tante, e talvez com menos benevolência que a exigida porseu coração, perguntou-lhe:

– Você está informado sobre a posição econômicados pais dessa moça?

– Não me preocupei em verificar isso... – replicouseu filho, contrariado pela índole da pergunta e pela formade aludir a Griselda.

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Apesar disso, serenou-se e acrescentou:– Só sei que seu pai é um médico de prestígio, que

exerce com êxito sua profissão. Por outra parte, apesar deter convivido pouco com sua família, tenho um ótimo con-ceito dela. Quanto a Griselda, já lhe disse que é bondosa,culta e inteligente. Se você a conhecesse, tenho certezaque gostaria muito dela.

Depois de escutar aquela resposta, franca e singe-la, Dom Roque, cujos passos dados a esmo, num e noutrosentido da sala, denunciavam seu grande nervosismo,parou diante de seu filho:

– A única coisa que lhe posso dizer é que será paranós um vexame quando parentes e amigos ficarem saben-do que você pôs os olhos numa mulher que não é da suacondição social. Vejo em tudo isso um deslize de sua parte,e pode estar seguro de que eu me negarei a aceitar talcoisa.

Não era, por certo, o livre juízo de Dom Roque o queCláudio acabava de escutar. Conhecia seu pai, podendoavaliar até que ponto as idéias superficiais de Fermina lhehaviam penetrado na cabeça, e o muito que ela haviainfluído para diminuir e até lesar a reputação da família deGriselda. Dando-se plena conta da situação desvantajosaem que estava, e já duvidando se poderia romper comaquele emperramento, disse, não obstante, em tom per-suasivo:

– Eu acho, papai, que nosso nome não vai ficar des-merecido em nada. Trata-se de uma família honrada. Alémdisso, Griselda reúne todas as condições desejáveis paraser minha esposa. E, por último, como sou eu quem vai secasar, suponho que o mínimo direito que me assiste é o deescolher a noiva...

Dom Roque, vendo que nenhum dos recursos pos-

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tos em prática para submeter seu filho havia tido êxito,dispôs-se então a esgrimir outro mais contundente, claroque sem o propósito de consumá-lo:

– Bem, muito bem! Mas você precisa saber queestou resolvido a confiar a administração de meus negó-cios a outra pessoa. Faz mais de dez anos que DomGregório se encarrega da contabilidade, e ele poderá subs-tituir você sem problema nenhum.

– Quer dizer que você me desliga de tudo?– Assim mesmo. Mas isso não deve ser motivo de

estranheza alguma, pois estou fazendo o mesmo que você:exercendo o direito de livre vontade.

– Está bem... – tornou Cláudio, com evidente des-concerto.

E, sem nada mais dizer, abandonou o escritório.

Em razão de tal acontecimento, a mente de Cláudiofervia como uma caldeira. Após horas de agitado sono,pediu pela manhã o café, dirigindo-se em seguida à casade Dom Luciano Almeida, rico fazendeiro e velho amigo deseu pai.

Veio recebê-lo Luciano, o filho caçula, mais conhe-cido por Lucianito, diminutivo que ele conservava desde ainfância, junto com um caráter caçoador e folgazão. Tinhaa mesma idade de Cláudio e fora seu colega de vida estu-dantil.

Com vivas mostras de júbilo, festejou a visita doamigo, mas logo se conteve ao ver seu abatimento, queCláudio lhe explicou em parte, dizendo que tinha muitanecessidade de falar com seu pai, por motivos que o preo-cupavam.

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Momentos depois, Cláudio se via a sós com DomLuciano, que o acolheu com paternal afeto.

Era este um homem lhano e honesto, brando esumamente otimista, condições que, unidas a uma situa-ção econômica muito folgada, haviam influído no caráterdespreocupado e superficial de seu filho.

– Olá, Cláudio! O que traz você tão cedo por aqui?– disse-lhe de saída. Ao ver, porém, seu rosto transfigura-do, acrescentou: – Sou capaz de apostar que há algumrabo-de-saia metido nessa história...

– Não se trata do que o senhor pensa, Dom Luciano– Cláudio replicou, narrando-lhe seu problema.

– Faço idéia do que você está passando – o senhorAlmeida expressou, depois de escutá-lo. – Conheço seu paie sei que ele é meio cabeça-dura; quando se aferra a umaidéia, não existe quem a arranque de sua moleira.

– É justamente por isso que estou pensando em meinstalar por minha própria conta e deixar que as coisascontinuem como estão.

– Não, rapaz! Você é jovem e inteligente, e não duvi-do que sua profissão o ajudará a fazer carreira, mas nãoacho que convenha ir tão longe.

– É que eu não vejo outra saída, Dom Luciano. Aúnica solução é me instalar na banca de algum colegaamigo.

– Mas por quê?! Você por acaso não dispõe daherança de sua mãe?

– Meu pai nunca me falou dela, esse assunto nuncame preocupou, e por uma questão de respeito eu não gos-taria de tocar nisso agora.

– Entretanto – Dom Luciano opinou, – penso que ascircunstâncias estão exigindo uma mudança de parecer, jáque você deve encarar a vida levando em conta a perspec-

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tiva de formar um lar. Eu sei muito bem o que levou seupai a não falar nunca com você desses bens, pois ele émuito receoso do mau uso que na sua idade se pode fazerde uma fortuna... Muito bem, Cláudio, se você quiser, eufalo com ele sobre esse assunto.

– Prefiro que o senhor não faça isso, Dom Luciano.O senhor já sabe que para mim esse ponto é sagrado.

– Então, o mais prudente será que você trate de sereconciliar com ele. Quem sabe se hoje você não vaiencontrá-lo já com outra disposição de ânimo?

– Duvido disso, e como não penso em ceder umpalmo no que diz respeito a minha namorada, estou resol-vido a abandonar a casa de meu pai, para evitar outrosdesgostos.

– Não lhe parece extremada essa decisão? Procureevitar a veemência, rapaz.

Por várias vezes, Dom Luciano fez-lhe um chamadoà serenidade e à temperança, mas, vendo a firmeza que aspalavras de Cláudio traduziam, terminou por oferecer-lhesua casa, até que resolvesse sua situação.

– Você me diz depois se precisa de alguma coisa. Ejá sabe: não se preocupe demais com esse assunto. Não sedeve desesperar, meu amigo – acrescentou, pondo-se depé e apoiando a mão sobre o ombro do jovem. – As coisasnem sempre saem como a gente quer, mas, se desanima-mos, fica ainda mais difícil alcançar aquilo que honesta-mente a gente se propôs. Agora, pense bem sobre a deci-são que você vai tomar, e depois falaremos.

Ao deixar a casa de Dom Luciano, disposto a retirarda sua os seus pertences, Cláudio pensava com gratidãona nobreza daquele gesto amplo e generoso do amigo deseu pai. Absorto em suas preocupações, e ao mesmo tempopremido pela pressa de levar a cabo a idéia que o aguilhoa-

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va, andou pelas ruas como um autômato, ausente de tudoo que ocorria a seu redor. Ao chegar, foi recebido porPatrício, a quem ordenou que preparasse suas malas.

– Vai sair de viagem outra vez? – perguntou este,com discrição e sobressalto ao mesmo tempo.

Contra seu costume, Cláudio não respondeu, e,quem sabe por que curiosa causa, ao invés de galgar preci-pitadamente a escada que o levava a seus aposentos, subiupor ela com toda a lentidão, como se contasse os degraus.

Já prontas as malas, em cuja arrumação ajudou,pediu a Patrício que lhe chamasse um táxi.

– Mas para quê, menino?... Não vai sair em seu carro?– Não, Patrício. Não vou precisar.Momentos depois, Cláudio despedia-se dele, dedican-

do-lhe algumas palavras afetuosas e recomendando comuni-car a seu pai que oportunamente faria chegar notícias suas.

Patrício, de pé junto ao portal, viu afastar-se o veí-culo, que desapareceu ao dobrar a esquina. Não ignoravao motivo e, ante tão extrema resolução, tampouco o con-solava o fato de que fora a eventual ausência de DomRoque que o forçara a não fazer nada para impedi-la.

Era aproximadamente meio-dia quando DomRoque se inteirou do lamentável acontecimento. Patríciocontou-lhe e, ao fazê-lo, tomou todas as precauções paraabrandar seu efeito.

– Que loucura! Que loucura! – repetia aquele,depois de escutá-lo.

Quando conseguiu reagir à estupefação que lheprovocara a notícia, decidiu comunicar-se com Fermina,

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mantendo uma longa e sufocante conversa telefônica,durante a qual teve de agüentar uma sucessão de alfineta-das mordazes, dirigidas por ela contra a namorada de seufilho. Para completar, pareceu que sua parenta entrou ainvestir contra Cláudio, pois se pôde ouvir Dom Roque dizer:

– E daí?... O que é que você quer que eu faça? Botaro rapaz de castigo? Ou então fazer dele um pupilo de colégiointerno? Deixe de bobagens, que diabo! Você está vendo oresultado de tudo o que eu quis impor a ele... Não, Fermina!Cláudio não é mais uma criança, e quando um pensamentoo pega para valer é pior do que eu, isso eu lhe garanto!

Dom Roque quase não almoçou nesse dia. Maistarde, podia-se vê-lo refletir, como se tivesse proposto a simesmo passar em revista a série de circunstâncias quemotivaram a situação criada. Analisando friamente ascausas que o tinham induzido a contrariar os projetos dofilho, talvez agora reconhecesse que não houvera razõesválidas, porque a expressão de seu rosto, ao final daqueleexame, perdeu em parte as duras rugas que o haviam tor-nado austero.

Pareceu ser fruto daquelas reflexões a determinação,posta em prática imediatamente, de fazer alguns chamadostelefônicos, com o objetivo de dar com o paradeiro deCláudio. A investigação não deu resultado. Em seguida,ocupou o tempo em despachar a correspondência e, já pró-xima a hora do jantar, batendo na testa ao recordar-se desúbito de seu velho amigo Luciano, lamentou não tê-lo leva-do em conta logo de início. Comunicando-se com ele semdemora, em poucas palavras expôs as novidades da famíliae rogou-lhe que viesse visitá-lo naquela mesma noite.

Horas mais tarde, sentados ambos os amigos umfrente ao outro, Dom Roque comentava a breve históriados amores de seu filho com a neta de Laguna.

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– Lembra que ele foi capataz da fazenda de Túlio? –disse-lhe pouco depois de começar.

– Como não ia me recordar de Dom Pedro! Era umexcelente homem, bom num cavalo e bebedor de matecomo ninguém. Não tinha um filho médico?

– Sim, pois é isso. E se não estou mal informado,ele vive com sua família não longe daqui. Ao que parece,estiveram em Córdoba, lá se encontraram com Cláudio, e– sei lá o que aconteceu! – o rapaz voltou transtornadocom a filha dele.

– Olhe, Roque, me desculpe a franqueza, mas achoque você faz mal em se opor a esses amores, que no finaldas contas não vão desonrar seu bom nome. Eu nãoconheço o doutor Laguna nem a sua família, mas imaginoque seja culta e respeitável. Além do mais, eu recordo – esem dúvida você deve recordar também – que o falecidoirmão de Dom Pedro era um homem de muito boa posição.Foi um médico de renome e atuou em clínicas da Europae dos Estados Unidos, como bolsista de nosso governo.

– Sabe que você tem razão?... Eu tinha esquecidodisso. Mas me diga, Luciano, você não faz idéia de ondepode estar meu rapaz?

– Acho que chegou o momento de dizer que ele estáem minha casa.

– Ah, seu fingido! – Dom Roque exclamou, aliviado.– Sabia de tudo e se fazia de desentendido, hein?

– Tudo não, uma vez que eu não sabia sua posiçãoneste assunto. Agora me diga o que você pensa fazer. Deminha parte, devo adiantar que Cláudio já foi ver um cole-ga, com o propósito de instalar seu escritório.

– Realmente, Luciano, não sei o que fazer... Se eume mostro indulgente, ele vai achar que ganhou a paradae vai se envaidecer, o que me afetaria muito.

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– Não penso assim de seu filho. Além do mais, euposso me encarregar de falar com ele sobre isso e preveni-loda melhor forma. Decida você, então, o que devo dizer a ele.

– Que volte para casa e deixe de tolices!– Isso me parece bem, mas não o receba com recri-

minações, porque as coisas ficariam na mesma. Eu pensoque você deve consentir.

– Bem... isso nós veremos mais adiante.– Não, Roque; você tem que se definir de uma vez.

Posso garantir que você perderá seu tempo se ainda pensaem fazer Cláudio mudar de idéia.

– Está bem, Luciano... Então me faça outro favor:venha amanhã com ele e fique para almoçar.

– Se é para comemorar a reconciliação, aceito; docontrário, não.

– De acordo!E, com um forte abraço, os dois velhos amigos com-

binaram a volta do filho ao lar paterno.

Alheio à entrevista que Dom Luciano tivera à noitecom seu pai, Cláudio saiu cedo a caminhar. Andava semrumo, ansioso por desafogar sua mente, acossado comoestava por uma quantidade de pensamentos que pareciamempenhados em promover sua desventura. Como costumaacontecer em circunstâncias semelhantes, estes o enreda-vam cada vez mais, justamente por causa da imaginação,que é a que provoca em tais casos o devaneio.

Cedendo ao influxo da miragem mental, Cláudiologo se viu envolvido em mil assuntos judiciais, cujoshonorários satisfaziam com folga suas aspirações. As coi-

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sas iam resolvendo-se em sua mente com espantosa faci-lidade, quando, ao cruzar uma rua, a buzina estridente deum automóvel em manobra perigosa fê-lo voltar a si, e elede novo se viu diante de uma realidade que diferia bastan-te daquelas ilusões baralhadas em sua abstração quiméri-ca. Recobrando-se internamente, então pensou em comoseria lento o processo de organizar sua profissão com finslucrativos. Seu ânimo, minutos antes otimista, caiu verti-calmente, e em tal estado de abatimento chegou à casados Almeidas, sem a menor suspeita de que notícias alen-tadoras o aguardavam ali.

Ao entrar, viu surgir a figura atarracada de DomLuciano, que o convidou a passar a uma saleta contígua aseu escritório.

Ao vê-lo esfregar as mãos, numa atitude muitosimilar à de seu pai quando conseguia solucionar algumconflito, passou pela mente de Cláudio uma ligeira suspei-ta de que as coisas não deviam andar tão mal; mas seupessimismo, exacerbado pelo ofuscamento, anulou aquelapercepção tão bem alcançada.

– Ontem à noite, tive uma conversa ampla e demo-rada com seu pai – começou dizendo, – e acho que tudo vaise resolver satisfatoriamente, desde que você, é claro, nãopretenda levar as coisas com pressa ou cometer impru-dências.

Uma variação tão repentina teve em Cláudio umarepercussão que o emudeceu, e em seu semblante, apósuma repetida e imperceptível mudança de expressões,surgiu, como única resposta àquelas palavras tranqüiliza-doras, um sorriso inexpressivo.

– É preciso ser menos impulsivo – continuou osenhor Almeida; – é preciso sossegar esse corcel fogosoque todos nós levamos dentro, e que na sua idade, quan-

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do desembesta, meu filho, difícil e penoso é o trabalho defreá-lo... O que eu não gostaria é que você tomasse as coi-sas com ares de triunfo, ao ver seu pai ceder.

– De modo algum, Dom Luciano. Só desejo que ascoisas se encaminhem de maneira justa.

– Muito bem! Assim é que se fala! Vamos agora, queseu pai nos espera.

Não foi pequeno o esforço que custou a Cláudio dis-simular sua emoção. Inesperadamente, compreendeu queteria de ser mesmo assim o desfecho daquele conflito, poisera impossível que as atitudes de seu pai, sempre nobrese generosas, se manifestassem de outro modo naquela cir-cunstância. Num instante – quanto pode o pensamentonum breve tempo! – esqueceu tudo, para avaliar com sen-tida recriminação sua própria conduta, impetuosa, vee-mente, descontrolada. Dom Luciano tinha razão: deviaaprender a sossegar o fogoso potro que trazia dentro de si.Entretanto, o que era aquilo que tinha acontecido dentrodele, para que assim, de repente, como por milagre, eleagora assistisse a essa recomposição das coisas, que aca-bava de transformar em luz a escuridão que um momen-to antes turvava seu entendimento e seu coração?

A voz de Dom Luciano, pronto para sair, tirou-odaquela meditação eventual.

Momentos mais tarde, Cláudio lançava-se nos bra-ços de seu pai, desculpando-se por seus arrebatos.

– Não falemos mais nisso, filho. Já me mortificou obastante.

Passado aquele momento, Dom Luciano cumpri-mentou o amigo, dizendo-lhe em tom de brincadeira:

– Aqui está o filho desaparecido, e que tudo sejapara felicidade de ambos!

– Obrigado, Luciano – Dom Roque expressou,muito comovido.

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Em sua face morena, a palidez surgia como seqüe-la de seus recentes padecimentos.

Do gabinete, onde teve lugar aquela cena, passa-ram à sala de estar, que lhes oferecia, com suas lumino-sas janelas e seu ambiente acolhedor, ambiente favorávelà cordialidade que começava a insinuar-se.

Ali, fingindo-se imperturbável, rígido, Dom Roqueperguntou a seu filho:

– E... o que você pensou sobre nossa viagem à Europa?Ao ouvir isso, Cláudio olhou alternadamente para

seu pai e para Dom Luciano, sem compreender por que eleinsistia naquele pensamento tão inoportuno. De novo seucoração começou a bater com força, enchendo-lhe as facesde rubor, como se por elas se alastrasse uma labareda defogo; mas logo uma suave corrente de paz o serenou, e, comuma eloqüência que lhe saía do mais íntimo, respondeu:

– Você não sabe como sinto contrariá-lo, mas deveconsiderar minha situação e compreender que eu nãopoderia me ausentar daqui neste momento.

Cheio de satisfação, Dom Roque lhe respondeu,procurando ainda manter sua seriedade:

– É lamentável que tudo tenha acontecido tão desupetão, sem dar tempo para pensarmos detidamente ascoisas. Mas, enfim, já que não existe outra saída – adicio-nou, dando uma piscadela furtiva para seu amigo, – voudeixar essa viagem para uma oportunidade menos agitada.

– Magnífico! – Dom Luciano exclamou, comemoran-do junto com Cláudio a resposta. – Eu também tenho pen-sado em realizar uma viagenzinha por aquelas terras, equem diz que não podemos fazer algo ainda melhor, indojuntos no próximo ano?

Em seguida, sem perder de vista sua parte naque-le incidente de família, abordou seu amigo com simpáticoar bonachão:

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– Me agradaria, Roque, ver solucionado de formadefinitiva o assunto do namoro.

Cláudio cruzou as pernas, prendendo a respiração.Dom Roque então compreendeu que havia chegado omomento de pronunciar-se. Ali, diante dele, perfurando osseus, estavam os olhos vivazes de seu amigo. Tinha dedecidir. Ensaiou com os dedos de sua destra, a modo depreâmbulo, um tamborilo sobre o braço da poltrona queocupava e, por fim decidido, manifestou ao filho que nãotinha objeções a formular à sua determinação, motivo peloqual se comprazia em dar seu consentimento.

– Obrigado... – Cláudio murmurou, aproximando-se dele e estreitando-lhe a mão. – Você acaba de me dar amaior alegria de minha vida!

Dom Roque pediu-lhe que também agradecesse aDom Luciano, cuja eficaz intervenção havia contribuído paradissipar aquela primeira discórdia surgida entre ambos.

– Não esqueci nem vou esquecer jamais disso. Osenhor teve um gesto nobre, Dom Luciano. Um gesto queme ensinou toda a grandeza que existe no culto a umaamizade praticada de forma virtuosa.

– Amigos devem ser amigos em todos os terrenos,rapaz. Não fiz mais do que o seu pai teria feito por qual-quer um de meus filhos. Não é verdade, Roque?

– Isso mesmo, meu amigo. Decidido a deixar tudo às claras nessa oportunida-

de, Cláudio considerou conveniente fazer o pai conhecerseu desejo de casar-se em breve. Dom Roque fez algunsreparos, mas logo, inspirado por seu sentimento paternal,cujas ternas modulações faziam transbordar seu coraçãode afeto, aceitou satisfeito e até com mostras de alegriaque as bodas fossem celebradas com a rapidez que seufilho desejava.

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Em tão harmoniosa coincidência de pareceres trans-correu mais tarde o almoço, durante o qual o júbilo coroouaquele triunfo do afeto sobre a formalidade e a rigidez dos pre-conceitos sociais, que endurecem o sentimento e sacrificam,em holocausto ao Moloch das convenções, as mais caras aspi-rações do coração. Entretanto, uma pequena e atrevida nuvempretendeu ensombrecer por um instante o venturoso céu fami-liar: um telefonema de Nora, que pedia para falar com Cláudio.

Dom Roque correu a atendê-la, pois compreendeuque seu filho não podia nem devia fazê-lo.

Voltou pouco depois, visivelmente queixoso.– Que figura cansativa! – exclamou; e, tentando

desculpá-la, em seguida adicionou: – Tem o mesmo cará-ter de sua tia Evelina.

– Sempre fui pouco otimista com relação à formadessa moça se conduzir – Dom Luciano interveio. – Fazlembrar umas outras, muito parecidas, que nunca chega-ram a ser felizes.

Quando este se despediu, Cláudio foi até o telefone paracomunicar-se com Griselda, que já estava em Buenos Aires.

Em tom circunspecto, relatou-lhe em breves termos oocorrido, mas guardou consigo a grande notícia, que prome-teu comunicar a ela depois, em troca de um tratamento maisfamiliar entre ambos: a palavra usted devia ser substituídapor outra mais deliciosamente íntima para seus ouvidos.*

Griselda não pôde negar-se a tão agradável exigência.O embate obstinado das vagas que tentaram fazer nau-

fragar as esperanças dos dois enamorados, somente conse-guiu, no final de tantas horas de angústia, provar a solidez dovínculo que as sustentava, deixando, ao cessar, um céu limpoe duas almas a ponto de gustar o elixir da bem-aventurança.

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(*) N.T.: O tuteio na Argentina (a troca do usted por tu, como marco de maior intimi-dade no trato interpessoal).

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No outro lado da linha telefônica, Griselda, assimque desligou, correu cheia de ternura para abraçar suamãe.

– Quais são as notícias? – Dona Laura perguntou,suspeitando-as favoráveis.

– Excelentes, mamãe! Depois de uma firme resis-tência, Dom Roque aprovou finalmente nosso casamento.Os detalhes Cláudio vai me contar mais tarde, quando viernos visitar. E então, mamãe, o que é que você me diz?

– O que você quer que eu diga, minha filha?... queseu advogado ganhou o pleito mais difícil de sua vida!

Pontualmente, tal como exige um coração amante –e exaltado, além disso, por emoções que já não podia con-ter dentro de si –, Cláudio à tarde se encaminhou para acasa de Griselda. Era a primeira visita a sua namorada emBuenos Aires, e a simples idéia de renovar com ela umaaproximação afetiva o enchia de prazer.

Os Lagunas ocupavam, como bem dissera DomRoque, um apartamento algo próximo de sua casa.

Uma empregada deu-lhe acesso ao hall. Nos pou-cos segundos que teve de permanecer ali, Cláudio passeouos olhos por paredes e detalhes, observando o acerto comque a simplicidade moderna, em matéria de conforto,havia distribuído ali as coisas. Por último, deteve seuolhar num formoso óleo, de apreciáveis dimensões, sobreo qual a inspiração do artista havia plasmado uma cenaque Cláudio interpretou como a eterna luta da ciênciacontra o império da morte. Talvez em virtude de sua recen-te experiência, associou essa alegoria à insipiência espiri-

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tual do homem, que, num esforço desesperado, trata dedefender-se contra as hostes satânicas que o ferem edeprimem com tenacidade, ao sabor das forças invisíveis einsuperáveis da adversidade.

O leve rumor de uns passos sobre o tapete fê-lo vol-tar a cabeça, e seu rosto se fez radiante ao ver Griselda.Com impulso espontâneo, tomou-lhe as mãos e levou-asaos lábios.

Ela esperava ansiosa pelo relato, que Cláudio ini-ciou pondo em primeiro lugar a notícia que havia poster-gado. Os outros detalhes vieram depois, embora com algu-mas omissões. Evitou mencionar, por exemplo – comohavia feito até então por cortesia –, o estratagema de queNora se valera para torcer seus projetos, preferindo atri-buir a atitude de seu pai à influência de Dona Fermina ede sua filha, as quais, com ares de mandonas e muitointrometimento, lançaram mãos de ridículos preconceitossociais para tornar o juízo de Dom Roque desfavorável aseus propósitos.

Pendente de cada uma de suas palavras, Griselda oescutava embevecida. Isto influiu, sem dúvida, para queele acentuasse além da conta a parte preeminente de suasatuações, o que foi compensado pela sinceridade com queexpressou a firmeza de seus sentimentos a ela.

A presença dos pais de Griselda foi um novo incentivopara as expansões de Cláudio, que os cumprimentou como omenino que imita os heróis, fazendo alarde de seu triunfo:

– Aqui me têm! “Veni, vidi, vinci”.Dona Laura respondeu-lhe, com jovialidade:– Mais que a César, você me lembra os personagens

da Ilíada. Com certeza eles deviam se apresentar assimdiante de sua gente, após as jornadas de luta em tornodos muros de Tróia.

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– Se bem que eles nunca fariam isso com o mesmohumor que agora me anima, depois desta modesta bata-lha travada no espaço reduzido da vida familiar – o jovemreplicou, rindo.

– O certo é que essa “modesta batalha” trouxe umagrande tranqüilidade para todos nós – concluiu o doutor,que participava alegremente daquele feliz reencontro. –Você merece os parabéns pela forma como superou a obje-ção de seu pai.

Recordando que já era hora de visitar seus pacien-tes, Laguna retirou-se com Dona Laura, que se despediudele com um beijo, junto à porta de saída.

– Como sua mãe é carinhosa! – Cláudio observou,dirigindo-se a Griselda. – Você vai fazer o mesmo quandonós nos casarmos?

– Por que não, se me couber a sorte de ter um mari-do como o dela?

A partir dali, empunhando as agulhas mentais, osdois se puseram a tecer, em profusa variedade de pontos,as vestes mais seletas que anelavam trajar no futuro.

Cláudio tinha agora novas obrigações. Muito embreve teria de fazer uma viagem à fazenda de seu pai, a fimde resolver ali alguns assuntos e entregar certa soma dedinheiro, além de estudar as reformas e inovações de todaordem que planejavam iniciar nela.

– É imprescindível você ir? – Griselda perguntou.– Já que volto a ser o administrador... Mas vai ser

questão de quatro ou cinco dias, no máximo, e você sabeque durante esse tempo meus pensamentos estarão sem-pre a seu lado.

Nessa mesma noite, Griselda anotava em seu diá-rio: “Hoje, ao ver meus pais se despedirem, Cláudio me fezuma pergunta com a qual me mostrava, sem dúvida, uma

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conduta muito de seu agrado. Vou levar isso muito emconta, para dar-lhe esse gosto quando nos casarmos.”

A tensão nervosa, a preocupação e a ansiedade quetanto excitaram a sensibilidade de Griselda ante as amea-ças da adversidade, foram cedendo, dando lugar a sensa-ções mais suaves à medida que os acontecimentos, tor-nando-se favoráveis, chegaram a uma feliz culminação,marcada pela a visita de Dom Roque a sua casa, naquelanoite. Com regozijo, livre já das atribulações do temor e daincerteza, ela sentiu-se enfim invadida por uma doce sen-sação de bem-estar.

Após despedir-se de Dom Roque e de Cláudio, aquem não voltaria a ver até seu regresso da fazenda, ajovem sentiu-se tomada por uma lassidão que a obrigou abuscar refúgio em seu quarto. Deixou-se cair sobre o leito,onde permaneceu imóvel, como que adormecida. As idéiascomeçaram a mover-se em sua mente, confundidas entreos caprichosos e sugestivos giros da imaginação, até que,dominada por irresistível torpor, teve apenas a sensação deque seu espírito se elevava, de maneira tênue, no espaço.

Sua visão, confusa a princípio, foi clareando gra-dualmente, e ela pôde então distinguir, entre árvores fron-dosas, a silhueta de uma donzela que, por sua aparência,devia achar-se na mais extrema indigência. A fiel partícu-la de consciência que jamais abandona a vida enquantoesta permanece sob os efeitos do sonho, reconheceu suaprópria identidade naquela figura, solitária e desampara-da, que se aproximava dela. Tinha impressas no rostomarcas de dor e exaustão; a beleza dela, contudo, supera-va a sua inexplicavelmente.

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Com andar inseguro, vacilante, a jovem seguiuavançando, até que de súbito caiu, semidesfalecida.

Em direção a ela, Griselda viu avançar uma carrua-gem robusta, puxada por ágeis corcéis, que pareciam des-lizar ao rés do chão, impelidos pelo vento. O carro detevesua marcha e, ato contínuo, dois homens desceram, umvestido impecavelmente e o outro luzindo vistosa libré.Após breve exame, ambos pegaram o corpo da jovem e,colocando-o dentro do veículo, prosseguiram a marcha.

Uma nova visão substituiu a anterior.Esta era animada pela mesma jovem, totalmente

recuperada. Griselda seguiu vendo-se naquela adolescen-te, agora vestida com primor, e participando da cenacomo se estivesse identificada com a protagonista. Aluxuosa mansão que lhe servia de morada não lhe produ-zia mais estranheza alguma. Pelo contrário, uma delicio-sa placidez a envolvia. De repente, algo atraiu sua aten-ção com suavidade: a serena presença do dono da casa, omesmo que a socorrera e que, nesse momento, lhe sorriacom uma expressão que lhe parecia familiar, embora elanão conseguisse uni-lo a nada em sua recordação.Permaneceu imóvel, contida pelo respeito que lhe inspira-va aquele ser, cujo olhar parecia penetrar no mais fundode sua alma, como se fosse ele, em realidade, o dono desua vida.

Um ruído de persianas sacudidas pelo vento des-vaneceu a visão. Vivamente impressionada, Griseldaseguiu prolongando, na recordação ainda nítida, as sen-sações recentes. Tão gravadas haviam ficado em sua reti-na mental as fisionomias daquelas duas pessoas, umadas quais parecia ser ela mesma, que buscou em suamemória, sem encontrar, alguma provável relação comsua vida.

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Embora o personagem do sonho não mostrassesemelhança alguma com Cláudio, sua figura a subjugava.Por instantes, isso a entristeceu. Tomada pela inquietude,abandonou o leito e sentou-se numa poltrona, debatendo-se por longo tempo em conjecturas infrutíferas. Rendidapelo sono, trocou de roupa e deitou-se, dormindo até bemtarde manhã adentro.

Ao despertar, contou para Dona Laura sua visão danoite, mas ela não lhe deu importância, e até fez umcomentário engraçado a respeito.

Não obstante, Griselda não conseguia afastá-la desua mente.

Depois daquele transporte psicológico, acontecidonas fronteiras de sua consciência, Griselda começou aexperimentar os sintomas precursores da puberdade espi-ritual.

As imagens de sua visão, manifestando-se sensivel-mente à sua alma, fizeram-na refletir muito, mas em vãotentou descobrir que vínculo poderia existir entre Cláudioe o personagem etéreo, cuja figura ela retinha em suarecordação. Havia diferenças substanciais entre ambos. Asegurança e a confiança que havia sentido na presençadele não eram as mesmas que Cláudio lhe infundia.Apesar das boas condições que reconhecia neste, faltava-lhe o firme domínio da vida que a figura central do sonhotraduzia no semblante e nas atitudes.

Para atenuar dentro do possível semelhante con-traste, comparou Cláudio com outros jovens de sua idade,sendo-lhe fácil situá-lo entre os que se destacavam por

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suas qualidades nobres; mas acabou por sentir-se pesaro-sa ante a possibilidade de ele experimentar futuras oscila-ções em seus pensamentos. Teria preferido um Cláudio demais anos, para poder ver nele, robustecidos pela mão dotempo, os caracteres definidos de sua constituição morale psicológica. Entretanto, para que pensar essas coisas?Cláudio inspirava-lhe um amor terno, e ela, como todamulher enamorada, optou finalmente por dissimular neleos aspectos que não se ajustavam ao modelo arquetípicode sua ilusão. Suas aspirações ficaram circunscritas,então, a essa realidade, confiando que o passar dos anos,e sua preocupação por estimular nele todo propósito ele-vado, contribuiriam para transformá-lo no homem ideal.Como conclusão de tais reflexões, deduziu que, quando asalmas conseguem sobrepor-se à fascinação dos sentidos,atraídas pelas afinidades do espírito, a compreensão dasrespectivas aspirações se amplia e permite lavrar a mútuafelicidade. Desse modo, logo se desvaneceu em Griselda otemor às dramáticas mudanças que costumam obscurecero céu da vida conjugal.

Aparentemente, essa posição já não tinha por quevariar. Não obstante, horas depois ela sentiu que suaserenidade e complacência novamente cediam, debilitan-do-se com a presença na mente daqueles primeiros pen-samentos.

À mercê de tais flutuações, dispôs-se a escrever aCláudio, tal como lhe havia prometido, expondo seu sentirnos seguintes termos:

“Querido Cláudio:“Espero que você tenha feito uma boa viagem e

esteja bem. Ainda conservo viva a emoção do recente acon-tecimento que vinculou nossas famílias e deu maior forma-

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lidade a nosso namoro. Faz-me sumamente feliz pensarque seu pai me acolheu com tanto afeto e simpatia.

“Sua partida me deixou, entretanto, um pouco tris-te, e talvez por isso ando pensando uma quantidade decoisas. Ilusões e temores se misturam em mim com fre-qüência. Talvez seja porque em meus pensamentos apare-cem anelos desmedidos. Sonho com você, Cláudio. Vejo-ovaronil e acima de toda vulgaridade; mas me aflige o temorde que eu possa me exceder em minhas aspirações, e vocênão seja um dia para mim o mesmo de hoje. Não duvidoque fará o possível para me fazer feliz, e eu me sentireiventurosa em saber que luta para me comprazer. Nofundo, talvez não exista em mim outra coisa que o anelode que aquele a quem amo consiga alcançar o melhor.

“Mas você, Cláudio, a quem talvez com excesso desinceridade confio estas coisas, não pensará o mesmo ameu respeito? Ainda não lhe ofereci as constâncias daqui-lo que você aprecia e admira em mim como um modelo.Sem nenhuma experiência da vida, saberei defender-mede minhas próprias incompreensões e moderar a força demeus defeitos, quando a necessidade o exigir? Serão sufi-cientes os conselhos recebidos dos mais velhos?

“Refletindo sobre tudo isto, insisto em considerarque nós dois precisamos por igual confortar nosso ânimo,acostumando-nos desde agora a adaptar nossos pensa-mentos a essa realidade que poderíamos enfrentar nofuturo.

“De minha parte, começo desde este instante a for-talecer meus empenhos em conseguir tudo aquilo queesteja a meu alcance para fazer você feliz.

“Aguardo ansiosa suas notícias.“Carinhosamente,

GriseIda.”

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Acompanhava Cláudio, em viagem a Balcarce, seuamigo Luciano. Chegaram ao destino logo após a metadeda tarde, bastante cansados, pois a seca reinante haviatornado ainda mais pesado aquele dia de vento norte, aocarregar-se a atmosfera com a poeira dos campos. Foramrecebidos pelo capataz, que, à espera dos viajantes, tinhaavistado o carro de longe, seguindo-o com os olhosenquanto penetrava nos domínios da fazenda.

Uma ducha fresca, seguida de farto lanche, reconfor-tou-os plenamente. Pouco depois, em cômodas roupas cam-pestres, os dois amigos sentaram-se para conversar com ocapataz no aconchego da varanda, agradável intermédioentre o refúgio domiciliar e o espaço aberto, e lugar apro-priado para repouso do corpo e da alma. Dali, recostadossobre os almofadões de crinas que revestiam as poltronas devime, podiam contemplar à distância, por entre a moldurade trepadeiras e rosais abraçados aos pilares, a planíciesofrida, onde as plantações languesciam, faltas de água.

Entre um mate e outro, o capataz, homem tranqüi-lo, alegre, amoldado havia anos ao campo e aferrado a elecom carinho profundo, foi comunicando algumas novida-des a Cláudio, em particular os detalhes relativos aorodeio do dia seguinte, no qual esperavam concentrar,segundo cálculo aproximado, umas oitocentas cabeças devacuns novos, destinados à venda. Interessava a Cláudiopresenciar aquela faina típica do homem dos camposargentinos, e prometeu ao capataz acompanhá-lo, tendoLuciano aderido de muito bom grado.

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Conforme o combinado, partiram ao despontar daaurora. Alegremente, ao ritmo compassado das cavalgaduras,avançaram até o local destinado ao agrupamento dos animais,distante pouco menos de uma légua. Com a chegada das últi-mas manadas, que, conduzidas de distintos pontos, chega-vam ao lugar entre nuvens de poeira, o campo ia ganhandopouco a pouco a animação característica de tais trabalhos.Estimulados pelo frescor da manhã, descansados e excelente-mente dispostos – e, se isso ainda fosse pouco, entretidospelos saborosos ditos de Luciano e do capataz, que a toda ahora se engalfinhavam num ardiloso duelo verbal –, muitoantes do que pensavam eles se viram em frente ao curral dafazenda.

Cláudio e Luciano haviam presenciado muitas vezescenas como aquela, tão freqüentes no campo, mas ambosassistiam a seu desenrolar como se a de agora se revestisse denovo e particular interesse, nesse breve parêntese que os afas-tava da vida urbana. Após observar por um tempo a manobra,Cláudio, fosse por puro estímulo desportivo, fosse para revivero prazer tantas vezes sentido em seu tempo de rapazote, lan-çou inesperadamente seu cavalo a galope atrás de umas resesariscas e teimosas, que fugiam promovendo esparramos namanada. Hábil na operação, conseguiu laçar e encurralarvárias, entre os gritos de aprovação da peonada. TambémLucianito entrou na história, imitando comicamente seu amigoe provocando uma verdadeira folia entre aquela gente simples.

Sentaram-se depois à sombra de um denso arvoredoque havia por perto e, sem perder de vista os detalhes e alter-nativas da rude tarefa, saborearam as delícias do assado cam-pestre, bem como as gostosíssimas empanadas preparadasespecialmente para eles por Rosa, cozinheira da fazenda.

Moídos e cobertos de poeira, regressaram ao cair da tarde. Avistada desde longe, a casa, que parecia recosta-

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da ao pé das árvores corpulentas que lhe serviam de fundoe anteparo ao mesmo tempo, incitava suas ânsias de che-gar. Tratava-se de uma construção espaçosa. Seu teto depalha, em duas águas, protegia, formando um beiral, suafachada de tijolos branqueados a cal. Os dois corpossalientes do edifício, avançando até a frente, fechavam emseus extremos a ampla varanda. Vista por fora e observa-da depois em seus formosos detalhes interiores, podiaapreciar-se quão bem fora alcançado o propósito de adap-tar ao tradicional, ao ambiente, ao clima, os recursos quea fortuna proporciona em matéria de gosto, bem-estar elazer. Dom Roque havia reconstruído, com sua esposaainda viva, aquela morada que herdara dos antepassados,procurando reunir ali tudo o necessário para tornar maiscômodas e prazerosas as temporadas com sua família. Porpoucos anos pôde desfrutar aquilo, pois sua viuvez o fezevitar por uns tempos o lugar, para o qual seu filho come-çava agora a projetar inovações, com objetivos similaresaos que ele acalentara em outra época.

Outros dias se seguiriam àquele, destinados a percor-rer setores distintos da fazenda. A lida diária submeteria aconstantes provas a saúde de Cláudio, que vinha fazendoesforços contínuos para superar sua apreensão. Os aconteci-mentos recentes, ao lhe provocarem fortes abalos emocionaise uma enorme excitação de nervos, haviam-no predispostomais de uma vez a cair em suas velhas preocupações, mas arecordação de Griselda, contendo-o e animando-o, conseguiaapagar a tempo qualquer suposto sinal de mal-estar.

Já estava havia vários dias no campo, quando rece-beu a carta de Griselda. Leu-a avidamente e guardou-anum bolso de sua jaqueta. Aquelas palavras requeriammuita intimidade; voltaria, pois, a lê-las e a relê-las quan-do estivesse sozinho. Mas esse momento sofreu protela-

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ções, por causa dos insistentes pedidos de Luciano paraque comparecessem à festa que Dom Marcial Villagra ofe-recia nessa noite, em sua fazenda, por motivo do noivadode sua filha Susana. Custou muito esforço a Cláudioabandonar a determinação de não participar dessa festa,atitude que ele talvez tivesse assumido como tributo defidelidade a sua namorada. Já anoitecia quando o desa-lento quase infantil de seu amigo conseguiu vencer todaresistência. A partir daí, numa surpreendente variação deânimo, já ambos davam mostras de igual satisfação, e foiassim que, vestidos e elegantes, saíram rumo à fazenda deDom Marcial, quinze léguas ao norte.

Lucianito Almeida não tinha amizade direta com a famí-lia Villagra, mas na formosa residência de verão encontrou-secom muitas pessoas de suas relações, umas vindas expressa-mente de Buenos Aires e outras radicadas na região, as quais,ao verem ali um tão bom animador de festas, comemoraramcom júbilo sua presença. Também Cláudio foi acolhido comagrado, todos aplaudindo o fato de tê-lo entre si nessa noite.

Suas primeiras palavras foram para a noiva:– Você está invejável, Susana. A escolha do meu

amigo não podia ter sido mais feliz. – Obrigada, mas não me diga tanto assim, porque

me verei obrigada a fazer jus ao seu julgamento. Em seguida, acrescentou:– Que pena Nora não ter podido vir! Ela me escre-

veu lamentando sua ausência, pois Dona Fermina andamuito doente.

Uma resposta breve, lacônica, de Cláudio e sua ati-tude indiferente incitaram a perspicácia de Susana, queexpressou com sagacidade:

– Logo vocês também vão nos dar a oportunidadede festejar seu noivado, não é verdade? Faz tempo que não

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vejo Nora. Como este ano viemos muito cedo para ocampo, não estou em dia com as novidades.

Cláudio ia responder, mas foi impedido pela pre-sença do noivo, que veio em busca de Susana aos primei-ros compassos do jazz. Lamentando o fato, ele então foi aoencontro da encantadora Maria Emília, sobrinha de DomMarcial, e convidou-a para dançar.

Cheia de suspeitas e curiosidade, Susana procurouencontrar-se de novo com Cláudio e, ao achá-lo, não tar-dou a encaminhar o diálogo para o ponto em que ficaratruncado. A argúcia não escapou a ele, a quem por outraparte agradou poder desmentir as versões que circulavam.Suas palavras, categóricas que foram, dissiparam todadúvida em Susana, e entre brincadeiras e frasezinhassutis ela acabou por perguntar-lhe se seu coração aindanão havia feito a escolha. Como Cláudio lhe falasse deGriselda, coisa que fez com o entusiasmo que era natural,Susana mudou de tema com frieza, afastando-se emseguida, com o pretexto de ficar com o noivo.

Aquilo era perfeitamente explicável. O sobrenomeLaguna não tinha ressonância dentro daquele meio social,não sendo difícil que, no comentário a meia voz, já se hou-vesse infiltrado algum rumor malévolo. Contrariado,Cláudio afastou-se do centro da festa, buscando um lugaronde pudesse acariciar a sós a recordação de sua namo-rada. Dali, passou a observar os pares e grupos de jovens,muitos dos quais riam com alvoroço, festejando talvezalguma piada extravagante e maliciosa ou um chiste api-mentado. Ele também havia participado muitas vezesdaquelas expansões, que invadiam já os ambientes defamília, mas queria que dali em diante sua vida transcor-resse de um modo diferente, à margem desse vazio que lheparecia cada vez menos atraente. Reforçou em si, pois, aatitude que os homens jovens costumam com ingenuida-

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de adotar quando estão enamorados, talvez tentando pas-sar, ante seus próprios olhos, como pessoas de juízo.

Cláudio não pôde estender-se mais em suas refle-xões, porque a filha mais nova de Dom Marcial foi até elepara convidá-lo a tomar parte nos jogos de prendas queestavam programados. Momentos mais tarde, o acaso lhedeparava o prazer de receber dos lábios de Maria Emília –imposto pelo alegre júri em pagamento de uma prenda – umsuave beijo, que ela depositou graciosamente em sua face.

– Eu jamais poderia imaginar que fosse levar umalembrança tão grata desta festa – disse ele à jovem, aomesmo tempo que a convidava a irem ao terraço, a fim deafastá-la das brincadeiras que tendiam a tornar-se pesadas.

– A verdade é que deveríamos saber como nos pre-venir contra essas surpresas – respondeu ela, fingindoresguardo.

– Ah! Mas por quê?! Eu não posso dizer o mesmo,depois de receber de você um presente tão delicado.

– Cuidado, Arribillaga!... Não esqueça que foi poruma imposição.

Ia ele responder com outra frase galante, mas seconteve, ao perceber que sua postura de pessoa sériapodia com isso sofrer alteração.

Entretanto, aquele fugaz episódio, do qual não haviamparticipado intenção nem desejo, produziu, como era natural,reações em ambos os jovens, que experimentaram em segui-da, passada a primeira impressão, um regozijo que em vãotentaram ocultar. Cláudio não carecia de experiência nessegênero de situações, e poderia ter ido mais longe, mas com-preendeu a tempo, pressionado por seus propósitos de con-tenção, que um escorregão em direção ao flerte com MariaEmília era incompatível com o amor que sentia por Griselda.

A orquestra atacou novamente, e isso veio favorecertão repentinas precauções, pois a jovem, convidada por

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outro dançarino, deixou-o a sós. Cláudio não afastou delaos olhos, e ainda continuou admirando-a enquanto dan-çava, mas sentindo-se aliviado tão oportunamente daque-la situação embaraçosa. Acendeu um cigarro, grande com-panheiro da reflexão, segundo ele mesmo dizia, e saiupara o jardim a desfrutar o frescor da noite, saboreandoaquele êxito de seu juízo sobre sua natureza passional.

Achando-se a festa em seu apogeu, Cláudio decidiuretirar-se, mas teve de fazer um enorme esforço paraarrancar Lucianito dali.

Enquanto o carro rodava nas trilhas iluminadaspelos faróis, este não cessava de recriminar a inusitadaatitude de Cláudio.

– Pode-se saber por que tanta urgência? – pergun-tou, quase irritado, ao término de sua ladainha.

– É difícil explicar isso para você, Luciano... eu jádisse.

– Era melhor não ter tido o trabalho de vir. Vocêtem idéia do que significa para mim ter de abandonar afesta justo quando acabava de conseguir duas danças comMaria Emília?

Cláudio riu ao ficar conhecendo de onde provinhao desconsolo do amigo, mas logo procurou ser sincero:

– Sinto muito, Luciano, mas o que é que você querque eu lhe diga? Aquele beijo de Maria Emília, a mirada deseus lindos olhos negros, enfim... você me entende? É obastante para transtornar o mais indiferente; por isso, paraevitar outros capítulos, preferi sair fora a tempo. É só isso.

– Sim, sim... compreendo – Lucianito acedeu, semcontudo abandonar o amuamento.

Seus pensamentos, girando involuntariamente,levaram-no a comparar seu modo de ser com o do amigo.Dessa apreciação, passou a considerar sua má sorte com

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o belo sexo. Não via por que Cláudio, sério, ajuizado –porém um tanto sem sal, segundo pensava –, atraía asmulheres; e ele, que se desdobrava para agradá-las ediverti-las com sua verve, não encontrava uma que mos-trasse por sua pessoa um verdadeiro interesse. Expôsessa situação a Cláudio, que lhe respondeu:

– Você leva a vida muito na brincadeira; é por isso quenenhuma mulher acredita quando você procura falar a sério.

Luciano aceitou isso, considerando que seu amigopoderia ter razão, pois coincidia com o expressadomomentos antes por Maria Emília, que tinha aceitadodançar com ele com a condição de que mantivesse a com-postura. Fazendo um repasse em sua memória, reconhe-ceu que eram muitas as mulheres que lhe haviam dispen-sado simpatia, mas os gostos e os olhares das que valiamde verdade acabavam por dar outras direções a seus amo-res, buscando os homens de maior formalidade.Entretanto, o problema não conseguiu preocupá-lo pormuito tempo, sendo-lhe mais fácil passar por cima dele doque decidir-se a moderar sua tendência trocista e graceja-dora. Quando chegaram à fazenda, suas reflexões, àsquais sua mente não estava acostumada, já se haviamperdido no ar.

Antes de deitar, enquanto saboreavam uns tragosde uísque, ainda deixaram correr livremente os pensa-mentos, ao transmitirem um ao outro suas preocupaçõessentimentais.

– Eu penso – Cláudio dizia – que há muitas formasde se querer a uma mulher.

– Que novidade!... Você fala como se acabasse dedescobrir a pólvora!

– Está bem... já sei que não é nenhuma novidade.Quis simplesmente me referir ao amor que nos impõesacrifícios e renúncias.

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– Não estou de acordo. Para mim, isso é cair numextremismo.

– Porque não entra na sua cabeça que, quando agente encontra no caminho uma mulher boa, delicada,espiritual, uma mulher que preenche tudo na vida, essefato tem de ser valorizado como merece.

– Não nego isso. Mas também devemos compreen-der que nos tempos em que vivemos não dá para ficarencastelado em tais pensamentos. Hoje em dia, a vidatranscorre em meio dos atrativos mais variados, e nãotemos por que não desfrutar, por causa disso que vocêafirma, o prazer das festas, das boates, além daquilo tudoque nos é oferecido pelas inofensivas aventurinhas doamor. Eu lhe digo que não me sobra tempo para pensarnessas coisas esquisitíssimas que você defende.

– Mas você está errado... Isso é viver num constan-te aturdimento!

– Não, Cláudio! O que acontece é que você continuasendo o cabeçudo de sempre. Quando se apaixona por umaidéia, pretende que todo o mundo a reverencie. No final dascontas, cada um deve render culto a suas preferências pes-soais; e se elas agradam, a gente é livre de segui-las, igual-zinho o cachorro segue o dono. Não acho que você ternamorada lhe dê o direito de falar em nome da moral, nemde censurar o que outros de opinião diferente fazem.

– Apesar do que você diz, Luciano, continuo pen-sando que a vida deve ser encarada de outro modo. Agente não tem que se deixar levar pelos costumes domomento. Você bem vê como o abandono de certas práti-cas, que noutra época foram eficazes, vai fazendo desapa-recer progressivamente da sociedade humana os senti-mentos mais valorizados. Acho que devemos dar à vidauma finalidade mais elevada.

– Pois a mim me parece, señorito – Luciano repli-

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cou, imitando a loquaz mania de Sancho de tudo explicarcom frases feitas – que paixonite e moralismo andam debraço dado, e que é quando o rio transborda que a pescamais engorda.*

Cláudio, em quem a brincadeira bateu como umpedregulho embrulhado em algodões, respondeu com certoar de aborrecimento:

– Acho que é mais fácil domesticar uma fera do quemodificar essa sua obstinada mordacidade.

Mas Luciano, que nada levava a sério, saiu-se semtrégua com outras sátiras, e o fez com tal acerto que con-seguiu afastar Cláudio de suas formalidades, entretendo-opor mais uns instantes com seu modo vivaz e espirituoso.

Raiava a aurora quando se deitaram.Sozinho em seu quarto, absolutamente tranqüilo,

Cláudio leu de novo a carta de Griselda, permanecendoainda por longo tempo entregue a seus doces pensamen-tos. “Não há dúvida”, disse a si mesmo, “que Griselda é ummodelo de mulher. Exatamente o que eu sempre quis: umamulher encantadoramente fina, suave, compreensiva, inte-ligente. Mas será que estou à altura desse presente precio-so que a Providência me oferece? A fortuna pode enrique-cer o homem materialmente, mas, se ele não enriquecetambém sua inteligência, a vida continuará misérrima. Deque lhe serviria então o dinheiro, se ele desaparece entre asmãos inescrupulosas dos que não sabem escalar outroscumes que não sejam aqueles onde sobrevoam os pensa-mentos ávidos do bocado que satisfaz os sentidos e o ins-tinto? Decididamente, acho que Griselda quer me dizer quea vida não deve se reduzir à simples correspondência deafetos. Cedo ou tarde, por falta de incentivos superiores,eles terminam por se debilitar ou por sofrer a interferência

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(*) N.T.: No original, “...que camote y locura es mala fritura, y que cuando el río des-borda la pesca es gorda”.

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de outros, que se impõem pelo simples fato de romperem amonotonia em que se cai fatalmente. Quão importanteseria escapar desse risco! Griselda me ofereceu o seu amore se comporta comigo com impecável naturalidade. Semdúvida, ela gostaria de ver sempre em mim o homem queconstitui seu ideal. Por acaso já não pensei eu o mesmocom relação a ela? E se a quero assim, diferente de todas,não devo corresponder também a esse mesmo sentir? Issoé o que cabe fazer, indiscutivelmente.”

Era por volta do meio-dia quando ele se levantou.Seu primeiro cuidado foi escrever a Griselda, a quemexpressou, nos parágrafos finais de sua carta:

“Saiba que valorizo as palavras de sua encantado-ra mensagem. Sei que ainda estou longe de ser o que vocêanela, mas farei o impossível para comprazer-lhe; eumesmo experimentarei com isso imensa ventura.

“Sim, Griselda, devemos ajudar-nos mutuamente asubir a encosta da vida, a qual, se hoje nos parece íngre-me, amanhã será, graças aos nossos empenhos, um pas-seio ao empíreo, em meio às mais gratas emoções espiri-tuais. Estou com muita vontade de ver você. Faltam aindaquatro eternos dias para meu regresso.

“Seu, com minha recordação mais amorosa.”

Griselda e sua mãe se dedicavam, enquanto isso, aembelezar a casa, freqüentando para tanto lojas e tapeça-rias. O curso acelerado que seguia aquele namoro haviacomeçado a promover, como preparo para o que estava porvir, a série de movimentos afins que vão definindo os pre-parativos de um casamento. Entretanto, sem que issonada tivesse a ver com aquela azáfama, Griselda em

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alguns momentos sentia-se deprimida, e Dona Laura, queacompanhava atenta essas variações, acertadamente asatribuía à ausência de Cláudio.

Na véspera de seu regresso, querendo sondá-la, eladisse:

– Esta semana passou voando, não é verdade?– Ai, não diga isso, mamãe!... Eu diria que já pas-

sou um século desde que Cláudio partiu. Entretanto, nãome foi de todo mau, sabia? Durante esse tempo, pude pen-sar e sentir muitas coisas que talvez não me ocorressem,se esta circunstância não tivesse existido.

– É que as ausências costumam ser muito provei-tosas, não só para os namorados, mas também para oscasados. E vou dizer por quê. Quando vivemos juntosmuito tempo, o fato de nos vermos todos os dias e a cadainstante nos habitua tanto a essa convivência, nos fami-liariza de tal modo, que, sem que isso signifique cair naindiferença, impede que cada um pense sobre o outrocomo pensaria estando distante. O carinho parece entãoque aumenta, e pensamos e projetamos pôr em práticamuitas coisas ao voltarmos a nos encontrar, inspirados nosadio afã de trocar maiores atenções e alegrar a vida umdo outro. Quantas situações difíceis já puderam ser enca-minhadas com a ajuda de uma ausência!...

– Suas reflexões são muito oportunas, mamãe,mas... vamos e venhamos: é difícil aceitar que uma práti-ca assim possa ser conveniente, nem para solteiros, nempara casados.

– Não é uma prática, minha filha. Eu simplesmen-te me referi às ausências impostas pelas circunstâncias,como a que neste momento acontece entre você e Cláudio.Mas não se preocupe; é muito natural que agora vocêcuste a aceitar isso, por mais que seja uma verdade.

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– Não é isso, mamãe. Eu até aceito, mas acho quea gente poderia buscar outros recursos para chegar aosmesmos fins.

– É possível, filha. Por outra parte, você bem sabeque sempre aconselhei você a seguir os ditados de seucoração, a fim de favorecer seus bons propósitos.

Mas as palavras de Dona Laura não deixaram de sur-tir efeito na jovem. “Minha mãe”, anotou ela depois, em seudiário, “falou-me hoje de quão proveitosas costumam ser asausências que a própria vida às vezes impõe aos cônjuges.Ela terá, sem dúvida, suas razões para pensar assim, e tal-vez eu mesma compreenda dessa forma mais tarde. Por isso,não afastarei de mim a idéia de que tais incidências possamtrazer uma conseqüência útil à vida matrimonial. Recordoter ouvido amigas de minha mãe dizerem que consideravammais adequado e mais fácil expressar a seus maridos certospensamentos por carta e à distância do que quando estavamperto, por não se atreverem ou por não darem com a opor-tunidade ou a forma natural de fazê-lo. Também isto devereiter presente, para o caso de ser necessário.”

Fervilhavam na mente de Cláudio Arribillaga,enquanto seu carro engolia voraz o caminho de BuenosAires, mil pensamentos e projetos que, mesclados ao afãde ver novamente sua namorada, pugnavam por encon-trar ali uma acomodação.

Nem bem chegou, e tão logo deu a seu pai um infor-me amplo sobre a atividade rural, comunicou-se comGriselda, a quem ficou de visitar à noite.

Já a ponto de sair, foi detido pelo chamado telefôni-co de seu amigo Marcos Gorostiaga – um dos mais dedica-dos participantes da peña –, comunicando-lhe que se reu-

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niriam na tarde do dia seguinte e encarecendo-lhe que nãodeixasse de ir. Aquele convite coincidia com o estado deânimo de Cláudio, exaltado pelo auge das aspirações idea-listas que ganharam raízes na carta de Griselda, motivo queo levou a garantir de imediato sua pontual participação.

Depois de tanta saudade, encontrou Griselda maisbela do que nunca, e até lhe pareceu que a alma da jovemse ajustava à sua mais do que antes, fundindo-se ambasna afinidade e harmonia de seus mútuos sentimentos.

Quando Cláudio estava quase a terminar osexpressivos relatos de alguns episódios de Balcarce, DonaLaura se aproximou deles. A conversa desviou-se rapida-mente para a saúde de Dom Roque, bem como para a deDona Fermina, já reposta de uma aguda afecção no fíga-do. Com respeito a ela, havia algumas novidades, queCláudio relatou. Com efeito, inteirado seu pai do recentemal-estar que a prostrara, tinha ido visitá-la em casa e,como era de se esperar, isto deu lugar a certas explicaçõesque puseram as coisas às claras, aplacaram o ressenti-mento de Fermina e livraram Dom Túlio de seu arzinho dedesgosto. As relações entre ambas as famílias encaminha-vam-se, pois, para a normalidade.

Como quem não dá importância ao fato, Cláudio fezalusão a uma festa íntima que seus tios pensavam darantes de saírem em veraneio, por motivo do aniversário deNora. Crendo sem dúvida interpretar a curiosidade queaparecia nos olhos de Griselda, apressou-se em manifestarque não iria. Depois acrescentou, com acentuada benevo-lência, que lamentava por Dom Túlio, a quem estimavamuito, e mesmo por Fermina, que lhe havia feito chegarum convite muito carinhoso, por intermédio de seu pai.

– Será que você faz bem tomando essa resolução? – suge-riu a senhora Laguna. – A uma atitude assim conciliadora porparte dela talvez corresponda uma maior condescendência...

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Griselda apoiou a sugestão com repetido movimen-to de cabeça, expressando por seu turno:

– Seria deselegante, Cláudio, e não vejo motivo.– É que eu não consigo ver as coisas com a mesma

isenção de vocês. – Não tome as coisas por esse lado – Dona Laura

opinou. – O que cabe é você demonstrar que está por cimade tudo o que aconteceu.

O argumento, visto da forma como elas julgavam,era irrefutável; não assim para Cláudio, a quem assistiamrazões que não o predispunham a ceder. Ateve-se, porisso, a manifestar que pensaria no caso.

– Estou certa de que você decidirá o melhor –Griselda vaticinou, carinhosamente, enquanto sua mãe osdeixava.

Cláudio a atraiu delicadamente para si e, pondo-lhe o indicador direito sob o queixo, fez com que seusolhos se encontrassem com os dele. Tomados pelo encan-to daquele sublime instante, seus lábios renovaram, semse falarem, o juramento de amor que seus corações reco-lhiam com plena emoção.

Cumprindo sua promessa, Cláudio compareceu àreunião da peña. Esta se improvisava de preferência noclube, aonde ele habitualmente ia com fins sociais, e agru-pava um número reduzido de jovens, em sua maioria com-panheiros de estudo e egressos quase ao mesmo tempo dauniversidade.

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Ali ele encontrou Marcos Gorostiaga conversandocom Justo Vega Monteros e Miguel Ángel Garmendia,advogados os três. Entraram juntos numa sala, ondepequenos grupos de jovens conversavam à espera deoutros. A chegada de Cláudio, a quem não se via por aliultimamente, foi recebida com simpáticas mostras decompanheirismo. Entretanto, não era só isso o que davalugar a tais manifestações, mas também a notícia de seunamoro, levada por Lucianito. E, entre as expressões deparabéns, não faltaram brincadeiras e perguntas em quese percebia o desejo de saber quem era a predestinada.

Cláudio fez um discreto elogio de Griselda, emespecial de suas qualidades, e, satisfeita a curiosidade,ficou em todos a impressão de um compromisso formal.

Justo, figura destacada da reunião, foi quem commaior sinceridade e bom juízo lhe expressou suas felicita-ções. Sentia-se unido a Cláudio por uma íntima coincidên-cia de anelos, pois a ele também estimulava, além de umsadio desejo de probidade no exercício da profissão, onobre anseio de cultivar de algum modo seu espírito.Propósitos tão louváveis, mantidos apesar da vultosa for-tuna recebida de herança, pareciam indicar que a influên-cia dela não o havia colhido em suas redes.

– Encontrar uma namorada assim – ele manifestou,estreitando cordialmente a mão de Cláudio, – reunindotantas condições excepcionais, é com certeza muito difícilem nossos dias.

– Mesmo perdendo você como membro da “seita”,comemoro seu feliz achado – Miguel Ángel expressou-lheem seguida.

Era este um moço simpático, alto, robusto, de físi-co atlético. Tinha a tez bronzeada, os cabelos louros e osolhos azuis. De origem inglesa por parte de mãe, havia

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herdado do sangue saxão o laconismo que lhe é tão parti-cular e que tudo diz em quatro palavras.

– E vocês? – Cláudio perguntou, sorrindo. – Quandopensam seguir meu bom exemplo? Sou capaz de dizer quemais de um já está incubando a idéia de se casar.

Agustín del Campo, um dos mais divertidos, talvezquerendo dar uma expressão mais acabada às vozes comque alguns se apressaram em contestar aquela suposição,e com a intenção que lhe inspiravam suas inclinações umtanto superficiais, disse:

– Como você vê, Arribillaga, a maioria dos presentesprefere continuar no mais tranqüilo e agradável celibato.

– Não concordo com essa opinião – Marcos expres-sou. – No meu caso, eu não veria inconveniente algum se aProvidência me desse a mesma sorte de Cláudio. Você sabemuito bem – acrescentou, dirigindo-se a este – como é forteo receio do homem quando se trata das virtudes do belosexo.

Tais expressões eram muito próprias da condutaprudente e formal de Marcos, que gozava por isso de gran-de prestígio entre seus companheiros. Isto, unido às suasmaneiras corteses, distintas, havia-lhe permitido conquis-tar respeito, simpatia e apreço.

– Quando o entendimento é amplo, o amor conciliamuitas coisas – replicou Cláudio.

– Talvez... – Marcos insistiu– mas mesmo que a boadisposição pessoal tenha muito a ver com isso, penso quenão podemos excluir, é claro, outros fatores tambémimportantes.

– Se eu não estou equivocado, Arribillaga – Agustíninterveio, debochado, – num caso como o seu, a gente devesentir a sensação de uma irremediável entrega sentimen-tal, você confirma?

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Comentários e risos deram mais gás à pilhéria, masouviu-se em seguida a voz de Salvador Mariani, a advogarpor uma atitude mais reverente.

– Quando o amor se manifesta a sério – ele disse, –devemos respeitar sua realidade, que diabo!... Não dá parapassar a vida bancando Don Juan.

– Apoiado – disse Norberto Aguirre, amigo íntimode Cláudio, – mas eu acho que ainda vão cair muitasfolhas do calendário antes de encontrarmos o ideal quenos satisfaça.

– Estou com você! – outro concordou. – E a culpa édas mulheres, que na maioria são fúteis.

– Não, assim também não! – Salvador rebateu. –Seria faltar com a verdade.

– Eu penso a mesma coisa – Miguel Angel interveio,– mas concordo que existe neste mundo uma boa parte demulheres desse tipo.

– E o que é que torna as mulheres assim sem juízo– manifestou outro dos que estavam prestes a engrossar aoposição, – senão a falta de bom senso, que é tão comumno belo sexo?

– Por favor, muchachos* – Agustín suplicou, comcara de gente séria, – não as critiquemos!... Vamos levarem conta também os momentos agradáveis e divertidosque passamos com elas.

– E também os maus – Justo expressou, com serie-dade. – O homem com muita freqüência comprova isso, e éjustamente aí que está a base do seu receio diante delas.Uma boa parte das mulheres de hoje, entre as quais ohomem tem de fazer sua escolha, gasta a vida desde muitojovens em diversões, prazeres e em coisas triviais domundo, que não combinam com a delicadeza feminina; e

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(*) N.T.: rapazes.

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quando se casam, não demora muito e o lar se transformapara muitas delas numa prisão insuportável, à qual se sen-tem acorrentadas. E não falemos do martírio que o cuidadodos filhos costuma ser para elas! Segundo penso, a falta deacatamento a uma norma de conduta mais prudente desviade tal maneira o rumo de suas vidas, que logo – em vez dasgrandes ou pequenas satisfações que provêm de tudo o quese faz corretamente – o que se produz é uma rebelião ocul-ta, que muitas mulheres jovens e casadas costumam expe-rimentar contra tudo aquilo que impede, de um modo ou deoutro, desfrutar a vida tal como elas entendem.

– Será que não estamos moralizando demais daconta? – um dos presentes sugeriu.

– Pois era justo isso que eu estava a pique de per-guntar – Agustín arrematou. – Resumindo esse assunto,cada um deve viver sua vida como quiser. E também nãopodemos negar que a juventude tem mesmo é que procu-rar as expansões que atendam suas necessidades. Paraque estão aí os cabarés e as boates, senão para diverti-mento e expansão dos jovens?

Arribillaga tomou então a palavra:– Não me oponho às reflexões de Agustín. Mas talvez

devamos admitir que esses ambientes cheios de sensualismo,onde o flerte tem tempero picante, não são os que mais favo-recem a mulher que se considera honesta. Enfim... – concluiufilosofando – até parece que tudo cumpre o objetivo de nosmostrar as mil maneiras diferentes de se viver a vida.

– Tudo bem – Marcos observou, – mas você vai con-cordar comigo que muitos desses modos de viver só podemser desfrutados na juventude, justo quando a falta deexperiência impede que a gente se previna contra eles.Claro que o homem sai em geral ileso das tantas aventu-ras desse tipo que aparecem para ele. Com a mulher jánão é assim; ficam nela, depois, muitos sedimentos de

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rebeldia moral e muitas liberalidades, próprias do abando-no a que se entregou.

– E depois são essas mesmas mulheres – Salvadordisse, sorrindo – as que nos aparecem muito recatadas evirtuosas, de braço dado com seus noivos ou maridos, quedeveriam ganhar, se existisse, o prêmio da indulgência.

Um vivo murmúrio de risos coroou aquela sátira.– Sem dúvida que o assunto é engraçado – Justo

comentou, com certa malícia, – mas não vamos esquecerque o mal já se generalizou de tal modo que, amanhã,podemos muito bem ser os protagonistas dessa comédia eos candidatos ao tal prêmio.

– E, portanto, acabaríamos como aquele caçadorcaçado do Diálogo dos Mortos, de Luciano de Samosata –Miguel Ángel concluiu.

Sem sair do assunto, Justo referiu-se em seguida àsconseqüências de se olhar o mundo e as coisas como pro-duto de uma fantasia deixada à mercê do capricho huma-no. Querendo ilustrar suas palavras com um exemplo,citou o caso de uma jovem que ele havia conhecido.

– Depois de levar durante anos uma existênciahonesta – ele disse, – dedicada às obrigações do emprego eaos deveres do lar, certo dia, pensando no futuro incerto desua vida, da qual ela nada esperava, e com medo de queseus melhores anos passassem sem outras perspectivasalém de contemplar sempre as mesmas caras e escutar asmesmas coisas, resolveu mudar seus costumes. Cedendoaos ardores do sangue, freqüentou lojas e salões de beleza,e assim foi como a encontrei um dia, inexplicavelmentemudada. Mais tarde eu a vi de novo; pude então observarque seus vestidos eram mais luxuosos e o muito que elahavia avançado na prática dessas seduções que tantomexem conosco e nos tiram o tédio – ainda que seja sóenquanto dura a novidade, é claro. Pois bem; existem mui-

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tas que se iniciam na vida como ela, na ilusão de fisgar umnoivo, não um amante. Mas, como por esse caminho acoisa não é fácil, terminam fazendo concessões, conforma-das com o mísero prazer de compartilhar de nossa mesa,andar em nosso carro, fumar nossos cigarros e se exibirpara os outros, orgulhosas de nossa companhia. O queessas infelizes não pensam é que isso dura pouco... A gentese cansa logo desse celulóide humano de que elas parecemestar revestidas. Na verdade, essas mulheres são como asbonecas: por fora, muito vistosas; mas por dentro, se agente pretende buscar ali sua alma, só encontra um vazioque repele. São as eternas Messalinas, pretendendo con-vencer-nos de que a única coisa que vale na vida é o pra-zer, a diversão e a embriaguez.

– Até parece que estamos empenhados em atribuirsó à mulher esse desalinho psicológico – Salvador objetou.– Mas quantos homens existem que, para vestir suasescassas e anêmicas idéias, não têm outra roupa que nãoseja aquela tecida com o ponto monótono e indefinido damediocridade. Isso, além de outras coisas de pouquíssimovalor, naturalmente.

– Seria melhor nós não tentarmos estabeleceraqui – opinou Miguel Ángel – qual das duas partes é maisnumerosa do que a outra nesse quesito da má qualida-de. O certo é que, na vida, gostando ou não, homens emulheres devem suportar as leviandades de parte aparte.

– Donde se conclui – expressou Marcos – quetanto o homem como a mulher devem se prevenir aoescolher sua cara-metade, para evitar que esta se trans-forme numa carga. Tomando esse cuidado, talvez a genteescape do azar de engrossar as fileiras desses infelizesque passam a vida satisfazendo os caprichos de suas

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consortes e concedendo tudo a elas, ainda que disso selamentem.

– Deus nos livre disso! – exclamou Agustín, comvivacidade, sempre disposto a levar tudo para o terreno dogracejo. – Sabem lá vocês a única coisa que podia sairdaí?... O tema para a letra de um tango!

A tempo de escutar a última parte da conversa,entrou na sala Lucianito Almeida, acompanhado de Dardoe Tomás, seus amigos inseparáveis.

– Se não estou enganado – disse, ocultando sobuma seriedade fingida sua intenção cômica, – os assuntosque vocês andam ventilando por aqui são daqueles capa-zes de dar volta ao mundo...

A presença de Luciano introduziu na reunião umamudança favorável ao temperamento juvenil, e isto deuforça à iniciativa de jantarem no clube.

Alguns expressaram, então, sua desconformidade,lamentando que se houvesse dedicado todo o tempo a umasimples bate-papo, enquanto outros apoiaram Marcos,quando ele explicou que, cabendo-lhe nesse dia encabeçaro debate, não quis interromper uma conversa que consi-derou proveitosa. Por último, a pedido dos mais dedica-dos, decidiram reiniciar depois a reunião, uma vez quetodos permaneceriam no clube.

Ao final do jantar, dois ou três deles se despediram,alegando compromissos inadiáveis. Lucianito tambémpensou em se retirar, mas acabou desistindo, apesar desua indiferença e de suas queixas.

– Vou acompanhar vocês enquanto resistir – elepreveniu. – Meus rapazes, vocês já sabem que os proble-mas tratados aqui estão fora de minha órbita planetária.

Dardo e Tomás, com a mesma disposição, disseramamém.

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Prontos para a tarefa, ocuparam um espaçososalão, onde as pessoas que conversavam não podiam inco-modá-los. Em confortáveis poltronas, dispuseram-seentão a entabular a conversação. Na verdade, nem todosse achavam igualmente dispostos. Alguns, como Cláudio,eram atraídos por inquietudes internas, que buscavamsatisfazer em colaboração com os demais; outros, quiçá aminoria, talvez confiando na promessa de que a reuniãoseria breve, dispunham-se a escutar com mais paciênciado que interesse. Marcos, por sua parte, fosse por atribuirparticular importância ao tema que pensava tratar comseus amigos, fosse porque tivesse alguma preocupaçãoespecial, mostrava-se sério, o que influía nesse momentopara que todos permanecessem em relativo silêncio.

– O que vou apresentar a vocês – começou dizendo –vem de meu encontro com o senhor Faustino Malherbe,amigo de meu pai e pessoa que alguns de vocês conhecem.Faz apenas um mês que ele voltou de uma viagem pelaEuropa, Estados Unidos e México. Mantive com ele duasconversas interessantíssimas, durante as quais me relatousuas impressões sobre a situação ambiente dos países euro-peus, sempre convulsionados e comprometidos em váriasquestões internacionais. Ele me disse que é tal a desorienta-ção que reina neles, que as pessoas não encontram apoiopara sustentar sua moral. Sem dúvida, meus amigos, essasituação de insegurança que afeta os povos termina porarrasar, metafórica ou efetivamente, o conteúdo da vida.Esse estado tão especial em que se encontra a juventudedaqueles países, misto de melancolia e abandono, me foidefinido pelo senhor Malherbe como “a doença do vazio”, eprovém, segundo ele, da falta de uma razão ou força supe-rior que, tirando aquelas pessoas do ceticismo em que caí-ram, pudesse conduzi-las por caminhos que lhes garantis-sem a reintegração dos valores do espírito. Em vão se tem

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buscado o grande elemento que os livre de tais angústias; nofinal, as poucas defesas morais que restam vão sendo abati-das pelo frenesi das paixões e pela neurose coletiva, queempurra irresistivelmente essa parte da humanidade paraos caminhos incertos da perdição. No momento, isto étudo o que recordo das impressões que me foram transmi-tidas. Em minha opinião, elas mostram um juízo amadu-recido através de um bom enfoque daqueles ambientes.Mas isto não é tudo o que me propus destacar do que osenhor Malherbe me disse. Tenho interesse especial emparticipar a todos que o amigo de meu pai teve a oportu-nidade de conhecer, no México, um homem cujos vastos esingulares conhecimentos chegaram a impressioná-lovivamente, a ponto de considerar sua amizade como umachado. Chama-se Ebel De Sándara e mora há anos noMéxico, onde já publicou muitas obras. Foi uma grandesurpresa para mim saber que se trata de um compatriotanosso.

Após ligeira pausa, Marcos prosseguiu:– Como expressou hoje um de vocês, eu também

considero que a vida deve ser vivida do jeito que cada umentende. No que me diz respeito, tenho interesse particu-lar por tudo o que de algum modo possa ter serventia paramim, a fim de receber, sempre com vistas a alcançar omelhor, o que ela põe a nosso alcance. Vou me referir emseguida à curiosa apreciação que o senhor De Sándara faza respeito da vida. Dom Faustino me expôs isso, e creioque retive fielmente na memória. Ele disse que, para DeSándara, a vida de cada um de nós é como o texto de umlivro que leva o nosso nome e do qual devemos ser o per-sonagem principal, sua figura preeminente, se não quiser-mos nos ver rebaixados a segundo plano e ainda a menosque isso, por termos desempenhado nele um papel depouca significação. Para conseguirmos isso, não devere-

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mos deixar que nossa vida corra ao acaso pelos caminhosescorregadios da inconsciência. Ao contrário, temos devivê-la guiados sempre por nossa inteligência, em estadoslúcidos de consciência, para que não nos passe em bran-co um só dia. Desse modo, a vida se enriquece, porque nosincita a superar nossa concepção sobre ela. O segredoconsiste em preparar os dias futuros com antecipação,semeando hoje o que anelamos colher amanhã. Assim,saboreamos com antecipação o prazer que nos proporcio-na a gestação consciente do nosso futuro. Se conseguir-mos fazer disso o objetivo principal e permanente de nossavida, teremos nos convertido em artífices de nossa própriafelicidade, o que é muito diferente, como vocês vêem, davida do carpe diem, programada por Horácio naquela odefamosa que aprendemos quando mais jovens nas aulas delatim. É uma vida que transcorre na ignorância do que ofuturo nos depara. De modo que a vida de hoje, de acordocom De Sándara, é o produto da vida de ontem.

– De onde sai tanta prosopopéia? – Luciano inter-rompeu.

– De mentes que pensam – respondeu-lhe Marcos,num vôo.

– E de quem temos muito que aprender – Justoarrematou, sem dúvida bem impressionado pela infor-mação.

– Pois eu duvido que alguém possa nos dizer qual-quer coisa de excepcional sobre um tema tão remexido –insistiu Luciano. – Além do mais, por que vamos compli-car nossa existência, embarcando talvez numa quimera,quando podemos permanecer em terra firme, saboreandoo inesgotável tema das coisas que triunfam na vida? Nofinal das contas, não acho que essas opiniões tenhamtanto valor assim. Eu acho que o verdadeiro autor desse

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livro que simboliza nossa vida é o destino, e nós, o produ-to de seu mandamento inexorável.

– Vou poder dar uma resposta a isso mesmo quevocê disse, lendo uns parágrafos escritos pelo própriosenhor De Sándara sobre o conceito fatalista, tirados dosapontamentos que Malherbe me ofereceu. Escute só: “Acarruagem do destino, cujo alegórico rodar nos fala docaráter cíclico de nossa existência, jamais detém sua mar-cha, e desditado daquele que cai sob suas pesadas rodas!O destino carece de sensibilidade; é, portanto, inclementee inexorável. O homem deve superá-lo com sua inteligên-cia, subindo à simbólica carruagem e conduzindo-a porrotas mais apropriadas à hierarquia de sua espécie. Osque não o fazem se vêem forçados a puxá-la como escra-vos, até que, exaustos, caem esmagados sob suas rodas. Aisto se costuma chamar depois de ‘fatalidade’. É por talrazão que muitos, cedendo às exigências de sua sina, sedeixam estar, sem que nada consiga afastá-los de tãoabsurda crença.”

À leitura desse trecho seguiu-se uma rápida análi-se de seu conteúdo. Como as opiniões nem sempre coinci-diam, a reunião se prolongou bastante e com grandemobilidade mental.

No final, foi recebida com agrado a notícia da imi-nente chegada à Argentina do autor de tais conceitos, oque fez surgir em mais de um o interesse por entrar emcontato com sua pessoa.

Já se despediam quando Marcos e Miguel Ángel,convidados para o aniversário de Nora, perguntaram aCláudio se o veriam por lá, mas ele, que não havia muda-do de opinião, respondeu que ainda não tinha resolvido.

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Patrício costumava permanecer de pé até muitotarde quando Dom Roque, como naquela noite, recebiaseus amigos. Por isso, Cláudio não estranhou encontrá-loainda acordado, ao regressar.

O jovem chegou transbordando alegria. Ao entrar,deu umas palmadinhas no ombro do mordomo, pedindoque lhe servisse alguma bebida gelada e, como se seu pró-prio estado de ânimo lhe agilizasse involuntariamente osmúsculos, subiu com presteza as escadas, dirigindo-se aseu quarto.

Patrício entrou pouco depois com uma bandeja,surpreendendo-lhe a diligência com que Cláudio trocavade roupa, ao compasso de uma canção.

Estava evidente que motivos ele devia ter para sen-tir-se feliz. Passava talvez por um desses momentos dedoce exaltação psicológica, em que a alma, intuindo a pro-ximidade de algum acontecimento promissor, regozija-seao desfrutá-lo por antecipado.

– Que feliz eu fico ao vê-lo tão contente, menino! –exclamou Patrício, enquanto o servia.

– Hoje tive uma reunião interessante com os rapa-zes. Abordamos temas altamente auspiciosos. Já lhe digodo que se trata.

Calçou os chinelos, terminou de abotoar o pijama e,ato seguido, narrou-lhe com especial ênfase o assunto dosconceitos dados a conhecer por Marcos como primícias.

– Você não sabe como essas notícias me alegram –manifestou Patrício. – Eu também, com minhas poucasluzes, tenho cultivado idéias como essas que acabam decomover seu ânimo de forma tão particular. E por falarnisso... sabe que eu tenho comigo alguns livros que talvezlhe interessem? Quero a eles como se fossem a minha pró-pria vida, porque me deram o sossego que eu agora tenho.

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– Você nunca me disse que sentia atração por esses temas.– É que você nunca me deu chance para isso, menino! Eu

também não sabia se minhas idéias iam coincidir com as suas.– E o que você faz com tudo isso?– Pratico a meu modo os conceitos que leio.– Pratica a seu modo? Como é isso?– É simples: quando não posso me adaptar a eles,

procuro que eles se adaptem a mim. Deu para entender?– Oh, sim, muito boa idéia! – Cláudio aprovou, sor-

rindo ante tão curioso método, e adicionou: – Parece quevou ter em você um conselheiro formidável.

– Nada disso; mas se eu lhe puder ser útil em algu-ma coisa, conte comigo.

– Muito bem; então pode começar me emprestandoalgum desses livros que, como disse, você estima tanto.

– Como não! Mas vou lhe prevenir que eles não são paraser lidos por simples curiosidade, hein? Porque poderia acon-tecer com você o que aconteceu comigo, no começo: depois delê-los várias vezes, não sentia outro resultado que não fosse ode me deleitar com a simples leitura. Enquanto isso, eu conti-nuava com a vida monótona de sempre, essa vida que, pormais que a gente queira lhe dar certos matizes, usando todosos recursos de nossa inventiva, continua refletindo em nossorosto a mesma contrariedade que nele aparece toda vez quenos deixamos enganar com as futilidades do mundo.

– E que outra maneira existe de ler esses livros, nasua opinião?

– Francamente, não saberia dizer... É algo que agente aprende quando o que lemos nos interessa de talmodo, que repetimos sua leitura tantas vezes quantassejam necessárias para assimilar seu conteúdo.

– Me perdoe a franqueza, mas isso me parece umacoisa óbvia demais.

– Você tem razão, menino. Sem dúvida, não estou me

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explicando bem. Eu quis dizer que existem coisas que é neces-sário a gente ler mais com o coração do que com a mente.

– Por que você disse há pouco que gostava desseslivros como se fossem sua própria vida?

O rosto de Patrício iluminou-se, como se de prontohouvessem surgido, do fundo de seu ser, imagens de umvivo colorido, recordações que, como chama ardente, deum sentir muito íntimo, o enchiam de inefável ventura.Quantas vezes havia desejado que Cláudio compartilhas-se seu sentir! Por isso, a alegria transbordava nesse ins-tante seu coração, ao abrir-se com ele.

– Existem coisas, menino, que só têm explicaçãopara a gente mesmo. Eu me familiarizei, por assim dizer,com o pensamento do autor desses livros e pude desco-brir, em suas páginas, muitas coisas que antes não vianem compreendia. É que, na minha ânsia de abarcar tudonuma simples leitura, me escapava o melhor de seu con-teúdo, o mais valioso. Me custou muito entender que eumesmo devia viver em suas páginas e combinar, paramim, as fórmulas pessoais que me haveriam de servir deguia para o futuro. É por isso que não me desprendo des-ses livros por nada deste mundo, pois os considero partede minha própria vida, pelas razões que você acaba deescutar. E agora, se me permite, vou em busca do livroque você me pediu ainda há pouco.

Cláudio já se havia metido na cama e, sentado ali,esperou pelo regresso de Patrício. Ainda sentia nos ouvidosas palavras do mordomo, impregnadas de uma corduraque até então ele não havia apreciado. Mas essa sensaçãodurou apenas um instante. Enquanto aguardava, pegoucom calma de uma revista e pôs-se a folheá-la, desatento.

– Aqui você tem um de meus favoritos – dissePatrício, entrando no quarto com um volumoso livro sob obraço, bastante folheado.

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Cláudio o tomou em suas mãos, leu o título e bus-cou em seguida o nome do autor. Mas – oh, que surpresa!– era uma obra de Ebel De Sándara, o mesmo autor dequem Marcos lhes falara!

Sentiu que ia ler aquele livro com muito interesse.Bebeu de um sorvo o restante do copo e despediu o cria-do, dizendo-lhe com afeto:

– Pelo que parece, Patrício, eu e você vamos conver-sar muitas vezes sobre este assunto.

Apesar da hora já avançada, conseguiu ler váriaspáginas. Vencido por fim, colocou o livro sobre a mesa-de-cabeceira e dormiu até horas avançadas da manhã.

Após dois dias de ausência involuntária, Cláudiochamava novamente à porta de Griselda.

Ali permaneceu, o ouvido atento, à espera do leveruído do trinco. Apalpou uma vez mais a gravata, do nó àextremidade, numa zelosa comprovação de sua impecabi-lidade. Pouco depois atravessava o saguão e, atrás dele, aporta fechou-se novamente.

– Cada vez me parece mais longo o tempo que passosem ver você – disse a Griselda, num impulso de ternura.

Em resposta àquela frase – sempre nova, por maiorque seja a freqüência com que é escutada, – ela o premioucom um doce olhar, em cuja transparência Cláudio viurefletidos idênticos pensamentos.

À habitual reiteração das juras de amor, própriasde todos os que se amam, as palavras foram derivandopara outros conteúdos da vida de ambos os jovens.

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– Faz já alguns dias – Cláudio expressou, com certaestranheza – que não sei o que está me acontecendo... Àsvezes sinto crescer dentro de mim ânsias irresistíveis desaber que desígnios ocultos se entrelaçam em volta decada vida humana. São momentos em que experimentoalgo estranho... como se no meu interior se abrissem osespaços nebulosos da inconsciência... Parece que percebo,então, suaves clarões através de suas frestas, como seuma luz estranha resplandecesse na minha alma com ful-gores de esperança e promessas de iluminação.

– Que inspirado! – exclamou Griselda, satisfeita deouvi-lo falar assim.

– Minha inspiração é você, querida, e se nas árduasjornadas que me esperam ao longo da vida eu vier a des-falecer alguma vez, o incentivo de seu amor me levantará,e eu andarei, como aquele que encontrou dentro de si essaenergia misteriosa que impulsiona até o mais elevado dopensar e do sentir.

– Estou vendo como foi profunda em você a reper-cussão do que ontem me contou por telefone. Vou dizeralgo mais, Cláudio: tenho a impressão de que se aproxi-mou de sua vida algo que tem muita coincidência com ospontos que o preocupam faz tempo. Imagine a alegria demeu coração, ao saber que há alguém no mundo capaz denos ilustrar sobre matéria tão importante e espinhosa.Agora você tem de me dizer – acrescentou ela, após brevepausa – que impressão o livro de Patrício deixou em você.

– Boa, Griselda, muito boa. Me deixou muito ani-mado comprovar que os conhecimentos que ele contémnos antecipam a existência de horizontes novos e inco-mensuráveis. Eu senti mais de uma vez comichões psico-lógicas, uma espécie de inquietude que se insinuava emmim, sem que eu pudesse descobrir sua causa nem como

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acalmá-la ou resolvê-la. Agora vejo se encadeando umasérie de circunstâncias que têm afinidade com essainquietude e que parecem me dar a explicação sobre ela.

Sob a influência de tais pensamentos, que iam evinham sem obstáculo da mente de um à do outro,Griselda expressou, num rapto de lúcido entusiasmo:

– Como se pode ver, Cláudio, no fundo de nós mes-mos existe algo que, em determinados momentos, conseguese manifestar como uma exigência imperiosa; algo que pare-ce atrair para o vértice de nossas miras, como um ímã, osseres, idéias ou coisas, com o fim de nos ajudar no futuro.

– Na verdade, é uma antecipação de felicidade –Cláudio respondeu, extasiado, – ver como nossos coraçõescomungam em suas aspirações espirituais, e como nossosjuízos coincidem até nas apreciações mais sutis. Isso afu-genta de mim o temor às desinteligências, que não faltamquando tal correspondência não existe.

– Oh, nem você nem eu vamos contribuir jamaispara fazer de nossa vida uma madeixa emaranhada pelasdiscórdias e pelas desavenças!

– Sem dúvida que não – Cláudio assegurou, entu-siasmado. – Estamos cansados de saber que, depois demuito forçar, essa madeixa acaba se transformando nummontão de fiapos...

Como de costume, a senhora Laguna trocou umaspalavras com eles, ao aproximar-se para cumprimentarCláudio, expondo nesse dia alguns pontos de vista bastanteafins com as reflexões dos jovens. A propósito de algo rela-cionado ao grau de intensidade moral e espiritual que a vidahumana deve alcançar, expressou com mostras de pesar:

– Se eu tivesse vinte anos menos, quantas coisasfaria!

– Mas tempo é o que não lhe falta, senhora. Aindatem tanto por viver!...

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– É verdade, mas isso não impede que eu lamentenão ter aproveitado melhor os anos. Com o tempo, a idadenos vai tornando mais lentos, e a mente já não respondecom a presteza nem a lucidez necessárias quando tenta-mos nos explicar o porquê das coisas que nos acontecem.

– Entretanto, devemos admitir que com paciência eempenho se chega, se não a tudo, pelo menos ao que maisnos interessa.

– Como é que você sabe? – Griselda perguntou.– Por simples dedução, porque, se quando jovens

temos amplamente explicado o que nos intrigava no tempode meninos, é lógico pensar que a experiência e o conhe-cimento vão nos explicar tudo o mais.

– Em parte você tem razão, mas não esqueça que épreferível saber as coisas antes, quando ainda temostempo de remediar muitos erros, a sabê-las depois, quan-do o tempo já nos envelheceu.

– Concordo; e daí o mérito inegável de dedicarmosmais cedo nossos esforços à procura do saber. Contudo,senhora, eu intuo que na idade madura se pode conseguirmuito, se levarmos em conta que todo tempo é bom quan-do nos ocupamos em superar o que sabemos.

A essa altura da conversa, Dona Laura percebeuque não havia perguntado a Cláudio por seu pai.

– Está muito bem, senhora – ele respondeu.E, como se de repente ele se desse conta de que

havia esquecido de dizer-lhes algo, acrescentou:– Sabem que ontem tia Fermina esteve lá em casa?– Com Nora? – Dona Laura perguntou.– Não, com tio Túlio. Eles se mostraram muito con-

ciliadores.– Ficou tudo esclarecido, não ficou? – Griselda

indagou, dando o fato como certo.

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– Com eles sim... muito bem.– Você então vai à festa amanhã?– Não tive como recusar. Mas vou ficar lá apenas

por um momento, o estritamente necessário.A presença do doutor Laguna, que regressava de

suas atividades diárias, assinalou a proximidade da des-pedida, que Cláudio e Griselda viram chegar com o pesarde sempre.

Dom Roque se preparava para jantar quandoCláudio entrou na copa.

– Não vai à festa de Fermina? – perguntou, olhan-do para o filho, que se dispunha a ocupar o lugar de cos-tume à mesa.

– Sim, papai, eu vou, porém mais tarde. Você jásabe que só pretendo fazer ato de presença.

– Faça como quiser, filho.– E você?– Já avisei a Fermina que não iria, com a desculpa de

meus achaques. Mas mandei para Nora um bom presente.Tal como dissera, Cláudio chegou à casa de seus

parentes cerca de meia-noite. Uma vez ali, a afetuosa cor-dialidade com que foi recebido, em particular por parte deDom Túlio, abrandou consideravelmente as resistênciasque ainda sentia. Dirigiu-se depois ao salão para cumpri-mentar Nora, que, ao vê-lo, logo se afastou do grupo ondese achava e aproximou-se dele.

– Como agradeço por você ter vindo! – exclamoucom ar triste, depois de cumprimentá-lo. – Não imaginacomo lamento o que aconteceu...

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– Não tem importância, Nora. Esqueça isso.A jovem baixou os olhos, fugindo ao olhar de

Cláudio, que observava com natural surpresa essa turba-ção, tão rara nela.

– Você veio tão tarde! – ela agregou em seguida,como quem lança mão da primeira coisa que lhe ocorrepara sair de uma situação embaraçosa.

– Sim, é verdade; eu me entretive além da conta nacasa de Griselda.

Como se não tivesse ouvido nem compreendido afrase intencional, Nora virou a cabeça para outro lado,fixando aparentemente sua atenção em algum detalhe dafesta.

– Quer dançar esta música? – ela perguntou aCláudio, com suavidade, após breve pausa.

– Sendo hoje o seu dia, você me dá com isso umagrande honra – ele respondeu. – Dancemos, se é do seuagrado.

Apesar dos modos impecáveis de Cláudio, que semostrava amável e cortês, Nora sentiu sua escondida frie-za e reserva. Então, já porque isso a inibisse realmente, jáporque nesse momento ela quisesse encenar uma atitudeque lhe trouxesse alguma vantagem, manifestou com timi-dez que necessitava com urgência falar com ele a sós.

Para ele, aquilo era enigmático. Cheio de prevençãoe estranheza, olhou-a fixamente, buscando em seus olhosalgo que mostrasse o motivo ou a intenção porventuraoculta no pedido, mas ela inclinou suavemente a cabeça e,esquivando-se com habilidade daquele exame face a face,deixou sua vista vagar, como se estivesse abstraída porexigências de alguma profunda preocupação.

Maria Emília e Lucianito, que se encontravam porali, aproximaram-se deles nesse momento, e em pouco

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tempo o grupo tomou corpo com a chegada de outrospares, contribuindo tudo isso para atenuar as dificuldadesdaquela situação, para sorte de Nora. Em meio a esse ir-e-vir de gente jovem, vibrante de entusiasmo, aproximou-se deles Dona Fermina, que buscava sua filha, que foiobrigada a ausentar-se momentaneamente.

Cláudio viu-a afastar-se e, enquanto a observava,reconheceu lá consigo a notável mudança operada najovem. Achou-a em extremo favorecida pela singeleza,causando-lhe não pouca estranheza a falta da afetação edo artifício que sempre haviam tirado tanto valor a seusdotes naturais. Um vestido de grossa renda branca, justono corpo, constituía todo o seu adorno. Nenhuma jóia des-lumbrante, nenhum detalhe que não fosse sóbrio; até aexpressão de mulher vazia, pueril, inconsistente, pareciahaver desaparecido dela.

Ao lado de Cláudio, subjugadora, Maria Emília lan-çava-lhe vez por outra olhares expressivos. Felizmente,aquilo durou pouco, pois os pares, que não perdiam umamúsica, logo o deixaram sozinho, dando-lhe tempo paraconjecturar, com base no observado, os prováveis motivosque Nora teria para falar com ele reservadamente.

Ocupado todo o mundo em se divertir, ninguémpareceu vê-los quando, pouco depois, atravessando apo-sentos e corredores, se distanciavam do centro da festa.Caminhavam ambos em silêncio, um junto ao outro. Porfim, chegaram a uma saleta um tanto isolada, na qualNora entrou, encaminhando-se para um sofá, seguida porele. Ali, ela se deixou cair soluçante, numa suprema ten-tativa de comover os sentimentos dele.

De pé ante ela, Cláudio manteve-se esquivo.– Por que você está chorando? Aconteceu algo

sério? – perguntou depois, contendo a duras penas suanatural predisposição a condoer-se.

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– Oh, Cláudio!... Estou sofrendo tanto!... – respon-deu, com voz lastimosa.

– Não estou compreendendo, explique para mim!...– ele rogou, mais enternecido ainda, e vacilante.

– Você sabe bem por que eu sofro. É por suacausa!... Porque eu amo você!... – ela balbuciou, e, levan-tando o rosto embelezado pelas lágrimas, fitou Cláudiocom olhos suplicantes.

O que se passou com ele ficou totalmente à margemde sua consciência. Aquela sedução irresistível o estavapraticamente anulando. Sem que o quisesse, perdendo pormomentos a noção de tudo o que lhe acontecia, acaricioucom mão trêmula a cabeleira sedosa de Nora, sentando-sea seu lado. Ela, hábil na manobra, estreitou-se entãomimosamente contra seu peito, enquanto lhe rodeava opescoço com os braços, em atitude de completa entrega.

Cláudio tentou em vão, em desesperada luta inter-na, romper a fascinação que o paralisava. Nem ao menosuma das felizes reflexões que fizera em dias anterioresacudiu para defendê-lo daquele eclipse que se estava pro-duzindo em sua razão. Sentiu que atuava nele uma forçasuperior à sua, e que pensamentos avassaladores, dasmais desencontradas origens, dominavam sua mente,impulsionando-o à ação:

“Ela é sua, beije-a!, desfrute este momento feliz”,diziam-lhe, incitando-o. “Vamos, homem, decida logo!... Oque é que o compromete? Ora, ora! Na sua idade, não sepode ser tão moralista... Ande!... Um beijo, só um beijo! Vocêacha que isso pode afetar de algum modo sua vida? Quebobagem! Se você não se decidir, ela o odiará sem perdão;melhor será que ela guarde de você uma boa recordação!”

Tudo isso passou pela mente de Cláudio Arribillagacom tal vertiginosidade, que em poucos segundos ele ficou

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aniquilado. O colapso psicológico lhe havia produzido umaanulação virtual dos sentidos. Seus olhos só viam doislábios vermelhos, suaves, aveludados, que buscavamansiosamente os seus. Ainda fez um esforço supremo.Quis levantar-se, fugir, mas suas forças não lhe responde-ram, e então ele beijou Nora com impulso incontrolável.

De imediato vieram em turbilhão outros pensamen-tos, que começaram a agitar sua mente. Acalmada a fugazembriaguez e o ardor do frenesi passional, a mesma forçaque havia manietado sua vontade e anulado sua mentelevantou-o em sobressalto, fazendo-o experimentar outrassensações. O aroma delicioso, sensual, que envolvia Norahavia deixado de produzir o efeito perturbador do início e,subitamente, livre da voluptuosa emoção, ele se sentiurestabelecido, lúcido. Buscou, então, como alguém queexamina seus bolsos depois de um assalto, o que haviaficado daquele instante passional a que fora levado sem oconcurso de seus sentimentos nem de seus desejos, e nãoencontrou nada.

Sob os efeitos do aturdimento, num primeiro momen-to Cláudio não soube o que dizer. Mas em seguida com-preendeu, ao recuperar-se, que sua situação era comprome-tedora. Abandonou o sofá onde estava sentado e, já em seuscinco sentidos, disse a Nora num tom de quase repreensão:

– O que você pretendia ao me trazer aqui?– Dar mais uma prova de meu carinho.– Por acaso eu precisava de alguma demonstração

como essa? Você não sabe que eu amo Griselda e quejamais renunciarei a esse amor? Por que você se empenhaem me comprometer? Por favor, Nora, não pretenda coisasimpossíveis!

Ela, que até ali havia mantido a calma, não pôdemais ocultar seu desagrado:

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– Se é assim, só posso pensar que você quis seaproveitar de minha debilidade. Não me vá dizer que não!

– Isso, nunca!... Eu lhe asseguro que nem eumesmo sei o que aconteceu comigo...

– Boa desculpa, a sua!...Olhando-o com desdém, Nora acrescentou:– Quer dizer que é ela quem você prefere?– Eu já disse: é coisa resolvida, e nem a própria

morte vai me fazer mudar de idéia.– Está bem – respondeu a jovem, que então se apro-

ximou a um espelho e começou a retocar o rosto.– Não vai ficar com raiva? – perguntou ele, inquie-

to no íntimo.– Não; não tenho por que ficar com raiva de você. Talvez

eu mesma seja a culpada de tudo o que me está acontecendo.Cláudio esteve a ponto de dizer-lhe algo referente

às causas que haviam tornado impossível qualquer apro-ximação entre eles, mas optou por calar.

Afastaram-se dali e voltaram ao salão, cada qualpor um lado. Logo se misturaram entre os presentes, dei-xando para trás aquele episódio que, graças às cautelosasmedidas tomadas por Nora, havia passado despercebido.

Cláudio considerou que era impróprio deixar suaprima tão bruscamente e a convidou para dançar, o que elaaceitou. Com o pensamento preso em seus próprios estadosemocionais, os dois seguiram quase que automaticamente oritmo da música. Sem se olharem, observavam-se entretan-to furtivamente, e Cláudio conseguiu ver que dos olhos deNora pendiam duas lágrimas. Enternecido, disse-lhe aoouvido, afetuosamente:

– Não sofra, Nora; você logo há de encontrar ohomem que a fará feliz.

Ela guardou silêncio, mas, nem bem a dança termi-nou, dirigiu-se a seu quarto com mal contida precipitação.

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Cláudio ficou só. Buscou então refúgio na varanda,onde se sentou. Dali, ele podia contemplar o céu limpo,cheio de estrelas, por entre os claros da folhagem quesubia pelas colunas e que, abraçando o beiral do telhado,descaía como cortina. Permaneceu ali algum tempo, paraserenar o ânimo.

Ao voltar ao salão, cruzou com Maria Emília.– Como você está pouco animado nesta noite! – ela

disse, detendo-o.– Você acha?– Só eu, não; é o que se comenta.– Francamente, Maria Emília, não me faz nada feliz

que andem se ocupando de mim tanto assim! – disseCláudio, sorrindo para ela. – Não resta dúvida de queesses comentadores estão com muito tempo...

– Obrigada pela parte que me toca!– Oh, não me referi precisamente a você!– É muita gentileza me excluir. E Nora? Faz tempo

que a procuro, sem conseguir encontrá-la. Por falar nisso,você não achou que ela anda meio triste?

– Sim, um pouco triste. Mas eu suponho que nãoseja por falta de distrações.

– Ah!, de que servem as distrações quando se estátriste? Principalmente quando a gente é perseguida pelasrecordações de algum bem-querer...

– Você diz isso por experiência própria? – pergun-tou ele, esquivando-se do dardo.

– Qual o quê!... Por acaso é preciso ser ator parasaber essas coisas?

– É verdade... Mas, então, é fácil também saberque, quando as recordações se transformam em fantas-mas, o único jeito é afugentá-las.

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– Isso é coisa muito fácil quando o amor nos sorripor todos os lados; mas não é assim para os demais...

– Essa carapuça não é para mim, com certeza...– Vejam só quem quer tirar o corpo fora!... O menos

indicado!– Olhe, Maria Emília, é a primeira vez que eu enca-

ro as coisas a sério.– A sério para uma e na brincadeira para as outras?– Não quis dizer isso, mas é evidente que, quando

as coisas são tomadas com outra intenção, é quase impos-sível a gente chegar a se entender.

– Tem razão, Cláudio – ela respondeu, cedendo,com evidente propósito de pôr fim à conversa.

Ele simulou não haver notado isso.– Já que chegamos a um acordo – ele propôs, – quer

dançar esta música?Maria Emília escusou-se, pretextando um compro-

misso, e despediu-se de Cláudio com um sorriso amável.Cheio de pesar pelos acontecimentos dessa noite,

Cláudio resolveu retirar-se. Encontrou-se de passagemcom Luciano, a quem pediu que o acompanhasse paradespedir-se de seus tios.

Já saíam, quando Nora veio até ele.– Você já vai? – perguntou com naturalidade.– Sim – ele respondeu, estendendo-lhe a mão.A jovem avançou com ele alguns passos e, dissimu-

ladamente, entregou-lhe um pequeno envelope.– Espero que seu namoro não impeça você de visi-

tar-nos, como fazia antes – disse-lhe, ao mesmo tempo.Voltou em seguida para o salão, disposta a desfrutar

a última parte da festa. Tinha a sensação de deixar liquida-do um assunto que a havia atormentado até aquela noite.

Já em seu carro, Cláudio extraiu do envelope um

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cartão de fragrância exótica. Com forçada letra miúda,mas nervosa, dizia:

“No instante em que mais felizes podíamos ter sido,notei-o ausente. Agora sei, finalmente, que não seremosum para o outro. Que você tenha sorte. Afetuosamente,

Nora.”

Suspirou aliviado. Aquelas linhas, longe de expres-sar rancor, devolviam-lhe a tranqüilidade.

No dia seguinte, reunidos no escritório, Cláudio con-versava calmamente com seu pai, trocando pareceres a res-peito de seus planos para o futuro, com o objetivo de deter-minar possíveis datas e considerar tudo o que dissesse res-peito a seu noivado e casamento, que ele queria acelerar.

Num dado momento, Patrício interrompeu-os,comunicando que Marcos Gorostiaga chamava porCláudio ao telefone. Ao atendê-lo, este recebeu com sur-presa a notícia da chegada do senhor De Sándara, sendoinformado por seu amigo de que, na noite anterior, ele eseu pai haviam tido a oportunidade de conhecê-lo.

Visivelmente satisfeito, Cláudio desligou o telefone.Ato seguido, participou a notícia a Dom Roque, adicionan-do que Marcos acabava de convidá-lo para o jantar queseu pai ofereceria no dia seguinte, em sua casa, em home-nagem ao hóspede:

– Também vai o senhor Malherbe e vários amigosmeus.

– Muito bom, muito bom... – Dom Roque assentiu.– Essas relações são convenientes para você, pois assim

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poderá se familiarizar com um gênero de conhecimentosque, segundo penso, lhe serão proveitosos.

Fez uma pausa, após a qual acrescentou:– Marcos sempre me agradou; é um moço reflexivo

e de convicções.– É isso mesmo, papai; ele é um dos meus melho-

res amigos.Dom Roque deteve-se para observar um dos docu-

mentos que na ocasião enchiam sua escrivaninha e, emseguida, reiniciou a agradável conversação com o filho:

– Tudo o que se relaciona com o conhecimento denosso espírito me atrai; isto sempre me proporcionou umverdadeiro prazer na vida. Sua mãe tinha a mesma predi-leção, e procurava se orientar lendo obras escolhidas. Eua vi mais de uma vez preocupada e até pesarosa por nãoalcançar no cultivo de seu espírito aquilo que ela se haviaproposto.

– Você nunca me falou disso.– Deverei ter falado alguma vez, sem dúvida; mas

há coisas às quais permanecemos indiferentes até que, emdeterminado momento, tomam para nós um valor fora docomum. E sabe você por quê? Justamente porque, poruma ou outra circunstância, se desperta em nós esse inte-resse que antes não sentíamos. É isso o que está aconte-cendo com você agora.

– Você não sabe quanto me comove o que acaba de mecontar sobre você e minha mãe... Isso me explica, de certomodo, minhas próprias inclinações e inquietudes. E vou dizermais: Griselda é agora para mim o que mamãe foi um diapara você. Ela sente prazer quando tratamos desses temas.

– Isso me agrada, filho; me agrada muito o modo deser de Griselda, e penso que você será feliz com ela. De minhaparte, eu me sentiria muito satisfeito se depois de casados

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vocês viessem morar aqui, me acompanhando pelo resto deminha vida.

– Oh, papai! Tenho certeza que sua proposta vai dei-xar Griselda muito contente, e que ela vai saber apreciar aparte afetuosa que contém!

Avançando a tarde, Cláudio se preparava para visitarsua namorada. Chocavam-se ainda em seu interior dois esta-dos diferentes: ao mesmo tempo que ansiava por vê-la etransmitir-lhe quanto antes as gratas novidades, experimen-tava sensações outras que mortificavam seus sentimentos. Oepisódio da véspera mantinha-o moralmente coibido. Haviaconsultado reiteradas vezes sua consciência, mas, como nãoobservasse por esse lado recriminação alguma, pensouachar-se ante um desses transes psicológicos em que a cons-ciência guarda silêncio, reservando seu pronunciamentopara que o próprio discernimento faça uso dele em épocas deapurada maturidade. Devia ser assim, pois sua razão agoranão atinava a concebê-lo em falta sem cair no ridículo. “O efê-mero jamais poderá prejudicar o permanente”, pensou ele, “emeu amor por Griselda está muito acima de qualquer escor-regadela que as circunstâncias me obriguem a dar, sem oconcurso, é claro, de meus sentimentos.” Ao término dessasreflexões, que ele guardaria para sua intimidade, Cláudiorecuperou em definitivo o aprumo, que tanto ele temeu vies-se a lhe faltar ao atender depois às lógicas perguntas queGriselda lhe faria.

Ela, por sua vez, também guardaria para si a recorda-ção do desassossego que a desvelara naquela noite. Um pen-samento de receio, vindo à sua mente talvez por indução psí-quica, havia-lhe ocasionado o apreensivo mal-estar. Não obs-tante, seu despertar foi alegre, e a simples idéia de voltar a verseu amado preencheu todas as horas do dia.

Ao chegar, Cláudio procurou tocar o mais ligeira-

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mente possível no tema da festa, detendo-se, em vez disso,em contar o que conversara com seu pai acerca das bodase de seu desejo de que vivessem todos juntos a ele.Griselda não anelava outra coisa, sendo-lhe por conse-guinte fácil dar uma idéia do muito que a ela compraziaaquele desejo de Dom Roque, pois a preocupava que eleficasse sozinho. Além do mais, agradava-lhe a perspectivade animar, com sua presença e seu afeto, o vazio que afalta de uma mulher deixava sentir naquela casa.

– Eu não podia esperar outra coisa de você, queri-da. Não tenho dúvida de que juntos edificaremos um futu-ro pleno de felicidade.

– Essa é minha aspiração, Cláudio, apesar de saberque uma boa parte dessa tarefa caberá a mim.

– Com certeza nossa união vai trazer consigo, comoacontece em toda situação nova, grandes mudanças paranossa vida. Mas isso será grato e também uma novidadepara nós, porque o simples fato de introduzir uma varia-ção tão interessante na rotina diária vai nos proporcionarum sem-fim de alegrias, você não acha?

– Oh, claro, Cláudio! Principalmente se conseguir-mos fazer todas essas variações coincidirem sempre comnosso propósito de ser felizes.

– Eu creio que a chave da felicidade está precisa-mente nisso.

Do coração de Cláudio fluíam, nessa noite, as esperan-ças mais ternas e alentadoras. Havia encontrado a mulhersonhada. Que mais podia pedir? Griselda era excelente, dissoele estava seguro; tinha o espírito forte, capaz de sofrer e des-culpar. “Quão belas condições”, pensou ele, “que confirmam acapacidade sensível, jamais negada à mulher!.” E, recordandonão serem muitas as que punham de manifesto essas quali-dades à altura de uma virtude, deixou a alma livre no deleitedos dons inefáveis com que o céu o estava favorecendo.

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Horas depois, ao deitar-se, Cláudio pegou o livro dePatrício, do qual já havia lido algumas partes, disposto adeter-se desta vez no primeiro ponto que julgasse interes-sante. Com esse propósito, foi passando lentamente aspáginas, folha após folha, até encontrar o que aparente-mente buscava: “Fica assim demonstrado”, leu, “que ohomem tem o privilégio de nascer duas vezes. A primeira,pelo concurso das leis biológicas, que determinam o atogenésico; a segunda, pela confluência de duas forças,sendo uma delas espiritual, metafísica, e a outra surgidado potencial anímico do ser, atuando ambas por atraçãosimpática.’’

Percorreu, em seguida, examinando-as bem poralto, várias páginas e, como se sua atenção tivesse ficadopresa ao que acabara de ler, voltou de novo ao trecho e,dali, reiniciou a leitura: “O primeiro nascimento, ou seja,o físico, está condicionado à matéria; o segundo, que cha-maremos de ‘supracomum’, é privilégio da raça humana.Produz-se pelo despertar da consciência, que responde aochamado de conhecimentos que a ativam e enriquecem,surgindo daí o ser como entidade independente da vidabiológica. Configura-se, assim, a vida mental, moral, psi-cológica e espiritual do ser humano.”

Cláudio não conseguia ver com clareza o alcance detais conteúdos e, esforçando-se por compreendê-los, dete-ve-se a refletir. “É muito certo”, terminou dizendo para si,“que cada um pode vir a este mundo e viver nele de formasemelhante à do animal, com a diferença do refinamentopróprio de nossa condição de humanos, ao que se soma a

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posse de um intelecto que, posto em atividade, permiteque nos ilustremos e nos faz cultos, sociáveis e indus-triosos. Entendo que tudo isso pertence à primeira dasvidas a que o autor alude, mas... e a segunda? Esta devecorresponder, suponho, a um novo modo de pensar,sentir e experimentar a vida. Não estará ocorrendo emmim algo parecido? Não terá algo a ver com isso essepalpitar que sinto há algum tempo, essa inquietude porconhecer tudo quanto se relaciona com meu espírito?Espírito... eis aí uma palavra que com freqüência é vistacom indiferença e até com desprezo. Uns crêem com-preendê-la; outros a usam para prestigiar suas cren-ças... Haverá alguém que de verdade conheça o que seoculta entre as dobras do conceito que permeia suaessência?”.

Ao final de sua meditação, fechou o livro e dispôs-se a dormir, mas ainda conseguiu dizer a Patrício, queentrava nesse momento no quarto para cumprir uma tare-fa de última hora:

– Estou achando seu livro muito interessante. Sevocê não se importa, ficarei com ele um pouco mais.

Em seguida, talvez em atenção à resposta amáveldo mordomo, falou-lhe do compromisso que tinha para odia seguinte:

– Amanhã vou conhecer o autor deste livro, sabe?– Não é possível!– Pois é isso mesmo que você acaba de ouvir. Ele

está de passagem por Buenos Aires, e vou vê-lo na casa deMarcos.

– Mas como invejo sua sorte!– Acho que esse encontro vai ser muito vantajo-

so para mim. Estou ansioso por esclarecer certas incóg-nitas.

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Cláudio não ignorava, contudo, que os temas deseu interesse requeriam, para serem dominados, umaexperiência e um estudo de comprovada eficácia, sendoque tudo isso provinha, segundo dizia o autor do livro, doconhecimento de si mesmo.

No grande vestíbulo da residência do SenhorGorostiaga, achavam-se reunidos nessa noite Justo VegaMonteros e Miguel Ángel Garmendia. Logo se juntaram aeles Salvador Mariani e Marcos, que conversavam à parte,e em seguida Cláudio e Norberto Aguirre, que acabavamde se fazer presentes na casa.

Não demorou e Marcos veio dizer aos recém-chega-dos que De Sándara se encontrava no escritório em com-panhia de seu pai, de Malherbe e de Dom Javier Moudet,professor universitário, amigo deste último. Haviam tidotempo apenas de trocar algumas palavras, quando o cria-do anunciou que o senhor Gorostiaga os esperava, emomentos depois todos foram apresentados ao visitante.

A partir desse instante, o senhor De Sándara foi afigura central daquele cenáculo.

Tal como Marcos o havia descrito momentos antes,De Sándara era um homem de estatura elevada, ágil, desen-volto. Aparentava beirar os quarenta anos. Sua tez era algotrigueira, os cabelos escuros e lustrosos, e as feições bemproporcionadas. Tinha os olhos castanhos, brilhantes eexpressivos, contornados por uma ligeira sombra.

A julgar pela atitude dos que nesse momento orodeavam, poder-se-ia afirmar que sua pessoa havia des-pertado simpatia.

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Com sua habitual seriedade, mas muito cortes-mente, Marcos se apressou em manifestar:

– O senhor tem diante de si os amigos de quem lhefalei, senhor De Sándara. Estavam desejosos de conhecê-lo e escutar suas palavras. Como eu, eles também apre-ciam os prazeres do espírito.

– Me agrada encontrar, em minhas viagens pelomundo, jovens com aspirações elevadas, ansiosos por son-dar além do horizonte – o visitante respondeu, com dicçãoclara e franca, passeando seu olhar sobre eles.

Deteve-se quiçá alguns segundos a mais em obser-var Arribillaga, porque este experimentou a sensação dehaver sido submetido a um exame radioscópico. Não obs-tante isso, o jovem respondeu com desembaraço:

– Nos anima uma necessidade profundamente sen-tida, senhor De Sándara.

– Uma preocupação constante – Justo apoiou.– É melhor que seja assim, já que a simples curio-

sidade não haveria de ajudar os senhores numa busca querequer interesse e esforço permanentes.

Passaram em seguida ao salão, em cujo recinto –amplo, espaçoso, mobiliado com suntuosidade e refinadobom gosto – dispuseram-se a começar a reunião. O senhorMalherbe ocupou assento em frente ao hóspede, junto doqual se puseram o dono da casa e o professor Moudet,cada um de um lado. Os jovens preencheram os espaçosrestantes em torno do visitante.

Malherbe parecia ser o de mais idade entre todos,sem dúvida pelo aspecto que lhe davam os cabelos enca-necidos e algumas rugas que lhe sulcavam de lado a ladoa fronte, e que se acentuavam ou desapareciam quandoele falava, de acordo com a mobilidade de seus músculosfaciais. Era magro e de estatura regular. Seu aspecto dis-

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tinto, a pulcritude interior e a grande urbanidade deixa-vam perceber nele um homem de experiência no mundo.Convivendo de perto com ele, tinha-se uma certeza aindamaior de se estar diante de uma pessoa reta e honrada.

Foi ele quem introduziu as primeiras palavras naconversação, a qual se entabulou com naturalidade efluência, como se aquela amizade, ao invés de ser recente,proviesse de muito tempo. Foi servido uísque e charutos,e Gorostiaga não deixou de expressar, uma vez mais,quanto lamentava que sua esposa, em viagem com asfilhas, não se encontrasse ali para receber melhor os con-vidados.

E como aqueles que vão à pesca de peixes falam, oanfitrião terminou por pedir a seu hóspede que os obse-quiasse com um de seus temas favoritos.

– Na verdade, não tenho predileção por nenhum –ele respondeu. – Todos me são gratos, quando podem serúteis aos que me escutam.

– Sua concepção da vida é ampla e interessante –Malherbe expressou, – uma vez que tudo nela se relacionacom os problemas que o homem deve enfrentar na lutacontra a adversidade e na busca das verdades eternas.Assim, é desnecessário dizer que, seja qual for o ponto queo senhor escolha, estará se referindo à solução de tais pro-blemas, solução que todos nós – uns mais, outros menos– necessitamos e esperamos. Sei também da densidade deseus conhecimentos e de sua arte para expô-los, e isso éuma razão que justifica a boa disposição com que me dis-ponho a escutá-lo.

– Aqueles que vamos por um caminho devemos tra-tar de que os faróis não nos deslumbrem – respondeu sor-rindo De Sándara, que adicionou com cortesia: – Eu nãoposso privar o estimado amigo Malherbe da satisfação de

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fazer, por espontânea vontade, um elogio a minha pessoa,mas é meu dever considerar isso uma deferência, nuncauma mera lisonja.

– Foi uma valorização sincera e entusiasta a que fizde seus méritos, senhor De Sándara, e lhe fico muito gratopor minhas palavras não terem chegado ao senhor desvir-tuadas. Uma lisonja de minha parte levaria implícito odesejo de que fosse aceita, o que não é compatível commeu juízo, por considerar que seu desfrute diminui a áreada própria dignidade espiritual e afeta, de certo modo, oconceito que nossas aptidões tenham conseguido inspirar.

De Sándara sorriu, respondendo com um movi-mento aprobatório de cabeça, e acrescentou em seguida,dirigindo-se aos jovens:

– Gostaria de conhecer algumas das inquietudes oupreferências intelectuais que predominam em vocês.

Marcos expressou o desejo de saber algo sobre averdadeira função do espírito na vida, e os outros manifes-taram sua concordância com ele.

– E a que se deve esse interesse? – o visitante inqui-riu, dirigindo-se a todos.

– Talvez provenha do mistério que existe em tornodessa questão – manifestou Arribillaga. – As sondagens dosmais afamados investigadores ainda não satisfizeram aslógicas demandas dessa interrogação, proposta com tantainsistência pela sensibilidade humana. Tudo o que se refe-re ao espírito ainda é um mistério inacessível para a inteli-gência; nem mesmo os homens de maior reflexão consegui-ram se aproximar dele.

– Vou procurar então satisfazer vocês, abordando essetema – disse De Sándara, – e espero que minha tese sobreesse assunto, tão esquivo ao intelecto, contribua para afastaras sombras que pairam sobre ele de modo tão obstinado.

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Transcorreu uma pausa, e logo após ele continuou:– Para começar, direi que nas esferas ilustradas, ali

onde a cultura alcança suas manifestações mais elevadas– isto é, na arte, na ciência, na literatura e na filosofia –, oespírito sempre foi e é, sem variar, o principal colaborador,ainda que permaneça como incógnita aos olhos do mundo.Lá excepcionalmente, ele é reconhecido como legítimoautor de alguma obra extraordinária. Sempre se prestigioua inteligência, a genialidade, quando o homem conseguiualcançar a auréola da glória. Me dirão que a inteligência ea genialidade são parte do espírito; que são sua manifes-tação mais eloqüente naquelas vidas que sobrepujaram ascondições comuns. Estou de acordo, mas é também certoque, em caso algum, se observam indícios de que existeuma consciência cabal da atividade do espírito ou, melhorainda, a consciência de sua intervenção direta no desen-volvimento das idéias até sua objetivação final. Não restadúvida de que se esteve ali em contato com o espírito, masinvoluntariamente, sem se ter, como já disse, consciênciacabal do fato. Nem os próprios filósofos, ainda que porvezes tenham procedido como se mantivessem esse conta-to com o espírito, puderam dizer que estiveram em enten-dimento consciente com ele.

Após interromper-se por um instante para sabo-rear seu charuto, De Sándara prosseguiu:

– Na realidade, o que o espírito quer é assumirplena e conscientemente a condução de nossa vida. Dessemodo, enquanto não alcancemos o convencimento de quedevemos aceder a tão benevolente exigência, será muitodifícil encararmos com possibilidades de êxito a empresado próprio aperfeiçoamento. A fisiologia é, com respeito àvida do corpo físico, o que a psicologia, exaltada à suafinalidade transcendente, é para a vida do espírito. Por

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conseguinte, constitui uma aberração o fato de o espíritopermanecer alheio ao que forma parte de sua próprianatureza. Os três sistemas que conformam a psicologiahumana – o mental, o sensível e o instintivo – devem girarem torno de seu eixo-mãe ou centro-ímã, que é o espírito.A inteligência, com seu vastíssimo campo de atividade esuas imensas possibilidades extrafísicas no mundo men-tal, é, queira-se ou não, o grande nervo psíquico do espí-rito*. Mas é forçoso fazer aqui uma ressalva, para dizerque a inteligência, quando funciona inconscientemente,fica amiúde anulada pela inércia mental e afetada deforma direta pela ignorância. Outra coisa é quando elavence, instada por anelos íntimos e elevados, a oposiçãopertinaz de certos pensamentos, como os que fomentam adúvida, a indiferença, o pessimismo, e muitos outros quetravam seu mecanismo magnífico. Tudo muda e tudo setransforma, então, no pensar e sentir do homem; numapalavra, os pensamentos e os sentimentos se “hierarqui-zam”, deixando de satisfazer os afagos da terra para bus-car as alturas límpidas do mundo superior. É aí que oespírito começa a nos governar, podendo-se comprovar serele muito mais acessível do que supúnhamos. Nós mes-mos o tínhamos tornado inacessível, ao encantoá-lo nolugar menos pensado e menos sentido de nosso ser.

“Vulgarmente”, De Sándara continuou, “alude-se aoespírito como se ele fosse algo abstrato, imaginando-o semcondicioná-lo a nenhuma função específica. Isso ocorreporque, na verdade, ele não a tem para o homem comum,como não a tem para todo aquele que não tenha experi-mentado sua realidade e não conheça sua possível coexis-tência com o ser físico. Em geral, não se dá ao espíritonenhuma participação ativa na vida, à qual ele permanece

(*) N.T.: No original, “nervión psíquico del espíritu”

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alheio, como personagem estranho, como ‘convidado depedra’.* Em situação de tamanho desprezo, compreender-se-á por que é nula sua intervenção nos fatos que nosacontecem. Quantas vezes ouvimos as pessoas dizerem,por ocasião de irem a um concerto, a uma apresentaçãoteatral, a um cinema, que vão ‘recrear o espírito’. É eviden-te que tal coisa é dita com muito boa intenção, mas naignorância de que o espírito não pede uma mera recreação,senão muitíssimo mais. O espírito pede participação ativae intensa, como já disse, na vida do ser que ele anima.”

– O senhor nos está falando do espírito como umarealidade absolutamente tangível – Justo disse, – e issoquer dizer que existe a possibilidade de se esclarecer essemistério que até hoje o manteve ignorado...

– Exatamente. Mas devemos ter presente que essemistério seguirá impenetrável, tanto como sempre foi, paraquem não chegue a conhecer a essência de sua verdade.Não poderemos falar do espírito como parte inseparável denosso ser, enquanto não consigamos nos consubstanciarcom ele. Do mesmo modo que não poderemos avançarnunca pelo abrupto caminho da sabedoria, se não concede-mos ao espírito esse papel principalíssimo que ele devedesempenhar em nossa existência. Vemos, pois, quãoimportante é chegar a esse objetivo, ou seja, à incorporaçãodo espírito na instituição humana chamada vida racional.

Entendendo que De Sándara, ao fazer então silên-cio, dava margem a que os ouvintes interviessem, Marcosadiantou-se, dando mostras de concordância com os con-ceitos vertidos a propósito de sua pergunta, e ia formularalguns juízos, quando seu pai, observando que o criado jáanunciava o jantar, convidou-os a passar à sala de refei-ções. A interrupção não impediu, contudo, que a conver-

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(*) N.T.: Calado e sem movimentos.

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sação recomeçasse ali com igual interesse, encarando-sede forma amena os motivos que dela surgiam.

Num momento oportuno, e quase ao final,Arribillaga, que ocupava um lugar bem em frente a DeSándara, dirigiu-se a ele e manifestou:

– Me senti muito atraído por suas idéias, talvez por-que elas me sugerem conteúdos que estão muito além dosmeramente expressados.

– É possível... As idéias formam grandes famíliasespalhadas pelo mundo. Através dos séculos, elas se buscamumas às outras com a ternura de um amor similar ao doshumanos. Muitas ficam imóveis, por falta de oportunidadepara se manifestarem, até que o toque mágico de um aconte-cimento feliz as reativa. Essa circunstância que as traz devolta à vida assume, então, o caráter de reminiscência.

– Suponho que seja isso o que acontece comigo,pois concorda inteiramente com meu sentir. Por outraparte, senhor De Sándara, eu me dou conta de que, se nãohouvesse escutado seus conceitos, dificilmente poderia mevincular a uma possibilidade tão remota.

Miguel Ángel, que havia conseguido dissipar algu-mas dúvidas no curso daquela conversação, expressousatisfeito:

– Saboreei com gosto do manjar que o senhor nosserviu.

– Oh, se não fosse pelo temor de me exceder –Malherbe exclamou, alegremente, – eu pediria ao amigo DeSándara que nos oferecesse alguma sobremesa especial...

– E que melhor sobremesa – este respondeu, nomesmo tom – que a comprovação de que estivemos aten-dendo, a um só tempo, a nosso ser físico e a nosso serespiritual?... Acabamos de dar a cada um deles o alimen-to de seu agrado. Quando dispensamos ao espírito os cui-

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dados que habitualmente são dispensados só ao corpo, jáo temos satisfeito; enquanto isso ocorre, a vida amplia omundo de suas experiências, de suas sensações, de suasperspectivas.

De volta ao salão, falou-se inicialmente de coisascorrentes, de generalidades, matizadas com não poucasnotas de humor. Transcorrido, porém, aquele momentocordial, retomaram-se gradualmente os temas interrompi-dos. Malherbe falou durante um bom tempo, referindo-sea sua longa busca da verdade, investigando sempre, semachar a compensação ansiada.

– Felizmente – disse ao término de sua exposição, –tive a ventura de não me extraviar nunca nessa averigua-ção tenaz que levei a cabo durante anos. Talvez isso setenha devido ao fato de eu ter pressentido os perigos queexistem quando se embarca nesta ou naquela teoria, ouquando se seguem cegamente os caminhos enunciadosnas tantas páginas soltas pelo mundo. Esse afã de saber,que nos vem da alma, nos move a querer conhecer tudo.Se por acaso deixamos alguma coisa de lado, logo nosvemos perseguidos por estas perguntas: “Que será? Nãoestará aí o que buscamos?” É algo muito parecido ao quenos ocorre quando ouvimos tocar a campainha do telefonee não nos dispomos a atender. “Quem será? Para que nosestão chamando?”, perguntamos a nós mesmos; e quan-tas vezes não ocorre, tanto num caso como noutro, que,decididos finalmente a atender a quem chama, verificamostratar-se de um engano...

– O caminho verdadeiro não se encontra senãodepois de muito andar, de muito sofrer, de muito esperar– De sándara expressou.

– Temos então de pensar que o sofrimento é inevi-tavelmente necessário na busca do saber e do bem? –Justo inquiriu.

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– Será fácil compreender que, para se apreciar obom, é preciso descobrir sua realidade em meio às mil fic-ções que nos rodeiam. Isso quer dizer que devemos antesprovar aquilo que cremos ser bom. Pois bem, se o que pro-vamos só tem de bom a aparência, e, após o engano, aindaconservamos nossa ingenuidade, com certeza voltaremosa topar com novas decepções, que abaterão nosso ânimorepetidamente, como se depois de cada experiência elasnos pusessem desacordados com golpes cada vez mais for-tes. Recobrando os sentidos, nós nos veremos ainda assimna necessidade de continuar caminhando, pois a vidaexige isso, e tal caminhada irá se fazendo progressivamen-te mais penosa. Entretanto, se desses enganos sucessivosconseguirmos extrair algo útil para nossas reflexões, éindubitável que nos livraremos deles em menor tempo, eisso mesmo nos empurrará para a frente, até darmos como que realmente seja bom, quer dizer, com aquilo que,longe de nos emaranhar numa quimera, nos convide adesfrutá-lo eternamente.

“Acabo de demonstrar, numa forma gráfica”, pros-seguiu De Sándara, “que o sofrimento do qual lhes falavatem origem na ignorância, mas também devo assinalar queesse mesmo processo seletivo se cumpre através dos inu-meráveis fatos que intervêm em cada vida humana. Todosos acontecimentos, desde os que trazem consigo grandespesares e sofrimentos até os que encerram contrariedadesinsignificantes, perturbam o ânimo por ignorância de suascausas. Eles são atribuídos correntemente à fatalidade, aodestino, à má sorte, mas isso não deixa de constituir umerro que, sendo de muitos, consola os tolos...”

– Eu deduzo dessa afirmação que quem sabe esta-ria resguardado do sofrimento por seu próprio saber, nãoé verdade? – Miguel Ángel perguntou, esperando a aprova-ção de De Sándara.

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– Realmente – o hóspede assentiu; – mas não isen-to dele totalmente. Aquele que sabe também sofre, massuas tribulações já não obedecem a iguais causas. O pró-prio saber, ao lhe conceder a prerrogativa de afastar gra-dualmente essa conseqüência acarretada pela ignorância,lhe permite lutar contra o mal, contra o erro ou contra aficção em condições muito diferentes e superiores. E nessalide o homem emprega a fundo seus conhecimentos, aper-feiçoa sua técnica, aumenta sua vontade e sabedoria. Aoalcançar essa conquista, ele também se sobrepõe à inevi-tável alternativa da espera, implícita no sofrimento.

– O senhor dá ao vocábulo “espera” alguma acep-ção particular? – o professor Moudet inquiriu, vendo queDe Sándara se calava.

– Os termos podem assumir às vezes um sentidomais profundo, e até uma nova acepção, ao se vincularemcom a realidade interna do ser ou com as exigências ínti-mas de sua natureza, sem que isso implique, evidente-mente, desvirtuar sua etimologia ou seu sentido. Paramim, esse vocábulo de certo modo constitui uma chave,que não vejo inconveniente em revelar. Sempre considereia espera como uma força que nos move a ser conscientesde nosso proceder ou conduta, toda vez que nos vemossujeitos a uma situação de expectativa. Quando confiamosessa força ao acaso, ela é cega e nos traz – é bom admitir– cruéis dissabores ou pesares. Diante de um período deespera, devemos ter plena consciência dos fatores que odeterminam. Quero dizer com isso que temos de saber sese trata de uma espera fortuita, ou se ela é conseqüênciade nossa vontade posta ao serviço de idéias ou pensamen-tos aos quais demos uma missão definida. No primeirocaso, será preciso pensar, enquanto transcorre a espera,de que forma poderemos contribuir para que ela não nos

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prejudique, não nos lese, a fim de não perturbar ou trans-tornar os projetos nos quais já pusemos nossos olhos. Nosegundo, devemos ter presente que só a nós cabe dominara situação, o que implica saber que a espera é a lógicaalternativa de um processo cuja feliz culminação dependede nós mesmos. Essa força, que chamei de “espera”, temque obedecer ali aos firmes ditados da consciência e atuarem função do objetivo reitor da mesma. Isso quer dizer queo homem deve manejar dita força com pleno domínio desua vontade, o que lhe permitirá conhecer também, com adevida antecipação, quais serão os resultados finais.

“Mediante a assimilação dos conhecimentos essen-ciais – os mesmos que estou pondo ao alcance dos senho-res neste momento, – podemos habilitar-nos para realizaruma espécie de trigonometria mental, que nos permitiráestabelecer com exatidão os tempos que vão demarcandonossa existência. A vida humana, concebida do ânguloproeminente de sua estruturação moral, espiritual e psi-cológica, a meu juízo é uma sucessão ininterrupta de cur-tos lapsos de duração, cada um deles fragmentado em trêsperíodos: o que se emprega em projetar, o que se destinaà ação e o que exige a espera.”

– Essa definição da vida compreende também a dohomem comum? – perguntou Salvador.

– Estou me referindo, meus amigos, às vidas fecun-das. Duvido que existam momentos de maior sublimidade,e de efeitos felizes mais duradouros, do que os vividosdurante a concepção de uma idéia ou de um projeto. Vem,em seguida, o delineamento e estudo de sua execução,época também feliz, na qual pomos à prova nossa capaci-dade, com as conseqüentes satisfações inspiradas pelasfuturas etapas a realizar. Temos, finalmente, a espera, queé a que escalona progressiva e metodicamente o desenvol-

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vimento do projeto até sua culminação. Apressar mais doque o devido o término de uma obra é frustrar seu resul-tado, do mesmo modo que tirar o ovo da incubadora antesdo tempo é malograr o processo normal do pintainho, quehaveria de nascer ao se cumprir a etapa fixada para suagestação e desenvolvimento. A espera deve ser, pois, inte-ligente, e durante o tempo em que tenhamos de nos sub-meter a ela, devemos nos manter vigilantes, para que oprocesso iniciado se cumpra sem inconvenientes. Issopressupõe, naturalmente, a necessidade de afastar comrapidez esses inconvenientes que poderiam se apresentar,o que evitará que a espera se torne estéril.

“O bom agricultor”, ilustrou De Sándara, “confia ofuturo da família à sua plantação, porque se previne dequalquer eventual contingência com os recursos de suaexperiência e de seu saber. Aquele que espera os frutos deseu talento e de seu trabalho, ocupa seu tempo criandooutras idéias, ou pondo-as em ação, a fim de escalonarinúmeros incentivos ao longo da vida e manter os gozosestéticos numa fluidez espiritual permanente e renovada.Infeliz do homem que não sabe esperar, ou o faz confian-do sua sorte tão-somente ao acaso!... A espera – a bendi-ta espera! – é um parêntese, grande ou pequeno, que seabre em nossa vida. Quem não aprende a utilizar-se des-ses espaços de tempo inteligentemente corre o risco deperder a paciência...”

Em seguida, Moudet mostrou-se interessado emconhecer o método que De Sándara empregava para abar-car suas concepções, as quais ele considerava amplas ediferentes. Calmo e de juízo equilibrado, Moudet, por umcostume inveterado, gostava de toda espécie de referênciase detalhes sobre os pontos que atraíam seu interesse, oque dava a impressão, decerto enganosa, de que ele qui-sesse se compenetrar das coisas sem muito esforço.

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– Para abarcar minhas concepções – De Sándararespondeu, – não utilizo método algum; utilizo o método,isso sim, para ensinar.

– E em que consiste?– Simplesmente em ir formando, em quem aprende,

uma férrea disciplina interna no manejo e aplicação deconhecimentos que transcendem o saber comum.

– Fica evidente que a posse de tais conhecimentosfaz supor uma forma particular de ensinar...

– A posse de muitos conhecimentos dessa ordemde fato pressupõe, amigo Moudet, a sistematização nouso e aplicação dos mesmos, bem como o discernimen-to claro que deve auxiliar nessa sistematização. Emsuma, o método consiste na capacidade de se servirdesses conhecimentos com ciência e consciência, sejapara uso próprio, seja para ajudar os demais na adoçãodos mesmos.

– De acordo – insistiu Moudet; – mas a essênciadesses conhecimentos, de onde se obtém?

– Da vida e do mundo. Daí se extrai o sumo comque são elaborados os conhecimentos, os quais servem aomesmo tempo para dotar a inteligência de um poder deação e de visão nada comuns.

– Compreendo; mas como se gerou no senhor, porexemplo, essa orientação, e em que princípios fundamen-tou o encaminhamento de suas idéias?

– O senhor me perdoará, professor Moudet, maseu não poderia satisfazer essa pergunta sem transgre-dir um dever de lealdade e respeito para com minhaprópria consciência. Trata-se de um segredo inviolá-vel; inviolável pela simples razão de que ninguém, comexceção do próprio ser, pode admitir e compreendersua realidade. Apesar disso, e sem me afastar de tais

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razões, tratarei de satisfazer a sua pergunta, aindaque em parte. Se partimos da base certa de que cadaum é o resultado de seu esforço, estamos proclaman-do com isso que o homem herda a si mesmo. Sendoassim, é fácil concluir que quem custodia e perpetuaessa herança através do tempo é o próprio espírito.Por conseguinte, quando o espírito assume o governoda vida, a altura alcançada pela inteligência em seudesenvolvimento tem de obedecer a influências prove-nientes desse mesmo espírito.

“Vou expor agora, à guisa de ilustração, umaimagem que tem certa relação com o que estamos tra-tando. Gostaria que se avaliasse a atitude de uma pes-soa a quem, com a maior boa-vontade, estivéssemosdispostos a ajudar com algum dinheiro, se ela, mesmonecessitando dele imperiosamente, se negasse a recebê-lo enquanto seu benfeitor não lhe explicasse como ini-ciou a fortuna que agora lhe permite ajudá-lo, ou osmeios pelos quais a alcançou. Embora não seja exata-mente este o nosso caso, tampouco está desvinculadodele, e nos sugere, pelo contrário, uma reflexão muito apropósito, pois cada um dos que fazem fortuna sabeque nesse processo intervêm múltiplos fatores circuns-tanciais, mas prefere guardá-los para si – apesar deserem importantes –, por considerá-los privativos daintimidade. Deveria o médico atender ao pedido dopaciente que lhe exigisse, como condição para subme-ter-se à medicação prescrita, dar-lhe a conhecer comofez o bioquímico para descobrir suas fórmulas, comoelas foram preparadas e como seus componentesatuam?... Após essa digressão, direi a todos que asriquezas da inteligência, quando são inatas, obedecem

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a fatores da própria herança, a qual é fruto de um pro-

cesso de evolução seguido pelo espírito. O que estuda

uma profissão, de quem herda seu saber e seu título, senão

de si mesmo? Não os herda de seus pais, de forma alguma;

herda de si, de seu esforço, de sua constância e entusias-

mo. Então, por que não haverão de obedecer à mesma lei

os desenvolvimentos superiores da inteligência? Ainda que

isso pareça inverossímil, poderia de certo modo justificar

as reservas a que fiz referência há alguns instantes.’’

– Considero claro e convincente o que nos disse

– Malherbe intercedeu. – Tais riquezas são as que des-

cobrimos ao longo da vida de um homem e de sua

obra, e o perfil dessa vida e dessa obra viria a ser deli-

neado na atividade de seus pensamentos, amadureci-

dos após a concepção dos propósitos que animam

seus esforços.

– Agora compreendo – manifestou por sua vez o

professor Moudet, muito satisfeito – qual é o ponto de

partida de sua orientação, pois quem conta em seu

haver hereditário com os conhecimentos que o senhor

possui, leva implícita a orientação.

Em seguida, como visse que De Sándara se dis-

punha a pôr-se de pé, com intenção de encerrar a visi-

ta, acrescentou:

– O senhor foi muito amável ao responder a minhas

perguntas, e, apesar de eu não estar muito adestrado na

interpretação de seus conceitos, as explicações dadas me

foram claras e acessíveis.

– Tratei simplesmente de favorecer um verdadei-

ro acercamento espiritual entre nós – respondeu-lhe

ele, inclinando-se cortesmente.

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Instantes mais tarde, despediam-se.O dono da casa, após agradecer ao senhor De

Sándara sua participação naquele encontro, perguntou-lhe:– Teremos a honra de vê-lo outra vez?– Espero que não falte essa oportunidade – ele res-

pondeu, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão cordial-mente. E acrescentou: – O senhor Malherbe lhes dirá, casome seja possível estar novamente com os senhores.Também eu desejo que este acontecimento se repita, o queme permitirá renovar essa vinculação, tão simpática comohonrosa.

Eram aproximadamente duas horas da madrugadaquando Arribillaga voltou para casa, após deixar seusamigos.

Patrício, que ainda não se recolhera, cochilavanuma poltrona. Sobressaltou-se ao ouvir seus passos,manifestando que o aguardava para o caso de ele necessi-tar algo.

– Ah! Isso sim é que é ser diligente!... – o jovemexclamou, simulando não haver captado a argúcia.

Patrício permaneceu por um momento confusodiante dele. Reanimando-se, porém, ante a atitude bondo-sa de Cláudio, fixou nele sua nobre mirada, cruzando-seentre ambos uma simpática expressão de inteligência.

Em seguida, Cláudio começou a trocar de roupa e,enquanto isso fazia, foi relatando ao mordomo, pararecompensá-lo pela espera, algo do que ele desejava saber.

– Posso assegurar a você, Patrício, que volto muitosatisfeito. Ouvindo De Sándara, senti como se algo desper-tasse no fundo de minha consciência. Suas palavras rea-

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vivaram em mim as ânsias de conhecer o mundo de queele nos fala em seus livros, esse mundo que é tanto maisinacessível quanto mais pretendemos alcançá-lo por umcapricho de nossa veemência. Sabe que tive a impressãode ser ele mesmo um arauto desse orbe incorpóreo? E nemlhe digo de quão ajustados são seus conceitos e da profun-didade de seus pensamentos, porque já havia comentadoisso com você, após ter lido os escritos dele.

– Como me alegro que tenha sido assim!... – excla-mou o mordomo, cuja satisfação era evidente.

E acrescentou em seguida, com toda a discrição:– Quer que lhe sirva algo, menino?Cláudio só desejava descansar. Agradeceu ao cria-

do e se dispôs a dormir, prometendo contar-lhe algo maisno dia seguinte. Entretanto, demorou a conciliar o sono.Sem que o quisesse, seguiam-no as palavras que escutarapouco antes, reconhecendo o efeito das mesmas na sensa-ção nova que pulsava em seu interior, como se elas lhehouvessem infundido maior vida e levantado seu espírito.Conseguiu compará-las mentalmente com as águas deJuventa, que deixavam nas almas daqueles que nelas sesubmergiam a sensação vivificante que produzem osbanhos de luz. Tão logo declinou o fulgor de seus sentidosfísicos, sentiu-se transportado ao mundo mental, a esseespaço metafísico em cujas imediações se debatem deses-peradamente legiões de almas que em vão pugnam portranspor seus pórticos imensos, e no qual só goza de fran-quias inimagináveis o espírito que logra superar na terraas formas essenciais da vida.

Apesar de o espírito de Cláudio não se achar nascondições requeridas para realizar aquela inesperadaexcursão etérea, excepcionalmente pôde fazê-la, só que, aodespertar, conservava em sua retentiva apenas recorda-

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ções muito vagas. É o que acontece nos seres faltos de pre-paração consciente. A vigília, ao ativar novamente os sen-tidos, fecha o circuito da inteligência aberto pela ação doespírito, e a memória transcendente, a que atua no cursodo sonho, fica eclipsada, obscurecendo-se de tal modo apelícula mental que as imagens mal se distinguem, e issoquando não se apagam totalmente. Diferentemente, quan-do a alma cultiva durante a vigília as excelências de suanatureza superior, é inquestionável que os dispositivosmentais se agilizam nessas expansões anímicas, permitin-do a recordação de tais experiências.

Apesar disso, ao despertar, Cláudio intuiu que osenigmáticos sonhos que a modo de reminiscências apare-ciam desenhando-se em curtíssimos fragmentos nas ime-diações de sua consciência, tinham muito a ver com o quena noite anterior escutara do senhor De Sándara.

O homem não se detém para pensar quais secretosdesígnios imperam sobre sua mente enquanto dorme, eignora o que é que, sem intervenção de sua vontade, rea-liza prodígios com seu ser anímico, fazendo-o voar às vezescomo um pássaro, penetrar outras vezes através de murosinexpugnáveis, ou possuir de vez em quando o cetro dosreis ou a vara dos magos.

Poucos dias após aquela reunião, apresentou-senovamente a Cláudio a oportunidade de se encontrar como senhor De Sándara. Desta vez o convite lhe havia chega-do por meio de Malherbe, que os reuniria em sua casa.

Seu moderno apartamento abriu-se nessa noitepara oferecer aos intercâmbios o amável e tranqüilo recin-

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to que acolheria os participantes. Ali, em torno de DeSándara, em atitude atenta, achavam-se as mesmas pes-soas que o haviam rodeado dias antes, às quais se soma-ram Agustín e alguns amigos do dono da casa.

– Se me permite, senhor De Sándara – ouviu-seCláudio dizer, no calor da conversa, – desejo lhe formulara seguinte pergunta: – Na criação dos personagens de seusromances, o senhor tem algum propósito definido?

– O mesmo que você pode apreciar em minha con-cepção da vida, da pessoa humana e das coisas que con-sidero importantes para o exercício de nossas aptidõesmentais e morais. Em nenhum de meus livros deixei deressaltar esse propósito, fazendo-o transparecer em todaoportunidade que se me ofereceu.

– E como o senhor concebe e articula a trama deseus romances? – Arribillaga voltou a inquirir.

– O mundo que se espelha em meus romances é sóum fragmento de meu pequeno universo. Os movimentose a própria vida dos personagens que atuam neles adqui-rem, através da ficção, uma realidade efetiva, pois obede-cem à trama de um vasto e originalíssimo plano de reedu-cação superior do espírito humano. Constituído isto emobjetivo principal de minha vida, faço com que tudo con-corra para sua realização, inclusive os romances, osquais, como já disse, fazem parte do mencionado plano.

– Podemos então pensar que suas idéias têm ori-gem numa inspiração metafísica? – o senhor Gorostiagaperguntou.

– Realmente. Existe, meus amigos, um mundomaravilhoso, o mundo mental, ou seja, aquele onde vive eatua o pensamento criador e onde proliferam as grandesidéias da mente universal. Tenho desvendado nele mais deum enigma, desses que tanto preocupam a mente huma-

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na. E foi justamente contemplando esse mundo que pudepreparar os conhecimentos destinados a habilitar asalmas, não só para que contemplassem essa realidademetafísica, mas também para que a integrassem. Todos osmeus pensamentos, como se poderá ver em qualquer parteonde eles se manifestem, se vinculam instantaneamente àvida universal que palpita sem cessar nos seres. Seja den-tro de meus livros, seja no trato direto com as pessoas, elesperseguem sempre o mesmo fim. Assim, se algo me distin-gue de outros escritores, é precisamente isso.

“No pequeno mundo que – repito – se espelha emmeus romances, impera minha vontade, e as partículas deminha criação se sustentam com meu pensamento, exata-mente como ocorre em nosso mundo físico, onde imperavisível e invisível a vontade de Deus, e onde nossas mentesse sustentam de seu pensamento universal. Inspiro aospersonagens que povoam o mundo de minha ideação, plas-mado em minhas obras, uma confiança ilimitada nos arca-nos que alentam a vida dentro e fora da existência corpó-rea, infundindo-lhes a virtude de senti-la e vivê-la com ple-nitude de consciência e espírito. Desnecessário seria eu mereferir ao profundo carinho que sinto por todos os rebentosque minha mente fecundou e fez nascer nele, nos quaisinfundi minhas idéias e meus pensamentos.

“Eles são a representação exata do que realizonaqueles que guio com meu saber, donde resulta a espe-cial significação que têm. Assim é como se torna para mimum verdadeiro prazer atenuar as faltas em que incorre umou outro de meus personagens e, com maior razão, esti-mular suas ações nobres. E se em algumas ocasiões devorepreender algum deles, cujo comportamento não tenhasido bom, sofro com ele, pensando nas causas que o indu-ziram a isso. Revejo então seu processo em minha cons-

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ciência e constato que a sanção era, não obstante, neces-sária, que uma razão superior justificava minha atitude. Aele, então, dedico particularmente minha atenção, seguin-do-o através de seus passos inseguros. E quando consigoconduzi-lo de novo pelo bom caminho, experimento umaalegria sem igual, uma ventura indescritível, que meenternece e me faz amá-lo cada dia mais. Quantas vezespenso se não é isto mesmo o que Deus faz conosco...”

– Quer dizer – disse então o pai de Marcos – que o senhorplasma na vida de seus personagens um processo de educaçãopsicológica similar ao que descreve em suas proposições...

– É assim, efetivamente. Tais personagens, além deconstituírem a representação psicofísica e espiritual dohomem, mantêm vivo o pensamento de uma evolução superior.

– O curioso – Salvador manifestou – é que muitosdos seres que animaram o mundo do romance chegaram aparecer tão reais como os corpóreos. A quantos deles nãotemos visto se fazerem tão conhecidos, tão populares, comomuitos luminares de nossa existência terrena... Há casosem que até parece não existir diferença entre esses famosospersonagens e os outros, os que já se foram deste mundo...

– Francamente – De Sándara expressou, acompa-nhando suas palavras com expressão jocosa, – eu preferi-ria ser um deles a viver em obscuro anonimato.

Adicionou em seguida, dirigindo-se a Salvador:– Sabe por que acontece isso que você acaba de

mencionar? É porque no mundo mental os seres queforam de carne e osso se confundem com os de essênciapuramente espiritual. Uns e outros continuam vivendonesse mundo, no qual nossa memória os busca e se encar-rega de fazê-los presentes para nós.

O professor Moudet, cujos olhos vivazes não seapartavam do senhor De Sándara, disse em continuação,ansioso por novas explicações:

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– Considerando que todos os seus pensamentostendem a um só fim, é lógico que as criaturas que o senhorfaz viver em seus livros tenham a propriedade de exerceruma saudável influência sobre os leitores. Pois bem, euqueria saber se elas mostram as alternativas que os sereshumanos devem seguir, em sua evolução gradual para oaprimoramento do saber, nos trechos superiores da vidado espírito.

– Naturalmente. Através de tais alternativas ou epi-sódios, elas mostram as possíveis fases que haverão de seapresentar ao homem que se dispõe a evoluir consciente-mente. Ao modelar os traços, as características, peculiari-dades e qualidades das mesmas, reafirmo em mim o poderconceptual das projeções mentais com que animo a vidade cada uma dessas criaturas, e é assim que, enquantolhes insuflo um alento semelhante ao que sustenta a vidahumana, configuro arquétipos acessíveis às possibilidadesde todo homem ou mulher, mesmo em suas aspiraçõesmais elevadas e exigentes. Refiro-me, por certo, aos casosem que dou maior hierarquia aos personagens, o que façosem nunca levá-los a alturas impossíveis.

“Enquanto escrevo”, continuou, “sigo a uns e aoutros através de suas vidas: umas, cheias de abnegaçãoe sacrifício; outras, sedentas de ambições; aquelas reali-zando proezas; estas, com intenções sempre avessas. Asuspicácia, mesclada às vezes com a ironia e o desprezoem fortes e irrefreáveis reações psicológicas, ou a expres-são cáustica dos malvados, que estilizam o riso enquantomastigam a goma amarga da desdita, oferecem uma con-traluz muito útil para destacar a inegável realidade dosvalores do espírito, que o homem pode alcançar em suatrajetória pela terra. O contraste entre o bem e o mal, queabre perspectivas tão imensas para o artista que se propõe

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traçar seus rasgos, me permite utilizar esse recurso pararobustecer a vontade na luta que cada ser deve travarpara vencer o pérfido sabotador da felicidade humana. Aopessimismo, à rebelião e à incúria – tristes quadros querefletem os estados pelos quais o homem passa – eu opo-nho meu otimismo, meu entusiasmo e meu empenho,nutridos em minha própria consciência, para neutralizar,nos que giram em torno deles, os efeitos perniciosos deseus decepcionantes estados morais e psicológicos.

“Sempre animado pelo mesmo propósito, descrevocomo se praticam as grandes virtudes, as quais – como apaciência, a prudência, a tolerância – tanto são mencionadas etão poucas vezes praticadas com consciência. Levado pelomesmo incentivo, ensino como é possível amar com esse amorsublimado e embelezado pela pureza do sentir, que se substan-cia na abnegação. Quão diferente é ele do amor passional,egoísta e raramente sincero, que a tudo oprime, perverte e ani-quila, pois o sentimento não conta quando o instinto governa.

“Compreender-se-á que os personagens de meuslivros não terminam no romance mesmo. Como autor, procu-ro fazer com que a vida deles, aperfeiçoada, se encarnenaqueles que lêem minhas páginas com intenção de saber eanelos de avançar pela rota que deixo traçada. Os pensamen-tos, palavras e ações de minhas criaturas encerram ensina-mentos e exemplos de fácil recordação. Não cumpririam seuverdadeiro objetivo se, ao longo de sua atuação, não se deli-neasse nelas, com clareza, a imagem de um processo queestimula e alenta a vida humana, mostrando como esse pro-cesso pode ser consumado na realidade para enobrecimentoda mesma. Isso, e não outra coisa, me levou a forjar estrutu-ras e traços psicológicos modelares, a serviço daqueles queanelam escapar do suplício de Tântalo, suplício a que sãosubmetidas quase todas as criaturas humanas desde suamocidade, devido à falta de uma sadia e eficaz preparação

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mental e psicológica para enfrentar a vida. Como não termi-nar nessa tortura, se as paixões, os vícios, a vida leviana e alibertinagem, mais do que acalmar, levam ao extremo a sedede quem os desfruta? Perdendo-se a medida, que é que restado deleite que deslumbrou os sentidos? Tão-somente ummórbido esgotamento, um fastio – e, após breve pausa, outravez a dança da libélula em torno da chama que haverá dequeimar suas frágeis asas... Ao escrever sobre essas coisas,meus amigos, nós nos sentimos tentados a acometer aempresa de unir o céu com a terra, o espírito com a matéria,e a matar de uma estocada o dragão das trevas, essa aladapersonificação do mal que governa o instinto indômito dohomem.”

– Como me agradaria possuir o domínio que osenhor tem da pena, para poder fazer algo assim! –Cláudio disse, cedendo ao impulso entusiástico de seucoração.

– Não se trata de nada impossível – De Sándara res-pondeu-lhe, risonhamente. – Necessita-se, em primeirolugar, conhecer a fundo o mundo mental e seus segredos.Conseguido isso, é necessário possuir... como poderiadizer-lhe?... é necessário certo excesso de vida, parainfundi-la nos demais.

Cláudio riu, ao sentir tão prontamente contida suaveemência, e respondeu com graça:

– Isso significa que ainda vai correr muita águadebaixo da ponte antes de me lançar a semelhante reali-zação.

– Vai lhe custar um pouco, naturalmente. No come-ço, tudo é difícil... – De Sándara lhe respondeu, assentin-do; mas em seguida o surpreendeu com esta pergunta, naqual pôs um quê de ironia: – E por que você não pensaque, por enquanto, poderia ser mais simples e mais cômo-do dedicar seu tempo à leitura?

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Sem captar, provavelmente, o sentido de tais pala-vras, Marcos insinuou:

– Mas o prazer estético, a emoção, o sabor da forçacriadora, as sensações que surgem das felizes combina-ções da linguagem, não se experimentam da mesma formatanto lendo quanto escrevendo.

– Tudo indica – disse De Sándara, encarando comsimpatia os dois jovens – que em ambos existe uma pre-disposição ao cultivo das letras. É essa uma aspiraçãomuito louvável, por certo. Entretanto, devo advertir-lhesque a eficiência em seu cultivo depende inteiramente docultivo do espírito, por ser ele, justamente, quem dá atônica feliz às produções do talento. Com isso, quero dizerque não basta obedecer a um desejo; é melhor, muitíssimomelhor, que nos capacitemos no exercício das potênciascriadoras do espírito, para assim podermos alcançar ameta definida por nossos anelos.

Transcorridos uns instantes, Salvador interveio:– Me perdoe, senhor De Sándara, mas eu gostaria

de ver esclarecido um ponto. Segundo o que vem expres-sando, é como se as obras de ficção, mesmo as criadas porautores célebres, carecessem de valor ou não estivessemsubstanciadas por um sentido verdadeiramente elevado.

– Eu lhe asseguro que não quis exprimir tal coisa –De Sándara apressou-se em emendar. – Como haveria denegar a valiosa contribuição daqueles autores cuja produ-ção alcançou influência preponderante nas letras? É cres-cido o número dos que souberam traçar, com genial maes-tria, rasgos, modalidades, virtudes ou paixões de seus per-sonagens; dos que descreveram com tal fidelidade o meio,os tipos, os costumes, os acontecimentos que circundama vida de seus personagens, que seus relatos costumamconstituir às vezes verdadeiros documentos históricos.

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Aprovo, com toda a justiça, que isso lhes tenha valido aauréola da glória. A meu juízo, somente uma objeção cabe-ria a suas talentosas concepções, encerradas nas maisbelas e acabadas formas literárias, e é que, podendo seusautores comover a tantas almas, não conseguiram – eis aío curioso! – ensinar um caminho que arrebatasse o espíri-to e oferecesse ao homem a ansiada perspectiva de umdestino melhor. Admiro a fecundidade imaginativa de inte-ligências tão elevadas, seu nervo, sua inventividade, seupoder descritivo, seu domínio do estilo; mas as grandesobras também devem ser avaliadas por sua contribuição àelevação espiritual da evolução humana.

Miguel Ángel, que não havia intervindo até então,perguntou por sua vez:

– Poderia nos dizer, senhor De Sándara, em queépoca o senhor escreveu seu primeiro romance?

– Não poderia dizer com precisão... Eu vivo tãointensamente a vida, que os anos têm para mim a dimen-são dos séculos. Era eu, isso sim, muito jovem. Além domais, meu primeiro romance teve um só e único leitor: eumesmo... Ainda caberia acrescentar que o conteúdo demeus romances se perde nos confins das idades ou,melhor dizendo, se confunde com o tempo propriamentedito, de sorte que, ao lê-los, renasce tudo o que há nelescom o frescor de uma manhã de primavera ao raiar daaurora... Quero dizer com isso que minhas idéias não sãopara uma época, senão que abarcam todas as idades, porpalpitarem nelas as energias de um sentir permanente erenovado, de um sentir que é um verdadeiro grito de fé ede amor em relação à vida em sua maravilhosa funçãoexistencial.

O senhor De Sándara guardou silêncio. Em sua ati-tude tranqüila, em seu olhar profundo e sereno, era difícildistinguir se havia plácida tristeza ou recôndita felicidade.

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Enquanto o pensamento dos que escutavam estavaainda pendente de suas últimas palavras, Miguel Ángel,empenhado em reunir – quiçá sem um objetivo definido –alguns dados, perguntou a De Sándara se, quando eleescreveu seus primeiros romances, havia lido “in extenso”outros autores.

– Sem dúvida – respondeu ele, sorridente, parecen-do submeter-se com agrado ao interrogatório. – Mas sem-pre tive bastante cuidado de não mesclar as idéias alheiascom as minhas. Isso nunca me foi difícil, porque meuspensamentos se substanciam em meu próprio ser, isto é,nascem em mim e se nutrem em minha própria vida men-tal. Em cada um de meus livros, vivi toda uma vida, inten-sa, cheia de emoções, de amor, de felicidade, como tam-bém experimentei a dor que se esconde na desdita, nosacrifício ou na injustiça. Pude ver a mim mesmo em todasas idades e circunstâncias, ao enfocar as múltiplas situa-ções felizes ou adversas que matizam o fundo das tramasmorais dos seres humanos, em suas complexidades psico-lógicas mais sutis e agudas.

“Assim, pois”, adicionou, após breve pausa, “impul-sionado pelo anelo de sentir dentro de mim as palpitaçõessensíveis de cada vida, para extrair delas a nota instrutiva,certa vez me transformei em mendigo. Transportando aimagem para meu mundo mental, tomei por morada umachoça, que partilhei com outros indigentes. Saía diariamen-te a perambular pelas ruas, pedindo uma esmola de casaem casa. Meus companheiros, que eram muitos, passavama vida maldizendo os ricos, sem fazer absolutamente nadapara aliviar sua situação. Todo centavo que recolhiam, eleso gastavam com seus vícios, principalmente a bebida. Eramsadios, fortes, podiam trabalhar e ganhar honestamente osustento, mas preferiam a mendicância e a ociosidade.

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“Essa monotonia deprimente e miserável me cansa-va, me sublevava dia após dia, até que decidi mudar talmodo de viver. Comecei a trabalhar, sem pretensões, comoauxiliar de oficial numa fábrica. No começo, tudo me pare-cia pesado: a tarefa, o horário, as ordens, a disciplina. Nãoobstante, pus empenho, acostumei-me a isso e, progredin-do, cheguei a mestre. Um dia me casei, e de meu matrimô-nio nasceram filhos, que eduquei com esmero.

“Com o correr do tempo, encontrei por acaso um demeus antigos camaradas. Seu aspecto era o mesmo deantes, apesar de mais envelhecido. Ele me olhou e não mereconheceu. Eu havia mudado muito. Me pediu umaesmola; quando lhe estendi uma nota, se mostrou surpre-so, e seus olhos lacrimejantes, avermelhados pelo álcool,me contemplaram com mostras de gratidão. Trêmulo,maltrapilho, arruinado pelo vício e pelas privações, escon-deu o dinheiro entre seus andrajos e prosseguiu a cami-nhada. Se eu não tivesse modificado minha vida, conti-nuaria sendo exatamente igual a ele. Só de pensar nissome estremeci de espanto.

“A vida estéril e miserável do homem a quem euacabava de socorrer me levou a meditar e, com isso, a con-firmar que, debaixo daqueles imundos farrapos físicos emorais, se ocultava um egoísmo irritante.”

– Egoísmo?... – Marcos inquiriu. – Exatamente; egoísmo. E lhe direi por quê. Ao

penetrar na alma do mendigo, fiz com que ele buscasse notrabalho sua regeneração. Já não dilapidava mesquinha-mente seus ganhos satisfazendo seus vícios. Muito ao con-trário, formou um lar, e foi sua família que desfrutou suaseconomias, o que muito me agradou, pois serviram para aeducação de seus filhos, nos quais fiz que ele inculcassesentimentos generosos. Ajudou também a outros, amigos

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e achegados; resumindo, transformou-se num ser útil àsociedade. Tudo isso era, repito, de meu agrado e me faziapensar no que pode um homem quando resolve deixar deser mendigo...

De Sándara permaneceu pensativo por alguns ins-tantes e, como se ao esquadrinhar o fundo de sua cons-ciência encontrasse ali uma prenda querida, manifestouem seguida que relataria um novo episódio.

– Noutra ocasião, penetrei na vida de um joveminválido, a quem um acidente havia deixado sem braços.Vivi com ele as angústias que de contínuo o oprimiam;sofri a seu lado a crueldade de seus momentos de profun-da desolação. Olhando os seres privilegiados, os quetinham braços, sentia rebelar-se dentro dele sua juventu-de mutilada, com ânsias incontidas de ser como eles. Erapara ele impossível compreender por que, sem culpa algu-ma, fora privado de tão inestimável bem. Pude apreciar,então, o mau uso que geralmente fazemos de prendas tãopreciosas, assim como de todas as demais que nos foramconcedidas por Deus. Ao ver-me naquele jovem sem mãos,pensei no amor com que as cuidaria se as tivesse, e emtudo o que poderia fazer com elas. Enternecido, recordavaos que as usavam para servir à humanidade, enobrecen-do-a ou defendendo-a do mal. Via o cirurgião operandopara salvar uma vida; o engenheiro traçando projetos deedifícios, de fábricas, de estradas, de pontes e mil outrasobras que contribuem para o progresso humano; o pintorestampando na tela imagens que perdurariam através dostempos; o escultor perpetuando no bronze ou no mármo-re obras imponderáveis; o músico arrancando do instru-mento harmonias sublimes. Via o agricultor semeando oscampos ou fazendo as colheitas, que encheriam os porõesdos navios em sinal de abundância. Oh, mãos!, órgãos

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divinos! Que é o que o homem não pode fazer com elas? E olhando as minhas, ao escrever tudo isto, agradecia aDeus uma e mil vezes a bênção de tê-las.

“Quando meu inválido sentia que outras mãos desli-zavam em suave carícia por seus cabelos, percebia, comrecôndito sentido, já a santa ternura que fluía do coração desua mãe, já a pena lacerante que cortava o de seu pai; oraa piedade de seus irmãos, ora a compaixão de parentes, oua de amigos. Mas, desditado dele!, nunca lhe fora dadoexperimentar a sensação inconfundível de uma carícia deamor. Mão feminina alguma lhe havia feito sentir essa feli-cidade, e a certeza de que nunca, de que jamais poderiaexperimentar esse momento sublime, fazia recrudescer hor-rivelmente seu íntimo calvário. Encantadoras jovens se reu-niam com freqüência em sua casa, buscando a companhiade suas irmãs; mas isso redundava em tristeza para o infe-liz aleijado, a quem os membros mutilados negavam o pra-zer de roçar, com as mãos, em cabelos e rostos como aque-les. Quem poderia pôr os olhos nele, de cujos ombros pen-diam, como angustiosos pesadelos, suas duas mangasvazias? Se nem sequer era capaz de bastar-se a si mesmo!Não se podia negar que era horrível seu martírio. E pensarque há homens que utilizam suas mãos para o crime!

“Um dia, a dor de meu pobre inválido se tornou tãoinsuportável, seu desespero tão comovedor, que não pudemais resistir e, com um golpe de minha pluma, transfor-mei sua vida em sonho. Ao despertar, chorava como ummenino. Contemplava suas mãos com encantamento e asapertava contra o coração. ‘Minhas mãos!’, exclamava ele.‘Mãos queridas!... Que Deus me conceda a ventura de usá-las sempre com honradez e inteligência!...”

– Enquanto o senhor punha em relevo os sofrimen-tos morais que atormentam um aleijado – Cláudio mani-

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festou, – não deixei de observar a similaridade que existeentre este e o aleijado mental. Parece-me que uma seme-lhança perfeita une os dois. É claro que caberia uma res-salva com relação ao último, e é que ele deve sua invalidezao fato de não saber – ou não querer – usar as mãos desua inteligência ou, melhor ainda, de seu entendimento,com as quais tantas coisas poderia fazer em seu benefícioe no dos semelhantes.

– Parabéns, amigo Arribillaga; você acaba de usaras suas com habilidade e acerto.

Seguindo-se a Cláudio no uso da palavra, e atendo-se a outro tipo de preocupações, Norberto, expressou:

– Faz falta para nós uma grande memória, que pos-sibilitasse guardar com fidelidade os conceitos que osenhor nos está dando a conhecer.

– Isso não é o que importa; as palavras que escuta-mos são como as pessoas com quem tratamos pela primei-ra vez: se elas nos são gratas, nós as recordamos e até cul-tivamos sua amizade; do contrário, logo as lançamos noesquecimento.

– Sua resposta é muito alentadora, já que posso meconsiderar entre os primeiros... – Norberto completou.

Chegando a reunião a esse ponto, De Sándaraexpressou que talvez estivesse se excedendo na extensão desua fala, dada a hora avançada, mas o senhor Malherbeprotestou amavelmente, rogando-lhe que se valesse de todaa liberdade que lhe fosse mister. Sua manifesta sinceridade,ao dizer que se fazia eco da expectativa de seus amigos alipresentes ao lhe pedir que continuasse, moveu De Sándaraa narrar a história de outro de seus personagens:

– Querendo conhecer a fundo a vida de um famosomistificador – começou dizendo, – eu o incorporei ao elen-co dos que fazem sua representação em meu cenário men-

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tal, a fim de observá-lo através de suas correrias. Soube,assim, da vida audaciosa e agitada que todos esses senho-res do engano e da ambição levam. Seu objetivo na vida éaproveitar-se, sem consideração alguma, da boa-fé dosdemais; no fundo, só ambicionam poder, riquezas e reno-me. Não desprezam meios, por mais vis que sejam, para aconquista de seus fins, e fazem vítimas de suas patranhasa amigos, parentes e todos os que se puserem ao alcancede sua astúcia. Em seu sangue levam o gérmen do desvioe da perversão, pois nada fica neles sem se desnaturalizar,desde a palavra, que empregam com refinada falsidade,até o que tocam ou fazem. Em sua mente só têm lugar ospensamentos que alentam seus propósitos ignóbeis, ouque fomentam os desígnios de sua baixa moral, e, paraencobrir suas intenções avessas, exercem a dissimulaçãoou atribuem aos demais, com astúcia diabólica, as malda-des que dizem, pensam ou levam a cabo. A impostura é,queira-se ou não, o fim primordial que caracteriza seusatos. Tão logo me certifiquei de que não se podia pôrnaquele homem a mais remota esperança de regeneração,fugi dele, repugnado e entristecido. Havia conhecido pordentro uma classe de tipo psicológico que constitui umverdadeiro escárnio para a humanidade.

De Sándara tomou a bebida que acabavam de ser-vir-lhe e, em seguida, dispôs-se a continuar.

– Livre já daquele energúmeno, corri ao mar paramergulhar com vontade em suas águas límpidas e respi-rar a plenos pulmões o ar puro da naturalidade. Dali pas-sei a encarnar num rei. Pude, assim, ver de perto sua vidafaustosa. Era ele autoritário e sensual, apegado à magni-ficência e aos prazeres. Observei como os conselheirosmanejavam meu presunçoso monarca, fazendo com queele cresse em tudo o que convinha aos interesses pessoais

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deles, a fim de o manterem alheio ao que acontecia no exte-rior do país, e mesmo dentro dele. Divorciado do povo, quesentia os rigores da escassez, aquele rei fazia estampar suafirma e os selos reais em todo decreto que lhe apresenta-vam para espoliar os súditos, principalmente os que de sola sol cultivavam os campos e incrementavam com seusesforços as indústrias, para riqueza de seus amos.

“Vi os cortesãos se aproximarem dele com gestosestudados e palavras de adulação. Sem escrúpulos deconsciência, eles se mantinham submissos em troca deprebendas. Com que clareza se evidenciava a misériamoral desses palacianos, os quais, se por um lado seentregavam ao mais artificioso e desprezível servilismoperante o rei, por outro, já sem a máscara das circunstân-cias, demonstravam todo o seu despotismo e impiedade aooprimirem o povo, atrelado à carruagem do tirano.

“Despreocupado e sentimentalista, o monarca apre-goava por todos os âmbitos de suas terras os favores que,a modo de esmola, ele dispensava a uns poucos; e,enquanto dava a entender que sua prodigalidade abarcavatodo o país, fechava com desdém seus olhos e ouvidos àmiséria, ao descontentamento e à dor que nele reinavam.

“Tampouco ali encontrei nada de construtivo, nemme ocorreu pensar que se pudesse endireitar o rumodaquelas vidas soberbas, distorcidas por costumes mile-nares, que se foram degenerando com a evidente decadên-cia de um sangue que distava muito de ser azul, como ode legítimo cunho que deu brilho e esplendor a reinados edinastias memoráveis.

“Na estampa psicológica desse rei, identifico atodos aqueles governantes de velha e recente data que,uma vez no poder, se tornam tiranos impiedosos, com adiferença de que estes tiveram de passar primeiro pela

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etapa servil. Neles impera sua vontade onímoda, mesmoquando fazem o povo crer que agem de acordo com o sen-tir da maioria. Mas quão fácil é descobrir ali – onde aostentação de robustez satisfaz com excessos a fátuaembriaguez da onipotência – o odor característico das coi-sas em plena decomposição. Lição dos séculos, que ospovos e cada homem em particular não têm sabido apren-der, para impedir com sua inteligência e sua decisão quesurjam e se entronizem esses entes diabólicos, carentes detodo resto de sensibilidade humana.”

Mal se deteve, De Sándara passou logo a relatar umnovo episódio:

– Também me introduzi na vida de vários operários.Queria viver com eles suas necessidades e penúrias, obser-vando ao mesmo tempo suas idéias, anelos e inquietudes.Encontrei ali um dos complexos mais intrincados da mara-nha psicológica humana. O operário de nossos dias já nãoé aquele que, tempos atrás, mostrava as angústias danecessidade, agravada pelo rigor patronal e por uma escas-sa remuneração. Hoje, embora as causas sejam em apa-rência as mesmas, o problema se reveste de outros matizese contornos. O operariado se transformou numa massa deressentidos sociais. Antes, o trabalhador esforçado abriacaminho para si, e por este caminho marchavam seusfilhos, muitos deles para posições respeitáveis. Agora, paise filhos só buscam a vida fácil, o mínimo de trabalho e omáximo de retribuição. O operário apto, o operário capaz,se vê assim preterido, e seu lugar é ocupado por quem,longe de fazer prosperar a indústria ou o comércio paraparticipar de seus benefícios, pretende aumentos com exi-gências cada vez mais inatendíveis. Suas demandas giramdentro de um círculo fatal, sem que nenhum deles – esomam milhões – perceba que tais demandas, por justas

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que sejam, jamais conseguirão satisfazê-los, se antes nãovencerem o mais terrível de seus inimigos, a inflação, quevai anulando tenaz e implacavelmente todos os benefíciosalcançados com suas conquistas. O lamentável é que,nesse aperta-e-afrouxa em que se acham empenhados,todo o mundo se prejudica, sendo eles os que, no final dascontas, ficam com a pior parte.

“Na realidade, o que mais complica e realimenta oproblema trabalhista é que os homens de governo e ospartidos políticos, ao invés de buscarem a fórmula-solu-ção que contemple o fato em sua raiz, fomentam a perma-nência desse grande conflito entre o capital e o trabalho, afim de manterem por essa via apoios eleitorais, ou obriga-rem que se recorra sempre a eles para atenuar a agudezado problema, toda vez que ele recrudesce.

“É evidente que há duas classes de operários,ambas perfeitamente definidas: a dos bons, que fazem deseu trabalho um culto e prosperam por seu próprio esfor-ço, e a dos maus, que, assumindo a postura de ressenti-dos sociais, usurpam intencionalmente o lugar dos pri-meiros. Integram o número destes últimos os de idéiasdissolventes, cujas mentes são verdadeiras forjas em quese moldam, em vermelho, os pensamentos mais audazes eperturbadores da tranqüilidade pública. Talvez um dia sechegue a contemplar com a devida amplitude esse proble-ma social, que assume projeções universais, dando a unsmelhores oportunidades de adiantamento e fomentandoem outros a consciência do dever, que, ao conter o frenesidos equívocos, nutrirá em seus peitos propósitos sadios enobres de melhoramento e progresso.

“Com pesar, temos visto como se vêm sucedendo,desde antigamente, mais ou menos as mesmas situações.Os governos e os regimes passam, e os problemas ficam.

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Pensou-se em encontrar sua solução nas guerras. Graveerro! Após os conflitos armados, sobrevém o estupor pro-vocado pelo incompreensível espetáculo do martírio inútile da desolação sem medida. Eis aí uma realidade à qualcom freqüência se voltam as costas. Ontem os que nosprecederam, e hoje nós, lançamos sobre os ombros dasgerações que nos sucederão o peso de todas as questõesque não fomos capazes de resolver com inteligência e deci-são. Acima de tudo, não nos enganemos, pensando que osproblemas do homem serão resolvidos à custa de sualiberdade. Poderá calar-se a voz da inteligência, poderácalar-se a rebelião do espírito, porém jamais se poderácalar a reação da natureza humana, que em última ins-tância reclama, com força incontível, o império de normasdignas para o homem em suas mais caras e legítimas aspi-rações de evolução.

“Recordo que um dos operários de meu mundo eraum decalque perfeito dos que trabalham em oficinas efábricas. Com freqüência, ouvia-se ele injuriando os ricos,atribuindo-lhes a culpa de todos os infortúnios que osnecessitados padecem. Perguntaram-lhe um dia sobre oque faria se fosse contemplado pela sorte, e ele não vaci-lou um instante em afirmar que socorreria os pobres.Pouco depois, ganhava um grande prêmio da loteria.‘Muito bem’, eu disse para mim mesmo, ‘eis que já o temosrico; vejamos o que vai fazer agora.’

“Os parentes, amigos e vizinhos deste homem sedesfizeram em atenções a partir de então e, cada um porseu turno, foram infiltrando em sua mente idéias de gran-deza. Enquanto isso, o pobre homem lutava com seuspensamentos de antes, aqueles que mais de uma vez ohaviam feito proclamar idéias humanitárias. Agora,porém, não se tratava mais de despojar a outros, senão de

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despojar a si mesmo daquilo que antes havia sido motivode seus ataques inflamados. Então optou por justificar,ante sua própria consciência, a retenção de sua fortuna, epara tanto se apoiou no propósito de aumentá-la, assegu-rando que assim poderia ajudar com maior eficácia. O pro-pósito não era em verdade mau, se bem que não estava deacordo com suas idéias anteriores, que proclamavam adistribuição de seus bens.

“Decidido a pôr em prática a determinação de fazerseus recursos crescerem, pensou e pensou, até que por fim,depois de dar mil voltas ao assunto, ocorreu-lhe associar-se aoutros na exploração de alguma indústria. Naquela oportuni-dade, foi até ele um especialista em tecidos, e o assunto pro-grediu. Animado pelas perspectivas, que realmente eram bri-lhantes, adquiriu em seguida uma casa luxuosa e confortável,que ocupou com sua família. Esta, que até então não haviadesfrutado tanta fartura, começou a fazer grandes gastos e aviver com certa pompa. Ele mesmo foi mudando gradualmen-te seu aspecto rude e seu caráter irascível por uma aparênciamais de acordo com sua nova posição. Chegou a se vestir comrefinamento e, como nada lhe faltava, até se tornou afável.

“O primeiro balanço da indústria fabril explorada pelasociedade mostrou um lucro considerável, e numa situaçãoassim tão boa ele começou a fazer projetos de viagens a luga-res distantes, de veraneios custosos, muito disso com o obje-tivo de que sua filha, então adolescente, aprendesse a convi-ver com outro tipo de gente e tentasse a sorte do matrimônioem melhores ambientes. Mas, de tempos em tempos, acu-diam ainda à memória do ex-operário aqueles pensamentos,cujas exigências ele ia pospondo às suas ambições. ‘Vamos,reparta seus ganhos’, sugeriam-lhe eles. ‘Ajude os menosfavorecidos. Chame seus parentes, seus amigos pobres, seusoperários, e ajude-os, agora que você tem muito... Não é opor-tuno? Eles devem trabalhar como você trabalhava?... Oh!

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Onde estão suas convicções? Onde está seu idealismo?’ Masele respondia sem maiores preocupações a esse clamor inter-no, dizendo para si mesmo: ‘Ora, mas que tolice!... Agora eutenho é que gozar a vida, que isso é o que mais falta me faz.Além do mais, devo pensar no futuro de meus filhos. Eu aju-darei os outros quando a riqueza transbordar minhas arcas.’

“Mas também havia outro operário que acalentava asmesmas idéias, e sem perda de tempo me introduzi em suavida. Certa vez, ele recebeu a herança de um parente rico e,fiel às suas convicções, como bom basco que era, repartiu-aentre seus parentes pobres, amigos e companheiros de traba-lho, ficando ele com uma parte igual à de todos. Com exceçãode alguns, que fizeram daquele dinheiro grande esbanjamen-to, vários de seus favorecidos aproveitaram aquele ganho pro-videncial para melhorarem sua situação, colocando-o emnegócios lucrativos.

“O benfeitor se sentia, entrementes, lisonjeado pelasaprovações que todo o mundo lhe dirigia. Quanto aos resul-tados de sua generosidade, porém, logo constatou que nãoeram os calculados em seus devaneios. Os ajudados começa-ram a se encher de importância; uns se mudaram do povoa-do, para que não fossem vistas suas novas apetências;outros, considerando seu benfeitor falto de luzes, passaram atratá-lo com certo arzinho de superioridade e algo de zomba-ria; e não faltaram tampouco aqueles que negaram haverrecebido dele qualquer ajuda. O bom basco sofria em silêncioa ingratidão desses seres a quem socorrera, e lamentou milvezes a hora em que lhe havia vindo à mente a idéia de favo-recer aqueles trânsfugas, aos quais qualificou, entre insultose maldições, de parasitos imundos.”

O senhor Gorostiaga, interpretando que De Sándaradava por terminado ali seu relato, manifestou:

– Na verdade, diante desses e de outros episódios queacontecem com alguma freqüência na vida dos humildes, é

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de surpreender que ainda não se tenha encontrado algumafórmula razoável e justa, capaz de solucionar o problema queaflige essa classe social.

– Não penso que sobre esse particular se possaensaiar algo com êxito – respondeu-lhe ele, – se não se pro-cura equiparar a conquista de um melhor tratamento e deum melhor salário com a produtividade, exigindo-se que otrabalhador empregue bem suas aptidões. A verdadeirajustiça consistiria em compensar sem demoras os méritosde cada operário, auspiciando-lhe um melhoramento cons-tante de suas condições de vida. Do contrário, a economiageral de uma nação ficará cada vez mais prejudicada, por-que, ao invés de se nivelarem os esforços para aumentar aprodução, que afinal de contas é a arca de onde sai o gran-de salário, se produzirá o desequilíbrio na dinâmica daengrenagem financeira da mesma, relaxando-se os meca-nismos vitais de sua estrutura econômica.

– Isso é muito compreensível, e, como o senhormesmo disse, o operário é o que tem de sofrer depois commaior intensidade as conseqüências – expressouGorostiaga, a quem o tema atraía particularmente, emrazão de suas próprias atividades; – primeiro, pelo aumen-to sem freio do custo de vida, e segundo, pela escassez,pelo desemprego e pela miséria.

– Diante de uma situação como essa – opinouJusto, – que se mantém com persistência e que vai conti-nuar se repetindo ninguém sabe até quando no curso dahistória, a gente se pergunta: que outras realidades maisfortes do que as conhecidas terão finalmente que intervirpara convencer o homem de seu erro?

Compreendendo que as palavras anteriores não exigiamrigorosamente uma resposta, Gorostiaga perguntou por sua vez:

– E qual seria, a seu juízo, senhor De Sándara, omelhor caminho a seguir na questão trabalhista?

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– Como não sou estadista – respondeu ele, sorrin-do, – não posso adiantar um juízo sobre assunto tão esca-broso. Eu me limitei simplesmente a fazer um esboço, ouuma proposição, dessa questão tão debatida e ensaiadaem todos os países do mundo. Compete resolvê-la, portan-to, aos homens que manipulam as engrenagens do gover-no. Oxalá exista entre eles quem, compreendendo a fundoum problema tão complexo, encontre o método eficaz queleve o operário à consciência cabal de seus deveres paracom a sociedade e o conduza pelo vasto campo das possi-bilidades humanas, com um aproveitamento útil e dura-douro de seus recursos, convertendo-o em dono, comooutros o são, de seu próprio destino.

Sem se deter, De Sándara voltou a tomar a palavra:– Agora, se me permitem, vou acrescentar algo

mais, com o que completarei minhas narrações destanoite. Os senhores me compreenderão, não tenho dúvidadisso, se eu disser que também interessou a meus propó-sitos internar-me na vida dos homens de fortuna, e comoo Ayacúa, esse diminuto diabinho da mitologia indígena,fui até ali me esconder num rincão de suas mentes, paraexaminar melhor seus pensamentos. Encontrei, então,entre os nascidos em berço de ouro, cujas riquezas provi-nham da herança, aqueles que, fazendo do serviço aosemelhante um culto, se aproximavam dos de classe infe-rior, sem fazê-los sentir a condição que os diferençava. Etambém encontrei aqueles a quem preocupava a soluçãodos problemas econômicos que assolam os carentes derecursos. Entretanto, a proporção destes, dentro do gruposocial de que formavam parte, era tão pequena, tão redu-zida em relação aos de coração e entendimento fechados,que quase podiam ser considerados como uma exceção.

“Criados e educados nos costumes da vida aristo-crática, eu os via apresentar-se ao mundo empunhando,

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com alarde de senhores, o cetro patriarcal da opulência.Viajei com eles por todas as partes, escarafunchei suascarteiras sempre recheadas, mas não achei em suas men-tes pensamento algum de solidariedade humana.Menosprezavam os pobres, embora se mostrassem com-padecidos com suas desventuras, sobretudo as madames,que, por fundarem sociedades de beneficência, asilos ematernidades, acreditavam cumprir folgadamente com osdeveres que a caridade impõe.

“Descendo na hierarquia, encontrei aqueles quehaviam acumulado sua fortuna favorecidos pela sorte oupela via dos negócios. Inspecionei a mente e auscultei ocoração de muitos deles, achando tão-somente, comonaquele mendigo, um egoísmo atroz. Quantas vezes cons-tatei que seus gestos generosos eram precedidos por lutasinteriores, nas quais aparecia, com eloqüência assombro-sa, a resistência do avaro ao impulso humanitário; e nãofaltou, naturalmente, aquele que destruía sigilosamentecom suas mãos o cheque altruísta que, pouco antes, haviaassinado com seu coração. Pobre humanidade!... Quãopoucos são os que pensam em aliviar o peso angustiante desuas desditas e em conduzi-la pelos caminhos de um idealsem quimeras, que irmane em definitivo o pensar e o sen-tir do homem numa consciência livre e sem limitações!”

Com estas palavras, De Sándara finalizou a reu-nião. Ao partir, cada um parecia levar em seus ouvidos oeco profundo de pensamentos que comoviam com forçasua sensibilidade.

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No dia seguinte, Arribillaga e os amigos que estive-ram com ele na noite anterior achavam-se reunidos noclube, em franca e cordial camaradagem. O encontro com DeSándara teve a virtude de reanimar neles os anelos e espe-ranças que talvez jazessem sepultados no fundo de suasalmas, como jazem tantas outras coisas que são trazidas àvida, sem que jamais se saiba quem as colocou na maleta deviagem que o ser carrega consigo ao vir a este mundo.

Fazia algum tempo que conversavam, participandoreciprocamente as impressões da véspera, quando umdeles se pronunciou sobre a conveniência de verem nova-mente a De Sándara, com o fim de obterem dele diretrizesvinculadas ao estudo que estavam dispostos a empreender.

– Não creio que seja possível – Marcos ponderou, –porque ele viaja de novo para o México por estes dias.

– Mas já regressa?! – lamentou Cláudio.– Que pouco ele fica em sua pátria! – Salvador

exclamou.Depois de Marcos comunicar-lhes o que sabia

sobre o particular, e das apreciações que os demais tece-ram a respeito de alguns pontos relacionados com a pes-soa do visitante, entre uma frase e outra todos acabarammanifestando sua opinião sobre os conhecimentos que elelhes havia oferecido, e nisto não houve divergências.

– Eu sou de opinião que seu saber tende a nos tirardo âmbito rotineiro de nossas especulações intelectuais –expressou Justo, – para nos mostrar as excelências de umarealidade que desconhecíamos. Em suas palavras pareciaacentuar-se o propósito de nos ensinar um caminho, defazer-nos refletir e, talvez, despertar uma inquietude nova.

– Penso que ele viu em nós algo particular, para quenos falasse como a velhos amigos – Norberto opinou.

– Pode ter influído nisso a boa disposição com queo escutamos – interveio Cláudio. – De uma coisa não fica

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dúvida: ele nos estendeu a mão nesta indigência espiritualem que nos encontramos e que, com freqüência, pretende-mos ocultar debaixo de crenças consentidas e complexosde superioridade.

– Se pudéssemos nos livrar dessa carga que nosenvaidece e prejudica tanto... – Salvador disse, com pesar.

– Por que não pensar que sim, agora que vemosestendidos em nossa direção os fios de um saber capaz deorientar nossos anseios? – Marcos manifestou, muito ani-mado.

– Também considero assim – assentiu Cláudio. – Evocê, Miguel Ángel, que diz? Vejo você muito pensativo.

– O que quer que eu diga? – respondeu, de muitobom humor. – Eu me sinto transformado num perfeito lili-putiano, mas com muitas ganas de aumentar minha esta-tura.

Unia-os nesse momento um estado particular deânimo, uma simpática corrente de companheirismo,dando margem à expansão.

– Seria importante – Salvador manifestou – saber seestamos aptos de verdade para alcançar essa plenitudeconsciente que se relaciona com o aperfeiçoamento denossas aptidões. Não há de ser tarefa fácil, creio eu.

– Seja lá como for – replicou Justo, com vivacidade,opondo-se aos reparos de seu amigo, – não vamos nos des-qualificar antes de conhecer as possibilidades que temospara esse magistério tão excepcional.

Assaltado por uma evidente crise de ceticismo,Salvador ainda insistiu:

– O temor ao fracasso, porém, faz pensar que oideal seria receber o maná dos céus...

– Eh, rapaz!, ponha fora esse pensamento comodis-ta! – Cláudio disse, afavelmente. – De que nos serviria cru-

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zar os braços, esperando que nos fosse dado por revelaçãoo que devemos encontrar por meio do esforço e pondo àprova nossa vontade e nossa inteligência?

Pouco depois se despediam.Enquanto se afastavam, cada um continuou anali-

sando a seu modo as sensações que experimentava, dedu-zindo todos eles, enquanto auscultavam o próprio sentir,que seus espíritos não eram indiferentes a essa realidadesuperior que De Sándara deixara que entrevissem.

Com tais pensamentos Cláudio chegou à casa deGriselda, com quem não havia falado por telefone desde amanhã, motivo que o transformou em invejável credor dealgumas carinhosas reprimendas.

O dia do noivado estava muito próximo, e um acon-tecimento assim tão iminente quanto singular exigia deGriselda uma atividade fora do comum. Tal como as meni-notas que dão muita importância ao trabalho que realizampela primeira vez, ela prontamente enumerou paraCláudio a quantidade de coisas que a atarefavam, protes-tando, com desgosto exagerado e gracioso, pelo tempo quelojas e modistas a faziam perder. Mas logo pôs de lado taispreocupações, que tachou de pequenas e pueris, e se dis-pôs a escutar Cláudio, de quem aguardava novidades.

– Fica difícil – ele lhe disse, depois de expor algunsjuízos sobre a reunião da noite anterior – descrever fiel-mente meu estado de ânimo. Sinto como se alguma partede meu ser tivesse mudado de repente, me permitindopensar e sentir de outra maneira.

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– Foi muita sorte você conseguir ver de novo osenhor De Sándara – expressou ela, enternecida, como seseu amor por Cláudio aumentasse, ao perceber esse des-pertar de emoções afins com as suas. – Estou convencidade que tudo o que agora estamos vivendo terá um efeitofavorável em nossa felicidade futura; digo isso porqueobservo que não só influi em nosso ânimo, como tambémem nossa mente, que se ativa, atraída pelas verdades ines-peradas que estão surgindo para nós. Meu coração me dizque uma maior aproximação espiritual aconteceu entrevocê e mim; estou experimentando algo assim como seuma força nova tivesse se incorporado a nossas vidas,uma esperança que nós dois deveremos alimentar semesquecimentos, até o instante em que culmine como umarealidade.

– Fico muito feliz ouvindo você, Griselda. Eu tinhacerteza de que você corresponderia a meus pensamentos.

– E eu me sinto feliz em saber que assim eu agradoa você – ela replicou, sorrindo; em seguida, muito prosa,acrescentou: – Mas penso ser muito mais do que issoainda, quando o tempo passar e você tiver conseguidoaumentar seu acervo de conhecimentos.

Como ele a olhasse fingindo espanto, ela insistiu,dizendo-lhe com graça:

– Na verdade, Cláudio, eu queria ver você converti-do um dia em magnata do saber.

– Para quê?... Para ser a cliente número um e levaras melhores peças de minhas reservas?

– Isso é que não!... Em todo o caso, serei sua sócia;ou então, se você acha melhor, sua colaboradora.

Se houvesse sido possível examinar, com umespectroscópio adaptado à figura humana, as radiaçõesmentais da alma de Cláudio, quando nessa noite ele saía

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da casa de sua namorada, ter-se-ia observado, entre asprojeções de uma veemência incontrolável, sua alegriainterna, semelhante à que experimenta quem descobre oveio de algum metal precioso, ou tem em perspectiva, eprestes a plasmar-se em realidade, alguma situação inve-jável. Seria possível ver ali muitos projetos surgidos quaseespontaneamente, mesclados ao temor de sofrer algumadecepção; é que ele não ignorava que tudo requer tempo epaciência, e que um aprendizado tão excelso, como o quese propunha começar, demanda esforços e até sacrifícios.Entretanto, algo lhe dizia que haveria de triunfar; que seimporia a tudo. Daí seu júbilo. E tudo isso vinha aumen-tar o caudal de ventura que lhe era oferecido pelo amor deGriselda, com a qual estava prestes a contrair matrimônio.

Numa sala reservada do hotel onde o senhor DeSándara se instalara, um distinto grupo de pessoasencontrava-se reunido, formado em sua maior parte pelosamigos que rodearam o hóspede nas oportunidadesconhecidas. Era a véspera de seu regresso ao México, e ovisitante os reunia num jantar de despedida.

Enquanto os convidados se entretinham dialogan-do amistosamente, distribuídos em diferentes pontos daesplêndida sala, De Sándara conversava a sós comArribillaga. Tratavam sobre uma questão que logo passa-ria a ser do conhecimento de todos, quando De Sándaralhes expressou que naquela oportunidade apresentariaalguns conceitos sobre o matrimônio, dedicando-os espe-cialmente àquele que em breve haveria de iniciar-se nessadifícil experiência.

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– Este é um assunto muito delicado e complexo –disse, muito sorridente, ao convidá-los a se assentarem.

Já acomodados todos nas acolhedoras poltronasque constituíam o adorno principal da sala, prosseguiucom expressão penetrante:

– É um assunto que obriga a nos segurarmos forte-mente ao famoso fio da filha de Minos, se não queremosnos extraviar nesse labirinto onde tantas coisas obscurasse contrapõem à tentativa de descobrir suas tramas mis-teriosas, esquivas ao exame de nosso juízo.

Dali surgiu um intercâmbio ágil e variado sobre otema, que adquiriu um tom ameno e deu lugar a inúme-ras e sutis alusões, dirigidas alegremente a seu alvo:Cláudio Arribillaga.

Passado esse instante, De Sándara voltou a tomara palavra.

– A experiência matrimonial – então disse – seestende ao longo de um processo que começa desde que ohomem e a mulher concebem a idéia do sexo, mesmoquando não tenha aparecido ainda, para um ou paraoutro, a dulcinéia ou o pretendente que, por unanimidadedo sentir, escolherão um dia com fins de aliança. O pro-cesso se inicia, pois, queira-se ou não, desde esse momen-to. A natureza sensível tende, a partir dali, a configurar asdemandas incipientes do instinto à idéia conjugal, asso-ciando aos atos da emoção passional as confidências dosentimento afetivo. A idéia conjugal, meus amigos, preva-lece no ser pela própria reação das forças criadoras e sus-tentadoras da espécie; por conseguinte, leva-se impressono sangue o mandato supremo da perpetuidade.

“Os sintomas precoces que denunciam no ser apresença de tal predestinação se insinuam com as primei-ras ilusões, com a idealização do futuro ou da futura dona

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do coração, mediante o registro feito “in mente” dasmelhores qualidades e dos mais belos traços fisionômicosque se observam e se admiram em cada semelhante dosexo oposto. Não falta ali a influência das figuras arquetí-picas de seres sobrenaturais, de beleza e virtudes extraor-dinárias, criados pela fantasia ou pela invenção artística,e com isto ficam satisfeitas as exigências que, a respeitoda perfeição ideal do futuro cônjuge, se esboçam no sercomo aspiração íntima. É inegável que são muitos os fato-res que concorrem para modificar essa imagem durante avida de solteiro, pois tanto o homem como a mulher, mui-tas vezes sem que disso se dêem conta, vivem e experi-mentam, nessa fase, múltiplos episódios psíquicos e emo-cionais que, embora palidamente, refletem as relaçõesnormais da futura vida matrimonial. Isso não consegue,porém, alterar a imagem ideal concebida, e, com tais pen-samentos, a juventude de ambos os sexos vai conforman-do o esquema de uma vida conjugal que, naturalmente,raras vezes concorda com a realidade.

“No instante em que se decide a sorte do futurosentimental do casal humano, instante que se pode pro-duzir espontaneamente ou após um tempo mais ou menosbreve de observação, contemplação e entusiasmo, é indu-bitável que uma comoção delicadamente sensível enlevaas partes, ao colocar definitivamente a imagem querida nolugar de honra dentro do coração. A partir dali, o amorseguirá o curso que cada um seja capaz de lhe imprimir.

“Quase que invariavelmente, tanto o homem comoa mulher vestem suas pessoas com os melhores trajes;porém, com que vestem o ser moral, o espírito e, em suma,esse conjunto de valores que constituem o mais seleto epuro que existe no próprio ser? É precisamente esse serconceitual, tido como de menor importância talvez por ser

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de natureza sensível, quem em seguida se vinga, mostran-do-nos desnudos e destruindo, com isso, o artifício denossa falsa personalidade. Eis aí onde começa essa lutainterior cujas causas muito poucos sabem definir e,menos ainda, compreender. A parte ideal, debilmente sus-tentada, desmorona, ficando somente a física, aspecto doser pelo qual se julgou sobre suas qualidades espirituais.Mas ocorre que também essa parte vai perdendo paulati-namente seus encantos, murchando cedo ou tarde o amormutuamente prodigado.”

Uma ligeira pausa permitiu a Cláudio manifestar:– Então, na maioria dos casos, o matrimônio pare-

ce destinado ao fracasso...– Estou seguro de não ter dito tal coisa, mas a quan-

tidade inumerável de fatos conhecidos nos fala, com sobe-ja eloqüência, não do fracasso do matrimônio, mas sim dofracasso daqueles que o contraem. Sem uma preparaçãoadequada, se lançam na mais delicada e ao mesmo tempotranscendental das empresas privadas, já que a instituiçãodo matrimônio cria deveres e obrigações que, sem estaremcompreendidos em nenhum documento contratual, hão deser cumpridos umas vezes em obediência a leis morais,outras vezes a leis ditadas pela própria consciência.

“É nefasta, para a vida em comum, a incompatibi-lidade de caracteres, e particularmente à mulher cumpreexercer, nesses casos, a função que, sendo própria de suanatureza sensível e temperante, lhe cabe como papel, afim de que o ritmo harmonioso da vida conjugal não sofrao ultraje da irreflexão e da violência. Colocando-se acimade toda inconveniência, ela há de saber constituir-se nacompanheira nobre, leal e afetiva, que, por sua capacida-de de compreensão, supere o conceito limitado que vulgar-mente é atribuído à sua missão.

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“A maior parte dos dramas que se promovem noseio familiar são produto inequívoco das incompreensõesmútuas ou, mais precisamente ainda, da falta absoluta deconhecimento sobre os elementos básicos que configuramo edifício das relações matrimoniais. Dramas que muitasvezes degeneram em tragédias ou separações definitivas,quando o amor-próprio, sempre acompanhado de intole-rância, violência, obstinação, oprime o amor até asfixiá-lo,esse mesmo amor que um e outro entre si juraram comoeterno.

“É indubitável, e é bom dizer isto em honra da ver-dade, que a proporção de tais casos não é alarmante, eque existem muitíssimos casamentos que se mantêm depé, apesar dos vendavais que suportam. Entretanto, aque-les que protagonizam esses casamentos raramente supe-raram os conflitos provenientes da disparidade de caracte-res, mediante o respeito consciente aos princípios queregem a vida matrimonial; suas reconciliações se deveram,mais que nada, a fatores de ordem diversa, por exemplo:as situações criadas, os filhos, ou mãos amigas. Tambémexistem aqueles que, não podendo evitar dificuldades ínti-mas, crêem ter encontrado a chave ao estabelecerem, taci-tamente ou de comum acordo, um “modus vivendi” quelhes torna a vida suportável. Esta não deixa de ser umasolução para certas situações que afetam a estabilidade dolar, mas de nenhum modo resolve o fundo espiritual dogrande enigma do matrimônio.

“A adoção de um método eficaz para sair airosodessa grande prova não é, entretanto”, prosseguiu DeSándara, “privilégio de ninguém, embora eu exclua, aofazer esta afirmação, aqueles que consideram o casamen-to apenas como um fato corriqueiro da vida humana, quese cumpre seguindo as normas correntes, sem suspeita-

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rem que existe, por trás dos laços do himeneu, uma vastae riquíssima zona da vida humana totalmente inexplora-da. Esses seres não correm o perigo de que o poema deMilton lhes tire o sono; em troca do ‘paraíso perdido’, elesconformam suas vidas às urgências das necessidadesdomésticas.”

Um silêncio expectante preenchia suas breves pausas.– É comum – continuou – que se confie ao acaso o

que escapa ao domínio das previsões; daí que o homemnão demore em ver o espectro da infelicidade rondandoseu lar, como o abutre em torno de Prometeu, para devo-rar-lhe as entranhas. Encarar com êxito a grande expe-riência do matrimônio pressupõe um conhecimento cabalda magna arquitetura espiritual que estrutura suas basesmorais com fórmulas estupendas e regras sublimes deconduta; fórmulas que enobrecem a alma dos seres,embelezam o panorama da vida conjugal, dignificam aespécie e abrem, para os corações humanos, as portas daconfiança nos desígnios do sentimento, tantas vezesmenosprezado e ultrajado pela incompreensão.

“Eu aconselharia a todos os jovens, de ambos ossexos, em via de contrair matrimônio, e principalmente aovarão, que formulassem para si a seguinte pergunta: ‘Paraque quero casar-me?’ Eis aqui, amigos, a interrogação queo homem deveria propor a si mesmo antes de acometersemelhante empresa; interrogação que poucos formulampara si, e, se formulam, não é com o necessário acerto. Aonos dispormos a fazer essa íntima indagação, por certodevemos ter em conta que não se trata de submeter oamor (que coloco acima de toda manifestação sensível)nem a vida conjugal (que deve ser sua extensão lógica) aocrivo de raciocínios que minam sua essência. Examinadaa pergunta à luz de nossos pensamentos e possibilidades

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discernitivas, ela haverá de nos levar a pensar que a deter-minação de nos casarmos responde ao desejo de adotar ogênero de vida oferecido pelo matrimônio. A essa conclu-são terá de nos conduzir, necessariamente, o fato de haverencontrado a mulher que corresponde a nossas aspiraçõese que reúne, por conseguinte, as condições para nos fazerfelizes.

“O homem quer formar um lar e dedicar-se, com aespontaneidade que surge de seu coração, aos seres que-ridos que haverão de viver nele, isto é, sua esposa e filhos.Mas, para que isto seja uma realidade, o amor que amulher tenha chegado a lhe inspirar, terá de predominarsempre em alto grau sobre sua condição sexual, propensaa excitar seus sentidos e desviá-lo desse objetivo. Assimsendo, jamais se empanará a imagem refletida no espelhode seu sentimento. Como, porém, conservar através dosanos o encanto desse amor puro, nobre, profundo, que aalma respira nos dias de namoro?”

O senhor Gorostiaga então interveio:– Neste momento me ocorre um fato que quero tra-

zer, à guisa de ilustração. Ocorre com extrema freqüênciaque o homem, depois de experimentar a convivência commuitas mulheres, decide de repente fechar os olhos paratodas e olhar somente para aquela que ele escolheu com ofim de enfrentarem juntos a grande batalha da vida. Queparticularidades misteriosas viu ou descobriu nela, aponto de distingui-la, colocando-a em lugar tão privilegia-do? O mais surpreendente é que este mesmo fato se repe-te com todos os homens em circunstâncias similares. Éforçoso pensar, então, que a totalidade das mulheres pos-sui essas curiosas particularidades, que se revelam tão-somente ao que pareceria destinado a descobri-las. E porque acontece com tanta freqüência que o homem acha quese equivocou em sua escolha?

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– Se ele parasse para pensar em suas próprias defi-ciências ou culpabilidade – De Sándara respondeu-lhe, – éprovável que na maioria dos casos tal coisa não sucederia.Muito é o que o homem tem de aprender, e não menos amulher, está subentendido, para que esse pronunciamen-to do Criador, que determina a perpetuidade, seja levadoa cabo dentro dos cânones destinados a reger e ordenarsua alta finalidade. Para que a imagem da esposa, amesma que cada homem idealiza cedendo a imaginativosimpulsos estéticos, não perca sua beleza ideal, impõe-se amoderação. Duas coisas são indispensáveis para que per-dure esse amor fresco e puro que se sente pela amada,sem que se debilite jamais. A primeira é o afeto, que,menos impulsivo que a paixão, assegura seu arraigamen-to, já que, se bem seja certo que a paixão infunde vida aoamor, o afeto é chamado a preservá-lo e conservá-lo. Aoutra, a segunda, tão indispensável quanto a primeira, énossa dignificação aos olhos do ser querido. Esta só seconsegue por meio dos esforços e das preocupações pelobem-estar da família, e alcança sua máxima expressãoquando nos elevamos, numa superação constante, acimada vulgaridade. Em tais condições, sem dúvida se desfru-tam prerrogativas muito maiores que as comuns, traduzi-das num aumento considerável da capacidade mental, quehabilitará, ao mesmo tempo, para a tarefa de enriquecerprogressivamente a vida e enchê-la de felicidade. Isto éalgo que se pode e deve fazer, seja qual for nossa idade eestado, uma vez que a maior preparo e conhecimento cor-responderá maior bem-estar, e teremos mais em mãos,também, os fios de nosso destino.

“Não me referirei aos comportamentos da naturezae do caráter daqueles que unem suas vidas para avançarem harmonia pelos caminhos do mundo, por entender, e

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isso é muito justo, que é esse um terreno reservado à pró-pria discrição. Em lugar disso, falarei do ideal conjugal, talcomo o concebo através de minhas observações. Sendo oamor uma força e também um poder, nenhuma circuns-tância poderia ser mais oportuna, para ensaiar sua virtu-de, do que a de empregá-lo na consagração definitiva deum lar que possa ser exemplo para lares. O amor é o gran-de elemento com que se suprem muitos claros produzidosno âmbito sensível pelas deficiências caracterológicas, e étambém o que infunde confiança em nossas próprias for-ças, para esperarmos uma correspondência mais elevadaàs demandas, por vezes silenciosas, de nosso ser moral;demandas que em alguns casos acreditamos justas, e queem outros o são de verdade. É ali onde a tolerância cum-pre seu alto e grande objetivo instrutivo.

“A mulher que nos acompanhará no difícil caminhoda vida”, prosseguiu, “terá de se formar à nossa semelhan-ça se anela ser feliz, mas teremos de ser tudo para ela elutar juntos, em igualdade de condições, para alcançar osmaiores progressos na superação individual. Para conse-guir isso, nada melhor, a meu juízo, que preparar cada umpor si mesmo as circunstâncias e oportunidades que aneleviver e desfrutar no futuro. As esperanças que confiarmosa nossas almas e a nossos corações passarão a ter, dessaforma, verdadeira beleza e se tornarão inefavelmente for-mosas e lógicas, e teremos também a segurança de quenosso doce esperar não será defraudado.

“Nunca contribuí para alimentar ilusões nosdemais, muito menos a respeito deste assunto, tão frágilcomo o mais delicado dos cristais. Ao contrário, tenho pre-venido contra elas, ou seja, contra as ilusões de origemquimérica, nascidas dos devaneios da imaginação – e por-tanto inalcançáveis –, pois também há ilusões sublimes,

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fruto da inspiração racional. Quando preparo um traba-lho, por exemplo, intuo as deliciosas satisfações que suafinalização me proporcionará, e prossigo nele ao mesmotempo que alimento essa ilusão, que chamei de racional, eque influi sobre meu ânimo enquanto caminho rumo àmeta da realidade que estou forjando. Se utilizamos istocomo princípio e o aplicamos à vida conjugal, veremosentão que a felicidade poderá ser uma conquista para ocasal humano, desde que nem um nem outro se afastemdo que eu chamaria lei da sensatez.

“Não resta dúvida que, ao dar forma legal ao con-sórcio humano, se buscou o amparo da herança, fazendocom que esta deslizasse pelos condutos genealógicos, ecada ser, consciente ou não de sua responsabilidade his-tórica, se reencontrasse em seu próprio sangue atravésdos séculos. Induz a pensar assim o fato de ficar impres-sa na célula genésica a filiação que o descendente apre-senta na semelhança inconfundível com seus progenito-res, seja em suas preferências, seja em suas inclinações,inquietudes, etc., as quais, por impulso da própria evolu-ção imposta pelas leis universais, ele se vê obrigado asuperar. O simples enunciado desta realidade fala clara-mente sobre o papel que a instituição familiar cumpre,bem como sobre a importância que a solidez e o aperfei-çoamento de sua estrutura assumem no avanço e progres-so da comunidade humana.

“Pois bem; só podemos conceituar a família comonúcleo indissolúvel quando pais e filhos se identificamentre si, por sustentarem os mesmos anelos e ideais;quando todos os seus membros, em mútua colaboração,dedicam seus esforços a forjar um destino superior, quenão poderia ser forjado pelos que marcham por caminhosdistintos e opostos a esse alto ideal. Mesmo quando isto

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possa parecer à primeira vista incompreensível, deixará desê-lo tão logo se pense que tal coisa não implica tirar dohomem a liberdade para dirigir-se aonde queira, cumprin-do individualmente seus propósitos. Pelo contrário, pode-rá dar a esses mesmos propósitos a máxima amplitude,sem que isso signifique ir contra a ordem e a harmoniafamiliar. O formoso é, precisamente, que cada integrantepossa fazer isso com o concurso dos outros membros dafamília.”

Ao chegar aqui, o senhor De Sándara se deteve.– Espero – disse, com um gesto de ampla cordiali-

dade – não ter fatigado em demasia a atenção dos senho-res. Este é um tema inesgotável, que bem merece o esfor-ço de ser aprofundado. Mas prefiro reservar para uma oca-sião futura o aditamento de novos conceitos.

Instantes depois, passavam à sala de jantar. Quando, transcorridas as horas, chegou ao fim

aquela reunião, Arribillaga cumprimentou De Sándara,despedindo-se dele com estas palavras:

– Estou confiante de poder algum dia dar ao senhoruma informação sobre até onde me foi possível pôr emprática seus conselhos.

– Não faltará oportunidade, meu amigo, enquantoestejamos andando por este mundo...

E, sorrindo, acrescentou:– Eu desejo a você um grande êxito nesse sentido.Após um efusivo aperto de mãos, separaram-se.Enquanto Cláudio percorria as ruas da cidade, e

até o momento de dormir, envolvia-o um estado alegre,doce, plácido, presente pré-nupcial que a própria vida lhedava naqueles dias, com a diferença de que nessa noite eleo sentia com maior intensidade.

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Como duvidar de que as imagens captadas horasantes haviam enriquecido decididamente suas arcas?Advertido como estava sobre as situações que sobrevêmno decorrer do processo matrimonial, e havendo adquiri-do relevo ante seus olhos tão novas e melhores formas deencará-lo, seu coração transbordava de ventura e de con-fiança. Ele não correria riscos nessa séria aventura, poissaberia preservar seu lar das experiências penosas que secriam por ignorância de sua origem. E quão grata era aperspectiva de evitá-las, sem necessidade de extrair seufruto através da dor! Porque, sem dúvida, muitos perigosespreitam a embarcação matrimonial desde o instante emque, levantadas as âncoras que a mantêm imóvel sobrenas águas tranqüilas do noivado, é lançada ao mar; masele saberia enfrentar com perícia e valentia – por que não?– as variações do tempo e as mudanças no marulho dasondas, que tão amiúde põem à prova a resistência e ocomando da mesma.

Num venturoso dia de novembro, celebrou-se o noi-vado de Griselda e Cláudio.

Os fios com que o fado ia trespassando a alma dosdois enamorados haviam dado, com isso, o primeiro nó, eambos já viviam o transporte inefável da etapa pré-nupcial.

O tempo individual sofria uma pequena perdanesse importante passo que davam para a união física eespiritual de suas vidas, mas deveriam mais adianteaprender a se mover com a idéia de mutuamente favorece-rem o espaço de liberdade que ambos necessitariam para

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não experimentarem, já casados, as angústias de umaescravidão que, embora atenuada pelo afeto e pela boa-vontade, pode fomentar rebeldias internas capazes deromper a harmonia conjugal, se não são detidas a tempo.

A partir daquele dia, a convivência da famíliaLaguna com Dom Roque fez-se mais íntima e estreita. Emrazão dos convites de parte a parte, as visitas de uma casaà outra fizeram-se mais freqüentes, o que permitiu aGriselda familiarizar-se com o meio em que doravante suavida iria transcorrer.

Cláudio contribuía com sua alegria para toda aque-la cordialidade florescente; em verdade, nada teria faltadoà sua felicidade, não fosse o sentir-se algumas vezes tur-bado por certo reclamo íntimo, que o convidava a esclare-cer suas idéias, ordenar seus pensamentos e pôr-se sob aassistência dessa linha de conhecimentos que lhe haviampermitido vislumbrar uma realidade nova para suas pos-sibilidades mentais e espirituais.

Repetidamente, cedendo à influência de tais recla-mos, propôs-se iniciar com firmeza um estudo daquelesconhecimentos. Disposto a criar seu próprio mundo, rea-lizou ensaios, interrompendo-os nos primeiros tropeços.Não obstante, sem mudar de objetivo, esforçou-se emnovas tentativas, procurando dentro do possível orientar-se. Entretanto, apoucado por fim pelo fantasma de suaincapacidade diante das dificuldades e da importânciadaquele trabalho que lhe parecia de Hércules, acabou porrender-se. Que conhecimento, que imagem concreta tinhaele do mundo ao qual desejava dar forma? Nenhuma.Além disso, devia criar o personagem que animasse essemundo, o que não era fácil, já que não se tratava apenasde pô-lo de pé, senão de mantê-lo vivo e ativo dentrodaquele meio. Em vão Cláudio lutava para dissipar tais

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dificuldades, nos breves momentos de isolamento que aduras penas ele buscava no curso daqueles dias, que cor-riam aceleradamente rumo à sua felicidade: sempre amesma insegurança sobre o que se propunha fazer, sem-pre a mesma frustração em seus empenhos.

Inesperadamente, e com espantosa oportunida-de, recebeu uma carta com selo postal do México. Erado senhor De Sándara. Abriu com avidez o envelope eleu:

“Meu estimado amigo:“Ainda tenho presente a ansiedade com que seu

espírito se inteirava de meus conceitos, ao expor-lhes aí,em Buenos Aires, algumas fases do processo criador quemeu pensamento desenvolve dentro do mundo mental.Não duvido que você tentará ensaiar algo parecido, e éisso, precisamente, o que me move a escrever-lhe. Não setrata de nada impossível, mas a tarefa exige um esforçoconstante, pois o que se busca é promover o desenvolvi-mento das aptidões de uma forma integral.

“A norma que tenho seguido e lhe aconselho é ade não criar personagens aleatoriamente. Você começarálevando adiante o processo de conhecimento sobre o qualjá lhe falei em outra oportunidade; nele encontrará todosos elementos de que necessita para as ações que aneledesenvolver no futuro. Isto exige uma severa vigilânciasobre a condução da vida, em direção ao novo rumo quese procura dar a ela, labor que oferece como resultadoótimos frutos, visto que, além da capacitação conscienteque nessa ordem de conhecimentos se consegue, permi-te desfrutar, antecipadamente, as delícias de uma pro-messa que se vai cumprindo conforme aumentam osméritos próprios.

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“Simultaneamente à valorização das próprias con-dições e qualidades, impõe-se a criação de um persona-gem cujo arquétipo poderia ser você mesmo. Induza-o arealizar toda sorte de ações nobres, façanhas, gestos vir-tuosos, e observe as situações em que se coloca, paraajudá-lo a sair-se bem delas, caso incorra em desacertos.Idealizando-o, mescle na vida dele algo de lenda e até umpedaço de céu, desse céu que plasma o mundo mentalonde se nutre a inteligência que consegue ter acesso a ele.Feito isto, compare-o com você mesmo e decida se serávocê quem deve imitar seu personagem, ou quem concede-rá a ele a graça de imitá-lo.”

Meditando de modo consciencioso sobre o quehavia lido, Cláudio Arribillaga concluiu por tomar, destavez com maior formalidade, a determinação de seguir aopé da letra aquelas recomendações, que o habilitariam adar nascimento ao mundo íntimo, de projeções novas,onde não só ele, mas também Griselda e os seres que neletivessem lugar, cumpririam importantes objetivos. Seucoração transbordou de júbilo ao entrever o muito quepoderia fazer, auxiliado pelo gênio tutelar do senhor DeSándara, que, ao escrever-lhe, o considerava seu amigo.Era, pois, necessário pôr mãos à obra.

Desfrutando as delicias dessa promessa que acabavade fazer a si mesmo, pôs-se a recordar as passagens doGênese, quando Deus criou a terra e animou a vida do pri-meiro homem, para o qual traçou, com maravilhosa sime-tria, os encantadores conjuntos do Éden. Nesse Éden ouParaíso, havia uma figura central, o homem, ao qual deu porcompanheira uma mulher, para quem ele era dono e senhor.

Cláudio pressentiu que, em seu projetado mundo,haveria de reproduzir, seguindo a lei de analogia, um sími-

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le daquela imagem. Ele conduziria Griselda, quando elafosse sua esposa, pelos caminhos do mundo, com tato eprudência, e ela deveria segui-lo de modo compreensivoem toda a sua trajetória. No paraíso de sua criação,somente reinariam ele e ela. Mas como alcançar seme-lhante prodígio? Não apareceria de pronto a fatídica ser-pente, para tentar sua amada, induzindo-a a abandonar adoce e aprazível possessão edênica, para terminaremambos rolando, como Sísifo e sua pedra, pelos caminhosdo inferno? Oh, não!... Nada disso viria a acontecer, se elechegasse a possuir o conhecimento que os imunizassecontra semelhante perigo. A velha fábula de Filemão eBáucides é uma lição para a alma de uma mulher, e eleajudaria Griselda a aproveitá-la. Não tinha por que duvi-dar disso; decididamente, ele guiaria sua esposa até asfontes do conhecimento.

Estas reflexões tornaram mais puro e claro em seuespírito tudo quanto ele havia sentido, experimentado evivido nos últimos meses. Entretanto, qualquer observa-dor medianamente atento poderia constatar que o ânimode Cláudio evidenciava, como os gráficos que marcam asoscilações febris de um enfermo, os altibaixos de seusestados psíquicos. Tais variações, suscitadas pelas flutua-ções temperamentais que em maior ou menor grau todohomem padece, eram próprias, entretanto, do ser que pro-cura evoluir, encaminhando-se para graus mais elevadosde consciência.

Patrício, com a experiência que nesse sentido haviaalcançado, e esmerando-se no uso de seu excelente tato,prevenia-o acerca do possível recrudescimento de taisanomalias psicológicas toda vez que as via aparecer, e lhemostrava, a fim de que não fosse surpreendido por nenhu-ma delas, as deploráveis conseqüências que costumam

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trazer consigo quando dominam o campo mental. Aquelehomem bom e simples, assistido pelo saber extraído desuas leituras favoritas, bem como pelo afeto que tributavaa seu amo, costumava ser com freqüência seu eficaz auxi-liar, intervindo atinadamente, ora para freá-lo em suasdesmedidas expansões de entusiasmo, ora para estimulá-lo em suas decaídas, ora para facilitar-lhe o labor de dis-cernir os problemas da consciência.

– Em tudo o que se relacione com o espírito e a inte-ligência – costumava dizer-lhe, entre outras coisas, – deveprevalecer a constância, e não a pressa, e em tudo há quese dar participação ativa à consciência.

Transcorrido um breve tempo, e com um dia de ante-cedência ao do casamento, Cláudio recebeu uma segundacarta do senhor De Sándara, que o alegrou sobremaneira.

“Meu amigo”, dizia-lhe em eloqüentes parágrafos,“tudo o que façamos aqui, na terra, tem de ser grato a nossoespírito e encerrar um valor positivo para nossa existência.Quero dizer-lhe com isto que todos os nossos atos devemestar intimamente relacionados entre si, em permanentefunção criadora. O inefável prazer de viver não se experi-menta enquanto não começamos a olhar nossa vida como oprincipal dos trabalhos que devemos empreender. Dissohaverá de surgir uma obra de arte que nos pertencerá eter-namente. E que satisfação mais sublime poderia haver quea de sentirmos em nós mesmos a honra de nossos própriosméritos, forjando o juízo da posteridade? Ponhamos, anteessa proposição instrutiva, o contraste que nos oferece aconduta egoísta de quem, especulando com a abundância,sacia seus apetites embriagado pelas paixões que cegam oentendimento. Seres desse gênero são obras malogradas,como o são todos aqueles que empreendem de contínuoprojetos diferentes sem terminar nenhum deles.

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“Você, meu jovem amigo, vai casar-se; isto significaque sua responsabilidade duplica. Faça com que sua futu-ra esposa compreenda esse passo e o concilie com as prer-rogativas que a evolução abre.

“E não se esqueça de que a mulher, quando nelaexistem sentimentos sadios e um verdadeiro conceito dolar, é a que primeiro se adapta às exigências da vida matri-monial. O homem, comumente andador e livre, não expe-rimenta essa realidade enquanto não tenha passado umtempo; mais claramente ainda, não se comporta em todosos casos, fora do lar, como homem casado, já que, ao nãoperceber câmbios externos em si, tende a atuar tão solta-mente como quando era solteiro. Este é o motivo de mui-tos dramas, às vezes de profunda repercussão na alma desua companheira.

“Eu tenho para mim que o recém-casado é comoum pássaro que, aprisionado dentro de uma enorme gaio-la, ainda conserva a ilusão de sua perdida liberdade.Somente quando tropeça nas limitações de sua prisão éque se dá conta da realidade, que lhe assinala o dever deamoldar-se às condições de seu novo estado. Claro que sócoloco nesta situação aqueles que, por ausência de bomsenso, sofrem os rigores dessa situação.

“Quem constrói seu lar depositando nele suas maiscaras aspirações prontamente se adapta ao casamento.Há também aqueles que elevam seu pensamento e seusentir acima dessas aspirações, buscando horizontes maissublimes. Para estes, a passagem através do casamentotem outro significado e outra transcendência. Querosituar você entre os últimos, pois suas inquietudes espiri-tuais, que percebi durante minha estada nessa cidade,induzem-me a pensar assim.

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“Aproveite a magna ocasião que se lhe apresentapara edificar a obra de sua vida, e a da mulher que logoserá sua esposa, sobre cimentos eternos.”

Arribillaga leu repetidamente a carta, ansioso poralcançar seu exato sentido, e não se esqueceu de agradecer aDeus as portas que lhe abria para que se encaminhasse comacerto pelo mundo, em busca da felicidade que dele se apro-ximava, oferecendo-lhe perspectivas por demais promissoras.

Além dos estímulos que recebia de Cláudio,Griselda tinha em sua mãe a conselheira que, instanteapós instante, velava por sua felicidade futura. As conver-sações que a miúdo mantinha com ela constituíam todauma preparação para a vida, pois o propósito daquela eraassessorá-la, protegendo-a assim de sua inexperiência emrelação à etapa que estava por abrir-se à sua passagem.

Inteligente e de fina percepção, e além disso dotadade uma natural disposição para dedicar-se ao bem-estardos seus, Dona Laura havia sabido fazer de seu lar o lugarpreferido de seu esposo, a quem cercou de afeto, de paz ealegria; a quem, com espírito forte, animou nos momentosdifíceis, e de quem soube obter uma íntima correspondên-cia em seus afãs de levar, a níveis espirituais mais eleva-dos, a vida em comum de ambos.

Griselda, que conhecia as excelências que embeleza-vam a alma de sua mãe, cujas virtudes herdara em boa parte,sentia por ela tal admiração e respeito, que de seu coraçãotransbordavam, com freqüência, sensações de filial ternura.

– Eu nunca fui esquiva aos conselhos de meus pais– Dona Laura lhe dizia, num dos tantos momentos que

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passavam juntas. – Isso me serviu muito, pois as palavrasdeles me guiaram em muitos momentos de incerteza edesorientação. Se as houvesse rechaçado ou esquecido,com certeza eu seria hoje uma mulher muito infeliz. Issoporque, ainda que possa parecer estranho para você,minha querida, entre seu pai e mim houve, pouco tempodepois de casados, repetidos choques, criados pela dispa-ridade de caracteres.

– Quem diria! Vocês se ajustam tão bem um aooutro!...

– Na verdade, no nosso caso, como em tantos queconheço, essa disparidade não existia. Faltava, simplesmente,propiciar a recuperação de um entendimento mútuo que even-tualmente tinha sido alterado, e mantê-lo, evidentemente.

– E como você resolveu essa situação?– Fui ajudada, como lhe disse, pelos conselhos de

meus pais, em particular pelos de minha mãe, com cujoexemplo eu havia aprendido muito. Devo em grande parte àinfluência dela o haver podido emendar os erros que a inex-periência não me permitiu evitar a tempo, pois com freqüên-cia esses conselhos brotavam em meio às minhas vacilações,assinalando-me o percurso de um caminho justo e honrado.

Dona Laura, movida pela evocação desses pensamen-tos, que outrora estiveram em plena combustão, dispôs-se amostrar para sua filha, desta vez mais de perto, o crisol ondehavia depurado seus preconceitos e conseguido dar transparên-cia à estima de si mesma, que antes se mostrava opaca e falsa.

– Imagine, filha, que em semelhante situação eu mesentia invadida por um grande pesar. Mas não tardei muitoem descobrir que eram os meus próprios defeitos que meempurravam para a infelicidade. Desgostosa diante de qual-quer brusquidão de seu pai, meu amor-próprio se rebelava,fazendo-me incorrer em intencionais descuidos para com ele.Você há de compreender que, por esse caminho, as discor-

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dâncias se somam e se multiplicam, sobrevindo distancia-mentos que em muitos casos conduzem a uma separaçãodefinitiva. Felizmente, percebi a tempo o perigo no qual aque-la situação podia nos precipitar, e pude fazer dela uma expe-riência muito instrutiva, já que, reagindo saudavelmente,decidi sacrificar meu orgulho tolo em benefício da felicidadeque eu ansiava ver reinar em nosso lar. Você era então muitopequena, e sua presença constituía um poderoso estimulopara fortalecer essa determinação. Empenhei-me, como pri-meira providência, em pôr às claras o verdadeiro motivo denossas desavenças; mas não creia que me foi fácil... Oh,não!... Pude fazê-lo, não obstante, e nesse empenho chegueia reconhecer um dia que minha postura diante de seu pai eraridícula e até odiosa. Mas eu necessitava de algo mais, algoque desse maior suporte à decisão que havia tomado. Emconversas com minhas amigas, vim a dar finalmente com oque buscava, o que foi para mim como a descoberta de umgrande segredo. Surpreendi isso enquanto censurava, paramim mesma, a atitude de uma delas, que, pondo-se valento-na, relatava as divergências com seu marido e fazia alardedas represálias que adotava contra ele. Digo-lhe de passa-gem, Griselda, que a indiscrição daquela boa senhora mepareceu o mais feio dos defeitos que uma mulher casadapode ter; hoje sei que é também o que lhe acarreta, com fre-qüência, as maiores desventuras. Pois bem; refletindo sobreo que havia escutado, encontrei, como lhe dizia, o que tantohavia buscado, aquilo que constituía o principal motivo detodas as minhas dificuldades conjugais.

– Qual?– Os desencontros, minha filha... os desencon-

tros... São eles o resultado das escondidas reações quecostumam promover-se em nós, por motivos muitasvezes pueris, e que em determinado momento transbor-dam, provocando desagradáveis episódios dentro do lar.

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Acontece, geralmente, que retiramos de nossa participa-ção nesses episódios toda a importância, enquanto consi-deramos injustos e até abusivos os desgostos que tais ati-tudes desencadeiam em nossos maridos. Essas coisasacontecem, querida, porque ignoramos que o ponto departida delas está em outras causas, que é imprescindívelconhecer.

A expressão de expectativa estampada no rosto deGriselda fez sua mãe sorrir, e esta, disposta a ser explíci-ta, continuou:

– A mulher que se casa, minha filha, comumenteignora que o homem, por bom e amante que seja, depoisde um tempo se retrai, o que de maneira nenhuma querdizer que tenha deixado de ser bom e amante; são simplesvariações, próprias de seu sexo. Precisamente isso é o quecostuma trazer como conseqüência os desencontros aosquais me referi e que, na vida matrimonial, se repetem emproporção ao grau de desarmonia que vão criando.Habitualmente, a mulher interpreta tais mudanças domarido como uma afronta e, assim, quando se reavivamnele as manifestações afetivas, se mostra fria e esquiva asuas carícias. Eis aí, Griselda, um dos grandes erros quea mulher comete, sem prever os efeitos desastrosos queisso lhe acarreta, uma vez que, no final das contas, osdesencontros, que no início se repetem seguindo o próprioritmo dos retraimentos, acabam se tornando permanen-tes. A dona-de-casa começa – eis algo que tenho visto comtanta freqüência! – por contrariar o marido em seus gos-tos, e não falta aquela que, nesse afã tão mesquinho quan-to insensato, chega a um tal ponto que, se ele prefere umprato, ela o suprime; se uma sobremesa, também; se ele aconvida para ir ao teatro, ela se nega; se resolvem ir aocinema e ele acha o filme aborrecido ou ruim, ela se des-

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faz em elogios. Dessa maneira, você pode ver, Griselda,que insensivelmente se penetra num círculo vicioso; numcírculo que se vai estreitando cada vez mais, até debilitaro amor conjugal em graus extremos.

– Faço idéia de quão feliz você se sentiu ao sairdessa encruzilhada...

– Oh, calcule!... Quando compreendi que estava emmim a possibilidade de fazer algo para evitar essesmomentos amargos, resultantes de minha própria condu-ta, senti-me com outro ânimo, como se revivesse...

– E como você conseguiu tanto? Porque eu nuncapoderia sequer suspeitar que entre papai e você houvessejamais existido o menor desacordo.

– Oh, me custou bastante!... Eu já lhe digo. Levadapor meu propósito, comecei a me mostrar mais carinhosacom seu pai. Mas ele, recordando sem dúvida as vezes emque eu havia feito a mesma coisa, correspondeu apagada-mente. Isso me fez sofrer; chorei, chorei muitíssimo... Logoreconheci, entretanto, que meu comportamento anteriornão merecia outra coisa, o que me ajudou a suportarresignadamente a repetição de tão dolorosa passagem.Sem desanimar, procurei comprazer-lhe, proporcionando-lhe tudo que fosse de seu agrado, e obtive nisso tal êxito,que a tarefa de cercá-lo de todos os pequenos cuidados,que tanto agradam e satisfazem o homem, transformou-separa mim num motivo de alegria.

– Mas não creio que papai estivesse totalmente livrede censuras...

– Não digo o contrário, mas se em algo ele teve deemendar sua conduta, estou segura de que lhe foi muitomais fácil conseguir isso com a assistência de uma compa-nheira mais terna e compreensiva. No final, aconteceu oque não é difícil que aconteça quando os protagonistas de

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episódios como estes se amam e são afins em suas inclina-ções, ou seja, senti-me correspondida em tudo quanto fazia.

– E, ao que parece, não voltaram a ocorrer outrosdesencontros.

– Exatamente, porque aprendi a olhar seu pai demaneira diferente; e seus retraimentos, quando ele ostinha, longe de me mortificar, agora me infundiam respei-to, e até eu mesma procurava que lhe fossem mais gratos.

– Oh, mamãe, como você é inteligente! – Griseldaexclamou, envolvendo sua mãe num olhar de reconheci-mento e afeto. – Quantos desses erros eu mesma poderiachegar a cometer, se você não me prevenisse contra elescom tanta clareza!

– Você nem pode imaginar, Griselda, quantas vezeseu bendisse a hora em que reparei estar em mim, como emtoda mulher, a chave para lavrar minha felicidade e a dosmeus. Em verdade, eu me sentia feliz, muito feliz, e já nãopude considerar esse segredo como algo individual, comoalgo que dizia respeito exclusivamente a mim. Havia visto,em outros lares, reproduzidos mais ou menos os mesmosepisódios. Uma vez que tinha reconquistado a paz do meu,e esmerando minha prudência, me propus ajudar asdonas desses lares, que eram, naturalmente, minhas ami-gas. Não vá pensar que minhas sugestões sempre encon-traram boa acolhida; houve aquelas que desdenharammeus conselhos, e recordo que até fui tachada de sem-caráter. Mas tais amigas seguiram sendo muito infelizes e,com o correr dos dias, semearam essa mesma infelicidadenos lares de suas próprias filhas.

Um chamado telefônico afastou Griselda do lado desua mãe por uns instantes. Já de volta, o motivo da conversavariou, pois a atenção de ambas voltou-se inteiramente paraos assuntos relacionados com os preparativos do casamento.

Quando Cláudio Arribillaga visitou Griselda horas

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mais tarde, sentia-se ela a mais feliz das criaturas. Os ins-trutivos pensamentos de sua mãe haviam repercutido deforma grata em sua alma. Além de constituir uma verda-deira preparação para seu próximo câmbio de estado, taispensamentos, agindo a modo de reativo moral e psicológi-co, tiveram a virtude de se transformar em saudáveis estí-mulos. Daí que ela se mostrasse a Cláudio mais expansi-va do que o habitual, como se de repente tivesse adquiri-do maior soltura. Ela mesma se surpreendeu ao perceberisso, a ponto de enrubescer-se.

– Como você está contente, querida! – ele manifes-tou, ao se encontrarem.

– E você não adivinha a causa?– Nem precisa dizer que sou eu...Sem negar, mas dando a entender ao mesmo tempo

que havia algo mais, Griselda terminou por confiar-lhe,com a exuberância própria da emoção juvenil, ainda quecom as necessárias reservas, os motivos de sua alegria,fazendo-o dessa forma partícipe daquele presente queDona Laura lhes antecipava, em seu afã de tornar maispropícia para eles a felicidade futura.

– Gosto de sua mãe como se fosse a minha – eledisse, correspondendo-lhe com um doce olhar.

Quando na manhã seguinte, segundo seu costume,Dona Laura entrou no quarto de Griselda, ela ainda dormia.

– Acorde, preguiçosa! – disse, beijando-a.E, sentando-se na beirada da cama, acrescentou, ao

mesmo tempo que lhe entregava um delicado embrulho:– Tome, querida; é um livro. Em suas páginas você encon-

trará um conjunto de observações e reflexões que reuni duranteminha vida. Mais de uma vez pensei em você, ao escrevê-lo.

– Oh, obrigada!... – a jovem exclamou, contentíssi-ma, sentando-se com presteza no leito. – É um presenteprecioso!... O melhor que você me podia dar.

– Estava certa de que você o apreciaria.

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Dona Laura encaminhou-se em seguida até a janelapara arredar o cortinado que impedia a passagem da luz noaposento e, após examinar detidamente várias peças doenxoval de Griselda, dedicou-se a acomodar algumas caixasque, entreabertas e amontoadas com certa desordem, deixa-vam a descoberto primorosos detalhes do aviamento nupcial.

Enquanto isso, depois de folhear o livro que sua mãeacabava de entregar-lhe, a jovem deteve sua atenção nestesparágrafos: “Não concebo que o coração humano possa sen-tir verdadeira felicidade, se a vida não for dotada dos recur-sos morais e espirituais que a embelezem. Esses recursos sãoa soma do que conseguimos extrair como fruto de nossasexperiências e de nossas meditações, enquanto procuramosdar forma concreta ao ideal que perseguimos. Posso afirmarque, em meu caso, esse ideal ganhou substância ao descobrirem meus próprios desacertos a causa de minha infelicidade,ou seja, ao enfrentar uma realidade que me obrigou a mudarfundamentalmente meus pontos de vista. E eis que, quandoacreditei que a vida perdia seus maiores encantos, meu cora-ção começou a palpitar de outra maneira, com mais força,com mais alegria, com mais confiança, sem a inquietude oudesassossego que antes faziam de mim uma presa. Quão tolaeu havia sido!... Lancei um olhar às minhas ilusões mortas,mas sem pesar, sem nostalgia, sem pretensões de devolvê-lasà vida. Compreendi que pertenciam a uma época em que fer-vilhavam em minha cabeça muitas fantasias, muitos sonhose caprichos, como os que animam a todas as mulheres quedesejam muitas coisas belas e agradáveis, sem pensar que épreciso fazer algo para merecê-las. Vislumbrei que, por cimadaquelas ilusões – ou, dizendo melhor, substituindo-as –,existiam dentro de mim recursos que me ajudariam, certa-mente, a ser feliz. Lançando então mão deles, empenhei-meem fortalecê-los e aumentá-los, servindo-me de alento o amor

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dos meus. Consegui por esse meio levar adiante meus empe-nhos e, nesse trabalho diário, encontrei belíssimos incenti-vos. Desde então, fui mais compreensiva, mais tolerante epaciente, e pude desfrutar, em compensação, uma grandepaz e um íntimo regozijo.”

Griselda fechou o livro, deslizou sobre a capa suamão leve e sedosa. Sempre havia reconhecido os grandesvalores morais de sua mãe, mas nesse momento ela se lheapresentava como uma alma exemplar, que a guiava comelementos vivos, extraídos da experiência de sua própriavida. Havia depositado ali suas memórias, que agorapunha em suas mãos para que ela, sua filha, servindo-sede tão valioso conteúdo, pudesse evitar para si as angús-tias que a inexperiência e a candidez da juventude costu-mam criar. Quanto lhe era grata por esse inestimável lega-do! Noites e dias ela passaria enlevada, lendo-o.

– Como fez para saber tanto, mamãe? – Griseldaperguntou, com interesse.

Dona Laura riu benevolamente, como fazem asmães ante as perguntas ingênuas de seus filhos.Sentando-se novamente a seu lado, expressou:

– Você me pergunta algo, filha, que nem eu mesmasei... Talvez tudo seja fruto de um esforço tenaz, constan-te, ordenado. Recordo que, quando conseguia aprenderalguma coisa que ignorava, eu a considerava como umfragmento de vida nova que se incorporava à minha, e issoproduzia em mim um raro e íntimo prazer. Todo o meu afãfoi me sentir cada dia mais digna de mim mesma.

– Gostaria de chegar a saber tanto como você,mamãe! – exclamou Griselda, entusiasmada.

– Oh, sou apenas aprendiz!... Mas você, sim, pode-rá ser o que anela. Pondo empenho e firmeza na vontade,e mantendo vivo o pensamento de conseguir isso, você

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alcançará o fim que se propõe. Trate, isso sim, de sermuito consciente em todos os seus atos, mesmo os maissimples, para poder sentir de perto a realidade de tudoquanto você viver.

– Eu lhe asseguro que não pouparei esforços parame aproximar de tão formosa conquista.

– E quando você notar que o amor de noiva, porexemplo, perde força, debilitado pelas contrariedades quenunca faltam na vida matrimonial, busque em si mesma amanifestação de outras formas de amor. Umas vezes, vocêusará a doçura maternal, que porá fim a alguma brigui-nha intranscendente; outras vezes, será a filha que buscarefúgio no coração do pai; e, enfim, quando for necessário,será também a irmã e a amiga de todos os dias. Eu apren-di, minha filha, que a mulher deve conquistar duas vezeso homem a quem ela une sua vida: a primeira, com seufísico e suas qualidades visíveis; a segunda, com seu espí-rito, com sua inteligência, seu tato e sua abnegação.Infeliz daquela que se deixa levar por outra classe de pen-samentos e vai em busca de outros caminhos!...

Griselda beijou a mãe, como tributo de seu coraçãoao amparo que as palavras dela lhe ofereciam.

Sobre o convés, num transatlântico que sulcava airo-samente as águas em direção ao Velho Mundo, um par derecém-casados evocava com emotiva ternura as passagensrepletas de afeto que fizeram culminar a noite de suas bodas.

Com o olhar fixo no ponto em que os olhos perdem asensação do físico, pareciam empenhados em perscrutar omais além. Mas o mistério da vida oferece matizes tão diferen-

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tes dos que podem os sentidos corporais captar, que não é per-mitido ao homem descobrir, por simples tentativa, as recôndi-tas tonalidades que aparecem no fundo de sua existência.

– Me sinto extasiada – ela expressou, com doçura,recostando a cabeça no ombro amado. – Tanta felicidadenão será, porventura, uma antecipação que Deus nosoutorga, por conta do cumprimento de nossas promessas?

– Pode ser... – ele disse, saindo de sua abstração; eacrescentou: – Mas deixemos estes pensamentos paraquando nos seja dado saldar tão inestimável dívida. A vidanos sorri, Griselda. Correspondamos a seu gesto, mos-trando-nos alegres.

E, oferecendo-lhe o braço, ambos se dirigiram feli-zes ao salão, onde momentos mais tarde se confundiamentre outros pares que dançavam.

Dias e dias se seguiram àquele, entre mar e céu.De Pernambuco, Griselda enviou a sua mãe estas linhas:

“Queridíssima mamãe:“Tivemos até aqui uma viagem esplêndida. Agora

cruzaremos o oceano. A bordo nos sobram distrações e,com freqüência, temos de nos esquivar de compromissospara estarmos a sós.

“Suas recomendações me auxiliaram bastante.Cláudio é boníssimo e correspondeu com toda a delicadezaà minha turbação. Você pode supor com quanta emoçãoagradeci, no íntimo de meu ser, as finezas de seu trato, tãocompreensivo quanto terno. Já na quinta noite de nossocasamento, mal pude ainda trasladar para minha cons-ciência a noção exata da nova realidade que estou vivendo.

“Procuro agradar Cláudio em tudo. Dias atrás,disse-me que apreciava muito o caráter expansivo deSusana Lemery, uma senhorita francesa muito simpática,

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que, com outras pessoas, contribui para fazer mais amenanossa travessia. Desde esse momento, propus-me serassim também para ele; naturalmente que só na medidapermitida a minha modalidade. Acho que não lhe passoudespercebida minha disposição em comprazê-lo, porqueele se mostra contentíssimo. Você não calcula, mamãe,quão feliz me sinto com este primeiro triunfo.

“Meus carinhos para o papai, e diga-lhe que sem-pre o recordo. Falando com Dom Roque, expresse a elemeus afetos. E você, mãe querida, receba um longo e ternoabraço de sua filha.”

Chegando a Dacar, Cláudio sentiu-se um poucoindisposto, e, ao contrário do restante dos passageiros, quese apressaram em descer a terra, viram-se os dois forçadosa permanecer a bordo. O calor naquele dia era sufocante.

Caía a tarde em melancólico crepúsculo quando onavio levantou âncoras. O navegar trouxe um alívio.

Não longe do porto, a temperatura mudou brusca-mente e, contrariando o esperado, um sombrio anúncio detormenta invadiu o ar.

Através do espaço subitamente enegrecido, nuvenscompactas, em rigorosa linha de batalha, avançavam apartir do setentrião, impulsionadas pelo vento que, pormomentos, aumentava sua fúria. Ao encrespamento domar seguiu-se o ímpeto das ondas sucessivas, com aságuas aumentando de volume, como se debaixo delas ofogo cósmico as submetesse a violenta ebulição. O fragorindescritível de um trovão fez vibrar de pronto o prisma daatmosfera, que do infinito projetava tonalidades confusas,devido à refração da luz desfalecente do ocaso.

Minutos depois, crescia a tormenta com força de alu-vião, pondo em grandes apuros a tripulação e os passageiros.

Em seu camarote, aferrada ao braço de Cláudio,que sofria os efeitos do enjôo, Griselda compartilhava da

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ansiedade geral. Nessa aflição passaram a noite e a maiorparte do dia seguinte. Ao cair da tarde, quando o tempo-ral amainou e o mar perdeu sua violência, foi permitidosair ao convés.

Ainda não de todo refeito de seu mal-estar, Cláudiopôde entretanto acompanhar Griselda, que insistiu paraque ele saísse, certa de que se recuperaria ao contato coma calma que começava a reinar. Postados atrás de umadas janelinhas do convés, viram dali a tempestade que seafastava, cujos últimos embates pareciam as rabanadasde um monstro perdido entre nuvens de enxofre e iodo.

Ao cair da noite, no firmamento completamentelimpo, miríades de estrelas voltaram a ocupar seus postosde vigias eternos. Os recém-casados subiram à cobertapara desfrutar a céu aberto a placidez do espetáculo.

Cláudio contemplou aqueles olhos de mirada ruti-lante, suspensos no alto, e pensou na tormenta que acaba-va de aplacar-se, associando essa feliz sensação de bonan-ça que os envolvia com o que ocorre no céu da consciência,quando se amainam as borrascas mentais, desencadeadaspela adversidade e pelo caráter, em arrebatamentos de vio-lência ou desespero. Unia-se à sua mente, talvez por umestado especial de sua alma, a doce sensação de infinitudeque sobrevém ao confundir-se o espírito do homem com anatureza incorpórea da Criação, que intervém nos profun-dos processos da evolução humana. Submerso o olhar nopélago ondulante e incomensurável, parecia-lhe que eleocultava desígnios impenetráveis em seu seio; então, reme-morando passagens de leituras semi-esquecidas, brotaramde seus lábios estas palavras, quase imperceptíveis, queuma brisa arrebatou, para oferecê-las às vagas cobiçosas,como primícias de uma invocação rara e inesperada:

– Ó Atlântida lendária e remota, que guardas nofundo destes abismos o segredo de tua enigmática existên-

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cia! Não emergirás, um dia, trazendo das entranhas cós-micas as magistrais chaves com que os homens haverãode descobrir o enigma do destino?

Seus olhos buscaram os de Griselda. Em seus ros-tos havia expressões indefiníveis, como se por um estra-nho acontecer íntimo se desprendesse, do fundo de suasalmas, um mesmo pensamento de ansiedade em relaçãoaos giros inesperados da sorte.

– Em que está pensando? – Cláudio perguntou,após um instante.

– Há emoções que, traduzidas em palavras, perdemgrande parte de seu encanto... – Griselda disse, com sua-vidade.

Nessa fronteira íntima que demarca os limites domundo interior, cada alma reina soberana. Penetrar nele,sem o consentimento expresso de seu dono, é negado aohomem; e, mesmo contando com ele, terá de limitar-se aoque lhe seja possível compartilhar. Esse mundo torna-seum paraíso quando se sabe cuidar dele, quando se sabeprotegê-lo de toda intromissão estranha; e um infernoquando se permite, faltando às normas que a discriçãoimpõe, que ele fique exposto à avidez alheia.

Dias mais tarde, o navio atracava em Le Havre. Dalipartiram sem demora para Paris, a grande Capital ondetantas vezes se jogou a sorte do mundo.

Por breve tempo, ela seria cenário de sua felicida-de, de suas alegrias e de tudo quanto suas almas fossemcapazes de desfrutar dentro de tão luminoso ambiente.Este lhes era em parte conhecido, pois os dois haviam

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estado ali anteriormente: Griselda, acompanhando seu paiem viagem de estudo; Cláudio, pouco antes de seu ingres-so na universidade. Não obstante, agora tudo lhes parecianovo, como se a felicidade de percorrerem juntos aqueleslocais tivesse a virtude de transformá-los totalmente, con-ferindo-lhes mais novidade e atração.

Discretamente, sem se deixarem invadir pela agita-ção que a miúdo excita a curiosidade do turista, dispuse-ram-se a admirar o que pudessem das inúmeras maravi-lhas da grande cidade, encontrando nisso muitos motivospara que as inquietudes de seus espíritos se manifestas-sem através das mais diversas conjecturas. Sentiram-separticularmente comovidos ao visitar museus e monu-mentos, e todas aquelas obras nas quais o cinzel da histó-ria aparece plasmando o pensamento das grandes figurasque enriqueceram o acervo artístico da humanidade.Olharam e admiraram com emoção estética e evocativaaquele conjunto de luminares que, imunes à passagem dotempo, conquistaram o assombro do mundo inteiro.

– Quanto contrasta todo este passado deslumbran-te com a realidade de um presente envolto em trevas! –Cláudio dizia, certo dia, enquanto percorriam juntos asruas que levavam a seu hotel.

Griselda, que parecia seguir o movimento melancó-lico daquelas reflexões, expressou:

– Eu me sinto verdadeiramente extasiada ante o queestamos vendo. Tudo me parece maravilhoso, mas você nãopercebe, nesta infinita variedade de coisas que nos rodeiam, afalta de algo mais real, mais positivo? Eu diria: a falta de umaarte capaz de modelar o pensamento e o sentir dos homens,tornando-os mais dignos da alta qualidade de sua natureza?

– Eu estava pensando algo parecido... É pena quetantas manifestações do talento humano não tenham con-

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seguido arrancar o homem do obscurantismo e da misériamoral em que está imerso. Faltou sem dúvida uma gran-de inteligência que tornasse possível o entendimento dosseres, favorecendo a emancipação das almas, até levá-lasà sua máxima plenitude consciente.

– Tudo isto pode até ilustrar o homem, pode como-vê-lo, não duvido, mas serve de algo para sua evolução?Por acaso lhe é útil para modificar o rumo de sua vida? Eisaí o triste. Ao admirarmos tantas maravilhas, ao invés deexperimentar a exaltação de nosso juízo sobre as possibi-lidades que nos assistem, parece que nos sentimos, pelocontrário, diminuídos.

– Tem razão, Griselda; essa é a sensação que nossoânimo percebe.

Esses diálogos repetiam-se com freqüência entreambos. Surgiam da intimidade e constituíam a ponte maisapropriada para o mútuo entendimento, pois davam lugara opiniões tão afins e concordantes, que não era demaisesperar o melhor para o futuro de sua felicidade.

De comum acordo, haviam resolvido jantar diaria-mente em diferentes lugares, a fim de conhecerem a vidanoturna de Paris nos locais mais típicos. Cumprindo essepropósito, encontravam-se certa noite num dos restauran-tes mais luxuosos da Cidade-Luz. Cláudio, excelente “gour-met”, em quem Griselda confiava plenamente, lia detida-mente o cardápio. Depois de propor alguns pratos, pediuos mais apetitosos. Lúculo não os teria escolhido melhor.

Nesse momento, um cumprimento reverente do“maître”, dirigido a alguém que acabava de chegar, fê-losvoltar a cabeça. Há movimentos tão expressivos nas pes-soas, que involuntariamente incitam a curiosidade.

Uma jovem belíssima, vestida com apurado gosto esobriedade, acompanhada por uma distinta dama já avan-

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çada em anos, fizera-se presente no restaurante, ocupan-do ambas uma mesa a poucos metros deles.

– Quem são? – Cláudio perguntou ao “maître”, embom francês.

– Americanas, senhor. É estranho ver assenhoras sozinhas; elas habitualmente vêm em com-panhia de um cavalheiro.

O rosto da dama jovem, ao voltar-se sorridente parasua acompanhante, revelou uma expressão muito agradá-vel. Sua presença no salão havia feito Griselda experimen-tar um movimento de curiosidade e, ao mesmo tempo, defranca admiração. Sentia-se contente e conversava alegre-mente.

– Viu como é atraente e com quanta distinção se porta?– De fato, muito atraente – ele respondeu, afetando

indiferença. Griselda estava belíssima nessa noite, com seu ele-

gante vestido negro, de amplo decote, sobre o qual luzia umarica gargantilha de brilhantes; mas aquela jovem, de mara-vilhosa aparência, tinha algo que a destacava dentre todas.

Durante o jantar, Cláudio não pôde resistir à tenta-ção de voltar-se para ela várias vezes, o que deixouGriselda um tanto aborrecida, dissimulando seu desgostocom uma tossezinha muito significativa.

Quando as duas se retiraram, coisa que fizeramcom inesperada pressa, passaram perto do lugar ondeambos se achavam. A mais jovem olhou para Griselda commostras de simpatia, atitude que foi correspondida poresta com certa inibição, pelo estado de turbação em que seachava.

Cláudio seguiu-a com o olhar até que desapareceu,como se algo mais forte que ele o obrigasse a escoltá-ladesse modo.

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Quando, não de todo tranqüilo, se voltou para falarcom Griselda, ela insinuou que desejava retirar-se.Suspeitando que acabava de roçar a sensibilidade de suaterna esposa, não opôs objeções e, já de volta ao quarto dohotel, não demorou a confirmá-lo.

Pela primeira vez, Cláudio via alterado o rosto deGriselda, que, através desse íntimo reclamo, parecia-lhemais adorável que nunca.

– Sinto ter desagradado você – ele lhe disse, cari-nhosamente.

Confusa, ela ocultou o rosto no peito de Cláudio,que a abraçou com uma ternura que dizia muito de seuafã em afugentar aquela nuvenzinha.

Sinceramente preocupado com essa circunstânciaque acabara por inquietar o coração confiado de Griselda,propôs-se adotar, dali por diante, uma atitude capaz deapagar todo o vestígio daquele imprevisto episódio. Nissopensava, quando algo providencial pareceu ocorrer-lhe,porque, aproximando-se alegremente dela, disse:

– Que casualidade, querida! Ontem à noite, lendoalguns ensaios do senhor De Sándara, encontrei algo que,creio, nos explicará esta circunstância; vou mostrar-lheagora mesmo.

Dito isto, foi em busca do livro, lendo numa de suaspáginas: “Em nosso foro íntimo, que é inviolável, verifi-cam-se desde as mais ínfimas até as maiores variações denossa natureza sensível, sem que elas afetem, em muitoscasos, o sentimento que consagramos digno de reinar emnosso coração e em nossa mente. A intervenção alheianem sempre costuma ser oportuna, nesse momento emque se produz tal espécie de metabolismo de nossas emo-ções e sensações mentais, que serve, queira-se ou não, aosfins de nossa nutrição e aperfeiçoamento espiritual.”

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– Minha querida – Cláudio concluiu, – circunstân-cias como a de agora, que poderíamos chamar de acidentesde nossa vida moral, se produzem às vezes involuntaria-mente, devido, é claro, a deficiências que ainda devemosvencer e eliminar.

Suas palavras pareceram confortar Griselda bas-tante, e ela respondeu com sua habitual serenidade:

– Sem dúvida, isso tem relação com o que me ocor-reu, ao não poder dominar a impressão que experimenteiesta noite... Compreendo que me excedi talvez um pou-quinho, e lamento isso, mas a verdade é que me sentiinquieta.

– Oh, não havia por que sentir-se assim! – eleexclamou, acariciando-a com alívio. – Devemos sempre terpresente que há movimentos tão fugazes na intenção, quenem mesmo nós os percebemos, e até seguiríamos alheiosa eles se fatos posteriores não se encarregassem de pô-losem evidência. Por exemplo – acrescentou, com fisionomiaexpressiva e alegre – neste caso, em que me vi diante deconseqüências extremamente adversas.

O encontro de dois belos sorrisos apagou por com-pleto a marca daquele pequeno sobressalto.

Ambos haviam compreendido, mais por intuiçãodo que por via reflexiva, que há sinais na vida – percep-tíveis para a sensibilidade, mas não para os sentidos –que nos podem proteger, preservando-nos de perigosmaiores.

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De Paris foram à Suíça e, dali, à Costa Azul, privi-legiado lugar onde todas as belezas da natureza compare-cem em profusão inigualável.

Cannes, cidade principesca, ofereceu-lhes, com amagnificência de seus palácios e a vida ostentosa de seusclubes e locais de entretenimento, todas as satisfações queo gosto mais refinado é capaz de exigir.

Os dias sucediam-se plácidos e felizes naquele rin-cão do mundo. Quando nada parecia poder abreviá-los,um telegrama recebido inesperadamente lhes informouque Dom Roque estava gravemente enfermo. Isso fê-losresolver pôr fim à viagem e regressar de avião a BuenosAires.

Iniciaram apressadamente as gestões consulares edemais trâmites, com o objetivo de superar os inconve-nientes próprios de tão repentina partida. A viagem seriadois dias mais tarde, o suficiente para concluírem tudo,mas por outro lado teriam pela frente muitas horas depenosa e interminável espera.

Quando voltaram ao hotel, já com noite fechada,estavam extenuados.

Cláudio deixou-se cair sobre o divã, num evidenteestado de excitação. A notícia havia repercutido profunda-mente em seu ânimo.

Griselda tratou de amenizar sua preocupação compalavras animadoras, mas nada parecia ter o poder dereconciliá-lo consigo mesmo.

– Em meio à felicidade que esta viagem nos temproporcionado, quanto eu lamento minha imprevisão! –disse, com amargura. – Devia ter pensado que meu paipoderia piorar e precisar de mim... Que inquietação tre-menda, meu Deus! Que Ele não me negue a ventura devoltar a vê-lo!...

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Tão viva era a dor que suas palavras traduziam,que Griselda, comovida e quiçá estimulada por algumreconfortante pressentimento, expressou:

– Não há de ser mais que uma simples recaída,como as que Dom Roque costuma ter. Você vai ver quenada vai acontecer.

– A bondade de suas palavras, minha querida, trazcerta calma a meu coração, mas não consegue dissiparesta angústia que me atormenta.

– Compreendo muito bem, Cláudio. Existe poracaso algo comparável à vida de nossos pais?

Alguém bateu à porta, nesse mesmo instante.Quase sem saber como, tal a intensidade da

impressão que a oprimia, Griselda viu-se de repente comum segundo telegrama nas mãos.

– Meu Deus!... – murmurou, com crescente aflição,enquanto rasgava temerosa o envelope.

Mas, nem bem leu o conteúdo, soltou uma excla-mação de indescritível alegria:

– Cláudio! Escute!: “Dom Roque fora de perigo.Afetos. Laguna.”

Ela correu até ele e ambos se confundiram numjubiloso abraço.

Novamente, o céu das perspectivas gratas voltava ase mostrar limpo de nuvens.

Entretanto, resolveram não postergar o regresso.Desistiram, porém, de fazer a viagem de avião, à qualGriselda era pouco afeita, e embarcariam no primeiro tran-satlântico que zarpasse de Marselha. A travessia a vapor,como etapa final da viagem de núpcias, compensaria a inter-rupção da permanência em terra, proporcionando-lhes, parasua tranqüilidade, a certeza de que a distância imensa queos separava de Dom Roque iria diminuindo dia após dia.

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Numerosos passageiros, atraídos pela serena bele-za do mar, circulavam naquela tarde pela coberta do navioque conduzia Cláudio e Griselda de regresso. Não era difí-cil descobrir, entre eles, o elegante casal que, repetindo opercurso que parecia haver sido traçado como limite desua excursão, detinha-se de trecho em trecho para obser-var, através de um binóculo, os movimentos de umaembarcação que navegava a regular distância em direçãooposta, talvez rumo à costa que ambos haviam deixado nodia anterior.

Da amurada do barco, Griselda olhava nessemomento para aquele local, quando, girando pausadamen-te a cabeça, focalizou ao acaso, com as lentes, um grupo depessoas que conversavam alegremente, umas de pé eoutras recostadas comodamente em suas cadeiras. A insis-tência com que manteve a focalização denunciava clara-mente que algo muito excepcional acabava de chamar suaatenção. Uma turbação ligeiramente perceptível estendeu-se por seu rosto, belamente iodado pelo ar marinho, e, jásegura do que havia visto, exclamou, sem poder conter-se:

– Olhe quem está ali, Cláudio!... A mesma jovemque vimos em Paris!

– Não pode ser! – ele disse, pegando o binóculo queGriselda lhe estendia; ao confirmar, exclamou por sua vez:– Mas que coincidência!

Se alguém tivesse tido nesse momento o poder deobservar à distância, teria conseguido surpreender a inte-ligência com que se movem os fios do destino, para auxi-liar aqueles que, sem possuírem o domínio da vida men-

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tal, ignoram como certos pensamentos, atuando à margemda vontade, induzem a satisfazer as caprichosas deman-das do instinto. Quantos momentos desagradáveis eingratos o homem poderia evitar para si, caso soubesse,com exata noção da influência invisível que tais pensa-mentos exercem, resguardar-se de suas ciladas, toda vezque eles tentassem desviar seus nobres sentimentos. Anatureza humana é complexa, e, para dominar seus segre-dos, faz-se mister surpreendê-los um a um, quando desua enigmática força se desprendem os elementos vivosque os põem de manifesto. Examinando as debilidadesque afrouxam as resistências do indivíduo, quão bem secompreende o muito que a criatura humana deve avançarem seus afãs de aperfeiçoamento.

Sem poder evitar, Cláudio experimentou o sutilestremecimento que provém de uma variação do ânimo.Não havia dúvida que a presença a bordo daquela jovem,que em sua recordação voltava a mostrar-se particular-mente bela, havia de novo causado nele certa comoção.Entretanto, soube sobrepor-se a isso e, feliz pela vigorosareação, tão logo chegaram ao camarote abraçou Griseldaternamente, dizendo-lhe:

– Minha querida, você é a única mulher que ocupa-rá em meu coração o lugar mais elevado e venerável, por-que saberá fazer com que o sentimento que me une a vocêconstitua uma realidade ao longo de toda a minha vida.

Griselda, observadora e perspicaz, simulando nãocompreender a que obedecia aquela súbita manifestação,assentiu com a cabeça, prodigando-lhe ao mesmo tempoalentadoras palavras.

Nas expressões de um e outro havia tal pureza esinceridade, que seus corações, olvidando a fugaz alteraçãosofrida em seu ritmo, experimentaram inenarrável alegria.

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Ao internar-se nas águas do Atlântico, o grandebarco que os levava de volta à pátria começou a mover-secom o típico subir e descer de ambos os conveses. O céucoberto de nuvens escuras e a presença fugaz de repetidosrelâmpagos anunciavam a proximidade de violentas tem-pestades. Uma forte rajada de vento açoitou de repente aembarcação, sibilando furiosamente sobre a cobertura, eos poucos passageiros que ainda permaneciam no convésdesapareceram rapidamente. À força do vento, que duroupouco, seguiram-se uns momentos de expectativa e, emseguida, começaram a cair grossas gotas, como prelúdioda forte tormenta que se desencadearia depois.

Sensível aos movimentos do mar, Cláudio sentiu-sede pronto indisposto e, em conseqüência disso, impedidode almoçar. Por insistência sua, Griselda aceitou ir sozi-nha ao restaurante, embora houvesse preferido permane-cer no camarote. Protestou suavemente por aquele capri-cho de seu marido, mas, disposta a atendê-lo, despediu-secom o propósito de regressar quanto antes.

Pediu um almoço leve, ao término do qual compro-vou satisfeita que seu relógio havia andado pouco mais demeia hora.

Saía do restaurante, quando, a poucos passos dela,a presença de uma pessoa, que lhe pareceu conhecida, derepente a surpreendeu. “In mente”, acabava de reapresen-tar-se para ela a imagem daquele que a havia assistido emseu inesquecível sonho.

– Como é parecido! – disse consigo.

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Quando entrou em seu camarote, Cláudio dormiasob os efeitos de um calmante. Seu primeiro impulso foi ode despertá-lo, mas se conteve e procurou dominar sozi-nha sua emoção e o tumulto de idéias que lhe ocorriam.Estirou-se vestida no leito, onde pouco a pouco se recupe-rou. Pôde, então, fazer um repasse de seu sonho, tratan-do ao mesmo tempo de fazer deduções; mas não encon-trou suporte algum em que apoiá-las.

“Que recônditos enigmas se ocultam no fundo denossa vida”, perguntou-se ela, “que nos mantêm perplexosquando somos surpreendidos por situações como esta, naqual pareceriam mesclar-se manifestações de dois mundosrelacionados entre si, como se ambos obedecessem a leis ines-crutáveis, que forjam ou mudam os destinos e as vidas, emsucessão interminável de fatos alheios a nossa consciência?”

Olhando Cláudio a dormir, pensou: “Aquilo foi umavisão, e o que vivo hoje é uma realidade.” E resolveu nãodizer-lhe, por enquanto, nada do que se passava com ela.

Lá fora, a chuva havia perdido sua violência e onavio navegava sereno, sob um céu que não tardaria arecobrar sua transparência natural.

No dia seguinte, subiram à coberta e, ali, Griseldaoptou por revelar a Cláudio seu pequeno segredo, que elajá não podia conservar por mais tempo dentro de si.

Assim fez, sem poder evitar certo ar misterioso emostrando preocupação, como se em realidade atribuísseum significado extraordinário ao fato.

– Parece que você está dando exagerada importân-cia a uma simples questão imaginativa – disse ele, umpouco displicente

– Talvez... – ela respondeu, sorrindo.Mas a atitude retraída que a partir de então ela

observou nele, logo a fez compreender que sua espontanei-dade não havia tido a resposta que esperava, tratando com

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afinco, a partir desse momento, de apagar do rosto deCláudio aquela intempestiva sombra, que de nenhummodo se justificava. Obteve tal êxito que, ao final dealguns instantes, os dois conversavam amigavelmente,sem que a mais leve alteração diminuísse sua ventura.

Nas idas e vindas por aquele belíssimo mundo flu-tuante, recreando-se com todo motivo que lhes pudesse ser-vir de distração, tal como fazem aqueles que sabem que otempo lhes sobra para tudo, as preocupações, quando astinham, desapareciam como por encanto, dissipadas pelasexteriorizações do ânimo, afetuosas e ternas. A lembrança deDom Roque surgia-lhes com freqüência, mas as últimas notí-cias recebidas, quase ao saírem de Marselha, mantinham-nos relativamente tranqüilos.

Foi num daqueles felizes dias passados a bordo queGriselda, detendo-se ao passar pelo corredor contíguo aosalão de fumar, apertou nervosamente o braço de Cláudio,instando-o a olhar para uma das pessoas que se encontra-vam ali dentro.

– Não sei bem quem você está mostrando – expressouele, procurando acertar.

– Aquele senhor de roupa clara, Cláudio... Agora eleestá falando com o que está ao lado dele.

– Ah, sim... já estou vendo!... – ele disse. Nesse mesmoinstante, porém, tomado por um pensamento pouco feliz,perguntou a Griselda, com prevenção: – Quer dizer que é omesmo que cruzou com você outro dia?

– O mesmo... – respondeu-lhe ela, sem se alterar.Cláudio voltou-se novamente para o personagem em

questão, cravando nele seus olhos com firmeza, e ela, que semantinha à espera, viu com surpresa que seu rosto se des-contraía, mudando inesperadamente de expressão.

– Griselda!... – ela o ouviu exclamar, radiante. – Sabequem é?... Você não pode imaginar!... É o senhor De Sándara!

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– Oh, não é possível!...– Sim, Griselda, é ele... – e, contendo-se, acrescen-

tou: – Mas será melhor que ele não nos veja, até aparecerum outro momento em que o encontremos só.

Já no camarote, para onde resolveram voltar a fimde comentar o fato, os dois se entreolharam, sem saberemnum primeiro momento o que dizer.

– É inacreditável! – Cláudio exclamou finalmente,entre surpreso e preocupado. – Como explicar tantacasualidade?... Quer que eu lhe diga uma coisa, meuamor?... Numa outra circunstância, o encontro com DeSándara teria sido para mim motivo de grande alegria,mas hoje não é... Sinto dentro de mim algo que eu nãopoderia definir para você, como se a presença dele aqui, abordo, me produzisse temor, mal-estar, incômodo; enfim,não sei o quê...

– É curioso; você sempre me falou dele com entu-siasmo, com afeto, com simpatia. Por que o sobressaltaagora essa inquietude? Será talvez pelo que lhe contei,relacionado com meu sonho?

– Não exatamente... – ele respondeu, fugindo doolhar de sua esposa – mas você há de convir comigo, que-rida, que tudo isso tem algo de estranho e desconcertan-te. Primeiro, a doença de meu pai, obrigando-nos a acele-rar nossa partida; agora, o senhor De Sándara, viajandoconosco no mesmo navio; e, para culminar, o seu sonho.Você não acha que há algo de sugestivo nesses fatos?

– Não digo que não, mas penso que, em se tratan-do do senhor De Sándara, tal fato deverá nos servir maiscomo motivo de alegria do que de preocupação, pois tudoisso deve ter algum significado, embora eu não atine aimaginar qual seja.

– No momento, só consigo ver que sua presença a

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bordo introduz em nossa viagem um motivo especial deinteresse.

– Você vai ver, Cláudio, que algo de bom vai resul-tar desse encontro, ainda que nos pareça um tanto estra-nho.

Ouviu-se anunciar, lá fora, a hora do almoço.Griselda, diante do espelho, retocou ligeiramente

os cabelos e, depois de realçar com hábil traço a bonitalinha dos lábios, deu por terminada a toalete, não semantes solicitar, com faceirice, a aprovação de Cláudio, quea observava.

Pouco depois, ambos entravam no salão do restau-rante, com uma expectativa que, seguramente, haveria dese acalmar ao produzir-se o encontro com o amigo. Masisso não aconteceu, pois não o viram em parte alguma.

– Deve ter almoçado em seu camarote – Arribillagapresumiu.

– Talvez. Mas que decepção! – Griselda disse, sentida.– Seguindo a ordem dos acontecimentos, devere-

mos deixar que o encontro se produza naturalmente, vocênão acha?

– Também penso que assim será melhor.Entretanto, nem à tarde nem à noite aconteceu o que

eles esperavam.

No dia seguinte, à tarde, Cláudio conversava com umcompanheiro de viagem nas proximidades do jardim-de-inverno, quando viu o senhor De Sándara dirigir-se para ali.Com indescritível surpresa, divisou junto dele a mesmajovem que havia visto em Paris e sua distinta acompanhante.

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Deixou seu amigo e, da porta por onde eles acaba-vam de passar, pôde observar que se detinham no extre-mo oposto do recinto, com a aparente intenção de seassentarem. Logo comprovou, no entanto, que não estavacerto, porque as damas saudaram De Sándara e se afas-taram em direção à saída mais próxima. Evidentemente,elas tinham ido até ali com o propósito de acompanhá-lo,e, a julgar pela familiaridade com que se tratavam,Cláudio já não teve dúvida de que devia existir entre elesalgum laço afetivo.

Ao final dessas conjecturas, deu-se conta de que aoportunidade de fazer-se presente ante seu amigo haviachegado, pois este, acomodado tranqüilamente numa pol-trona, parecia não ter nesse momento outra preocupaçãoque a de deleitar-se saboreando um charuto.

Sem pensar mais, encaminhou-se até ele.– Senhor De Sándara! – disse, com muito respeito.

– É possível?!– Oh, Arribillaga! – expressou ele, por seu turno,

pondo-se de pé e apertando-lhe efusivamente a mão. –Que prazer imenso tenho em vê-lo!

– Na verdade, senhor De Sándara, é inacreditávelque este encontro tenha demorado tanto. Com a vontadeque eu tinha de voltar a vê-lo!

Em seguida, contou-lhe que fazia somente doisdias que tinha conhecimento de sua presença a bordo.

– Eu, ao contrário, já sabia muito antes... – DeSándara lhe disse. – Pela lista de passageiros, inteirei-meem Marselha de seu embarque. Entretanto, como vocêviaja em lua-de-mel, não considerei prudente roubar-lheum só minuto.

– Apesar disso, o senhor nos teria dado uma enor-me alegria. Não pode calcular o desejo de minha esposa

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por conhecê-lo. Minhas repetidas alusões a sua pessoadespertaram em muito seu interesse.

– Espero que sua esposa, quando me caiba o pra-zer de ser apresentado a ela, me conceda a honra de nãose decepcionar. As versões sobre as pessoas, por precisasque pareçam, nem sempre coincidem exatamente com arealidade.

– Não neste caso, em que a realidade haverá de cor-responder com toda a segurança ao que informei.

Desde que De Sándara conhecera Arribillaga emBuenos Aires, não deixou de recordá-lo. Havia observadonele certas condições requeridas para ser iniciado na ciên-cia dos conhecimentos causais que ele dominava, e dessaobservação elaborou projetos a respeito dele, para o casode as circunstâncias – que não duvidava se promoveriam– voltarem a pô-los em contato.

Conversaram em seguida sobre a viagem, e Cláudiorelatou o motivo que antecipara seu regresso, inteirando-se, por outro lado, de que seu amigo não se dirigia aBuenos Aires, mas sim ao Rio, onde passaria duas sema-nas antes de voltar ao México. Lamentou a notícia, que oprivava de chegarem juntos, como havia pensado, ao lugarde destino, e tão logo se ofereceu a oportunidade, desejo-so de conhecer a ponta do fio de um assunto que o intri-gava, inquiriu:

– O senhor viaja só?De Sándara, que parecia esperar a pergunta, res-

pondeu:– Viajo com dois familiares meus.– Trata-se por acaso das damas que o acompanha-

vam ao entrar? – Cláudio perguntou, com vivacidade.– Exatamente. A de mais idade é minha tia, e a

jovem, que você viu com ela, sua filha adotiva. O nome de

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minha tia é Cristina De Sándara, viúva do senhorLandívar. Trata-se de uma pessoa a quem estou unido porum grande afeto.

No rosto de Cláudio repontou uma expressão assazsugestiva, dessas que se adiantam ao pensamento emfranco arranco comunicativo, e em seguida ele relatou aseu amigo a série de surpresas que haviam tido durante aviagem, às quais se juntava, agora, a de saber que aque-las damas tinham um vínculo familiar com ele.

Pareceu-lhe de imediato que De Sándara não cor-respondia a suas palavras com a mesma efusividade queele punha nas suas, e optou, então, por mudar deassunto.

– O senhor há pouco dizia, senhor De Sándara, queesta viagem que acaba de realizar à Europa foi feita pormero turismo...

– De fato, amigo Arribillaga. Ressentido o físicopelos cuidados às vezes extremos que temos com o espíri-to, impõe-se de quando em quando que voltemos a vistapara ele, a fim de fazer-lhe alguns agrados e levá-lo a pas-sear.

Um silêncio seguiu-se às suas palavras, ditas emtom amável.

Pensativo, De Sándara parecia consultar algo a simesmo. Impenetrável e reservado por natureza, instava-odesta vez, com acentuada insistência, o pensamento deabrir por uns instantes as portas de sua intimidade aojovem Arribillaga. Seu propósito era conduzi-lo através deum dos trechos de sua vida, para que ele pudesse apreciarde perto o fundo moral de seu modo de ser.

O afeto que havia tomado por ele, desde que oconhecera, reativado pela circunstância que os reunianovamente, levou-o a confiar na possibilidade de que, à

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semelhança de um filho, ele pudesse converter-se um diaem fiel depositário de suas idéias.

Fixando os olhos em Cláudio, que aguardava atentosua palavra, disse:

– A filha adotiva de minha tia, que se chama Mariné,reúne todas as condições que distinguem a alma de umamulher. Desde menina, ela teve uma acentuada inclinação air muito além do juízo incipiente da idade, e foi precisamenteao sabor dessa inclinação que ela se mostrou, sempre, com amais ampla disposição para aprender tudo o que eu lhe ensi-nava. Seu avô era primo do finado marido de minha tia. Eleveio da Espanha, seu país natal, para a Argentina na qualida-de de vice-cônsul. Ali nasceu o pai de Mariné, um moço inte-ligente, porém daqueles que empreendem mil coisas sem ter-minar nenhuma... Mais de uma vez, viu-se em apuros parapagar os gastos que a família lhe ocasionava. Andarilho e devida um pouco dissipada, não havia posto a cabeça no lugar,como se diz comumente, quando seu pai faleceu. Tal aconte-cimento o deixou muito deprimido, e desde então começou aandar mais direito, empregando-se como viajante numaimportante firma comercial de Buenos Aires. Certo dia, saiu apasseio com sua esposa e sua filha para um lugar distante daCapital. De regresso, pôs seu carro a toda a velocidade e,quando nada fazia prever uma desgraça, chocou-se brusca-mente contra outro veículo, com tão fatais conseqüências, queapenas Mariné sobreviveu à catástrofe. Sua salvação se deveuao fato feliz de ela ter sido lançada por uma janela, saindo ape-nas com algumas contusões. Foi difícil consolar a pobre órfã,que então tinha só nove anos. Minha tia Cristina era suaúnica parenta. Já viúva nessa época, e com muito boa situa-ção econômica, tomou a menina a seu cargo e a adotou comofilha. Mariné cresceu cercada de grande afeto.

“Eu as visitava com freqüência”, De Sándara conti-nuou dizendo. ”Nesse mesmo ano, meu pai passou a residir

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no México, como agente de uma grande empresa naval,casando-se lá em segundas núpcias. Fiquei, pois, só, cir-cunstância que minha tia aproveitou para pedir que fosseviver com elas, o que fiz pouco depois. Tanto me encanta-va o caráter bondoso e alegre da pequena, que tomei porela um grande afeto. Sua inteligência, pouco comum,absorvia com facilidade todo conhecimento que se propu-nha alcançar, deixando entrever, enquanto crescia, quesuas aspirações não se detinham nos muros que cercamas possibilidades comuns.

“Mariné já era moça, quando tive que me ausentar,indo ao México para tomar posse dos bens que meu pai medeixara ao morrer. Pude ali combinar com a viúva que pas-sasse para meu domínio a propriedade que tinham naquelacidade, pois havia um motivo para tal. O motivo era minhadeterminação de viver lá durante um tempo, já que isso meera indispensável para levar a cabo alguns estudos e investi-gações que devia realizar. Habituado à companhia de minhatia e da menina, instei com aquela para que compartilhassemde minha casa. Fazê-la decidir-se por semelhante mudançame custou muitos esforços, mas finalmente ela cedeu e,desde então, estamos radicados nessa parte do mundo.”

– O México lhe agrada mais do que a Argentina?– Como é natural, predomina em mim a atração por

minha pátria – De Sándara respondeu, – mas isso não meimpede de reconhecer que o México possui encantos epeculiaridades que cativam com força irresistível. Poroutra parte, cada país, por sua colocação geográfica e suaadequação telúrica, tem em sua composição física e aní-mica algo a cujo contato nosso ser responde por afinida-de, e isso é, sem dúvida, o que habilita o homem a vivercom gosto nos mais diversos pontos da terra.

A essas palavras seguiu-se um silêncio, queArribillaga interrompeu para expressar:

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– Muito interessante seu relato, senhor DeSándara... Eu o considero uma demonstração de confian-ça de sua parte, e estou muito agradecido por isso.

De Sándara continuou:– Como lhe dizia, tudo se combinou admiravelmente,

e isso me permitiu triplicar os esforços empregados no pros-seguimento de meus projetos. Mariné foi para mim, desdeque nos mudamos para o México, uma eficaz colaboradora,e aqui devo destacar sua natureza dócil e compreensiva, quetanto contribuiu para que a mais perfeita harmonia me cer-casse. Com os anos, acentuou-se nela o gosto por conhecertudo o que diz respeito à vida do espírito; um gosto que aajudou a assimilar com proveito tudo o que eu punha a seualcance. Isso a aproximou muito de mim, e a tal fato atribuí-mos, num primeiro momento, a razão de ela preferir minhacompanhia à de outros jovens de sua idade; digo num pri-meiro momento, porque depois as circunstâncias nos enca-minharam para outras conclusões. Mariné, a quem você viuocasionalmente, é hoje minha noiva. Talvez seja isso umaconseqüência lógica de duas vidas que correm paralelas,sustentadas pelos mesmos ideais... Eis aí, amigo Arribillaga,uma síntese do que eu queria que você soubesse.

De Sándara parecia ter chegado ao fim de suaexposição, mas ainda acrescentou:

– Sempre dei a Mariné a mais ampla liberdade paraque dispusesse de seu coração. Nunca lhe faltaram festasnem diversões; pelo contrário, procurei proporcionar-lhetodas as oportunidades para que não se visse privada doincentivo que significa, para qualquer mulher, o fato de sercortejada. Essa condescendência de minha parte, eu amantive inalterada através dos anos, a fim de que fosse elamesma quem decidisse sobre seu destino.

– Já está claro que ninguém pôde vencê-lo emsemelhante “handicap” – disse Cláudio, procurando sorrir.

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Passado um instante, ousou perguntar:– Quando o senhor esteve em Buenos Aires, a

senhorita Mariné o acompanhava?– Sim, amigo Arribillaga. Fiz aquela viagem também

em companhia dela e de minha tia. E a teria apresentadoa você, se não soubesse que estava comprometido.Naquela época, Mariné era livre...

De Sándara acabava de surpreender em Cláudio aacirrada luta de dois pensamentos rivais. Isso trouxe àsua memória o sugestivo conto em que a mulher grávidasente, em suas entranhas, o rude combate de duas crian-ças inimigas. Querendo evitar a seu amigo transe análogoem seus sentimentos, expressou:

– Não vá se lamentar, por favor, porque seria incor-rer numa ingratidão. Por suas próprias referências, presu-mo que sua esposa é uma mulher encantadora, e nãoduvido que ela saberá fazê-lo muito feliz. Você não pensaa mesma coisa?

– Oh, sim! Mas é claro que sim!... – Cláudio excla-mou, sufocado, procurando voltar rapidamente ao estadonormal.

– Pois bem, meu amigo, acabo de mostrar a vocêuma das criaturas mais bem dotadas pela natureza, e essacriatura é a que vou ter o prazer de apresentar-lhe dentroem pouco.

Ao dizer isso, De Sándara deixou seu assento, comose estivesse disposto a pôr fim àquele momento de conversa.

– Se lhe parece bem – propôs a Cláudio, – dentro demeia hora poderíamos nos encontrar de novo no salão.

– Sozinhos?Batendo-lhe suavemente nas costas, seu interlocu-

tor sorriu e respondeu:– Não, com as damas.

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Quando Cláudio entrou em seu camarote, o ruídoda fechadura despertou Griselda, que havia adormecidoenquanto lia.

– Minha querida! – disse com alvoroço, indo até ela.– O que está acontecendo?!– O que tinha de acontecer. Encontrei-me com o

senhor De Sándara!– Oh, como me alegro! Ele se surpreendeu muito ao

ver você? – Demonstrou tanto prazer quanto eu. Estivemos

conversando um longo tempo; por isso demorei. Sabequem o acompanha?

– Quem?– Você terá uma grande surpresa, já vou prevenin-

do.– Que tipo de surpresa? Diga!– Lembra-se das duas desconhecidas que vimos em

Paris, e que viajam neste mesmo navio?– Não pode ser!– Mas é. Você se convencerá disso, e muito depres-

sa. Sabe que De Sándara nos convidou para estarmos jun-tos nesta mesma tarde?

– Verdade?! Oh, que notícia mais grata, e que emo-cionante!

A passagem por sua mente de um pensamento dereceio conteve, nesse mesmo momento, sua alegria, masela livrou-se dele instantaneamente e, fixando em Cláudioseus olhos, de luminosa transparência, perguntou:

– Eles são parentes?

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– Oh, quase, quase que você acerta!Cláudio fez para Griselda, em seguida, um breve rela-

to do que havia escutado de De Sándara e, percebendo queestavam se atrasando, apressou-a para que se aprontasse.

Despreocupada agora e feliz, ela tirou seu penhoare começou apressadamente a se vestir.

– Vou tentar estar pronta o mais rápido possível,querido, mas talvez não dê tempo... Se você acha que ficabem, poderia ir primeiro e me desculpar, pois não gostariaque chegássemos os dois atrasados.

– Estou vendo que não há outra saída... – ele repli-cou, fingindo reclamação.

Arrumou cuidadosamente os detalhes de sua gra-vata, beijou Griselda e despediu-se alegremente até dali apouco, quando voltaria para buscá-la.

Arribillaga foi o primeiro a fazer-se presente nolugar combinado. Pouco depois chegou De Sándara.

Ao se verem sem suas acompanhantes, entreolha-ram-se suspeitando o motivo, o que provocou a espontâ-nea gargalhada de ambos, enquanto apresentavam asescusas pela ausência das damas.

– A mulher demora mais tempo em aprovar seupenteado do que em vestir-se – De Sándara manifestou.

– É coisa muito compreensível, já que, segundo ela,dessa aprovação depende o tornar-se agradável aos olhosdaqueles que a contemplam – opinou Cláudio.

A satisfação que ele sentia, devido ao fato de seachar novamente em companhia de seu amigo, levou-o ase expressar uma vez mais, para manifestar cortesmenteque atribuía esse fato a influências de sua boa estrela.

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– As estrelas são boas, de fato, quando têm alguminteresse particular em servir ao terráqueo de sua predile-ção – De Sándara respondeu.

– E que interesse particular as estrelas podem terpor nós? – inquiriu Cláudio.

– Algum, sem dúvida, pois você acaba de conceder-lhes a honra de intervir nessa circunstância...

A sutileza confundiu Cláudio, que não conseguiudeixar de enrubescer.

– Não dê nenhuma importância a isso – apressou-se em dizer De Sándara, sem deixar transparecer que ohavia percebido.

– Tenho de dar a importância que merece! –Cláudio ponderou, trocando rapidamente sua confusãopor um gesto franco e jovial. – Isso nos acontece por levar-mos idéias metidas na mente durante anos, sem jamaisanalisá-las.

– Não terá sido por falta de tempo, não é verdade?Houve um ligeiro silêncio, após o qual Arribillaga

expressou, sorridente, trocando um olhar de inteligênciacom seu interlocutor:

– Tratarei de assimilar a lição!E, em seguida, acrescentou:– Se me permite, senhor De Sándara, vou me

ausentar por um instante, para ir em busca de minhaesposa.

Quando regressou, dessa vez acompanhado,De Sándara ainda permanecia só, mas quase aomesmo tempo compareceram à sala Mariné e asenhora Cristina de Landívar, que logo se incorpora-ram ao grupo, e – coisa muito natural – a primeiracoisa de que se falou foi da coincidência daqueleencontro.

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Vistos agora de perto, os traços fisionômicos deMariné mostravam-se envoltos em certo ar de temperan-ça e seriedade, que embelezava seus anos juvenis. Paraisso contribuía, sem dúvida, a mirada de seus belosolhos, negros e de longos cílios, através dos quaisluziam as bondades de sua finíssima natureza. Em gra-ciosos anéis negros e brilhantes, seus cabelos ornavam-lhe o rosto, de tez nacarada e linhas harmônicas. Seucorpo era esguio, esbelto, proporcionado; e seu trato,muito agradável.

A senhora Landívar, em quem se uniam distinção esimplicidade, era dessas pessoas que, sem esforço algum,conseguem granjear rapidamente simpatias e afetos. Aseu lado, certamente não se notavam os muitos anos quetinha vivido, tal a sua jovialidade, seu otimismo. Por outraparte, seu físico mantinha-se vigoroso e conservava aindasinais da grande beleza que devia ter possuído quandojovem. Sua face pálida, ovalada, bastante expressiva,guardava muita harmonia com seus cabelos brancos evolumosos, penteados com esmero. Por uma condiçãomuito sua, logo deixou sentir, nos que agora a cercavam,os efeitos de seu caráter sociável, divertido, que movia àexpansão.

De Sándara punha também seu toque de interesse,ao substanciar em todo momento a conversa com suasoportunas intervenções, por pueril que às vezes ela se tor-nasse. E sem que ninguém deixasse de contribuir com suaporção de habilidade e talento, logo reinou no seio daque-la reunião, em que se agrupavam pessoas que nunca sehaviam visto, a mais franca cordialidade.

Olhando sorridente para Griselda e Mariné, queconversavam entre si com mostras de agrado, De Sándarasurpreendeu-as com estas palavras:

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– Vendo-as assim, juntas, qualquer um diria quesão filhas de uma mesma madrepérola...

– Disse muito bem! – Cristina opinou. – Duas péro-las que não estão enlaçadas num mesmo colar, mas que oacaso pareceria ter reunido sob o signo da amizade!

– A comparação é amável e nós agradecemos – res-pondeu com graciosidade Mariné, fazendo uma inclinaçãode cabeça.

– E, em particular, as ilações que a senhora fez sur-gir em nosso favor – disse Griselda, por sua vez.

Para ela, bem como para Cláudio Arribillaga, eraduplamente grato o acolhimento que nesse momento lhesdispensavam. Não se tratava de uma simples vinculação amais, dessas que a convivência oferece com tanta freqüên-cia. Não; para eles, esse fato assumia contornos de umacontecimento especial e, segundo a avaliação deGriselda, propiciaria talvez a oportunidade de satisfazerinquietudes há muito tempo contidas.

Quiçá fosse o próprio rosto dela, ao denunciar esseíntimo anelo, ou o sentido de alguma pergunta ali formu-lada, que em determinado momento levou De Sándara aexpressar:

– Não há dúvida que os seres humanos andam àstontas pelo mundo, até que encontram, à semelhança dosastros, a órbita do grande espírito precursor de rumos edestinos... Até então, devem vagar pela terra como aquelesvagam pelo espaço, em busca dos elementos que, aoserem integrados, tornarão propício seu advento emoutras formas mais elevadas de existir.

– O senhor se refere à teoria da sobrevivência daalma? – perguntou Griselda, que o seguia com atenção.

– Não precisamente. Para mim, a única sobrevivên-cia que em princípio deve interessar ao homem é a que ele

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pode realizar em vida, renascendo em si mesmo, após asuperação em grau máximo de seu velho ser, desse autô-mato, eu diria, que vive em cada indivíduo humano quan-do o mecanismo da inteligência ainda não foi aperfeiçoadono desenvolvimento da consciência, que é a que permite alivre função do espírito.

– Talvez eu não tenha compreendido bem, senhorDe Sándara, o sentido da palavra “autômato”, com a qualo senhor se referiu ao comum das pessoas – Cláudio obje-tou. – Creio que em todos nós existe, naturalmente que emmaior ou menor grau, um fundo de responsabilidade queobriga a medir nossos pensamentos e ações. Isso não éincumbência direta da consciência?

– A consciência, amigo Arribillaga, não tem a meujuízo o sentido que correntemente lhe é atribuído.Considero que ela, quando se acha de posse dos conheci-mentos que a habilitam para seu alto encargo, constitui ogoverno central de nosso mundo interior. Nada do que neleacontece pode, então, permanecer alheio a sua interven-ção e aquiescência. Serei mais explícito: se com minhaconsciência eu regesse meus pensamentos e atos, de talsorte que em todo instante estivesse a par dos progressosde minhas idéias e dos movimentos operados em mim,destinados a propiciar tudo o que me propusesse a fazerno curso dos dias, não estaria levando a cabo algo que nãoestá plasmado na generalidade? Apesar das referências daciência e da filosofia, nada claras a respeito, há, pois, umfato evidente, uma realidade inobjetável, e é que se vivemais automática do que conscientemente.

– Em virtude de que estímulo o homem então semoveria?

– De estímulos psicológicos e sensíveis, umasvezes, e de estímulos provenientes do instinto, outras, pois

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é sabido que tanto a sensibilidade quanto o instinto cos-tumam suprir a consciência quando agem espontanea-mente, impulsionados por exigências naturais de diversaíndole. Mas o homem também se move, e de forma maispositiva, por influência dos estímulos que surgem dosconhecimentos que sua inteligência acumula, embora sedeva notar que não é em todos os casos que eles lhe per-mitem ter total certeza sobre a intervenção da consciência,já que os conhecimentos, sendo mantidos no plano teóri-co, nem sempre se movem e se manifestam com o consen-timento dela.

– Que meio seguro haveria, segundo o senhor, paralivrar o homem de ser surpreendido por essa enganosa ilu-são conceitual, que implica, de certo modo, uma presunção?

– O meio existe, mas você concordará comigo queseria muito difícil realizar tal prodígio mediante a esporádi-ca ajuda de um conselho dito assim, de passagem... Oscâmbios reais não se produzem, meu amigo, por meros aci-dentes do acaso; produzem-se após um cultivo profundo,tenaz, coerente, do entendimento. Não devemos esquecerque o homem acostuma sua vida a uma rotina, a um“modus vivendi” íntimo e social que ele não gosta de alte-rar. Daí que o vejamos resistir tenazmente aos câmbiosque, de um modo ou de outro, alteram sua forma de viver.Você não se recorda de haver observado com quanta fre-qüência ele experimenta a sensação de que tudo lhe falta,quando alguma contingência interrompe essa rotina, ouquando são alteradas suas preferências consuetudinárias?

– Por muito que tais câmbios custem – Griseldaexpressou, com encantadora convicção, – entendo que éde todo necessário que o homem saia desses estados, con-quistando formas mais venturosas de existir. Será issodifícil, senhor De Sándara? Quando vibra na alma o anelode enriquecer espiritualmente a vida, não creio que seja...

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– A senhora disse bem. Mas caberia ainda acres-centar que a consciência, em se falando dela com proprie-dade, é sempre fonte de atividade e não deve, nem por uminstante, permanecer à margem daquilo a que o homemaspira, nem daquilo que ele pensa ou faz.

– O senhor pode ter certeza de que a advertência nãopassou despercebida – respondeu Griselda, com agrado.

– O senhor há de supor – tornou Cláudio – que nãome será muito agradável conduzir-me, daqui por diante,como um autômato.

– Nem a mim – Griselda apoiou, – embora seja difí-cil para nós evitá-lo, se o senhor De Sándara não vem emnossa ajuda.

– Para que vocês vejam quanta satisfação tenhonisso, começarei por expressar-lhes, como simples suges-tão, que os anelos em processo de realização, tal como asplantas de estufa, não devem ser expostos ao exterior.Mais adiante, poderão eles crescer viçosos ao ar e ao sol,mas deve-se antes aclimatá-los pouco a pouco. Isso signi-fica que os conhecimentos que lhes ofereço, cuja virtude éconverter em realidade esses anelos, requerem ser zelosa-mente guardados no âmbito interno individual. Pô-los aoalcance da curiosidade alheia não é conveniente, enquan-to não passarem a fazer parte inseparável da vida.

Ao chegar a este ponto, De Sándara fez a seus ami-gos um amável convite:

– Se vocês não se opõem, daremos agora atenção auns pratos que encomendei de propósito para comemorareste encontro.

O convite produziu regozijo. Era evidente quenaqueles corações existia um franco anelo de se fazeremmais íntimos, e essa circunstância se encarregaria, semdúvida, de levar a um terreno mais familiar o que aindaestava sujeito à cerimônia das fórmulas sociais.

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Precedidos por Griselda e Mariné, encaminharam-se para o restaurante, os últimos mais lentamente, dandooportunidade a que Cristina explanasse sobre a arte deconservar-se jovem, tema que constituía sua debilidade.

Poucas vezes De Sándara se havia mostrado aCláudio tão comunicativo e jovial como naquela noite,durante o jantar. Conversou alegremente, propiciando, comsua expansividade, a de seus convidados. Era perceptívelque, nos ágeis volteios que imprimia a suas frases, haviauma deliberada intenção de sondar a alma dos jovens espo-sos. Encontrava-se diante de duas psicologias diferentes,que se complementavam, não obstante, de forma admirável.Observava em Cláudio uma grande vivacidade mental e umatendência, levemente acentuada, a exceder com sua imagi-nação os limites da realidade. Facilmente sugestionável, eainda sem a maturidade do homem moldado verdadeira-mente nas lutas da vida, oferecia alvos que podiam ser atin-gidos pelos imprevistos, se pensamentos de sólida contextu-ra não o auxiliassem e não o conduzissem por caminhoseguro, ao encontro das defesas internas que lhe faltavam.Griselda era de natureza sensível, porém forte. Ninguém afaria mudar o rumo de suas convicções, nem suas forças fra-quejariam ante as grandes dificuldades da vida. Sua inteli-gência mostrava formosas perspectivas, favorecidas peloinfluxo de qualidades internas que punham seu tom de har-monia e beleza em seu conjunto psicológico e espiritual.

Não escapou ao senhor De Sándara o menor deta-lhe. Acabava de formar uma clara idéia da realidade des-ses dois seres que, buscando o encaminhamento espiri-tual de suas vidas, se punham ao amparo de seus conhe-cimentos e experiência.

De volta ao salão, onde se serviram de café e licores,a senhora Landívar, seguindo seu costume de entregar-se

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bem mais cedo ao descanso, não tardou em despedir-se,sendo acompanhada até seu camarote pelas duas jovens.

Cláudio viu-as sair, enquanto fumava silenciosa-mente um cigarro. Em sua galeria interior, onde a almaagrupa as vivências que mais a tenham impressionado,havia uma recordação, uma imagem que acabava de sofreresplendorosa transformação: a de Mariné, diante de quemseus sentidos haviam chegado a perturbar-se, e a quem,após uma luta íntima com sua natureza varonil, ele agoraadmirava em toda a sua dignidade e virtude. Ante ela, antea fortaleza espiritual que realçava extraordinariamenteseus encantos físicos, Cláudio experimentou uma sensa-ção desconhecida até então: a substituição enérgica de umpensamento de cobiça ou passional por outro, que tomasua força invencível do belo e do verdadeiro. Ao operar-seessa transição, projetou-se sobre seu juízo o rubor da cen-sura, e subitamente a figura do amigo surgiu em suarecordação, como ativo executor daquela transformação,ao ministrar-lhe uma lição que ele jamais esqueceria.

Próximo dele, De Sándara parecia meditar. Depoisde alguns instantes, umas palavras pronunciadas porCláudio, interrompendo a pausa, mostraram-lhe que estese dispunha a prosseguir a conversa, o que o moveu,então, a fazer novas sondagens, desta vez mais diretas,sobre seus projetos futuros.

Cláudio não conseguiu enunciá-los com a clarezaprópria de quem sabe ao certo o que quer, mas isso bas-tou para que De Sándara, considerando-os com maior pre-cisão do que seu dono, lhe fizesse várias proposições,todas elas com o objetivo de guiá-lo até a saída do labirin-to constituído pelos caminhos ilusórios que o ser humanotantas vezes percorre, tomando-os por reais, sem conse-guir jamais satisfazer suas aspirações.

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– Se o que o senhor me assinala é imprescindívelpara alcançar esse mundo paradisíaco, reservado aosespíritos abnegados, fortes e livres, não titubearei emseguir seu conselho, senhor De Sándara.

– E não lhe será difícil. Mas recorde sempre quenão é com o corpo que se penetra nele, mas sim com oespírito, com essa parte do ser que, acima do físico, edesde que atendida e dirigida, pode desfrutar as inestimá-veis prerrogativas oferecidas pelas freqüentes internaçõesnesse meio.

Cláudio parecia absorver com seu entendimento,uma a uma, todas aquelas palavras.

Mariné e Griselda, enquanto isso, depois de deixa-rem Cristina, haviam saído para o convés. Surpreendidas,porém, por uma inesperada queda da temperatura, nãotardaram em buscar abrigo no interior do navio.

Pouco tempo passou e já retiravam seus casacos,colocando-os sobre os ombros. Reconfortadas plenamentepela mudança, as faces em plena reação pelo frio que lheshavia fustigado o rosto, iniciaram com passo lento oregresso ao salão. Estava evidente que não tinham pressa.

Chegaram a confiar-se mutuamente as trajetóriasde suas vidas, detendo-se especialmente nas passagensmais recentes, nas quais predominavam as experiênciassentimentais e as emoções.

A expressão inconfundível que o conhecimentoenseja, ao permitir o lúcido relato dos fatos que confor-mam a existência, exaltava aos olhos de Griselda a figuraexemplar de Mariné. A verdadeira identidade desta mani-festava-se abertamente nesses instantes de íntima expan-são, mostrando-lhe as excelências de uma evolução queestava muito acima da sua. As referências sobre a belezaindescritível dos conhecimentos que De Sándara lhe puse-

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ra ao alcance e sua identificação com os pensamentos epreocupações dele, assim como o entusiasmo com que elacompartilhava seus afãs altruístas, prontamente mostra-ram a Griselda que ambas viviam em dois mundos dife-rentes: Mariné, no mundo que ela entrevira entre suspirose sonhos; e ela, no dos agrados e das alternativas comuns.Quanta distância existia entre as alturas espirituaisalcançadas por sua bela amiga e o pouco que ela haviaconseguido escalar! Quanto lhe faltava para superar suarealidade, uma realidade que não havia chegado nunca asatisfazê-la plenamente! Mas isso, longe de causar-lhetristeza, a estimulava, pois pressentia que a amizade deMariné ia trazer-lhe grandes benefícios nesse sentido. Porfim, via claramente o caminho que deveria tomar. Não per-deria mais tempo nos tateamentos e vacilações da incerte-za: uma brecha se abria agora por entre a bruma queenvolvia sua vida, e dela surgia para sua alma um raio deluz, que por momentos se tornava mais promissor.

Tão submersa estava Griselda nesses pensamen-tos, que Mariné, percebendo-o, expressou:

– Você parece preocupada...– Pensava em suas palavras. Escutando-a, senti

nascer em mim a esperança de viver uma vida assim...como a que você acaba de me descrever...

– Uma esperança plenamente realizável, Griselda.Queira isso como eu quis, todos os dias com a mesmaintensidade, e você verá quão prontamente seus desejosserão cumpridos.

Chegando já ao lugar onde De Sándara e Cláudio seencontravam, as duas puseram ponto final à conversa.

– Demoramos muito? – Mariné perguntou.– Nada mais que o indispensável para nos permitir

tomar três xícaras de café – respondeu De Sándara, sorrindo.

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– Tanto?! – exclamou ela, incrédula, enquanto seinclinava para confirmar no relógio dele. – Uma hora!... Éo que acontece quando os minutos são bem aproveitados:as horas não contam.

– O mesmo digo eu – Cláudio manifestou. – É comose discretamente se esfumassem diante de nossos olhos,para não interromperem nossa ventura com sua persegui-ção monótona e implacável.

Quando, instantes mais tarde, após se despedi-rem dos recém-casados, De Sándara se afastou comMariné em direção aos respectivos camarotes, pôdeavaliar o grau de estima que Griselda havia inspiradonela.

– Me agrada que você tenha encontrado emGriselda uma amiga ideal – disse. – Isso fará com quepossa partilhar comigo a felicidade de ajudá-los a avançarpelo caminho das altas realizações humanas, que tãoacima estão das apetências comuns.

De Sándara beijou a mão que Mariné lhe esten-dia e, desejando-se mutuamente um sono feliz, separa-ram-se.

Em seus aposentos, Cláudio e Griselda, inibidosde falar pela ventura que comovia seus corações, nãodemoraram em extravasar seus particulares estados dealma, comunicando um ao outro suas impressões e emo-ções, mescladas por vezes com as mais ternas e delica-das confidências. Com as mãos entrelaçadas e, nosolhos, a doce expressão do impronunciável, nunca comoagora haviam sentido a felicidade de estar unidos; talveznunca, tampouco, tivessem experimentado igual segu-rança ante o futuro, para o qual olhavam agora comrenovada confiança.

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Em seu camarote, De Sándara não se deitou.Trocou suas roupas por um confortável robe e, sentando-se à mesa em que tinha à disposição seu material de tra-balho, pegou da caneta e fê-la deslizar sem pausa sobre asbrancas folhas de papel, que pareciam estar esperandopor ele. Amanhecia quando, vencido pelo sono, interrom-peu o trabalho.

Por volta do meio-dia, ainda não havia ido embusca de Mariné, razão pela qual ela acabou por inquie-tar-se; confiou isso a Cristina, enquanto passeavam jun-tas, contemplando o mar.

– Você sabe muito bem como é Ebel, minha queri-da! – disse-lhe a senhora. – Quando se submerge em seuspapéis, esquece de tudo... até mesmo de você!

– Sei disso, mas não lhe parece que hoje ele estádemorando mais do que o normal? Será que aconteceu algo?

– Podemos averiguar.Entraram ambas pela porta mais próxima, encami-

nhando seus passos para o local onde tinham seus cama-rotes, com o propósito de certificar-se.

– É quase certo que o senhor esteja trabalhando –o camareiro lhes informou. – Às nove horas, pediu o des-jejum e, mais tarde, ainda seguia escrevendo.

– Viu, tolinha?Mariné concordou, com um compreensivo sorriso.

Quão bela se mostrava sua alma nesse instante!Em seguida, como Cristina insistisse em voltar ao

convés, ela, que não sentia muito desejo de acompanhá-la, escusou-se e, após buscar entre seus conhecidos quem

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a substituísse, acomodou-se numa poltrona, próxima aolugar em que De Sándara se encontrava, para continuar,enquanto o esperava, a leitura de um livro que levava con-sigo. Depois de passar os olhos em algumas de suas pági-nas, sem conseguir fixar nelas a atenção, abandonou-osobre o colo e permaneceu pensativa. Sabia quanto ele seafastava das coisas que o rodeavam quando sua pena cor-ria sobre o papel, preenchendo página após página. Arecordação lhe trouxe, então, o eco de umas palavras querecordava com freqüência, e que tinha ouvido dele quan-do era ainda uma adolescente: “Nunca me interrompaquando penso ou escrevo. Você pode permanecer a meulado o tempo que quiser, mas muito quietinha, para nãodistrair minha atenção.” Em seguida, reviveu as horas feli-zes que costumava passar no gabinete da casa que ocupa-vam no México, acompanhando-o no curso de seu traba-lho, enquanto esperava pacientemente, ocupando-se comalguma tarefa, o instante em que ele lhe dirigisse a pala-vra, ou lhe desse para ler algum trecho de suas produções.

Recordou que, certo dia, estava como de costume pertodele, quando lhe escapou das mãos, caindo com grande ruídosobre o tapete, um pesa-papéis com que ela brincava distrai-damente. Era uma bela e pesada peça retangular, de ébano ebronze, em cujo centro reluzia uma efígie antiga, habilmentetalhada em jade. De Sándara a havia adquirido numa de suasviagens, e fazia anos lhe servia para aquele fim. Intimidada poraquele contratempo, a jovem optou por desaparecer dali, afas-tando-se na ponta dos pés e com grande pressa, mas ele,levantando-se, correu atrás dela, alcançando-a antes quepudesse transpor a sala contígua ao gabinete. Mariné pareciaainda sentir-lhe a pressão vigorosa da mão ao segurar-lhe obraço, enquanto a detinha em sua fuga, e ainda parecia escu-tar sua voz, quando, com afetiva persuasão e não propriamen-

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te com desgosto, disse a ela: “Tenho que conversar muito comvocê, Mariné... Vamos até meu escritório.”

Reapresentou-se à recordação da jovem, com toda anitidez, a passagem que então se seguiu, e foram voltando asua memória, uma a uma, as palavras que ele lhe expressou,quando ambos se sentaram no grande sofá: “O que aconteceu,Mariné, não teria importância, não fosse pelo que representanos domínios de meu pensamento. Explicarei melhor; escute!Você sabe que eu criei meu próprio mundo. Sou, pois, dono esenhor dessa criação que minha vontade anima e sustenta.Não obstante, faço freqüentes concessões às exigências, àsvezes inevitáveis, do mundo no qual todos vivem e do qualtambém sou parte. Concilio, assim, sem o menor esforço, otratamento cordial e sincero que devo a meus semelhantescom aquele que dispenso aos súditos de meu mundo, ou seja,os seres, os pensamentos e as coisas que animo, seja nas esfe-ras de ação de minha inteligência, seja nas esferas da vida queeles vivem nas páginas de meus livros. Desfruto, assim, den-tro e fora dele, as prerrogativas que a mais absoluta liberdademe confere. O segredo para não se perder tal liberdade resideem não expô-la nunca a néscias ostentações. A queda dopesa-papéis, minha querida, ao interromper minha concen-tração, me previne contra outra classe de interrupções, nasquais, por descuido ou incompreensão, você poderia incorrernos momentos em que me encontrasse entregue aos cuidadosque a atenção a esse mundo demanda de mim; e é indubitá-vel que isso promoveria tormentas que nublariam, entriste-cendo-o, o céu de nossa felicidade.”

“Eu não farei isso jamais!”, havia-lhe respondido ela,desafogando sua emoção num soluço, enquanto ele, tocan-do levemente seus cabelos, prodigava-lhe doce carícia.

“Não chore, Mariné. Eu quis apenas mostrar queserá para você, talvez, uma realização superior a suas for-

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ças o sacrifício ao amor de um homem que, como eu, nãopode oferecer-lhe os arrebatamentos da juventude, nemdedicar-lhe seu tempo com a amplidão que o faria qual-quer outro nas condições correntes. O recente episódio foium mero fato casual, e lhe asseguro que não mereceria demim qualquer reparo. Se o tive em conta, foi tão-só paravinculá-lo a possíveis descuidos de outra natureza, nosquais você poderia incorrer, e eu desejo preveni-la.”

Essas e muitas outras palavras desfilaram pela mentede Mariné, todas elas com relação à forma como ela devia con-duzir-se, se queria segui-lo e, feliz, reinar um dia em seu cora-ção. E não faltaram as últimas, que naquela ocasião ele lhe dis-sera, ao recobrar seu ar habitual e de forma alegre propor a ela:“Agora, deixe cair o pesa-papéis quantas vezes você queira!...”

Aquele episódio, ao qual De Sándara havia conferi-do um significado particular – significado que o entendi-mento dela agora captava em boa parte –, foi durante mui-tos dias motivo freqüente de inquietude para sua alma.Que mais teria ele querido dizer, e que ela talvez não tives-se compreendido?... Várias vezes esteve a ponto de per-guntar-lhe, mas se conteve. Ele lhe havia aconselhadoamiúde que anotasse em sua recordação tudo o que lhefosse incompreensível e, depois, permanecesse atenta, atéque as circunstâncias, oferecendo-lhe motivos vinculadosao que não foi compreendido, o explicassem. E havia sidojustamente em momentos como os que atualmente vivia –nos quais, atenta às oscilações íntimas de sua alma, seesforçava por conter os impulsos de impaciência – que elahavia sentido que sua inteligência se iluminava e que opensamento de seu amado lhe era revelado. Com quantaclaridade e beleza se lhe mostraram, então, suas palavras!

Isso havia ocorrido meses atrás. Recolhida agoraem voluntária e pacífica espera, Mariné comprazia-se em

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recordar os pensamentos que a assistiram em tal situa-ção, ao compreender que Ebel se valera de um episódiointranscendente, como era a queda do pesa-papéis, paraque ela, trasladando-o a possíveis derivações de sua pró-pria conduta, pudesse compreender que os fatos e deta-lhes mais insignificantes de sua vida o comoviam, e erammotivo de especial preocupação para ele. “Mas depende demim”, havia ela dito para si mesma, naquela ocasião, “queele se mostre sensível às menores oscilações de meu pen-samento ou de meu sentimento, ou que seja indiferente.Neste último caso, em vão eu poderia arrojar o pesa-papéis mil vezes, ou qualquer outro objeto, e até arrojar-me a mim mesma ao solo, batendo desesperadamente commãos e pés, que ele permaneceria imperturbável.”

Mariné, ao associar essa lembrança ao que presen-temente vivia, sentiu-se invadida por uma doce alegria e,como se internamente voltasse a reafirmar-se nas deter-minações que se impusera, prometeu com força ser sem-pre o que ele tanto anelava.

Com a alma plena de confiança, olhou seu relógioe, vendo próxima a hora do almoço, pegou seu livro e,resoluta, saiu em busca de Ebel.

Quando os nós de seus dedos se apoiaram sobre aporta do camarote dele, ela surpreendeu-se ao vê-lo apa-recer, já pronto para sair.

Saíram de braço dado pelos corredores e, aindapouco haviam andado, De Sándara propôs-lhe que tomas-sem assento.

Agradava-lhe auscultar a alma de Mariné, sur-preendendo-a das mais variadas formas. Daí que, nessedia, dissesse a ela com ar preocupado:

– Nesta manhã, enquanto trabalhava, experimenteiuma tremenda decepção com você.

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Como a olhasse com grande ternura e tristeza aomesmo tempo, ela, que havia aprendido a defender-se detais ardis, não pôde dessa vez dominar sua aflição.

– Não compreendo...– Fique tranqüila, minha querida Mariné. A culpa

não foi sua, e sim minha... Vou lhe explicar como aconte-ceu. Eu me achava absorvido numa das partes mais pro-fundas do livro que estou escrevendo, do qual você é a pro-tagonista, quando constatei que a Mariné que atuava nele,superada ao máximo pela rigorosidade de meu pensamen-to, exigia de mim um tratamento de tão elevada idealidade,que me convenci da impossibilidade de realizá-lo com você.

– Por quê?! – ela interrogou, admirada. – Vocêpensa, por acaso, que eu não poderei elevar-me a essasalturas?

– Há ainda algo mais, Mariné. Nesse mundo men-tal, onde os gozos estéticos do espírito são plenamentesatisfeitos, tudo se move, vive, alenta, graças à ação denossa vontade, de tal sorte que a Mariné desse mundoquer a seu amado porque eu lhe impus isso, o que me cau-sou, como antes lhe disse, profunda decepção... Eu teriapreferido mil vezes que ela o amasse por espontânea deter-minação de seu sentir.

A jovem guardou silêncio, sem poder ocultar no pri-meiro momento sua turbação; ponderando a respeito,porém, expressou em seguida com encantadora naturali-dade:

– Quer dizer que eu sou diferente daquela Marinéporque lhe quis e lhe quero por minha própria vontade?

– Fracassei, irremediavelmente! – ele exclamou,enternecido e feliz. – Eu pensava que a Mariné de meuromance seria melhor que você, mas me equivoquei...

Efetivamente, De Sándara acabava de contemplar

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nela algo que jamais poderia ele criar na pessoa de suaconcepção; algo que unicamente Deus teve potestade paraconceber e plasmar na delicada natureza da mulher: osublime encanto da candura, que somente é possível ver,sentir e respirar neste mundo que os homens desnatura-lizaram tanto com seus desbordos passionais.

Ao olhar para Mariné nesse momento e sentir palpi-tar-lhe o terno coração junto ao seu, De Sándara viu tornar-semais luminosa a visão de suas próprias concepções relacio-nadas com o renascer espiritual. Com certeza, ele não fariamorrer a protagonista de seu romance para idealizá-la narecordação, mas sim a faria viver com toda a força ideal comque seu pensamento a concebia. Nisso pensava, enquantoseu olhar se aprofundava no maravilhoso processo que asalmas podem seguir em sua evolução para o cimo do aperfei-çoamento, descoberta da qual ele havia extraído úteis chaves,cujo poder usava na grande experiência de sua vida.

– Às vezes – expressou a Mariné, seguindo o fio deseus pensamentos, – pode mais a força de um sentimentoque a de mil pensamentos juntos. É o que me acontece nesteinstante em que vai começar para mim um novo tempo, comose devesse, por especial graça da Providência, viver numrenascer glorioso a juventude que não tive nos anos de minhamocidade. E você, Mariné, que tão profundamente penetrouem minha vida, eu a levarei ao meu reino, e nele você viverá,porque possui a imponderável virtude da discrição, sem aqual não é possível a ninguém franquear as portas do misté-rio que oculta os arcanos da sabedoria. Você então vê, minhaquerida – acrescentou, sorrindo, – que à “decepção” e ao “fra-casso” sucederam os momentos de prazer e de triunfo maisditosos, com os quais estou celebrando minha decisão deacelerar nossa boda.

– Você fala a sério?!

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– Por que não?... Você marcará a data, e eu procu-rarei fazer com que seja a mulher mais feliz da terra, seisso é possível.

Em seguida ao enlevo daquele instante, foram eles pas-sando suavemente ao plano das realidades imediatas, atéconstatarem, de súbito, que estavam atrasados para o almoço.

– Mamãe Cristina deve estar nos esperando! – ajovem exclamou, quase saltando de seu assento.

De Sándara pediu-lhe que fosse antes dele fazer compa-nhia a sua tia, prometendo reunir-se a elas logo em seguida.

Mariné supôs que encontraria Cristina perto dorestaurante, e não se equivocou.

Num instante estava junto a ela, escusando-se pelademora e adiantando-lhe que havia razões que a justifica-vam plenamente.

– Foi por um motivo muito, muito interessante,mamãe Cristina, eu lhe asseguro! Daqui a pouco eu lhe digo!

– E por que não agora?... – expressou ela, que tro-cou seu ar de curiosidade por uma expressão de forçadaresignação, acrescentando: – Vejo que hoje estou condena-da a acumular paciência!

Recompensando-a, Mariné fitou-a com um docesorriso.

Com diferença de alguns minutos, De Sándaraestava também com elas, e os três se sentaram à mesa,excelentemente dispostos para o almoço.

De Sándara tinha em seu olhar a profunda claridadede um poente outonal, desses que anunciam dias estimulan-tes, que convidam a respirar o ar com toda a plenitude.

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Sua tia fixou nele seus olhos esquadrinhadores e,ao notar em seu semblante uma imperceptível expressãoque a ela jamais passara despercebida quando ele queriafazê-la partícipe de alguma confidência, murmurou comintenção de ser escutada:

– Não sei por quê, às vezes tenho a sensação deestar no mundo da lua, justamente quando menos queriaser indiferente ao que me rodeia...

Suas palavras tentaram o pensamento do sobrinho,ao mesmo tempo que a recordação de um alegre episódiofamiliar se despertava nele. Tal como se mentalmente setransportasse para o cenário onde isso havia acontecido,expressou para sua tia, entre uma garfada e um trago:

– Neste momento, recordo aquele episódio quelevou você a dar-me o qualificativo de “selvagem”.

– De selvagem?... – Cristina repetiu, fingindo forçara memória para atrair com fidelidade a imagem. – Ah, sim!Agora me lembro! Mas na época eu disse isso achando queera outro, e não você, quem pretendia me roubar Mariné.

O fato a que De Sándara acabava de se referir per-tencia a um episódio inolvidável para cada um dos quenele intervieram. O qualificativo em questão havia brota-do, dessa vez, dos lábios de Cristina, então indignada pelasuposta presença de um pretendente que, segundo ela,era o causador de certos estados de Mariné, que a miúdoera vista silenciosa e preocupada.

– Só pode ser um selvagem alguém que, assim tãocedo, começa a afligir a vida desta menina! – sustentava aboa senhora, numa ocasião em que se achava com DeSándara em seu quarto. – Você não sabe de nada?

Ele, que nesse instante saboreava a ventura desentir-se intimamente ligado àquele segredo, só pareciadeleitar-se com o vaivém de seu corpo, ao movimentar-sena cadeira de balanço de sua tia.

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– Na verdade, Mariné tem dois pretendentes – eledisse. – Um é jovem e bom moço, e gosta muito dela, masele está disposto, sabia disso?, a levá-la para longe, por-que de você... ele quer é distância!

Os enérgicos protestos da boa senhora, que afirma-va e reafirmava que não permitiria tal coisa, levaram DeSándara a apaziguá-la, dizendo:

– Pelo que Mariné me disse, tampouco ela quer aele, de modo que você pode ficar tranqüila. Quanto aooutro pretendente... é o tal selvagem a quem você se refe-riu há pouco. Um homem já maduro, de quem ela se ena-morou. Mas acontece que ele não se atreve a pretendê-la,por temor de que ela possa mudar de idéia depois dealgum tempo...

– Pois veja só! Esse deve ser um estúpido!– Exatamente! Apesar disso, minha queridíssima

tia, há algo muito interessante, e é que esse estúpido senteuma grande simpatia por você.

– Você o conhece?!– Creio que o conheço, se bem que, depois do que

você acaba de dizer, não sei em realidade o que pensar...– O que foi que eu lhe disse?!– Oh, quase nada!... Chamou-me de selvagem pri-

meiro, e de estúpido depois.Demais está dizer que, chegado a este ponto, o caso

foi festejado com uma explosão de risos, com esse risofranco e comunicativo que tanto se ajusta às expressõesíntimas da alma.

Com o feliz desenlace da inocente brincadeira,ambos haviam celebrado naquele episódio um aconteci-mento de virtual transcendência para a vida de Mariné eEbel, e agora o mesmo episódio era recordado, previamen-te ao anúncio de um segundo acontecimento, mais impor-tante ainda, do qual Cristina em seguida seria informada.

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– Não duvido que você se sentirá muito feliz aoconhecer a novidade que lhe reservamos – disse DeSándara, dirigindo-se a sua tia. E, após deter-se com aexpressa intenção de aumentar a expectativa dela, acres-centou: – O assunto em questão é que o personagem dequem falávamos, e que por sorte é seu parente, tem o pro-pósito de se casar muito em breve com Mariné, para o quesó espera que ela se digne de marcar a data.

– Bem que eu suspeitava, bem que eu suspeitava!...– ela exclamou, satisfeita e alegre.

Pouco depois, deixavam o restaurante.Alguns conhecidos, que eles encontraram ao sair, for-

maram com eles um grupo, que logo foi ampliado com a pre-sença do casal Arribillaga. Quando De Sándara acabou defumar seu charuto, a necessidade de descanso fê-lo apressara retirada, com outros aderindo à iniciativa, sendo Cristina amais decidida, para quem a sesta era seu melhor tônico.

– Eu também os acompanharei, mas não para des-cansar – disse Mariné, que, tomando o braço que DeSándara lhe oferecia, expressou aos que ficavam: – Logoestarei de novo com vocês.

Enquanto se afastavam, ele a premiou com estaspalavras:

– Agradam muito a meu coração estas atenções quevocê tem para comigo, e agradam tanto, que me entriste-ceria se você não fosse dona dessa pequena, porém simpá-tica virtude.

– É mérito exclusivo de mamãe Cristina, que desdemenina me ensinou a ser amável com todos, embora sejaverdade – acrescentou, com graciosa insinuação – que meespecializei em sê-lo com uma só e única pessoa...

Tão logo se despediram, Mariné desceu a escalina-ta que levava ao andar imediato, onde encontraria seus

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amigos, deslizando por ela com a rapidez prodigiosa deseus pés, que pareciam não tocar o solo ao andar. ApenasGriselda e Cláudio a esperavam ali, e mesmo ele não tar-dou em deixá-las, o que favoreceu Mariné, que desejavafazer sua amiga partícipe da ventura que aquele dia lhehavia deparado. Separaram-se em seguida, para tambémse proporcionarem o habitual descanso.

Quando Mariné saiu de seu camarote, naquelatarde, após escutar os conhecidos golpezinhos com queEbel costumava chamar à sua porta, ele a envolveu numterno olhar de aprovação.

Ela, compreendendo que era uma homenagem diri-gida a sua pessoa, inclinou-se alegremente, com singelagraça, fazendo para ele uma ligeira reverência.

– Está só? – ele perguntou. – E tia Cristina?– Andarilha como sempre! Qualquer um diria que

ela está na flor da idade...Embora fosse ainda um tanto cedo, decidiram pas-

sear um pouco ao ar livre. O sol brilhava com muita inten-sidade, reverberando sobre as águas como se quisesseestampar nelas a variedade cromática de suas vibrações.Sendo-lhes quase impossível suportar a cintilação daque-la superfície inquieta e incomensurável, desistiram entãodo propósito e entraram novamente no navio, onde a pou-cos passos descobriram Cristina, em conversa com outrassenhoras.

Tinham um encontro marcado com o casalArribillaga para a hora do chá, e esse motivo reuniu atodos mais tarde no salão, inclusive Cristina, que haviadeixado suas amigas para unir-se a eles.

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A vida a bordo sempre oferece campo propício paraa mexida no novelo dos comentários que se tecem e deste-cem em torno de cada assunto, por mais privativo queseja. Estava evidente que a boa senhora devia ter experi-mentado nessa tarde alguma viva contrariedade, a julgarpelo tom com que se referiu a essa prática social tão poucoedificante.

– Parece mentira – expressou ela, algo aborrecida –que deva ser tema quase obrigatório entre as pessoasescarafunchar a vida, a história e a conduta de seus seme-lhantes!

– É assim mesmo – Mariné disse. – E, quando nãoconseguem satisfazer sua curiosidade, o que fazem?...Começam a dar corda à fantasia, até que surjam as histó-rias mais extravagantes.

– Não tenho dúvida de que é para não desmerece-rem sua profissão de correspondentes oficiosos – destacouCláudio, rindo.

– Eu não compreendo – Cristina insistiu – comoesses vestígios de incultura ainda persistem nas pessoasde bem. Muitas vezes sofri decepções por essa mesmacausa, justamente onde acreditei encontrar afeto, sinceri-dade, correspondência.

– Mas por que tanto desgosto, mamãe Cristina? –Mariné expressou. – Você já disse muitas vezes que aexperiência, quando não recusamos seu conselho, costu-ma nos fazer sábios e prudentes...

– Sim, filha, sim. Mas, apesar de estarmos preveni-dos contra as surpresas que nossa boa-fé com freqüêncianos depara, nem sempre a gente pode evitar o efeito ruimque certas coisas produzem.

A senhora Landívar referiu-se em seguida à longasérie de desenganos sofridos no círculo de suas amizades,

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antes que houvesse despertado a aurora de suas reflexõese que se iluminassem, para sua consciência, muitos fatosque tinham sido, até então, causa de pesar para ela.

Mariné conhecia alguns desses fatos e sabia, tam-bém, da inteireza com que ela os havia enfrentado.

De Sándara, que acompanhava com agrado odesenvolvimento da conversa, expressou pausadamente,fazendo uma dedução de tudo o que escutou:

– É comum observarmos, dentro do ambiente ondeas pessoas se vinculam, episódios comparáveis ao coló-quio filosófico dos cães de Cervantes, quando se desfaziamem conjecturas diante da efígie do homem...

– Afinal de contas, que importa que os outros pen-sem o que quiserem a nosso respeito? – expressouCláudio.

– É coisa que não deve preocupar, naturalmente –De Sándara respondeu. – O que importa é sabermos des-cobrir, nas apreciações daqueles que nos julgam, o graude probidade e de sensatez que lhes assiste.

– Acho que deve ser assim – assentiu Cláudio. – Secolocássemos as coisas sempre nos respectivos e exatos luga-res, poderia o falatório das pessoas nos trazer algum prejuízo?

– Nenhum, absolutamente nenhum. E, em contras-te com esses fatos ingratos sobre os quais estivemos falan-do, e cujo conhecimento nos resguarda da excessiva boa-fé, nós nos sentiremos sobejamente reconfortados com assatisfações inigualáveis que nos proporcionam os verda-deiros amigos, os quais penetram fundo em nosso coraçãoe oferecem, com sua amizade, o fruto de seu afeto e de suasinceridade. Por isso, dei sempre um valor imenso à ami-zade, a esse processo que se forja nas intimidades do sere se verifica pela consolidação do afeto em graus progres-sivos de confiança.

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– Seria errado dizer que é a conseqüência de umconhecimento mútuo, produzido num sem-número deprovas? – Cláudio perguntou.

– Não, ao contrário. E, utilizando outras palavraspara se referir a ela, poderíamos também dizer que é algoassim como uma comunhão mental de afetos, que se esta-belece pelo enlace de pensamentos e sentimentos.

Os motivos finais do diálogo terminaram por afastar assombras do ânimo de Cristina, que recuperou rapidamenteseu alegre otimismo. Em excelente estado de cordialidade,saíram todos ao convés, onde encerraram a tarde entreti-dos na contemplação dos infinitos efeitos de luz que o solprojetava sobre o céu e o mar, ao ocultar-se no ocaso.

Aquela travessia, que tantas emoções novas e ines-peradas havia oferecido ao feliz casal, aproximava-se rapi-damente de suas últimas etapas.

Cláudio e Griselda, que ansiavam chegar a BuenosAires quanto antes para estarem junto a Dom Roque, poroutro lado se sentiam pesarosos pela chegada do transatlân-tico ao Rio e pelo iminente desembarque de seus amigos.

Enquanto percorriam com indolência a ponte, afe-tados pelo calor e pela pressão atmosférica, viam a tardeavançar em direção ao crepúsculo e, com isso, chegar oinstante que poria ponto final àquela sucessão de dias ale-gres, plácidos, de grata e profunda amizade, e particular-mente proveitosos pelas projeções que, sem dúvida, have-riam de ter na vida que eles acabavam de iniciar. Sempoderem esquivar-se do efeito que isso lhes produzia,

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parecia-lhes sentir como se o navio, que já havia diminuí-do sua velocidade, deslizasse numa rapidez não costumei-ra rumo à baía, a qual se aproximava de sua vista emsuperposições de beleza panorâmica cada vez mais defini-das, tal como se uma mão invisível descerrasse gradual-mente, a partir do infinito, o painel celeste que cobria ocenário.

As explicações claras e precisas do senhor DeSándara, a quem tão freqüentemente haviam tido oportu-nidade de escutar, infundiam-lhes, porém, uma saudávelsensação de confiança e otimismo, nesses instantes emque estavam a ponto de se verem privados de sua valiosaassessoria.

Sabiam que o caminho de acesso ao mundo doespírito se percorre internando-se primeiramente em simesmos. Essa seria, pois, a passagem obrigatória parapoder ascender, depois, aos patamares do mundo supe-rior, até onde não podem chegar os tolos, os crédulos, osburlões nem os pedantes, mas sim os limpos de mente, ospsicologicamente sadios, os livres de preconceitos e decrenças dogmáticas e, enfim, as almas de boa vontade.

Enquanto aguardavam a chegada de seus amigospara se despedirem, deram com De Sándara.

– E Mariné? – Griselda perguntou, ao vê-lo só.– Virá em seguida com Cristina. Estão dando os

últimos retoques em seus preparativos.– Vou buscá-las, então – disse ela, saindo.Premido, sem dúvida, pela iminente separação de

seu amigo, Cláudio quis demonstrar-lhe uma vez mais seuinteresse por abarcar com maior exatidão os conceitosdesse mundo interior organizado, cujos movimentospodiam ser manejados à vontade pelo próprio ser.

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– Esses conceitos – expressou De Sándara, enquan-to sugeria a Arribillaga um lugar para se sentarem – irãose definindo com gradual clareza em você, tão logo vá colo-cando em prática os conhecimentos essenciais que emparte lhe vim proporcionando. Mediante essa prática, talorganização nos é totalmente permitida, podendo essemundo ser governado por nós com acerto, ao mesmotempo que é convertido num lugar de descanso e de incen-tivo para a vida. Eu lhe recordo que ele está formado pornossa vida mental e psicológica, por nossa consciência,pelos pensamentos – que são entidades animadas, e decuja autonomia já lhe falei – e pelos sentimentos queatuam na região sensível de nosso ser.

– Entretanto, não deixa de me preocupar, nem deme parecer difícil, a possibilidade de realizar tal proeza emdomínios tão abstratos...

– Você se equivoca, amigo Arribillaga. Nada existe demais real e mais positivo, dentro das possibilidades huma-nas, que essa prerrogativa estimulante de conhecer o pró-prio mundo interno. E esse não é um privilégio das pessoasdisciplinadas intelectualmente, não. A lei de evolução nãoexclui ninguém. Asseguro-lhe que, muito freqüentemente,quem tem escassa ilustração intelectual costuma sentir eexperimentar essa verdade muito antes que aquelas, poisnele costuma agir com maior força a sensibilidade, que éum precioso auxiliar do entendimento.

– A propósito, por que essa prevenção do intelecto cul-tivado, tão propenso a rechaçar verdades dessa índole, pormais que lhe tenham sido demonstradas de forma inobjetável?

– Por uma razão muito simples. O entendimentocultivado desconfia de tudo quanto ainda não entrou naórbita de seus domínios, sobretudo quando suspeita que,para encarar investigações de natureza transcendente,

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deve modificar sua rígida postura e obrigar-se a esforçosque considera já superados.

– É certo que não se trata apenas de admitir verdades...– Trata-se, você sugeriu bem, de penetrar nelas

com o entendimento, e para isso temos de nos valer detodos os elementos que conformam harmoniosamente aunidade dessa verdade, mesmo quando tais elementosapareçam dispersos. Mas deixemos de lado essas conside-rações marginais e falemos ainda algo sobre esse mundointerior que a ninguém está vedado criar para si. Releia devez em quando as cartas que lhe enviei a Buenos Aires.Você já sabe que esse mundo não abarca unicamente aprópria vida, senão que a ele pertencem os seres que ama-mos, as coisas que nos são queridas e toda manifestaçãoque mantenha contato permanente com nosso pensamen-to e nosso sentir. Nele são vividas as emoções que a almaexperimenta, sejam elas doces ou amargas, com plenaconsciência de suas causas; vive-se com os pensamentos,e esse íntimo contato com eles serve de poderoso estímu-lo para as funções que devem ser desempenhadas emfavor da própria vida e, também, dos seres vinculados anós mesmos, que deleitam seus espíritos com o bem quelhes oferecemos. Quando esse mundo já se acha constituí-do, jamais se está a sós, e sempre sobra tempo para auxi-liar aqueles a quem seja necessário ajudar.

Cláudio escutou tais palavras procurando retê-las,certo como nunca de que o apoio que teria para aplicar oque aprendera durante a viagem, ele o encontraria na vas-tidão dos desenvolvimentos mentais que, num ou noutrosentido, De Sándara empregava para fomentar as disposi-ções tendentes à elevação do homem, mediante o progres-sivo avanço na evolução de sua consciência.

A presença de Cristina e das duas jovens, bem

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como a agitação que crescia em volta deles com a proximi-dade do desembarque, pôs fim à conversa.

– Já estão com tudo pronto? – De Sándara pergun-tou-lhes.

– Tudo... menos o ânimo de separar-me de umacompanheira tão gentil e boa como Griselda – apressou-seem responder Mariné.

– Espero que não seja por muito tempo – Cristinadisse, baixando a voz e acrescentando com certo ar demistério: – Tenho notícias de que em breve, muito embreve, visitaremos Buenos Aires.

Cláudio e Griselda buscaram uma palavra confir-matória em quem melhor poderia dá-la, e ele assentiu comum sorriso.

À emoção da despedida próxima acabava de mes-clar-se inesperadamente uma grande alegria, que favore-ceu o momento dos abraços finais.

A noite ia se estendendo paulatinamente sobre acidade: uma noite cálida, sufocante, apesar da proximida-de do mar. A buliçosa atividade do desembarque havia ter-minado, ouvindo-se, cada vez com maior clareza, o eco dasbuzinas dos veículos que circulavam pela metrópole e o ir-e-vir dos passageiros e tripulantes que desciam a terra,buscando as atrações da urbe.

Cláudio e Griselda também resolveram fazer umbreve passeio, buscando com isso dissipar sua melancolia.A bela baía fluminense convidava-os a se deliciarem nacontemplação de seu brilhante espetáculo noturno.

No dia seguinte, próximo do meio-dia, ouviu-se abordo, misturado à trepidação dos motores, o profundosoar da sirene, anunciando o instante em que o navio sol-taria novamente suas amarras. O casal Arribillaga, que seachava a pouca distância da amurada, correu até ela para

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observar dali a operação e saudar com o pensamento osamigos que deixavam em terra. O navio começou a desli-zar lentamente, desprendendo-se da costa e internando-sepouco a pouco na rota que os levaria de volta à pátria.

– Agora – Griselda dizia, enquanto o transatlânticonavegava, após várias horas de marcha, afundando suaproa na solitária imensidão – nós nos dedicaremos inteira-mente a edificar nossa felicidade futura. Estou por demaisdesejosa de chegar a nosso lar. Ali, cercados do afeto denossos pais, pressinto que encontraremos os mais estimu-lantes motivos para realizar nossos projetos. Nós doissabemos que o futuro depende do que pensemos e faça-mos no presente, o que depende por sua vez de algo muitoessencial, que nem você nem eu deveremos esquecer...

Nesse ponto Griselda se deteve e, olhando expres-sivamente para Cláudio, ficou à espera de que ele comple-tasse o restante.

– Será que você se lembra?– Talvez não tão bem como você, mas creio não ter

esquecido. Esse algo tão essencial que você menciona, consis-te em saber o que é que queremos ser e fazer e, uma vez resol-vida essa questão, em evitar toda mudança de pensamento,para não malograrmos o que traçamos como meta. Está bem?– ele perguntou, esperando ter-se saído a contento.

– Muito bem! – assentiu ela, fitando-o nos olhoscom intensa ternura.

Em seguida, ela continuou:– Penso que é isso mesmo o que Mariné deve fazer,

a julgar pelo que pude avaliar. Ela alenta sua vida com asinspirações dele e é dócil ao cinzel que a modela. Vi comoa subjugam os altos problemas do conhecimento humano;observei sua constante preocupação em viver no mundoque ele a fez conhecer e o empenho com que participa de

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suas tarefas. Que formoso seria se nós pudéssemos nosparecer com eles!

– Por que não, Griselda? Não é porventura esse oanelo que acalentamos?

– Sim, mas necessitaremos de muito empenho,muito esforço, para seguir suas pegadas. Esse querer teráque ser firme e inalterável em nossos corações... Sabe queagora me sinto mais contente? Façamos, Cláudio, nossosplanos para esse futuro feliz que queremos viver e trate-mos de ser, um para o outro, o que sonhamos. Não é ver-dade que o conseguiremos?

– Com todo o amor, vida minha, e hoje com maisentusiasmo do que nunca!

A uma discreta distância do grupo que rodeava ofeliz casal, no momento de seu desembarque emBuenos Aires, formado por parentes e amigos, encon-trava-se Patrício. Em seu rosto magro, de linhas afila-das, reproduzia-se a alternância de lágrimas e sorrisosque a efusividade dos primeiros abraços promovia emuns e outros. Permaneceu ali enquanto durou a cena,imóvel, quase estático, e finalmente, reagindo commuito esforço, afastou-se com presteza para cuidar dabagagem.

Instantes depois, o carro do doutor Laguna afasta-va-se do lugar, conduzindo os recém-casados na gratacompanhia de seus pais.

Logo Dom Roque participava também do feliz acon-tecimento.

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Contido pela recente enfermidade, ele esperavapelos viajantes ainda acamado. Ali recebeu, comovido, oabraço de seu filho e de Griselda, que, inclinada sobre ele,experimentou grande ternura quando, acariciando-a, elelhe disse:

– Até que enfim posso vê-los aqui novamente.– E Deus haverá de querer que seja por muito

tempo, porque pensamos em fazê-lo muito, muito feliz –ela respondeu, animando-o com um sorriso cheio de afetoe sinceridade.

A casa dos Arribillagas encheu-se de uma inusita-da animação naquele dia.

Cláudio e Griselda viram completada sua felicidadeao visitarem os aposentos que Dona Laura havia termina-do de decorar, tendo em conta as recomendações e os gos-tos de sua filha e a comodidade de ambos.

Dom Roque, cuidando para que nada faltasse aosdois, havia destinado para eles um considerável setor dacasa, reformando-o e adaptando-o convenientemente. Aenfermidade lhe havia infligido aquele rude golpe nomomento em que, estreitando muito sua amizade com ospais de Griselda, todos colaboravam entusiasticamente nopreparo daquele pequeno paraíso para os filhos.

O dormitório do casal, precedido por uma pequenaantecâmara, era um recinto amplo, decorado sem exces-sos e alegre, de paredes claras e carpetes de tons suaves,em bela combinação com o delicado colorido da mobília.De frente para a entrada, aparecia o leito conjugal, tendoao longo da cabeceira um grande painel pintado. Um tape-te azul cobria o chão em sua totalidade, e outro, de corcinza-clara e forma retangular, estendido aos pés dacama, recobria-o em parte, servindo de base para duascômodas poltronas e uma pequena mesa. A luz do exterior

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inundava o aposento por um de seus lados, filtrando-sepela cortina que cobria uma grande porta envidraçada. Dolado oposto, entre duas portas, uma das quais dava pas-sagem para uma saleta íntima e a outra para o banheiro,havia sido colocada uma cômoda e um espelho, com deta-lhes de requintada feminilidade.

– Tudo ficou melhor do que pensamos ao fazer oprojeto! – Griselda dizia, entusiasmada, percorrendo oscômodos e detendo-se aqui e ali para apreciar efeitos eobservar pormenores.

Revigorada, alegre, vestida com um leve traje bran-co, de saia rodada e grande decote, escolhido com acertocomo complemento de sua delicada beleza, Griselda pare-cia mover-se sob a influência de uma sensação nova. Eraevidente que a fazia feliz esse primeiro contato com oambiente no qual transcorreria sua vida de ora em diante,entregue às responsabilidades de um lar dentro do qual sepropunha introduzir, dia a dia, o fruto de um esforço pelaconquista de uma existência feliz para os dois.

Satisfeito, Dom Roque escutava de seu leito de enfer-mo os relatos da viagem. Seu rosto, macilento e prematura-mente envelhecido, iluminava-se por instantes, reconforta-do pela alegria que desfrutava. Alentava a todos o saber queele não tardaria em deixar a cama. Dona Laura, por suaparte, não cabia em si de satisfação naquele dia. Assediadapor sua filha, respondia prazerosa às mil perguntas queesta lhe ia fazendo. Isso era motivo para que o doutorLaguna fizesse valer seus direitos, de tempos em tempos,reclamando a companhia de sua filha, pois ele tambémnecessitava ressarcir-se de sua prolongada ausência.

Entre as notícias que aguardavam o regresso dosjovens, havia um caso muito rumoroso, o da debaclefinanceira dos Larrecocheas, devida a escusas manobras

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de seu administrador. Ao mesmo tempo, inteiraram-se donoivado de Nora e de seu quase imediato rompimento, vin-culado tão sugestivamente ao desaparecimento dosmilhões de Dom Túlio. A desgraça de seus tios impressio-nou Cláudio profundamente, e não menos a Griselda, queteve uma idéia clara do imponente desmoronamento.

Que inesperados costumam ser os giros do destino,quando ele rege a seu arbítrio a vida dos homens! Infelizesdaqueles que, sem os conhecimentos que dão potestade paraforjá-lo por si mesmos, são incapazes de evitar, com consciên-cia, os desafortunados transes a que são submetidos. Semsaber por quê, são arrastados por uma força que os empurra– umas vezes com suavidade, outras com violência e sem pie-dade alguma – em direção a uma meta comum, intranscen-dente, a qual, por ser conhecida, suscita indiferença.

Quando a noite pôs fim às atividades daquele diamemorável, Cláudio e Griselda, sentados um junto aooutro nas poltronas do pequeno terraço para o qual seabria a porta do quarto, descansavam de suas recentesemoções, acariciados pela brisa ainda quente daquelesufocante dia de verão.

– Em que você está pensando, Griselda?– Em nossa felicidade... Hoje me seria impossível

pensar noutra coisa. Penso na vida que nos espera dentrodesta casa, na qual você viveu desde criança, e à qualDeus parece me ter trazido para preencher todos os luga-res vazios com o calor de meu afeto... Só de pensar nessadoce missão, meu coração se sente venturoso.

– Você é bondosa, Griselda... – Tenho aspiração de ser, o que não é a mesma

coisa. E sinto que me animam, nessa aspiração, pensa-mentos que já se aninham em mim, sugerindo novas for-mas de sentir e de agir. É como se uma outra vida se anun-

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ciasse aos meus sentidos, deleitando minha sensibilidade.A linha que no horizonte separa o céu do mar me fez pen-sar, muitas vezes, em sua semelhança com a que separa osdois mundos, o transcendente e o outro, o comum, dentrodo qual minha alma se reanima com o só saber que aque-le mundo existe e se oferece às possibilidades de minhavontade e de meu esforço.

– Eu também pensei que ambos deviam confundir-senuma linha semelhante, formando uma zona de transição. Apartir do momento em que nos internemos nessa zona, seráexigido de nós decisão e destreza, pois é ali onde deverão serbem conduzidos os passos difíceis que nos aventuremos adar na empresa de transpor seus limites e abrir, finalmente,as portas do mais fascinante e anelado de todos os mundos.

– Pressinto, meu querido Cláudio, que nessa zona detransição você e eu haveremos de penetrar muito em breve...

A residência do senhor De Sándara no México,situada no paseo de la Reforma, havia retomado, com oregresso de seus moradores, o movimento habitual.Envolta no branco revestimento de suas paredes e janelas,que se erguiam sobre um escuro pedestal de pedra, aconstrução destacava-se sobre o fundo alegre de jardinstraçados com modernidade. As flores pareciam ter reser-vado seus festivos tons para oferecê-los a seus donoscomo gentis boas-vindas.

No interior da casa, tudo se encaminhava para oreinício da vida normal. Era admirável a atividade queMariné desenvolvia, ajudando a senhora Landívar naque-

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las tarefas que sempre nos são exigidas pela retomada docontato – interrompido por um tempo – com as coisas quenos rodeiam e pela vinculação com aquelas outras que sevão criando em virtude de necessidades recentes, asquais, com freqüência, dão origem a novos projetos, ouintroduzem mudanças no planejamento dos já empreendi-dos. Entre todas as suas preocupações, a maior era,entretanto, ajudar Ebel na reorganização que ele se pro-punha fazer de seu trabalho. A diligência da jovemaumentava de conformidade com seu afã em proporcio-nar-lhe tudo que fosse de seu agrado e que contribuísse,de alguma forma, para a melhor ou mais cômoda execu-ção de seu labor.

Nos primeiros dias após sua chegada, De Sándarahavia optado por descansar, se bem que, mais do queentregar-se ao descanso, sua mente parecia concentrar-seem profundas elaborações do pensamento. Falava poucoe, vez por outra, mostrava-se taciturno.

Mariné, que conhecia bem esses estados em que DeSándara às vezes mergulhava, observava-o com certa sen-sação de nostalgia, esperando pacientemente que aquilopassasse, confiando na inalterabilidade de seu carinho.Porém, como dessa vez se prolongasse em demasia, deci-diu, com uma prudência que nela era virtude, recorrer aum ardil simples. Para levar a cabo seu propósito, aguar-dou um desses instantes em que ele costumava sentar-seno sofá de seu gabinete e, como se quisesse evitar serimportuna, entrou silenciosamente na sala, com o fimmanifesto de arrumar seus livros.

Naquela manhã, vestia ela uma saia justa, axadre-zada, de tonalidade escura, e um suéter vermelho. Haviapenteado os cabelos para cima, sem dúvida para variar,com o que seu rosto resplandecia ainda mais viçoso e juve-

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nil. Mariné, sendo tão bela, parecia contudo ignorar isso.Era doce e simples, e nisso talvez residisse o motivo maiorde seus encantos. Tudo em sua pessoa tinha a proprieda-de de ser essencialmente sadio e elevado, e sua beleza, naqual estavam traçadas as linhas características dos espíri-tos fortes, que ultrapassam as margens das aptidõescomuns, longe de perturbar os sentidos daqueles que afitavam, inspirava a respeitosa homenagem e a admiraçãoque se traduzem em emoções suaves e delicadas.

O ruído de seus passos, ao atravessar a sala, atraiua atenção de Ebel, que, embora experimentasse prazer emvê-la, não deixou transparecer isso nem mudou sua atitu-de meditativa, simulando não observar os movimentos dajovem em sua tarefa de acomodar os volumes.

De repente, ela, que nesse instante parecia entreti-da em limpar atentamente o pesa-papéis com um pano,intencionalmente o deixou cair no chão e, fingindo-seimpressionada pelo “contratempo”, olhou para DeSándara com expressão de susto.

Ele irrompeu em risos, bastando essa inconfundívelmanifestação de benevolência para que Mariné corressepara seu lado, satisfeita e feliz pelo êxito de sua argúcia.

Atraindo-a alegremente para si, Ebel lhe disse:– Estava esperando por isso!... Mas desta vez o epi-

sódio me agrada.E, como se quisesse recompensá-la por seus recen-

tes esforços, adicionou: – Já lhe falei, noutras ocasiões, que me causa

muita pena privá-la às vezes de meu tempo. Mas não igno-re, Mariné, que a transcendência das proposições que cir-cunstancialmente me são apresentadas no curso de meulabor me força a uma dedicação que me absorve por intei-ro, o que faz com que muitos dos movimentos naturais de

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minha modalidade fiquem contidos, ou se manifestemcom certa restrição. Acontece que, quando o conhecimen-to amplia o poder de ação de nossos pensamentos, a vas-tidão de nossos domínios mentais se estende indefinida-mente e nos obriga, para conservarmos a autoridade sobreeles, a dispensar-lhes uma parte ponderável de atenção.Nada seria mais grato para mim, querida Mariné, do quefazê-la participar um dia dos altos deveres que o sacerdó-cio da sabedoria impõe.

De Sándara, certamente, não fazia um relato exagera-do de sua atividade. Estava organizando no mundo mental,que permeia nosso mundo físico, um sistema de vinculaçãoespiritual que, respondendo às diretrizes centrais de sua con-cepção, iria estendendo-se progressivamente pelo orbe terres-tre, em benefício dos demais seres humanos. Seu plano abar-cava desde o conhecimento profundo que o homem deve pos-suir de si mesmo, até o que domina a área supra-sensível domundo metafísico. Para dar corpo a um plano de tal enverga-dura, devia transmitir, a cada mente humana que tomavacontato com a sua, pensamentos que, ao mesmo tempo queestabeleciam nelas verdadeiras bases de colaboração e inteli-gência, constituíam-nas em órgãos defensores de seus conhe-cimentos humanísticos, desconhecidos ainda pelo restantedos homens. A tarefa de dar a conhecer individualmente essaverdade, até alcançar sua penetração no entendimento, per-mitir-lhe-ia contar, depois, com a segurança de haver conec-tado uma mente a mais a seu sistema e, ao mesmo tempo,com uma nova base de operações, que trabalharia com acer-to dentro de sua órbita, usando o poderoso auxiliar de seusconhecimentos para estender a outros semelhantes o bemcontido neles. Quem conseguisse irmanar-se com a forçaativa projetada por seu pensamento estabeleceria, de fato,contato direto com ele. O movimento em questão representa-

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va o começo de uma nova era para a humanidade. “Oshomens irão despertando”, afirmava, “para uma realidadeque subjugará seus espíritos e encherá de felicidade seuscorações.” Quanto maior fosse o número de mentes que seincorporassem à magna organização planejada, maior aeficácia e contundência com que seriam rechaçadas asidéias dissolventes e os extremismos impregnados de vio-lência. Era a sua uma empresa árdua e delicada, mas lheassistia uma confiança absoluta nas nobres reservas dasensibilidade humana. Posto em marcha esse movimento,que ele chamava de “Civilização do Espírito”, nada poderiainduzi-lo a mudar de propósito.

Mariné havia escutado com regozijo as palavras deEbel. Em cada uma de suas expressões, em cada sorriso oufrase sua, ela havia visto sempre uma permanente assistên-cia, um desvelo constante para conduzi-la às próprias fon-tes do saber. Entretanto, esse amor com que era assistidanão era oferecido a ela com exclusividade, pois se nutria emsentimentos altruístas que tinham uma extensa órbita deação. A jovem, identificada com esse sentir, constatoucomovida que seu amor por Ebel se agigantava, ao mesmotempo que crescia nela a disposição para submeter seusgostos e as demandas de sua juventude aos imperativos deuma vida como a dele, dedicada a tão elevado ministério.

– Tratarei de ser, no possível, cada dia mais com-preensiva, ainda que isso me custe – ela lhe disse.

– Oh!, sei do que você é capaz para fazer-me feliz,Mariné, e de minha parte sinto deveras não poder me dedi-car a você como você merece.

– Não deve sentir por isso. Você por acaso tem culpa?– Não tenho, de fato, mas que fazer? Me desagrada

você não poder desfrutar os espaços de tempo mais docesque toda enamorada desfruta; por exemplo, aqueles em

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que ela espera a visita de seu prometido e, depois, ashoras plácidas, cheias de ilusão, que passa junto a ele...

– Não sei por que você me diz isso.– Digo pela simples razão de que, ao vivermos am-

bos sob o mesmo teto, estou impedido de lhe fazer essasvisitas, as quais, sem dúvida, agradariam a seu coração.

Como De Sándara sorrisse ao enunciar tais pala-vras, Mariné respondeu, dando às suas um tom alegre ebrincalhão:

– Oh, esse problema se resolve muito facilmente!...Bastará que você dedique a isso um ou dois dias porsemana, está bem? Você me visitará, tal como faria se euvivesse em outro lugar, longe de você. Virá na hora do chá,ou mais tarde, se quiser, e eu o esperarei, procurandoestar o mais bonita possível. Falaremos de nosso casa-mento, de nossos projetos futuros, e você não se ocuparáde outra coisa além de mim. De acordo?

– Magnífico!... – ele exclamou, unindo sua alegria àdela. – Prometo ser pontual como um relógio, e você sabeque não costumo alterar meu pensamento.

– Assim terá de ser; do contrário, você me verá mui-to zangada...

– E que coisa haverá mais formosa que vê-la zangada?– Por quê?– Porque você tem uns olhos tão doces, que não sa-

bem nem saberão jamais se mostrar com a dureza dazanga ou do ressentimento. Por isso, ainda que você qui-sesse muito aparentar tal coisa para mim, eles a denun-ciariam, irremediavelmente.

E, pondo fim ao colóquio com um beijo, ele dissecom carinho, apontando para o pesa-papéis:

– Vá agora recolhê-lo e volte com ele para o lugar.Mariné se apressou em pegá-lo, perguntando-se

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mentalmente, enquanto o colocava sobre a escrivaninha:“Que mágico poder terá esta peça, que promove tantas coi-sas ligadas à minha felicidade?”

De Sándara escrevia sem trégua, avançando nopreparo de uma nova obra. Havia pensado nela duranteanos, amadurecendo em sua mente esse propósitoenquanto reunia observações e dava coerência a seusconhecimentos, enlaçando-os à idéia que agora fluía desua pluma em incessante elaboração.

Criado em sua mente o protagonista, personagemidealizado a quem dotou de vigoroso espírito e de umainteligência não menos robusta, fez com que ele concebes-se um plano de grande genialidade, do qual devia fazerantes um detalhado estudo, considerando todas as possi-bilidades favoráveis e contrárias a seu êxito.

Nos preparativos de sua empresa, leu primeira-mente todos os livros já publicados sobre tão fundamentalassunto e, mais convencido do que nunca do excesso defantasia de seus autores, deduziu que a imaginação deXerazade não era uma exceção. Seguro, pois, de que nin-guém havia registrado dados precisos sobre o particular,resolveu um dia dar início a sua façanha. Conhecedor dosperigos que correria na aventura de arriscar seus pensa-mentos, que ele considerava verdadeiras potências queanimavam e cumpriam as grandes finalidades da existên-cia humana, uniu, à intrepidez de seu talento, uma vonta-de de ferro e uma paciência a toda a prova.

Equipado com tão invencível armadura, embarcou emsua nave metafísica, similar à dos argonautas, certo de quesua perícia haveria de conduzi-lo às inefáveis praias do

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mundo incorpóreo, pátria dos espíritos que animam o gênerohumano, cuja célula é o homem. Desdenhou, como ineficazes,os banhos da lagoa Estígia, e olhou com indiferença os deJuventa. Enquanto o homem não fosse mais que o homem,seguiria sendo vulnerável da cabeça ao calcanhar, e tão inexo-rável seu processo biológico até a senilidade que incorreria emengano se pretendesse detê-lo por meios extranaturais.

A respeito de todas essas coisas, fez anotações emseu mapa de viagem. Propunha-se tocar, como os primei-ros navegantes que sulcaram os mares, pontos muito dis-tantes e ignorados pelas pessoas, os quais ele depois reve-laria a seus olhos assombrados. Seu propósito erademonstrar a existência de uma nova rota, sinalizando emseu mapa as zonas perigosas, onde os recifes, formandobarreiras, assemelhavam-se a enormes armadilhas que,ocultas sob as águas, esperavam pela vítima propiciatória.Com quanta freqüência, enquanto se internava ao longodessa rota, precisou vencer obstáculos insuperáveis paratantos navegantes!

À medida que avançava, foi extraindo de suasexplorações muitas e atinadas conclusões.

Era indubitável que, ao forjar a criatura humana,Deus a havia equipado de um organismo fisiológico perfei-to, tão perfeito que seu funcionamento cumpria seus finssem intervenção alguma da parte dela, a não ser aquelasque se promoviam em razão da constante atividade que amanutenção dessa maravilhosa máquina humana reque-ria. Mas ainda faltava ao Criador levar sua obra à culmi-nação, e isso fê-lo decidir-se por satisfazer o que era umanecessidade impostergável de seu pensamento: estabele-cer o enlace permanente entre sua Divina Natureza e anatureza material do homem.

Meticuloso deve ter sido o trabalho que a criaturahumana ocasionou com isso ao Senhor, quando este, cum-

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prida a sublime jornada, ao despontar a aurora de suacriação, dispôs-se a descansar. O rebento lhe havia criadoa primeira das tantas complicações que haveria de causar-lhe, e ela havia sido resolvida em exclusivo benefício dele.

O acoplamento do espírito ao corpo físico haviasolucionado o problema do incerto destino do homem,subentendendo-se que este, munido como estava de umsistema mental de eficiência a toda a prova, deveria forjar,segundo as deduções do intrépido navegante, a estirpe desemideuses que faria da Terra uma cópia fiel do Édenceleste.

Pôde descobrir que, no momento de sua descida aeste mundo, os espíritos possuíam uma lucidez que foi gra-dualmente eclipsada pela luz material, devendo por issoconformar sua existência às leis que imperavam sobre aface do planeta. Penoso lhes havia sido ter de recorrer aosmembros físicos para se moverem, depois de terem andadopelo espaço com prescindência deles, e angustiosos foramos primeiros tempos de sua adaptação ao corpo. Seu des-consolo foi tal que choraram amargamente durante muitosdias e muitas noites intermináveis e, quando finalmentecessou o pranto, viram que ele corria em torrentes sob seuspés, o que fez com que chamassem a Terra de “vale delágrimas”. Mas nada era possível fazer; não lhes restavaoutra saída senão a de viver nela e buscar, nos grandesrecursos da Criação, o elemento revelador do grande enig-ma: o mental, em sua formação consciente, ponte entreDeus e o homem e alavanca poderosa da reversão.

Com tão singulares apreciações de seu protagonis-ta sobre aqueles episódios ligados aos começos da vidaterrena, De Sándara havia completado a primeira parte deseu livro. Na segunda, como se ele se propusesse abrir àsinteligências as portas da grande explicação, fez o herói

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transpor o umbral e o acompanhou na narração de umaverdade longa e empenhadamente buscada.

À medida que avançava em seu itinerário, mais oherói penetrava no conhecimento de tão singular criação;e chegou a compreender que o espírito, na nova forma quehavia assumido dentro da estrutura física e psicológicahumana, deveria cumprir na Terra fundamentais etapasde evolução.

Recipiendário da ciência original, o espírito haviacumprido, antes de sua descida a este mundo, o adestra-mento necessário para poder manejar com inteligência oselementos cósmicos correspondentes a sua esfera de ação.Terminada com isso a metade de sua instrução, fechou-seo capítulo, para reabrir-se nos ciclos de existência terre-na, onde, em obediência a supremos desígnios, haveria decompletá-la.

O Criador havia equipado o homem de consciênciapara que ele pudesse realizar os grandes trabalhos deaperfeiçoamento que sua condição de humano lhe impu-nha, mas, apesar disso, não demoraram a surgir as debi-lidades da carne, as tentações e demais complicações quelogo atormentaram o gênero humano.

A juízo do protagonista, impunha-se o cumprimen-to de um processo de reversão que levasse o homem a reco-brar sua pureza original, fonte imanente dos recursos doespírito, em cuja realização haveria de usar, como ferra-mentas de trabalho, conhecimentos que, em virtude dessaaspiração, lhe servissem para executar a magna obra exi-gida de seu arbítrio. Não contava com outros deuses tute-lares que não fossem os elementos de sua própria inteli-gência, nem havia outro milagre possível que o de sua res-surreição ou despertar consciente num mundo superior. Oesforço, a perseverança e as ânsias profundas de supera-

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ção o ajudariam a saltar por cima dos muros metafísicosque dividem os dois mundos opcionais para sua vontade.

Recordou as passagens iniciais do espírito naTerra. A ave, acostumada a voar com liberdade, sentia-seescrava, oprimida entre as grades da carne. Extenuadapela dor, mergulhou finalmente em profundo sono, cir-cunstância que Deus aproveitou para dar o toque cósmicoà sua criação, fazendo emergir de sua divina alquimia amulher. Que causas haviam intervindo na divisão anatô-mica da célula humana?... Sem dúvida, a necessidade donúcleo para que se encadeasse a espécie. Tanto o homemcomo a mulher haviam sido dotados do poder de pensar,de sentir, de amar, de criar e de procriar, com o que essafinalidade se iria cumprindo cronologicamente. Mas aindadescobriu algo mais, e era o papel principalíssimo que amulher haveria de desempenhar na vida do homem, já quena natureza feminina está contida grande parte dos mis-térios que o homem deverá descobrir para lograr suaascensão aos domínios da sabedoria.

Com tais perspectivas, o espírito havia começado,dentro de seu encerro humano, sua evolução através desucessivas e intermináveis centenas de séculos. Era umaevolução lenta a sua, porque a consciência, inerme, haviamergulhado em profundo sono e, como a bela adormecidado bosque, esperava que seu dono, aprendendo-lhe onome, a chamasse e, despertando-a, lhe oferecesse o cetroda vida. Que significado tinha isso?... O de que o homemdevia alcançar a mais cobiçada e incomparável de todas asposses, com o que a franquia e o conhecimento do mundosupra-sensível haveriam de tornar-se propícios para ele.

Era preciso, pois, absolutamente preciso, que o serhumano advertisse e compreendesse que o abandono divi-no – ao qual tantas vezes fez alusão em suas lamentações,

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crendo-se condenado injustamente a um eterno cativeiroterreno – não obedecia a nenhum castigo, e, no caso deeste existir, era devido tão-só a fatores de sua exclusivaresponsabilidade.

Com isto, De Sándara fechou o segundo capitulo deseu livro. Sua mão continuou escrevendo, obediente aoditado de pensamentos que se encadeavam uns aosoutros, compondo as passagens finais da épica jornada.

O herói havia regressado de sua feliz exploração ese achava, agora, entregue a um doce sonho, que o trans-portou a um novo cenário.

Nele, viu-se a si mesmo caminhando pela Terra,assombrado ante a visão das coisas e dos homens que orodeavam, os quais permaneciam quietos, imóveis, como sea própria existência houvesse desaparecido deles. Olhou paraum e outro lado e nada mais viu que aquelas coisas e seresinertes, faltos de movimento, e – oh, que sensação estranha!– sentiu-se inesperadamente identificado com eles.

Caminhou, caminhou muito, e em todos os lugarespor onde passava, fosse cidade ou campo, palácio ou choça,montanha ou planície, continuou vendo coisas e homensimóveis, como que petrificados. Aproximou-se de uns,depois de outros e de outros, e lhes falou, mas eles não oviam nem lhe respondiam... Era porque, ao aproximar-sedeles, fazia-o em espírito, e também em espírito lhes falava.Aquilo provocou nele um amargo sofrimento; um sofrimen-to que o impulsionou, quase com desespero, a chamá-los,instando-os a que despertassem. Ninguém, entretanto, oviu nem ouviu. Apesar disso, porém, ele sabia que existia.

Depois de muito andar, chegou finalmente a umponto onde se deteve. Ali, sentiu brotar de seu ser umcanto, um canto doce que se expandia e alcançava umgrande volume. Olhou ao seu redor e observou que o que

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até então havia permanecido inanimado começava a seanimar. A doçura de seu canto acabava de despertar oshomens de seu sono!... Mas ele não podia manifestar-se aseus olhos, porque, estando em espírito como estava, elesnão o viam.

– Oh!... – exclamou com alegria. – Meu canto lhesinfundiu vida e alento!... Que ele chegue a todos, e quetodos sintam a vida de meu canto! Que avancem por meiodele e se consubstanciem com a perpetuidade dos tempos!Que meu canto derrame sobre a Terra a felicidade e a pazque os homens necessitam!

Animado pelo que seus olhos haviam visto, conti-nuou sua marcha pelo mundo, e, enquanto andava, seucanto ia transformando-se em palavras de luz e de amor.Não tardou a constatar que os homens o escutavam aten-tos, e que também eles cantavam, formando à sua voltaum coro sublime. Era o canto da liberação, o canto da ale-gria, da compreensão e da reciprocidade humanas.

Ao comprovar que tudo havia adquirido vida e ati-vidade, que a Natureza abria generosamente seu formosoe fecundo seio para que reinasse perenemente na Terra opensamento de Deus, sua voz foi amainando, até se apa-gar. E prosseguiu sua marcha recolhido em si mesmo,levando consigo a imagem dessa criação que, primeira-mente, havia contemplado estática, sem vida, e depois ani-mada pelo maior de todos os agentes que podem confluirnela: o imenso amor de Deus.

Ao despertar de seu sono, teve a sensação deque havia escutado seu próprio canto, mas sabia que,embora tivesse surgido de seu ser, aquele canto divi-namente formoso não era seu, não podia ser seu, massim d’Aquele que o havia dotado desse poder feitoVerbo.

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O lar dos Arribillagas, passado o fervor da lua-de-mel, ia entrando no período de expectativa em que oscaracteres – após o acomodamento dos gostos, das idéiase das formas de apreciar as coisas em comum – começama definir-se. A tolerância e o tato com que um e outro vies-sem a atuar na convivência diária seria o que haveria depôr à prova, para o futuro, a sinceridade do amor, agoraselado pelo vínculo matrimonial. Sem conhecimento cabalde como podem promover-se as dificuldades provenientesdo contato freqüente e familiar, Cláudio e Griselda haviaminiciado aquela etapa tão transcendental da vida com umaconfiança ilimitada na felicidade que o fato de estaremassistidos pela conjunção harmônica de seus altos ideaislhes haveria de deparar.

Um acontecimento doloroso veio a comover a ale-gria do novo lar, apenas dois meses após a chegada deCláudio e Griselda a Buenos Aires. A morte de DomRoque, ocorrida inesperadamente, havia-os surpreendidoquando mais próximo parecia estar o seu restabelecimen-to. Juntos choraram a perda daquele ser querido, de quempor muito tempo sentiriam saudade. Ali, nos locais maisfamiliares da casa que por tanto tempo habitara, ele esta-ria sempre presente, projetando sobre seus descendentes,como fiel guardião de sua herança, os traços de sua vidanobre e exemplar.

Transcorreram meses.Com surpresa, certo dia Griselda viu nublar-se o

céu de sua felicidade, ao comprovar que uma objeção for-mulada a Cláudio, na qual procurou pôr a maior delicade-

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za, foi recebida por ele com vivas demonstrações de desa-grado. A rigidez mal dissimulada de seu rosto, costumei-ramente risonho, e uma leve restrição ao falar, mantidasem variação no curso daquele dia, levou Griselda a com-preender que dali por diante deveria abster-se de taisobjeções. Mas não lhe custou esforço ajudar a desanuviaraquele semblante ensombrecido, e o relacionamento denovo se fez suave, desvanecendo-se a dor da primeiradesarmonia.

– Por que será que, quando somos contrariados – di-zia-lhe ele, após alguns dias, – experimentamos um desa-grado que nos deixa indispostos com a pessoa que se opõea nosso juízo, ou que o corrige?

– Talvez seja porque não conseguimos dominar nos-sos impulsos, com o que poderíamos demonstrar commaior êxito a consistência de nosso juízo perante osdemais.

– Creio que nem mesmo assim seria possível evitaro aborrecimento que isso nos causa.

– Devemos pensar também, Cláudio, que nem sem-pre é possível determinar, num instante, se estamos defato numa posição correta. Às vezes, as próprias circuns-tâncias da vida são as que, em curto ou em longo prazo,concorrem para nos dar a razão, se é que a temos.

– Mas nem sempre é o desejo de esclarecer um assun-to o que leva nosso oponente a nos contradizer, pois é notó-rio que, em muitos casos, ele faz isso por simples mania...

– Melhor ainda se for assim. Após fazermos essa cons-tatação, teremos a oportunidade de contrapor nossa paciên-cia e tolerância à investida de um critério equivocado.

– Não tenho essa mesma opinião. Podemos até pôr denossa parte paciência e tolerância, principalmente se nãonos resta outro recurso, mas considerar, como você faz,que é melhor que seja assim...

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– Cláudio!... Até quando seguiremos pensando quesão os demais que devem mudar seu modo de ser? Isso nãoé desejar um bem que a nós mesmos estamos negando?

Tão persuasiva e afável era a voz de Griselda, queCláudio se recompôs, numa maior ponderação:

– Se você me opõe essas reflexões, terei de me ren-der e abreviar logo o assunto... Contradizer você seria colo-cá-la na situação de elaborar virtudes à minha custa, e nãoacho que isso me convenha. Mas... aonde você quer che-gar?... Às vezes me parece que você vai muito para os extre-mos!... Compreendo que somos nós que devemos mudar,elevando nossos estados de consciência, com o que nosavantajamos em muito aos que se mantêm invariáveis emsuas modalidades, pensamentos e hábitos. Mas tudo isso équase impraticável ante as reações que se desencadeiamsobre nosso ânimo, às vezes por motivos bem justificados.

Griselda permaneceu pensativa, sentindo dentro desi um pesar por essa inusitada vacilação de Cláudio dian-te de conceitos que tão intimamente eles tinham compar-tilhado. Havia tempos que tinham descartado, como ino-perante, a vulgar pretensão de que fossem os demais quemudassem; bem diferente disso, pensavam e aceitavam decomum acordo que, modificando a própria conduta, asdiferenças poderiam ser conciliadas.

Discretamente, Griselda evitou insistir e procurou,pelo contrário, que a conversa se desviasse para outrasquestões, ficando assim dissimulada a marca que aquelepequeno incidente da vida em comum havia deixado emambos. Cláudio pegou em seguida um jornal, entregando-se por inteiro à sua leitura; Griselda viu ao alcance de suamão um livro: abriu-o ao acaso e, fingindo que lia, foi pas-sando lentamente as páginas.

As palavras que expressara a Cláudio, temposatrás, nas quais, por mera intuição, se havia referido à

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próxima incursão de ambos nessa zona difícil que deve-riam atravessar para a conquista de suas aspirações, fize-ram-se-lhe presentes nesse momento, talvez para preveni-la no instante inicial de seu percurso.

Com freqüência, ocorriam intercâmbios de opiniãoentre ambos e, apesar da complacência que ele mostravanessas conversas, não escapava à perspicácia de Griseldacerto debilitamento dos propósitos que ele concebera emseu contato com De Sándara; daí que nem sempre coinci-dissem em suas apreciações, nem tampouco em seus esta-dos de ânimo.

Era um fato evidente que Cláudio estava se descui-dando além da conta de seus propósitos de outrora, e queestes já não lhe inspiravam o mesmo entusiasmo. Quecausas haviam intervindo nisso? Sem dúvida, a instabili-dade de seus pensamentos, ainda não encaminhados nadireção desejada. Porém, o que em realidade contribuíapara promover essa situação era sua entrega um tantoexcessiva à felicidade conjugal, a qual, se o levava por umaparte a propiciar a Griselda as mais delicadas atenções ecuidados, por outra desviava insensivelmente sua atençãopara as atrações da vida exterior. Cláudio parecia sentir,agora, um prazer que não havia experimentado antes nocontato com o mundo que o rodeava, o que o impelia adesenvolver uma atividade social que se foi tornando cadavez maior e mais exigente. Somando-se a isso as obriga-ções de sua profissão e o cuidado de seus interessescomerciais, escasso tempo lhe restava para dedicar-se aoutras preocupações que não fossem as comuns. Custava-lhe, portanto, retomar o processo de sua evolução interna,em plena fase inicial, e, à mercê de tais oscilações, produ-ziam-se nele reações que perturbavam seu temperamentoe faziam sua vontade fraquejar.

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Quanto esforço é exigido da alma que se dispõe aempreender a formosa tarefa da própria redenção, quan-do se trata de vencer a resistência furiosa dos pensamen-tos enraizados na mente, os quais, com tenaz intento deimpedir seu afastamento, conspiram incansavelmentecontra os desígnios de quem persegue uma tão nobrequanto louvável conquista! Esse era o drama de Cláudio,e o drama de todo aquele que quer emancipar-se da escra-vidão de seus pensamentos e da pressão indômita de seusinstintos; drama que se desencadeia com maior intensida-de no homem, uma vez que a alma da mulher é mais dócilaos câmbios que a evolução impõe.

O amor-próprio era em Cláudio Arribillaga – comoo é em todo indivíduo – algo similar à soberania que cer-tas nações agitam como bandeira da independência anteas demais, enquanto internamente homens e povossofrem a humilhação de serem submetidos aos pensamen-tos despóticos daqueles que os governam sob o império doabsolutismo. Os câmbios na estruturação mental, sensívele instintiva não podem ser alcançados mediante repenti-nas transições. O processo de transubstanciação psicoló-gica e espiritual compreende importantes e árduas etapasda evolução, e em sua realização haverão de experimen-tar-se as mais curiosas alternativas – ora doces, ora amar-gas –, segundo sejam as causas que concorram para defi-ni-las. Daí os altos e baixos que marcavam presença naconduta de Cláudio; daí os obscurecimentos de seus esta-dos psicológicos.

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As primeiras visitas que Arribillaga fez ao clube, apósseu casamento, tiveram o fim especial de estabelecer umnovo contato com aqueles amigos que, empenhados em con-seguir um maior desenvolvimento de suas aptidões morais eespirituais, ligavam suas esperanças a De Sándara, comquem mantinham freqüente intercâmbio de correspondên-cia. Em tais oportunidades, teve ele ocasião de avaliar o graude afeto e de respeito que dispensavam àquele, bem como aboa disposição com que se entregavam à investigação deseus conhecimentos. Marcos, Justo e Norberto eram os quesobressaíam pela dedicação e os que, com maior naturalida-de, ajustavam sua conduta às linhas severas do processointerno de aperfeiçoamento que haviam iniciado. O senhorMalherbe e, com a mesma assiduidade, o professor Moudetcompareciam sem falta às reuniões, que umas vezes se rea-lizavam no clube e outras, na residência particular de um oude outro. Miguel Ángel e Salvador contavam-se tambémentre os que mais tinham participação naquele círculo,constituído com o fim expresso de intercambiar os resulta-dos de estudos individuais sobre matéria transcendente.

Este novo motivo de interesse havia esfriado a tal pontoem alguns a adesão que os havia agrupado na peña, que dei-xaram completamente de freqüentá-la. Apesar disso, esta con-tava com um bom número de aficionados, que ali acorriam embusca de pueril entretenimento. Por insistentes pedidos deLuciano, Cláudio compareceu várias vezes, embora indo só devez em quando e com uma disposição de ânimo que, a princí-pio, era apenas mediana; mas não demorou a contar-se entreos entusiastas. E não somente isso: perdendo de vista o moti-vo principal que o havia levado a freqüentar de novo o clube,dedicou-se à peña quase que com exclusividade.

A renovação do contato com tais amigos fez reviverem Cláudio o sentimento de camaradagem que o unia a

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muitos deles desde a infância. Ao mesmo tempo, porém, eledava mostras de haver perdido a prudência que o assistiraquando seu pai era vivo, época em que, entre seus compa-nheiros, dava preferência sempre aos melhores.

Obedecendo, sem dúvida, a alguma inclinação frí-vola que jazia lá no fundo de seu ser, e a despeito de suasadia constituição psíquica e moral, Cláudio foi cedendogradualmente à influência dos novos amigos. Avançando oinverno, suas ausências do lar se fizeram notar, e o grupobrincalhão e desordenado de Luciano contou com ele emmuitas de suas horas de farra.

Eventuais reuniões no clube, ou diversos encontrospor motivos profissionais, foram os pretextos invocadospara justificar suas saídas noturnas, e Griselda, que nãoconseguia afugentar de si as preocupações, via-o mudargradualmente de conduta e acentuarem-se os sinais detão incompreensível desvio. Suas atitudes contraditórias,suas vacilações, eram a prova cabal do debilitamento desua vontade, que cedia ao influxo avassalador de pensa-mentos em plena efervescência e se dobrava ante o impé-rio de seu instinto, ainda indômito e autoritário.

Certa noite, sentada numa poltrona de seu quarto,Griselda lia, à espera de Cláudio para jantar. Ao ouvir oeco de seus passos na saleta, prontamente foi a seuencontro. A instabilidade mental de seu esposo, porém, ahavia deixado prevenida, motivo pelo qual se deteve inde-cisa, ao vê-lo, buscando avaliar o grau da contrariedadeque pareceu a ela descobrir em seu rosto.

Instantaneamente, vencendo aquela vacilação,aproximou-se dele e, com carinhosa solicitude, pergun-tou se alguma preocupação séria o afligia. Mas ele, evi-tando o olhar límpido com que era observado, mostrou-se esquivo.

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– Não jantarei em casa – respondeu secamente,percorrendo em largas passadas o aposento.

– Não?!– Acha estranho?– Acho estranho, de fato, mas... se algum motivo o

impede...– Pois é isso. E um motivo muito simples: esta noite

pretendo jantar com meus amigos. Quero retribuir-lhescertas atenções e demonstrar que não desejo me distan-ciar deles.

– Por que você haveria de estar distanciado?– Justamente isso é o que eu me pergunto! Por

quê?!... O que acontece é que, quando a gente se engolfaem preocupações que levam para cima demais, acabaesquecendo que está na terra, e que nela tem de viver for-çosamente; e isso de maneira alguma é possível.

– De certo modo – observou Griselda, com prudên-cia, – somos um pouco extremistas ao nos situarmos noponto oposto, até mesmo nas coisas menos importantes.

– Pois é por isso! Para evitar esse extremismo –disse ele, passando por cima da sutileza, – vou dedicar, deagora em diante, um tempo a meus amigos e outro à rea-lização do que eu pensava.

– Não vejo mal nisso... embora eu não saiba, emrealidade, como você fará para que em sua mente não seproduzam interposições.

– Não se preocupe! Logo saberei como evitá-las. Trocou de roupa, tarefa na qual pôs tempo, e des-

pediu-se dela até o dia seguinte.Insensato! Assim respeitava aquilo que um dia fora

tão caro às suas aspirações! A raposa que desdenhou asuvas, argumentando que estavam verdes, sabia que paraela eram inacessíveis, mas ele desdenhava os conhecimen-

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tos que se achavam quase ao alcance de sua mão, porquelhe exigiam moderação. Quanto custa ao homem com-preender que pode ser o artífice de seu próprio destino!Era de se esperar de Cláudio um comportamento maisajustado às suas aspirações, mas era evidente que ajuventude governava ainda sua vontade, conduzindo-apelos caminhos fáceis da vida mundana.

Griselda jantou, naquela noite, em sua suíte; era aprimeira vez que Cláudio a deixava sozinha por motivostão pouco justificáveis.

Patrício, que a servia, entrava em silêncio no apo-sento e de novo saía, levando e trazendo os pratos, sempreem silêncio. O bom mordomo tudo compreendia, sofrendopor Cláudio com os desvelos de um pai. Repetidas vezestentou dirigir a palavra a Griselda com o fim de distraí-la,mas, dando-se conta de que de seus lábios não sairiamexpressões suficientemente felizes, optou por esmerar-seem sua amabilidade, conformando-se com esse recursohumilde e singelo.

Excedendo-se nas concessões em nome de sua ami-zade, Cláudio naquele dia chegou a altas horas da madru-gada a sua casa. Vinha pensando que poderia ser, talvez, omais feliz dos homens, bastando-lhe tão-só deixar que suavida transcorresse dentro da rotina em que outros viviam,sem ter de se submeter à presença constante desse censorinterno que se compraz em apontar as más atuações.

Quando entrou em seu quarto, Griselda pareciaadormecida. Aproximou-se dela para confirmar e, nesseinstante, percebeu em seu rosto marcas de pranto.

Seu coração apertou-se com força.

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Ensaiou em seguida uma explicação que pudesseconfortá-la, mas, compreendendo de imediato que nenhu-ma razão poderia justificá-lo, deixou que se apagasse aexplicação em seus lábios.

– Vou procurar evitar novos motivos de tristeza paravocê, minha Griselda querida... – disse-lhe, finalmente. – Eulhe prometo isso! Deverei esforçar-me para encontrar a seulado a felicidade profunda e ampla que minha alma intui, eque tanto custa a meu coração alcançar. Quantas vezes ten-tei lutar contra os pensamentos que acreditei afastados hátempos de minha mente! Em meio a essa luta, vejo às vezesse iluminarem os recursos que devo esgrimir ante eles, e atésinto como seu estranho poder me defende. Mas esses pen-samentos continuam se abrigando em mim, ressentidos,sem recuar na tentativa de perturbar minha vida.

– Compreendo, Cláudio, mas também conheço anobreza de seus sentimentos e tenho fé na força que vocêencontrará neles para dominar tais pensamentos.

– Só sei que seus argumentos persuasivos termi-nam por obscurecer minha razão, desencadeiam meuamor-próprio, atiçam minha intolerância e minha impul-sividade e anulam, em mim, toda tentativa de consagrar-me ao bem e à elevação de minha vida. Você desconhece,Griselda, essa faceta oculta de minhas alternativas e, domesmo modo, os movimentos internos de minha sensibili-dade, à procura daquilo que juntos nos propusemos.

– Entretanto, eu sei que você vencerá um dia, Cláudio!Não ponho isso em dúvida um só instante. Então, já nada secontraporá a seus propósitos, porque eles se haverão trans-formado dentro de você numa formosa realidade; numa rea-lidade que é o fruto de um cultivo que somente a evoluçãogradual de nossa consciência permitirá realizar.

Cláudio estreitou-a fortemente em seus braços,comovido por aquelas palavras ternas e reconfortantes.

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Griselda, longe de abandonar a continuação de seudiário, tornou-se ainda mais perseverante em suas anota-ções, às quais recorria com freqüência quando necessita-va desafogar sua alma ou pôr ordem em seus pensamen-tos. Naqueles manuscritos, que compendiavam a pequenahistória de sua vida, ela continuava depositando suasmais íntimas e delicadas confidências, nas quais seusestados de ânimo transpareciam, ora tristes, ora plácidos,ora com o alento de esperanças, ainda que poucas vezesalegres como antes.

No retiro agradável de sua saleta, transmitia aopapel, passo a passo, o que ia experimentando e com-preendendo no curso dos acontecimentos que a como-viam, recorrendo às suas anotações toda vez que necessi-tava reforçar seus propósitos e atualizar o fruto de algumade suas experiências.

Sem dúvida, era isso o que Griselda buscava depoisdaquela noite, na qual sofrera tão profundas comoções, aodeter sua atenção sobre estas páginas de seu diário:

“28 de setembro. Cláudio enfrenta penosas lutasinternas, que repercutem profundamente em mim. Seusestados de ânimo me causam desconcerto, espanto e todaa tristeza que é dado experimentar ante a possível derro-cada das mais doces esperanças que animaram minhavida. Eu o observo, estudo seus estados através de todosos incidentes de nossa breve vida matrimonial e, atual-mente, me parece ter compreendido algo do que se passa

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com ele; mas não posso, não sei ajudá-lo... Cláudio é detemperamento razoável, mas impulsivo. Felizmente, essaalternativa ingrata de seu temperamento logo cede, se algoconsegue comover seus sentimentos. Seu coração é de ouro,mas sua mente o atraiçoa repetidas vezes, nublando a claracompreensão que costuma ter das coisas. Quantas vezeslhe pedi que moderasse os excessos de seu temperamento!Quando, depois da tempestade, serena o marulho dos pen-samentos que o obstinam, ele se sente pesaroso. É indubi-tável que isso o faz sofrer. Entretanto, seu caráter afável derepente se torna áspero, sem que eu descubra sempre omotivo; sofro bastante por isso, mas me consola pensar quecom o tempo ele mudará. Sempre acredita ter razão; e, sealguma vez me vê ressentida, maior é seu desgosto; por essacausa, às vezes tem jantado fora de casa, ou tem saído semrazão alguma. Nunca pensei que Cláudio fosse tão difícil delevar... Voltando os olhos agora para mim mesma, por queme tenho mostrado ressentida com ele? Tive de me pergun-tar isso repetidamente, para poder chegar a ver com clare-za dentro de mim. A princípio, aprovei-me totalmente;depois, cada vez menos; agora, estou um pouco mais trei-nada na discriminação do que faço bem e do que faço mal,daí que procure me manter sempre que possível serena,sem me ressentir. Não consigo estar sempre assim interna-mente, mas tampouco incorro na torpeza de exteriorizá-lo.Pude comprovar a importância que tem a serenidade nessescasos, já que, quanto mais moderada me encontro, melhordisponho de minha prudência. Junto à satisfação que essapequena eficiência me dá posteriormente, vejo que consigoneutralizar muitas conseqüências ingratas.

“Nos últimos tempos, tenho visto Cláudio fazeralarde de muito amor-próprio, e já sabemos quão suscetí-vel se fica quando este se manifesta. Pude observar – ape-

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sar de ele dissimular bastante isso – que a firmeza de minhasconvicções algumas vezes o exaspera. Será que o incomoda,talvez, ver em mim o que por ora ele não possui? Que doloro-sa é para mim essa manifestação de seu amor-próprio, meuDeus! Não obstante, quando consegue recolher-se em simesmo e pensa, é totalmente diferente; é outro; então, sim, é oCláudio a quem eu quero.

“Faz muito tempo que não recebe carta do senhor DeSándara. Suas notícias o estimulavam tanto!... Pobre Cláudio!Quantas vezes se propôs adotar firmemente outra conduta e,apesar de meus esforços em apoiá-lo, seu entusiasmo logodecai e seus estados de impaciência recrudescem. Às vezes,vejo-o abatido... É assustador pensar quão inconstantes somoscom nossos propósitos; o menor incidente de nossa vida servepara postergá-los, fazendo com que a vontade, que deveriamanter-se sempre ativa, se ressinta sensivelmente. Com quechave secreta haveremos de contar, para que possamos condu-zir-nos pelo caminho da felicidade sem tropeços, e sem quefatores tão secundários retardem nossos passos? Mariné meajudaria, sem dúvida, a superar estes obstáculos. Que felizdeve estar Mariné, nesses momentos tão próximos de seucasamento, ela que tem junto a si o homem que tanto sabe denossas fraquezas e de tudo o que nos é incerto! Sem dúvida,será imensamente feliz ao se casar, uma vez que estará a salvodesses inconvenientes. Ao pensar nela, sinto-me invadida poruma terna alegria. Será que chega até a mim, pelo carinho comque a recordo, uma pequena parte de sua felicidade?

“Em circunstâncias como as que atravesso, não experi-mento a alegria que deveria experimentar, ao pensar que logoserei mãe; pelo contrário, sinto que com isso meu pesar seaprofunda. Poderia eu ter suspeitado, alguma vez, queCláudio, a quem tanto amei e amo, menosprezaria um diaestar a meu lado, unindo sua ventura à minha neste instante?

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“Custa-me bastante suportar essas inesperadas revi-ravoltas da vida matrimonial. Entretanto, a ninguém mais queà minha intimidade posso confiá-las. Poderiam meus pais meajudar, se eu recorresse a eles? Por mais que conheçam ecompreendam esse tipo de problema, não poderiam ir além doconselho contemporizador, que atua como sedativo, mas quenão cura... Além do mais, há um limite que não devo ultrapas-sar em minhas confidências. Algo mais forte que minha neces-sidade de desabafo e de amparo me obriga a calar tudo aqui-lo que, em meu lar, cria uma situação anormal. Como pode-ria, pois, comunicar, mesmo à minha mãe, ocorrências reser-vadas unicamente à intimidade? Entretanto, mamãe nãoparece ignorar o que está acontecendo; observo que se esfor-ça em auxiliar-me, pondo a meu alcance elementos para ate-nuar muitas situações, e com que discrição e carinho ela ofaz! Quão feliz ela se sente, ao pensar que a faremos avó, eque doce entusiasmo ela põe nos preparativos que estamosfazendo para receber nosso primeiro filho! Foram necessáriasalgumas mudanças na casa, para poder destinar a ele umaposento próximo ao nosso. E não foi difícil; só tive quemudar meu quarto de vestir para a saleta contígua. Agora,estamos por escolher sua decoração, e na escolha desfruta-mos, por antecipação, muitas satisfações. Será bem recebidaa deusa Lucina!* Cláudio desfruta também conosco e com-partilha da alegria que se manifesta em mim, quando, juntos,falamos de tão venturoso acontecimento, mas não com aamplitude que eu queria.

“Necessito elevar muito meu espírito; transportá-lo àsalturas que o vivificam, para que, dali, ele me ilumine,enquanto trato de descobrir, em todas e em cada uma destascircunstâncias que rodeiam minha vida, motivos que me

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(*) N.T.: Divindade que, na mitologia romana, presidia aos partos..

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guiem em meus empenhos por aumentar a eficiência deminhas aptidões e me ajudem a levar adiante a formosa mis-são de minha vida.”

“5 de outubro. A que obedecerá este desassossego queme invade tão freqüentemente? Algo dentro de mim pareceriaestar me impulsionando a buscar a causa. Diria que minhasensibilidade quer conduzir-me ao exame de algum fato sobreo qual não me detive ainda. Faço uma busca dentro de mime sinto que se define, na zona de meus pensamentos, umapergunta: Não terei entorpecido ou dificultado alguma vez,involuntariamente, os bons propósitos de Cláudio? Talveztenha sido um pouco exigente com ele. Um pouco? Tenho cer-teza?... Antes, de forma equivocada, pensava que, por nosencontrarmos à procura de um aperfeiçoamento espiritualefetivo, deveríamos prontamente deixar de cometer erros.Hoje, que me tornei mais compreensiva, sei, por haver apren-dido através de minha própria experiência, que estes são nocomeço absolutamente desculpáveis. No caso de Cláudio, eudeveria ter sabido dissimulá-los sempre. Fui em todo momen-to tolerante com ele? Fui bondosa em meus juízos?Suficientemente discreta com seus desacertos? Sem dúvida,não. É que também eu estou aprendendo a frear os efeitosque as contrariedades promovem em mim, e haveria no meucaso uma prematura prudência se minhas atuações fossemsempre corretas. Será isto uma desculpa? Talvez seja, massomente em parte; também é para mim uma boa lição de tole-rância.

“É escasso o conhecimento que tenho dessas coisas,mas neste instante me sinto movida a pensar que tal condu-ta tem de forçosamente promover no varão a reação mentalconseqüente, despertando em sua alma ressonâncias de aná-loga intolerância. Não poderia de modo algum dizer que é esteo fator preponderante nas alternativas que agitam a vida do

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meu lar, já que não foram muitas as vezes em que me deixeilevar por tão imperdoável erro. Eu me atreveria, porém, a afir-mar que, não sendo contido a tempo, poderia chegar a cons-tituir-se num motivo de séria perturbação para o homem, oqual, incomodado pela espreita e pela censura, tratará desafar-se, de um modo ou de outro, das rixas domésticas quesobrevêm por causa disso. Quanto conhecimento se requerpara evitar tais incompreensões, ou para neutralizar seusefeitos, quando eles se promovem! Seria, entretanto, auxíliosuficiente recordar oportunamente que nossa vida interna,como a de cada semelhante, é inviolável, e que a ninguémassiste o direito de imiscuir-se nela; a responsabilidade sócabe a seu dono.

“Como serena e reconforta meu espírito este acerca-mento que lhe estou propiciando, e quão saudável é o efeitoque seu contato produz em meu ânimo!...”

“10 de outubro. Em nossa época de namoradas, muitonos agrada ser acarinhadas, ser motivo de mil delicadezaspor parte do homem que amamos. Depois, ao nos internar-mos na vida matrimonial, o panorama muda de modo impre-visto, e constatamos que tais prodigalidades diminuem e atése interrompem. Quão necessário é que nos interessemos pordescobrir a tempo até onde somos alheias às causas quederam lugar a essa mudança! Muito tem a ver com isso, semdúvida, a falta de realidade com que olhamos o futuro matri-monial. Nem ao menos por um instante supomos que, ao nosinternarmos nele, tudo irá se encaminhando gradualmentepara o natural. Que coisas estranhas nos acontecem! Pensonaqueles primeiros tempos, anteriores e posteriores ao nossocasamento, e tudo me parece como que envolto nas cores dosonho... Serei uma desiludida? Em tal caso, uma desiludidasem mágoa, pois tudo aquilo assumiu para mim o significado

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de uma festa com que a vida celebra – é certo que quase sem-pre com extremo excesso de inconsciência – sua próxima ini-ciação no caminho das realidades, um caminho difícil de per-correr, mas também formoso. Pelo que eu mesma pude ava-liar, essa passagem inolvidável da vida pode ter ressonânciasmuito diferentes nos corações. Feliz o meu, posso dizer, por-que com sua ajuda pude formar em meu entendimento, emresposta ao constante palpitar de íntimos anelos, a imagemque hoje me mostra aqueles instantes como um simbólicoprenúncio da felicidade que haverei de desfrutar mais tarde,quando, depois de saborear dela as pequenas partes que ireiganhando com o esforço diário, eu tenha conseguido final-mente alcançar sua conquista.

“Meu pensamento pareceria querer deter-se, ainda,na meditação sobre as causas que alteram a felicidade con-jugal e agravam o instante em que a vida matrimonial, dei-xando as abundâncias afetivas, passa a correr pelo leito danormalidade. Alguns casos conhecidos vêm à minhamente, talvez como advertência sobre aquilo que nuncadeverei imitar. O de Liana, por exemplo. Liana é uma dasamigas de quem mais gosto, e, como me faz confidências,contou-me algumas das coisas que lhe acontecem. Apesarde minha pequena experiência nesses assuntos, perceboque é ela mesma a causadora da situação em que está. Amulher sente na varonilidade um amparo, no qual suafeminilidade se refugia; suponho que o homem, por suaprópria natureza, corresponderá a essa atitude da almafeminina e se sentirá satisfeito, por seu turno, nessa posi-ção de predomínio que sua virilidade lhe confere. O caso deLiana é daqueles em que a docilidade, a brandura com quea mulher aceita no começo a superioridade do homem setransforma ante a primeira contrariedade, vendo-se este,de repente, diante de uma mulher que discute com ele em

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pé de igualdade gostos e opiniões, substituindo a suavida-de e a brandura de antes pela aspereza que o amor-própriofomenta. Que efeito pode promover no homem uma condu-ta assim, tão inesperada quanto inadequada? Sou, não hádúvida, muito nova na observação da psicologia do sexoforte, mas talvez não esteja errada ao pensar que ele há dese sentir diminuído, porque o domínio que, mesmo semquerer, ele exercia sobre a mulher, quando se sentia donode seu amor e alvo de seu respeito, deve decrescer, ao com-provar que ela somente lhe pertence em parte. Talvez nãoaconteça a mesma coisa em todos os casos, mas o certo éque, no marido de minha amiga, se produziu uma reaçãoum pouco forte, que hoje o leva a fazê-la sentir, por impo-sição, aquela mesma autoridade que ela, inadvertidamen-te, um dia lhe havia auspiciado. Quantas surpresas evita-ríamos para nós mesmas, se recordássemos sempre aquiloque pensávamos quando éramos namoradas!... Eu aconse-lho Liana a que trate de recuperar em seu lar o lugar quelhe corresponde; o lugar que nunca deveríamos perder, quenunca perderíamos, se soubéssemos conservá-lo com osentido e a compreensão cabal de nossa missão. PobreLiana! Ela é boa, e estou certa de que chegará a compreen-der seu marido, porque o ama.”

O rude golpe sofrido por Dom Túlio, ao desmoro-nar-se estrepitosamente sua sólida fortuna, e a insólitafuga do decepcionante caçador de dotes feriram profunda-mente o orgulho de Nora. Longe de pensar em adaptar-sesensatamente a viver com prescindência do excessivo luxo

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que até então a havia cercado, ela se rebelou contra aadversidade, lamentando-se com reiterada irritação antequalquer obstáculo que a própria força das circunstânciasopunha a seus gostos. Sujeita, como quando era menina,a seu caráter volúvel, caprichoso e irrefletido, e com osinsatisfeitos desejos de outrora talvez reavivados, um diaconcebeu a idéia de aproximar-se novamente de Cláudio.Tinha-o visto pela última vez por ocasião da morte de DomRoque; desde então não voltara a visitar-lhe a casa, masnão viu inconveniente em freqüentar seu escritório.

Enquanto assegurava falsamente que se sentiareconfortada em sua companhia, Nora ocultava sob essamansidão, que parecia ter origem nas rudes contrariedadessofridas, uma intenção avessa: manter com ele uma vincu-lação mais íntima. Tão desdenháveis propósitos, escondidosa princípio por detrás das aparências de uma simples apro-ximação amistosa, estiveram a ponto de alcançar seu obje-tivo, pois faltou pouco para que a impostora transtornasseo juízo de Cláudio. Aquilo foi para ele uma verdadeira prova.O tipo de vida que nesse momento ele levava predispunha-o a ser presa fácil de tão atrevido assédio, e Nora, por certo,não era mulher de poucos recursos. Dominava melhor doque nunca os perigosos jogos da sedução, o que salientavanela a esse tipo de mulheres que vivem para a ostentação epara o desfrute de todas as trivialidades da vida mundana.

Não obstante, algo daquela cordura que sempre ohavia protegido das ciladas de sua prima, parecia, tam-bém agora, preveni-lo contra ela, sendo isso, sem dúvida,o que o fez um dia pôr fim a tais entrevistas. Uma vezmais, viu-se ela rechaçada, sem que seu entendimentoconseguisse vislumbrar, ainda, as conseqüências desafor-tunadas que invariavelmente ela atraía sobre si.

O consentimento excessivo com que havia sidocriada; a influência das liberalidades em moda, avultando

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nela com prejuízo das formas sadias e normais do viver; anatural inclinação para seguir uma trajetória oblíqua;tudo, enfim, havia contribuído para que Nora crescesse ese fizesse mulher em meio a uma confusão extremamentemaléfica a respeito dos conceitos éticos e morais da vida.

Enquanto isso, a conduta desencaminhada deCláudio vinha preocupando seriamente aqueles amigosque ele quase havia abandonado, alguns dos quais, nãoobstante, se aproximaram dele repetidamente, procurandoinfluir em sua recuperação. É que ele, apesar das reitera-das promessas que fizera a Griselda, mantinha um ritmode vida fora de qualquer prudência, freqüentando lugaresde divertimento que embriagavam seus sentidos e o torna-vam frívolo, reservado e, com freqüência, tempestuoso.

Foi Norberto, co-participante de seus ideais maiscaros, e penalizado tanto quanto os demais por sua deser-ção, quem um dia resolveu falar-lhe seriamente, chamando-o à reflexão e à prudência, as mesmas que ele defenderaantes com tanto fervor quando se mostrava decididamenteinclinado à realização nobre, metódica, compreensiva econsciente de objetivos que interessavam a ambos por igual.

As palavras de seu amigo, eloqüentes e sinceras, pro-vocaram nele a evocação de entusiasmos agora desvanecidos,causando-lhe visível perturbação no ânimo ante o súbito reco-nhecimento do abandono em que havia caído. Em seu rosto,transfigurado pelo desgaste proveniente de suas próprias fra-quezas, voltou a aparecer, ao escutá-lo, a expressão de suaclara inteligência, e em seu olhar, antes vivo, espiritual,sonhador, projetou-se novamente o reflexo dos sentimentos desua alma, sensível ao bem, enquanto repetia a seu leal amigoa promessa formal de seu retorno ao bom caminho.

Atormentado, angustiado, Arribillaga se propôsseguir tenazmente, a partir de então, a linha de conduta

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consagrada no foro de sua razão e, apesar de haver rein-cidido mais de uma vez no malogro de suas boas inten-ções, pôde, não obstante, conduzir-se dali para a frentecom mais moderação.

Pouco tempo depois, recebeu a visita de Malherbe,que alegou como motivo o fato de haver recebido uma cartado senhor De Sándara, em que solicitava algumas notíciasrelacionadas com os intercâmbios que costumavam reali-zar e anunciava o próximo envio de novos elementos deestudo. Sabia que a simples referência a sua pessoa pro-duziria em Arribillaga um efeito psicológico favorável.

Às perguntas que Malherbe lhe dirigiu sobre certosobjetivos que antes o interessavam vivamente, Cláudiorespondeu com hábeis evasivas. No final das contas,porém, pondo de lado seus escrúpulos de consciência, nãose embaraçou ao dizer que havia estado saldando contascom o velho Adão.

Disse bem, já que, ofuscado pela efervescência dosangue, sua juventude ainda estava lhe rendendo as hon-ras do culto dionisíaco.

– Lamento – expressou Malherbe, fazendo com acabeça um movimento de desaprovação. – Isso demonstraque você prefere ficar rondando as possessões da verdadea internar-se decididamente nelas.

– É que o tratamento ali é um pouco severo...– Severo, não. Mas é diferente, sem dúvida, do que

você costuma dar a si mesmo aqui, neste mundo, onde osinstintos dominam e onde impera o prurido da contradi-ção que confunde, que desorienta e finalmente malograaté as aspirações mais firmes e nobres do espírito.

Malherbe deixou suas palavras caírem com certopeso sobre Cláudio, fazendo como aquele que, ao dispararuma arma, está seguro de acertar no alvo.

Homem de brilhante atuação na vida pública e

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figura de muito respeito em sua esfera de ação, Arribillaganão podia deixar de reconhecer nele autoridade para lhedirigir tais palavras; por outra parte, Malherbe era umapessoa pela qual ele sentia grande apreço.

Tenso e sem muito aprumo, mesmo assim contestou:– Não acho que seja esse o meu caso, senhor

Malherbe, pois eu mantenho vivo o propósito de me dedi-car a esse gênero de investigações, no qual a própria vidadesempenha um papel preponderante.

– O senhor evite, então, doutor Arribillaga, que lheaconteça o que acontece a muitos: por quererem franquearde modo sub-reptício as portas do ignorado mundo metafí-sico, acabam dando com o nariz nelas... Não alterne irre-fletidamente o uso de uma coisa com o abandono de outra,como aquele que hoje escolhe uma roupa que amanhã tro-cará por outra, porque se cansou dela. Acaso você ignoraque os processos da inteligência, que culminam na sabedo-ria, não devem jamais ser interrompidos, sob pena de sepôr tudo a perder? Não há dúvida de que podemos daratenção a um novo assunto, caso apareça, mas isso nãoimplica a necessidade de reagirmos negativamente contraos que ocupavam, até esse momento, nossa atenção.

Cláudio permaneceu mudo, como se as palavras deMalherbe lhe houvessem tirado toda possibilidade de objetar.

Intercambiadas que foram algumas outras frases, ovisitante informou a Cláudio sobre a próxima vinda dosenhor De Sándara a Buenos Aires, notícia que o deixoudesconcertado, embora procurasse dissimular isso.

Tão logo Malherbe se retirou, Cláudio deixou-secair pesadamente numa poltrona, como se o tivessemmoído. Pôs uma perna sobre a outra, cruzou em seguidaos braços sobre o peito e, por último, buscando uma posi-ção mais cômoda, levantou a mão direita à altura do rosto,

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segurando o queixo. Nessa postura ele se manteve por umlongo tempo, completamente imóvel.

Que efeito lhe havia produzido aquela notícia, queparecia ter, mais do que qualquer outra força, um podersobre sua vontade? A perspectiva de encontrar-se em brevecom De Sándara havia promovido nele perplexidade. Estavaevidente. Não demorou, apesar de tudo, a reagir ante talimpacto psicológico e, como se algo o intimasse a tomar umadeterminação, decidiu judiciosamente entrar num acerto decontas consigo mesmo, antes que as circunstâncias o puses-sem na presença daquele. Gradualmente, à medida que serecuperava e discernia em relação às alternativas de suaconduta, foi serenando, e em seu rosto – a princípio sombrio,com marcas de preocupação, de luta, de hesitação – deu-sefinalmente uma mudança favorável, sinal inequívoco de quejá se achava em plena posse de si mesmo.

Que era aquilo que acabava de ocorrer nele? Quãotriste e desolado se sentiu a princípio, ao avaliar o cúmulo deseus desatinos! Era esse o resultado de seus meditados pro-jetos, de suas aspirações, de seus entusiasmos? Era esse oresultado de suas conscienciosas resoluções? Necedades emais necedades. De tudo quanto se propusera, nada haviaalcançado, absolutamente nada. Para onde olhasse, apareciao descuido total da vigilância sistemática que ele se propuse-ra levar a cabo sobre seus pensamentos.

Ao abarcar a dimensão total de seus erros, Cláudiosentiu afogo, desgosto, angústia, e não pôde classificar-se denada menos que insensato. Como foi que não descobriu edeteve a tempo esse jogo mental por meio do qual os pensa-mentos afins com o instinto dão rédea solta a suas inclina-ções? Só agora, unicamente agora, ao vê-los fugir covarde-mente, compreendia tudo, reprovando-se por ter-se dobradodiante deles. Fugiam para não serem vistos, nem obrigados

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a prestar contas de suas velhacarias. Mas ele conseguiriadescobrir tudo à medida que avançasse no estudo dessaamarga e depressiva experiência. Felizmente, outros pensa-mentos voltavam a assisti-lo: aqueles que antes o estimula-ram e que, até ali, haviam permanecido reclusos nas celasde sua mente; eram aqueles pensamentos com os quais par-tilhara, um dia, os propósitos de aumentar seus valoresinternos, e dos quais tão pouco uso havia feito para encararo problema de sua adesão à causa para a qual se sentiainclinado. Ao chegar a esse ponto, Cláudio Arribillaga pen-sou em seu espírito, e não teve dúvida de que era ele quemo impulsionava nesse momento a retomar as abandonadasposições que, no início de seu alistamento nas fileiras dosenhor De Sándara, havia conquistado.

Ao mesmo tempo que sentia crescer e robustecer-se dentro de si uma nova determinação, seguiram mani-festando-se em sua mente as lembranças de fatos que,embora o entristecessem, ilustravam proveitosamente seuentendimento. Um grande pesar o invadiu ao pensar emGriselda e em seu lar, edificado com tanto amor e esperan-ça, e imerso agora pouco menos que na infelicidade. Masele estava ainda em tempo de evitar que a gota inexorável,transbordando a taça da tolerância, o destruísse. ECláudio sentiu acentuar-se, no mais fundo de sua alma,livre de travas, o propósito de reabilitar-se.

Rememorou as vezes em que se impusera, semconseguir, o encaminhamento de seus passos; buscoudetidamente as causas que promoveram a violência desuas paixões, identificando-as, por fim, ao recordar ossofrimentos que o amor-próprio fizera que ele experimen-tasse, por causa de seus primeiros tropeços. A essa altu-ra de seu exame, recordou que estes, longe de servir-lhede advertência e também de sinal para que atuasse apli-

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cando os conhecimentos que possuía, haviam abatido seuânimo e causado verdadeiros estragos em sua vontade. Doestado florescente de sua mente – que ele devia ter amplia-do ainda mais, através de uma atividade interna semprecrescente – havia passado para uma inércia imperdoável.Com quanta certeza avaliava, nesse momento, as causasque o haviam empurrado para tão deplorável situação!

Como se tivesse chegado em seu exame ao pontomáximo, Cláudio suspirou profundamente e, mudando depostura, afundou a cabeça entre as mãos. Permaneceuassim por longo tempo. Depois, como se isso lhe propor-cionasse alívio, fê-las deslizar repetida e alternadamente,uma após outra, da testa até a nuca. Por fim, pôs-se de pé,refrescou o rosto com água, penteou os cabelos e, depoisde ajeitar a gravata, continuou ainda uns instantes dian-te do espelho, procurando dar uma expressão de otimismoa sua fisionomia. Isso pareceu ajudá-lo a recobrar-se.Pegou com presteza o telefone e discou um número, comu-nicando a sua esposa que logo estaria com ela para jantar.

Com a aparente rapidez que o tempo adquire quan-do aproxima em seu transcurso os acontecimentos prece-didos de grande atividade, assim avançavam os dias noMéxico, nas vésperas do casamento de Mariné. Por cir-cunstâncias imprevisíveis, este teve de ser adiado paradepois da data estabelecida, coincidindo a celebração como começo do outono.

Aquele dia, como tantos outros que diminuíam adistância até o evento, havia sido de intensa e fatiganteatividade, sobretudo para Mariné, que era quem respondia

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pela maior parte do novo movimento que agitava a casa.Ela tinha começado a manhã percorrendo lojas e casas demoda; em seguida, como sempre ocorre em tais casos, teveaqui e ali algo urgente que resolver, além de alguns deta-lhes que vistoriar nos toques finais do apartamento que seestava instalando para eles na casa. De quando em quan-do, era um telefonema apressando uma encomenda ouprevenindo um descumprimento, ou a atenção a um deversocial, ou uma ordem aos criados. Por fim, tendo avança-do a tarde, Mariné achava-se fisicamente exausta.

Desejosa de proporcionar-se um pequeno recreio nojardim, convidou Ebel a acompanhá-la. Dirigiram-se, comohabitualmente faziam, para o lugar mais espaçoso e aco-lhedor, situado na parte posterior da casa, e ali escolherampara o descanso um banco situado junto ao muro divisó-rio, sobre o qual as roseiras, esgotadas pelas agruras deuma longa estiagem, ostentavam suas últimas flores.

Fazia o melhor tempo que se poderia desejar, coma temperatura suave, a atmosfera diáfana e como queausente. Uma grande tranqüilidade inundava o alegre par-que. Somente os pássaros interrompiam a quietude datarde. Ao término de sua afanosa movimentação diária,mostravam-se ativos na procura do último alimento. Dasramas de um imenso cedro – sua morada –, projetavam-seaté a grama, uns primeiro, depois outros, em busca dealgum grão ou semente, ou do verme que surgisse impru-dente à superfície. Dali, retornavam com precipitação atéseu refúgio, onde, com grande esbanjamento de vitalidade,revoluteavam e mesclavam seus buliçosos gorjeios, comofaziam sempre e com igual energia tanto no término comono começo da jornada, em cada amanhecer.

Uma grande felicidade transparecia nos rostos deMariné e Ebel, enquanto confundiam num doce diálogo aefusividade de seus corações.

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– E se depois de um tempo eu não fosse tão idealcomo você pensa? – dizia ela, brincando.

– Você acha que não haveria uma maneira de reme-diar isso?

– Oh, sim!... E por certo eu trataria que fosse a mais fácil.– A mais fácil?!– Por que será que você sempre gosta de me per-

guntar o que já sabe?– Pois então não me diga. De qualquer maneira, sei

que não haverá necessidade de recorrer a nada. Não acabode dizer que você será uma esposa ideal?

– Tanta confiança me compromete, Ebel, e eujamais gostaria de decepcioná-lo.

– E não decepcionará, Mariné, estou certo disso;certo de que você será para mim a mulher que sonhei nosanos de minha juventude, e a quem acariciei entre as coi-sas mais queridas que meu coração tenha acalentado. Háalgum pensamento que eu tenhá e que sua sensibilidadee seu amor por mim não descubram?

– Isso não é difícil, de forma alguma, quando se con-cebe a compreensão de um amor grande e puro. Em servira esse grande amor empenhei minha vontade e, com ela,minha vida toda... Servi a ele como se serve a uma causa:com abnegação, com pureza de sentir e com a alma intei-ra. O amor que sinto por você é único: nada nem ninguémpôde, nem poderá jamais, alterar meus sentimentos. Massei também, porque li isso em seu próprio coração, queninguém me afastará do lugar em que você me colocou.

Destacavam-se, em Mariné, os sinais inconfundí-veis do espírito que já reina sobre a vida que ele anima.Guiada por Ebel na aprendizagem do conhecimento trans-cendente, que propicia a manifestação consciente e semlimitações do espírito, ela participava em plena juventude

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das riquezas do mais precioso legado. Daí que a lei deherança se mostrasse nela com tanta evidência, ao dar aseu ser, além dos perfis característicos da maturidadeespiritual, o gozo dos bens convertidos em virtude, osquais, acumulados através da evolução alcançada nosdiversos períodos de existência, formam, ao se somarem,a essência mesma do espírito que protagoniza os temposde vida neste mundo.

Ao expressar a Ebel seu amor, ele percebeu, em suainflexão, o tom que a voz humana adquire quando, emsentidas palavras, expressa algo mais que uma confissão.E, como se de longínquos tempos lhe chegassem ao espí-rito pensamentos reveladores do mistério de Eva, sur-preendeu em sua vida e na de Mariné detalhes evocativosde tão primorosas criaturas. Com que luminosidade seuentendimento concebeu a imagem cândida e celestial daprimeira rainha do mundo!... Sob a influência dessa ima-gem, Mariné lhe parecia transfigurada, como se nela serefletisse toda a graça com que havia sido adornada a figu-ra física e moral da mulher. Não pôde senão recordar-se,então, daquele episódio em que as próprias hierarquiascelestiais se sentiram comovidas ante a beleza e esplendorda dona do Paraíso.

Enternecido pelas palavras que ouviu dela, e sob aexaltação de tão fugaz projeção de imagens, ele lhe disse:

– Nesse Paraíso onde juntos aprendemos a liçãodos séculos, você reinará comigo, Mariné... Você, com-preendendo com toda a lucidez as três fases da sublimeexperiência edênica; eu, cumprindo com consciência ospreceitos encadeados ao longo da história, para reivindica-ção do gênero humano. Você, mostrando-me os encantosde sua sensibilidade; eu, descobrindo os enigmas do sexo,refletidos na evolução de sua alma. Ambos, você e eu, ofe-

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recendo-nos mutuamente, a um só tempo, a excelsitudede um amor que busca seu conduto fora da órbita huma-na, para internar-se nas inefáveis regiões onde moram ossentimentos mais puros, de essência incorruptível, salva-guardados pelas piedosas mãos da eternidade. Oh! comonão experimentar a adorável embriaguez que o obséquiode tão inapreciável ventura promove em nossas almas!

– Uma doce emoção me embarga, Ebel. Sinto comose uma luz interior, iluminando meu espírito, me deixassever, sem exceder minha razão, o segredo que se ocultaentre as dobras de um momento feliz. Nessa mútua comu-nicação do sentir, podemos olhar a fundo em nosso ser enos convencer de que a intimidade é inexpugnável quan-do nela se abrigam os sentimentos que dão conteúdo idealàs expressões da alma.

– Tudo faz parte, minha querida, desta formosavida, tão nossa. Cada pequena variante matiza e mantéma doçura do viver, sem que um só instante se torne jamaissem sabor. Aprendemos isto nesse mundo das maravilhasimateriais e invisíveis, que tem uma imponderável influên-cia sobre a vida física.

Após uma pausa, e tal como se regressassem doâmbito sublime da idealidade, voltaram a encontrar-se namútua compreensão de suas próprias aspirações, sujeitasàs realidades do mundo em que viviam.

Algumas estrelas surgiam no céu ainda claro, e asluzes começavam a acender-se no interior da casa, quan-do os dois abandonaram o jardim.

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O tão esperado dia do casamento chegava já a seu fim.Ao dar a meia-noite, entregues à sua ventura,

Mariné e Ebel partiam de automóvel rumo ao local escolhi-do para desfrutarem a lua-de-mel. Inibida pelo efeito cres-cente das emoções que a embargavam, ela permanecia emsilêncio, enquanto desfilavam por sua mente, sem quefizesse esforço algum para atraí-las, as imagens dos acon-tecimentos que, hora após hora, havia vivido desde amanhã. Umas vezes, era a cerimônia do casamento a quelhe ocorria, tornada solene pelo sentimento que dera ao atoseu verdadeiro significado; outras, a recordação da festa,que havia alcançado dentro do círculo familiar um brilhoespecial, como se tudo ali se houvesse reunido para realçaro acontecimento que se celebrava. Lutavam por colocar-seem primeiro plano aquelas imagens que reproduziam ascenas mais doces ou mais comoventes. Entre estas, insi-nuava-se com força evocativa o terno e emocionado abraçode Cristina, ao despedir-se deles; entre as primeiras, oolhar extremamente feliz de Ebel, no instante de aprovarseu traje nupcial, que ela escolhera com tanto cuidado.

Vencido o percurso entre a Capital mexicana e olugar de destino, os recém-casados viram-se finalmentealojados num apartamento do hotel escolhido para suapermanência.

Na sala contígua ao quarto conjugal, onde haviadeixado Mariné sozinha, Ebel esperava o momento de seapresentar ante sua dona. Consciente da transcendentalnatureza desse instante, buscava em seu coração a fontede ternura que dava alimento àquele amor, para que seuespírito, assim preparado, pudesse penetrar a fundo nomistério que se oculta detrás do acontecimento nupcial.

Enquanto isso, sentada diante do espelho, Marinéarrumava os cabelos, cujas suaves ondulações ela repuxa-

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va com o pente até a nuca, de onde caíam até quase roçar-lhe o pescoço. À sua frente, projetava-se seu delicadorosto, de feições harmônicas e graciosas, lábios bem tra-çados e uns olhos de mirada inteligente e profunda, quetanto a embelezavam. Uma imperceptível turbação coloriasuas faces, normalmente pálidas. Observou-se duranteum tempo, levantando-se em seguida; fez diante do espe-lho alguns movimentos, para melhor observar o efeito desua bonita roupa íntima e, em seguida, tomando sua fras-queira, retirou dela um pequeníssimo embrulho.

Entrando no quarto, Ebel surpreendeu aquelemovimento.

– Alguma surpresa me aguarda? – perguntou comvivacidade, pressentindo o presente.

– Talvez... – Mariné respondeu, apresentando-lhecom naturalidade o objeto na palma da mão. – É meu pre-sente de casamento. Eu o tinha reservado para quandoestivéssemos a sós.

Desembrulhando-o, Ebel achou-se diante de umpequeno e delicado estojo, do qual extraiu um medalhão.Advertido por Mariné de que ele guardava um segredo,abriu-o em seguida. Sobre um fundo esmaltado, de corazul, apareceu um pequeno coração realçado em ouro,sobre o qual se podia ler claramente: “Mariné a Ebel”;abaixo, havia uma data e, mais abaixo ainda, seguindo acurva posterior do relevo, esta inscrição: “Perpetuamente”.

– Que significa esta data, Mariné? – ele perguntou,rodeando-lhe a cintura com um braço, enquanto susten-tava com a outra mão o presente, símbolo de um senti-mento que viveria eternamente.

– O dia em que senti despertar meu amor por você,Ebel... Desde então, eu o amei com veneração, porquevocê tem sido tudo para mim.

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Ele a atraiu para si e seus lábios se uniram empura expressão de amor.

– Querida Mariné – expressou em seguida, com ter-nura, – ao vê-la hoje com o traje nupcial, que é símbolo derecato e de candura, não pude deixar de compará-la, emminha mente, com as vestais que atiçavam o fogo purifi-cador nos altares da deusa a quem rendiam culto... Você,à semelhança delas, me oferece o fogo sagrado que alentasua vida, para que eu perpetue em você a sublime purezaque se desprende de todo o seu ser, como um perfumecelestial que, sem embriagar meus sentidos, deleita meuespírito e me permite prolongar indefinidamente este ins-tante, durante o qual infundo em mim a certeza de suarealidade.

Um prolongado silêncio seguiu-se às suas palavras.Na intimidade de seu pensamento, Mariné viu a si mesmaacompanhando-o nos trechos e incidências da vida quedurante anos ele lhe havia ensinado a viver, e nele se afir-mou a certeza de que ela seria, dali em diante, sua exclu-siva confidente em todas as suas criações mentais, bemcomo nas descobertas que, como fruto de sua ciência eexperiência, a partir de então ele fosse dando a conhecerao mundo. Ele a via dedicada com afã à obra dele, comose os dias e as noites, confundindo-se entre si, deixassemque entre ambos se mostrasse permanentemente a diáfa-na claridade do espaço, ali onde o tempo gravita inexora-velmente sobre os espíritos que não se nutrem de suaessência eterna. Ela, Mariné, agora o desposava, confir-mando as núpcias com que um dia havia unido seu espí-rito ao dele, quando resolveu segui-lo por onde ele fosse.

Com a cabeça apoiada no ombro de Ebel, Mariné per-manecia calada. Tão-somente uma leve agitação de seu corpodenunciou o profundo efeito daquele sublime instante.

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O encantamento inundou pouco a pouco suasalmas. Apagaram-se as luzes da contemplação externa, eambos se buscaram no mais íntimo de seus corações,para experimentarem a comoção divina que se produz noespírito, por força da correspondência de um amor quenão conheceu nem conhecerá rival que o dispute.

Chegou a manhã.Um indiscreto raio de luz, abrindo passagem no

quarto, banhou o rosto de Mariné, com risco de interrom-per-lhe o sono. Velando por seu descanso, Ebel apressou-se em fechar a cortina, sentando-se em seguida junto aela. Enquanto aguardava paciente seu despertar, pensouna trajetória de suas vidas.

Não se apagaria jamais de sua memória a aparên-cia dos olhos dela, aquela expressão de surpresa de seurosto, nem a inefável emoção que sua alma de meninaexperimentou quando o viu pela primeira vez. Tampoucopoderia olvidar a impressão que aquele olhar e aquelaexpressão produziram nele. Seria esse o instante em quese reconhecem as almas que durante muito tempo se bus-caram? Ele havia experimentado a sensação de ter vistoaqueles olhos em longínquas idades, das quais seu espíri-to parecia conservar reminiscências cuja força evocativacoincidia com o que seu próprio coração lhe anunciava.

Quantas recordações queridas acorriam à memória deEbel, como se desejassem estar presentes naqueles momen-tos em que a felicidade inundava seu coração de ventura!

Continuou evocando Mariné em sua infância,quando Cristina e ele, disputando seu carinho, se diver-tiam como crianças, ao perguntar-lhe de qual dos dois elamais gostava. Imediatamente, repontaram fugazes os gra-ciosos protestos dela para safar-se do aperto, e suaexpressão de triunfo, quando, após provocá-lo, escondia o

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rosto para não ver sua reação e empreendia a fuga, pondo-se a salvo de sua perseguição.

Coisas de meninota, e também do afeto!Um dia, a roda do vestido de Mariné anunciou que

a menina se havia transformado numa senhorita. A partirde então, seu amor por ela – amor de pai, de amigo, deirmão – foi mudando de natureza, e apareceu em seu lugarum sentimento mais vivo, pleno de ardor juvenil. Àquelamudança seguiu-se um discreto distanciamento; um dis-tanciamento que coincidiu com reservas igualmente dis-cretas por parte de Mariné, cujo caráter, antes alegre elivre de preocupações, se havia tornado triste e recolhidoem si, a ponto de inquietar sua tia, que começou a propor-cionar-lhe festas e passeios, a fim de abrir caminho àsexpansões naturais de sua juventude, caso estivessemcontidas. Marcas de pranto, amiúde impressas em seusolhos, não demoraram a mostrar a ineficácia de tais recur-sos. A situação exigia, pois, uma outra saída, e ele a pro-curaria.

Indo além em sua evocação, Ebel alcançou o ins-tante em que, junto a Mariné, se dispunha a interrogá-la. A luz que então iluminava o jardim, filtrada pelas cor-tinas que guarneciam as janelas de sua sala de trabalho,dava ao ambiente a suave claridade do satélite em pleni-lúnio. Ali, após a primeira pergunta, sobreveio o desfe-cho. Os belos olhos de Mariné, elevando-se para ele, dei-xaram surpreender em sua mirada um fulgor tão parti-cular que o arrebatou. Sob o influxo daquele divino feiti-ço, Ebel sentiu que lhe renasciam todas as forças e espe-ranças da juventude. Tal como se tudo se houvesseexplicado no fundo de seus corações, ambos se olharamem silêncio. Em Mariné, resplandecia a inocência comgraça incomparável.

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Com delicioso encanto, seguiram afluindo à suamente recordações gratíssimas. Quão terno e sublimehavia sido para ele o momento em que viu culminar, commatemática precisão, dois processos sentimentais parale-los: o dela e o seu! O amor de ambos, mutuamente corres-pondido, parecia-lhe qual dois rios que, ao se buscarem,encontraram um leito comum. A alegria alcançou em suasalmas os níveis mais altos da bem-aventurança. Naquelesmomentos, ele não poderia precisar a duração desse ine-fável fragmento de eternidade, mas sim o que significariao amor de Mariné em sua vida.

Como estas lembranças alentavam a Ebel!... Sabiaele que o homem podia fazer muitas coisas grandes em suavida, mas também sabia que, unido a uma mulher inteli-gente, capaz de compreendê-lo, podia chegar a ultrapassaros limites do humanamente possível. Pensando em tudoisso e nas belas condições que adornavam Mariné, pronun-ciou com voz inaudível estas palavras: “Oh, meu doceamor, que me segues confiante através do espaço, como sefosses uma parte inseparável de minha vida, enquanto via-jamos a caminho da eternidade! Eu farei com que teunome, imortalizado por meu pensamento, cruze mares econtinentes e perdure nos ouvidos humanos como símbo-lo de uma vida embelezada ao máximo pelo exercício cons-ciente de virtudes que em ti se tornarão prodigiosas.”

Mariné fez um ligeiro movimento, com evidentepropósito de continuar o sono, mas, nesse exato instan-te, uma sensação muito sutil pareceu adverti-la da pre-sença de alguém a seu lado, e abriu os olhos. Vendo aliseu dono, abraçou-se a ele como se voltasse a si depois dehaver transcendido, com felicidade, as fronteiras queseparam da esfera terrestre o mundo incorpóreo dasuprema ventura.

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Havia nos olhos de ambos fulgor de encantamento.Suas almas, em mútuo transporte contemplativo, preferi-ram a doçura do silêncio a qualquer outra exteriorização.

No lar dos Arribillagas, a felicidade, que por váriosmeses se havia mostrado esquiva, começava outra vez aoferecer-se, anunciando sua presença no ritmo de norma-lidade com que a vida voltava a desenvolver-se nele.

A chegada de uma formosa menina, com seu pode-roso incentivo, havia contribuído para isso, tal como umaremessa que tivesse chegado do céu no devido tempo, afim de consolidar a sensação de confiança que começava ainsinuar-se dentro do âmbito familiar.

No primoroso berço, adornado com a graciosidadeque parece querer traduzir todas as ternuras do amormaternal, a pequeníssima Adriana dormitava na incons-ciência de seus primeiros dias. Ali, no quarto onde come-çava a viver, o gosto e a previsão haviam conseguido reu-nir, em feliz combinação, tudo o que a folgada situaçãoeconômica permite pôr ao alcance de uma criança, embenefício de sua boa criação e da melhor formação de seucaráter. Claridade, comodidade, cores apropriadas às sen-sações infantis, graciosas pinturas murais e muitos outrosmotivos para recreação da inocência cercariam a meninaenquanto crescesse. Mas, acima de tudo isso, nada aterna Adriana haveria de valorizar tanto, se lhe fosse pos-sível compreender, como a presença de sua mãe, atenden-do-a a todo o instante e envolvendo-a, também assim, coma doçura de seus pensamentos, como uma proteção queobedecia a exigências de seu imenso cabedal afetivo.

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Começava dezembro, assinalando para o casalArribillaga a alvorada de seu segundo ano de vida conjugal.

Portadora de agradável mensagem, certa manhãchegou para Griselda uma carta de Mariné. Anunciava achegada dela a Buenos Aires no próximo mês de janeiro.Seu ânimo de tal forma se alegrou com a confirmação detal visita num futuro tão próximo, que não pôde postergaro momento de comunicar o fato a Cláudio. Correndo aoescritório, onde ele se achava, cumpriu com grande viva-cidade esse propósito, como se com isso quisesse fazê-lopartícipe das luminosas esperanças que ela sentia pene-trar com força em sua alma, por motivo da chegada deseus amigos.

– Ficou alegre com a notícia? – ela perguntou,apoiando as mãos sobre a escrivaninha e sorrindo,enquanto o olhava.

A aprovação que se projetou na fisionomia deCláudio teria por si só bastado para enchê-la de satisfa-ção, mas, dando maior calor ainda a sua resposta, numgesto súbito de íntimo desafogo, tomou ele entre suasmãos o belo rosto de Griselda e o beijou com ternura.

Era inegável que, cedendo às exigências da firmedeterminação que tomara, ao perceber as conseqüênciasdanosas que a falta de um governo interno capaz de regera vida lança sobre o próprio comportamento, Cláudiovinha fazendo, havia tempos, esforços muito meritórios.Apesar disso, porém, as coisas não haviam chegado ainda,entre ambos, a essa franca e íntima correspondência quesempre os havia unido. Um sinal evidente de que ele nãose achava totalmente recuperado era a falta de continui-dade com que participava dos estudos que seus amigosrealizavam. Griselda tinha, pois, razão para nesse momen-to se sentir reconfortada, porquanto a expressiva demons-tração de Cláudio dava asas às suas esperanças de ver

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desaparecerem, muito em breve, os últimos vestígios dedureza que ainda se mostravam impressos em seu caráter.Entretanto, não demorou muito a sentir-se defraudada, aoouvi-lo dizer, com claros sinais de auto-suficiência:

– Tenho certeza de que essa visita me dará a opor-tunidade de dissipar algumas dúvidas que continuam vio-lentando meu espírito.

Griselda percebeu rapidamente como o amor-pró-prio, ainda ressentido, acabava de incitá-lo a dissimular,com pretextos pueris, seus descuidos anteriores.Entretanto, sem dar resposta a essas palavras, e semmudar tampouco sua atitude alegre e confiante, procurouinteressá-lo no conteúdo da carta que ela tinha consigo,lendo-lhe com tal propósito alguns parágrafos, nos quaisMariné dizia estar contentíssima de realizar aquela viageme falava da impaciência de Cristina por conhecer a peque-na Adriana. Tratou de não dar muito realce aos trechosonde ela falava da felicidade que havia encontrado em seurecente casamento, e concluiu realçando, com mostras dejúbilo, sua própria felicidade, que lhe permitia receber seusamigos num lar agora animado pela presença de um filho.

Como se suas próprias preocupações o atraíssemmais que outra coisa, obrigando-o a não se afastar delas,Cláudio se manteve calado, quase ausente, e Griselda, que oobservava atenta, notou inesperadamente uma nova mudan-ça, quando ele, com voz franca, ainda que doída, expressou:

– Parece-me sentir, minha querida, que dia a diamelhoram minhas condições para enfrentar, sem riscos,os câmbios que toda renovação de conceitos exige. Achoque, com empenho, e sem poupar esforços nem tempo,poderei favorecê-los.

A atitude bondosa com que Griselda correspondeuàquela frase demonstrou a Cláudio, com maravilhosa elo-qüência, quanto suas palavras a haviam reconfortado.

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Satisfeito pelo apoio que isso significava para ela, nãopôde deixar de pensar no efeito desastroso que uma mani-festação de dúvida ou desdém lhe teria ocasionado.Fugazmente, mas com força incontível, uma vez mais pas-sou por sua mente a recordação dos projetos que suainconstância havia postergado e, com vergonha de simesmo, confessou com profunda dor a Griselda, comonunca havia feito, seu arrependimento.

Naquele momento de intensa emoção, da alma delase desprendeu um soluço.

– Por que você chora?! – ele perguntou-lhe.Griselda enxugou as lágrimas que lhe embaciavam

os olhos e, pousando nele o olhar, que iluminou com umdoce sorriso, respondeu-lhe:

– Talvez seja porque meu coração me anuncia achegada de dias muito venturosos.

– Oh, claro, querida!... Farei tudo que depender demim para que seja assim.

Em sua voz, Griselda percebeu uma nova expressãode firmeza e, em seus olhos, viu surgir o fulgor da sincerida-de que aparece nas pupilas, quando aquilo que se expressacorresponde aos ditados de uma profunda convicção.

Com palavras que mais pareciam um arrulho, e entrecarícias que deixavam transluzir doçura e sinceridade, ambosrenovaram suas promessas de amor eterno, sob os auspíciosde uma nova compreensão, baseada numa mútua solidarie-dade espiritual. Quão felizes e revitalizados se sentiam agora,depois de removerem com acerto os últimos obstáculos queestorvavam sua marcha pelo caminho da superação!

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Silenciosamente, como as andorinhas que vão embusca de uma nova primavera, assim foram Cláudio eGriselda, no dia seguinte ao da chegada de seus amigos,até o hotel onde eles se hospedavam, em busca daquiloque ainda faltava a suas vidas e que as deixava inseguras.

Convidados a subir ao apartamento que eles ocu-pavam, logo se encontraram à sua porta. Algumas levesbatidas uniram instantaneamente, qual toque mágico,dois períodos de tempo: aquele em que se viram pela últi-ma vez e o presente, como se o vivido entre ambos os tem-pos pertencesse a uma das tantas vidas que aparecemconfiguradas na existência humana.

Foi amplo e cordial o gesto com que De Sándara eMariné receberam seus amigos, e emotivo o cumprimentode Cristina aos dois, especialmente a Griselda, a quemabraçou com grande alvoroço.

– Quanto temos que conversar!... – disse esta últimaa Mariné, tão logo cessaram as efusividades; e acrescentoudepois, dirigindo-se a De Sándara: – Amanhã ou depois, seo senhor não se importar, nós a roubaremos o dia inteiro.

– De forma alguma vou me importar! – ele respon-deu-lhe. – Além do mais, isso será um grande prazer paraMariné. Mas você não deverá estranhar, Griselda, sedepois, confiando na bondade de seu marido, nós tambéma raptarmos...

– Estamos inteiramente às suas ordens – expressouArribillaga, que acrescentou, correspondendo à brincadei-ra: – O que terei de lamentar é não ser raptado eu também.

– Você em verdade teria interesse nisso? – DeSándara replicou, de um modo muito significativo.

Cláudio experimentou de pronto uma rara sensa-ção de aturdimento e, em seguida, como se aquelas pala-vras tivessem atingido o ponto para o qual iam dirigidas,

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acabou enrubescendo. Como poderia alegar interesse, seele, quando o elevaram ao palácio incorpóreo da vida men-tal, havia se atirado pela janela sem dar tempo a que lheexplicassem as vantagens ali oferecidas?

Recuperou-se, entretanto, e respondeu:– Talvez muito mais do que parece, senhor De

Sándara. Se as pancadas são úteis para avivar o espírito,por que não há de ser o meu, neste momento, quem meinduz a buscar em sua companhia aquilo que agora mepoderia ser duplamente benéfico?

Em consideração a tal resposta, e ao mesmo tempoestimando oportuno deixar as senhoras com liberdade deexpansão, De Sándara convidou Cláudio a descerem aobar, e ali se instalaram.

Sentado próximo a seu amigo, Arribillaga não duvi-dava de que o pensamento deste já havia abarcado seupassado imediato, mas, disposto a ser franco, em obediên-cia ao nobre ditado de sua consciência, relatou-lhe semomissões as alternativas pelas quais acabava de passar.

– Como o senhor pode ver – disse ao terminar, comsentimento, – eu não soube frear o potro que corcoveava emmim, e montado em seu dorso fui até onde ele quis me levar.

De Sándara, que o havia escutado com muita aten-ção, respondeu com estas palavras, que seu tom afetivotornava menos severas:

– Em tais condições, pensava você que poderia rea-lizar a proeza de sua conversão? Quando não se está à von-tade com a vida que se leva, quando já se entreviu que exis-te outra mais honrada, mais generosa, mais ampla, e a elase aspira, só nos resta uma alternativa: mudá-la. E não seesqueça de que o tempo que deixamos passar, sem regis-trá-lo fielmente em nossa consciência, é tempo que nãovolta, e que subtraímos daquele que pensávamos desfrutar.

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– O senhor compreenderá, senhor De Sándara, quenão posso deixar de me censurar pela descontinuidade epelo abandono em que incorri, causas inquestionáveis demuitos estados incertos e confusos pelos quais eu passeidepois.

– Isso lhe mostra quão frágil é o ser humano, cujapersonalidade, em aparência forte, porém em realidadedébil, inconsistente, arrebenta-se e se faz em pedaços,vencida por sua própria inoperância. Somente quandosurge a individualidade, modelada no crisol das lutasinternas que se travam para sobrepujar os estados inci-pientes de consciência, o homem se transforma num serinquebrantável. É o primeiro triunfo efetivo sobre simesmo. Antes, porém, de alcançar o cetro, ele deve deixaro báculo em que apóia suas debilidades e andar direito,como andam os fortes e os retos, pelo caminho da maisalta das ciências: a do conhecimento universal e humanoem sua essência eterna.

– Mas não deixa de ser verdade que a empresa àsvezes exige esforços tão grandes, que caímos abatidos pelopeso das imposições que fazemos a nós mesmos, com opropósito de levá-la até o fim.

– Isso ocorre, amigo Arribillaga, precisamente porse exigir da própria fortaleza, sem uma medida, sacrifíciosque, por serem exagerados, fazem com que ela se ressin-ta, motivando a reação quase sempre violenta do instinto.

– Então, que devemos fazer?– Ser comedidos, só isso, tanto nas demandas da

natureza inferior, cujos excessos frearemos, como nosarroubos de entusiasmo que se promovem depois das pri-meiras manifestações conscientes do espírito. Duas ten-dências lutam em constante rivalidade dentro de cadaindivíduo: a baixa, marcadamente extremista e dogmática,

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e a elevada ou liberal, que busca a conciliação e o equilí-brio. A isso obedecem as flutuações do pensamento huma-no, e, enquanto não se tenham dominado as fortes pres-sões da natureza inferior, se estará exposto a cair uma emais vezes, como acaba de acontecer com você, nessesestados de crua desorientação.

– Se pudéssemos, como ponto de apoio, abarcar aessência conceitual desse preceito...

– Para isso, só é preciso saber apreciar o fundo daquestão, traduzindo-o em máxima moral. Surgirá assim,ante os olhos, uma realidade tão formosa como instrutiva:por um lado, a vida superior, florescente e exuberante emperspectivas felizes; por outro, a vida intranscendente,comum, sem conteúdo específico, vivida ao acaso, como avive o vulgo, sem que represente absolutamente nada parao ser que a encarna. Em tais condições, o que se é? Nada.Um ser embrionário, vegetando ao longo de toda uma vidainsubstancial, de uma vida em que não poderá satisfazernunca a necessidade íntima de constituir o ser íntegro,individualmente liberado e capaz.

– Mas custa muito abandoná-lo.– Custa, é verdade, abandonar o pretenso ser de

que o homem tanto se vangloria; e tarde se chega ao con-vencimento de que o material fica na terra, e o que é doespírito a ele volta no universal e eterno de sua existência.Eu já vi cair muitos dos que subiam penosamente a encos-ta da sabedoria; eles me recordam a tragédia do filho deÉolo. Não é possível empurrar para cima o peso inerte davida terrena, nunca satisfeita, sem que sua estabilidadeperigue. O enriquecimento da consciência favorece a evo-lução do espírito e promove, ao mesmo tempo, o desapegogradual da vida comum, sem que isto queira dizer quedevamos abandonar o mundo em que vivemos, nem desa-

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tender, tampouco, suas exigências; pelo contrário, nós nossentiremos nele mais à vontade, evidentemente com a con-dição de que vivamos honrando nossos espíritos com pen-samentos e ações que dêem maior hierarquia àquilo que,durante séculos e milênios, o homem inferiorizou por igno-rância e inconsciência. Nada haverá de ser mais grato àcriatura humana, nem lhe poderá causar maior prazer, doque cumprir com esse recôndito mandato da consciência.Somente assim, pelo conhecimento e pela virtude, sepoderá restabelecer no indivíduo a ordem moral, que deviaser incorruptível. Então, sim, caberia esperar a suspensãodessa sanção que parece pesar sobre as almas como dívi-da não cancelada.

– Concordo com tudo o que o senhor acaba deexpor, senhor De Sándara, mas insisto que a tarefa doaperfeiçoamento é árdua; quase que se poderia dizer:superior a nossas forças. O predomínio que a influênciada matéria tem sobre nossa vida justifica, em parte, osconflitos internos que se produzem entre ela e o espírito.

De Sándara sorriu benevolamente, pensando nanecessidade que o homem sempre tem de inventar umarazão para justificar o tempo que perde. Não obstante,quão real era o que seu amigo acabava de manifestar,como reflexo do que havia acontecido com ele.

– Não resta dúvida que a tarefa do próprio aperfei-çoamento exige esforço – ele concordou. – Não é questãode uma simples manipulação especulativa. Porém, nãodevemos fazer como aquele que, ao se iniciar na aprendiza-gem de uma arte ou ofício, pretende dominar imediatamen-te o que é tarefa de tempo e paciência. O ressurgimento dosvalores e das qualidades somente se torna realidade noindivíduo quando ele começa a trabalhar pela ressurreiçãode sua alma em recônditas esferas de consciência, e é no

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desempenho de tal função que o homem se converte emseu próprio redentor.

Em seguida, como remate daquela conversa, DeSándara acrescentou, dando a suas palavras um tom maisafável e cordial:

– O acesso ao mundo dos conhecimentos causaistem, é inegável, um elevado preço, meu amigo. Mas não seassuste, porque a todos nós é concedido um amplo crédi-to, cuja vigência está relacionada com nosso cumprimento;em nós está, pois, nos beneficiarmos com ele ou perdê-lo.

Essas reflexões deixaram Cláudio fortemente esti-mulado. Ante o simples enunciado dessas possibilidades –que seu espírito, ávido de liberação, novamente anelavacom sadio e nobre entusiasmo –, voltou a brotar dentrodele o enxerto virtual que os pensamentos frívolos, pro-criados pelo abandono, haviam truncado, tal como as for-migas truncam os tenros brotos de uma roseira.Impulsionado por essa reativação de energias, expressoua De Sándara, com palavras impregnadas de sinceridade,sua resolução de se entregar com integridade ao cultivo detais preceitos, mas este, chamando-o à prudência, fê-lonotar que essa promessa devia ser formulada a si mesmo,a fim de que a própria consciência, tomando o encargo deseu cumprimento, lhe evitasse todo risco de engano.

Cláudio e Griselda regressaram daquela visitaextremamente felizes.

Em casa, Dona Laura os esperava, tendo passado atarde ao lado da netinha. Em seguida reuniu-se a eles odoutor Laguna, e jantaram juntos. Passaram alegrementeaqueles momentos, comunicando-se as novidades e fazen-do planos para o dia seguinte, quando teriam desde amanhã Mariné e Cristina com eles, e muito provavelmen-te também De Sándara para o almoço.

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Patrício partilhava igualmente a animação de seuspatrões, demonstrando isso no interesse e presteza comque recebia as ordens e se encarregava de todos os prepa-rativos para acolher dignamente os hóspedes.

No dia seguinte, a manhã ia pela metade quandoMariné entrou na casa dos Arribillagas, acompanhadapela senhora Cristina de Landívar. Tudo ali parecia respi-rar a comunicativa alegria de seus donos.

Vozes festivas invadiram muito prontamente o inte-rior do grande vestíbulo. Dona Laura e Cristina, sobretu-do esta, comemoraram muito aquele instante em que seconheciam e o começo de uma amizade que, havia tempos,desejavam estabelecer.

Precedidas por Griselda, subiram a escada que con-duzia aos aposentos superiores, estando Mariné ansiosapor conhecer a filhinha de sua amiga. Penetraram no quar-to da pequena no preciso instante em que a babá, movidapor uma das habituais necessidades, se achava mudando-lhe as roupas, o que deu lugar a que pudessem admirá-lade corpo inteiro, em meio às alvoroçadas apreciações quesempre surgem à vista de uma criança vinda ao mundo emboas condições de saúde e com um físico bem-dotado.

Concluído o complicado arremate envolvendo fral-das e mantas, Mariné tomou amorosamente a menina emseus braços:

– Que preciosidade!... – exclamou; e, após contem-plá-la à vontade, acrescentou: – Acho que se parece comvocê nos olhos, Griselda.

– Pouca sorte é que não é!... – opinou Cristina.

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– Olhe só que encanto! – Mariné voltou a dizer,inclinando-se para a senhora Landívar, que, sentada, sepreparava para tomá-la no colo.

– Não é verdade que se parece muito com Griselda?– interveio então Dona Laura, não satisfeita com a seme-lhança apenas dos olhos.

Cristina olhou a menina com toda a atenção, pri-meiro de frente, depois de perfil, respondendo finalmentecom dissimulada picardia:

– Sim, de fato é bastante parecida. Mas tem tam-bém muito do pai, hein?... Principalmente agora, que elaestá fazendo esse ar de diabinha.

Cláudio sorriu.– Já sei que não tenho auréola de santo – ele mani-

festou, – mas também não acho que tenho lá muita coisaem comum com o chefe demoníaco.

– Nem uma coisa nem outra são necessárias aohomem de juízo – Cristina garantiu, agitando com graçaseu dedo indicador.

As oportunas intervenções da senhora, que brota-vam com naturalidade de seu caráter alegre e vivaz, fize-ram sem dúvida mais agradável o momento que os reunia.

Colocaram finalmente Adriana em seu carrinho,encarregando-se a babá de levá-la a tomar ar no pequeno ter-raço. Era um dia de temperatura suave, apropriado para ela.

Percorreram depois disso alguns setores da espaço-sa residência, expoente de uma época que se extinguerapidamente ante o avanço das grandes transformaçõesque particularizam os tempos atuais, e, outra vez no pavi-mento principal, as duas jovens, seguidas por Cláudio,entraram no gabinete que antes fora de Dom Roque. Ali,numa das paredes, uma bela pintura a óleo, que reprodu-zia sua venerável figura, parecia animar-se e ganhar vida

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com a recordação daqueles que o levavam em seu coração.Por uns instantes, Mariné se deteve respeitosamente dian-te do retrato, passando em seguida a admirar a vastabiblioteca, em cujas luxuosas estantes estava presente oque havia de mais seleto na literatura universal.

Arribillaga mostrou-lhe a prateleira onde estavamdispostos os livros de De Sándara.

– Vejo que não falta nem sua obra mais recente –ela disse, depois de examiná-los.

Em seguida, dirigiu o olhar para outra seção dabiblioteca, onde, com severa austeridade, se alinhava opensamento filosófico antigo e moderno.

– Aqui estão os mais valiosos expoentes da cultu-ra... – observou, após uma pausa.

– Sim, de fato. Mas temos de concordar que essacultura não conseguiu formar no homem a consciência deum destino superior para sua vida. A humanidade aindasegue aos tombos por caminhos incertos...

A observação de Cláudio promoveu um intercâmbiode reflexões. Ao final, ansiosa por abrir seu coração àamiga, Griselda expressou-lhe com satisfação:

– Nunca vou deixar de me alegrar, Mariné, pelamudança que se produziu em minha vida, ou melhor, emnossa vida, não é verdade, Cláudio? Porque é a vida de ambosa que mudou. É tão agradável sentir-se capaz de romper amonotonia da vida rotineira e criar uma nova forma de viver!...

– Ah! Isso indica que vocês interpretaram com provei-to a lei de causas e efeitos – expressou Mariné, sorridente.

– As experiências instruem – Cláudio manifestou. – Porduras que sejam, seu estudo sempre nos deixa um saldo favo-rável. Graças a elas, hoje sei com segurança que essa lei só éinexorável com aqueles que não conseguem transcender ainfluência de seu poder terreno. Compreendendo assim, nós

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seríamos bem néscios se nos estancássemos sob seu influxo,quando podemos nos dedicar ao cultivo de aptidões capazesde nos encaminhar para um destino melhor. Só que, para con-seguir isso, devemos realizar paralelamente um conscienciosoestudo de nossa psicologia, o que não é nada fácil...

Mariné respondeu-lhe, sem se opor:– É na verdade uma investigação em que se somam

dificuldades de toda índole.– E que são insuperáveis se não houver a assistên-

cia de um hábil preceptor – Cláudio apressou-se em dizer.– Disso não tenho dúvida, Mariné. Depois de me meternum lodaçal de onde eu não teria saído bem por meus pró-prios meios, devo reconhecer a eficácia dos conhecimentosque me foram oferecidos para orientar minha vida, alémde algumas recomendações muito diretas e oportunas. Jáa salvo dos perigos, desfruto a pequena transformaçãoproduzida em mim, o que alenta meu espírito e me fazpensar, com freqüência, na ventura daqueles que já con-seguiram transpor as fronteiras de suas possibilidadesmentais e entraram nos domínios da sabedoria.

– O só pensar nisso já nos predispõe a acatar docil-mente as provas que implicam mudanças substanciaispara nosso ser – expressou Griselda.

– Também acho – assentiu sua amiga. – Sempreencontraremos aí um sólido reforço para enfrentar nossanatureza inferior, tão propensa a sublevar-se contra todasujeição e a destruir os resultados que vamos conseguin-do após pacientes esforços por levar a vida a posições maiselevadas.

– Você acaba de tocar num ponto que se associa arecordações não muito gratas para mim – expressouCláudio, fitando Mariné de modo expressivo.

– Verdade?... Sinto muito, Arribillaga – ela respon-deu, com vivacidade. – Nesse caso, não esqueça o estímu-

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lo que você mesmo mencionou faz pouco, pois com issoterá um excelente recurso para apagar a marca de taisrecordações.

Batiam doze e meia no relógio do vestíbulo quandochegou De Sándara e, com diferença de poucos minutos,o doutor Laguna.

– Lamento ter demorado um pouco – disse o primei-ro, desculpando-se; – encontrei-me com amigos que faziatempos eu não via.

– Oh! Convidados como o senhor nunca chegamtarde! – respondeu-lhe o dono da casa.

Todos foram reunindo-se na sala de estar.Cláudio ofereceu a De Sándara um assento ao lado

de Mariné, a quem Dona Laura nesse momento expressavaquanto havia desejado conhecê-la.

– Minha filha não tem feito outra coisa senão recor-dá-la.

– Também ela, a bordo, me falava muito da senhora,de modo que de muito longe eu já a conhecia e estimava...– Mariné disse.

De Sándara, que as escutava, manifestou por sua vez:– Griselda jamais poupou elogios à sua pessoa,

senhora, e eu nunca duvidei da exatidão do que ela metransmitia.

– Oh! Não acho que meus méritos possam abonartais elogios! – Dona Laura respondeu. – O afeto e a simpa-tia costumam preencher com benevolência muitos vazios.Seja como for, estou muito agradecida a vocês, e podem tercerteza que lhes correspondo com meu carinho.

Almoçaram, e horas mais tarde, após uma prolon-gada e alegre conversa à mesa, que contribuiu para favo-recer a familiaridade, os homens se retiraram, cada qualrequisitado por suas obrigações. A senhora Landívar fez-

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se acompanhar até o hotel para um breve descanso,devendo, ainda nessa mesma tarde, fazer uma visita.Dona Laura também se entregou ao repouso, ficandoMariné e Griselda com liberdade para se expandirem.

Tendo em conta que De Sándara voltaria no finaldaquele dia em busca de Mariné, Cláudio convidou osenhor Malherbe, Marcos e Norberto para uma breve ter-túlia que, aproveitando esse motivo, seria realizada.

Desde que resolvera com bom tino endireitar seuspassos, Cláudio havia retornado a uma progressiva vincu-lação com seus amigos e companheiros de ideais; daí que,naquela tarde, enquanto aguardavam o senhor De Sándara,Cláudio conversasse com eles com evidente satisfação.

Quando De Sándara chegou, o doutor Laguna, unin-do-se à cordial acolhida que todos lhe ofereceram, manifes-tou ao visitante, com a simpática lhaneza que o distinguia:

– O senhor já deve saber, senhor De Sándara, queminha filha e meu genro, e também cada um dos amigosque nos acompanham neste momento, contribuíram parame familiarizar com essa simpatia com a qual eles o rece-bem, e que se inspira, não duvido disso, em motivos muitorespeitáveis. Não me compenetrei ainda do alcance deseus méritos, mas, em se tratando principalmente demeus filhos, lhe será fácil compreender que eu não possopermanecer à margem do que é para eles um motivo deinteresse, como também de estima e afeto.

A conversa desenvolveu-se rapidamente, com ame-nidade e desenvoltura crescentes.

– Faz um momento, nós repetíamos – Arribillagamanifestou oportunamente – nossas habituais sondagenssobre o mundo mental. A esse respeito, nosso amigoMalherbe destacava a simplicidade e precisão com que osenhor nos descobre essa realidade.

– É o que as realidades incontestáveis exigem – De

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Sándara respondeu. – Para se referir a elas, não é precisorevestimentos artificiosos. Aqueles que recorrem a taisartifícios é porque, sem dúvida, necessitam deles para darnotícia sobre esse mundo ao qual não tiveram acesso.Entretanto, do acúmulo de tantas irrealidades foi que sur-giu essa grande variedade de conjecturas que excitam per-manentemente a curiosidade humana.

– Acho que ninguém deixou de pensar, sequer umavez – Norberto expressou, – na possível existência domundo mental, nem creio tampouco que ninguém tenhadeixado de sentir sua inquestionável influência, visto quese fala da alma, do espírito, da consciência, das faculda-des mentais, que, embora não se tenham definido suasfunções com absoluta certeza, movem e alentam a vidahumana com espantosa energia.

– Falando de funções, não sei se os autores que seaventuram a expor suas idéias sobre o campo metafísicocumprem alguma função construtiva – De Sándara mani-festou. – O que está fora de dúvida é que eles sempre dei-xam o leitor entregue aos próprios recursos para discernirsobre suas argumentações, repletas de incorreções. Obrasde tal índole são escritas com grande exuberância imagi-nativa; não existe nelas veracidade, e tudo ali se desenvol-ve no plano do arbitrário. Como é natural, excluo destejulgamento as obras de caráter científico, que apresentamhipóteses, mostram os adiantamentos da investigação e seabstêm de pronunciamentos definitivos.

Ao se oferecer a oportunidade, Griselda fez mençãoaos romances escritos por De Sándara, dizendo que o lei-tor os absorvia com particular interesse, por seus concei-tos sobre a condução da vida em suas diversas fases e ida-des e, além disso, por seus instrutivos conteúdos acercada colocação correta do homem e da mulher no trato e na

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consideração recíprocos, tão diferentes – acrescentou ela –da marcada tendência ao exótico, que leva alguns autoresà licenciosidade, por si só desconcertante.

– Excetuando os grandes romancistas – Marcos res-saltou, – é indubitável que uns e outros se têm rivalizado naarte de fantasiar, abraçando com fervor quase religioso oelemento trágico, que deixa na alma as angústias da fatali-dade, ou entregando-se a um romantismo febril, que quasesempre se choca contra o palpitar sincero do coração.

– Muito bem dito – De Sándara destacou, – pois ocoração não se dispõe a endeusar personagens alheios àrealidade que conhecemos e respeitamos.

– Quero completar, se me permite – o senhorMalherbe interveio, – o pensamento da senhora Arribillaga,quando fez referência aos autores de tendência realista. Euli muitos deles e vi que incorrem em extremos verdadeira-mente censuráveis, inspirados, é evidente, pelo frenesi daspaixões, ao pintarem com toda a crueza os vícios e asdeformidades da baixa natureza humana, sem que passepor suas mentes a idéia de que estão inferindo um agravoà moral, e sem que pensem nas perturbações que ocasio-nam às mentes juvenis.

– Estão vendo vocês – De Sándara observou– queescassos são os meios e os recursos com que o homemconta para se elevar acima de tanta miséria voluptuosa-mente preferida à riqueza moral?

– Eu concordo – Norberto assentiu; – mas nóstemos de convir que tanto o homem como a mulher preci-sam, quando jovens, conhecer certos episódios da vidapassional e psicológica, a fim de criarem suas própriasdefesas, em vez de exporem sua candidez em proveito dosmais tarimbados nessas aventuras.

– Não há dúvida de que até certo ponto é necessá-

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rio o que você acaba de expressar – De Sándara replicou,– mas o caso é que ninguém sabe deter a tempo essacuriosidade, e, naturalmente, quando querem acordar,ficam presos pelos sutis fios de uma corrente frívola queos habitua a aceitar tudo, porque os tempos de hoje assimo impõem, ainda que esse “tudo” afete sensivelmente osbons costumes e os sentimentos daqueles que seguemessa corrente.

Mudando de tema, e a propósito de uma sugestãocolhida durante a reunião, o senhor De Sándara referiu-sea certas particularidades que se podiam observar em seusromances:

– Sempre procurei infundir nos personagens todo omeu otimismo, a fim de atenuar, quando houvesse, o sofri-mento ou a tristeza que a alma costuma experimentar nosmomentos aziagos de sua existência. Nunca fiz que cho-rassem as misérias deste mundo, nem que vingassemofensas. Sendo filhos de meu pensamento, eu lhes deviauma herança melhor. Dotei-os, então, de uma capacidadeparticular para compreender e neutralizar os efeitos noci-vos do mal em suas próprias vidas. Mesmo quando reco-nheço que os dramas humanos, muitos dos quais termi-nam em tragédias, são parte do existir corrente, ao fazê-los surgir em minhas narrações procuro enxugar a dorque manifestam, dando-lhes um conteúdo elevado e ver-tendo, sobre a ferida aberta à tristeza, o bálsamo da com-preensão, que chega por via do espírito.

“Há uma passagem de minha infância”, continuoudizendo, “que minha memória conserva com toda a forçaemotiva daquela idade. Eu era muito pequeno quandoperdi minha mãe. Durante anos me senti profundamenteafetado por sua ausência, sendo o pranto o que mais deuma vez contribuiu para acalmar minha angústia. Minha

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incipiente razão não compreendia por que ela partira demeu lado quando meus olhos ainda mal se haviam acos-tumado a vê-la e meu coração a amá-la, sem que dela meficasse outra recordação que não fosse sua adorada ima-gem e seu venerado nome. Pois bem; quando em meuslivros eu tive que fazer referência a casos análogos, emrazão dos fatos que concorreram para elaborar a trama deseu desenvolvimento, sempre procurei transmitir ao leitor,por entender que devemos ser cautelosos na reproduçãode episódios ou acontecimentos tristes, uma sensação edi-ficante, fazendo com que ele se sentisse consubstanciadocom as virtudes que infundem fortaleza em tão amargotranse da existência humana.”

Após um silêncio, que ninguém interrompeu, DeSándara tomou de novo a palavra:

– Quantas vezes, ao contemplar os cabelos daquelaque hoje é minha esposa, pensei se os de minha mãe nãoseriam iguais, e quantas vezes também tive que enxugar nelesuma lágrima de gratidão à Divina Providência, por me ter per-mitido acariciar, com minhas mãos de homem, os cabelos quenão puderam deslizar nunca pelas ternas mãos do menino!...

À medida que De Sándara falava, seus olhos pare-ciam desaparecer de suas órbitas, para plasmar em seuamplo e difuso olhar a imagem de seu pensamento.

– Desde muito jovem – continuou, – eu pensava quenem tudo estava na forma física das pessoas. Havia algoque, da cúspide até onde remontavam minhas aspirações,me dizia que o espírito sobrevive à matéria, por ser eternaa força que o anima. Entretanto, que inviolável segredofazia com que sua presença fosse esquiva a meus olhos?Isso foi o que me propus descobrir.

Ao chegar aqui, De Sándara se deteve, enquantoapertava distraidamente contra o cinzeiro a ponta semi-apagada de seu charuto.

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Valendo-se dessa pausa, o doutor perguntou-lhe sehavia conseguido desentranhar esse mistério. Já preveni-do contra a desconfiança da ciência, que apóia seus cálcu-los sobre bases e comprovações materialmente concretas,De Sándara respondeu:

– Do ponto de vista de minhas exigências, sim.Sabemos perfeitamente que existem em nossas vidas duasrealidades inegáveis, que se mantêm entrelaçadas deforma admirável, até que uma delas, a material, cessa emsua função física. Em vez disso, a imaterial, constituídapela essência de nosso espírito, perdura. Se no homemtudo se reduzisse ao que é terreno, como nos animais,haveria nele a mais absoluta indiferença ante o desapare-cimento de seus semelhantes, mesmo dos mais próximos.O animal, ainda que doméstico, carece de consciência e desensibilidade, e, portanto, não pode afligi-lo a perda de umou de todos os indivíduos de sua espécie. Então, é óbviopensar que, sendo o homem um ente inteligente, existenele a aspiração de descobrir tudo quanto existe e gira emtorno de seu espírito. Fomos dotados de dois maravilhosossistemas: o mental e o sensível, e sabemos que, graças aeles, foi possível tentar as mais arriscadas empresas nainvestigação, desde a do átomo – que nos mostra sua ener-gia ultrapoderosa, a sustentar as forças cósmicas e telúri-cas do planeta – até a das imensas estepes siderais e daabóbada espacial, salpicada por miríades de estrelas. E setudo isso é acessível ao saber humano, por que não há deassim também ser a órbita ativa desse mundo incorpóreo,cujas vibrações nosso ser sensível recebe por via de nossamente e de nossa alma? Após lúcidos esforços da reflexãoanalítica, cheguei um dia à conclusão de que o espíritoindividual não é escravo de nosso capricho, nem se achaunido a nós como um insuportável irmão siamês, e que,embora nos pertença, nós o possuímos na medida da parti-

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cipação que lhe damos nos assuntos de nossa vida. Recordoque foi nos anos de minha mocidade que tirei de meu cami-nho a dúvida passiva, que adormece os sentidos e mantéma inteligência prostrada. Isso ocorreu quando transformeiessa dúvida em ativa e enfrentei, sem rodeios inúteis, o con-flito que desde tempos imemoriais a ciência mantém com oespírito. Isso me permitiu entrar decididamente no mundoincorpóreo, inacessível por todos os flancos à mente e à sen-sibilidade comuns. O espírito se manifesta e atua ali sem asrestrições que lhe são impostas pela presunção humana, tãopropensa a negar às cegas o que crê inexistente. Nesse inco-mensurável mundo metafísico, nesse “reino dos céus”, quãobem se aprecia a sabedoria, a misericórdia e a prudência doSupremo Criador em benefício do mais soberbo, fátuo etemerário de seus súditos: o homem. Meditando sobre ocomplexo mecanismo das leis universais, tão maravilhosa-mente harmônicas e precisas, penso que não nos resta alter-nativa senão reconhecer a sublime proteção e tato daAugusta Vontade diante dos excessos da ambição, da cobiçae da insensatez que o ser humano põe de manifesto, em grausuperlativo, ao pretender disputar-lhe palmo a palmo opoder sobre o criado... Pois bem; buscando minha mãe naimensidão desse mundo, não em sua imagem física nem nasternuras de seu afeto, mas sim em sua representação sim-bólica e na excelência de sua função espiritual, encontrei-asobrevivendo à carne em sua postura imortal ante meu espí-rito. Ela, minha mãe, desaparecia assim como tal, para con-fundir-se, na concepção suprema de sua excelsa missão,com a alma de todas as mães; com a alma daquela quedepois aparece encarnando na mãe de nossos filhos, paraprolongar a vida do gênero humano até o fim dos séculos.

– O senhor move com perícia o cenário metafísico –Laguna expressou. – Eu diria que tudo no senhor obedece aodesejo de nos fazer compreender essa verdade que, segun-

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do suas afirmações, existe em cada episódio ou movimen-to psicológico de suas idéias.

– É um desejo que me põe à disposição de vocês,neste momento e sempre, para qualquer esclarecimentoque desejarem de mim.

Mas ninguém manifestou essa necessidade, escu-tando-se tão-somente as opiniões de uns e de outros, nasquais os estados de ânimo dos mais jovens se confundiamcom o repousado e sentido acolhimento dos mais velhos.Entre todos, Cláudio foi dos mais calados, preferindoreservar para si o que De Sándara lhe deixara entrever emsuas palavras.

O casal Arribillaga jantou a sós naquela noite,depois de uma jornada feliz e pródiga para seus espíritos.

Os dias seguintes ofereceram a Cláudio e Griseldao clima animador que particularizou os primeiros contatoscom seus amigos em Buenos Aires.

Arribillaga manteve duas entrevistas com DeSándara, as quais serviram para ele revelar-se ao amigo comprofunda sinceridade e apresentar-lhe, de forma ampla,seus problemas de ordem interna, obtendo com isso umavaliosa ajuda no sentido de consolidar seus propósitos, ten-dentes a vencer a obstinada resistência dos pensamentosnegativos mais arraigados em sua mente, que eram tambémos que mais lhe gravitavam sobre o ânimo. Tudo isso have-ria de contribuir para orientar-lhe de forma definitiva os pas-sos em direção à meta ideal fixada como objetivo de sua vida.

– Tome muito cuidado – De Sándara havia-lhe dito,ao término da segunda entrevista – para não incorrer no

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gravíssimo erro de fabricar um deus destinado a lhe servirincondicionalmente.

– Como é possível que um ser, em pleno juízo,possa cair em tamanha aberração?

– Muito simples: condiciona-se a idéia de Deus àsconveniências pessoais e se avalia Seu Amor, Sua Justiçae Sua Compaixão de acordo com o que a limitação indivi-dual consegue conceber. Naturalmente, semelhantes apre-ciações não condizem com a realidade, fazendo com queaqueles que assim formam seus juízos sofram depoiscruéis desenganos.

Sob a influência das sensações nele promovidaspela freqüente assistência do amigo, e incitado cada vezmais pela necessidade de aumentar seu saber, Cláudio foifazendo da reflexão um hábito. “Há duas forças”, dizia elea si mesmo, com atinado juízo, “que disputam o domíniode nosso ser: a física ou material, que governa os sentidose o instinto com indiscutível preponderância sobre nossanatureza inferior, e a espiritual, metafísica ou imaterial,que abarca dois sistemas: o mental e o sensível. O primei-ro é constituído por nosso prodigioso mecanismo pensan-te e criador, e o outro, pela sensibilidade, pelos sentimen-tos e pelos divinos atributos do coração. Entre essas duasforças, a vontade é o pêndulo oscilante que, como umaalavanca, abre e fecha as portas de nossa felicidade...”

Tais conceitos, que se iam definindo claros e termi-nantes na mente de Cláudio Arribillaga, subjugavam suaalma, que acariciava com freqüência a prematura idéia dechegar a ser um portento de sabedoria. Porém, para quedesejava ele a posse do saber? Havia pensado nisso seria-mente? Após tal consulta, surgiu ante seus olhos a pugnadas duas forças que, fazia tempo, ele sentia debaterem-sedentro de seu ser. Uma delas era sadia, generosa, plena de

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virtuoso sentir; a outra era disfarçada de nobre aspiração,mas que erguia alto seu pendão característico, no qual acobiça e a ambição apareciam juntas. Repetidas vezes, aoperceber as trapaças do instinto e a fascinação dos senti-dos sobre sua vontade, ele havia comemorado com inefá-vel regozijo a saída airosa de tais experiências. Entretanto,quanto deveria ainda esforçar-se para chegar a surpreen-der, em cada uma de suas disfarçadas arremetidas, seuimplacável inimigo, a natureza inferior, em sua obstinadapretensão de reinar sobre sua vida!

“Por que será que, enquanto uns necessitam sécu-los para decifrar os enigmas que se aninham no fundo desuas almas”, prosseguiu Cláudio interrogando-se,enquanto avançava em suas reflexões, “outros conseguemdescobrir sem dificuldade suas chaves, como se fossemmeros problemas matemáticos que a perícia no cálculoresolve num instante?... Quão imenso é o abismo da igno-rância, que engana os homens quando, por refração daluz, aparece em suas obscuridades a miragem dos cumes!Mas que pesado letargo angustia as mentes, para que elasrequeiram tão elevado número de explicações antes deresolverem sair do aturdimento mundano? É incrívelquanto custa ao homem convencer-se de sua inabilitaçãoespiritual; e lhe custa, sem dúvida, porque nunca entrouem seus projetos, como possibilidade digna de ocupar-lheo tempo, chegar a sentir a necessidade de um despertarinterior. É inquestionável que, enquanto ele permanecerna ignorância de tais verdades, tudo se reduzirá a sorvera taça da vida – a grandes goles quando o prazer o embria-gar, e a muito pequenos e medidos quando ela se tornaramarga e desagradável para seu caprichoso paladar.”Tendo chegado a este ponto, umas palavras de seu amigode pronto se lhe fizeram presentes, apropriadas que erampara os pensamentos que nesse momento cruzavam sua

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mente: “O homem revogará a sentença que fixa para suavida um destino incerto e aleatório com o simples fato dereabrir o processo de sua evolução, que o levará a alcan-çar o juízo benevolente das alturas, que é também o daHistória. Unirá suas forças e sua firmeza à das almas quebuscam a verdade, a verdade sem mácula, que agrupa emseu seio todos os arcanos da Sabedoria, e sentirá como seirmana com elas no mais sublime dos parentescos.”

Enquanto assim ponderava, surpreendia-se aocomprovar a relação que as palavras de seu preceptortinham com o que lhe acontecia internamente, e houve uminstante em que, ao evocar seu olhar, experimentou umaespecial emoção, como se de novo sentisse que algo pers-crutava os âmbitos mais recônditos de sua consciência.Acompanhado pelo doce palpitar de esperanças que o revi-vificavam e estimulavam, Cláudio comparou o calibremental e moral de seu preceptor com o dos amigos emcuja companhia havia perdido deploravelmente o tempo, elhe pareceu como se estes vivessem em idades primitivas,movendo-se em torno dos mitos que a cegueira espiritualerige como únicos incentivos da vida.

– É curioso o que costuma acontecer comigo quan-do estou junto a De Sándara – dizia ele a Griselda, diasdepois, em tom confidencial. – Enquanto escuto suasexplanações e procuro assimilar suas palavras, perceboem mim uma lucidez que me faz estupefato. Acredite, que-rida, que às vezes tenho a impressão de que me ponhodentro de um outro Cláudio, equipado com um extraordi-nário órgão pensante, o qual me permite conceber idéiaspreciosas, bem como sentir e olhar a vida de um ângulototalmente ignorado por mim. Nesse estado, que eu deve-ria me esforçar por tornar permanente, quão fácil se tornacompreender que existem realidades às quais eu aindapermaneceria alheio se não tivesse chegado para mim a

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hora do despertar, e se a consciência não me expressasseo chamado de um outro gênero de vida, no qual eu possaexperimentar as delícias de um existir incomparável epleno de ventura.

Griselda, a quem agradavam sobremaneira taisdeclarações, nascidas da alma de seu esposo com simpá-tica espontaneidade, contribuía com o rico acervo de seuafeto e de sua bem dotada inteligência para tornar maisfirmes, duradouros e conscientes os efeitos entusiásticosdaquelas comprovações. Ela sabia avaliar quanto Cláudioteria ainda que lutar, pois não lhe passavam despercebi-dos certos indícios de vaidade que por momentos o cega-vam, fazendo-o situar sua arrogância acima das satisfa-ções simples da humildade. Apesar disso, ela o havia vistosair repetidas vezes triunfante dos momentos difíceis aque suas debilidades o levavam, prova inegável de que iamcedendo terreno. Mais de uma vez, viu-o dobrar seu orgu-lho e mostrar-se sem a pompa com que a presunção reves-te e empana os méritos que o ser possui. Em tais oportu-nidades, desaparecia a personalidade, com seu séqüito develeidades, dando lugar ao ente sensato, nobre e sincero,aprisionado no lugar mais reduzido do pequeno mundointerior humano.

Durante o tempo que já tinham de casados, tanto elequanto ela haviam conseguido compreender onde residia oponto-chave da harmonia que devia reinar entre ambos. Oestudo sereno e consciente de suas próprias experiênciashavia-lhes permitido descobrir que a harmonia conjugalreside no mútuo respeito e na honra que cada um é capazde dar a seu nome e à sagrada instituição da família, ajus-tando-se à ética elevada que, de forma natural e espontâ-nea, é dever praticar. Convinha principalmente que fossemcomunicativos, mas sempre respondendo aos impulsos pró-prios da intimidade, e não por obrigação, já que tudo devia

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concorrer harmoniosamente para uma eficaz atuação dentrodo mundo familiar, que é parte do campo experimental domundo extramaterial que estavam conhecendo. Mas nem umnem outro haveria de interferir no processo interno queambos seguiam em busca da ansiada felicidade. A vida inter-na é inviolável; sua virtude é a discrição, que a ampara con-tra toda eventualidade; seu encanto está em seu segredo, quesomente o dono dessa intimidade conhece e desfruta.

Naqueles dias, a presença de Mariné, em cuja compa-nhia Griselda se entretinha diariamente, sem dúvida seria degrande proveito para ela e para a estabilidade futura de seular, uma vez que sua assistência lhe facilitaria transcendermuitos dos obstáculos psicológicos que poderiam se apresen-tar ante ela para conturbar sua alma de mulher que aspira auma maior perfeição no cumprimento da missão de seu gêne-ro. A vida matrimonial, encarada dentro de uma formaçãoespiritual à prova de vacilações, onde a compreensão é basee sustento mútuo do amor professado, tinha para Griselda ovalor de algo inefável. Ainda sem a segurança necessária parase mover com o acerto desejado – coisa que para ela consti-tuía a realização do mais dourado sonho –, sua sensibilidade,suprindo o que não estava ao alcance de sua razão, permitia-lhe captar muitos detalhes passíveis de melhoramento, e aisto ela de bom grado se dispunha, a fim de facilitar o desen-volvimento harmônico e feliz da vida do lar.

Ela sentia-se feliz por tal motivo, e, enquanto Cláudioexperimentava as mais saudáveis reações, ao provar o prodi-gioso esplendor concedido a toda consciência humana queultrapassa os campos já trilhados do saber comum, em seucoração de mulher iam reafirmando-se o afinco e a dedicaçãocom que ela se preparava para triunfar sobre os aconteci-mentos que o contínuo transcurso da vida apresenta apóscada amanhecer.

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Foi durante a permanência do senhor De Sándaraem Buenos Aires que se ofereceu a Cláudio, novamente, aoportunidade de verificar sua firmeza na prática de umaconduta livre de intromissões estranhas a seus anelos.

Havia conseguido, até então, esquivar-se do incan-sável assédio dos amigos, os quais, pouco dispostos a verseu número reduzido, renovavam a insistência de temposem tempos, com telefonemas e visitas a seu escritório,convidando-o a participar das aventuras de suas malorientadas vidas. As negativas que ele deu, expressadassem titubeios nem vacilações, pareciam finalmente havê-los afugentado; pelo menos foi o que Cláudio supôs,enquanto via com alívio passarem os dias sem que aque-les convites se repetissem.

Não obstante, quando menos esperava, foi sur-preendido por uma visita de Luciano, que apareceu certatarde no escritório.

– Estou morrendo de desejos de ter notícias devocê! – exclamou ele, enfaticamente, ao entrar. – Não vejovocê mais em parte alguma! Já tentei falar por telefone, jávim várias vezes aqui, e sempre sem resultado! Por ondetem andado?

– Em lugar nenhum do outro mundo, criatura!...Eu simplesmente ando ocupado com a visita de uns ami-gos que chegaram do estrangeiro.

– O tal De Sándara, talvez?... – Luciano perguntou,com um quê de ironia.

– Acertou em cheio – Cláudio respondeu, com serie-dade.

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O sorriso de Luciano tornou-se inexpressivo, conti-do pela atitude austera do amigo.

– Com toda a certeza, você vem me convidar paraalguma farra... – Arribillaga expressou, retomando suahabitual cordialidade.

– Mas claro!... E que farra!– Entretanto, você vai ter que ir sem mim. Já deve

ter desconfiado... – Mas por quê?!– Você sabe.– Isso é uma loucura!– Julgue você como quiser; é seu direito. Quanto a

mim, trate de me compreender e procure não insistir dehoje em diante. Você já sabe, Luciano, que estou resolvidoa evitar as aventuras e sugestões que não convenham àsminhas responsabilidades atuais. Por que haveria de alie-nar minha vida, me prendendo a compromissos que metomam um tempo que eu quero usar melhor?

– Opa!... Quem diria! Quando você se vangloriavade ser dono e senhor de suas idéias e de sua vontade, euachei que havia firmeza nisso...

– Naquela época eu estava errado. Estou dispostoagora a reparar esse erro, e não vou mudar.

Luciano, aferrado a suas razões, ou possuído porelas, e convencido de estar certo, replicou:

– Você vai me desculpar, mas me parece que essa éuma decisão pouco inteligente em alguém como você.

E, logo em seguida, com claras mostras de que adecisão de Cláudio de modo algum entrava em sua cabe-ça, voltou inflamado à carga, descrevendo-lhe a perspecti-va de um “programa monumental”. O convite ganhava emseus lábios grande sedução, enfeitado com todos os artifí-cios possíveis para despertar o apetite do amigo, que ape-sar disso se manteve impávido e surdo ante o murmúrioinsidioso dos sentidos, que esporeavam seus instintos.

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– Escute aqui, Luciano – ele disse, já nos limites desua paciência. – É preciso que você compreenda, de umavez por todas, que isso acabou. Você deve se convencer deque eu estou absolutamente decidido a conservar minhaliberdade, tal como eu a entendo. Portanto, não vou! Estaé minha resposta. E eu lhe peço encarecidamente querespeite minhas idéias, como eu respeito as suas.

– Você está falando sério?... De verdade, Cláudio? – É como você ouviu.– Pois eu jamais poderia compartilhar desse seu

modo de pensar!– Lamento, Luciano; antes eu também não pensa-

va como penso agora. Mas, até que enfim, compreendimeu engano. E pode ser que você também perceba essascoisas um dia. O jeito é esperar...

– A verdade – insistiu Luciano – é que eu custo ame convencer de uma coisa desse tipo. É essa sua últimapalavra? Está brincando!... Tenho certeza que você vaicom a gente, nem que seja pela última vez.

Cláudio, vendo que seu amigo levava sua respostapara o lado da troça, tornando-se obstinado, firmou-seainda mais em sua postura e, pondo-se de pé, estendeu-lhe a mão, despedindo-o com estas palavras:

– Se foi para isso que você veio, lamento dizer queperdeu seu tempo. Por favor, procure não insistir.

Quando Luciano se retirou, Cláudio respirou dealívio. Tinha-lhe parecido ver, por detrás de seu amigo, asugestiva figura de Mefistófeles, a quem acabava de afu-gentar com decisão e energia, cansado de representar otriste papel de Fausto.

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Um jantar na casa dos Arribillagas coroou a estadade Ebel e Mariné em Buenos Aires, tendo dele também par-ticipado Cristina e o senhor Malherbe, além dos pais deGriselda.

Tudo transcorreu em meio a cenas muito efusivas, e,quando finalmente passaram ao salão, o espírito jovial dospresentes não diminuiu o ritmo de suas expansões. E assimteria continuado, se um colóquio entre De Sándara e o dou-tor Laguna não houvesse polarizado as atenções, o que fezcom que a atitude mental variasse quase instantaneamen-te, dispondo-se todos a participar de um tema mais sério.

– Quais seriam, então, os motivos essenciais queregem seu pensamento em matéria de investigação trans-cendente? – perguntava o médico, naquele momento.

– É lógico que tais motivos não permitem que eu meafaste dos cânones que regem a conduta científica – respon-deu De Sándara.

Interrompendo-se por um instante para servir-seum charuto da caixa que Patrício lhe estendia, ele conti-nuou:

– Eu avanço por outros caminhos. Sigo outros méto-dos; métodos próprios, configurados no próprio campo daexperiência e elaborados enquanto adapto e readapto meussentidos e meu juízo às exigências de um rigor que não per-doa descuidos nem distrações. Como o senhor pode supor,quando eu me decidi por este gênero de investigações, inter-nando-me no mundo metafísico, onde tantas verdades esatisfações tenho encontrado, não deixei de prever as difi-culdades que encontraria à minha passagem.

– Me desculpe, senhor De Sándara, se interrompocom uma nova pergunta. Quando o senhor diz mundometafísico, a que se refere?

– Não ao que ocupou e ocupa a atenção dos filósofosantigos e modernos, pronunciadamente inclinados a conce-

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bê-lo como emergindo do absoluto e, portanto, infran-queável à experimentação do homem, por causa das limi-tações próprias de sua natureza corpórea. Em minha opi-nião, esse mundo é consubstancial com nossa vida, o quepermite que os pensamentos e idéias que vivem em nósmantenham perfeita correlação mental com o processo davida universal. Os homens de ciência, céticos por excelên-cia, desdenham tudo o que se relaciona com as manifes-tações do espírito e com nosso mundo interior, exclusiva-mente mental e sensível. Certa vez, ao visitar um labora-tório onde trabalhava uma plêiade de distintos investiga-dores, tive de deter-me ante o afã do homem que, procu-rando dominar o universo, esquadrinha as forças doátomo, isola bactérias e combina elementos poderosa-mente destruidores, enquanto abandona a guarda desuas defesas internas e cede, para mofa de sua soberba ehumilhação de seu espírito, ao domínio que instintos epaixões exercem sobre ele. “Pois bem”, eu me disse,naquela oportunidade; “que cada um proceda de acordocom o que já pôde saber e entender, e sigamos nossocaminho. Deixemos que os homens de ciência continuembuscando o mistério da vida na célula material, enquan-to nós conservamos a certeza de tê-la encontrado na célu-la mental; deixemo-los entregues ao devaneio de espre-mer em suas mãos o pensamento de Deus e submeter ocosmo à sua vontade, enquanto nós proclamamos suaaugusta presença em cada partícula da Criação e o ado-ramos da única forma grata a seus divinos olhos: traba-lhando pelo nosso bem e o de nossos semelhantes,reconstruindo a vida com o mais estimável que encontre-mos dentro de nós mesmos e completando-a com o maisvalioso que sejamos capazes de conseguir, para dignificaro destino da espécie a que pertencemos.”

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– A abundante coleção de conhecimentos que osenhor possui, senhor De Sándara – Dona Laura interveio,– deve ser sem dúvida fruto de longos anos de trabalho.

– De fato, senhora; de longos e fatigantes anos...Através deles, consegui reunir para meu uso particularisso que a senhora acaba de chamar de “coleção de conhe-cimentos”, que na verdade é o que se pode encontrar demais precioso dentro desse mundo do qual falávamos.Graças a isso, pude fixar em mim as sensações sublimesque se experimentam ao reproduzir as imagens contem-pladas lá, na esfera metafísica, nessa infinita imensidãoque é tão mais inacessível quanto mais remotas as possi-bilidades individuais de penetrar nela. Isso me permitiuviver feliz e sentir-me tão à vontade ali como no mundoonde estamos vivendo.

– O senhor me permite? Eu penso – objetou o dou-tor Laguna, desejoso de um esclarecimento – que toda des-coberta deve ser posta à disposição da humanidade, paraque dela se beneficie. Embora muitas de suas palavrasdenunciem essa generosa conduta, o que acaba de dizernão poderia levar a supor que o senhor utiliza os seusconhecimentos em benefício exclusivo de sua pessoa?

– O senhor verá como as aparências costumamenganar – respondeu De Sándara, que em seguida adicio-nou, com perspicácia: – É certo que não afasto a possibi-lidade de o senhor ter querido promover um amplo movi-mento explicativo de meu pensamento, a respeito de umaconcepção que lhe poderia ter parecido audaciosa.

Sem negar a hipótese, o doutor sorriu.– Os conhecimentos científicos – De Sándara conti-

nuou – beneficiam a quem se serve deles. Estou seguro deque nesse ponto nós coincidimos, sem reservas. Pois tam-bém se beneficiam destes outros de que estou falando – já

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que não são exclusivos de ninguém – aqueles que, sempreconceitos e sem pretensões de modificá-los, recorrem aeles e se submetem à sua ação prodigiosa. É exclusivoapenas aquilo que cada um conquista para sua própriaventura, ao tomá-los por guia. Como o senhor há de com-preender, nenhuma outra coisa poderia ser mais grata ameu espírito do que acercar uma alma a esse mundo esustentá-la, até que por si mesma ela se convença de quenão existe nada comparável a isso, para poder sentir-sefeliz na máxima expressão da palavra. Me interessa viva-mente tudo o que se relaciona com a maravilhosa confor-mação do homem, mas em meus estudos faço abstraçãode sua constituição biológica, regida, como sabemos, porleis que governam a vida celular sem o concurso da von-tade. Não me cansarei de repetir, doutor Laguna, quemeus conhecimentos não se prestam ao exame frio e ana-lítico dos homens de ciência; não pode ser submetido aoestudo e à investigação levados a termo com os olhos vol-tados para fora aquilo que, dentro de nós mesmos, na pró-pria vida, oferece o campo experimental mais variado erico. Os conhecimentos cujas virtudes enalteço têm a pro-priedade de penetrar na vida psicológica e mental do indi-víduo, ali onde o homem se torna dono de seu destino,enquanto aprende a usar sua inteligência, sua vontade eenergias, dirigindo-as para o ponto no qual se dá o subli-me enlace de sua vida com o pensamento que anima aCriação. Eu só posso auxiliar o entendimento de quem sepropõe empreender essa tarefa até os limites permitidos;mas indicar-lhe o ponto de enlace, isto não, porque sualocalização é diferente em cada ser humano. Enquanto naminoria ele se acha, pode-se dizer, quase que ao alcancedas mãos, os demais devem cobrir longas e penosas jorna-das de luta para chegar a ele. Por outra parte, cada umtem sua forma particular de se mover... Enfim, trata-se de

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uma variedade de situações absolutamente complexas;mesmo assim, não há obstáculo que se oponha às aspira-ções de alcançar essa meta, desde que o interessado este-ja disposto a educar os movimentos internos que, comesse objetivo, devam ser realizados, acostumando-os a umritmo de aceleração que tenda a quebrar a resistênciadesse hábito que acaba por acomodar tudo, de uma formalenta e preguiçosa, nas vastas dimensões do tempo.

– Lamento ter de expressar que, no que diz respei-to ao exercício técnico da profissão científica, discordo emparte do que foi dito, senhor De Sándara. Creio percebercerto preconceito no que se refere aos homens de ciência,e, como o senhor há de compreender, eu gostaria de escla-recer esse assunto, tão importante para nossas mútuasconvicções.

– Não foi minha intenção, querido doutor, menosca-bar o mérito indiscutível dos homens de ciência, nem exis-te em mim tal preconceito. Convenhamos, porém, que aexplicação dos grandes enigmas encerrados na pessoahumana ainda se mantém inacessível para a ciência.Filósofos e psicólogos não tiveram, tampouco, maior êxitoao abordarem os mistérios da psique. Ciência e filosofianunca indicaram um caminho que conduzisse o homematé a verdade sem vacilações, sem os intermináveisrodeios de suas teorias e hipóteses, postos como marcospara indicar caminhos incertos. Chegará o dia, entretan-to, em que tanto uma quanto outra, ciência e filosofia,tomarão para si a tarefa de rever o assunto, a fim de reti-ficarem condutas e erros nas apreciações sobre o homeme seu destino.

– Atendo-me a seus conceitos, deduzo que issoacontecerá quando os cientistas, os filósofos, psicólogos edemais interessados no assunto decidirem, por convenci-mento, estudar suas próprias psicologias.

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– Aí está a chave! No estudo de suas próprias psi-cologias: o espírito, a consciência, a vida dos pensamentose as mil reações internas que nem sempre saem à super-fície, mas que, entre tantas outras coisas, formam omundo de cada pessoa.

– Acho que nós temos de admitir, senhor DeSándara, que, se a dúvida é inseparável da ciência, asconvicções também o são, após a evidência.

– Exatamente, doutor Laguna; e isso o senhorpoderá conseguir mediante comprovações, tão logo decidalevar a ciência para dentro de sua própria pessoa.

– Isso me faz supor – expressou o pai de Griselda,com cuidadosa ponderação – que, para superar em altograu as condições de nossa potência psíquica e mental, seimpõe a execução de um processo de adestramento inter-no. Interno porque se trata de incrementar o que está den-tro, e não fora de nós. O senhor já pode ver, senhor DeSándara – adicionou jovialmente, – que eu já vou me fami-liarizando um pouco com suas fórmulas.

– Aproveitarei, então, para acrescentar que é tambémnecessário criar as condições que a vocação superior exige,a fim de poder aumentar, num constante esforço, a capaci-dade de penetração e de discernimento da inteligência.

– É algo absolutamente compreensível.Aí se deteve o doutor, aparentemente satisfeito,

mas em seguida deu curso a esta outra pergunta que oinstigava:

– O senhor não acha que outros já andaram pelomesmo caminho?

– Prefiro não ser categórico na resposta; vou melimitar tão-somente a fazer notar uma possível diferença.Esses outros, a quem o senhor se referiu, percorreramapenas alguns trechos dele, que decerto não contam, se

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comparados com sua verdadeira extensão. Tal circunstân-cia faz com que, ao regressarem, exibam altaneiros o frag-mento de verdade encontrado – encontrado só por casua-lidade – e o usem não para exclusivo bem do semelhante,mas sim para adquirir notoriedade. Que uso se fez dessefragmento de verdade? Para que serviu? Para semear pelomundo teorias a granel, muitas das quais se degeneramem apaixonantes esnobismos, tão inúteis como insubs-tanciais. Não se pode afirmar que se andou por esse cami-nho quando dele se ignora o essencial, ou seja, que zonasdo saber ele atravessa, o que exige o trânsito por ele e oque ocorre quando o ser se aproxima de seus escarpadoscumes. Convenhamos, pois, que sabe muito mais – e éalém disso mais consciente de seu saber – quem cobriuextensos trechos do mesmo, em comparação com quem sedeteve a pouca distância de seu ponto de partida.Podemos dizer abertamente que essa senda ou caminho,que é o da vida universal, é também o da própria vida,quando o homem resolve consumar a alta finalidade daexistência. Esse caminho está povoado por presenças detoda espécie, umas animadas, outras inanimadas, mastodas visíveis para o olhar perscrutador do observadorinteligente e sagaz. Só a torpeza dos sentidos impede vê-las, uma vez que esse caminho é o mesmo que todos per-correm; a diferença consiste em que, enquanto uns andampor ele descobrindo muitas coisas à sua passagem,outros, por mais que andem, não vêem absolutamentenada. As oportunidades que uns perdem por desídia, indi-ferença ou inadvertência, são entretanto as mesmas queoutros, mais aplicados e capazes, usufruem. Para ilustraresse fato, pode servir o caso dos rotineiros, que repetematé o último de seus dias os mesmos movimentos, as mes-

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mas coisas, e levam consigo os mesmos pensamentos, etambém o dos que realizam estudos, acometem com êxitoempresas difíceis e arriscadas, e desenvolvem uma ativi-dade múltipla, mas sem nunca estenderem a vista parafora da órbita na qual se movem.

– Estariam na mesma situação do enfermo queignora, para curar seu mal, a existência do remédio queajudou outros a sarar.

Dito isto, o doutor Laguna permaneceu em silên-cio. Talvez recordasse ali o que seu genro lhe disseracerta vez, ao afirmar que De Sándara era refratário aosvôos da imaginação, tão propensa a deleitar-se no terre-no da fantasia, avaliação da qual ele mesmo podia daragora testemunho, confirmando não ter observado emsuas palavras o mais leve indício de articulação quimé-rica.

Nesse ínterim, Dona Laura interveio:– O senhor deve ter lutado muito, senhor De

Sándara... Sem dúvida, deve ter tido muitos inimigos...– Não pode haver luta sem inimigos, senhora, e eu

de fato os tive...Como se as palavras de Dona Laura tivessem acen-

dido nele lembranças de épocas longínquas, ao removeremas cinzas que cobrem os tições desse fogo eterno que pal-pita nos corações que sofreram muito, De Sándara conti-nuou:

– A vida é luta, luta constante; e a minha assim foi,e com singulares projeções. Mas nunca deprimiram meuespírito as artimanhas usadas por aqueles que me ataca-ram, emboscados como os salteadores de estrada, crendoque poderiam saquear-me e até mesmo eliminar-me. Nãosabiam, certamente, que os bens do espírito são patrimô-nio inalienável e indestrutível.

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– O senhor deve sentir uma grande satisfação porter triunfado nessa luta... – conjeturou Dona Laura.

– Sempre considerei meus triunfos como estímulosinestimáveis para firmar minhas convicções e penetrar,mais profundamente, na brecha aberta dentro do vastíssi-mo campo das idéias e dos conhecimentos.

Assim era. De Sándara não estava entre os que sedeixavam atrair facilmente pela fumaça inebriante comque Armida adormece Rinaldo no poema de Tasso, já queos êxitos nunca o haviam envaidecido. Sem dar lugar aque a celebração de um triunfo detivesse jamais o ritmo desuas atividades, sempre se dedicara exclusivamente atransformar em essência de ensinamento os dissabores dejornadas que pareciam intermináveis, depositando-as naspáginas de seus livros como fruto de suas contendas psi-cológicas, para que servissem de pauta e incentivo àque-les que os necessitassem para a defesa de suas vidas.

Uma taça de champanhe em homenagem aos hós-pedes, que partiriam no dia seguinte, deu motivo a novasexteriorizações do sentir.

Cláudio brindou à felicidade dos mesmos, encer-rando seu breve discurso com estas palavras:

– Sei que existe uma hierarquia tanto nos afetoscomo na amizade, e eu o tenho colocado, senhor DeSándara, juntamente com sua família, no lugar mais altode minha estima e admiração. Sua amizade, que mehonra, ensinou-me a distinguir, sem equívocos, aquiloque deve ser para mim motivo de permanente adesão erespeito.

O doutor Laguna seguiu-o no uso da palavra, edepois Malherbe, os quais, em termos efusivos e cordiais,formularam aos amigos votos de uma viagem feliz e de umpróximo regresso.

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– Comoveram muito meu espírito – agradeceu DeSándara – estas sinceras expressões do sentimento queacabo de escutar. Não encontro melhor forma de retribuirtanta amabilidade do que dando a todos a segurança deque tais expressões são correspondidas amplamente emmeu sentir, e que guardarei em minha recordação, comoalgo terno e valioso, estes momentos tão agradáveis quepassamos juntos. Que os dias futuros – acrescentou,erguendo sua taça, – e até onde consigamos chegar nestavida, sejam uma constante afirmação da amizade e simpa-tia com que todos os presentes acolhemos o afeto que nostributamos.

– Quando é que o senhor volta por estas terras? –inquiriu depois o doutor Laguna, com expressão cordial.

– O retorno, se nada se opuser – De Sándara disse,– será para residir aqui definitivamente; faz tempo queacaricio a idéia de voltar para o meu país de origem.

– Teremos que esperar muito por esse dia? – DonaLaura perguntou.

– Vamos desfrutar antes a visita de seus filhos,senhora. Eles prometeram que, sem muita demora, vãonos seguir numa viagem até o México.

Acentuou-se, a partir dali, uma confortável sensa-ção de alegria, que contribuiu para que todos guardassemdaquele encontro uma recordação feliz.

Quando, momentos mais tarde, Ebel, Mariné eCristina entraram em seu apartamento no hotel, espera-va-os sobre uma mesa, junto com alguns vistosos embru-lhos, um artístico buquê de rosas de talos bem tratados,em cujo cartão se lia: “Cláudio e Griselda, afetuosamente.”

– Que carinhosos são! – Mariné exclamou, comovi-da, enquanto contemplava com olhos admirados o suges-tivo obséquio.

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A pedido de Ebel, ela desfez o embrulho dedicado aseu esposo, deixando ver um formoso manto tecido com lãde vicunha, de finíssimo fio, que apreciaram e valorizaramrepetidamente.

Enquanto Cristina e Mariné se ocupavam dos res-pectivos presentes, De Sándara, emocionado pela atitudede seus amigos, guardava silêncio, desfrutando a venturade haver contribuído para a felicidade deles. Quão inefávelpaz inundava nesse momento sua consciência!

O homem, em seu andar pelo mundo, pouco ounada se ocupa da consciência; mas um dia, quando, pres-sionado talvez pela adversidade, decide reger-se por seusditados, deve sofrer a amarga decepção que lhe acarretaessa conduta. Imobilizada, adormecida por sua longa ina-tividade, a consciência já não exerce sobre ele nem forçanem autoridade. Ele não a ilustrara nos claros preceitosdo bem, não a enriquecera com os elementos valiosos quea observação e o juízo acumulam através do estudo e daexperiência, não lhe conferira os conhecimentos de natu-reza pura e elevada que haveriam de exaltá-la em sua fun-ção reitora da vida. Chegando a esse ponto crítico, ohomem não pode dizer em absoluto, como costuma fazer,que se acha em paz com sua consciência pelo fato de nãohaver causado mal a ninguém. Cândida manifestação doegoísmo humano, que ignora ou esquece que tambémfazemos mal ao semelhante quando o privamos do bemque lhe podemos fazer... Quão diferente é, sem dúvidaalguma, a paz daquele que, depois de se ver quite consigomesmo, ao ilustrar-se no conhecimento do bem, estendegenerosamente esse bem ao próximo, iniciando-se na prá-tica de tão humanitário dever! Oh, belo sentimento daalma humana, que jamais deveria afastar-se dos corações!

Um relógio das cercanias deixou ouvir duas bada-ladas.

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Cristina, sobressaltada pela hora, tomou pressa emdespedir-se.

Ebel e Mariné ficaram sós.O silêncio não tardou em envolver o aposento,

velando o repouso de seus moradores, que se transporta-ram em sonhos até as regiões onde o coração sente ainfluência da vida imaterial, e o espírito lança seu vôomagnífico pelos espaços do reino onde ocorrem as maissublimes iluminações.

Com a imagem do avião que transportava seusamigos ainda não de todo desvanecida, Cláudio meditavacom sereno juízo sobre o vivido no transcurso daquelesdias. Juntamente com a força fertilizante dos conhecimen-tos com os quais sua mente estreitava um contato cadavez maior, manifestava-se nele, como inquietude da alma,a angústia proveniente da pouca atividade espiritual queaté então havia desenvolvido. Pensamentos que a cons-ciência utilizava, talvez para se fazer escutar, levaram-noa pensar em como a vida se esfuma quando os anos vãotranscorrendo sem que fatos relevantes façam o homemdesfrutar o delicioso sabor das proezas que a vontade,guiada e estimulada por profundos anelos de elevaçãoespiritual, é capaz de realizar.

Pensou na monótona sucessão dos dias que nãoapresentam variações nem perspectivas atraentes, osquais nos denunciam o ritmo compassado com que otempo move as pesadas rodas de sua lei inexorável,enquanto ficam trituradas, como os grãos na poderosa

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garganta do moinho, as vidas daqueles que não souberamfugir do cíclico movimento de seus destinos incertos.“Devo fazer algo; devo intensificar meus empenhos”, disseconsigo, impondo-se firmeza. “Devo pensar seriamentesobre meu comportamento futuro, para me liberar da cen-sura interior que me agita. E não desistirei até haveralcançado a altura de onde se dominam todos os horizon-tes e se conhece o porquê dos anelos e afãs ligados àessência do nosso existir.”

A preocupada fisionomia de Cláudio tornou-se,através de suas silenciosas considerações, mais aberta, aodesenhar-se nela a evidente expressão da segurança e daconfiança surgidas como resultado favorável de seuexame. Sem dúvida, sua vida ganhava naquele instante,por haver alcançado o grau preciso de absorção mentaldos conhecimentos recebidos ultimamente, o alento sin-gular cujo poder acende as energias da alma e sacode,vigorosamente, até as fibras mais íntimas do ser.

Satisfeito por sentir-se agora mais bem orientado,Cláudio Arribillaga levantou-se da poltrona e, pondo emordem alguns papéis amontoados sobre a escrivaninha,saiu à procura de Griselda.

Encontrou-a ao cruzar o vestíbulo. Desejoso deconversar um momento com ela, reteve-a a seu lado.

– Eu estava mesmo procurando por você, querida –ele disse, tomando-a pelo braço. – Você me é tão necessá-ria para desafogar minhas alegrias como também o são,em certos momentos, a solidão e o silêncio para esclarecerminhas idéias.

– Oh! Suas palavras me são muito gratas – expres-sou Griselda, respondendo à afetuosidade de seu esposo.

Em seguida, acrescentou:– Alegra-me imensamente vê-lo mudado.– Você vê mudança em quê?

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– Em seu rosto!... Quando você não está contente,como ocorria faz apenas uma hora, percebo nele umamarca inconfundível, que, embora imperceptível, perma-nece impressa enquanto dura seu pesar.

– Como você me conhece bem!– Tanto quanto você a mim, com certeza – respon-

deu Griselda, que a seguir procurou saber, com interesse:– Parece que você queria me dizer algo, não?

– E vou dizer, começando pelo que me está deixan-do contente. Neste momento, eu me acho sob o efeito desensações extremamente felizes. Eu diria que se pôs emmarcha, dentro de mim, a engrenagem de um poderososistema de articulações psíquicas e mentais que exaltameu entusiasmo. Você está compreendendo, Griselda? Éalgo assim como se as células anímicas de meu organis-mo, movimentando-se numa intensa atividade, se achas-sem cumprindo a tarefa de me preparar para um trabalhomais sutil.

Em seguida, relatou como repicavam ainda, emseus ouvidos, as últimas advertências que De Sándara lhefizera sobre a forma de usar com proveito os própriosrecursos internos, a fim de criar as defesas da mente eaumentar a potencialidade da inteligência. Confidenciou-lhe também como aquele, diante de seus protestos – aoreconhecer-se sem méritos para ser depositário da confian-ça que ele lhe estava dispensando –, havia insistido paraque ampliasse seus conhecimentos e se unisse ao conjun-to de homens que, dos mais diversos e afastados pontos daterra, colaboram diariamente no esforço por salvar ahumanidade do maior de seus infortúnios: a ignorância.

– Esses homens são os cientistas – Cláudio conti-nuou dizendo, – consagrados uns a combater os males queminam a saúde, e outros, ao aperfeiçoamento técnico em

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todas as ordens do progresso dos povos. São também osfilósofos, cujas teorias promovem a polêmica em torno dosproblemas do espírito, despertando o interesse pela inves-tigação nesse ramo do saber. São os artistas, que perpe-tuam em suas obras as excelências da alma, uns reprodu-zindo na tela, no bronze ou no mármore vidas exemplares,para eterna memória das mesmas; ou criando e idealizan-do, em suas concepções magistrais, os traços arquetípicosda criatura humana; e outros expressando, na portentosalinguagem das notas musicais, suas idéias e emoções.Entre esses homens estão os poetas e os escritores, quetransmitem ao mundo as mensagens da inteligência, desdeos mais complexos e variados temas filosóficos, científicose artísticos, até o relato cordial e singelo que proporciona àalma instantes de prazer. A esse conjunto pertencem tam-bém o industrial, o artesão e o operário, o navegante e olavrador, e todos aqueles que põem em seu trabalho algomais que o afã de sustento e a ambição pelo bem-estar pes-soal, e que contribuem honradamente para a consolidaçãoda sociedade, para sua tranqüilidade e seu progresso.

– Não se trata, então, de nada inalcançável...– Oh, não, é lógico que não! – Cláudio assegurou,

puxando-a para si, enternecido. – E muito menos comuma companheira como a que eu tenho... Você é a mesmaque os olhos de minha alma viram no instante em quemeu coração a consagrou como sua rainha!

– Cláudio... – Griselda murmurou, olhando-o comdoçura. – Como eu gostaria que você sempre estivessesatisfeito comigo!

– Eu deveria dizer a mesma coisa a você – replicouele, com um suspiro. – Mas uma força estranha a nossosentir às vezes nos move como se fôssemos uns títeres, e éclaro que o sabor dessas experiências não nos produznenhum bem-estar. Minha querida, o homem deve encarar

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na vida lutas extremamente duras contra sua natureza;lutas que a mulher, diferentemente conformada, não estáchamada a enfrentar. Por outro lado, a capacidade desofrimento da alma feminina é, também, diferente danossa, e isso coloca a mulher em situação vantajosa dian-te dos transes da vida, os quais o homem, por essa mesmarazão, suporta com dificuldade.

– É verdade – Griselda disse, com afeto, aprovandotão promissores movimentos do juízo na avaliação que eleagora fazia das coisas. – Além do mais, nosso sofrimentocessa tão logo encontramos consolo no amor, o qual, umavez aceso em nosso coração, jamais se apaga, se o aviva-mos constantemente com o melhor e mais puro que nossosentimento entesoura.

– Você é uma mulherzinha inteligente – expressou-lheele, compensando-a com a mesma ternura que dedicara aela nos dias mais felizes de seu casamento. – Tudo em vocêé claro e puro; tudo em você respira sinceridade e doçura.

Diálogos como este repetiam-se amiúde no decorrerdos dias, enquanto ambos se dedicavam ao estudo e prá-tica dos conhecimentos que, por convicção própria acercade sua efetividade, cada um tratava de incorporar a seupatrimônio espiritual. Verificavam, com crescente entu-siasmo, que aquilo que antes permanecia fora deles comouma promessa ia manifestando-se de uma maneira clarae progressiva em suas almas, proporcionando-lhes o delei-te de participar de uma preciosa realidade. Parecia-lhes,então, que fragmentos de céu, numa luminosa sucessão,se iam suspendendo no firmamento de suas vidas, e quese faziam maiores ao se unirem a outros novos fragmen-tos que, com firmeza e esforço, eles conseguiam reter,como troféus conquistados laboriosamente à ciência daluz eterna que ilumina a Criação.

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Patrício, observador sagaz e prudente em sumo grau,celebrava internamente as mudanças operadas em seupatrão; mas, conhecedor de sua impulsividade e veemência,incontíveis quando os estados passionais o assaltavam, eracomedido na confiança que costumava dispensar a tais exu-berâncias de seu temperamento. Certo dia, em que suaintervenção se fez propícia e oportuna, expressou-lhe:

– Não é raro ver o senhor alegre, mas eu diria que, deuns tempos para cá, o senhor está resplandecente.

– Como você não ia notar, se eu me sinto como seacabasse de nascer num mundo que me permite saborear,antecipadamente, as delícias de uma existência plena de feli-cidade!

– É muito explicável esse entusiasmo, senhor, mas...– Mas o quê? – Cláudio disse, voltando-se para o mor-

domo, que, próximo a ele, parecia tão-só interessado emabrir as persianas, para dar mais luz ao aposento.

– O senhor me desculpe... Eu só queria dizer que oentusiasmo é algo muito bom, muito saudável, mas sempre,é claro, que não nos leve a esquecer que ainda nos achamosum pouco sujeitos a este mundo no qual vivemos.

Acostumado a semelhantes tiradas de Patrício,Cláudio se pôs espontaneamente a rir.

– Não me passa despercebido que você está queren-do me frear – disse, em seguida. – Mas por que você pensanisso, se nunca como agora eu me senti tão cômodo e commais alegria dentro deste mundo? Tudo o que ele me ofere-ce haverá de ser utilíssimo, para que eu leve a bom termoquanto quero conseguir com o objetivo de me expandir nooutro.

– Não serei eu quem vai duvidar disso! – o mordo-mo respondeu, movendo significativamente a cabeça,enquanto por dentro parecia atento a outros pensamen-tos. – O senhor é muito jovem e pode realizar muito, em

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seu benefício e no de seus semelhantes, mostrando, comexemplos que convençam, tudo o que é possível conseguirquando se educa a alma nos claros princípios de bem.

– E você não pode?– Como já tentei!... Esse sempre foi meu maior anelo.

Entretanto, por mais que desejasse isso, só me foi dado ron-dar muito por fora esse mundo superior, ainda distante parameu pobre e escasso entendimento. Não posso, porém, mequeixar, porque, espiando – sim, é isso mesmo, espiando –por trás da cortina que o preserva de nossos olhos – umacortina metafísica, bem entendido –, consegui divisar algu-mas das grandes verdades que nele existem, e que devem sero sustento dos espíritos que se nutrem delas.

Patrício calou-se. Após um instante, adicionou: – Já que vem ao caso, senhor, me permita um desa-

fogo... Quem haveria de dizer que eu conheceria pessoal-mente o autor desses livros que sempre conservei com tantocarinho! E que diferente ele é do que eu pensava, pois eu ohavia imaginado com mais rugas na testa do que cabelos nacabeça! Foi uma grande alegria conhecê-lo...

Cláudio, que gostava verdadeiramente de Patrício,olhou-o com simpatia e, em tom festivo, lhe disse:

– Pois então escute isto: em cima dessa alegria, vouproporcionar uma outra a você – e, colocando ambas asmãos sobre os ombros do mordomo, exclamou: – Eu onomeio, desde hoje, meu escudeiro! E espero que não tenha-mos que lutar muito contra moinhos de vento, nem sair poraí vingando agravos, você me entende?

– Perdoe-me, senhor – Patrício respondeu, acompa-nhando-o na brincadeira. – Eu desconfio que o seu escudei-ro não lhe servirá para muita coisa. Ele vai mais é atrapa-lhar, porque esse caminho por onde o senhor anda, a genteo percorre dentro de si mesmo... Só ali é que nos é permiti-do conhecer os recursos que haverão de nos assistir para

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que avancemos pelo outro, que abarca a humanidade intei-ra, segundo creio, e que se estende pelos grandes âmbitos daCriação. O senhor com certeza vai me compreender. São doiscaminhos que, ao se unirem, se confundem e formam um só.

– Bravo! Nunca pensei que você fosse tão bom nesseassunto!

– Nada disso! Eu estou apenas nos primeiros trechosda escalada; e isso depois de muito andar, e também de mui-tas e intrincadas peripécias, tanto morais como psicológicas.É claro que, de onde eu me encontro, isto é, a pouca altura –mas que afinal não deixa de ser altura –, a gente tem umavisão mais clara e mais ampla das coisas do que se olhassedo chão... Assim, como eu dizia, neste ponto onde o senhorme vê, tenho tido de enfrentar situações espinhosas, e mui-tas vezes arranquei forças até de minhas próprias fraquezas,para não ficar para trás e exposto a maldizer a minha sortediante da reação complicadora do desânimo. Ah, o mesmonão vai acontecer com o senhor, tenho certeza! O senhor temalguém que o assiste e aconselha; digo isto, sabendo que éessencial não descuidar os bons propósitos, tão expostos aodebilitamento. Aquele que se empenha em chegar deve fazerde conta que vai montado sobre esses propósitos como seestivesse no lombo de corcéis nobres, iguais àqueles aosquais confiamos as rédeas quando cobrimos longos percur-sos, sendo preciso alimentá-los com freqüência e cuidar delescom todo o zelo, para que resistam, sem sofrerem, ao esgota-mento imposto pelo longo trajeto que têm pela frente.

– De onde se conclui que os propósitos que animamminha vontade deverão ser meus cavalos de batalha, não éassim? – Cláudio retrucou, adicionando com ênfase, numarranco de bom-humor: – Ah!, eu já os posso imaginar osten-tando ao vento suas exuberantes crinas, como os fogosos cor-céis que Aquiles lançava com ímpeto nas areias ressecadasque circundavam os muros de Ílion.

Enquanto Patrício sorria com benevolência ante a

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jovialidade de seu patrão, este, reparando de repente quesuas palavras não estavam de todo isentas de veleidade,reprovou-se a si mesmo por ter-se deixado levar por aque-le vôo da imaginação, em cujas asas o homem se remontatomado por uma vertigem que é tão mais intensa quantomais viva é sua ilusão de tocar os astros. É a imprudênciade Ícaro, da qual mais tarde se arrepende, ao comprovar aprópria tolice.

Esse fugaz episódio em seguida lhe trouxe à mentea recordação de suas fragilidades, o que lhe serviu paramelhor dispor-se a não ceder ante nenhuma de suas inci-tações; ao contrário, consideraria cada uma dessas cir-cunstâncias como oportunidades que se lhe ofereciam, afim de que medisse sua prudência e os alcances de suavontade.

Freqüentemente, Cláudio fazia benévolos comentá-rios a respeito de Patrício. Relatava à sua esposa passagensde sua vida, nas quais o mordomo aparecia assistindo-onos momentos críticos da infância e adolescência. Tudoisso foi cimentando em Griselda uma grande estima poraquele nobre servidor. Por outra parte, ele se havia consti-tuído para ela num excelente colaborador em sua vida decasada, porque a foi colocando a par de todos os costumese modalidades da casa, que ela mudou em parte para intro-duzir, de comum acordo com seu esposo, modificações querespondiam aos gostos e modalidades de ambos.

– Patrício me agrada por sua bondade e discrição, emuito especialmente pelo afeto que tem por você –Griselda dizia a Cláudio naquele mesmo dia, quando este

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se referiu à sensatez de seu mordomo e ao senso de opor-tunidade com que costumava preveni-lo contra as armadi-lhas de seus pensamentos. – Observo que ele se preocupacom você como um pai, e não ignoro que, em algumas oca-siões, soube também preencher o lugar de sua mãe. Mecontou uma vez que, ao vê-la em seus últimos dias aflitapelo futuro seu, ele a tranqüilizou, assegurando que sabe-ria cuidar de você e que, na medida que seus escassosrecursos permitissem, procuraria ajudá-lo, para que flores-cessem em sua alma os mesmos anelos e inquietudes queela sempre havia alimentado em seu coração. Desde então,indo mais longe que aqueles que instruíam você, ele procu-rava pôr a seu alcance tudo o que, para resguardá-lo dequalquer surpresa da vida, pudesse lhe fazer falta.Empenhado em se tornar mais eficiente, buscava, nos livrosque melhor pudessem auxiliá-lo, a formação em si mesmode uma conduta que, até então, ele em vão se havia propos-to alcançar. A responsabilidade que por sua própria contaele tomou sobre os ombros, lhe deu forças para aprender eensaiar em si as regras mais severas de moral.

O conhecimento desse fato, referido por Griseldacom emoção e doçura, teve uma profunda ressonância naalma de Cláudio, cujos olhos se umedeceram.

– Sem tirar méritos a meu pai, que sempre me dedi-cou grande carinho e muito se desvelou por mim, devo reco-nhecer em Patrício o grande amigo de minha infância e deminha juventude – disse, comovido. – Com ele, eu brincavae ria; e com quanta paciência suportava minhas zangas,meus caprichos e minhas impertinências de menino.

A entrada do mordomo na saleta onde essa cenatinha lugar interrompeu-os.

Trazia uma bandeja com o champanhe que seupatrão tinha acabado de pedir-lhe.

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– Você não me entendeu bem – disse-lhe Cláudio,com afabilidade, encarando-o. – Eu pedi três taças, e vocêtrouxe apenas duas; vá, então, buscar a outra.

Sem entender que razões havia para isso, o mordo-mo apressou-se em cumprir a ordem e, pouco depois, ver-tia nelas o espumante vinho.

– Desejamos beber à sua saúde, Patrício! – manifes-tou então Cláudio, oferecendo a ele uma taça. – Se as pes-soas se diferençam por seu berço, no espiritual as almasse nivelam e convivem na paz santa de suas idéias, quan-do nelas existe limpeza de sentir, compreensão desprovidade egoísmo e, sobretudo, tolerância, respeito, bem como oapreço imposto pela correspondência de sentimentos easpirações.

Sem poder conter o pranto que lhe aflorava aosolhos, Patrício se lançou nos braços de Cláudio, que, de péjunto a ele, o fitava com emoção.

Passado aquele instante, no qual as palavras desapa-reciam para dar lugar ao sentimento, Griselda estendeu suamão a Patrício, que, ao estreitá-la com respeito, exclamou:

– Obrigado, senhora! Muito obrigado!– E agora – Cláudio disse, elevando sua taça, –

brindemos à felicidade dos seres queridos; um brinde avocê, Patrício, para que nos acompanhe durante muitosanos; e, finalmente, para que consigamos, com nossoesforço, conquistar a cada dia um palmo mais da “terra dapromissão”, pátria incorpórea daqueles que, com seuexemplo, nos mostraram o caminho que a ela conduz.

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O casal Arribillaga passou os meses restantes doverão em sua fazenda, em Balcarce, alegre com a presençados Lagunas e de amigos íntimos. Mas as férias foram nesseano muito curtas, uma vez que, iniciadas tardiamente,ainda foi necessário encurtá-las por causa do mau tempo,que sobreveio com dias chuvosos e prematuramente frios.

Ao regressar, Cláudio logo tratou de reunir em suacasa aqueles amigos que, como ele, estavam de volta dasférias. Satisfeita a natural necessidade de descanso e lazerque os afastara da Capital, haviam voltado reativados, comânimo de acertar o prosseguimento de suas investigações.

Reunidos em seu gabinete, já familiar para aquelesintercâmbios, todos seguiam nesse momento a palavra deMalherbe:

– Em sua recente visita, o senhor De Sándara nosdeixou chaves interessantíssimas, cujo estudo permitiráque nos guiemos satisfatoriamente na remoção de velhose arraigados conceitos que ainda existem em nossa mente,de idéias fixas que ainda nos movem como autômatos, ede tantos preconceitos que nos inabilitam para um conta-to mais íntimo e direto com os conhecimentos que atual-mente despertam nosso interesse.

– Eu considero – Arribillaga manifestou – que, alémde oportuno, é fundamental reforçarmos a resolução dedeixar de lado tudo o que possa impedir ou dificultarnosso trabalho, se queremos equipar melhor nossa razãoe marchar com passo firme para diante.

– Isso tem uma importância muito grande – expres-sou Marcos, ali presente, – porque nosso êxito futuro muitodependerá da firmeza que pusermos neste momento emnossa resolução de avançar.

– Dependerá disso e também de sua inalterabilida-de durante todo o tempo que a eliminação dessa carga exi-gir – Malherbe apoiou.

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Em seguida, Salvador, que também se achavaentre eles, manifestou:

– Estamos procurando realizar a exploração deum mundo sobre o qual temos apenas referências.Nossa situação, portanto, é de certo modo semelhante àdaqueles que empreendem a exploração dos pólos, dasgrandes montanhas, da selva, etc. Sempre li com gostoos livros que descrevem aventuras assim tão arrisca-das, e neste momento me vem à mente com quantasminúcias se encara, nesses casos, tudo o que se rela-ciona com seu preparo, do qual depende em boa parteo êxito.

– As circunstâncias são de fato similares – consi-derou Malherbe, – se bem que há uma diferença nelasque as distingue, e é que, em nosso caso, essa prepara-ção tem de ser individual, ou seja, deverá ser cumpridadentro de nós mesmos, já que também individual é aempresa, e cada um deve se valer de si mesmo em todasas emergências.

– Eu entendo que não nos é negado solicitarajuda alheia – objetou Cláudio.

– Em absoluto – Malherbe aprovou; – mas a solu-ção dos conflitos internos, a solução dos problemasíntimos promovidos pelas situações que se vão criando,concerne exclusivamente a cada um.

– Considero que a intervenção de um único par-ticipante nessa experiência – Salvador ponderou, valen-do-se sempre de sua analogia – não impede, entretanto,que intercambiemos mutuamente, como costumamosfazer, nossas idéias, nossos pontos de vista, enfim, nos-sos recursos particulares quanto à melhor forma de nosintroduzirmos no desconhecido.

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– Claro que é assim – Malherbe concordou. – Essapreparação ou adestramento individual de forma algumavai contra essa troca desinteressada de opiniões e critériosque estamos realizando; pelo contrário, nosso trabalho per-mite que cada um de nós forme o próprio equipamento,para avançar com maior segurança na exploração que nospropusemos levar a cabo dentro de nós mesmos; isso querdizer que estamos aqui nos ajudando uns aos outros, parapodermos empreender a aventura com o mínimo de risco.

Malherbe, em seguida, fez a leitura de vários textosprovenientes do senhor De Sándara, que continham novosesclarecimentos sobre aspectos da evolução humana e davida do espírito. Fizeram-se anotações, discutiram-se nor-mas a seguir e, finalmente, concordou-se em fazer com fre-qüência regular aquelas reuniões, umas vezes ali e outrasem casa de Marcos ou de Malherbe, contando com a pre-sença dos amigos que ainda não haviam regressado dasférias, o que lhes permitiria, em breve, aumentar o grupo.

Transcorrido pouco mais de um mês, aqueles pro-jetos concretizaram-se num labor tenaz e entusiástico.Dele participava Miguel Ángel, que, consciencioso e dinâ-mico, estimulava a todos no prosseguimento dos esforços;Norberto, muito formal e estudioso, além de eficaz colabo-rador; Salvador e Agustín, ambos muito capazes, emboramenos ativos e constantes que os outros. Marcos, Justo eCláudio corriam lado a lado nessa “maratona” espiritual,se bem que este último, em certas ocasiões, perdesse ter-reno, mais afetado que seus companheiros pelas mudan-ças bruscas e contrastantes que nele ocorriam como efei-

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to do descontrole de seu vigor. Entretanto, também eracerto que ele sabia encontrar depois o nível que balancea-va suas forças, levando consigo, para enriquecimento deseu saber e experiência, uma nova faceta da verdade, den-tre as tantas que haveria de ir conquistando. Era indubi-tável que, em seus esforços, muito o impulsionava o dese-jo veemente de obter a aprovação de seu preceptor, quan-do o visse; por outra parte, contava com o alento queGriselda lhe infundia, quer fosse através de sua judiciosapalavra, quer através de sua discreta aprovação, motivadapor algum triunfo obtido sobre as falhas de seu tempera-mento ou sobre as dificuldades criadas pela inércia men-tal, que de vez em quando prostrava suas boas intenções.

Entre os de mais idade, contava-se o senhorGorostiaga, pai de Marcos, participante de grande vocaçãoe por isso mesmo muito assíduo, e Moudet, que, em seuafã de obter amplos esclarecimentos sobre tudo, forçavaos demais a superar os resultados de suas buscas.Malherbe sobrepujava a todos por seu domínio nesseramo do saber e por sua grande penetração psicológica,além de distinguir-se por seu profundo sentido humanoda vida, sua simplicidade e sua pulcritude moral, quefaziam de sua pessoa um ser grato e de eficaz influência.Comumente, tendia a moderar ou conter nos demais todamanifestação que implicasse um elogio ou homenagem aseus acertos, fossem estes de que ordem fossem, e seumaior cuidado era o de auxiliar os que o acompanhavamnaquela nobre tarefa, fortalecendo-os em seus entusias-mos ou firmando-os em suas convicções.

Apesar desse labor tão bem programado, assimcomo da ajuda de tão empenhados colaboradores, paraCláudio as coisas nem sempre corriam de acordo com odesenvolvimento inalterável do plano que ele havia traça-do. Sem que isso influísse em prejuízo de suas boas apti-

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dões, que eram muitas, passados poucos meses já contavaem seu haver individual com alguns colapsos psicológicos,que numa avaliação íntima ele considerava desmerecedorese em contradição com seus propósitos. Trataria de ser nofuturo mais precavido. Por que isso haveria de repetir-se?

Numa certa manhã, sem que pensasse ou quisessetal coisa, ocorreu ter ele despertado com má disposição deânimo e, alegando ante Griselda, como razão daquele esta-do sombrio, dificuldades provenientes de sua profissão,internou-se em seu gabinete, vítima das queimações dadesconformidade. Ali se deixou cair pesadamente sobreuma poltrona, com mostras de grande desalento.

Examinava Cláudio Arribillaga, nesse instante, deonde partia esse desgosto que subitamente se abaterasobre seu ânimo? Não; nem sequer recordava que o haviaafastado de si, no dia anterior, simplesmente por recorrera uma judiciosa reflexão. Cativo agora dessa indisposição,e enquanto permanecia ali sem ver nem ouvir nada detudo quanto o rodeava, pareceu-lhe que algo semelhante auma lagarta com olhos de dragão subia pelo interior deseu ser e devorava os tenros brotos que, com prazer, eletinha visto surgir em sua alma, qual uma promessa quenutria com seiva nova a simbólica árvore da vida – aquelamesma árvore que, tantas vezes, ele havia imaginado fron-dosa e gigantesca, balançando sua robusta copa sobregrosso e firme tronco, à prova de séculos, a cuja sombradescansaria do longo peregrinar, refrescaria o fatigadoespírito, saborearia seu magnífico fruto e, ao levantar-se,começaria a partir dali a andar com passo firme e seguropelo Grande Caminho.

Abandonando de súbito a poltrona, como se numinstante ela se lhe tornasse insuportável, Arribillaga come-çou a dar passos numa e noutra direção, sentando-se epondo-se de pé, à semelhança daquele que, havendo come-

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tido um delito, ou achando-se angustiado por uma grandepreocupação, não sabe livrar-se do peso moral que o ator-menta. De repente, como se todos os pensamentos que ali-mentavam seus anelos de sabedoria o tivessem abandonado,parou e, lançando para longe de si alguns papéis que acaba-va de retirar de uma gaveta, disse a si mesmo, com fastio:“Para que tanto sacrifício?! Para que estudar e se empenharem ser melhor?! Só para satisfazer uma vaidade que exigegastar todas as energias de nossa juventude?! Formidáveltributo, que de modo algum estou disposto a pagar!...”

Cláudio Arribillaga havia sido oportunamenteadvertido acerca da consagração, do esforço e da paciên-cia que a conquista do grande saber requer e, de igualmodo, prevenido contra as incansáveis investidas do ins-tinto, que não transigiria jamais com a nova forma de vidaque ele estava disposto a adotar. Destronado de seu reino,no qual as paixões, os desejos impuros e a liberalidade sãosua representação, logo este reagiria contra seu novosoberano, o espírito, que no futuro orientaria seus passospor caminhos melhores. Instruído sobre a forma de lutarcontra tais crises internas, Cláudio poderia ter-se sobre-posto a elas com o simples uso que fizesse de seu saber;entretanto, ainda débil psicologicamente, foi vencido antesque esgrimisse em sua defesa a técnica que teria feito seuoculto adversário retroceder, livrando-o ao mesmo tempodo efeito envolvente do movimento mental e volitivo quehavia tomado conta de seu ser.

“Não agüento mais!”, disse Cláudio para si, pro-gressivamente excitado. E seguiu dando rédeas a seudesagrado: “Essa história de estar como que fascinadoante duas forças que me sugam a alma, ameaça me ani-quilar, porque as duas exercem sobre mim igual atração...Com a melhor das intenções, eu quis abandonar a vidaque me é conhecida, para viver no mundo das idéias, dos

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pensamentos e das sensações sublimes, e quão longe estavaeu de pensar que, nos umbrais mesmos do grande objetivoconcebido como meta ideal, correria o risco de confundir, emmeio a um angustioso e desesperado suplício, o materialcom o espiritual, e de admitir com naturalidade essa híbridaaliança. Decididamente, isso não entrava nos meus cálculos,mas eu já suspeitava! Ah, sim, eu já suspeitava que ia serassim!... Cada dia que passa, mais me convenço de queavanço a passos de tartaruga... Eu, que me via dominandoo espaço, provido de grandes e douradas asas!... Agora, aocontrário, sinto como se minha cabeça estivesse metida den-tro de uma rígida envoltura psicológica, condenada a ficarolhando para o chão com olhos estúpidos. Afinal de contas,para quê? Para que quero tanto saber, se o que tenho dá esobra para conseguir tudo o que desejo?... Quantos praze-res, quantas atrações deixei de lado!... Continuando dessejeito, logo serei olhado como um curioso exemplar de algu-ma estirpe desaparecida... Não; não pode ser. Se não conse-gui até aqui viver no mundo prometido, então seguirei viven-do neste mesmo, que no fim das contas não é lá tão mau.”

Assim argumentava o incauto doutor Arribillaga, semdúvida para justificar ante sua consciência um possível maupasso. Tão-somente um instante de serenidade e prudêncialhe teria bastado para desbaratar o jogo maléfico de seuspensamentos, os quais, postados num rincão de sua mente,ávidos por represália, apoiavam com ardor e astúcia o des-contentamento que sua impaciência lhe acarretava.

Patrício, intuindo talvez que algo estranho se pas-sava com seu patrão, decidiu adentrar o gabinete.

– Que está acontecendo com o senhor? Sente-semal?

Ante a pergunta do mordomo, aquele torvelinho deidéias e o bulício anunciador do triunfo mefistofélico ces-saram como por arte de magia.

Extenuado pela terrível luta interna, Cláudio dei-

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xou-se cair sobre a poltrona, ao mesmo tempo que articu-lava palavras imprecisas, com as quais tratou de refrear oimpulso agressivo que o induzia a tornar manifesta a deter-minação de renunciar a seus anelos. Seus cabelos estavamem desordem; o colarinho de sua camisa, desabotoado; e agravata, depois de suportar violentas compressões, trans-formada curiosamente numa sombra chinesa.

Patrício não precisou de mais nada para compreen-der que seu amo havia caído num daqueles estados dedepressão que se promovem quando o instinto, donoainda da natureza inferior do homem, se rebela ao preten-der este libertar-se de sua influência tirânica. Por expe-riência própria, sabia que esse era um estado comparávelao que se experimenta em momentos de grande desilusão.

– Não há dúvida de que algo muito sério deve estarfazendo o senhor ficar tão preocupado... – ele insinuou, semceder em seu intento de iniciar uma conversa, na qualpudesse fazer uso de seu acervo para apaziguar aquelamente agitada e fazê-la voltar a seu juízo.

– Eu simplesmente resolvi abandonar qualquerprojeto que não me seja de fácil execução.

– Na verdade, eu não estou entendendo...– Eu vou dizer então em termos mais claros: não

tenho tempo para me ocupar de outra coisa que não sejammeus interesses.

– Ah!... compreendo, agora compreendo... – Patríciomurmurou, com os olhos fixos no chão, enquanto coçava acabeça, buscando possivelmente algum recurso salvador.

Em seu íntimo, ele dizia: “Valha-me Deus! Querazões o homem apresenta para justificar seus desatinos!...”

Um pouco mais brando, Cláudio expressou:– Não tenho têmpera para ficar submetido a disciplinas

que me tiram a liberdade de fazer tudo o que eu quero fazer.– Mas, quem está tirando a sua liberdade?

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– Quem?! Ora, minha consciência, homem! Minhaconsciência!

E em seguida, como se os pensamentos causadoresde tanta violência, encurralados por um instante, reco-brassem forças num último intento de impor sua vontade,exclamou com impetuosidade:

– Sim, Patrício, minha consciência, cujo poder depersuasão e de ingerência em minha vida é cada dia maisinsuportável!... Eu às vezes a comparo a uma dessasmulheres intrometidas que passam suas horas fiscalizan-do tudo o que fazemos. A princípio, eu mal me advertia deque ela existia, mas agora me pede conta de tudo. Arre!...Nem que eu fosse um empregado assalariado, com o deverde ajustar a conduta ao cumprimento de uma obrigação.Isto é insuportável, Patrício! Eu não agüento mais!

Este bem que teria rido ali a valer, caso não fossecontido pelo respeito que devia a seu patrão, bem comopela prudência, que o impedia de atiçar com uma atitudeimprópria aquela combustão mental, que, após queimarcom grande estrépito os últimos argumentos acumuladospela reação, já oferecia sinais de extenuação. Era umaextenuação em que havia muito de astúcia, pois as brasas,rebeldes, envermelhecidas ainda de furor, embora aparen-tassem morrer, ardiam sob as cinzas com a avessa inten-ção de produzir, ao menor descuido, um novo incêndio.

Muito cauteloso, Patrício respondeu:– Se então o senhor mandar mesmo tudo para o

diabo, alistando-se na corte de seus infelizes vassalos, nãohá dúvida de que vai dar a ele uma tremenda satisfação.

Desta vez, foi Cláudio quem sorriu; entretanto, como ânimo ainda tomado pelo azedume, adicionou:

– É inegável, Patrício, que queremos ser grandesatores no cenário de nossa vida, e terminamos compro-

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vando que somos apenas simples polichinelos, incapazesde representar um papel mais importante.

– Ah, isso não! E prova está em que antes o senhornão se dava conta do que acontecia em seus própriosdomínios, nem tampouco experimentava as nobres satis-fações que agora desfruta, quando consegue escapar des-ses estados de abatimento que pesam sobre o ânimo semrazões válidas... Mas, encarando tudo isso de uma formamais adequada, o senhor não acha que esses mesmos tro-peços podem ser também sinal de um positivo progresso?

– Você vai concordar comigo, Patrício, que é umtanto difícil chegarmos a compreender que o fato de estar-mos a ponto de sucumbir numa borrasca mental possaser uma circunstância que nos indique um grau de pro-gresso.

– Pois me parece, senhor, que tais circunstânciassão algo assim como filtros, ou melhor ainda, como penei-ras, nas quais somos sacudidos fortemente, a fim de quepasse por elas o pouco ou o muito de bom que em nósexiste, enquanto o mau permanece ali, à espera de serfundido no crisol das experiências que vão acontecendo. Aparte boa que resulta desse sacudimento, suponho eu,deve ser o ouro com o qual pagamos a entrada nessemundo singular, cujo espetáculo sublime vai satisfazeramplamente nossas esperanças.

– Eu sei muito bem, Patrício, que, após cada um des-ses sacudimentos, o que convém ao homem é ajustar contasconsigo mesmo, a fim de se orientar sobre a maneira maisprática de aumentar o próprio acervo de bens. Com quantafreqüência esquecemos que só à custa do desprendimentode nossas fraquezas é que serão abertas as portas dessemundo no qual são revelados os mistérios da Criação, pois,segundo tenho entendido, nele aparecem fielmente reprodu-zidas todas as fases do processo da vida universal, que avan-

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ça obedecendo a uma força suprema, que a mantém em per-pétuo movimento. É perfeitamente explicável que essemundo não esteja ao alcance fácil da mão, nem que o aces-so a ele seja instantâneo, já que nossa limitada capacidadede ver não poderia abarcar nem uma pequeníssima parte desua infinitude. Para não se ofuscar ante as miríades de luzesque, sem dúvida, devem iluminar os âmbitos desse mundoinefável, é forçoso sentir, e isto é o difícil!, verdadeira voca-ção para a mais preeminente das ciências e das artes: aSabedoria. Melquisedec a possuía em alto grau, segundo odizer bíblico, razão pela qual figurava entre os mais elevadose ilustres oficiantes do Antigo Testamento.

– O senhor não acha atraente semelhante perspectiva?– Atraente demais; mas parece que me falta essa

vocação. O incentivo, o estímulo que algumas vezes euencontro nesse singular noviciado, outras vezes me aban-dona, devido a forças que as minhas, ainda pouco desen-volvidas, temem enfrentar.

– Veja só o senhor... Até onde eu pude chegar a com-preender este assunto, aquele que não tivesse vocaçãodeveria fomentar dentro de si a idéia de chegar a tê-la, semcessar nesse empenho. Do mesmo modo deveria procedera respeito das virtudes, das qualidades e até das disposi-ções. Se elas não existem nele, que sejam então criadas, afim de que ele chegue a igualar e até sobrepujar os maisbem dotados.

– O ruim é não saber como se faz isso... – Cláudiolamentou.

– Mas tampouco é difícil chegar a saber. Princi-palmente para uma inteligência aguda como a sua. Que éque eu, então, poderia dizer de mim, que me vejo obrigado aesperar horas, e às vezes dias, para me dar conta – e istoquando consigo – de uma sugestão qualquer?

– Você tem razão, Patrício, mas é necessário ter uma

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mente de adivinho e uma vontade de atleta para abordar oenigma de nosso complexo mecanismo psicológico. Além domais, não vejo que aqueles que possuem maior número devirtudes, ou os que se distinguem por suas aptidões, meavantajem nos resultados que conseguem.

– Oh, mas acontece que o simples fato de possuí-las não quer dizer que elas sempre sejam usadas com inte-ligência e consciência num fim como o que o senhor estáperseguindo para si!... Pode-se ter, por exemplo, a virtudeda paciência, mas isso não quer dizer que essa paciênciatenha alcançado o grau de cultivo necessário para se obtero que se pretende. As virtudes, como as vocações, eusuponho, têm origem em recônditas perspectivas da alma.É algo assim como se elas, desde tempos imemoriais, seachassem abertas às possibilidades do homem, como umconvite a ascender até o mundo das maravilhas e comouma promessa de facilitar essa ascensão.

– Talvez seja isso o que nos sustenta e levanta, toda vezque caímos em algum desses infelizes transes psicológicos.

– E acontece ainda que, às vezes, se tem de somara isso a intervenção de um joão-ninguém como eu, sefazendo de animador.

Um riso franco e alegre foi a melhor resposta que omordomo podia esperar.

– Bem... o pior já passou! – Cláudio exclamou,recuperando-se e saltando de seu assento, disposto a dei-xar o gabinete. – Volta a renascer em mim o otimismo e aconfiança que acreditei perdidos! Olhe, Patrício, às vezesparece que estou empurrando um carrinho de mão numaencosta escarpada. Eu diria que o próprio diabo, com oúnico objetivo de me prejudicar e de tornar meu avançomais lento e cansativo, se acha empenhado em enchê-lode pedras a cada trecho, e, quando não fico esperto, zás!...O que acontece? Acontece que eu acabo despencando, por

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causa do enorme peso, e lá vou eu encosta abaixo, perse-guido pelo pedregulho, que vai arredondando suas quinasno meu surrado lombo.

– Oh!... Às vezes eu também tenho essa sensação,naturalmente que imaginada de outro modo.

Alheia por completo a tudo quanto acabava deacontecer no diminuto mundo de seu esposo, Griseldadesfrutava pouco depois um desses momentos em que,juntos, se entretinham agradavelmente na contemplaçãodos progressos de sua pequena herdeira, que já lhes ofe-recia suas primeiras graças.

Semanas mais tarde, foi Salvador quem, em plenareunião, manifestou sua desconformidade com umanorma que, aceita sem reserva até então, ele agora consi-derava injustificadamente excludente. Talvez experimen-tasse, nesse momento, um daqueles pequenos dramasinternos que costumam produzir-se de improviso nas pes-soas de certo preparo intelectual, quando, ao se dedicarema algo que excede os conhecimentos que são de seu domí-nio, vêem-se obrigadas a reflexões que de certo modo dimi-nuem sua amimada personalidade. Dizendo em termosmais claros, tudo aquilo não era outra coisa que o simplesrebento de uma reação psicológica, provocada pelo eriça-mento da vaidade.

Era por demais evidente que um fim comum oshavia agrupado ali: o de se ilustrarem a fundo sobre osproblemas do espírito. Porém, as diferenças de caráter e,muito principalmente, as modalidades psicológicas ainda

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não maduras, assim como a abundância de preconceitos –umas vezes congênitos e outras oriundos de uma incuba-ção própria –, influíam consideravelmente, complicando amiúdo o curso das investigações. Tal fato por vezes torna-va um tanto difícil a conciliação dos pontos de vista, já quese tratava de pôr as opiniões de acordo com as formas editados de uma cultura que eles mal começavam a exami-nar e comprovar.

Quase sempre era Malherbe, com a autoridade quesua vinculação direta com De Sándara lhe conferia, bemcomo o conseqüente domínio que tinha na área dos conhe-cimentos que este lhe oferecia, quem conseguia devolverao conjunto a coordenação harmônica que todos deseja-vam conservar.

Reunidos desta vez na casa de Marcos, e a ponto determinarem uma judiciosa análise sobre o valor que con-cediam à possibilidade de partir de uma base certa eminvestigações de caráter tão transcendental como as queestavam fazendo, um dos presentes destacou – talvez comalgo de veemência – a importância que tinha poder com-preendê-las sem o risco que se corre quando não se contacom outra guia a não ser a confusa linha traçada pelo pen-samento do homem, em seu incansável afã de lançar umpouco de luz sobre seu incerto destino.

Salvador, até ali plenamente de acordo com o quefora estabelecido por todos com o objetivo de facilitar o anda-mento dos trabalhos, e em geral comedido, declarou, então,para surpresa daqueles que nesse momento o escutavam:

– Seria faltar a um dever de sinceridade ocultar devocês que não estou ainda inteiramente convencido de queexista dessemelhança entre o sistema que estamos estu-dando e aqueles outros aos quais devemos nossa ilustra-ção em matéria filosófica, psicológica e moral. Consideroque a prescindência que fazemos destes últimos é absolu-

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tamente desnecessária, e que, se persistirmos em tal con-duta, nos veremos impedidos de obter resultados que sur-giriam com menor dificuldade do conjunto. Os esforços quefizemos até aqui, para extrair desta ciência elementos dejuízo, estiveram muito bem encaminhados, e eu mesmoaceitei de bom grado a não-ingerência de outras correntesde pensamento no seio destas reuniões, mas não vejo combons olhos que isto tenha de continuar indefinidamente. Asconfrontações são necessárias; e são necessários os cotejoscom as proposições de outras destacadas inteligências. Emminha opinião, deveríamos deixar de nos engolfar unica-mente nesta concepção, para abarcar zonas de conheci-mento mais amplas e aumentar, assim, nossa erudição.

– Não se trata – Malherbe respondeu, cortesmente– de fazer comparações ou confrontações entre nós, embo-ra eu entenda que o fato de fazê-las pertence ao foro indi-vidual e, por isso mesmo, não estão vedadas a ninguém.Nunca esteve tampouco em nosso propósito, ao nos reu-nirmos, conciliar a disparidade que teorias, métodos ousistemas costumam guardar entre si. Nossa idéia, e achoque nisto estamos todos de acordo – continuou, acentuan-do suas palavras, – tem sido a de seguir o roteiro traçadopor esta nova concepção da vida do homem, esforçando-nos para aprofundar e esclarecer o conflito entre suasduas naturezas: a superior, manifestada em sua mente,em sua consciência, em seu espírito, e a inferior, a qual,mesmo quando consegue sobressair por força das idéiasque fazem o progresso material do mundo, não deixa deser influenciada quase permanentemente pelo instinto,representado pelas paixões e pelo complexo de animalida-de que caracteriza a arraigada tendência humana ao queé estritamente material ou físico, com prescindência quaseque absoluta do espiritual.

Nesse ponto, Marcos pediu a palavra e disse:– Se estes conhecimentos, que atraem de forma

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particular nossa atenção, e que talvez algum de nós aindaconsidere como uma teoria a mais, se limitassem ao enun-ciado de problemas, tal como fez Aristóteles, e depois deleos pensadores que o sucederam até nossos dias, confessoque eu não teria dedicado meu tempo a eles, já que nãopoderia afirmar que nessas fontes eu satisfiz minhas aspi-rações de saber e, muito menos, que senti a influênciabenéfica desse saber em minha vida. Mas considero queestamos diante de um caso diferente, pois esta ciência,que tem por finalidade específica situar o homem na rea-lidade de suas altas prerrogativas, oferece a nossos passosuma rota perfeitamente traçada e curta, e um assessora-mento que nos garante o trânsito por ela, ao sinalizar paranós, como indicadores do caminho, as leis que regem eregulam o pensamento humano em seus avanços em dire-ção à meta da perfeição.

Em seguida, o senhor Malherbe voltou a fazer usoda palavra e, dirigindo-se a Salvador, manifestou:

– O erro em que você acaba de incorrer, ao julgarparalelas idéias substancialmente diferentes, reside no fatode tê-las acolhido do ponto de vista da simples ilustraçãointelectual, conformando-se em sustentar uma erudiçãoque, embora seja muito respeitável, não nos conduzirámuito longe no terreno do verdadeiro conhecimento, ou,dizendo mais claramente, não nos conduzirá à conquistade nosso objetivo. Devemos recordar, meus amigos, a reco-mendação emanada da ciência em estudo, que assinala anecessidade de aprofundarmos a investigação pela via dacomprovação racional; não fazendo assim, como podere-mos pensar que nosso próprio juízo foi suficientementeilustrado? Para determinar, por exemplo, a qualidade e ovalor de um brilhante, bastará tão-somente tocá-lo? Nãoserá necessário determinar também sua legitimidade, seusquilates, a perfeição com que foi lapidado, sendo neste

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caso imprescindível possuir a capacidade de um perito?...Tomemos outro exemplo: ante um apetitoso manjar queainda não provamos, poderemos avaliar dele outra coisaalém de sua apresentação? Se não o degustamos, se não osaboreamos, como vamos comprovar sua qualidade e apre-ciar o grau de prazer que pode proporcionar ao paladar?

– Estou de acordo, senhor Malherbe – Salvadorobjetou, – embora pense que, mesmo provando dessemanjar, ainda nos poderia faltar a segurança absoluta deque o paladar não se enganou ao degustá-lo.

– Em tal caso, eu lhe digo que isso não aconteceránunca a quem o tenha educado, adestrando-o no exercícioda gustação até alcançar a agudeza na percepção. Vemos,pois, meu querido amigo, quão indispensável é que emtudo esteja presente o elemento mais apreciável e nobre denossa vida, que é esse padrão de medida chamado sensa-tez, que devemos usar sempre para avaliar as coisas esituá-las no quadro dos respectivos valores.

Mercê de impulsos da vaidade, ofendida nescia-mente pelas palavras que acabava de ouvir, Salvador repli-cou, sem se importar muito se parecia recalcitrante:

– Não queria incomodar ninguém com minhaspalavras, mas o certo é que eu preferiria ser um sofistaconsumado a admitir plenamente uma concepção que, pormais elevados que sejam seus alcances, ainda se acha nosperíodos embrionários da investigação.

Malherbe, que conhecia por experiência o choquede idéias que costuma promover-se na mente quandoesta, obstinada, quer dar preferência a uma delas – fatomuito relacionado com certas atitudes extremistas dohomem, – perguntou a Salvador, com calculada ironia:

– Mas nós alguma vez negamos que é do livre exameque deve surgir, ao se elaborar o juízo próprio, a valoriza-ção justa a ser dada a cada linha de pensamento?

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E, disposto a arrematar o assunto com uma propo-sição satisfatória, adicionou estes conceitos:

– Já foi falado entre nós, repetidamente, que nosachamos diante da confrontação entre duas culturas:uma, trazida de longe por uma tradição a que nos subme-temos docilmente, e cujos ditados e preceitos já não res-pondem ao imperativo da consciência em suas legítimasdemandas pela preeminência da verdade sobre qualquerinterpretação, conjectura ou argumento que a desvirtue; eoutra, que deverá ser forjada pelo homem mediante oaperfeiçoamento levado a efeito por via rigorosamenteconsciente, e cujo advento deverá estar acompanhado pelotestemunho vivo das gerações presentes, convidadas aintervir nesta gesta emancipadora do espírito humano,liberadas mediante uma racional e exaustiva investigaçãode todo preconceito e de toda crença oposta à razão. Poresse meio, elas serão guiadas a comprovar o saldo exíguoque as ciências, empenhadas em decifrar os grandes enig-mas que envolvem a vida do homem e do universo, conse-guiram reunir como contribuição efetiva ao progressoespiritual do mundo e à dignificação do indivíduo; e, tam-bém por esse meio, elas serão guiadas a discernir sobre arealidade que consubstanciou aqueles fatos históricosque, revestidos de caráter místico, profético ou milagroso,representaram, além de fontes de inspiração, a origem dasmais atrevidas crenças. Estou convencido de que a novacultura, a que acabo de me referir, se concretiza claramen-te nos postulados que estruturam a ciência que temos emestudo. Muito me agrada expressar isto, do mesmo modoque me agrada testemunhar, ainda que seja só em pala-vras, as satisfações que a todo instante seu estudo e seuexercício me têm proporcionado.

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– Lamento o tempo que esta ligeira divergência nosestá tomando, senhor Malherbe – Salvador expressou, – epeço desculpas por isso. Mas não gostaria de guardar paramim que, ao insistir nesse esclarecimento de idéias e con-ceitos que eu propunha que introduzíssemos em nossotrabalho, estava implícita nisso uma necessidade pessoalde modificar ou, melhor dizendo, de fortalecer – conside-rando que este seria um meio – a adesão um tanto débilde minhas convicções a alguns pontos, particularmente oque trata do mundo supra-sensível, sobre o qual a novaconcepção está coalhada de referências.

– Creio que não me equivoco ao pensar que vocêesteja, talvez, numa dessas situações em que o própriojuízo é levado a abrir para si uma brecha, seja qual for ela,em busca de uma razão que supere as proposições quepreocupam o entendimento.

– Em tal caso, eu seria obrigado a aceitar que estouatuando sem ter consciência disso – Salvador replicou,sem conseguir reprimir o incômodo com que havia recebi-do as palavras de Malherbe.

Vendo, porém, que seu interlocutor não denuncia-va a menor intenção de censurá-lo, acalmou-se imediata-mente.

– A verdade é que eu não quis dizer tanto assim –tornou Malherbe, com afabilidade. – Foi uma simples alu-são a um fato muito comum e, por outra parte, muitocompreensível ou justificável. Mas voltemos ao assuntoem questão. Sobre o que você nos dizia há pouco, ao assi-nalar como motivo de suas dificuldades o que esta concep-ção expressa sobre o mundo supra-sensível, me agradadizer a você que temos a nosso alcance tantas explicações,e é tão vasto e tão abundante o material de ilustração comque contamos, e sua realidade é tão suscetível de verifica-

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ção, que neste momento não me ocorre melhor resposta doque repetir o que ouvi do próprio senhor De Sándara,numa ocasião semelhante a esta. Disse ele que duvidar desua realidade seria nós mesmos nos incluirmos nessadúvida, uma vez que grande parte de nossa natureza,como a de todos os seres humanos, pertence a essemundo, mesmo que nós ignoremos isso.

– A dúvida, entretanto, nos põe a salvo de cair na fécega, que rechaça todo raciocínio.

– Exatamente... Mas admitamos, também, quepodemos cair no fanatismo da dúvida, quando, postos araciocinar, persistimos na valorização excessiva do quetantos disseram, sem nos darmos conta de que tais valo-res carecem de força para resistir ao que uma verdadeexpressada com amplidão vem, de repente, descobrir paranós. Não devemos estranhar que isso ocorra; eu mesmocaí nesse erro, antes de verificar o contraste que haviaentre o adquirido em matéria filosófica – através de longosanos de estudos universitários e de outros, mais longosainda, transcorridos em contato direto com a vida – e arealidade evidente que estes conhecimentos nos apresen-tam. Todos os que aqui estamos podemos testemunhardois fatos que nossa apreciação considera irreconciliáveis:a simples ilustração que o imenso acervo filosófico ofereceao homem e o conhecimento cabal que, para reconstruir avida, se pode extrair desta ciência que começamos a inter-pretar e experimentar.

Todos haviam seguido com evidente atenção aque-la pequena pugna filosófica. Alguns, provavelmente, expe-rimentavam a sensação de que assistiam à representaçãode uma daquelas passagens nas quais eles própriosdesempenharam papéis similares, uma vez que é grande arelação que existe entre as perturbações psicológicas que

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costumam surgir antes do amadurecimento que ordena eequilibra definitivamente a vida. Talvez tenha sido isso oque levou Cláudio a sair em auxílio de seu amigo, a quemuma irreflexão havia deixado um tanto sem brilho.

– É curioso – disse – ver como esta circunstância sevincula ao que eu mesmo vivi algumas vezes, para nãodizer muitas, ao me sentir torturado pela dúvida, pelavacilação, pela confusão, pela desconformidade e outrosestados psicológicos análogos. Observei que, quando taiscoisas ocorrem, é porque algo ainda não identificado emnós está nos impulsionando a sobrepujar estados quedevemos ir abandonando. Prova disso é que, transcendidoo obstáculo, se comprova sempre que intervém uma maiorporção de luz nas elaborações da inteligência. Assimsendo, o que acabamos de escutar não está de mais nohaver individual de cada um de nós, porquanto poderános ajudar a enfrentar os riscos de qualquer alternativaque nos perturbe o ânimo. Digo isto com a convicção dequem não se considera a salvo de tais riscos.

Vários se sentiram impelidos a relatar suas pró-prias mudanças, as quais os haviam afetado – a uns mais,a outros menos – enquanto procuravam escalar posiçõesmais avançadas na conquista do conhecimento.

Salvador não deixou de expressar ao senhorMalherbe seu agradecimento por havê-lo suportado –assim ele disse – com tanta amabilidade e paciência; fal-tou à sua palavra, porém, o tom franco e cordial que teriaposto em evidência o abrandamento das travas interioresque naquele momento o oprimiam.

Quando Cláudio lhe estreitou a mão nessa noite, aodespedir-se, compreendeu, pela rigidez que lhe endureciao rosto e pela expressão esquiva dos olhos ao fitá-lo, queo amigo seguia obstinado em suas idéias. Não obstante

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isso, bateu-lhe nas costas com ar cordial e afetuoso, comose não tivesse percebido nada de estranho nele.

Enquanto percorria em seu automóvel o trecho queo separava de sua casa, fez uma série de reflexões, algu-mas um tanto estranhas. Entre outras coisas, imaginouque Salvador tinha subido a coluna do preconceito, comoSimeão Estilita e seus congêneres. Será que também elepreferiria passar a vida convertido em estátua de carne eosso a viver como Deus manda, andando e lutando pelasruas deste mundo? Ao término de suas reflexões, sentiu-se notavelmente reconfortado, pois via a si mesmo – felizdele! – desembaraçado de pensamentos como os quenaqueles momentos perturbavam a mente de seu amigo, eque tantas vezes haviam perturbado a sua.

Dois dias mais tarde, justamente quando acabavade jantar, Salvador telefonou para sua casa.

Cláudio atendeu com presteza, desejoso de conheceros motivos que podiam ter levado seu amigo a lhe falar. “Nomelhor dos casos”, disse consigo, “é para se justificar, ouentão para me comunicar algo que me incline a seu favor.”

Estava, porém, equivocado, pois de imediato desco-briu em sua voz uma promissora reação. E era isso, defato, o que ocorria.

– Minhas felicitações, então, e com a alegria de umamigo a quem você deixou um tanto preocupado! –Arribillaga exclamou, com vivacidade, depois de escutá-lo.

Em seguida, ouviu algumas reprovações queSalvador fazia a si mesmo. Falava com sua habitual sim-patia e cordura, relatando as conclusões a que havia che-gado depois que passou sua teimosia, que ele matizou comalgumas frases, nas quais reconhecia como as melhoresintenções dos semelhantes podem, às vezes, ser desvirtua-das pela mente alterada e atuar como cáustico, provocan-

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do na epiderme psicológica essa tremenda erupção que sechama suscetibilidade. Satisfeito, manifestou que agorapossuía uma noção mais acabada de sua verdadeira esta-tura psicológica e que também avaliava, de uma maneiramais precisa, a diferença entre erudição e saber.

– É isso mesmo, Salvador – Cláudio disse. – Vejavocê que, enquanto a erudição se fundamenta em estudossuperficiais e na especulação intelectual, o saber se formano estudo consciencioso, na investigação, na experiência,na assimilação direta do conhecimento. Poderíamos dizerque a erudição é a bengala que nos leva à prédica semuma realização pessoal efetiva, e o saber, o cetro querepresenta a superioridade do poder nobremente conquis-tado. Em se tratando do conhecimento transcendente, seapenas nos valêssemos da primeira, jamais alcançaríamosa essência que o distingue dos demais. Por isso mesmo éque devemos chegar à compreensão de que unicamentepor via de seu estudo, de sua prática, e pela assimilaçãoperfeita de seus conteúdos, é que obteremos a consciênciade seus altos valores. Alcançado isto, então poderemosdecidir, sem nos enganarmos, se é mais convenienteseguirmos dedicados ao aumento desse saber ou entre-gues aos cotejos que você propunha.

A essa altura da conversa, Griselda se aproximoude Cláudio e, apoiando-se carinhosamente no braço queele lhe estendia, escutou o restante, certa de que se trata-va de uma boa notícia.

Elegantemente vestida, mostrava-se ela belíssimaentre a rutilância das jóias e o formoso vestido de seda, detom suave, coberto parcialmente pelo casaco de peles queela havia posto sobre os ombros.

Naquela noite, tinham programado comparecer auma festa, mas ainda era cedo, e poderiam desfrutar então

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alguns momentos de intimidade junto à lareira que ardiaali perto, no grande “hall”.

Enquanto Cláudio a ajudava a retirar o casaco, quecolocou sobre o sofá, Griselda conversava alegremente,com evidente desejo de expressar as idéias que lhe haviamocorrido a propósito do que acabara de ouvir.

– Que movimentos tão sutis existem no complexomecanismo da psicologia humana!... – ela observou. –Quantas reações se promovem à margem de nossa vonta-de, as quais inclusive decidiriam, se disso não nos désse-mos conta a tempo, a sorte de nossa vida!

Cláudio sorriu, ao escutá-la, refletindo em seurosto uma satisfação cuja causa em seguida ele pôs demanifesto, quando, ao se assentarem um junto ao outro,disse a ela:

– Sem querer, você acaba de me dar a ponta do fioque talvez nos leve a encontrar algo interessante.

– Seria maravilhoso!– Diga-me uma coisa, Griselda: não consistiria tudo

em descobrir essa força que ativa os movimentos que ocor-rem em nossa psicologia? Em conhecer a origem dessaforça, ou a fonte onde se nutre, e em conectá-la a nossavontade, ao invés de deixar que ela atue cegamente em nós?

– Por que você pensa que essa força atua cegamen-te? Não será o contrário? Porque parece haver nela umagrande inteligência. Os movimentos que gera, às vezesimperceptíveis, não nos mostram que ela leva em si umfim instrutivo, que nós deveríamos saber aproveitar?

– Sua reflexão me parece sumamente atinada.Cláudio passou os olhos em seu relógio e dispôs-se

a continuar.– Certamente, o momento não é apropriado para

que nossa mente se aventure em questão tão profunda –disse, sorrindo, – mas tampouco podemos negar que nos

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deixamos atrair por ela sem resistência, não é mesmo?Voltando ao que falávamos, eu repito, minha querida, queestou de acordo que não se trata de uma força cega.

– Fico alegre com isso! – respondeu Griselda, satis-feita pela coincidência, acrescentando: – Eu presumo queo único cego é o homem, que não vê tão extraordináriarealidade.

– Eu suspeito, Griselda, que esse movimento sutil,que você mencionou no começo, guarda uma estranharelação com o das marés... A articulação desse movimen-to, que chamamos de fluxo e refluxo, está sujeita, comosabemos, a uma força cósmica que mantém em calma ouembravece as reações do mar; alguma coisa parecida deveseguramente ocorrer em nós. É claro que, em nosso caso,é o ser mesmo quem corre o perigo de soçobrar, como peri-gam no mar os barcos envolvidos por sua voragem, masnão o mar como ser monstruosamente imenso, circunscri-to a uma órbita jamais excedida por ele.

– Você viu só como o panorama de nossa vida interiorganha interesse, no instante em que conseguimos dissiparessa cegueira atrás da qual tantos bens se ocultam? É com-preensível que isso ocorra; quando a observação que deve-mos dispensar a ela não funciona, ou é feita de uma manei-ra defeituosa, ou só parcialmente, uma infinidade de elemen-tos de valor incalculável nos escapa. O que é que o homemnão faria, caso se visse com possibilidades de enriquecer comeles sua paupérrima vida intelectual e espiritual!...

– Talvez utilizasse com mais freqüência essa precio-sa faculdade. Ele chegaria assim a comprovar, como denossa parte iremos comprovando dia a dia, que a observa-ção, dirigida pela consciência, se converte em dona esenhora de nosso mundo interior, ao mesmo tempo que emponte de união com o mundo transcendente.

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– Que delicada sensação nos invade, ao vermos astransformações que se realizam através desse prisma!...Embora, para dizer a verdade, reconheçamos que há tam-bém motivos que afligem o coração, se nos pomos a conside-rar as causas da desolação que a criatura humana experi-menta, quando exposta aos mais variados e tempestuososabalos psicológicos.

– Isso e muitas outras coisas sumamente importan-tes então se definem, minha querida senhora... mas... – e,concluindo a frase com um beijo, deu a entender que já esta-vam em cima da hora.

– Terei tempo de ver Adriana? – ela perguntou.– Sim, mas pouco.E, tomando-a pelo braço, adicionou alegremente:– Eu acompanho você.Quando mal havia transcorrido um quarto de hora,

Patrício fechava o ferrolho da porta por onde seus patrõesacabavam de sair. Em seu rosto transluzia toda a serenidadeque lhe infundia na alma o saber que a felicidade haviaencontrado, decididamente, um lugar no seio daquele lar.

De Sándara sabia manejar o tempo com plena noçãode seu valor. No México, suas intimidades caseiras transcor-riam em harmonia com seus movimentos mentais, efetua-dos em diversos sentidos, para captar as imagens autênticase positivas que ele depois desenvolveria, ao engolfar-se emseus trabalhos de criação. Seu escritório era um verdadeirolaboratório de idéias, e sua escrivaninha, uma maternidadeonde os pensamentos gestados em sua mente nasciam dia-

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riamente, ao serem confiados ao papel tão logo alcançavamclaros sinais de maturidade conceitual. Nesse labor, pas-sava ele muitas horas do dia e mesmo da noite, quandooutras tarefas diminuíam seu tempo. Sendo muito relacio-nado, costumava receber em seu gabinete um considerá-vel número de pessoas, que o visitavam por amizade oupor adesão ao mundo de suas idéias. Falando hoje comesta, amanhã observando aquela, ou seguindo mental-mente os passos, necessidades ou anseios de outras, DeSándara penetrava sem esforço nos mistérios que povoamas sombrias cavernas da psicologia humana, bem comonos arcanos de sua região sensível, em cujas adjacênciasas mais belas qualidades da alma pugnam por manifestar-se. Deste modo, ele aumentava seu saber, transferindo-odepois para seus escritos, ou pondo-o diretamente aoalcance daqueles que o necessitavam.

De vez em quando, costumava interromper seu tra-balho diário para recrear-se em companhia da família, pro-porcionando-se, assim, pequenas tréguas. Quando a horae a temperatura se associavam, excitando seu desejo deespairecimento ao ar livre, um aprazível rincão, situadonos fundos do jardim que circundava a casa, constituíaseu refúgio predileto. Elevava-se ali a figura titânica de umvetusto cedro, cujos grossos ramos inferiores, balançadospela brisa, pareciam abanar com seus compridos dedosvegetais as plantas e os arbustos postados artisticamenteà sua volta. Daquele ponto a vista podia deleitar-se na con-templação do verde tapete que forrava todo o espaço do jar-dim e que se mostrava decorado, aqui e acolá, com o ale-gre tom multicor das pequenas flores da estação.

Ebel e Mariné costumavam tomar o desjejum naque-le paraíso familiar, nas manhãs prematuramente aquecidaspelo sol. Por detrás de seus alegres muros naturais, encon-trava-se tudo quanto era necessário para o bom descanso do

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corpo e o recreio do espírito: cômodas poltronas para o repou-so e uma mesa de pedra, com bancos pequenos e rústicos,para lanches ou outras eventuais refeições leves. Cristina porvezes os acompanhava, mas apenas quando conseguia sobre-por o estímulo de sentir-se acompanhada ao de folgar ummomento mais no leito. Pelo menos, isso era o que ela dizia,mas bem se podia perceber que se tratava de um simples pre-texto, com o qual ela costumava encobrir uma atitude mera-mente discreta.

Certa manhã, nos derradeiros momentos do verão,De Sándara encontrava-se à sombra do colossal cedro,absorto nas notícias de um jornal, enquanto aguardava achegada de Mariné.

Alegre e radiante como aquele dia final de agosto, elea viu caminhar até o refúgio, justamente quando terminavasua leitura.

– Se você me tivesse acordado, Ebel, há muito tempoeu já estaria aqui, desfrutando sua companhia – ela repro-vou com carinho, ao chegar, beijando-lhe a face.

– A verdade é que senti pena de fazê-lo. Você dormiatão placidamente.

– Mas você sabe quanto significa para mim cadamomento que passo a seu lado.

De Sándara sorriu e respondeu-lhe:– Bem, bem... tratarei de ser menos piedoso de agora

em diante.– Oh!– O “o” é uma letra que a miúdo protesta pelo que

fazem as outras letras do alfabeto.Seus risos ressoaram alegres.Travessos e ariscos, os pássaros fluíam por entre a

folhagem numa faiscante confusão de sons.No semblante de Ebel desenhava-se, com serena elo-

qüência, a felicidade que o embargava. Respirou profunda-

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mente, como se quisesse dar maior expansão a seu rego-zijo. Sentia-se verdadeiramente ditoso. Durante os mesesque se seguiram ao seu casamento, ele não havia feitomais que confirmar, na intimidade de seu espírito, a exa-tidão dos juízos que Mariné lhe inspirara. Ela havia assu-mido suas novas responsabilidades com tal segurança, ecom tão exato senso das atribuições que lhe cabiam, quea mudança promovida desde então dentro do lar tornoumuito mais feliz a vida de seus integrantes. Resolveu-se,com a concordância geral, que depois do casamentoMariné substituiria Cristina na administração da casa,tarefa que para esta já se ia tornando um pouco pesada.A jovem foi assumindo a direção dos trabalhos sem queem momento algum Cristina se sentisse suplantada. Osutil e humanitário tato com que ela havia posto de ladosuas despreocupações de solteira, para cumprir seusencargos de mulher casada, motivou a aprovação de Ebel,que se valeu de uma brincadeira para dizer isso a ela,naquela manhã.

– Você sabia, Mariné – ele manifestou, com serieda-de – que estou querendo me divorciar de você?

– É mesmo?! – respondeu ela, com vivacidade. – Epara quê? Para ter a ventura de se casar comigo de novo?

– Era esse justamente o meu pensamento, Mariné,porque a verdade é que estou muito satisfeito com você.

– Que bom! – ela respondeu, exagerando com graçaseu agrado. – Você não me podia ter dito nada mais grato.

O criado havia terminado os preparativos para odesjejum, e Mariné se dispôs a servi-lo. Enquanto faziaisso, como se desejasse prolongar o tema, confessou:

– Em todo este tempo, creio não ter feito outracoisa, Ebel, senão permanecer fiel a meu sentir; isso mepermitiu ser dona de mim mesma em todo o momento.

Mariné não poderia trair jamais a sinceridade comque seus nobres anelos palpitavam. Ter-se-ia humilhado

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ante os olhos de sua consciência se houvesse, sequer uminstante, cedido sua autoridade à frágil e insegura direçãode pensamentos pueris, frívolos, mesquinhos, capazes deempurrar a vida para os abismos do infortúnio. Há mulhe-res, e muitas, que depois de fazerem alarde de bondade,afeto, doçura e outros apreciados dons do caráter femini-no, mostram-se, ao se casarem, como se tão notávelmudança lhes transtornasse o juízo. Escravas da vaidade,do orgulho e de outras não menos perniciosas debilidadesque influem sobre a instabilidade humana, entregam-sesem recato aos braços do capricho quando a vida lhessorri. Conseguido o objetivo, logo se esquecem dos diasque precederam sua chegada à condição de casadas e,altaneiras, intransigentes, negando virtude a suas bran-duras e benevolências anteriores, sem mais nem menos searvoram em donas da situação. Funesta mudança, quedesvanece o feitiço e converte a fada bondosa em bruxacruel e insuportável! Tudo isso como conseqüência forço-sa de defeituosas formas de conduta adotadas pela socie-dade, que denunciam a ausência de uma educação basea-da nas altas concepções de bem. Ao se resguardar a almada mulher – que ensaia, como as aves novas, seus primei-ros vôos – contra os males da incúria moral e espiritual,com quanta eficácia se neutralizariam muitos dos sofri-mentos que a violência do caráter e a própria vida haverãode impor-lhe depois!

Mariné aceitou, prazenteira e entusiasmada, o con-vite de Ebel para percorrerem as serranias vizinhas, e, nasasas de uma expansiva sensação de alegria, pouco depoispartiam de automóvel até o ponto escolhido para o agra-dável passeio matinal.

Depois de algumas horas, De Sándara deteve, emplena montanha, seu vigoroso corcel de aço. Num lugarnão muito distante do caminho, subiram a um penhasco

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para desfrutar o vasto panorama que dali se descortinava.Por muito que eles estivessem familiarizados com taisparagens, a sensação algo estranha que se promove noânimo ante os vestígios da vida primitiva, impressos emvales e montanhas, muito depressa vinculou suas pala-vras a motivos ligados à tradição.

– Você já sabe, Mariné, que sob a aparência de colô-nias agrícolas, em diversos pontos destas montanhas vive-ram tribos isoladas, como descendentes das civilizaçõesindígenas que povoaram antigamente estas terras. Sua vidatranscorria, por assim dizer, num mundo apartado do nosso,submetida a ritos e costumes herdados em parte de seusantepassados. Digo em parte, porque, embora pretendessemser essencialmente tradicionalistas, suas práticas estavamsujeitas às variações e inovações adotadas pelo chefe decada tribo para dominar a alma de seus vassalos, que otinham por um deus. Eu lhe contarei, se você quiser, a his-tória de uma donzela que pertenceu a uma dessas tribos.

– Oh, você sabe bem quanto me atrai tudo o quenos põe em contato com fatos e lendas que revelem costu-mes, formas de vida e crenças dos povos que habitaramestas regiões! Cada vez que contemplo estes formosospanoramas, minha alma sente o influxo desse mistérioque flutua em tudo o que se perde nas profundezas dotempo. Pode começar, Ebel; ouvirei com prazer. Rodeadoscomo estamos pelo cenário onde aconteceu o que você meanuncia, vai me parecer que tudo revive.

– Vou começar, então, falando da protagonista, umaformosa moça chamada Ximara, filha do cacique de umapoderosa tribo. Ximara amava Huipec profundamente, umrapaz indígena que parecia não ser do agrado de seu pai. Emrazão disso, este fez que ela comparecesse um dia à sua pre-sença e, depois de lhe perguntar se em verdade amava Huipec,

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quis também que dissesse como poderia demonstrar isto.Terna e recatada, a jovem não se atreveu a levantar osolhos ante seu pai, mas teve a firmeza de expressar-lhe quefaria isso permanecendo fiel a seu amor até a última bati-da de seu coração. No dia seguinte, acusado de haverinfringido certa lei indígena, Huipec foi condenado à mortepelo grande conselho da tribo, e Ximara, por ordem expres-sa do cacique, obrigada a presenciar o suplício a que eleseria submetido. Na noite desse mesmo dia, seria cumpri-da a cruel e bárbara sentença. Desde muito antes, os tam-bores começaram a anunciar o acontecimento, chamandoa tribo, cujos membros, congregados em grande número,iam rodeando a grande pira do suplício num amplo semi-círculo. Ximara também compareceu, contendo com difi-culdade seu desespero e suas lágrimas. Chegado o momen-to, o vivo resplendor da fogueira iluminou a atlética figurade Huipec, que avançava em direção ao lugar do tormento,guardado por vários guerreiros. Caminhava com arrogân-cia, como que desafiando com sua valentia a crueldade doinjusto castigo. Por breves instantes, o fulgor das chamasse projetou sobre sua figura varonil, e em seguida, empur-rado com violência para a parte oposta ao semicírculo e àfogueira, foi jogado ao solo. As grandes línguas vermelhas,enquanto isso, se elevavam ávidas, com ânsia diabólica,ocultando da tribo com sua resplandecência o que ocorriapor detrás delas. Ouviu-se de repente um golpe de macha-do, e eis que o verdugo ergue bem alto a cabeça sangrentae a lança às chamas, seguida pelo corpo do condenado.Dos lábios de Ximara brotou um grito dilacerante, dessesque somente a alma humana é capaz de lançar no paroxis-mo da dor e do espanto. Desde esse dia...

– Você me deixou arrepiada, Ebel! – interrompeuMariné.

– Veja o que vai acontecer... – ele prosseguiu, sor-

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rindo significativamente, como se com isso quisesse ame-nizar aquela impressão. – Desde esse dia, sem faltar umsó, a bela jovem indígena foi até o lugar da execução, anteo qual se prostrava, derramando copiosas lágrimas.Muitos, nesse período, se aproximaram dela e lhe oferece-ram seu amor, porém Ximara sempre respondia que pre-feria morrer a incorrer em tamanha infidelidade. Numanoitecer, enquanto invocava, como de costume, a seuamado no lugar onde o vira pela última vez, Ximara acre-ditou ter ouvido sua voz. Levantou seu belíssimo rosto e –oh! surpresa! – ali, a poucos passos dela, se achavaHuipec, erguido entre as moitas do espesso mato selva-gem. A jovem quis correr até ele, mas a aparição a conte-ve. “Não se aproxime, bela Ximara”, ouviu-o dizer. “Vocêevitará assim que eu desapareça de sua vista para sem-pre. Faça o que estou pedindo e você me verá todos os diasneste mesmo lugar. Agora, vá contar a sua mãe que vocême viu.” Obediente, Ximara se afastou, e, ao voltar a cabe-ça para contemplá-lo novamente, Huipec havia desapare-cido. Quando a jovem índia relatou aquele curioso episó-dio a sua mãe, esta se compadeceu dela, achando que seujuízo se havia transtornado. Os dias passaram, e sempre,ao cair da tarde, Ximara voltava a ver Huipec no lugar dotormento. Mas eis que ela mesma começou a temer queaquilo fosse só uma alucinação e, por tal motivo, rogou asua mãe que a acompanhasse. Esta, que muito temia pelafilha, concordou, e juntas foram até lá numa tarde, ao pôrdo sol. Após longo tempo de espreita, ocorreu que ambas,mãe e filha, viram de súbito o mancebo diante delas, tãofielmente representado que aquilo era como vê-lo em vida.A mãe de Ximara, sem poder conter-se, correu a informarao cacique, e a quantos encontrava pelo caminho, queacabava de ver Huipec em corpo e alma. A partir de então,não faltaram indígenas que, curiosos, se agruparam nolugar, junto a Ximara; mas nunca jamais a aparição se fez

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presente. Um belo dia, a linda jovem foi chamada à pre-sença do cacique, o qual, depois de assegurar-lhe que nãovoltaria a ver Huipec, lhe ordenou por três vezes quetomasse como esposo o homem que ele lhe propunha; portrês vezes também, Ximara implorou piedade, rogando aseu pai, com toda a mansidão que a dor punha em seuslábios, que a fizesse ter o mesmo fim que seu amado tive-ra. A voz do cacique tornou-se de pronto benévola, e eledisse: “Você venceu, bela Ximara, na grande prova; vocêglorificou sua raça. É digna, pois, de levar sobre seu peitoeste colar que eu lhe imponho, para que minha tribo a res-peite como Filha do Sol.” Imediatamente, ante o assombrocrescente da donzela, que não podia dar crédito ao queseus olhos viam, apareceu Huipec, que, após receber asaudação do Grande Chefe, se apressou em juntar-se aela. E aqui, minha querida Mariné, termina esta estória,da qual nunca duvidaram aqueles que ouviram seu relato.

– Mas da qual se pode afirmar que é lenda; do con-trário, não entraria nela o sobrenatural.

– Entretanto, não foi isso que aconteceu. Tudo foiresultado de uma simples trama, de uma trama habilmen-te preparada. A cabeça de Huipec, que todos viram cairsobre a pira, não era dele, senão a de outro condenado àmorte, levado a ocupar seu lugar no momento da execu-ção, mediante um engenhoso truque levado a efeito aoamparo da noite, da luz da fogueira e de diversos objetosespalhados em redor.

– E as aparições?– Podemos presumir que foram determinadas pelo

chefe, que teria instruído o moço, proibindo-o de divulgaro segredo, sob pena de suplício verdadeiro, caso o traísse.

– Se for como você diz, temos de considerar curio-sa, embora muito própria de seres selvagens, essa formade provar a fidelidade. Por outra parte, a fidelidade, emnaturezas tão rudimentares, pareceria estar nos indican-

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do que se trata de um sentimento inculcado no homemnos alvores de sua existência.

– A fidelidade, minha querida, surge no ser huma-no como sustento inapreciável do sentir; portanto, é inata.Mas quero esclarecer que, não obstante isso, ela alcançasua máxima expressão, sua expressão verdadeira, quandotoma a forma de um conhecimento, que o homem devedescobrir em sua própria consciência, caso não queira serenganado por pensamentos volúveis.

O interesse com que Mariné escutava moveu DeSándara a continuar:

– Quando a fidelidade é tão-somente um sentimen-to de lealdade, você me entende?, facilmente pode ser afe-tada por acontecimentos inesperados. Tomemos, comoexemplo, a falta de correspondência no afeto, os esfria-mentos da paixão, os distanciamentos que se suscitam noseio do lar, freqüentemente por causas pueris, e, enfim, osdesencantos de variada índole. Mas, quando a fidelidadebrota do mais recôndito de nosso ser como conhecimento,é difícil – e até impossível – que ela possa negar sua pró-pria força construtiva. A fidelidade é uma força indissolú-vel quando seu objeto – seja um ser, uma idéia, um pen-samento – constitui algo que se acha consubstanciadoconosco.

– A diferença entre ambas estaria, então, na passi-vidade de uma em face da atividade da outra, que encon-tra em si mesma o elemento que a torna invariável.

De Sándara aprovou.Com a atenção ainda voltada para a lenda que aca-

bava de escutar, Mariné expressou:– É um verdadeiro alívio o que a gente experimen-

ta, quando pensa que práticas como a que você acaba denarrar foram superadas pela civilização. Já não temos

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caciques que se arroguem o poder de vida ou de mortesobre seus semelhantes.

– É certo que a conduta pessoal, após absorver os ele-mentos que pais e educadores oferecem ao juízo ainda nãomaduro da juventude, está em nossos dias entregue ao pró-prio arbítrio. Mas não é menos certo que, nos países cheiosde orgulho por seu alto grau de civilização, ainda existemformas de crueldade e de submetimento que mergulhamhomens e povos na mais espantosa miséria física e moral.

– Tem razão, Ebel. Quantas vezes eu me perguntose um dia os povos poderão se livrar da escravidão a quesão submetidos pelo despotismo de seus governantes.

– Isso vai acontecer, minha querida Mariné, quan-do os homens que pensam, qualquer que seja o lugar ondese encontrem, ensinem os demais a pensar e se unam nomesmo pensamento de libertação. O homem deve apren-der a defender sua liberdade, não só com o pensamento ea palavra, mas também com todos os meios lícitos de queele possa lançar mão, a fim de favorecer sua evolução e ados povos, até a conquista definitiva de tão supremo bem.

– Que formosa soa ao ouvido a palavra liberdade!...– Nem poderia ser de outra maneira! Trata-se, nada

menos, do mais sagrado e precioso de nossos bens. Quematenta contra ela, em verdade atenta contra os mais carossentimentos humanos: o amor e o respeito que devemos anós mesmos e a nossos semelhantes. Pretender anulá-la élevantar-se contra Deus, que a instituiu como imprescin-dível para a vida do homem.

– Faz apenas alguns instantes, eu pensava quesomente pertencendo ao sangue das tribos selvagens éque se poderiam suportar crueldades como as que Ximarasofreu, mas agora percebo quão grande tem de ser o graude fortaleza ainda necessário nos dias atuais, para enfren-

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tar as perturbações e as guerras que a anulação da liber-dade e o despotismo lançam sobre os povos. Quantasvezes, no transcurso do tempo, o coração humano se viusurpreendido por esses transes cruciais, quando o desti-no desata as forças cegas que arrastam, no turbilhão desua fúria, as almas assinaladas por seu fatídico dedoindicador!

– Não há dúvida, minha querida, que sua sensibili-dade se ressentiria se alguma vez tivesse de sofrer afliçõessemelhantes.

– E você pensa, por acaso, que eu não saberiaencontrar consolo nesse inviolável arcano constituído pelopoder piedoso que surge com o acatamento da vontade deDeus? Você mesmo gravou isso em mim, Ebel, e para ondeeu for eu o levarei comigo, como um talismã que me pre-servará de todo mal.

– Me agrada sobremaneira essa espontaneidadecom que se acendem as luzes de sua sensibilidade, todavez que seu espírito se comove com algum pensamento oufato que toca suas convicções, reunidas num feixe inque-brantável para amparo de sua vida e felicidade de suaalma.

Movida pelas palavras de Ebel, para ela doces e sig-nificativas, a jovem confessou:

– Sempre observei que tudo o que aprendia comvocê me aproximava com força irresistível a seu cora-ção, como se a totalidade de minha alma penetrassenele e se tornasse uma só com a sua, pela correspon-dência de sentimentos. Desde o instante em que eu oquis por meu dono, você decididamente o foi, e todo omeu zelo consistiu em cuidar de algo que pertencesomente a você: minha vida, que você enriqueceu comtanto afã e carinho.

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Ela então se deteve, e ambos se fitaram com a inte-ligência e o oferecimento íntimo que refletem estados deconsciência paralelos, semelhantes aos que sobrevêmquando se compartilham momentos de arrebatadora feli-cidade ou de grandes pesares. Quiçá em seus olhares hou-vesse algo do fundo luminoso que inspirara a epopéiahomérica e exaltara a imaginação de Horácio e de Virgílio,quando descreveram em seus poemas as particularidadesdo espírito humano, confundindo-o com tudo o que vive eexiste na órbita incomensurável da Criação.

Quebrando aquele instante de encantamento,Mariné voltou a confiar-se sem reservas às delícias de suavoluntária confissão:

– Eu sabia que, para livrar minha vida do horror dovazio, devia dar-lhe um conteúdo... Me perguntava amiúdo se esse conteúdo era igual em todos os casos, ecada vez mais ia me aproximando da confirmação do queera exato. Quão claramente cheguei a ver a escala esque-mática dos conteúdos que podem satisfazer a vida de unse de outros. Evidentemente, não são iguais; mas podem,entretanto, assemelhar-se e até chegar a ser idênticos, seos anelos coincidem, se coincidem também os modos deconceber e de sentir a vida, e se existe o mesmo grau deafinidade nas aspirações superiores do espírito. Mas é evi-dente a facilidade com que se desvirtuam e se anulam taispropósitos. Quando não se sabe conservar a força de umquerer, este se mescla e se corrompe, contaminado pordesejos opostos que acabam por se impor, retornando oser a suas aventuras e vacilações de outrora. É assimcomo se põe fora esse querer que alentou a vida durante operíodo presidido pela vontade, quando estava a serviço deuma necessidade nobre e profundamente sentida.

– Exatamente. Poucos são os que se dispõem a con-

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formar a vida com as exigências de um alto ideal; o fimperseguido nem sempre resiste à prova do tempo.

Interrompendo seu diálogo, Ebel e Mariné desce-ram do penhasco em que se encontravam e, lentamente,se dirigiram até um arvoredo. Ali, sobre o tapete de peque-nas ervas frescas e aromáticas que recobriam o solo, sen-taram-se para descansar.

– Sem sua ajuda – Mariné confessou, – eu nuncapoderia encontrar a recôndita, encantadora e estreita pas-sagem que une os confins de nossa vida intranscendentecom a terra da promissão, que é seu conteúdo estético e aregião divina de nossa existência, antes alheia aos domíniosde meu pensamento, não obstante sua inegável realidade.

– Pode-se saber o que contém esse divino lugar quevocê descobriu?

– Contém o necessário para fazer de mim umamulher feliz!... Nunca esquecerei meu encontro com essarealidade. Foi como um despertar maravilhoso!... Tudomudou a partir de então. Minha natureza se transformou,por sua adaptação ao ritmo e às palpitações de uma novavida, de uma vida que eu havia entrevisto e ansiado viver,e que você me ensinou a encontrar, me guiando até a fron-teira que me separava dela e indicando o caminho que eudevia percorrer dentro de mim, para me encontrar com aessência mesma de meu ser. Ali, compreendi tudo o queme caberia fazer para a manutenção firme e inquebrantá-vel dos propósitos concebidos como ideais supremos deminha vida.

– E quais são esses supremos ideais? – voltou aindagar De Sándara, que se comprazia em ouvi-la.

– Sei muito bem quanto agrada a você comprovarse sou fiel à minha recordação. De minha parte, sendoesse um dos exercícios mais necessários à nossa sensibi-

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lidade, eu o praticarei de muito bom grado diante de você.Sua pergunta vem ao encontro, pois, da necessidade quesinto de renovar as imagens que me são queridas. Dentrode nós, talvez se produzam as mesmas situações quecaracterizam as variações e os câmbios que têm lugar nanatureza. As árvores às vezes parecem mortas, como se avida tivesse cessado nelas; em seu interior, porém, se agitaa seiva, num permanente aquilatamento das energias quesustentam sua vitalidade e permitem seu crescimento, seforem pequenas, e sua floração, se forem grandes, o queevidencia sua força potencial. A evocação de minha passa-da adolescência, quando as imagens criadas pela ilusãoda tenra idade mal-e-mal se delineavam entre sonho evigília, me traz à mente, em sucessão ininterrupta, os tre-chos que mais se destacam no curso de minha vida. Comosempre ocorre nessa etapa da existência, minha imagina-ção voava à procura dos mais caprichosos gostos, e, napermanente insatisfação diante das coisas, a audácia dafalta de reflexão me tornava exigente. Para minha felicida-de, isso durou pouco. Você apareceu como uma estrela nanoite de minha vida e, desde a espessa escuridão em queminha alma vacilante buscava às tontas um ponto deapoio para suas inquietudes, me foi guiando para a clari-dade do dia. Minha compreensão ia gradualmente perce-bendo como você esculpia em mim, com arte consumada,os traços indeléveis de seu raro e sinestésico cinzel. Então,ao mesmo tempo que me afastava do que eu era, desfeitoo feitiço dos encantos quiméricos e livre da embriaguezletal dos anos incertos, compreendi como me internavamais e mais nesta realidade que hoje transborda meucoração de ventura. Com o auxílio de seus conselhos, sem-pre oportunos, e sob seu olhar vigilante, aprendi a sermoderada em meus pensamentos e a aquilatar a dimen-são de minhas aspirações, para não me exceder nunca.

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Nesse aprendizado, fui tomando consciência do que signi-ficava ajustar minha conduta às exigências de um proces-so que me iria superando gradualmente. Devia fixar emmim a imagem do grande querer ou ideal supremo deminha vida, intuído primeiro e ansiado depois por meucoração e minha alma, e nesse esforço enfrentei grandeslutas comigo mesma e derramei muitas lágrimas por causade minhas incompreensões. Uma circunstância particular-mente dolorosa veio a coincidir com aqueles trechos que euentão percorria, ainda insegura. Foram na verdade dias deinconsolável inquietação, porque ali, onde minha almaansiava encontrar um sentimento de maior ternura, eu viatão-só o sereno afeto de seu coração. Em certos momentos,Ebel querido, sentia minha vida como se fosse de cristal.Oprimida pela dor, mais de uma vez eu aguardava o ins-tante fatal em que ele se faria em pedaços... Finalmente,numa certa tarde, você descobriu meu segredo no lugarmais inexpugnável. Minha alma vacilou, comovida depudor, talvez consciente de que na resposta eu comprome-tia seu destino. Você me disse depois que havia assistido,naquele dia, a um dos episódios mais inocentes, graciosose ao mesmo tempo imponentes da vida íntima de umamulher. Desde então, fui feliz. Agora, eu sabia que nuncalhe havia sido indiferente, e sua voz, ao me falar, tinha asuavidade e a doçura do amor. Depois de transcenderaquela difícil etapa de minha vida, os anelos que continua-mente aguilhoavam minha alma acentuaram seu perfil e,do oculto rincão que os abrigava, o íris primário da com-preensão foi matizando de cores definidas as imagens men-tais daqueles que eram mais caros para o meu sentir.

De Sándara escutava as palavras de Mariné com aatenção e o respeito que aquele momento infundia nele, aomanifestar-se a alma da jovem num fluir fácil de pensa-mentos afins com os que ele guardava no arcano de seu

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coração. Finalmente, ao vê-la alcançar a meta em seu vôomental através da recordação, expressou-lhe:

– Eu vejo que você domina com muita segurança oespaço dimensional de sua vida, nas várias direções quepercorreu em seu passado.

– Você não acha que exagera?... Você bem sabe,Ebel, que não é coisa difícil evocar as recordações quepreenchem minha vida, porque sua força nos permite unirao vivido aquilo que estamos vivendo.

– De fato, é assim. Se esquecêssemos a parte de vidaque nos alentou nos começos de nosso caminhar conscien-te pelo mundo, do qual tanto participaram pensamento equerer, essa parte morreria irremediavelmente. Ela deve seunir ao que vamos vivendo, deve se consubstanciar comtodos os dias de nossa vida. Não experimentaremos, assim,o vazio que angustia e desespera os que, sem conservaremsequer memória disso, derramaram nas areias do passadotudo o que até ontem viveram.

– Se você me perguntasse agora a que penso dedicarminha vida, eu responderia, com toda a certeza, que é acumprir a missão que, de forma acertada e discreta, vocême ensinou. Antes de tudo, meu dono e senhor, serei suacompanheira ideal, porque eu sou o que suas mãos forja-ram. Tenho diante de mim esse maravilhoso mundo deconhecimentos que você abriu para o meu sentir, a fim deque meu espírito, cultivando-se, sorvesse o mais deliciosodos néctares. Eu não teria podido encontrar para minhavida incentivo maior, nem um destino mais precioso paraencher de ventura os dias de minha existência!

– Você é fiel aos pronunciamentos caros a seu espí-rito, e isso me agrada; é o contrário do que fazem aquelesque quiseram dar a suas vidas um conteúdo e, depois, lan-çaram seus projetos no esquecimento, transtornados talvezpor ambições que não souberam frear.

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Após uma pausa, e com o objetivo de que Marinévoltasse novamente a tocar a terra com os pés, DeSándara acrescentou:

– Se eu tivesse que qualificar seus adiantamentosnesta matéria, que na verdade é a mais difícil, eu a pre-miaria com um “aprovada com distinção”.

Satisfeitos pelos felizes momentos de expansãodaquela manhã, resolveram regressar.

Entraram no carro e, em marcha regular, empreen-deram a volta. Sob os raios do sol, o caminho parecia umaziguezagueante fita de esmalte, estirada desde a SierraMadre até a épica meseta de Anáhuac.

Cristina os esperava para almoçar, e não deixou derepreendê-los, com fingido mau humor, pelo tempo que ahaviam deixado sozinha. Mas o gosto de vê-los tão felizesfez logo repontar-lhe nos lábios a alegria que em vão ten-tava conter, e que se acentuou quando Mariné resumiusua resposta num beijo cheio de carinho.

Tomando sua tia pelo braço, De Sándara adentroua casa, enquanto Mariné, que ligeira se havia adiantado,voltava até eles exibindo alegremente uma carta.

– É para mim? – Ebel perguntou, suspeitando quealgo muito especial havia na correspondência daquele dia.

– Não tenha dúvida! – respondeu sorridenteMariné, que, disposta a brincar, adicionou: – Mas não vouentregar, se antes você não me disser algo lindo.

– Algo lindo?... Pois saiba que não me ocorre nadaque seja mais lindo que você!

– Você está falando a sério ou de brincadeira?– Mas, minha senhora... eu não falo sempre a sério?Cristina interveio, para lhes pedir que não se com-

portassem como criancinhas.Pouco depois, todos festejavam uma boa notícia. A

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carta era de Cláudio, que anunciava sua viagem ao Méxicopara meados de setembro próximo, em companhia deGriselda.

Aprazíveis e felizes transcorriam no México os diaspara o casal Arribillaga; embora breves em número, eramabundantes em plenitude e proveito.

Tal como haviam prometido a si mesmos quando pla-nejaram a viagem, tudo vinha sendo cumprido a contentoaté aquele momento, chovendo-lhes satisfações das folhasque se desprendiam do calendário de seus anelos. Apenas alembrança de Adriana, que haviam deixado em BuenosAires, turvava de vez em quando a felicidade de Griselda, queapesar disso sabia acalmar esse legítimo reclamo de seucoração ao refugiar-se na certeza e na confiança de que apequena se achava cuidadosamente atendida pela avó.

O México lhes oferecia o singular afeto de seus amigos,dos quais foram hóspedes durante sua permanência no país.A ampla mansão do paseo de la Reforma lhes ofereceu seubelo e luminoso abrigo, sua alegria e sua cordialidade. Poroutra parte, o momento era muito propício: De Sándara haviaterminado um livro, e tal circunstância veio ao encontro doardente anseio que tinham de nutrir seus espíritos, uma vezque, assim, ele poderia dedicar-lhes um tempo maior.

Até ali, não haviam vivido dia algum sem que regis-trassem na recordação passagens dignas de uma estadafeliz. Além dos prazeres que os passeios diários lhes propor-cionavam, tinham para eles particular encanto os momen-tos vividos na intimidade do lar e, de modo especial, as con-versas no escritório, onde a família habitualmente costuma-va se reunir, o que ensejava um afetivo acercamento mútuo

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durante as horas em que De Sándara permanecia a sós. O escritório era amplo, mobiliado com refinamento,

e tão cômodo como acolhedor. Havia-se conseguido quefosse apto para o trabalho no inverno e no verão, contri-buindo para tanto a ampla porta envidraçada que limitavaa sala num de seus lados, fazendo as vezes de paredemóvel. Nos meses quentes, podia-se unir dessa forma oescritório com uma extensa varanda, transformando orecinto num lugar agradável e espaçoso. A varanda seabria para uma das fachadas da propriedade, com vistapara o jardim, onde os canteiros, quase permanentementefloridos, contribuíam com uma nota de frescor e alegria. Nafrente, marcando o limite da residência, estendia-se umacerca viva de gerânios e roseiras entrelaçados, que em cadaprimavera orquestrava sua invariável sinfonia de cores.

Reunidos na sala de refeições na hora do desjejum,planejavam em conjunto o programa do dia. Certa feita,De Sándara propôs a Cláudio que percorressem algunslugares afastados da cidade, a fim de lhe mostrar de pertoseus ambientes típicos.

– Assim, nós deixamos as senhoras livres, poisentendi que querem dar uma olhada nas vitrines no cen-tro. Você vai com elas, Cristina?

– Eu?... Não tinha pensado nisso, mas acho quevocê tem razão... Eu poderia levantar vôo e me sortir dealgumas coisas.

– Nós então vamos levá-las ao centro.– Aceito. Mas não vão nos deixar no mesmo lugar, está

bem? – Cristina esclareceu. – Que as jovens possam se movi-mentar à vontade; eu vou aonde preciso, no ritmo de meus anos.

– A verdade é que essa história de ritmo é o que agente menos vê – Griselda observou, fitando com afabili-dade a senhora.

– Combinado, então! – De Sándara concordou, adi-

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cionando em seguida, para provocá-la: – Mas vou logo avi-sando que, se você demorar muito em se aprontar, nãovou poder esperar.

– Pois então, meu queridíssimo sobrinho, eu lheprometo solenemente estar pronta num piscar de olhos.Para algo haverão de me servir os bons hábitos!

Um pouco mais tarde, De Sándara e Cláudio cami-nhavam pelos arrabaldes da cidade, com seus casebres,lojas e mercados. A população indígena é ali muito numero-sa, e as precárias formas de vida ainda não experimentaramos efeitos do desenvolvimento social e econômico que favo-rece e impulsiona ativamente outros setores da cidade.

Um súbito remoinho de pessoas em correria, àsaída de uma venda, atraiu-lhes a atenção, e próximo dalipuderam divisar dois soldados que prendiam um homemmal-encarado.

– É um macuteno – explicou De Sándara. – É assimque eles chamam os ladrões por aqui. Esses sujeitos andamem vadiagem por todas as partes, à procura de vítimas.

Deslocando-se de carro de um a outro ponto, visi-taram alguns dos lugares mais característicos, enquantoDe Sándara ilustrava seu amigo sobre gostos, modalida-des e costumes das pessoas.

Depois, decidiram passar pelo centro da cidade,prolongando assim o percurso. Após estacionar o veículo,dirigiram-se até um dos pontos de maior movimento, con-fundindo-se logo com a multidão que formigava pelas ruasde um lado para outro, com andar nervoso.

No caminho, querendo talvez render tributo aocharme das mexicanas, ou quiçá instigado pela sugestãode algum sorriso bonito, Cláudio exaltava com excessivoentusiasmo a beleza das mulheres daquele país, cujagraça e sotaque lhe haviam evocado o garbo das andalu-

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zas. Longe de opor-se a um tão caloroso juízo, o senhor DeSándara o escutava com benevolente atenção.

Andando, chegaram a um luxuoso ponto comercial eentão se detiveram, junto à calçada, para melhor observar ovaivém das pessoas. Dali, De Sándara subitamente avistouum amigo, que ao vê-lo se aproximou, apresentando-lhe suasacompanhantes, duas primorosas muchachas* mexicanas,que se portavam com notória soltura e liberalidade. Como setivesse o propósito de comemorar aquele encontro, DeSándara convidou-os a tomar um aperitivo, idéia que foi acei-ta no mesmo instante, e que de maneira alguma desagradoua Cláudio, que via nisso a oportunidade única de contemplarde perto aquelas duas beldades, alegres e tagarelas.

Quando o inesperado episódio chegou ao fim, apósuma despedida em que não faltaram insinuações para umposterior encontro, ambos os amigos, considerando concluí-do seu passeio, resolveram encaminhar-se para o lugar ondehaviam deixado o carro estacionado.

Durante o trajeto, feito a pé, De Sándara, que seguiamuito de perto os movimentos psicológicos que se operavamem Cláudio, apertou-lhe o braço numa pressão rápida, rindoao mesmo tempo com aquele riso tão particular que, deoutras vezes, já havia produzido desconcerto nele. Entre tur-bado e confuso, Cláudio também riu, como faz quem desco-nhece o idioma em que lhe falam e, por causa disso, festeja oque ouve, mesmo sem entender um a. Recompondo-se, ten-tou em seguida encontrar sentido no fato, mas, ao fracassarem seu intento, deixou-se então guiar por seus meios intuiti-vos, logo descobrindo o que buscava, ao experimentar, apóso estremecimento que lhe produziu a súbita fuga de algunspensamentos indiscretos que bailavam em sua mente, umasensação sumamente favorável.

Passado aquele momento de confusão, Cláudio vol-

(*) N.T.: mulheres jovens

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tou a pensar no recente encontro, mudando, porém, seuângulo de enfoque. Tudo lhe parecia muito natural, masnão deixava de lhe chamar a atenção o fato de o senhor DeSándara ocupar seu tempo em conversas tão superficiaise, sobretudo, em companhia de mulheres que podiamcomprometê-lo. Com a mente mergulhada em tais refle-xões, tão logo entraram no carro ele expôs seus pensa-mentos ao amigo, o qual, disposto a se valer dessa conjun-tura para dar-lhe o assessoramento que ele necessitavanaquela matéria, desviou a rota de seu veículo para umlocal bem próximo, estacionando-o numa ampla avenida,protegida do sol por fileiras de árvores frondosas. Ali, semdescer do carro, prontificou-se a preencher com um ins-tante de conversação o tempo que lhes restava.

– Podemos dar como certo – começou dizendo –que, se resolvêssemos observar mil esposas, escolhidasnos mais diversos ambientes, no momento em que umacasualidade ou uma circunstância qualquer as colocassena incômoda situação de ver os respectivos maridos emcompanhia de outra mulher, veríamos produzir-se emcada uma delas a mesma reação de ciúme, ressentimen-to ou cólera, sem falar, é lógico, das variações que cadacaso pode apresentar. Veríamos também que, por educa-das que tais senhoras sejam, elas sofrem em sua maioriade uma certa miopia mental, que as inibe de enfrentarcomo corresponde tais incidentes da vida conjugal.Dizendo em poucas palavras, comprovaríamos sua faltade capacidade para neutralizar, com reflexões atinadas,os trágicos efeitos desse tipo de episódios. Pensamentosque nem sempre têm razão de ser se apossam delas, e éaí que, freqüentemente, acontece o pior, que é a busca doconselho alheio; e como o tal conselho costuma não serbom, elas então se expõem a converter a vida matrimonialnum inferno.

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Retirando um cigarro do maço que Cláudio lhe ofe-recia, De Sándara continuou:

– Se queremos saber o que há no fundo de umacaverna, deveremos, logicamente, introduzir-nos nela esatisfazer nossa curiosidade. Entretanto, talvez se oponhaa essa intenção um inimigo tenaz, a escuridão, fazendomalograr nosso propósito. No caso humano, a ignorância,que é treva mental, impede igualmente que se veja o fundodas coisas; daí que a imaginação, crendo-se iluminada,teça as mais caprichosas versões dos fatos, as quais, aonão intervir a menor análise reflexiva, costumam ser toma-das por certas. Assim, amigo Arribillaga, os dramas huma-nos são produzidos sem conta, na enganosa penumbra daincompreensão... Os conflitos conjugais têm justamente aísua origem, e se agravam pela mútua intolerância.

– Eu entendo, senhor De Sándara, que essa atitu-de que o senhor mencionou, e que poderíamos considerarcomo intransigente na mulher, obedece ao fato de que ela,frente às investidas do sexo, não somente revela em mui-tíssimos casos ter mais consciência de sua responsabili-dade matrimonial do que o homem, mas também demons-tra como sua própria dignidade a defende, quando culmi-na em razão de seu sentir. Contempladas ambas as posi-ções, a do homem e a da mulher, cabe contudo pensarque, mesmo sendo o varão com freqüência impotente paraevitar os erros em que incorre por força de suas fortes pre-disposições naturais, ele pode, porém, corrigir tais predis-posições e até neutralizá-las por completo, se a isso sepropuser.

– Sem dúvida; mas nisso deve intervir, necessaria-mente, e o digo me referindo sempre ao casal, um proces-so interno de compreensão que conduza cada uma daspartes, e de especial modo a mulher, a alcançar a razão

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desse vínculo carnal e afetivo, a fim de que se possa domi-nar e fortalecer, ao invés de debilitar, o sentido superior dolaço conjugal.

– É perfeitamente compreensível. De outro modo, oamor, aquele a que chamamos amor do coração, que ésensível em extremo, pode ser afetado por qualquer inci-dente nas relações de mútua correspondência. Prova dissoé que, em muitos casos, sua existência não é menos efê-mera que a do amor passional, que somente aspira àposse circunstancial, mesmo quando existam promessas ejuramentos envolvidos.

– E você sabe por quê? Parece que eu já lhe dissealgo a respeito... É porque o amor somente perdura quan-do chega a se converter em afeto. O afeto é o grande poderque persuade, que atenua os ressentimentos e perdoa; é oque suaviza os golpes da adversidade e elimina os efeitosperniciosos de todas as discórdias. Pois bem, quando esseamor que foi condensado em afeto é também sublimadopelo conhecimento, torna-se imutável e incorruptível.

– Me agrada de verdade compreender que a almahumana está integrada por elementos tão preciosos.

– Você disse muito bem, mas ainda faltaria adicio-nar que esses elementos preciosos, aliados entre si, for-mam a incomovível base de nosso ser sensível.

Calaram. Cláudio tratava de reter em sua mente aspalavras do amigo, nas quais não aparecia ainda a respos-ta clara à sua consulta. De Sándara não aparentava outrapreocupação que a de acender um segundo cigarro. Poucodepois, retomou a palavra, disposto agora a ser mais direto:

– Eu fiz com que a alma daquela que hoje é minhamulher se temperasse no crisol das experiências, assistin-do-a em seus primeiros passos com acendrado amor. Eu apremiei em cada um dos seus triunfos, oferecendo-lhe

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uma oportunidade a mais de me conhecer melhor. Isso lhefoi dando, a meu respeito, uma segurança como poucasmulheres, sem dúvida, têm de seus maridos neste mundo.Sabe que ninguém, com exceção dela mesma, poderásuplantá-la no lugar que ocupa em meu coração. E elacompreendeu isso tão bem, que jamais me incomodoucom receios de nenhuma espécie. Poderá acontecer queela me surpreenda circunstancialmente em companhia deuma mulher, ou de várias, tal como aconteceu há pouco,mas não experimentará curiosidade nem inquietude porisso. Tal atitude poderia ser tomada como indiferença,mas não é isso. Mariné é assim porque sabe, porque com-provou inúmeras vezes, que ela é, de fato, minha bem-amada e que, entre todas as mulheres, é para mim a pri-meira; a primeira mesmo entre as que estão acima detodas. O conceito que lhe inspirei é como uma tatuagemgravada em sua alma, que nada nem ninguém poderáapagar jamais. Mas devo reconhecer que Mariné foi porsua vez capaz de me compreender e de me correspondercom sinceridade, com naturalidade, rendendo-me, alémdisso, obediência inteligente, antítese da obediência cega,que torna as mulheres tolas.

– Eu considero, senhor De Sándara, que é difícilalcançar tais comportamentos e adaptações, mas presumoque isso coloca a criatura humana tão perto da felicidadesonhada, que o simples fato de saber que pode ser con-quistado me estimula fortemente a procurar, quantoantes, posições de tão alto equilíbrio e compreensão.

Arribillaga recebeu por resposta um sorriso de sig-nificado duvidoso. No primeiro instante, acreditou ver neleum total consentimento, mas não tardou a reparar queaquilo havia repercutido fortemente em seu íntimo, fazen-do-o recordar que sempre, em seus ímpetos de entusias-

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mo, a consciência devia assisti-lo. De soslaio, tratou deobservar seu interlocutor, cuja atitude plácida, tranqüila,contrastava claramente com os golpes certeiros provenien-tes de seu juízo. Não ignorava, pois a experiência lhe haviamostrado isso, que este apontava sempre para o coraçãodas questões, e que jamais apertava em vão o gatilho aoexercitar seu sereno pulso. Tinha absoluta segurança deque De Sándara conhecia a fundo as alternativas do proces-so psicológico que se cumpria nele e, além disso, estavacerto de que suas palavras e atitudes, ainda que nessemomento lhe produzissem ressentimento, não tinham outrafinalidade que a de assessorá-lo em tais alternativas, preve-nindo-o contra a repetição de crises morais como as queamiúde havia experimentado.

– O que acabo de relatar a você – De Sándara conti-nuou – certamente não é algo impossível. A condição é queo homem saiba dominar sua natureza passional, seusimpulsos, suas reações instintivas. Quando se pensa hojeuma coisa e amanhã outra, quando se empreende a realiza-ção de um projeto para em seguida abandoná-lo, não seconsegue outra coisa que diminuir a própria capacidadecriadora. Retire você as conclusões, amigo Arribillaga. Poresse caminho, em que vai poder acabar o homem?

– Vai acabar na perfeita negação de si mesmo.– E por que você pensa assim? – De Sándara inqui-

riu, realçando a sutil pergunta.– Porque teria negado à sua pessoa o direito de ser e

fazer o que se propôs em horas de lucidez. A frase não passou dali, pois Cláudio de súbito sen-

tiu como se um pensamento com queimor de urtiga lhehouvesse roçado a pele. Recuperou-se, porém, e, aferrando-se inesperadamente aos últimos bastiões de sua presunção,disparou um cartucho para o ar, esperando atrair com issoa atenção de seu interlocutor:

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– A título de simples comentário, senhor DeSándara, vou me permitir relatar um fato sobre o qual eutenho lá minhas certezas. Depois de desfrutar por uns ins-tantes a companhia de uma mulher, experimento umanotável atração pela minha, cujas virtudes se mostramainda mais salientes e valiosas para mim. Tenho grandeconfiança em que essa circunstância haverá de me imuni-zar contra os perigos de qualquer embriaguez passional,caso eles ocorram.

– Não lhe parece que isso seria confiar em demasiana miragem dos sentidos? Eu não creio, em absoluto, quevocê seja dos que sucumbem nos braços das debilidades,mas, de qualquer modo, me sinto no dever de adverti-lo deque tal confiança poderia minar seus princípios e fazê-lopassar por mais de uma experiência amarga. É indispen-sável, meu amigo, precaver-se a tempo da ingenuidadecom que esses assuntos costumam ser encarados. Alémdo mais, leve em conta que nem sempre nossas atuaçõessão interpretadas em sua exata dimensão. Mas não desa-nime; tenho para mim que você chegará a possuir um cla-ríssimo conceito da vida superior. E lhe direi mais: perse-vere, e você me dará a alegria de vê-lo incorporado defini-tivamente a esse mundo reservado às almas que se esfor-çam, o qual, queira-se ou não, é a meta ideal cobiçada pelohomem desde que passou a ter noção de sua existência.

– Seus bons votos haverão de me servir de alento,senhor De Sándara, não tenha dúvida sobre isso – mani-festou Cláudio, que no íntimo se pôs a considerar longín-qua aquela fascinante perspectiva.

Nesse meio tempo, Mariné e Griselda descansa-vam do intenso giro que tinham feito pelo centro da cida-de, estiradas preguiçosamente sobre as poltronas davaranda.

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Quando De Sándara e Cláudio entraram em casa,o murmúrio das vozes das duas guiou-os até elas.

– Ora, que surpresa!... – De Sándara exclamou. –Não pensei que já tivessem voltado.

– E olhe que estivemos ativíssimas – respondeuMariné, aproximando-se dele. – Percorremos lojas até nosfartarmos, e ainda nos sobrou tempo para este momenti-nho de descanso. Vocês também devem ter andado muito,com certeza.

– Muitíssimo.– Precisam então tomar algo estimulante. Vou cha-

mar o criado.– Não se preocupe conosco, Mariné. Voltamos revi-

gorados – De Sándara manifestou, dirigindo a seu amigoum olhar expressivo.

Em seguida, perguntou por sua tia.– Chegou quase ao mesmo tempo que nós –

Griselda informou.– Então, vou buscá-la.E, dizendo isso, afastou-se, pensando sem dúvida

no prazer que lhe proporcionaria com essa pequena ama-bilidade.

Griselda fez uma alusão favorável às atenções queDe Sándara dispensava a Cristina, e Mariné, com a bene-volência com que costumava falar dela, referiu-se ao valorque ela dava a tais mostras de carinho, as quais, por outraparte, pareciam ser um reclamo dos anos. Enquanto fala-va, observou que Cláudio permanecia em silêncio, ausen-te dali, como que travado quem sabe por que preocupação.Em vista disso, e a fim de não lhe forçar a atenção, optoupor calar-se. Com toda a delicadeza, pretextando a neces-sidade de dar uma ordem à criadagem, afastou-se um ins-tante, deixando-os a sós. Também Griselda havia observa-

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do o fato, considerando mais oportuno permanecer naexpectativa.

Nada que um simples olhar pudesse captar explica-ria a estranha mortificação que obscurecia o semblante deCláudio. Somente ele, acostumado a examinar o que acon-tecia nos recessos de sua consciência, sabia, com certeza,que aquilo que nesses momentos turbava sua serenidadee reprimia as boas disposições de sua alma – comumentealegre, vivaz, comunicativa – tinha sua causa em sutisvestígios de suscetibilidade e de amor-próprio.

De repente, experimentou um desejo incontido deretrair-se de qualquer presença que não fosse a sua pró-pria, e, decidido a refugiar-se na solidão de seu quarto,deu uma desculpa trivial a Griselda e se retirou, prome-tendo não demorar.

Começou, então, a percorrer o aposento de um ladopara outro, até que, deixando-se cair sobre a beirada dacama, ali permaneceu sentado, com a cabeça baixa e asmãos cruzadas.

Era forte e insistente o repicar de seu campanáriomoral chamando à oração, mas o clarim que em tom deguerra conclamava seus pensamentos era também de talforma vibrante que, nesse momento, ele não pôde sub-trair-se ao torvelinho que ameaçava envolvê-lo.

Sentia que se agitavam em todo o seu ser, disputan-do o triunfo, as duas forças antagônicas de sua natureza,que lhe anunciavam a proximidade de um desenlace cujorumo ele mesmo deveria decidir. Sua visão interior, con-centrada no cenário de seu pequeno mundo, percebeu quenele se alinhavam, rancorosas e ameaçadoras, as reaçõesdo instinto, o qual, disposto a não ceder, lutaria até o fimpara reassumir o tirânico império que havia exercido sobreele. Encabeçando a rebelião, viu desfilarem fugazmente as

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tentações, o autoritarismo, a licenciosidade, os prazeresmundanos, a cobiça sensual, que pretendiam ainda seduzi-lo com o brilho de seus ouropéis, e, por detrás deles, erguen-do-se altivo, despojado de sua inofensiva aparência, identi-ficou o temível felídeo, o culpado das agitadas contendastantas vezes desencadeadas nele: seu amor-próprio, esseinvisível inimigo que se eriça furioso e salta ante a menorcontrariedade, levando aos mais diversos desatinos.

A essa altura de sua observação interna, Cláudio sedeteve. Acabava de compreender o perigo a que o haviaexposto, uma vez mais, sua néscia suscetibilidade, desen-cadeada imperdoavelmente. Uma indescritível sensaçãode triunfo invadiu-lhe o ânimo e projetou-se sobre seurosto, até então contraído pela dolorosa excitação. Ali,frente às horríveis hostes engendradas pelas paixões,dominando tudo a partir de posições as mais altas, suavisão, livre de sombras, contemplava as falanges imponen-tes do espírito, impondo urgência na rendição incondicio-nal do implacável inimigo.

Protagonista e única testemunha do que acabava deocorrer nas intimidades de sua consciência, Cláudio dei-xou-se inebriar pela inefável sensação daquele triunfo quelhe restituía a paz e a felicidade por um instante perdidas.

Aquilo durou tão-somente o tempo que os demaislevaram para regressar, e Cláudio chegou mesmo a pensarque ninguém havia reparado em sua ausência.

Meia hora mais tarde, durante o almoço, a alegriabatia palmas nos corações. Talvez se pudesse dizer queaquilo era uma tácita homenagem à brilhante vitóriaalcançada numa batalha que se travara em silêncio, nasprofundezas da alma.

Uma sesta reparadora e um prolongado passeiopelas montanhas, ao cair da tarde, terminaram por tonifi-car grandemente o ânimo de Cláudio.

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Às delícias da excursão também se somaram asque lhe eram proporcionadas pela confiança em si mesmo,cuja manifestação ele agora sentia em si, com clara cons-ciência das potencialidades que o exercício da vida supe-rior fora acumulando em seu ser. Já não se veria na difí-cil situação de ser abandonado por essa confiança, quan-do os brios de sua vontade decaíssem.

A força dos conhecimentos essenciais proporciona-dos por Ebel De Sándara lhe havia permitido triunfar eobter resultados positivos, através das múltiplas contin-gências que se deveram exclusivamente à imperícia nacondução de seus impulsos; e, nas asas dos elevados gozosestéticos que tudo isso lhe inspirava, pronunciava-se naintimidade de sua alma a certeza de que a vida começavaa oferecer-lhe, em maior volume, os encantos reservadosao homem que consegue aprofundar-se em seus segredos.

De Sándara repetiu várias vezes aqueles passeiospela cidade, em companhia de seu amigo. Embora pudes-se parecer que não respondiam a outro motivo que nãofosse o de levá-lo a conhecer diferentes pontos da mesma,bem como a favorecer suas observações sobre modos devida e costumes da população, tais passeios sempre dei-xavam em Cláudio algum elemento a mais para fortaleceras novas posições que espiritualmente ia escalando.

Certa noite, convidou-o a conhecer o clube que elefreqüentava, em cujo seio se reunia a nata da intelectua-lidade mexicana.

Nessa oportunidade, disse a Cláudio: – Não há dúvida que a presença de nossas espo-

sas aumentaria a satisfação que esses passatempos nos

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podem oferecer, mas a verdade é que elas gostam muito deestar a sós para suas conversas confidenciais, e até necessi-tam disso.

Cláudio percebeu nas palavras de seu amigo umaargumentação algo forçada para justificar o fato; contudo,aceitou de bom grado o convite.

– O senhor invoca uma razão que nos libera dopesar de deixá-las em casa – respondeu, cortesmente. –Estou às suas ordens, senhor De Sándara.

– Dedicaremos então esta “fuga” à observaçãodos homens no saudável exercício de seus músculosmentais.

Dito isto, com o espírito entusiástico com que sepreparava até para as pequenas coisas de seu agrado,informou a Cláudio que aquela era uma das noites que oclube destinava a recrear seus associados com um debatede caráter filosófico, no qual faziam uso da palavra um oumais membros, escolhidos por sorteio dentre aqueles queofereciam voluntariamente seu concurso. Com efeito, des-filavam pela tribuna homens de ciência, polemistas, pen-sadores e até sofistas, que submetiam seu saber ao vere-dicto de um público igualmente erudito, que amiúde acos-sava o orador com perguntas, ou lhe barrava o avançocom objeções e réplicas, promovendo-se não poucas con-trovérsias.

A informação interessou a Cláudio, avivando nele adisposição de assistir.

Daí a pouco, ambos atravessavam as espaçosassalas do elegante lugar de reunião, já animado pela pre-sença de numerosas pessoas, muitas das quais foramapresentadas a Cláudio, que em muito valorizou essaoportunidade que se lhe oferecia de conhecer pessoalmen-te tantas figuras de prestígio.

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Ao anunciarem o início do ato, De Sándara tomouArribillaga pelo braço e, encaminhando-o com prestezapara o auditório, disse em tom alegre:

– “Mon petit”, o espetáculo vai começar. O salão era um recinto mais largo do que compri-

do, que podia facilmente acolher umas duzentas pessoas.Da ampla porta de acesso, junto à qual ambos os amigosse detiveram por um instante, via-se um estrado ao fundo,coberto, como o mais da sala, com tapete de tom claro, e,de frente para ele, repetidas filas de cômodas poltronas,dispostas em semicírculo.

Cláudio já estava ciente de como se realizavam taisdebates.

A direção dos trabalhos estava a cargo de um mem-bro daquela instituição, o qual, aberto o ato, convidava oorador escolhido a retirar, ao acaso, de uma urna especial-mente preparada para tal, dois envelopes com perguntasali depositadas pelos que se interessaram em fazê-las. Oorador podia escolher livremente entre as duas ou respon-der a ambas, se assim o desejasse. Às vezes, quando a dis-sertação era breve, ou quando se tratava da aceitação par-cial das perguntas, outro lhe sucedia no uso da palavra.Aconteceu assim naquela noite, já que o orador, após res-ponder com brilhantismo e amplidão uma delas, declarou-se incompetente para a outra.

A sala premiou-o, não obstante, com insistentesaplausos, inclusive Cláudio, que, excelentemente impres-sionado, ofereceu-lhe os seus, numa clara demonstraçãode assentimento.

O orador abandonava o estrado, quando se ouviu queo diretor anunciava a De Sándara como segundo participante.

Cláudio voltou-se para o amigo num súbito movi-mento de surpresa, mas ele já havia deixado seu assento

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e se dirigia rapidamente para a tribuna. Dominando oespanto e festejando dentro de si aquela novidade, que ocolhera tão desprevenido, pôde observar a simpatia comque o público recebeu a De Sándara, acompanhando seuacesso ao estrado com insistentes aplausos.

Pareceu a Cláudio ter visto, no sorriso que de longeseu amigo lhe enviou, a satisfação de haver-lhe deparadotão viva surpresa.

Conforme a norma habitual, o diretor começou aler em voz alta as perguntas que De Sándara ia retirandoda urna, com o nome daqueles que as subscreviam.

A primeira assim definia as inquietudes ideológicasde seu autor, conhecido escritor de forte tendência liberal:“Deus existe? O senhor pode nos provar sua existência?”A segunda foi feita por um médico, nos seguintes termos:“Qual é sua opinião sobre o elo perdido, origem de tantasteorias sobre a gênese do homem?”

De Sándara tomou das mãos do diretor as folhasque as continham e, colocando-as sobre a tribuna, exami-nou-as brevemente, passando em seguida a cumprir suaincumbência.

– Senhores – disse ele, – ao pronunciar-me a res-peito da primeira indagação, dou por sabido que, se aCriação que nos rodeia e da qual fazemos parte não é elo-qüente o bastante, por si mesma, para persuadir o homemde que a existência de Deus é inegável, muito menos pode-rá sê-lo a palavra de um semelhante, por mais que seempenhe em demonstrá-lo. Feito este esclarecimento,entremos de cheio no assunto. Quando se afirma queDeus existe, é absolutamente necessário acompanhar talafirmação com uma proposição desvinculada de toda idéiaque o limite ou impeça concebê-lo em sua imensidão, oni-potência e infinitude. Partindo da base de que a Causa

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Primeira é Deus e não tendo a nosso alcance nenhum servisível a quem possamos atribuir o ato da CriaçãoUniversal, é lógico que reconheçamos a Deus comoSupremo Criador; mas a capacidade para considerar suaexistência não depende dessa existência em si, senão damedida na qual cada ser humano a reconheça, a sinta e apalpe individualmente.

“Há duas coisas que são, sem dúvida alguma, inse-paráveis, porquanto constituem uma mesma e absolutaverdade: a Criação e seu Criador. Uma pressupõe comtoda a certeza a presença da outra, de maneira que, se aCriação existe – o que nos consta, porque a vemos, a pal-pamos e dentro dela vivemos –, é impossível pôr em dúvi-da a existência de Quem, havendo-a concebido primeiro,depois a plasmou em suprema realidade, ditando aomesmo tempo as leis que mantêm seu equilíbrio e velampor sua conservação eterna. A existência de Deus, senho-res, se prova pela própria existência de tudo o que nosrodeia, por nossa própria existência e, sobretudo, pelaprerrogativa que nos foi concedida de nos fazermos essapergunta e também de nos darmos a resposta, servindo-nos do conhecimento que se adquire através do estudo, daobservação e da experiência, conscientemente realizadosno viver diário.

“Acabo de expressar que Deus, em razão de sua ina-barcável dimensão cósmica, não pode ser limitado; masdevo acrescentar também que, sendo isto tão fácil de com-preender, nem sempre foi tido em conta pelo homem. É umfato certo, apesar de paradoxal, que ele pretendeu fazerDeus à sua imagem e semelhança, sem medir, provavel-mente, as proporções nem as conseqüências de tamanhosacrilégio. Não devemos esquecer que as crenças lançaramsuas raízes na ignorância das tribos primitivas. Em pleno

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estágio de rudimento mental, carente de entendimento,cada tribo adorava os deuses dos quais se apropriava. Como passar do tempo e o avanço do desenvolvimento humano,mas sempre num clima de ignorância e de ingênua creduli-dade, as religiões fizeram algo igual, ao levarem suas cren-ças ao convencimento de que Deus lhes pertencia, porqueassim seus sustentadores haviam estabelecido. E nãosomente isso; cada seita O ia conformando segundo as con-veniências e as exigências dos respectivos dogmas, apresen-tando-O velado, naturalmente, pelos chamados ‘mistérios’.

“As crenças, senhores, paralisam a nobre função depensar. Ditosos os olhos do entendimento não contamina-do, os quais, diferentemente dos que foram cegados pela fédogmática, podem nutrir sua vida com os ensinamentosesparzidos por Deus na Criação! O dogma pôde ser útil aoshomens nas épocas de barbárie, de atraso moral, intelec-tual e espiritual, mas não nos tempos de hoje, que estãomarcando os câmbios mais surpreendentes em quasetodas as ordens do viver humano. Pura e simplesmente, odogma é hoje um contra-senso; insistir em sua manuten-ção é pretender fechar os olhos daqueles que conseguiramultrapassar o obscurantismo espiritual em que a humani-dade ainda está imersa. O homem ama a verdade, anseiapor ela, mas, para não ser aprisionado pelo engano, devebuscá-la com sua razão, e essa razão deve ser unanime-mente respeitada. Não se pode pretender, atribuindo à fécega virtudes que ela não tem, excluir das possibilidadeshumanas as funções de discernir e de julgar, e submeter ohomem, sem prévio discernimento de sua parte, ao acata-mento de fórmulas que adulteram a verdade.”

– Senhor De Sándara – expressou um dos presen-tes, elevando sua voz sobre o inquieto murmúrio da sala,– nós não podemos nos rebelar contra os dogmas!... Como

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cristão, eu me recuso a escutá-lo. Opor-se aos dogmas édeclarar-se abertamente contra a verdade revelada, que é osacro sustento da religião. Além do mais, poderíamos negarque em grande parte os dogmas constituem fatos históricos?

– O senhor me permita dizer-lhe que os dogmas, pelofato de serem imposições de caráter religioso, são incompa-tíveis com a História. Por outra parte, nos próprios textosbíblicos aparecem contradições tremendas, que em vão setentou emendar. A razão humana as descobre tão logo sedispõe a analisar a fundo esses textos. É sabido que aHistória, para ser verídica, deve estar legitimada por teste-munhos incontestáveis; por verdades que concordem comnossa realidade interna, que é a que deve animar o juízo doshomens. Dali deve surgir a aceitação ou a não-aceitação desuas passagens. Os fatos históricos só podem ser conside-rados indiscutíveis quando estão sustentados por realida-des que liberem a posteridade de toda suspeita acerca dafidelidade de sua origem. Não ocorreu tal coisa, por certo,com os fatos mencionados nas narrativas bíblicas, pois nãoestão avalizados por nenhum certificado responsável, comoseria o testemunho dos historiadores da época. Para exaltaras figuras de seus protagonistas, insistiu-se em divinizá-los,quando deveriam ser, pelo contrário, humanizados, paraque pudessem servir de exemplos instrutivos para o gênerohumano. Não existe façanha nem virtude que nos possamser acessíveis, e menos ainda compreensíveis, num ente“divino” que pretende pôr, ante nossos olhos atônitos, suasaptidões para o milagre; mas elas existem, sim, em qual-quer ser humano que, sendo como todos os demais, nosmostra, com seu saber e com seu exemplo, ao menos umaparte das grandes prerrogativas que seus semelhantespodem alcançar no caminho da evolução.

“Quanto aos dogmas”, continuou o senhor DeSándara, atento à crescente expectativa do público, “afir-

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mo que Deus não estabeleceu nenhum. Eis aí uma verda-de, como também é verdade que Deus não excluiu jamaisninguém de sua grande família humana, que criou para quehabitasse este mundo. Não chamou de hereges aos quedivergiam do verdadeiro modo de pensar a respeito d’Ele,nem excomungou tampouco ninguém, e menos ainda pode-ria aprovar que algum de seus filhos o fizesse, porque essaatitude encerra um princípio de desamor, um mal-querer.Se Deus permitiu que povos que o negam, povos ateus, per-juros, se colocassem nas posições de vanguarda da ciência,não temos com isso a evidência de que Ele continua consi-derando esses povos como filhos de sua Criação?

“Todo homem deveria aspirar a esclarecer o que arazão resiste a admitir como verdade. Por exemplo, as sus-tentadas afirmações sobre a existência de um inferno quecondena os pecadores ao fogo eterno. Em que verdadeessa afirmação se apóia? Pode arder o espírito, que é ima-terial e, por isso mesmo, incombustível? Mas admitamosque sim; admitamos que o espírito possa queimar-se, quepossa arder eternamente. Em tal caso, que conseqüênciaútil teria para a vida humana a condenação do espírito aofogo eterno?... Até quando, senhores, até quando a huma-nidade terá de seguir aferrada a uma crença que carece detodo sentido instrutivo?! As faltas cometidas pelo homemnão podem ser saldadas com um martírio interminável,com um suplício perpétuo. Não pode caber, pois, na imen-sa grandeza de Deus, tamanha crueldade; porém, issosim, ela pode caber naqueles que apregoam isso e atemo-rizam as pessoas com semelhante disparate. Deus nãopode ter criado o prodigioso ser humano para aniquilá-lodepois inexplicavelmente. Isso implicaria a violação de leisexpressas, destinadas a regular a evolução do homem;implicaria uma negação que a inteligência humana não

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pode absolutamente admitir. Deus criou o homem para que,através de todos as sacudidas e experiências que acompa-nham sua passagem pelo mundo, ele aprenda a conduzirsua vida pela existência que lhe foi determinada e que, pre-sumo, não tem fim. As faltas que cometer, ele mesmo, porsua única e exclusiva conta, poderá e haverá de saldá-las.Eis aí o prodígio da lei de evolução, a qual, conscientemen-te interpretada e vivida, converte o homem em seu próprioredentor. Poderia haver algo mais formoso, mais consoladore sublime para ele do que se sentir capaz de realizar, por simesmo, uma tarefa tão edificante, cuja glória haverá tam-bém de lhe pertencer? Isto não é melhor do que acumularfalta sobre falta, confiando com fé cega – e em alguns casoscom não pouca especulação – que alguém com poderes divi-nos nos possa absolver das culpas? Analisemos serenamen-te em qual dos dois casos o homem é mais digno de si, deseus semelhantes e de Quem o criou.

“Muito já se falou da verdade revelada; aqui mesmo,nesta sala, acaba de ser mencionada... Qual é, senhores,essa verdade revelada que o homem não pode conhecer,que lhe é inacessível? A verdade revelada por Deus, amaior, a mais transcendental, é Sua própria Criação. Eis aía grande verdade revelada!... Dessa Criação, dessa verdaderevelada por Deus, acessível – permitam-me a afirmação –a todas as mentes humanas, se desprendem os fios queconduzem a todas as outras verdades que, no seu devidotempo, também serão reveladas. O homem que se propõeconhecer o que há dentro de uma montanha, que represen-ta, façamos de conta, uma pequeníssima parte da grandeverdade, terá inevitavelmente de levar a cabo esse propósi-to penetrando em suas entranhas com o entendimento ecom a ação, seguir seus veios, descobrir suas jazidas. Sealguém lhe proibisse isso, assegurando-lhe que deve se

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conformar em apenas admirar a montanha, continuará elasendo uma verdade revelada, mas uma verdade reveladaem cujo fundo sua inteligência não penetra. A mentehumana, repito, tem livre acesso a todas as verdades, masdeve, isso sim, seguir um processo de rigoroso adestramen-to mental e psicológico, um processo de cultura interiorque lhe torne possível elevar-se até elas.

“Para o homem em pleno exercício de sua liberda-de de consciência, não há dogma algum atrás do qual averdade possa se manter oculta. Isto é muito lógico. É per-feitamente compreensível que aquele que pensa, que exer-ce essa função na plenitude de uma mente normal e sen-sata, haverá de saber descobrir a verdade ali onde ela seencontra, e que, se for o caso, saberá – por força dessamesma sensatez – recusar-se a aceitar, por exemplo, quepossa caber a um planeta a possibilidade de introduzir-senum fio de cabelo para ensinar ao homem como evitar acalvície. Todas as faculdades da inteligência são pródigasquando utilizadas continuamente, mas as crenças, senho-res, não ativam de modo algum seu exercício. As crençasadormecem a inteligência; atuam como hipnóticos. A vidaé pensamento e ação; e a vida se debilita, desfalece, morre,quando a mente pára de pensar, quando por efeito dessaimobilidade a vontade se relaxa, quando as células se con-somem, porque lhes falta a atividade que as reanima eestimula. As crenças são, por tal causa, um meio de opres-são, uma tirania imposta ao espírito humano; são a mortelenta do espírito, o qual, não podendo evoluir em cumpri-mento de seu alto destino, se consome dia após dia, sécu-lo após século...

“O homem não é o que é pelo que come, mas simpelo que pensa. Se o inibimos de exercer essa função, se opomos dentro de uma fôrma de ferro para impedi-lo de

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pensar, que consciência poderá alcançar de seu existirneste mundo? Se mais tarde perguntássemos a essemesmo homem o que fez ele de seu ser, de seu espírito,provavelmente nos responderia: ‘Acreditei; tive fé’. Fé emquê?... Por acaso está vedado a ele conhecer a verdade?Deus não pode tê-lo feito para semelhante absurdo; nemcondená-lo a ser um ente vulgar, um ente que não pensa,um ente cujo espírito está submetido à escravidão de umacrença. Prova disso é o magnífico mecanismo psicológicode que o dotou, mediante o qual lhe permite conduzir-seindependentemente. Cada ser humano está constituídopor uma alma e por um espírito. Além do mais, cada umpossui uma psicologia diferente, peculiar, quer dizer, umapsicologia individual. Por que, então, se tem insistidodurante séculos em torcer o rumo que a humanidadedevia seguir, adormecendo a uns e a outros com crençase equívocos? Por acaso se ignorava que induzir o homema pensar por ditados e a sentir o que lhe é inculcado impli-ca transgredir as leis universais, que consideram delitotudo o que tende a favorecer a absorção do indivíduo pelamassa? Ignorava-se que isso tende a fundi-lo nesse con-junto nômade que segue um rumo falso, porque o rumoverdadeiro o homem só pode chegar a conhecer por simesmo? Desdenhar pejorativamente ou, pior ainda, exe-crar, como tantas vezes já ocorreu, os que fazem uso legí-timo de sua razão para discernir o justo do injusto, a ver-dade da não-verdade, é ofender a vontade de Deus, queinstituiu essa faculdade para que o homem alcançasse aelevação mental, moral e espiritual que corresponde à suacondição de humano.”

– Permita-me uma interrupção, senhor De Sándara– expressou neste ponto o autor da pergunta. – Desejoesclarecer que, se eu tivesse a segurança absoluta acerca

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da inexistência de Deus, não haveria solicitado opiniãoalguma sobre este particular; a minha me teria bastado. Oque eu nunca pude aceitar são, simplesmente, as concep-ções com as quais se pretendeu nos ilustrar sobre um Serde tão elevada hierarquia. A teologia não conseguiu, atéaqui, me inspirar convicções firmes, que eu tampoucopude sustentar mediante o estudo dos dogmas que funda-mentam cada religião, nos quais a idéia da existência deDeus está muito longe de ser, segundo meu critério, a quecorresponde a tão imensa paternidade. Em muitíssimasocasiões, buscando satisfazer as dúvidas manifestadas emmim por natural influência das leis que governam nossarazão, me senti desconcertado. A filosofia, com seu espíri-to reflexivo, nos expressa suas conclusões a esse respeitocom outra amplidão, é verdade, mas não encontrei nelauma demonstração que me chegasse com a evidência ine-quívoca de uma realidade. É na verdade difícil formar umjuízo claro e acabado das coisas quando cada afirmaçãoque nos dispomos a analisar se transforma, de repente, naantítese daquilo que estivemos analisando antes. Assim,pois, diante do que jamais satisfez as demandas de minharazão, e diante do que, em tantas ocasiões, eu tive de con-siderar absurdo ou carente de toda verdade, não titubeeiem me declarar liberado mental e espiritualmente; diantede Deus, porém, minha posição é outra, pois eu O sintointimamente e O admiro em Sua excelsitude e grandeza.Interessava-me muito particularmente, amigo DeSándara, conhecer como o senhor concebia a Deus; daíminha pergunta; uma pergunta um pouco audaz, talvez,mas cuja resposta me satisfez sobremaneira. Honra agrandeza de Deus e, por outra parte, honra a esse súditoda Criação, feito “à Sua imagem e semelhança”, a afirma-ção de que a verdade, a grande verdade, é acessível a seu

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conhecimento, e é também o caminho pelo qual haverá deaproximar-se a Ele. Talvez eu não tenha compreendidobem alguns pontos de seu pensamento, mas espero que osenhor me dê a oportunidade de esclarecê-los numa pos-terior conversa.

– O autor da pergunta acaba de se manifestar satis-feito, senhores – disse De Sándara, depois de dar a eleuma resposta cortês; – eu gostaria, porém, desde que issonão representasse um esforço para os que me ouvem, queme concedessem mais alguns minutos para completarminha exposição.

A um sinal de aprovação do diretor e do público, elecontinuou:

– O relato simpático que fez o inquiridor me ofere-ce a oportunidade de fazer referência a um ponto que, deoutro modo, e por razões óbvias, eu deixaria de abordar.Nunca me cansarei de insistir sobre a conveniência de nãose fechar o entendimento à investigação causal, por meioda qual até o mais ateu pode chegar a compreender que,não tendo sido o homem o autor da Criação, alguémnecessariamente deverá ter sido, alguém que reservousabiamente para si o governo de todo o universo. Quantasvezes já vimos o ateu pôr as lentes escuras do cético, usa-das por Pirro, e anunciar, com uma contumácia a toda aprova, que nada sabe da existência de Deus!... E isso ape-nas porque o Grande Desconhecido não se fez presente aseu juízo tal como lhe parece que deveria acontecer. Pois éassim, senhores; o ateu é com freqüência o mais fanáticodos crentes: crente na deidade que conforma seu “eu” pes-soal. Nega a existência de Deus, mas no fundo o coleópte-ro da dúvida lhe carcome as entranhas... Eis que, porém,apesar do ceticismo de tantos, o Grande Desconhecido, aquem com empenho se quer privar de existência, é, para-

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doxalmente e em síntese, a própria existência de tudoquanto existe; e é dever da criatura humana senti-Lo ecompreendê-Lo, mas através do conhecimento, porquesomente por meio dele será possível amá-Lo de verdade,ou seja, conhecendo as razões supremas desse amor queé fonte inesgotável de eternidade.

“Pude encontrar pelo mundo muitos ateus e tam-bém muitos crentes, e a estes eu tive de considerar tãoateus quanto o maior ateu. Mesmo entre os que mais sevangloriavam de serem crentes sinceros da religião queprofessavam, identifiquei os ateus. Em realidade, costu-mam ser estes os mais temíveis, porque, enquanto procla-mam a Deus com os lábios, execram e negam ignominio-samente Seu Nome com os ocultos e indignos procedimen-tos que têm. São eles os que, em todos os tempos, arma-ram o braço de seus confrades para ferir de morte a seresinocentes, pela simples razão de não concordarem com ospensamentos emanados de seus cultos. São também osque, por essa mesma causa, escarneceram dos gênios, dosheróis, dos inventores ilustres e dos pesquisadores quechegaram com sua ciência a descobertas maravilhosas.Quantas grandes figuras – a História o declara – não sofre-ram a mais escandalosa hostilidade e a perseguição maisimpiedosa por parte dos doadores de graças e insufladoresde crenças!... Em cada benfeitor da humanidade houve,não obstante, uma chispa divina em eclosão, uma supe-rioridade e uma grandeza da qual careciam os encoleriza-dos crentes que os acusavam de ímpios, de diabólicos e dehereges. Prova muito evidente do ateísmo do crente são oscrimes da Idade Média e do Renascimento. Não foramengendros monstruosos desse ateísmo os que prepararamsuplícios e fogueiras para destruir e calcinar as carnesgloriosas de tantos mártires, que pagaram inocente tribu-to à ingratidão humana sustentada pela barbárie? Não

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pertenceram à família de crentes ateus, sempre recalci-trantes, os que, falseando o conceito das doutrinas quediziam professar, negavam a Deus com seus atos? Porisso, afirmo que quem simplesmente crê em Deus fazentrega de sua alma àqueles que hão de torná-lo intole-rante e intransigente com o próximo; ao contrário, quem Osente e empenha sua vida em se aproximar a Ele peloconhecimento, este sim, sabe amar a seu próximo como asi mesmo, ainda que seus pensamentos não coincidam.”

– O senhor está atacando abertamente a religião,como se ela não tivesse cumprido através dos séculos, deforma ampla e apreciável, seus piedosos objetivos, atravésde sua obra redentora e civilizadora!... – ouviu-se de umsenhor de idade, que, com mal contida irritação e já de pé,mostrava às claras a determinação de retirar-se.

Um movimento de desordem estendeu-se pela sala,de onde surgiam vozes de protesto e de aprovação aomesmo tempo.

– Senhores, não terminei ainda. Peço, portanto,que me escutem com calma até o final – De Sándara repli-cou, elevando o tom da voz, que ressoou vibrante e bemnítida na sala. – Afirmo que não é meu propósito atacarnenhuma religião, e sim convidar todas elas a que entrempelos foros da realidade e se despojem de todo o seu arti-fício, de suas sugestões e de tudo o que elas mesmassabem que não é verdadeiro, para se reencontrarem, seisso for possível, humana e espiritualmente, numa com-preensão ampla dos altos fins que esperam pelo homem epela humanidade. A verdade é una e indivisível; é o quefoi, o que é e o que será. A não-verdade carece dessa vir-tude; nunca foi o que pretendeu ser, não o é, nem o serájamais. Meu esforço tende a pôr a descoberto a falsidade,a mistificação e o embuste, trilogia esta que resume o pen-samento da grande impostura. Que pode temer então esta

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ou aquela religião, possuidoras da verdade, segundo elasmesmas proclamam? Que inquietude pode causar-lhes oque eu diga? Acaso minhas palavras são tão contunden-tes, que essa “verdade” não resiste a seu influxo? De todamaneira, senhores, convenhamos que, se Deus nos deu ouso da razão, é para discernirmos e julgarmos aquilo queé justo e verdadeiro em face daquilo que não o é, fazendoisto com plena noção de nossa responsabilidade ante oCriador. A esta altura da idade histórica da humanidade,impõe-se um novo tratamento espiritual para todos oshomens do mundo, e a esse câmbio devemos dispor-nosde forma compreensiva, porque a verdade mesma revela-da por Deus, a Criação, nos mostra em suas constantesmudanças que tudo nela está submetido a permanentetransformação. Ao ritmo dessa transformação, tambémhaverá de florescer nos seres humanos uma nova nature-za; uma natureza forte, enaltecida pela renovação internalevada a termo com toda a consciência. Isto, senhores, é oque de maior a mente e o coração dos homens podem edevem esperar. Os homens não têm de viver aferrados aopassado, como se tivessem resistência ou temor ao futuro,ao que há de vir; isso seria opor-se à evolução, ou seja, aoprocesso de emancipação do espírito. Eu entendo – edizendo isto encerro meu discurso – que as religiõesdevem fomentar a união, e não dificultá-la com irredutí-veis intransigências. E essa união, senhores, poderá serconseguida pelo acercamento mútuo e por um claro con-ceito do respeito reclamado pela convivência sadia, unidastodas as religiões e todos os seres no esforço por alcançaras altas verdades que ao homem será dado conhecer,experimentar e dispor, para levar adiante o grande proces-so de sua evolução.

A estas palavras finais seguiu-se um intervalo.Os assistentes, depois de se dirigirem ao “hall”,

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para o qual o salão abria suas portas, começaram a semovimentar pelas galerias, encaminhando-se a maioriaem direção ao bar.

Enquanto o diretor e um considerável grupo depessoas conversavam amistosamente com De Sándaranuma sala contígua ao salão, Cláudio, momentaneamenteimpedido de aproximar-se dele, conversava por sua vezcom vários companheiros, sem que por isso deixasse decaptar, através do burburinho que agitava o ambiente, oefeito produzido pelas palavras de seu amigo. Havia,naquele distinto conjunto, os que aprovavam sem reservase os que se declaravam abertamente contrários, ou insi-nuavam sutis objeções, e havia também aqueles que, comprudência, guardavam silêncio.

Finalmente, ambos os amigos puderam reunir-se,com a conseqüente satisfação por parte de Cláudio, queansiava dar livre curso a suas emotivas impressões.

Transcorrido aquele intervalo e de novo lotada asala pelo público, o diretor anunciou que o orador respon-deria, em seguida, à segunda pergunta.

De Sándara, do estrado, as mãos apoiadas na tri-buna, encarava a platéia com simpatia. Em seguida, dissesorrindo:

– Senhores, pediram-me que expressasse minhaopinião sobre o “elo perdido”. De minha parte, porém,vejo-me na necessidade de pedir que me desculpem se,sobre este ponto, eu não conseguir ser bem explícito, poisna verdade jamais me preocupei muito com a cauda, e simcom a cabeça...

Ouviram-se risos e um murmúrio do público.De Sándara deu início a sua exposição:– Eis aqui, sem preâmbulos, minha opinião. Partindo

da suposição de que já se tivesse chegado a admitir, numpleno acordo, que o famoso elo existe ali onde alguns cien-

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tistas acreditam tê-lo encontrado, e apesar do volume deprovas que nesse sentido pudessem ser reunidas futura-mente, considero que esse fato não resolveria o problemada ciência acerca das origens do homem, pois tal soluçãoestaria minada por um grande equívoco. Quero dizer comisto que a ciência haveria de ver-se, um dia, obrigada areiniciar suas buscas, orientando-se por outros caminhos.A simples idéia de que o homem possa descender domacaco é um insólito desmentido à criação do ente huma-no pelo Supremo Criador. Quatro são os reinos naturaisque os seres integram; afirmo isto, apesar das conclusõesa que chegaram as autoridades na matéria, ao classificá-los em somente três. Foi um erro ter incluído o homem,atendendo a razões exclusivamente biológicas, na escalados irracionais. Existe, sim, um elemento que é comparti-lhado por esse reino ou, dizendo melhor, que é comum atodos os reinos; esse elemento é o átomo, o qual nada tema ver, porém, com as possibilidades de desenvolvimento decada reino, e somente intervém como elemento portadorda energia universal. Devemos considerar que o homem éo único ser da Criação capaz de experimentar câmbios porprópria determinação. Isso explica por que, enquanto anatureza cumpre, através de ciclos existenciais de muitolonga duração, seu trabalho de seleção dentre as espéciesinferiores, a raça humana é particularmente impulsiona-da em seus avanços pela lei que governa a evolução. Poisbem, essa lei de evolução, freqüentemente restringida nocumprimento de seus altos objetivos pela ignorância que ohomem costuma ter de seus preceitos, pode chegar a regerseu destino com força imponderável. Eis aqui uma prerro-gativa que, por ser específica do gênero humano, estendeuma linha divisória ainda mais profunda entre o homem e oreino animal. Isso ocorre em virtude desse substrato mara-vilhoso denominado consciência, que só ele possui, graças

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ao qual é capaz de experimentar transformações psicoló-gicas extraordinárias e avançar sem limitações no caminhode seu auto-aperfeiçoamento, porquanto é ali, na consciên-cia, onde se verifica a evolução do espírito e onde este sepotencializa.

“O homem foi criado, pois, com uma individualida-de própria e dotado de todos os atributos indispensáveispara evoluir por si mesmo em direção a um fim superior.Tais atributos se concretizam numa mente com capacida-de retentiva e criadora, numa consciência onde se regis-tram seus adiantamentos e se verificam os câmbios trans-cendentais de sua evolução, e numa facilidade ou aptidãopara suportar e assimilar as experiências, filtro psicológi-co de decantação do néctar puríssimo do conhecimento,que oculta suas lições sob a aparência material dos fatos,sejam estes excepcionais ou comuns. Os mencionadosatributos configuram, com inteira clareza, um ser extraor-dinariamente constituído, que é animado, além do mais,por um espírito de essência eterna.”

Ao chegar a esta parte, um dos presentes, com evi-dente propósito de sondar a opinião do orador sobre umadebatida questão metafísica, pediu a palavra.

– Se o espírito – ele disse, – tal como o senhor acabade manifestar, é de essência eterna, torna-se perfeitamen-te aceitável que a perpetuação de sua existência se realizealternando etapas de vida física e extrafísica. Eu diria,pelo que pude concluir de suas palavras, que sua tese nãoestá em desacordo com a palingenesia.

– Embora o termo empregado pelo senhor tenhauma acepção muito ampla no que se refere à renovação ourenascimento da vida, tomarei dela, para não me desviar dotema, o que mais se aproxime de minha exposição. Assim,pois, sem considerar a fundo essa alternância mediante aqual o espírito perpetua sua existência através de consecu-

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tivas transmigrações humanas, vou me limitar a um pontoque, além de seu imediato interesse, se acha também maispróximo de nossas possibilidades; é aquele que concerne aoabandono que o homem pode fazer de uma vida durante operíodo de sua existência na terra, para renascer em outraeminentemente superior.

– Como pode acontecer tal coisa sem antes havermorrido? – objetou a mesma pessoa. – Teríamos que atri-buir isto a um milagre...

– Evidentemente, não se trata de nenhum milagre. Osmilagres são contrários à realidade, sendo por isso impossívelpara mim não deixar de rechaçá-los. Uma vida pode sermudada por outra, bastando apenas querer. O homem que,por própria vontade, se desprende de seus velhos e desgasta-dos hábitos, tecidos com preconceitos ou intenções oblíquas,mesquinhas, fechadas a todo discernimento; o homem que sedespe de vestes tão embaraçosas para adotar os valiosos eindestrutíveis trajes de uma concepção superior que transfor-me fundamentalmente seu modo de ser e, portanto, seu sermesmo, este homem acaso não abandona a vida que estavavivendo para renascer em outra? Temos também aquele quesuporta, ao longo de sua existência, períodos críticos, de pesa-res e sofrimentos. Dificilmente ele descobrirá como avançaraté a felicidade; entretanto, se conseguir isso, não se sentirárenascer em outra vida, tal a sensação de alívio proporciona-da pela mudança?... Vemos, então, que as mutações propíciasà evolução espiritual do homem, seus passos metódicos embusca de estados mais elevados de consciência, implicam bre-ves mas positivas supervivências, que o ser experimenta den-tro de sua presente existência. Isso é tão real que, depois dealgum tempo, custa recordar as formas anteriores de ser e depensar, e até se torna impossível voltar às mesmas. Ohomem, valendo-se de seu espírito, pode mudar os estadosde sua consciência, o que implica, tacitamente, trocar uma

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vida por outra de maior hierarquia moral e espiritual. Eisaí por que penso que é bom favorecer tais mudanças, jáque, além do benefício que elas trazem a curto prazo, sesaberá o que se pode esperar do regresso à terra após aviagem pelo além-túmulo... Bem, senhores, depois destabreve interrupção, vou adicionar que, se o espírito huma-no não tivesse a seu cargo a função de recolher tudo o queo homem realiza em sua vida, incitado pelas ânsias desuperar-se e de aproximar-se das fontes da Criação, estenão teria razão de existir, nem haveria, tampouco, umarazão válida para que se tivesse feito dele um possuidor detão admirável equipamento psicológico. Teria bastado quefosse como os irracionais, que carecem de todos os privi-légios a ele concedidos para sua perpetuação.

“Vou me referir, agora, a um elo verdadeiramenteperdido ou, dizendo com mais propriedade, ignorado, cujoachado poderia ser altamente benéfico para o gênerohumano. Esse elo é o que enlaça o homem com o Criador;o que o une ao Seu Pensamento, à Sua Vontade. Emsuma, esse elo é o espírito, submetido ao mais injustoabandono por parte do homem, o qual, apesar do espeta-cular progresso técnico e científico que caracteriza nossaépoca, permanece no mais absoluto desconhecimento damissão que esse espírito está chamado a cumprir, nãosomente como depositário da herança individual que elecustodia através do tempo, e não somente como entesuperior capaz de iluminar a vida humana, encaminhan-do-a para um destino mais de acordo com suas grandesprerrogativas, mas também como agente de enlace com omundo metafísico, que é o seu mundo, onde vibra conti-nuamente a palavra criadora de Deus.

“Não se trata, portanto, de concentrar-se na caudae, então, buscar conformações ósseas que denunciemnosso possível nexo com os símios. Insisto que, por esse

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lado, ainda que muito se ousasse proclamar o achado dasorigens do homem, a busca teria de ser reiniciada. É umempenho inútil, em verdade, buscar as pegadas que ates-tem nosso enlace com o suposto congênere aprisionadonos zoológicos. No mais aceitável dos casos, esse vínculodo qual tanto se fala estaria refletido no afã pouco edifi-cante de enraizar o homem na terra, ao invés de elevá-loàs alturas. Se bem que, encarando o assunto com umpouco de humor, também se poderia esperar que, um dia,se conseguisse acertar no alvo, ao simplesmente imputartão deslustroso parentesco – mais do que a razões deascendência atávica – ao inveterado costume que algunshomens têm de imitar e de copiar.

“Ao considerar que, em princípio, o que deve preo-cupar mais profundamente o homem é a descoberta desseelo que há de uni-lo a Deus, não existe em mim o propó-sito de diminuir o mérito dos esforçados paleontólogos,dedicados a encontrar um lugar adequado para seusachados, pois não admite desmerecimento algum o nobreafã que existe na aspiração de conectar os fios truncadosda História e dissipar o mistério que envolve a vida huma-na em seus alvores.”

– O senhor mencionou um elo cuja existência nãodeterminaria a origem do homem, mas sim seu destino –expressou, com muito interesse, um dos presentes. – Eulhe agradeceria um breve esclarecimento.

– Penso que não há de ser difícil induzir que temosde chegar à verdade elevando-nos até ela, buscando ospontos de conexão em linha ascendente, de onde se proje-tará a luz que haverá de nos revelar o segredo dessa ori-gem. À crisálida humana deve interessar essencialmente aborboleta, e não a lagarta. Não obstante, direi que partire-mos de um ponto certo se concordarmos que o homemteve sua origem num pensamento nascido na mente do

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Criador, visto que ali tudo o que existe ganhou expressão.No princípio, sua imagem arquetípica foi plasmada emestado de espírito; depois, o que ocorreu com os minerais,com os vegetais e com os animais – ao assumirem formafísica – teve de também ocorrer com o homem, a quemDeus concedeu, ademais, prerrogativas excepcionais,como a de ultrapassar por meio do conhecimento os limi-tes de sua esfera física e humana. Mas repito que o fun-damental, a meu juízo, deve ser a descoberta de nossodestino, e não a de nossa origem, pois nada ganharíamosao encontrar esta última, se descuidássemos do primeiro.Que o porvir nos encontre, pois, empunhando tenazmen-te o cetro de nosso reinado interior, como corolário de umaluta tenaz e constante na procura do bem e da verdadeque nossa existência encerra. Obrigado pela atenção,senhores.

Aplausos e felicitações premiaram o orador, a quemamigos e simpatizantes rodearam durante longo tempo,alguns com evidente propósito de obter esclarecimentos.Sem se furtar a isso, De Sándara conseguiu, não obstan-te, evitar que sua permanência no clube se prolongassealém do necessário.

Era uma hora da madrugada quando ambos osamigos, após percorrerem em velocidade regular as ruasquietas e silenciosas que conduziam até sua residência,chegaram ao destino, descendo alegremente do carro.

Já dentro de casa, entretiveram-se ainda um tempoconversando, enquanto tomavam um rápido refresco, queeles mesmos se serviram.

Satisfeito e jovial, Cláudio conversava com seuamigo expandindo-se ampla e prazerosamente, mas agorajá sem o menor indício daquele entusiasmo desmedidocom que seu estágio incipiente de antes o caracterizava, ao

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deixá-lo alucinado com a idéia de fáceis conquistas, que arealidade depois não confirmava.

– Tenho certeza – ele dizia – que nesta noite eujoguei fora algumas raízes dogmáticas que existiam dentrode mim, quem sabe desde quando! E tudo em troca deuma crescente ampliação de meus alforjes mentais. A ver-dade é que, desde a minha chegada ao México, eles dis-põem de um volume muito aumentado de valores positi-vos, e eu me proponho tirar bastante proveito disso.

– Não duvido, amigo Arribillaga, nem espero devocê outra coisa – respondeu De Sándara, acompanhandosuas palavras com um olhar que animou Cláudio profun-damente, pela confiança que deixava transparecer.

Em seguida, acrescentou:– Tudo é obra dos conhecimentos com os quais

você está se familiarizando, e que constituem um podero-so estímulo para acertar o relógio da vida e encarar o futu-ro sem o estorvo do atraso espiritual.

Pôs-se ele de pé e, como se quisesse infundir maioralento ainda na alma do amigo, bateu-lhe no ombro comafeto e disse:

– É provável que dediquemos uma parte do dia deamanhã para fazer um cuidadoso repasse disso que vocêguarda com tanto carinho em seus alforjes...

Com andar muito cuidadoso para não perturbaremo descanso dos que dormiam, ambos subiram a escadaque conduzia ao andar de cima, onde se separaram, diri-gindo-se cada qual para seus aposentos.

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Griselda deleitava-se com os momentos vividos emcompanhia de Mariné, intercambiando pensamentos edando ao entendimento e ao juízo a oportunidade de seampliarem e fortalecerem com tal permuta.

Mas raramente os acontecimentos felizes transcor-rem sem que algum motivo, ainda que pequeno, pretendaimpedir sua continuação. Naqueles dias mesmos, Griseldaescrevia em seu diário e deixava ali registrados – comouma mostra dos vaivéns que o ânimo costuma sofrer sobo império de sugestões enganosas – os penosos efeitos queo fato de ver-se preterida lhe ocasionava, ao observar aatenção que Cláudio recebia do senhor De Sándara.Agradava-lhe que seu marido fosse alvo de tão grandesprivilégios, mas sentia assaltar-lhe o temor de ficar paratrás. Sofria em silêncio ao ver seu preceptor dedicado,quase que de contínuo, a ilustrá-lo e ajudá-lo no aperfei-çoamento de seu espírito.

Parecia-lhe estranha a presença em si mesma des-sas duas posições contraditórias. Sempre havia estimula-do a Cláudio e, agora, acreditando estar ele luzindo emalturas para ela ainda distantes, não conseguia afastar desi o pesar e a incerteza quanto à sua situação, os quais aenvolviam tal como o casulo envolve a crisálida.

Entretanto, não lhe foi difícil pôr um fim a esseconflito, ao recordar, após empenhada busca por umaexplicação, que o pensamento promotor desse transtornoela deveria descobri-lo em sua própria mente. De imedia-to, uma quantidade de imagens esclarecedoras invadiu oâmbito de suas idéias, como pombas mensageiras atéentão recolhidas em ocultos ninhos.

A reflexão, ao limpar o céu de seu entendimentodas nuvens que o obscureciam, levou-a gradualmente acolocar-se em outro ângulo, de onde podia fazer conside-rações mais atinadas. Tudo lhe pareceu, então, ao mudar

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de enfoque, absolutamente natural e explicável. Ambos,ele e ela, não estavam chamados a enfrentar na vida iguaislutas e experiências, nem estavam, tampouco, igualmenteconstituídos, nem destinados ao mesmo fim. O que a ela,como mulher, a natureza havia concedido com sobras,dotando-a de uma sensibilidade que, pelo conhecimento,se tornava altamente receptiva, a ele era outorgado emmenor grau, em razão de sua vigorosa estrutura varonil,chamada a combater na rude luta pela vida, pondo emjogo as forças concedidas à sua condição humana particu-lar. Por que, então, não pensar que por outra via, a deseus dotes naturais, seu entendimento podia alcançarcompreensões que, ajustadas a suas funções femininas,seriam para ela tão proveitosas como as que seu maridoestava recebendo diretamente do senhor De Sándara? Elajá tinha muitas provas de que tal coisa era absolutamen-te possível, e bastou-lhe apenas recordá-las para que suaalma transbordasse de paz novamente.

Em seguida, ela pensou em Cláudio, situando-omuito acima dela. Por acaso essa suposição a contrariava?Não; jamais poderia aninhar em seu coração tal mesquinhez.Por outro lado, além de regozijar-se com a idéia dos triunfosdo marido, sabia que a superioridade dele facilitaria o acata-mento e o respeito que, como esposa, ela lhe devia.

Inclinada sobre sua pequena escrivaninha, Griseldarelia as páginas nas quais acabava de anotar aquele beloepisódio de sua intimidade. Finalmente, com o rosto dulci-ficado por um leve sorriso, escreveu com mão firme:“Depois desta produtiva arrumação de minhas idéias, porque não pensar, também, que algo muito bem calculadopelo senhor De Sándara pode tê-lo levado a me deixar delado em suas atenções?... Em tal caso, o estratagema teveêxito, e a ele devo agradecer, sem dúvida alguma, a ventu-ra de adicionar mais uma compreensão às muitas que jápude reunir neste diário.”

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Dias depois, quando já lhes restava pouco tempode permanência no México, Griselda observou que nuncahavia experimentado, com igual rigor, o efeito de certasverdades que pugnavam por abrir passagem em suamente. Dúvidas, indecisões, inquietudes, pairavam sobreela, criando-lhe um incômodo abatimento, do qual ansia-va livrar-se quanto antes. Mais de um preconceito, quepresumia desaparecido, voltou a aflorar em seus raciocí-nios, entorpecendo seus juízos. Com efeito, a assimilaçãodessas verdades, agora quiçá menos distantes que nuncade seu entendimento, por valorizadas que fossem por suasaspirações, submergiam-na em estados de perplexidade.

Quando decidiu confidenciar a Mariné tais insegu-ranças, esta respondeu-lhe:

– Isso que está acontecendo com você, minha que-rida, não deve preocupá-la. É uma simples decorrênciadas grandes transições que ocorrem no interior de nossoser, enquanto avançamos em busca dos câmbios que que-remos introduzir em nossa psicologia.

– Apesar disso, tenho entendido que não devo per-manecer à margem de tais câmbios...

– Você está certa, Griselda, mas também devemossaber que, enquanto eles se promovem, podemos não serem todo o momento conscientes desses movimentos; porconseguinte, é natural ou normal que, às vezes, nos veja-mos surpreendidas pelo choque dos elementos que alientram em jogo, entre os quais podemos observar, comoestá acontecendo com você agora, a presença de modali-dades ou aderências de composição variada, as quais,ainda não totalmente anuladas ou desalojadas como pen-sávamos, reagem e se manifestam intempestivamente, ematitude de rechaço ou resistência.

– Talvez seja para nos dar a entender que ainda não

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se extinguiram, não é verdade?... – Griselda expressou,suavemente.

– Perfeitamente... Mas você sabe muito bem o quecabe fazer de nossa parte.

– Salta aos olhos, então, que minhas dificuldadesprovêm de pensamentos não identificados, que sem dúvi-da me acossam para me confundir e me fazer vacilar emminhas decisões.

– Apesar disso, não devemos temê-los, sobretudo selevarmos em conta que nossa consciência se adapta auto-maticamente ao que somos capazes de oferecer a ela.

– Explique melhor...– Quero dizer, Griselda, que nossa consciência,

conforme seja o número de conhecimentos que consegui-mos confiar-lhe, procura sem demora todos os recursosnecessários ao feliz cumprimento de nossos fins.

– E você pensa que terei êxito nesse sentido?– Por que é que eu não vou pensar assim, se na

prática você tem se conduzido sempre tão bem?– O que você acaba de me dizer sobre a consciência, eu

já confirmei uma infinidade de vezes; por isso, Mariné, pensoque, sem perder mais tempo, devo me empenhar numa cuida-dosa análise crítica de minha situação interna. Assim, vou poderdeterminar, depois de uma bem meditada comparação, as van-tagens que me traria um oportuno câmbio de posição. Afinal,como é que minha consciência haverá de me correspondernuma forma que convenha a meus merecimentos, se continuome distraindo com devaneios que me entretêm sem objetivo?

Requisitada por Cristina, que naquele dia estava decama em virtude de um ligeiro resfriado, Mariné precisoudeixar Griselda por alguns instantes. Ambas estavam, nessatarde, numa pequena sala de estar, contígua ao quarto daanciã, e nesse preciso momento se dispunham a lanchar.

Quando Mariné voltou, uma nova pergunta deGriselda reiniciou o diálogo:

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– Em que medida você pensa que a mulher deveprestar sua contribuição aos propósitos ou objetivos per-seguidos pelo marido?

– Em que medida?... Oh, isso se estabelece natu-ralmente, segundo sejam as circunstâncias, você me en-tende?

– Acho que sim... Você quer dizer que a preocupa-ção da mulher, nesse aspecto, se encaminha e se resolvede acordo com o grau de eficiência com que ela colaboranos empenhos e afãs do esposo, não é assim?

– Exatamente. Quando andamos por um mesmocaminho, um caminho que, como o nosso, é senda de ver-dade e de aperfeiçoamento, você sabe que o entendimentoentre um e outro tende a se ampliar e, também, a ser maisefetivo. O que nos cabe é aprender juntos a tarefa de ate-nuar os desacordos e as dificuldades resultantes de qual-quer desnível de compreensão. A harmonia entre ambasas partes não se faz esperar; e essa harmonia é tanto maisfirme e duradoura, eu lhe garanto, quanto maior é oânimo que impulsiona cada um a dar-se nessa ajuda.

– Mas o ideal é que o marido supere a mulher emevolução, você não acha?

– Ora, se acho!... Se quem nos dá seu nome nosoferece, junto com o amor, também sua experiência esaber, a comunhão de espíritos tenderá a se fazer maisrápida e perfeita, em razão do que representa para nósessa ajuda e da correspondência que nos sentimos movi-das a lhe prestar. Quando, porém, isso não acontece, ouquando o caso é ao inverso, o bom entendimento pode damesma forma ter lugar no matrimônio, e a harmonia podealcançar estabilidade, desde que, como é natural, saiba-mos ajustar inteligentemente nossa conduta às circuns-tâncias.

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– É fácil para mim compreender isso, Mariné, e semdúvida é porque as experiências vividas em meu casamen-to me ajudam.

– Claro!– Gostaria também de conhecer outra opinião sua,

se eu já não estiver abusando, Mariné.– De modo algum, querida. Fale abertamente.– É que eu já me perguntei algumas vezes, enquan-

to observava tanto a mulher solteira como a casada nodesempenho das respectivas funções, se o casamento nãoconfere a esta última maiores vantagens em seus afãs desuperação.

– No que se refere à evolução, não creio que esseestado lhe confira nenhuma vantagem. Casada ou soltei-ra, a mulher pode desenvolver em níveis idênticos os seusesforços e seguir a linha do conhecimento transcendente,cuja luz não está vedada a ninguém.

– E que podemos pensar daquelas que não contamcom tão valiosa orientação?

– Elas terão de se guiar por suas próprias inspira-ções, até encontrá-la.

– Não tenho dúvida quanto a isso, Mariné. Cláudioe eu fomos realmente felizes por termos encontrado navida quem nos oferecesse tais conhecimentos e suas cor-respondentes explicações, para não nos equivocarmos nainterpretação dos arcanos que se ocultam neles.

– É justamente do perigo de errar que surge a ine-gável necessidade de sermos guiados.

– Eu sei bem, Mariné, como é difícil transcender asexperiências que o aperfeiçoamento nos impõe, mesmonos casos em que contamos com essa guia. Por issomesmo, jamais me ocorreria pensar na possibilidade deconseguir sem ela algo de efetivo. Como poderíamos, por

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exemplo, chegar a estabelecer a relação que existe entrenosso mundo interior e o mundo do espírito, se isto exigeque criemos antes a capacidade de avaliar por nós mes-mos essa relação? Isto nos deixa muito claro que é neces-sário desenvolver uma aptidão que em princípio é inexis-tente, e para tanto é indispensável a presença de alguémque nos ensine a exercitá-la. A propósito, Mariné, estareienganada ao pensar que essa relação entre ambos osmundos começa a se manifestar com certa evidênciaquando experimentamos, dentro de nós, algo assim comoum renascer feliz, em momentos em que a necessidade desuperar tudo o que de nossa vida nos é conhecido assumeem nós um novo alento?

– Você está certa, Griselda. É aí que começamos ater uma idéia de como se conectam os dois mundos. Doque vemos e aprendemos, enquanto mantemos contatocom nosso mundo interno, podemos compreender – sejapor analogia, seja por dedução ou intuição – muitos mis-térios pequenos que se encontram semi-ocultos nas adja-cências do maravilhoso mundo que, progressivamente,nos é dado contemplar. Isto quer dizer que, conhecendo ossegredos que o primeiro nos reserva, descobrimos osegundo. Somente nos internando dentro de nós mesmosé que se torna possível conhecermos nosso próprio espíri-to; e a consciência que cheguemos a ter de sua realidadee de seu poder nos ajudará a abrir passagem e a andarserenamente pelo mais formoso dos caminhos.

– A avaliação destas coisas nos permite compreen-der por que o mundo incorpóreo da realidade ideal é des-conhecido entre os homens e quase sistematicamentenegado e até menosprezado.

– Falta um conceito claro sobre esse ponto, natu-ralmente, e isso afasta toda possibilidade de estarmos pre-

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sentes nos dois mundos e satisfazermos os reclamos e as exi-gências das duas naturezas que os constituem. Para desfru-tar essa prerrogativa, é imprescindível fazer que desperte aconsciência para essa realidade, e nós sabemos, Griselda, queisso requer o concurso – único em poder e em ciência – dosconhecimentos que presidem a esse despertar. Aqueles quenegam tal possibilidade incorrem num erro muito lamentável.

– Você deve ter observado, Mariné, que muitas pes-soas acreditam que nós nos afastamos completa e delibe-radamente dos costumes correntes, a fim de construirmosum rancho à parte.

– Você sabe que isso é tão falso quanto absurdo. Osque pensam assim, querida, sem dúvida desconhecemque, além de vivermos como os demais, nós os avantaja-mos em muito, porque aproveitamos esse tempo que elesperdem, por não terem uma noção cabal de seu valor, paranos comportarmos de acordo com o que exige a nossa pro-moção ao nível de um pensar e um sentir mais amplos.

Griselda, satisfeita pelo efeito que lhe produziaaquela conversa, exclamou:

– Quantos momentos felizes o nobre afã de nossuperarmos proporciona, e quanta fecundidade o ânimodeixa transparecer, enquanto nos preparamos para enfren-tar toda e qualquer tarefa com boa disposição e alegria!...É evidente que as virtudes mesmas se nutrem nesse esfor-ço constante por enaltecer a vida, mediante a renovação denossas energias e o aprimoramento de nossas qualidades.

– Perdoe-me se faço você descer de alturas tão ele-vadas, minha querida Griselda – Mariné interrompeu, sor-rindo ante o entusiasmo de sua amiga. – Você quase nãocomeu!... Quer que lhe sirva outra xícara de chá?

– Oh!... Tem razão! Eu me distraí, conversando.Pode servir, por favor.

Griselda acompanhou em silêncio os movimentos

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da jovem. Mariné acabava de fazer-lhe palpitar na almaverdades profundas, que seu entendimento havia assimi-lado, enquanto sondava, com particular habilidade men-tal, os densos e heterogêneos elementos que configuravampsicológica e essencialmente sua vida. Devido a isso, asmais cativantes e sugestivas idéias acorreram-lhe em pro-fusão à mente, entremesclando-se com a lembrança desua filhinha. Oh, que belo trabalho esperava por seu cora-ção de mãe! Poder guiá-la com o acerto da verdade, dentrode um mundo em que imperava a confusão e o desvio!

As duas jovens reiniciaram o diálogo, que desta vezse encaminhou para assuntos domésticos e, dali, para ointercâmbio de alguns pareceres sobre a festa celebradana noite anterior na casa de uma amiga íntima deCristina, à qual todos haviam comparecido.

A voz da senhora Landívar impediu que continuas-sem, ao chamá-las de seu quarto.

– Está se vendo que você melhorou! – disse-lhecarinhosamente Mariné, aproximando-se com Griselda doleito da enferma.

– De fato; os remédios me fizeram bem, mas a com-panhia de vocês vai me fazer um bem maior.

– E vai aliviá-la da tirania desta prisão. Você não temtemperamento para ficar assim, tão quietinha e solitária!

– Apesar dos pesares, quando é necessário eu meadapto. E até que me agüento bem!

– E ninguém pode dizer que não! Você é muito ajui-zada, mamãe Cristina. Pena que ontem à noite, estandoum pouquinho resfriada, não desistisse de ir à festa.

– Foi uma pequena tentação... Mas, vocês sabemque me sinto mais restabelecida?

– Que bom!... – Griselda exclamou, com esponta-neidade.

– Quer me ajeitar um pouco os travesseiros,

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Mariné? E me arrume, por favor, estes cabelos tão despen-teados.

– Vou deixá-la lindíssima agora mesmo.Quando Mariné terminou a tarefa, que cumpriu

com diligência e ternura, Cristina respirou com agrado epremiou sua protegida, enaltecendo-lhe a bondade.

– Quem pode dizer se sou tão boa como você diz! –a jovem protestou. – Você tem sido para mim mais do queuma mãe, e é justo que eu queira ser para você mais doque uma filha.

Depois, sentando-se na beirada da cama, acrescentou:– Se você sarar logo, como eu espero, vai poder par-

ticipar de um passeio que estamos planejando.– Será o passeio de despedida – Griselda completou.– Não me falem de coisas desagradáveis!– Mas já não são desagradáveis, mamãe Cristina!De fato. O projeto anunciado em Buenos Aires não

demoraria em ser posto em prática. O casal De Sándara, ecom eles Cristina, transfeririam muito em breve sua resi-dência para a Argentina, em cuja Capital haviam nascidoe vivido longos anos. Havia tempos que De Sándara ali-mentava esse propósito, incitado pelo anelo de intensificarnaquele país a difusão de seus conhecimentos.

– É uma pena que tenhamos de deixar esta casa tãocheia de recordações!... – Mariné exclamou.

– Todos nós sentiremos muito ao nos separarmos dela– disse a senhora Landívar, após um suspiro; – mas, além dosmotivos que nos fazem dar este passo, devemos pensar que avida atualmente vai experimentando tais transformações,que o prudente é decidir por outro tipo de moradia.

– Entretanto – Griselda observou, – ouvi o senhor DeSándara dizer que em Buenos Aires vocês construiriam uma igual.

– Não, querida – Mariné apressou-se em esclarecer;– ele disse, e até faria isso, pensando que eu poderia não

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me conformar; mas mamãe Cristina tem muitíssimarazão: devemos nos colocar de acordo com as mudançasde toda ordem que caracterizam nossa época.

Houve ali uma pausa, que Cristina logo interrom-peu, ao perguntar:

– Aonde vamos passear?– Isto é ainda um segredo – Mariné respondeu, com

ar brincalhão.– Bem, bem... Alguém mais complacente que você

logo vai me dizer – disse Cristina, dando uma piscadelapara Griselda.

Em seguida, Mariné e sua amiga deixaram o quar-to, não sem que esta última segredasse ao ouvido deCristina a resposta que ela esperava.

Um afeto sincero e uma alegria sem par presidiamà estada do casal Arribillaga no lar aprazível e querido dosDe Sándaras.

Cláudio continuava instruindo-se na difícil ciênciado saber transcendente, cujas projeções evolutivas seapresentavam a ele como metas inestimáveis. Já nãohavia dúvida de que o novel recipiendário, dominadas asoscilações de seu juízo, ia aproximando-se – cautelosa,porém irresistivelmente – dos umbrais do mundo em cujaaugusta atmosfera o espírito humano se sente em seuambiente.

De sua prudente posição de observadora, Griseldaassistia com terna emoção ao desenvolvimento aceleradodos câmbios que se iam operando na alma de seu esposo.Percebia como os pensamentos dele, agilizados através de

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um maior aprofundamento no estudo, se ajustavam pro-missoramente entre si, ao iluminarem sua inteligência ematos positivos de sua vontade. Dir-se-ia que atuava ali ainfluência do espírito, com um claro sentido da realidade.Era evidente que Cláudio, depois de transpor os degrausda mediocridade, triunfava em sua decisão de escalar asimbólica montanha da Sabedoria, a mais alta de todas asmetas desejadas pelo homem, para cuja ascensão é preci-so descer primeiro às mais profundas e ignoradas regiõesdo mundo interior humano.

O assombro crescia num e noutro, à medida queeles penetravam nas adjacências desse orbe incorpóreo,tantas vezes intuído ou imaginado pela inquieta mentehumana. As imagens que a fantasia do homem desenharasobre o prometido Paraíso dos bons, iam sendo suplanta-das pela presença de uma realidade inefável, que as supe-rava em grandiosidade e beleza. Havia amanhecido paraeles uma nova existência; uma existência que era umaconstante iluminação. Quão distantes estavam os velhostempos, quando comprimiam dias e anos na vacuidade deuma vida infecunda para o espírito!

Griselda sentia-se agora muito estimulada. Nummomento em que confidenciava ao senhor De Sándara suaadmiração diante do panorama que a vida ia abrindo progres-sivamente à sua passagem, enquanto se dedicava a perscru-tar seus segredos, ele deu-lhe a entender que tal fato respon-dia à germinação de um processo mental posto em marchadentro de sua consciência. Seria possível? A semente do saber,que nas mentes sem fecundidade permanece estática, em ver-dade havia germinado na sua? Oh, como era doce saber isso!

Inebriada por tanta felicidade, Griselda se propôsmantê-la indefinidamente. Sabia que uma das chaves doêxito consiste em conservar as alegrias que a alma experi-menta, pois esgotá-las nos excessos venturosos equivale a

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perder os incentivos que hão de acompanhar-nos deforma permanente.

Experimentando a sensação do triunfo, encami-nhou seu pensamento para o exame das qualidades cujocultivo ela tinha visto a necessidade de fazer em maiorgrau. “A paciência”, disse ela, mentalmente, “é uma virtu-de admirável; uma virtude que sempre nos presenteia coma ventura de não tê-la exercitado em vão. Quanto à perse-verança, não há dúvida de que é outro fator de sumaimportância para levarmos adiante nossos planos. A per-severança é como um grande filtro depurador de nossosesforços, que nos permite aproveitar os verdadeiros valo-res de nossa vontade, e, com isso, adquire solidez o pen-samento encarregado de realizar os propósitos que conce-bemos nas horas de inspiração.”

Nessa progressiva iluminação que o saber ia reali-zando em Cláudio e Griselda, novas formas de compreen-são se insinuavam em suas mentes, projetando-se orasobre as que deveriam ser então substituídas, ora sobre asque jaziam esquecidas ou imóveis, a fim de ativá-las.Ambos encontravam, nessa renovada afluência de ima-gens, mais de um motivo com que podiam animar a inti-midade de seus diálogos.

No transcurso daqueles memoráveis dias, a recor-dação dos pensamentos que haviam povoado suas mentesnos alvores da infância apresentou-se a eles, e sobre esseponto intercambiaram conclusões.

Partiram do fato certo de que todas as criaturashumanas são atraídas durante a infância pelo mundo doespírito; atração que se define pelos freqüentes e curiosostratos que as crianças mantêm com os personagens quepovoam e alegram seu pequeno mundo mental, e que semanifesta pela influência que o espírito de cada um exer-

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ce sobre as faculdades do terno ser a quem ele anima, emparticular sobre sua imaginação.

Eles mesmos haviam comprovado como o esplendordaquelas primeiras imagens ia empalidecendo ao chegar aadolescência, para dar passagem às que avivam o fervor dosentusiasmos, nessa idade em que a ilusão acende suasluzes e, ante seus reflexos, estranhas e sedutoras idéiasdespertam, seguidas de penosos desalentos, pois a imagina-ção, órfã de governo, engana-se com freqüência em seusarrebatamentos quiméricos, ao tomar como certas as figu-ras que, por instantes, a miragem reflete nas estepes men-tais da inconsciência.

Encaminhados os pensamentos nessa direção,Cláudio e Griselda coincidiram em seus juízos, ao pensaremque existia uma correlação entre as imagens que a fantasiaprojetava em suas mentes de criança e os segredos domundo superior, que a inteligência do homem descobre, ilu-minada pelo conhecimento. Deduziram que era essa umacorrelação mais aparente que real, já que, apesar de emambos os casos a tônica mental exceder os limites habi-tuais, os dois eram de índole antagônica. Sabiam que noprimeiro atuava a faculdade de imaginar sem o freio darazão, imprimindo sobre a delicada tela mental do meninoum sem-número de imagens, muitas delas vinculadas aepisódios de sua existência passada, das quais, já converti-do em adulto, ele conservava – mais do que a lembrança –as impressões pouco precisas que costumavam perduraratravés de toda a vida, talvez com manifesta intencionalida-de; no segundo, a exploração era levada a cabo com conhe-cimento e firmeza, e desse mundo metafísico ou superiorextraíam-se os mais valiosos elementos para a formaçãoconsciente da sabedoria humana.

Através do citado enfoque, não tardaram em chegarà conclusão de que essa influência do espírito, manifestada

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na infância, se retraía ao se chegar à puberdade, razão pelaqual o homem deveria buscá-la com empenho, até tomarnovamente contato com ela. Seu valioso concurso lhe per-mitiria vincular-se às realidades do mundo metafísico, ondeas idéias e pensamentos, como entidades autônomas, ser-viam ao grande propósito da evolução consciente.

Unidos na harmônica e estimulante convivência queagora lhes era dado desfrutar, os protagonistas do drama queum dia se insinuara, pretendendo cobrir de tristeza o céu daventura familiar, achavam-se a salvo das dissensões comunsque, encadeando-se umas às outras, bloqueiam inadvertida-mente a vontade de suas extraviadas vitimas e as lançam,irremediavelmente, pela vertente dos males irreparáveis.

Havia transcorrido um tempo não muito longodesde que Cláudio se deixara arrebatar, de uma forma tãobelicosa quanto irrazoável, pelos incontidos impulsos desua natureza; não obstante, já contava com a melhor cre-dencial para aspirar à consideração de seu preceptor. Eainda que de vez em quando voltassem à sua mente aque-les mesmos pensamentos que antes lhe provocavam vaci-lações e lutas, assim como os episódios varonis que, amodo de reminiscência, pretendiam ressuscitar sua pro-pensão à aventura, já nada disso tinha força nele, servin-do-lhe, mais propriamente, para comprovar o domínio con-seguido sobre a intemperança de suas velhas debilidades.Em realidade, seu processo havia-se definido tão inespera-damente, que nem teve tempo de fazer uma análise profun-da dos acontecimentos que intervieram em sua aceleração.

Assim ele manifestou a De Sándara, num dosmomentos em que estavam juntos:

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– Tenho certeza de me haver situado num pontoque até há pouco era ainda impenetrável na trajetória deminha evolução... Não sei, na verdade, senhor DeSándara, como expressar-lhe o que sinto por tanto bemrecebido do senhor.

– O bem que fazemos, meu amigo, nada mais é queo ouro espiritual que poupamos, colocando-o no BancoUniversal da Justiça Eterna, ali onde se registram os cré-ditos e as dívidas de cada ser humano.

– Penso que não deve haver esforço humano maisbem remunerado.

– É assim, de fato, mas desde que esse bem repre-sente um valor como contribuição ao processo evolutivoda humanidade.

– Ouvindo-o, sinto que crescem meus empenhospor aumentar essas economias e ampliar meu exíguohaver espiritual... Espero que isso não me vá ser difícil,agora que já não corro o risco de defraudar a mim mesmocom a crença num futuro de bem-aventurança que mepudesse ser concedido sem que eu o merecesse.

– As chaves do céu, meu amigo, e a imunizaçãocontra as faltas acumuladas ao longo da vida, nós certa-mente não as obteremos em troca de uma incondicionalsubmissão a crenças que nutrem uma tão enganosa espe-rança. Ninguém pode intervir naquilo que é privativo denossa consciência e, muito menos, tomar para si a respon-sabilidade de nossos atos, para sacudi-los ao vento elivrar-nos de suas graves conseqüências. As graças oumercês gratuitamente concedidas àqueles que entregam aoutros o domínio de sua vontade, sob a pressão de um tãogrande absurdo, somente existem na imaginação dos queconfiam nisso.

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– Fico feliz com suas palavras, senhor De Sándara,e considero que é incontestável o dever de iluminar oentendimento dos que alimentam tais esperanças semterem podido se livrar do dano que com isso ocasionam asi mesmos. Não há prazer mais sentido, nem mais bemganho, que o proveniente do bem que fazemos a nossossemelhantes; um bem que eu estenderia até o último dosseres que povoam a terra.

De Sándara, em cujo rosto transparecia a aprova-ção com que acolhia as palavras de Cláudio, espontânease sentidas, acentuou:

– Um bem que somente é tal quando se apóia nesseesplêndido labor que estende de alma a alma, de seme-lhante a semelhante, a influência de verdades altamentepoderosas, que emancipam o espírito dos homens de todaopressão mental.

Quanto havia Griselda ganhado no coração deCláudio, que a admirava ao vê-la avançar a seu lado semvacilações, com amor e prudência imponderáveis!

Com freqüência, pensava no muito que a havia feitosofrer, quando ainda se debatia nas trevas da incompreen-são, impelido para os prazeres do mundo pelo impulso fre-nético das paixões. Quantas promessas postas a rolar pelavertente do esquecimento! O pesar que tantas vezes o acos-sara, era-lhe devolvido hoje por sua consciência, piedosa-mente transformado na sublimidade de um afeto maisterno e mais puro, jamais sentido por ele. Julgava-se dupla-mente culpado, ao rememorar que, nem mesmo quando se

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precipitava no vazio da embriaguez sensual, tinha deixadode ter Griselda presente no lugar mais puro de sua alma.Quantas vezes a lembrança de seu amor inocente lhe haviaevitado uma queda! Em tais transes, havia sentido como secordas invisíveis, descendo a ele das alturas, lhe cingissemo corpo e o elevassem, suspendendo-o e balançando-o sua-vemente no espaço, até que seus pés voltassem a pousarde novo em solo firme. Depois disso, corria ao encontro deGriselda, buscando na doce calidez do coração dela refúgiopara o seu, maltratado e perseguido pelo peso das faltasque o ultrajavam. Não soubera ler nos olhos de sua esposaa explicação do drama que ele vivia, que também era odrama dela. Com muita dor, sofrida, ainda assim ela lhecurava as feridas morais com o bálsamo de sua ternura,reservada unicamente para ele. Agora, depois de ter deixa-do para trás a tempestuosa etapa de seus erros, ele a con-templava de uma posição à qual temeu não poder chegarnunca, confirmando com alegria que a alma de Griseldahavia transposto, como a sua, os limites da pequenez, ele-vando seu vôo em direção aos cumes até onde o espíritohumano sempre anela ascender.

Uma tarde, estando em seu quarto, devia estar como pensamento envolvido em tais recordações, a julgar pelameiguice com que abraçou Griselda, que se havia acerca-do a ele, buscando sua proximidade.

Uma terna conversa, na qual se mostrava esse fer-vente entusiasmo que parece brotar das próprias entra-nhas da vida, imediatamente os cativou.

– Tenho com freqüência a sensação, Cláudio, dehaver avançado vários anos em minha vida, comprimidosno pouco tempo de minha evolução, tal é a força e a inten-sidade do vivido nesse lapso de alternativas e experiênciasfecundas, que hoje vejo culminar numa verdadeira apoteo-se de íntima felicidade. Sabe no que penso?

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– Em quê?– Em algo que tem muito a ver com o que você e eu

vimos experimentando já faz tempo. Neste momento, ovivido me surge com tal clareza, que eu poderia dizer queele acaba de ser abarcado em sua totalidade por meu pen-samento. É como se um diáfano raio de luz, penetrandolivremente nas sombras que ocultam o mais além, se pro-jetasse com plenitude sobre um dos segredos que somen-te se abrem, qual fechadura combinada, para aquele quedescobre seu código.

– Tal coisa acontece, Griselda querida, quando asdensas sombras que a ignorância estende sobre o enten-dimento são afugentadas pelo esforço tenaz daquele queaprendeu a esperar a claridade sem se alterar. Conte-meagora o que tanto alegra neste instante seu coração.

– Você sabe, Cláudio, quanto se exige comumenteda vida, sem se conceder nada a ela, ou concedendo-lhe,no melhor dos casos, uma ou outra satisfação.

– É verdade. Busca-se extrair dela todo tipo de van-tagens para satisfazer prazeres e caprichos pueris, sem selevar em conta que devemos realizar o que ela nos exigeem obras e em conduta.

– Não se mede nem tempo nem gastos, e até sechega a comprometer a saúde em empenhos egoístas, pas-sionais ou efêmeros. Nós sabemos perfeitamente que issoacontece porque é a atração pelo material que predomina.Mas também ocorre que, quando desperta em nós essesentido superior que se abre como uma flor em nossaconsciência, costumamos nos comportar com o mesmoautoritarismo, buscando com cobiça os prazeres do espí-rito e a conquista de venturas em curto prazo, com exigên-cias de que tudo nos seja outorgado com sobras, pelo merofato de lhe havermos concedido um interesse particular.

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Para esses extremos somos conduzidos pela falta de adap-tação aos ditames da realidade que começa a nos reger...Felizmente, a vida mesma, movida por esse sentido supe-rior que foi despertado em nossa consciência, reage comtoda a nobreza e nos reclama tempo, dedicação, constân-cia, abnegação e altruísmo, em troca daquilo que ela have-rá de nos oferecer, tão logo formos conquistando o que, emessência, ela contém. A partir daí, nós sabemos muito bemo que acontece: aparecem os primeiros conflitos internos,pouco ou muito agravados por nossa incompreensão, edos quais saímos airosos umas vezes, derrotados ou mal-tratados outras. Só quando cedem as resistências que ospensamentos materialistas nos opõem – aqueles pensa-mentos que com freqüência mimamos e até endeusamos –e quando caem os velhos conceitos, degenerados às vezesem preconceitos recalcitrantes, é que começamos, então, anos mover com maior independência e a nos sentir tambémmais seguros dentro do meio que a vida, elevada através denosso próprio esforço, generosa e espontaneamente nosoferece. Após esse importante câmbio, o mundo de antes,no qual vivíamos sujeitos aos objetivos mesquinhos denossas cegas ambições, desaparece, e de repente nós nossentimos como se tivéssemos nascido em outro, encanta-dor, maravilhoso... Não é verdade que é esta a sensaçãoque a gente experimenta?

– É assim mesmo, querida; e também assim, comovocê acaba de descrever, se produz a extraordinária tran-substanciação mental e anímica que se realiza em nós,enquanto perdura o processo depurador de nossas defi-ciências psicológicas.

– Nós dois estivemos sujeitos a essas variações, queassinalam as primeiras etapas de nossa emancipação men-tal consciente. Se não fosse assim, eu não poderia descre-

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ver tudo isso, nem você me compreender tal como estáfazendo.

Em seguida, instada por uma emoção que ao longodaqueles dias a embargava, enquanto saboreava o delicio-so fruto de seus empenhos conscientes, Griselda expres-sou, entusiasmada:

– Quanta beleza este caminho nos reserva, Cláudio!Um caminho a princípio tão incerto, e depois tão seguroquanto luminoso!... Penso que o trecho que percorremosem tão breve tempo é enorme..., você não acha?

– Enorme na trajetória de nossa atual existência,você disse muito bem; mas sabemos que essa enorme dis-tância é apenas um ponto na incomensurável extensãodeste caminho.

– É verdade!– Você deve ter observado, Griselda, que, depois de

muito andar e muito pensar, aprendemos finalmente a avaliara magnitude do problema do ser humano do ponto de vista desua ascensão consciente aos planos da excelsa Sabedoria.

– Oh, claro!... Aprendemos isso enquanto avançá-vamos, buscando com empenho, dentro de nós mesmos, aexplicação de tantos fatos e acontecimentos da vida. Essaé uma explicação que muitos buscam fora, procurandopenetrar na vida dos semelhantes, sem terem em contaque esses semelhantes não estão todos em igual nível deevolução, nem têm tampouco idênticas inquietudes, nemsemelhança em suas possibilidades mentais e sensíveis,da mesma forma que não têm as mesmas deficiências nemos mesmos estados internos de caráter psicológico.

Griselda calou-se. Em seguida, porém, pousandoem Cláudio a mirada de seus grandes olhos, nos quais suaalma transparecia clara e límpida, expressou:

– Você sabe, Cláudio, que sempre anelei para vocêo que para mim mesma eu me prometi, sem saber, esta é

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a verdade, que existiam dentro de nós possibilidades a talponto surpreendentes e tão próximas do contato de nos-sas mãos. Hoje, você é como intimamente anelei que fosse.Calcule, meu amor, com quanta gratidão meu pensamen-to se volta para tudo o que contribuiu para que meus ane-los se realizassem!

Um soluço, expressão inigualável da alegria que ocoração experimenta em sua intimidade, enquanto seinclina reverente ante a majestade da Divina Providência,acompanhou as palavras de Griselda.

– Agora se revela para mim – disse, enxugandosuas lágrimas – o significado daquele sonho que tive faztempo, lembra-se?

Cláudio, tão comovido quanto ela, estreitou-a emseus braços.

Ali, entre as delicadas ternuras do afeto, agradece-ram a Deus a ventura de se sentirem indissoluvelmenteunidos, e uma vez mais, como homenagem à Sua ExcelsaBondade, consagraram o pensamento de que Ele presidis-se sempre às alegrias e às satisfações que a vida lhesdeparasse.

Passado aquele momento de emoção, Cláudio nãopôde conter estas palavras, que Griselda acolheu sorri-dente:

– Se eu tivesse que expressar com exatidão o quesinto, diria que os favores com que fomos cumuladosalcançam até o fim de nossos dias. Mas você, minha que-rida, quanto contribuiu para isso, me animando e me aju-dando a conseguir esta culminação que eu chamarei detriunfo da claridade sobre as sombras, da luz sobre acegueira do entendimento, e do espírito sobre o instinto!

No rosto de Cláudio se estampava a satisfação dehaver oferecido a Griselda tão doce ressarcimento.

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Entardecia. Uma deliciosa temperatura desprendia-sedo seio fluente da natureza, suavizando os rigores impostospelo avanço do outono. Ebel e Mariné, reunidos com seusamigos no jardim da casa, desfrutavam ao ar livre aquela tãogrande benignidade. Sobre eles, um céu ainda afogueadopelos reflexos do sol que mergulhava no ocaso, era como umtranslúcido e fino véu que parecia assinalar a fronteira divi-sória entre a terra e as altas regiões do espírito.

Sob sua agradável influência, Cláudio e Griselda ocontemplaram por momentos, quiçá com a recôndita emo-ção que se experimenta diante do eterno mistério.

De Sándara, reclinado sobre uma cômoda poltrona,fumava placidamente um grosso havana.

Talvez como efeito de um comunicativo desejo, todospermaneciam pouco menos que em silêncio. Uma que outrafrase, dita seguramente com o propósito de interromper umatão grande quietude, tinha-se apagado sem encontrar eco.

Nesse agradável parêntese, quão variadas e interes-santes eram as imagens que desfilavam pela retina mentalde uns e de outros. Cláudio, talvez o mais imerso em simesmo, comprazia-se em rememorar o acerto com que haviasido guiado em direção ao mundo do qual, a princípio, umaescuridão impenetrável o separava. Essa escuridão, haviam-na criado os olhos de seu entendimento, fechados pelo pre-conceito, pela vaidade, pela intemperança e por quantasfalhas psicológicas lhes são afins. O temor de abri-los, de vera luz desse mundo projetar-se sobre as profundas obscuri-dades de sua alma e sobre a bagagem de suas faltas, haviamais de uma vez eclipsado sua razão. Entretanto, a oportu-na intervenção do senhor De Sándara, ou de algum auxílio

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a ele vinculado, sempre conseguira evitar a tempo que suasquedas lhe causassem dano, até que um dia, apressando opasso, acostumou-se a olhar sem receios a diáfana clarida-de do amanhecer espiritual. Cláudio tinha isso presentenaqueles momentos, ao experimentar o indescritível prazerde haver encontrado as chaves de seu próprio enigma, omesmo que cada criatura humana deve descobrir nasmatas espessas e emaranhadas de sua vida, cuidando denão extraviar-se, por ser uma zona inteiramente desconhe-cida para o entendimento comum.

Quebrando a quietude, De Sándara expressounesse momento algumas palavras que tiraram Cláudio desua abstração:

– Em que pensa, meu amigo? Reminiscências, talvez?– Isso mesmo, reminiscências – ele respondeu,

acrescentando: – Não sei se poderei esquecer, senhor DeSándara, os movimentos de resistência com que minhanatureza inferior se opôs aos meus primeiros esforçospara me livrar dela. Naquela época, eu desconhecia minhaprópria realidade, e meus esforços, conseqüentemente,eram débeis para contê-la.

– É tão lógica essa rebeldia do instinto!– Oh, certamente! Depois de se sentir mimado

durante tanto tempo, ele não se submete assim, sem maisnem menos, a uma severa abstinência.

– Como você sabe – De Sándara continuou, – os neu-rônios se ressentem, ainda que momentaneamente, pelo ines-perado tratamento sedativo imposto às fibras nervosas, depoisde tê-las mantido em tensão, a serviço das funções instintivas.

– É o que acontece quando a natureza superior começaa atuar, mediante a articulação psicológica de uma nova linhade conduta.

– Exatamente. É então que o homem se dá conta,finalmente, de que não é a mesma coisa ser servo ou amo,

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ainda que os dois vivam no mesmo palácio; e é tambémquando ele se convence de que sairá sempre beneficiadose, em toda a oportunidade, servir a seus propósitos demelhoramento, em vez de servir ao jogo das circunstânciasque o acaso maneja caprichosamente à custa dele.

– A princípio – Griselda expressou, – nossas condi-ções são tão extremamente precárias, que não é fácil evi-tar as intempestivas reviravoltas no rumo de nossos empe-nhos; o próprio conhecimento ainda não se enriqueceucom o aporte das experiências nesta nova forma de viver,e só se tem um vislumbre intuitivo daquilo que se buscacomo meta, vislumbre que amiúde perdemos de vista, porcausa das próprias oscilações em que nos debatemos.

– Sim; mas convenhamos – De Sándara assinalou,ampliando o conceito – que tudo isso desaparece quando ohomem se compromete seriamente com a idéia de trocarsua vida por uma outra que ele intui magnífica. A partirdesse instante, já deixará de cortejar as sedutoras vidas quedeleitam essa natureza inferior, à qual estivemos aludindo.

Cláudio interveio, repetindo o que entendia daspalavras anteriores:

– Quando o senhor menciona essas vidas, interpre-to que está se referindo à variedade de condutas inspira-das por nossas paixões ou debilidades, que absorvemgrande parte do tempo que devemos dedicar ao enriqueci-mento intelectual e espiritual daquela vida que nos há deser mais cara.

– É isso mesmo, Arribillaga; daquela vida que exigeo privilégio de ser soberana em nossos sonhos e vigílias, jáque para isso ela nos oferece seu inigualável manancial desatisfações. Para os que se deixam cativar pela falácia dossentidos e cedem aos feitiços da vida leviana e voluptuosa,não há exorcismo que valha contra seus encantamentos.

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As paixões acorrentam o homem à rocha da adversidade,e, como este não é da estirpe de Prometeu, dificilmenteencontra o Hércules que o liberte dos abutres que esprei-tam seu lento suplício.

Talvez ninguém tenha compreendido, comoCláudio, as palavras anteriores, as quais, chegando-lhe aoíntimo, permitiam que ele contemplasse os quadros que DeSándara descrevia como acontecidos numa época distante;mais ainda, sentia que já não voltaria a ser o protagonistade tais cenas. Sabia, ademais, que todos os episódios vivi-dos por ele não haviam sido meros efeitos da casualidade, eque às vezes, mesmo contrariado ou oferecendo resistên-cias, havia avançado nas etapas desse processo psicológicoque agora culminava, despertando nele as mesmas sensa-ções que experimentam aqueles que, depois de uma fati-gante busca, encontram um tesouro ou vêem seus esforçospremiados através de alguma descoberta.

Tendo chegado agora a esse ponto, ele sentia, como conseqüente deslumbramento diante da realidadesonhada, ou seja, diante de seu sonho convertido em rea-lidade, a responsabilidade da posse e sua obrigação deadaptar-se à nova existência. As portas que se abriampara mostrar-lhe o segredo de cobiçados arcanos não semoviam por acaso. Não; ele mesmo, com seu próprio esfor-ço, havia feito com que elas se movessem, depois desuportar, durante muito tempo, as vicissitudes de um pro-cesso interno que, madurado em sua consciência, lhe con-feria as aptidões exigidas pelo lúcido momento que eleestava atravessando.

– Eu poderia afirmar – Cláudio expressou a DeSándara, já ao término daquela reunião – que nada de tudoquanto li ou escutei a respeito da vida superior se comparaao que tenho comprovado, experimentado e compreendido

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no transcurso destes últimos meses. Sem a inestimávelorientação que o senhor me ofereceu, senhor De Sándara,nada ou muito pouco é o que eu teria podido obter. A inex-periência e a inconstância atentam continuamente contranossos melhores propósitos, e se a isso somamos os incon-venientes da dúvida e as fraquezas do caráter, não é difícilsupor o perigo que nossa vontade corre de naufragar emmeio a fortes tormentas morais. Com que imenso prazercontemplo a distância percorrida, firmado na inexpugnávelfortaleza de minhas convicções! Já se disse que dinheirochama dinheiro, como a glória chama a glória; mas nãopodemos esquecer que primeiramente são necessárias aslutas, os esforços, os desvelos e afãs, para que esses bensvenham até nós, e não como tantas vezes a candidez ou ainconsciência humana pretendem, ao quererem alcançá-losmediante um simples fervor não isento de egoísmo. Minhavida, senhor De Sándara, já pertence à geração dos espíri-tos que seguem a rota da emancipação psicológica e mentaldo gênero humano. O senhor me fez vislumbrar coisasmaravilhosas do mundo prometido aos limpos de coração ede entendimento, aos que possuem o dom da ubiqüidade,aos que, sem deixarem esta terra, podem sempre viver nosexcelsos domínios de tal mundo; e digo isto como uma ofe-renda de gratidão à Providência, que guiou meus passos atéeste invulnerável penedo, de cujo topo, qual senhor diantede seus domínios, evoco humildemente o desenvolvimentohistórico dos acontecimentos que forjaram meu destino.

De Sándara, que havia seguido atentamente o pensa-mento de Cláudio, estendeu-lhe a mão, sem dizer palavra.

Nada mais adequado à circunstância que o silên-cio. Sua finíssima malha dourada envolveu esse tributo daespontaneidade às verdades que o inspiravam.

De Sándara expressou, por fim:– Para ser justo, amigo Arribillaga, devo acrescen-

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tar algumas palavras às suas. Sua esposa, sem que seudestino lhe tenha deparado transes similares, superounotavelmente minhas previsões e, para dizer a verdade,conta hoje em seu haver com numerosos elementos devalor, que a enaltecem aos olhos dessa mesma Providênciaa que você se referiu. Sua privilegiada capacidade sensiti-va lhe permitiu captar a verdadeira onda que transmite aocoração humano os ditados invioláveis do conhecimento, eem obediência a eles orientou sua conduta, invariavel-mente digna, rumo ao ideal perseguido, sem claudicarnunca diante das situações difíceis, confiando tão-somen-te na pureza de seus sentimentos e, como disse antes, emsua privilegiada sensibilidade.

– Obrigada, senhor De Sándara... Isso é mais doque mereço – Griselda manifestou, com a voz embargadapela emoção.

– Depois deste feliz instante, vamos entrar. Ali brin-daremos aos dias futuros, para que eles sejam como péro-las cheias de ventura, que iremos adicionando ao colar denossa vida.

E assim, com o melhor dos auspícios, foi aproxi-mando-se do fim aquele dia inolvidável.

Cláudio Arribillaga havia absorvido com verdadeirafruição os elementos de juízo com que De Sándara, quaseaté os últimos instantes de sua permanência no México,procurava equipá-lo para sua melhor atuação futura.Receptivo, e além do mais apto para assimilar amplamen-te tais elementos, comprazia-se em apreciar a profundida-de das novas explicações com que aquele o ilustrava sobre

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o mecanismo construtivo de determinados conhecimen-tos, os quais, uma vez incorporados ao domínio de suainteligência e mediante seu concurso, lhe permitiriamestabelecer com exatidão as dimensões de cada objetivoque ele traçasse para si e a relação do mesmo com suaspossibilidades efetivas.

Sabia distinguir claramente, nesse fecundo acervode recursos tendentes a ativar suas aptidões cognosciti-vas, aqueles que utilizaria para ampliar a capacidade cria-dora de sua mente e os que lhe serviriam para aumentaro poder de sua vontade e o de sua resistência viril, parasuportar, sem desânimos nem vacilações, as severas pro-vas que, em maior ou menor grau, e sem exceção, ohomem se vê forçado a enfrentar na vida.

Fortalecido seu espírito em alto grau, sentia-se comforças adicionais para empreender o regresso à sua pátriae, ali, continuar os estudos e as investigações da nobreciência do conhecimento metafísico. Agora mais do quenunca, estava decidido a ocupar um posto avançado nagrande gesta emancipadora do espírito humano, empreen-dida por De Sándara, e contaria para tanto com a importan-te colaboração de seus amigos e a não menos valiosa deGriselda, uma vez que ela seria um auxiliar principalíssimo,por ser parte essencial de sua felicidade e da felicidade dequantos o rodeavam. Havia aprendido, finalmente, a andarpelos caminhos deste mundo sem se extraviar; ao mesmotempo, havia iniciado o percurso do Grande Caminho quetem por meta as máximas realizações humanas, isto é, aexplicação da própria vida, a escolha do próprio destino, oreencontro com o espírito – afastado do homem desde osternos anos de sua infância – e, finalmente, dominando aciência do saber transcendente, o servir à humanidade comsabedoria, paciência, tolerância e prudência. Exercitando-

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se na suprema arte de ensinar a verdade, conhecendo ostempos em que maduram os frutos da simbólica árvore dosaber, esperando com inteligência esse tempo, Cláudioexperimentava a felicidade ultra-humana de sentir-se ini-ciado nos mistérios da mais alta das ciências, a do conheci-mento transcendente, que abre, qual chave mestra, as por-tas que dão acesso ao mundo invisível das concepções uni-versais: o Mundo Mental da Criação.

Nas vésperas da partida, encontrando-se todosnovamente em amável tertúlia, De Sándara, a propósito dealgumas atitudes melancólicas motivadas pela própria cir-cunstância, expressou:

– Embora as despedidas sempre comovam nossasensibilidade, considero que os afastamentos que se dãosob o signo do apreço e da amizade são altamente benéfi-cos. Fazem-nos pensar e recolher, em nossa recordação,fatos e detalhes que, por serem valiosos, compensam emmuito os hábitos da convivência assídua. As ausências,quando são promessas de novos encontros, servem parafortalecer os laços do mútuo afeto, como o que nos reúnehoje para rubricar com um “até breve” o momento denossa despedida.

E, com ânimo de deixar impresso nas mentes deseus amigos algo que os faria pensar muito, acrescentou:

– Como recomendação final, vou me referir a umaverdade que eu gostaria que ficasse gravada em vocêsmuito profundamente.

Após uma pausa, continuou:– A vida humana obedece irresistivelmente às oscila-

ções de seu pêndulo evolutivo. Esse pêndulo sofre a influên-cia magnética de duas partículas lingüísticas, expressão deduas forças antagônicas que se arrogam e disputam o domí-nio sobre os acontecimentos que marcam, como balizas, o

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destino da criatura humana: o monossílabo “sí”* , signoadverbial de afirmação e, ao mesmo tempo, emblema debem e de felicidade; e o monossílabo “no”*, signo da nega-ção, que reúne – confundindo seus desígnios – a adversi-dade, o infortúnio e a desesperança. Quando, como duassílabas, o “sí” e o “no” se juntam em híbrido conúbio, equando governam alternativamente a vida num processomonótono e intranscendente, formam a palavra “sino”**,sinônimo de fatalidade. Eis aí o fim de todos aqueles quenão sabem forjar para si um destino melhor, impondo-seà influência do “no” e triunfando sobre ele, para que a vidase converta numa permanente afirmação de tudo o que denobre, excelso e grande existe na mente e no coração dohomem. Todo ser humano, mesmo sem saber, orientaseus afãs para a posse dessa cobiçada sílaba como corolá-rio de cada desejo, de cada aspiração ou objetivo. É ela anota musical que o homem espera ouvir da mulheramada, e é também ela que preside à alegria e provoca oreconhecimento e o júbilo com que celebramos os peque-nos e grandes acontecimentos de nossa vida. O contrárioacontece com o “no”, cuja tétrica presença se reflete natristeza e no pranto que embaça nossas pupilas, comoexpressão da felicidade ou do bem negado a nossos cora-ções. Para aumentarmos o volume do “sí”, que é, afinal, aforça vital da qual nossas esperanças se nutrem, e dimi-nuir o do “no”, que nos oprime e anula, devemos trabalharsem descanso para aperfeiçoar a obra de nossa vida, paraaperfeiçoá-la de tal maneira que isso mesmo nos permitarepartir, a mancheias, a felicidade e o bem conquistadospor nós.

(*) N.T.: “sí” e “no” equivalem, em português, aos advérbios “sim” e “não”, respectivamente.(**) N.T.:“sino” significa “destino”, “sina”.

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Quando, no dia seguinte, o avião em que viajavamse deslocava pelas alturas rumo ao sul, Cláudio e Griseldarecordavam os momentos que, misturados a sensaçõesinesquecíveis, eles haviam passado junto àqueles seres emcujas almas se espelhavam suas vidas, dignas do respeitoe do afeto de quantos desfrutaram sua amizade.

A voz convincente, clara e afetuosa que tão genero-samente derramara sobre eles o caudal de sua sabedoria,seguiria vibrando na intimidade de suas almas, com alembrança inapagável dos dias passados naquele insus-peitado oásis de sonho que conheceram no México: o lardo senhor De Sándara.

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