velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no...

130

Transcript of velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no...

Page 1: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 2: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 3: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 4: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 5: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

O AMARGO OBITUARIODO CINEMA

PERNAMBUCANO

Rodrigo Almeida

Recife, 2019

´

Page 6: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

O amargo obituário do cinema pernambucano

Rodrigo Almeida, 2019

Creative Commons (by-sa)

Atribuição – Compartilhamento pela mesma licença

Produção: Dora Amorim, Júlia Machado e Thaís Vidal (Ponte Produtoras)

Projeto Gráfico e Diagramação: Pedro Giongo

Capa: Pedro Giongo, a partir de ilustração da revista Cinearte de 05 de

Novembro de 1927.

Apresentação e Revisão: Thaís Vidal

ALMEIDA, Rodrigo. O amargo obituário do cinema pernambucano. Velhos

Hábitos Ed.: Recife/Natal, 2019.

ISBN 978–85–912753–3–5

138 páginas

1. Cinema 2. Cinema Pernambucano 3. História

Page 7: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

Eu vivo no cinema. Eu sinto que vivi aqui desde sempre.

Agnés Varda

Page 8: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 9: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

Agradeço a todas as pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para essa pesquisa, todas que se mostraram disponíveis para uma escuta ativa, fazendo com que as reflexões sobre, com e a partir de narrativas subterrâneas da memória e da história do cinema pernambucano rompessem o isolamento epistemológico e encontrassem o conforto de um bom diálogo. Agradeço especialmente a Vitor Lagden, companheiro de vida, e a Dora Amorim, grande amiga e produtora que primeiro acolheu a minha proposta; assim como as suas sócias na Ponte Produtoras, Thaís Vidal, responsável pela revisão cuidadosa e apresentação desse livro, e Júlia Machado, que assumiu a difícil e fundamental logística do projeto. Agradeço também a Pedro Giongo pelo belo trabalho na capa e diagramação; ao Funcultura pelo financiamento e à Biblioteca Nacional, pois os resultados aqui colhidos só foram possíveis graças à digitalização do seu acervo de periódicos. Ainda que a educação e o conhecimento de forma geral estejam sob ataque das mais diversas instâncias desse país, um movimento que muitas vezes rouba nossa atenção, acaba com nossas forças e abafa nossas subjetividades, acredito que fechar essa publicação em meio às ruínas é um aceno para o futuro, para o acolhimento, a resistência e a continuidade. Sou também muito grato por isso.

Rodrigo Almeida

Page 10: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

SUMÁRIO

Page 11: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

I. UMA BREVE HISTÓRIA DA DESAPARIÇÃO

1.1 O ESQUECIMENTO COMO DIMENSÃO HISTÓRICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

1.2 O POTENCIAL HISTÓRICO DAS IMAGENS TÉCNICAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

1.3 POR QUE GUARDAR IMAGENS? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27

1.4 UM DESLOCAMENTO NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .49

II. O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

2.1 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59

2.2 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .75

2.3 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS. . . . . . . . . . . . . .91

2.4 EM BUSCA DE “COELHO SAI” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

ANEXOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

Page 12: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

12

APRESENTAÇÃO

Em O Amargo Obituário do Cinema Pernambucano, Rodrigo faz um movimento duplo. Ele nos afronta, tocando na nossa capacidade enquanto sociedade de salvaguardar e se interessar pela memória e preservação da história, e nos presenteia com tesouros escondidos, ou com o mapa de tesouros já perdidos, para que com eles possamos refletir sobre o que não queremos deixar ser esquecido. Ele nos estimula a pensar no sentido da preservação e da materialização da memória social e no desejo de lembrar não apenas como indivíduos, mas sobretudo, como sociedade.

Na primeira parte do livro, Uma breve história da desaparição, Rodrigo nos vai apontando o esquecimento e a memória como dimensão histórica, permeando a potencialidade que as imagens, desde a fotografia ao cinema, carregam para a construção da história; e reflete sobre a importância de se guardar essas imagens. Para além da esfera física do esquecimento, que é a deterioração de artefatos da história, aqui centrada nos artefatos do cinema, ele nos aponta também para o esquecimento na dimensão subjetiva, que perpassa toda uma construção social brasileira.

As perguntas são muitas: O que queremos lembrar? O que conseguimos acessar? O que deixamos perecer? O que nos importa na história? Precisamos guardar e cuidar para acessar e acessar para lembrar. E, nesse sentido, ele propõe que a memória precisa estar materializada e disponível para que se fortaleça como história.

Na segunda parte, O amargo obituário do cinema pernambucano, mergulhamos diretamente em sua pesquisa historiográfica, fortemente centrada em jornais da época, onde temos acesso a informações sobre filmes exibidos, desaparecidos, incompletos ou nunca realizados, perpassando as primeiras exibições em Kinetoscópio, Motoscópio e Cinematógrafo, datadas dos fins do século XIX e início do século XX e responsáveis pela construção de uma gradativa cultura de consumo desse tipo de imagem no Recife.

Page 13: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

13

Almeida nos situa historicamente e traz trechos de matérias jornalísticas da época que anunciam e avaliam exibições, nos colocando também em confronto com a verdade desses textos e da própria história local, o que nos provoca a pensar sobre como a memória é guardada e quem conta a história. Ele aponta ainda para a necessidade de se olhar criticamente para esses materiais, compreendendo as contradições presentes neles para que não nos levem a romantizar ou tratar com ufanismo, mas, sobretudo, nos tragam compreensão sobre os passos dados e os caminhos traçados.

É também nessa segunda parte que conhecemos a história das primeiras captações feitas no Recife, e os vínculos políticos e sociais ligados a elas de formal local e internacional, com destaque para uma forte presença italiana, precedente do Ciclo do Recife. Essa retrospectiva histórica que o livro nos traz traça uma espécie de linha do tempo dessas imagens, grande parte perdida ou que nos suscita a dúvida sobre sua real execução, em um caminho que nos leva a entender principalmente a construção de uma cultura do consumo e da produção de cinema no Recife.

Entre imagens que constroem memória coletiva e imagens publicitárias produzidas no início do século XX, ficamos com uma lacuna de parte do que foi produzido, restando em notícias ou na memória de poucos, o que é por si só reducionista. Rodrigo nos narra, entretanto, um obituário de filmes, apontando a diversidade de títulos que desapareceram com o tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife.

Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória e da história e mobilizar para que se pense sobre a guarda das imagens, para que não pereçam ao tempo, não sejam nebulosas e nos possibilitem proposições e entendimentos de passado e futuro.

Thaís Vidal1

1 Thaís é produtora de cinema, sócia da Ponte Produtoras, empresa audiovisual do Recife fundada em 2015 e que é responsável pela produção desta obra. É graduada em jornalismo pela UFPE e mestre em urbanismo pelo MDU/UFPE.

Page 14: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 15: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

PARTE I

UMA BREVE HISTÓRIA DA DESAPARIÇÃO

Page 16: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

16

Page 17: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

17O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

1.1O ESQUECIMENTO COMO DIMENSÃO HISTÓRICA

Parece que carregamos conosco um problema individual e coletivo de memória. Não nascemos sabendo do que aconteceu antes de chegarmos por aqui, não conhecemos automaticamente ou milagrosamente as histórias e as imagens que nos precederam. Não somos os sofisticados robôs dos filmes de ficção científica, capazes de absorver num segundo um vasto universo de informações. Precisamos de tempo, de crescimento, de investimento, de oportunidades e de maturação. Se não corremos atrás, num mundo de obstáculos e limitações, se não socializamos e somos socializados, podemos, inclusive, passar a vida inteira sem saber nada sobre a existência de determinadas histórias e imagens. Às vezes, não há condições materiais de conhecê-las, foram queimadas, esquecidas ou silenciadas, tornaram-se por mil e um motivos inacessíveis em nosso presente. Podem ter sido vítimas de uma má gestão da memória, de uma ideologização da história que comumente aniquila lembranças dissidentes. Às vezes, não há curiosidade, não há o afã de um(a) caçador(a) de conhecimento, não há vontade de descobrir, de saber “como foi”, de ter uma mínima ideia de “como era”, de “como deve ter sido”. De quando em vez, também falta imaginação.

Não há dúvida de que a imagem ultrapassa nossa capacidade de recordação: ela registra momentos de nossa tenra infância que não conseguimos acessar; ativa situações que não exatamente esquecemos, mas que tampouco voltaríamos a lembrar, enchendo-as novamente de vida em nossa cabeça. Para além do corpo que habitamos, a imagem carrega em dada medida a memória dos outros, implica imaginário e imaginação, certezas e incertezas, lembranças e lembranças falsas, quase como uma prótese de segunda mão, que nos permite ver além, por meio de artefatos, repertórios, arquivos primários ou mediados. Enquanto sobrevive e atravessa o tempo, anacronizando e sendo anacronizada, a imagem reconfigura narrativas e conduz o manto estético com o qual

Page 18: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

18 O ESQUECIMENTO COMO DIMENSÃO HISTÓRICA

cobrimos o passado histórico. Se, de certa forma, o passado só existe enquanto lembrado; se concordamos que nem tudo que está indisponível necessariamente está desaparecido, podemos dizer que no processo de lembrança é como se todos nós sofrêssemos um pouco de paramnésia2, desse distúrbio que altera com traços ficcionais nossa capacidade mnemônica factual.

Em muitos casos, a ausência de lembrança, o que grosseiramente chamamos de esquecimento, insurge em consequência da ausência das narrativas de alguns atores sociais e de fontes materiais que nos façam lembrar, que nos suscitem aromas e atmosferas passadas. E, assim, segue-se esquecendo, em contrapartida a uma vontade inesgotável de rememoração. Sabemos, todos e todas, que em alguns lugares há demasiada memória, enquanto em outros há demasiada omissão. A história da cultura, das imagens, da fotografia, do cinema, a história da preservação do cinema subalterno e periférico confunde-se com a história da precariedade, da falta de política pública, da incapacidade de conservação. Uma história de perdas, de incêndios; uma história da desaparição. Se, por um lado, há uma sociedade que vive a ilusão de ser bem informada num contexto de disseminação massiva de desinformação; por outro, essa mesma sociedade pouco mergulha efetivamente em seu passado registrado, nos rastros do que sobrou do passado registrado, muitas vezes celebrando a opressão e apontando o dedo para as vítimas. Diante desse cenário decadente, de um incomum orgulho da ignorância, só podemos concluir, parafraseando Paul Ricoeur (2008), que o esquecimento no Brasil se apresenta como uma dimensão e condição histórica de quem somos.

2 John Hersey escreveu e lançou uma reportagem devastadora em 1946, a partir dos relatos de seis sobreviventes do ataque nuclear de Hiroshima. Cinquenta anos depois, ele retornou à cidade para finalizar sua obra e, ao reencontrar seus entrevistados, percebeu que alguns deles começaram a esquecer detalhes de suas próprias histórias: estavam confundindo acontecimentos, misturando situações que viveram, que foram registradas por entrevistas, com outras que leram em livros ou matérias, que ouviram falar em programas de rádio ou que viram em filmes por vezes realizados por diretores estrangeiros. O autor fecha o seu livro com uma amarga conclusão: “suas memórias, como as do mundo, começavam a falhar” (2002, p.107).

Page 19: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

19O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Mesmo aos trancos e barrancos, passamos por alguns avanços sociais nos últimos quinze anos, as universidades públicas até então essencialmente brancas, elitistas e heteronormativas incorporaram outras raças, gêneros, sexualidades e classes, resultando espontaneamente na difusão de diversas histórias, imagens, perspectivas. Desde o primeiro dia de 2019, no entanto, há um projeto de desmonte da educação e da cultura em curso, congelamento de recursos, cortes de bolsas, precarização do trabalho, a fim de retroceder com as conquistas, sucatear o ensino público e afastar das salas de aula a presença desses novos atores sociais. No campo da memória, o embate também prossegue: temos um presidente da República que recentemente afirmou ser o Nazismo3 um movimento de esquerda, que incentivou tratar (e celebrar) o Golpe Militar de 1964, responsável pela morte e tortura de centenas de pessoas, como uma revolução de proteção da pátria contra a invasão comunista. Ambos os casos marcam uma crescente disputa narrativa pelo passado, que se espreita entre a desonestidade intelectual e a crise cognitiva.

O caso dos bandeirantes no Brasil talvez seja um dos mais emblemáticos: vistos por muito tempo como heróis nacionais, responsáveis por desbravarem terras não conhecidas de nosso território, sendo homenageados até hoje em nomes de vias públicas, prédios e praças, especialmente em São Paulo; atualmente são colocados como figuras sanguinárias e cruéis, verdadeiros mercenários, que aniquilaram quilombos e saquearam aldeias indígenas, matando crianças, violentando mulheres e submetendo os sobreviventes a um regime de escravidão. Apesar das pinturas, ilustrações e esculturas, a própria imagem pomposa

3 Ainda no início dos anos 2000, uma pesquisa realizada pelo IBOPE sob encomenda do Comitê Judaico Americano buscava dimensionar o conhecimento das pessoas sobre o Holocausto: entre os países pesquisados, o Brasil era o que possuía o menor resquício de memória sobre a perseguição e extermínio de judeus e outras minorias pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Segundo o resultado, 89% dos entrevistados responderam “não sei” ou deram respostas consideradas incorretas quando indagados sobre ao que se referia a palavra Holocausto. O mais preocupante, no entanto, era perceber que mesmo depois de informados sobre o episódio histórico, 32% dos brasileiros não tinham a menor ideia de que ele havia ocorrido.

Page 20: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

20 O ESQUECIMENTO COMO DIMENSÃO HISTÓRICA

e idealizada dos bandeirantes, com botas de montar, calças de veludo, casacas de couro almofadado e chapéu volumoso não condiz com a realidade em que viveram, não possui compatibilidade histórica, sendo uma representação póstuma e romântica feita a partir do século XIX, baseada em figuras portuguesas aristocráticas a fim de referendar a linhagem da descendência paulistana. A memória e a história sempre funcionaram sob a esfera do poder.

De toda forma, também há uma grande discussão acerca dos limites da representação de eventos traumáticos, como o Holocausto e a Escravidão dos povos africanos. Representar não necessariamente significa despertar o pensamento crítico; representar pode respaldar, gerar compreensão, identificação. Enquanto linguagem e discurso, portanto, a representação pode naturalizar, banalizar, agindo, até certo ponto, na humanização dos algozes e infligindo um novo sofrimento aos descendentes das vítimas, aos que sofreram e sofrem consequências do trauma na pele até hoje. Todavia, por outro lado, num contexto em que o imaginário estético se confunde cada vez mais com o imaginário histórico, diante de uma realidade em que os níveis de leitura são baixíssimos, em que temos quase 30% de analfabetos funcionais em nosso país, segundo dados do IBGE; se o passado não se tornar imagem e não continuar insistentemente a se tornar imagem, se ele não ganhar os contornos de uma narrativa massificada e dinâmica, se o passado não for estetizado terminará esquecido. Talvez essa seja uma das irreversíveis políticas de representação da contemporaneidade, pois, caso contrário, é como se as vítimas fossem eliminadas da história uma segunda, terceira, quarta vez, como se recebessem a mesma ameaça do protagonista do livro 1984, de George Orwell: “nada restará de ti: nem um nome num registro, nenhuma lembrança na mente. Serás aniquilado tanto no passado como no futuro. Não terás existido nunca” (2003, p. 151).

Decerto, vagando entre crenças e descrenças, entre credulidade e incredulidade, vivemos uma espécie de “história de segundo grau” (BLÜMLINGER, 2010, p.102), em que narrativas circulam e se referem a

Page 21: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

21O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

outras narrativas sem necessariamente tangenciar o real; vestígios são remodelados ganhando novos contornos de verdade; e “somos habitados pelos imaginários dos imaginários” (LEVY In PARENTE, 2008, p. 79), num mundo assolado por confusas e sobrepostas formas do contar, arquivar, acreditar. O passado enquanto território mental e material fica à mercê de figurações, desfigurações, manipulações, intervenções, reconfigurações das mais diversas ordens midiáticas. “Como lembrar” e “o que esquecer” se fortalecem como políticas disruptivas de Estado e é nesse contexto que as imagens agem como semióforos contra a indiferença e contra a camuflagem estrutural, funcionam como guias para continuarmos caminhando na terra arrasada que um dia já foi conhecida como Brasil. As imagens agem no despertar político, despertar urgente, tocando diretamente na reformulação do imaginário social através da memória visual, afinal, “existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa” (BENJAMIN, 2013, p. 10), mantendo firme, num jogo entre esquecimento, persistência e reminiscência, a herança dos que foram mortos e oprimidos, a herança dos que lutaram para que estejam vivas as gerações por vir.

Page 22: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

22

Page 23: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

23O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

1.2O POTENCIAL HISTÓRICO DAS IMAGENS TÉCNICAS

Em março de 1898, menos de três anos depois da primeira sessão oficial do cinematógrafo, o fotógrafo polonês Boleslaw Matuszewski, funcionário da fábrica dos Lumière, publicou em Paris o manifesto Une nouvelle source de l’histoire du cinéma (Création d’un dépôt de cinématographie historique), onde defendia a necessidade de criação de uma coleção pública das imagens produzidas pelo novo aparato, na Biblioteca Nacional Francesa. Foi o primeiro passo para que posteriormente, apesar da desconfiança, imagens técnicas fossem gradualmente incorporadas – também muitas vezes rejeitadas – como legítima fonte histórica ao longo do século XX. A defesa esquecida de Matuszewski, envolvendo coleção, preservação e catalogação, numa época em que havia apenas um punhado de filmes, tomava como pressuposto o ‘valor histórico’, ‘o potencial histórico’ do cinema, cujo banco de dados serviria para o futuro ensino do passado sob novos parâmetros: “entre uma fonte de luz no escuro e um pano branco, seria possível vermos os mortos e desaparecidos ficarem de pé e voltarem a andar” (MATUSZEWSKI, 1898, p. 3, tradução nossa).

De fato, trata-se de uma visão bastante diferente da propagada na frase popularmente atribuída a Louis Lumière de que o cinema era uma invenção sem futuro, que nasceria e morreria nos circuitos de variedades nos quais comumente era exibido. Mais notável é que para além da percepção do cinema primitivo como forma de documentar acontecimentos políticos, grandes artistas, costumes locais, gerando um semblante oficial manejado pelo Estado para o conhecimento direto do passado, o fotógrafo já apontava para duas outras direções. A primeira para o desejo de “captar os fatos inesperados que emergem em frente ao sujeito” (IDEM, p.4), complementando os acontecimentos premeditados ou demasiadamente institucionais / oficiais; a segunda para a possibilidade de “traçar uma história cinematográfica de uma geração” (IDEM, p.5), reunindo produções de origens e gêneros diferentes, a fim

Page 24: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

24 O POTENCIAL HISTÓRICO DAS IMAGENS TÉCNICAS

de talhar um imaginário estético produzido e partilhado durante um conjunto de anos. Uma cartografia de temas, gestos e sensibilidades: isto é, pathosformel4!

O ‘potencial histórico’ das imagens técnicas, dos filmes em específico, foi observado primeiro nos registros documentais, somente depois nas ficções, em especial por essas captarem as nuances do momento de produção como uma inscrição material do tempo, não necessariamente contemplada pelas intenções dos realizadores. “Um travelling, procedimento aparentemente utilizado para exprimir duração pode exprimir zonas ideológicas e sociais não previstas a priori ou mesmo antagônicas ao desejo preliminar de realização” (FERRO, p. 16, 1992). As imagens escapam de si para se perpetuarem, por meio do que está em primeiro plano ou balançando discretamente no fundo, pela textura do suporte, pela textura do passar dos anos; pelo enquadramento, pelo ritmo e velocidade da montagem, pela pirotecnia de movimentos ou pela imersão na imobilidade; antes mesmo de representar o passado, formalizou-se como um “documento de sua época, veiculando valores, projetos, ideologias” (CAPELATO, 2007, p.9) e capturando uma constelação de “gestos, objetos, comportamentos sociais, etc que são transmitidos sem que o próprio diretor queira” (MORETTIN in CAPELATO, 2007, p. 43).

O problema é que o campo teórico formulado entre “as imagens e a história”/“a história e as imagens” revela uma viciada orientação investigativa, uma limitada autocrítica e uma falta de maturação epistemológica que tange o pensamento pela uniformidade em contraponto à diversidade de abordagens, desde as pioneiras e irregulares

4 Pathosformel ou “Fórmula de Pathos” se refere a um caminho metodológico proposto pelo historiador da arte alemão, Aby Warburg, para observar gestos, formas, emoções presentes em diversas obras afastadas no tempo e espaço, a fim de traçar uma aproximação entre elas, tomando como princípio a originalidade de cada uma, sem deixar de perceber que todas elas também carregam uma repetição. Nesse sentido, Pathosformel foi fundamental para reestruturar a pesquisa historiográfica como uma trajetória em espiral, inspirando mergulhos e diálogos improváveis, enquanto deixa de lado a comum dimensão linear ao qual fomos insistentemente submetidos na escola, com todos os acontecimentos sendo decifrados por seu nascimento, auge e decadência.

Page 25: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

25O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

incursões do historiador francês Marc Ferro (1976/1977) até as pesquisas realizadas nos dias atuais. Para além da importante legitimação das imagens técnicas como fontes diretas de forte valor histórico, uma fonte consciente de seu lugar midiatizado, encontramos abordagens ora pragmáticas, ora didáticas, pensando no uso do cinema como ferramenta de ensino da história e outras disciplinas (WINEBURG, 2001, REIS, 2004; FREITAS, SILVA, 2015); passando pela observação histórica de uma obra, um conjunto de obras ou a filmografia de um cineasta específico (MORETTIN et al., 2012; CAPELATO et al., 2007; NÓVOA, BARROS, 2008); até chegar nas representações de um determinado tema ou reunindo visões diferentes sobre um mesmo período pretérito em suspenso (ROSENSTONE, 1995; CARNES, 1997; NIGRA, 2012).

Na maioria dos casos, trata-se de uma proposta pedagógica, um olhar para ilustrar (ou contestar) os acontecimentos, os assuntos, as cenas e o cenário diante de uma base historiográfica/cinematográfica pré-estabelecida, “um aditivo tecnológico” (LEANDRO, 2001, p. 20) para que os bons historiadores exegetas, cientes de sua missão pela veracidade do retrato, seduzidos pelo controle de seus domínios, apontem confirmações, anacronismos e correções nas produções audiovisuais. Assim, repetem-se estudos sobre os mesmos períodos, sobre as mesmas figuras históricas, sobre os mesmos cineastas e movimentos cinematográficos a partir de um rol bastante similar de autores, muitas vezes constituindo grupos que legitimam seus membros a partir dos mesmos referenciais, de forma que as investigações recaem nas maneiras mais comuns de relacionar a imagem, o cinema e a história, isto é, “na transformação de um dos termos em objeto do outro: a história como objeto do cinema, ou o cinema como objeto da história” (HAGEMEYER, p. 9, 2012). Não há um campo híbrido e aberto, mas dois bem distintos, fechados e distantes, encurralados cada qual em seus paradigmas teóricos, como estranhos que se olham intrigados, mas não se reconhecem.

Por mais que a comunicação e a consciência histórica estejam crescentemente determinadas por elementos e mídias visuais (ROSENSTONE, 2010), há um ressentimento na produção acadêmica de

Page 26: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

26 O POTENCIAL HISTÓRICO DAS IMAGENS TÉCNICAS

conhecimento: a arte, os objetos artísticos, as intervenções não escritas, a própria cultura de massa não ultrapassam a função objeto, a posição de corpus pronto a receber análises sob os mais diversos referenciais; as imagens portam-se como reféns dos desejos teóricos dos seus pesquisadores. Pensa-se sobre imagens, não com as imagens. Um rancor platônico5 baseado na noção de que a visualidade é em sua essência frívola e que jamais seria tão “profunda” quanto a escrita, que por mais instigante, influente e sofisticada que seja, ela precisa da academia, das formas e propósitos da academia para ser legitimada.

Há uma falta de estímulo que “nos leve a uma verdadeira práxis do audiovisual ou do cinema, uma práxis que questionaria a pedagogia da própria imagem” (LEANDRO, 2001, p. 29), isso porque as imagens nascem já subjugadas pela ordem teórica, como se fosse impossível delas próprias tecerem também uma parcela de teoria, uma proposição por outras vias, uma independência consciente de um regime estético permeado por relações, técnicas, sensibilidades e funções. As imagens são vistas univocamente pela sua aplicabilidade, referendando um pensamento histórico hegemônico, que permanece firme no imaginário dos bacharelados e licenciaturas, isto é, o pensamento de que o historiador é o dono da história e o dono das formas de se fazer história, postura bastante contestada dentro e fora do ambiente acadêmico.

Tais pressupostos nos servem para entender que uma investigação historiográfica se torna mais incisiva quando não se transforma numa retrospectiva de julgamento moral, cascavilhando o passado com as medidas e os parâmetros do presente. A filologia e a hermenêutica, nesse sentido, são dois campos fundamentais para sabermos como entrar no

5 Platônico se refere aqui literalmente às reflexões de Platão sobre a imagem enquanto uma imitação da imitação, aquilo que parece, mas não é; a imagem, nesse sentido, postula um problema ontológico para o campo filosófico, porque se mostra insuficiente, não confiável; a imagem, portanto, ocupa uma dimensão incapaz de constituir um saber ou uma verdade. Sobre isso, a filósofa Maria-José Mondzain diz: “o que ele vê aí é de todo justo e eu o defendo: não há saber sobre a imagem. Para Platão é sua fraqueza, para mim é sua força e seu destino político” (2008, online).

Page 27: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

27O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

passado, como estabelecer uma leitura diacrônica, como caminhar por esse solo que já não existe mais. No entanto, isso não significa dizer que é necessário corroborar os discursos antigos, muito menos defendê-los evocando uma nostalgia idílica, mas criticamente compreendê-los, expondo o contexto em que foram produzidos para notar, assim, como determinados esquecimentos foram premeditados e como, por vezes, foram cometidos através da cegueira de ordem ufanista, típica de uma cultura provinciana. O que se mostra mais importante aqui é a capacidade de transpor o campo do visível, seguindo para além de leituras somente sociológicas ou estéticas, a fim de instaurar uma noção de ‘fora de campo’ para adentrar mais pelo que se esconde do que pelo que se exibe: até porque em inúmeros casos, o que se esconde é mais importante do que o que se exibe.

As imagens técnicas, as lembranças sobre as primeiras imagens técnicas, sobre as primeiras exibições de filmes, sobre as improvisadas salas de cinema, sobre as primeiras filmagens, sobre o primeiro filme sonoro são valorosas como um caminho de arguta problematização filosófica e especialmente historiográfica. Não se trata de literalmente enfrentar e analisar imagens, porque muitas das que serão citadas na segunda parte do livro, abordando quatro momentos específicos da história do cinema pernambucano entre 1896 e 1941, já desapareceram, não foram preservadas, deixaram de existir. A verdade é que praticamente não sobrou nada, o que diz muito sobre nós mesmos e sobre a forma como lidamos com a nossa memória coletiva, mas, decerto, se por um lado, não podemos vê-las (as imagens), por outro, podemos adentrar pelas menções de suas existências. Diante de um trabalho aparentemente impossível, lendo jornais e mais jornais antigos, caminhando sobre um sítio arqueológico pouco ou nunca explorado, durante a sedimentação de um contexto histórico, logo percebi que não se tratava de um esforço no campo da visão, mas de um gesto metodológico criativo em defesa da imaginação.

Page 28: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

28

Page 29: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

29O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

1.3POR QUE GUARDAR IMAGENS?

Apesar de vivermos numa civilização que produz e consome imagens de forma cada vez mais voraz e banal; apesar de não estarmos apenas cercados, mas sermos sistematicamente bombardeados por elas, a ponto de refletirmos sobre a lógica cognitiva de sua presença na sociabilidade dos seres humanos, as imagens digitais, individualmente, parecem ter menos importância que as antigas imagens analógicas. Hoje, tiramos prints, selfies, fazemos vídeos e somamos, por vezes, algumas milhares de imagens em nossos celulares, raramente retornando a elas num momento posterior. Há talvez aqui uma diferença fundamental entre guardar e acumular, uma diferença entre objetos com e sem sentido ontológico, histórico ou afetivo. Hoje, mães e pais criam perfis de seus filhos recém-nascidos, alimentando uma trajetória visual diária com todas as roupinhas em momentos cotidianos, capturando primeiro banho, primeiro passeio, primeira festinha. Durante o regime analógico havia uma limitação de poses num filme, o próprio acesso à fotografia era bastante limitado para muitas famílias, o que preconizava um cuidado e direcionava uma rígida seleção, dando um valor diferente à escolha daquela fotografia que iria representar, por muitos anos, uma pessoa, situação, um momento especial ou sentimento num porta-retrato na sala de estar. A fotografia, de fato, ocupava com materialidade o espaço de uma ausência.

Voltaremos a esse ponto no final deste tópico, mas por ora deslocando do ambiente privado para o público, podemos nos perguntar: quando, afinal, as pessoas perceberam que era importante guardar, conservar e preservar imagens técnicas, particularmente fotografias e filmes? A pergunta é relevante, antes de tudo, diante da situação de inúmeros países – não por acaso a grande maioria localizada no sul global – que perderam e continuam perdendo parte considerável de sua memória

Page 30: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

30 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

fotográfica e cinematográfica6. Segundo a Biblioteca do Congresso dos EUA, estima-se que, mundialmente, cerca de 75% das produções realizadas nas primeiras décadas do século XX tenham se perdido. Um país como o Japão, por exemplo, perdeu 95% do seu cinema mudo devido desastres naturais, bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial, assim como pela política de destruição de cópias de filmes, após o fim do conflito bélico, promovida pelos EUA em território nipônico, a fim de aniquilar um “pensamento imperial” naquele país.

Para além dos arquivos particulares de colecionadores, a preservação efetiva dos filmes só se iniciou como política pública, mesmo num país como a França que foi o primeiro a se preocupar com a preservação, coleção e estudo de filmes, a partir da década de 1930. Especialmente, por conta de Henri Langlois, “o guardião da memória do cinema”, uma espécie de figura emblemática da cinefilia clássica, que iniciou seu trabalho de conservação durante sua juventude, coletando obras ao perceber que os filmes mudos estavam desaparecendo do circuito de exibição. Até então e internacionalmente até pelo menos 1938, com a fundação, em Paris, da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), não havia uma preocupação específica de fazer a produção audiovisual de um tempo chegar às gerações seguintes, ignorava-se igual um possível enfrentamento do passado como imagem, de forma

6 Em setembro de 2009, por exemplo, Ouagadougou, capital de Burkina Faso, foi atingida por fortes tempestades, o que ocasionou a inundação da Cinemateca Africana, danificando uma considerável parte das 1.500 películas armazenadas. Alguns títulos, cópias únicas não digitalizadas, perderam-se para sempre. O incidente despertou novamente o debate colonial/anticolonial sobre a preservação de obras no continente africano: muitos tesouros de diferentes linguagens e técnicas foram saqueados ao longo de séculos dos países colonizados, levados para os países colonizadores e continuam expostos em museus europeus até hoje – indiferentes às reivindicações de devolução. Por outro lado, por uma combinação de fatores que incluem as severas consequências do colonialismo, guerras civis, fanatismo religioso e falta de políticas públicas, vemos em alguns lugares (como no Brasil) a falta das condições ideais de preservação de sua memória cultural e histórica. Trata-se de um vasto debate sem resolução, que também pode ser observado no campo cinematográfico ao analisarmos o acervo da Cinemateca da Embaixada da França, no Rio de Janeiro, que não por acaso reúne a maior coleção de filmes africanos da América Latina.

Page 31: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

31O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

que as películas costumavam ser jogadas no lixo ou derretidas após a circulação. Seja para servirem como piche no calçamento de vias, seja para se transformarem em esmalte ou graxa, seja para a produção dos saltos nos calçados de cano alto.

Langlois, seguindo uma preocupação que habitava cada vez mais os círculos intelectuais de amantes do cinema da época, é considerado uma das personas mais importantes da história da sétima arte sem ter realizado filmes, mas por ter idealizado aos 22 anos, ao lado de Georges Franju e a partir de um grupo de estudos que organizava exibições gratuitas, a criação da Cinemateca Francesa, em 2 de setembro de 1936. O marco é fundamental por ser o primeiro espaço mantido por um governo no intuito de criar um acervo cinematográfico, uma das instituições culturais mais importantes do mundo e responsável pela formação cinematográfica de gerações, desde lá, até hoje, incluindo cineastas, críticos e intelectuais, com especial destaque para os “filhos da cinemateca”/”jovens turcos” (Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Jacques Rivette, Claude Chabrol, Eric Rohmer). A Cinemateca nasceu, portanto, como resultado de uma ação individual e à revelia da indústria cinematográfica, pois se a primeira se propõe a defender uma vida póstuma aos filmes, a segunda entende que a sobrevivência dos mesmos está ligada diretamente ao período de circulação/exploração comercial.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, as sessões da Cinemateca com conversas depois dos filmes nos cafés da região para suscitar ideias sobre e para o mundo são apontadas como essenciais na formação de jovens realizadores franceses, especialmente nos trabalhos críticos a serviço da consolidação da Cahiers Du Cinema, revista de cinema mais respeitada do círculo cinéfilo mundial. Nesse âmbito, foi defendida a Política de Autores, o conceito de mise-en-scène aplicado ao cinema, desembocando na vasta fartura de filmes da Nouvelle Vague na década de 1960. Para Godard, Langlois criou “um novo modo de ver filmes” ao disponibilizar cinematografias até então desconhecidas, colocando estéticas em diálogo, valorizando “a diversidade dos gêneros e atentando

Page 32: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

32 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

às propostas acumuladas pela história” (XAVIER, 2004, p. 30). Ainda que a cinefilia tenha encontrado novas ferramentas e se embrenhado em buracos cada vez mais desconhecidos com a internet, até hoje a presença desse “modo de ver” delineia a relação entre sujeitos e o filme, colocando a sétima arte como fonte inesgotável de reflexão e investindo na preservação como uma prática arqueológica. Atualmente, o espaço conta com mais de 40 mil filmes, 23 mil pôsteres, 500 mil fotografias, 30 mil dossiês documentais e milhares de objetos, figurinos e equipamentos, constituindo uma das maiores bases de dados globais sobre o cinema.

A ostensiva ação de Langlois para expandir e refletir sobre as idiossincrasias do olhar consolidou definitivamente o cinema como arte a ser preservada, de modo a criar um sentimento próprio disseminado para além das fronteiras espaciais ou temporais, num sentido cujo vínculo era marcado profundamente pelos filmes de menor potência comercial, tomando a sala escura e a experiência coletiva como condições ideais de fruição. Desde a década de 1930, sua influência é marcante na consolidação da cinefilia por todo o mundo, incluindo, claro, o Brasil, por meio da figura de Paulo Emílio Salles Gomes, que entrou em contato com a movimentação cinematográfica na França durante seu exílio em 1937. Ao retornar ao Brasil, fundou em 1940 (junto a nomes como Décio de Almeida Prado e Antonio Candido), o Clube de Cinema de São Paulo, que funcionava na Faculdade de Filosofia da USP. O espaço servia para exibição de filmes norte-americanos e europeus de caráter “socialmente engajado”, servindo também como nascedouro de publicação de revistas, artigos e livros.

O Clube de Cinema foi fechado pela ditadura do Estado Novo e reaberto em 1946, ano em que Paulo Emílio partiu para uma temporada de dez anos na França. Durante esse tempo continuou produzindo artigos regularmente publicados no Brasil, informando aos interessados pelo cinema o que acontecia de mais transgressor dentro do movimento cineclubista francês. A partir da filmoteca organizada em 1948 pela segunda geração do Clube de Cinema, com nomes como Francisco Luiz

Page 33: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

33O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

de Almeida Salles e Rubem Biáfora, foi criada em 1956, com o retorno de Paulo Emílio Salles da França assumindo o posto de conservador-mestre, a Cinemateca Brasileira, que por sua vez, apenas em 1984 foi parcialmente oficializada como um órgão federal. Na verdade, somente em 2003, a Cinemateca Brasileira foi definitivamente incorporada à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (Ministério que deixou de existir no Governo Bolsonaro, tornando-se uma Secretaria, primeiro gerida pelo Ministério da Cidadania, recentemente transferida para o Ministério do Turismo). Esse delay de quase cinquenta anos separando a criação da Cinemateca Brasileira de sua incorporação institucional, assim como causos marcantes de sua história, como veremos a seguir, fora a política de manter absolutamente restrita a circulação de seus materiais para outros espaços do país, definem um pouco o desprezo nacional pelo seu próprio passado cinematográfico.

Vale destacar que já em 1957, um incêndio causado pela autocombustão sofrida pelos filmes em suporte de nitrato de celulose destruiu suas instalações na Rua Sete de Abril em São Paulo. Em 18 de fevereiro de 1969, aconteceu um segundo incêndio na instalação, no portão 9 do Parque do Ibirapuera, com perda de diversos materiais documentais também em suporte de nitrato de celulose. No dia 06 de novembro de 1982, ocorreu o terceiro incêndio, que agravou as dificuldades financeiras da instituição e incentivou a defesa de sua incorporação ao poder público. Houve ainda um quarto incêndio mais recente em 3 de fevereiro de 2016, onde as chamas atingiram quatro depósitos de conservação, destruindo cerca de mil rolos de nitrato de celulose, datados até a década de 1950 (matrizes originais das quais apenas 63% possuíam cópias de segurança em suportes mais recentes, como fitas magnéticas ou arquivos digitais).

Page 34: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

34 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

A afirmação sobre uma história da desaparição, marcada por incêndios7, é literal. A Cinemateca Brasileira conta com o único laboratório público de restauração do país e possui o maior acervo de imagens em movimento da América Latina, formado por cerca de 200 mil rolos de filmes, que correspondem entre 30 e 40 mil títulos. São obras de ficção, documentários, cinejornais, filmes publicitários e registros familiares, nacionais e estrangeiros, produzidos desde 1895.

Criada em 1958, a segunda instituição mais antiga do país dessa natureza é a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), localizada no Rio de Janeiro, que, desde sua inauguração, marcou profundamente a vida cultural e artística da cidade. O espaço carrega uma forte história de formação de público e de resistência à censura, incentivando projeções clandestinas e salvaguardando cópias de filmes proibidos, que certamente seriam destruídos pela Ditadura Militar. O espaço logo se tornou um local de encontro, debate e reflexão sobre o cinema, atuando no repertório de exibições de filmes antigos, na promoção de cursos de cultura e realização cinematográfica, tendo entre seus participantes Arthur Omar, João Luiz Vieira e Neville D’Almeida. Através de parcerias com estúdios e institutos, a Cinemateca apoiou a produção e finalização de longas e curtas de baixo e baixíssimo orçamento, sendo também a casa principal de inúmeros festivais de cinema, mostras nacionais e internacionais, além de acolher até hoje inúmeras iniciativas cineclubistas. A instituição foi fundamental para dar as condições básicas de montagem e finalização de títulos, como Cara a Cara (1967), de Júlio Bressane, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade.

7 Não podemos deixar de mencionar aqui pelo menos três incêndios de grandes proporções que atingiram importantes espaços culturais brasileiros. O primeiro ocorreu em 29 de novembro de 2013 no Memorial da América Latina, destruindo parte do complexo e algumas obras, além de ferir cerca de dezessete pessoas. O segundo ocorreu em 21 de dezembro de 2015 no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, destruindo praticamente todo o prédio de três andares. Na ocasião, um bombeiro morreu devido a intoxicação pela fumaça. Por fim e sem dúvida a maior tragédia museológica do país, ocorreu no dia 2 de setembro de 2018, no Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro. Estima-se que o espaço, que estava completando 200 anos, tenha perdido para as chamas cerca de 90% de seu acervo de 20 milhões de itens, um dos maiores da América Latina. As peças tinham um valor incalculável e a maioria nunca mais poderá ser vista pessoalmente.

Page 35: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

35O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Diferentemente da Cinemateca Brasileira, que sempre manteve seu acervo parcialmente fechado, a Cinemateca do MAM, seja sob a direção de Cosme Alves Netto, seja mais recentemente sob a direção de Hernani Heffner, também teve um importante papel interinstitucional, disponibilizando programas em 16mm dos mais variados gêneros, épocas e cinematografias para outras cinematecas latino-americanas e cineclubes brasileiros. A partir de 1973, Cosme Netto começou a investir na restauração de filmes, recuperando o fragmento da ficção brasileira mais antiga ainda existente, Os Óculos do Vovô (1913), de Francisco Santos. É também na Cinemateca do MAM que se encontra o filme brasileiro mais antigo preservado, ironicamente chamado Reminiscências (1909-1926), do mineiro Aristides Junqueira. Falecido em 1952, teve seu acervo de fotografias e filmes em película em suporte de nitrato degradado ao longo dos anos e, por fim, acredita-se que esse material foi vendido/descartado por familiares. Somente na década de 1970, a Cinemateca do MAM teve acesso a Reminiscências, através da doação de uma cópia em nitrato feita por um neto de Aristides, o historiador Paulo Junqueira Alvarenga, que aparentemente guardou o material em sua geladeira por décadas.

Como não poderia deixar de ser, em julho de 1978, o MAM foi atingido por um trágico incêndio, mas a Cinemateca sofreu poucos danos. De toda forma, o ocorrido influenciou suas atividades, paralisou as projeções de filmes, de forma que reduzindo as ações externas, a instituição voltou seus esforços para sua reestruturação interna, visando a ordenação e melhoria de armazenamento de seu acervo. Cosme Netto iniciou, em 1980, o “Projeto Filho Pródigo”, responsável pelo importante trabalho de prospecção em acervos localizados ao redor do mundo e repatriação de filmes brasileiros (ou filmados no Brasil) considerados perdidos em território nacional. Anos depois, a Cinemateca do MAM também passou a receber e conservar enormes conjuntos fílmicos abandonados (especialmente durante o desmonte promovido com o fim da Embrafilme, no ano de 1990, no governo de Fernando Collor). Desde 1999, pelo menos, o espaço retomou suas ações iniciais de difusão e empréstimo,

Page 36: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

36 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

acolhendo atualmente além das películas, os filmes digitais. Estima-se que seu acervo, visivelmente não guardado nas melhores condições, conte com mais de 7 mil títulos em 35mm e 16mm e cerca de 60 mil em base vídeo-magnética analógica e digital e em mídias óticas, o que é complementado pela maior coleção documental sobre cinema do país, com uma média de dois milhões e meio de itens.

Foi na Cinemateca do MAM que nasceu, em 1970, o Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro – CPCB, instituição idealizada por Paulo Emílio Salles Gomes, mas efetivamente colocada em prática por Alex Viany, Jean-Claude Bernardet, Michel do Espírito Santo, Cosme Alves Netto e José Tavares Barros. Trata-se de uma entidade sem fins lucrativos, cujo principal objetivo é o estímulo à pesquisa e à preservação fílmica da cinematografia nacional, de modo a ajudar na salvaguarda da memória do audiovisual brasileiro. De certa forma, o conjunto de pesquisadores que participaram do CPCB tiveram um papel fundamental numa reescrita da história do cinema nacional, especialmente voltada para os primórdios. Dentre suas ações, destaco as análises e estudos que contribuíram para a introdução da pesquisa no meio cinematográfico e nas entidades acadêmicas, resultando inclusive na criação das primeiras escolas de cinema; o estabelecimento das primeiras preocupações com a guarda e a preservação fílmica; edição de várias publicações que foram fundamentais para o desenvolvimento e registro do nosso cinema, além de ações constantes de painéis e palestras sobre preservação, mostras e sessões especiais com filmes brasileiros, prêmios, homenagens, parcerias. O Centro também atuou na restauração de alguns títulos do cinema nacional, como O País de São Saruê – Um Filme do Nordeste (1971), de Vladimir Carvalho, O Homem que Virou Suco (1981), de João Batista de Andrade e A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral.

Normalmente, os filmes chegam até as instituições em diferentes estados de conservação; suas matrizes podem ser originais, intermediárias ou cópias finais, isto é, quando não existe mais o original e a cópia de melhor qualidade existente é elevada à condição de matriz. O artigo Preservação

Page 37: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

37O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

e difusão: pela memória do cinema brasileiro, de Danielle de Noronha, destaca as falas de Hernani Heffner, diretor da Cinemateca do MAM, e Patrícia de Filippi, especialista em preservação audiovisual, além de responsável pelo laboratório de restauração da Cinemateca Brasileira por 14 anos:

Para Heffner, de uma maneira geral, as matrizes das produções audiovisuais brasileiras não se encontram em boas condições de conservação: “de um lado, muitos desses filmes foram para os arquivos de forma tardia, ou seja, eles não foram recolhidos logo após o lançamento do filme, isso significa que já chegam de alguma maneira atacados pela temperatura, umidade do lugar onde estavam, com presença de fungos, já chegam com algumas marcas do tempo, da falta de cuidado e da própria deterioração fisioquímica, que esses materiais normalmente sofrem”.

Patrícia conta que há muitos casos de filmes que não possuem mais o original – ou por acidente ou por algum tipo de ação –, como é o caso dos filmes da Cinédia. “Tem filmes que foram produzidos em nitrato e na época se acreditava que ele era muito perigoso, porque pegava fogo. Então, os filmes foram duplicados para acetato e a ordem era queimar os nitratos pra não ter risco no arquivo. Porém, a umidade relativa do ar alta aliada a altas temperaturas faz com que o acetato entre numa “síndrome do vinagre”, e ele se degrada. É muito mais nocivo e difícil de preservar do que o nitrato”, explica. “Depois veio uma terceira família de filmes que é o poliéster”, complementa Patricia.

Além disso, ela lembra que durante muitos anos não se fazia intermediários no Brasil, isto é, fazer o interpositivo e o internegativo para preservar o filme. Patricia diz: “Em países mais desenvolvidos é impossível pensar em fazer a cópia de um filme pra projeção sem fazer o intermediário porque qualquer problema na copiagem pode estragar o filme. Talvez porque não se confiava muito na bilheteria ou porque era muito caro fazer o intermediário, se fazia a cópia do negativo até que, se o filme fizesse sucesso, corria e fazia o intermediário. Então, os negativos aqui foram muito usados até serem riscados, deteriorados, por isso também é tão importante a restauração” (NORONHA, ABCINE, sem data, online).

Page 38: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

38 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

Hernani ainda destaca um outro problema que agrava a situação: a falta de uma formalização de técnicos responsáveis pela manutenção dos acervos e pela formação de especialistas em preservação no Brasil.

Segundo o pesquisador, por mais que os acervos audiovisuais já tenham certa tradição no país, o Brasil nunca formalizou a profissão de preservador audiovisual. Os concursos públicos abertos para qualquer arquivo público relacionado à imagem e ao som no país não são realizados com o intuito de contratar mão de obra qualificada para o trabalho. Heffner explica que como não existe uma profissão definida para a área, os concursos aceitam qualquer tipo de profissional, que não conhece o trabalho e precisará ser treinado: “Esse treinamento é demorado, caro e, eventualmente, você está atrasando a própria conservação desse acervo”, diz. “A conservação do filme se dá por uma estabilidade da temperatura e da umidade. A gente pode estender essa ideia da estabilidade física e técnica para uma estabilidade institucional, que tem tanta importância e influência quanto a técnica na conversação literal do acervo. Existe uma dependência direta”. Para ele, os investimentos na área da preservação precisam ser proporcionais aos demais investimentos relacionados ao audiovisual. “Já tivemos muitas perdas no passado e [se nada mudar] vamos continuar tendo no futuro. O momento de intervir e mudar a mentalidade é agora”, diz (IDEM).

No estado de Pernambuco, a conservação das películas do Ciclo do Recife da década de 1920 se deu por iniciativa individual dos próprios realizadores, em especial através da figura de Jota Soares, “que concentrou em suas mãos a maior parte das imagens produzidas, incluindo fotografias, negativos originais, fragmentos sobreviventes, obras restauradas, ainda na década de 1960 pela Cinemateca Brasileira” (BEHAR, 2003, p. 2). De certa forma, quase toda literatura sobre esse período específico parte do universo memorialista do cineasta, especialmente por conta dos quase 60 artigos publicados no Diário de Pernambuco entre 1944 e 1962 (reunidos em livro pelo professor aposentado da UFPE, Paulo Cunha). É o olhar de Jota Soares que direcionava a investida historiográfica dos mais distintos pesquisadores e pesquisadoras. Mais tarde, depois de muita negociação, Soares repassou essa função ao crítico e realizador Fernando

Page 39: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

39O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Spencer, que, em 1980, assumiu a coordenação da Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco, cargo que ocupou por vinte anos, adquirindo não só o arquivo de Jota Soares, como outras cópias restauradas dos filmes do Ciclo do Recife junto à Cinemateca Brasileira (onde algumas dessas matrizes e restauros continuam guardados). Dadas as devidas proporções, podemos afirmar que Spencer8 cumpriu localmente a mesma função de Henri Langlois na França, Paulo Emílio Salles Gomes em São Paulo ou Cosme Netto no Rio de Janeiro, também produzindo alguns documentários sobre os pioneiros do cinema local.

Para contextualizar um pouco a situação local, vale lembrar que durante a primeira edição do Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro de 2008, houve uma sessão especial em homenagem ao Ciclo do Super 8, intitulada sagazmente de A Cura do ócio dos filhos da classe média, com exibição dos curtas-metragens Cinema Glória (1978), de Fernando Spencer e Félix Filho, Jogos Frutais Frugais (1979), de Jomard Muniz de Brito e o O 13° Trabalho (1973), de Osman Godoy. Durante a sessão, apesar de anunciados, não foram exibidos Viva o Outro Mundo (1972), de Kátia Mesel, por supostamente não ter sido encontrada cópia pela própria realizadora (apesar do título ter sido restaurado pelo Itaú Cultural anos antes) e Composições no Fio – Partituras Mutantes (1979), de Paulo Bruscky, por problemas técnicos que impossibilitaram a transmissão do som durante a projeção. O sentimento de celebração entre os espectadores logo foi ganhando um tom amargo, a sessão quase foi cancelada, terminou atrasando bastante e, no final, não conseguiu transmitir por razões de preservação, o que apontava Alexandre Figueiroa no catálogo do evento: “um movimento cinematográfico inventivo, mas sem grandes pretensões revolucionárias, que registrou poeticamente o imaginário cotidiano daquele período” (2008, p. 13).

8 Dentro do contexto pernambucano, pelo menos a partir da década de 1950, é fundamental entender a participação dos cineclubes na formação de repertório do público local. Para mais informações, ver o e-book “Rasgos culturais: consumo cinéfilo e o prazer da raridade” (ALMEIDA, Rodrigo. Recife: Velhos Hábitos Ed., 2011. 249 p.)

Page 40: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

40 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

Isso porque o encontro de gerações dentro da Sala do Cinema da Fundação no Derby se transformou numa espécie de velório de nossa memória, pois estávamos ali reunidos também para comprovar nossa incapacidade em preservar. Os próprios filmes que foram exibidos encontravam-se em situação deplorável, realmente no limite de degradação da película, um resto de história montada por detritos. O mesmo festival anos depois, em mais de uma edição, investiu na restauração, realizada em estúdios na Califórnia, de alguns filmes pernambucanos em Super 8 para DCP 2K, programando uma sessão para exibi-los ao público. Foram eles: Censura Livre (1981), Se pintar colou (1981), Se colar olhou (1981), todos de Ivan Cordeiro e Noturno em Ré-cife Maior (1981), de Jomard Muniz de Britto. De fato, essas sessões foram uma espécie de catarse em contraponto daquela primeira. Fundamental reforçar que esse caso é uma exceção, pois a maioria dos outros filmes de Jomard, por exemplo, está disponível no Youtube, mas numa qualidade péssima, porque tais títulos foram digitalizados da maneira como pesquisadores sem experiência fazem na tentativa de salvar minimamente as imagens: projetam o super 8 numa parede e filmam a projeção com uma câmera digital.

Para termos uma ideia da tragédia mnemônica, estima-se que cerca de 80% dos mais de 200 filmes pernambucanos produzidos na bitola Super 8, entre 1973 e 1983, tenham desaparecido ou estejam em um grave estado de deterioração. A mesma porcentagem, segundo o Acervo Nacional, aplica-se a todo cinema silencioso produzido no Brasil. O caso é que mesmo filmes produzidos nos anos 1980 e 1990 já apresentam sérios problemas de conservação. Susan Sontag destaca que um dos pioneiros da fotografia, H. Fox Talbot, já percebia “a faculdade especial da câmera para registrar os estragos do tempo. Talbot referia-se ao que ocorre aos prédios e monumentos. Para nós, as abrasões mais interessantes não são de pedra, mas de carne. Por meio das fotos, acompanhamos da maneira mais íntima e perturbadora o modo como as pessoas envelhecem” (2004, p. 85). Deslocando dos indivíduos para a própria imagem, para sua materialidade e suporte, fotográfico ou cinematográfico, seguimos o pensamento de Sontag: “olhar para uma velha foto de si mesmo, de

Page 41: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

41O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

alguém que conhecemos ou de alguma figura pública muito fotografada é sentir, antes de tudo: como eu (ela, ele, a imagem em si) era muito mais jovem na época. A fotografia (e o cinema) são o (ou um) inventário da mortalidade” (IDEM). Jeanne Marie Gagnebin, por sua vez, coloca que:

temos o sentimento tão forte de caducidade das existências e das obras humanas, que precisamos inventar estratégias de conservação e mecanismos de lembrança. Criamos, assim, centros de memória, organizamos colóquios, livros, números especiais, recolhemos documentos, fotografias, restos, e, simultaneamente, jogamos fora quilos e quilos de papel. (GAGNEBIN, 2006, p. 97).

No início da década de 1970 já se falava bastante sobre a necessidade de criar um espaço de preservação de imagens e sons em Pernambuco: “o Recife já poderia ter seu Museu da Imagem e do Som. Existe em teoria o do Estado, que não funciona por falta de verba. E muita coisa está se perdendo aí” (Diário de Pernambuco, 08/02/1970, p. 5). Com pressões da sociedade, o Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe) passou a funcionar oficialmente a partir de outubro de 1970, tendo como principal objetivo documentar e divulgar a memória da cultura pernambucana nos segmentos da música e do audiovisual. O Mispe teve seu início com registros em áudio de entrevistas com importantes personalidades da política, da arte e da cultura pernambucana das décadas de 1970 e 1980, como João Cabral de Melo Neto, Cícero Dias, Ana das Carrancas, Jota Soares e Gilberto Freyre. Depois desse primeiro movimento, seu acervo foi ampliado e diversificado, consolidando-se como um espaço voltado a guarda, restauração, manutenção, catalogação, intercâmbio e divulgação da música, cinema, vídeo e fotografia produzidos no estado, além de arquivar câmeras, gravadores, projetores e mídias físicas.

O Mispe é mantido pela Fundarpe – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, mas sua sede está fechada desde 2007, o prédio encontra-se em estado de abandono completo, o teto que naquela época estava ameaçado de desabar, agora já desabou, e o acervo de 25 mil peças foi transferido “temporariamente” para as instalações da Casa da Cultura, incluindo mais de 170 filmes em película (a maioria em

Page 42: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

42 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

16mm) e duas mil partituras musicais. A Casa da Cultura, aliás, abrigou o museu por 12 anos até 1992, quando foi transferido para o prédio do século XIX na Rua da Aurora. O projeto de requalificação, incluindo o orçamento arquitetônico e complementar, que agrega o plano de gestão de manutenção, estava pronto, num valor anunciado entre R$ 600 mil a R$ 3,5 milhões. As obras foram/são sistematicamente noticiadas nos jornais locais, entretanto, continuam paradas. Essa lógica, na verdade, atinge vários espaços culturais da cidade do Recife, a ponto do jornalista Augusto Freitas, ter desenvolvido em 2016 uma espécie de “circuito fantasma da cultura no Recife e em Olinda”, passando por locais “em reforma” (abandonados), como o Cineteatro do Parque (fechado em 2010); o Cine Olinda (inativo há 43 anos), o Cine Duarte Coelho (fechado em 1980) e o Cine AIP (fechado no ano 2000).

Talvez o Cineteatro do Parque seja o caso mais emblemático. Não apenas por ser uma construção que comemorou 100 anos em 2015, nem também pelo papel central enquanto um cinema popular cujo ingresso custava apenas R$ 1,00, mas porque abrigava a Filmoteca Alberto Cavalcanti. O acervo, inaugurado em 1975, reúne cópias de filmes em bitolas de 8mm, 16mm e 35mm, realizados em diferentes momentos do século XX, além de 500 títulos em outras mídias diversas. Existem cópias raras do início do século passado, como o filme Aitaré da Praia (1926), de Gentil Roiz e provavelmente uma das produções mais antigas da Região Nordeste, Carnaval de Recife – Anos 20 (1923), de autoria do paraibano Walfredo Rodriguez. Segundo informações colhidas na Cinemateca Brasileira, trata-se de uma grande reportagem mostrando a complexidade do nosso Carnaval, desde os blocos de elite às troças mais populares, apresentando várias sequências com carros alegóricos, os desfiles de foliões individuais e as crianças que, em suas calçadas ficam a admirar a festa da qual não podiam ainda participar. Uma das sequências mais curiosas é a que mostra um carro adornado por José Ribeiro do Prado Andrade, em que são feitas críticas aos costumes daquele tempo, notadamente relacionadas com a vida político-social.

Page 43: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

43O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

O escritor e cineasta Fernando Monteiro conta um pouco da história da Filmoteca, que apesar de inaugurada naquele ano, manteve-se fechada para o público e restrita mesmo para pesquisadores. Além de criar o espaço, o então prefeito Augusto Lucena instaurou por decreto a Escola de Cinema do Recife, mas na gestão seguinte, quando Ariano Suassuna assumiu a pasta da Cultura, o orçamento prometido foi cortado e ambas as iniciativas minguaram: “Alberto Cavalcanti tinha uma ligação forte com o Recife. Quando soube da homenagem, ficou contente e veio de Paris para a inauguração. Foi um momento vexatório, pois, depois disso, a filmoteca deixou de existir” (Diário de Pernambuco, 15/01/2012, online). Anos depois, todo acervo foi transferido para o Cineteatro do Parque, mas, após o fechamento do espaço em 2010, permaneceu ainda, por pelo menos 5 anos, no chão de uma sala empoeirada.

Só após a pressão de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, em 2015, o material foi transferido pela Prefeitura “temporariamente” para o Museu da Cidade do Recife no Forte das Cinco Pontas, onde está guardado “em uma sala, dentro de um armário de metal cinza com cheiro forte de produtos químicos” (Folha de Pernambuco, 27/10/16, online). Na ocasião, o professor Paulo Cunha coordenou, juntamente com alguns estagiários, um fichamento dos filmes que tinham no acervo sem abrir as latas, pelo perigo de degradar ainda mais algumas películas. O caso é que nesses quarenta anos que separam a inauguração da Filmoteca Alberto Cavalcanti e sua transferência do chão do Cineteatro do Parque para um armário no Museu da Cidade do Recife, o acervo nunca foi efetivamente catalogado. O próprio governo não sabe bem o que fazer com seus objetos de memória. O Cineteatro do Parque segue inativo, atualmente passa por um processo de restauração, com promessa de reabertura para agosto de 2020.

Outro espaço que vale ser mencionado, apesar de ser uma coleção privada, é a Cinemateca Royal, que funciona dentro do Instituto Lula Cardoso Ayres, em Piedade, Jaboatão dos Guararapes. Trata-se de um espaço criado pelo filho do famoso artista plástico pernambucano para

Page 44: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

44 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

conservação das obras e memória do pai. Lá existem três salas para guardar uma coleção particular composta de 3 mil títulos, fora uma sala de projeção de filmes com 45 lugares. A intenção de Lula Cardoso Ayres Filho sempre foi disponibilizar o vasto acervo ao público de graça, muitas gerações de estudiosos e profissionais do cinema já passaram por lá para ter acesso aos materiais e/ou conversar com o cinéfilo, mas até hoje não houve uma avaliação técnica para dar a dimensão da raridade do que é guardado na cinemateca. De fato, não há muito sobre cinema pernambucano, pois seu foco sempre esteve direcionado para as produções internacionais do período do cinema mudo (1895-1927) e do cinema clássico brasileiro (1930-1960), coleções que são respeitadas no mundo inteiro. Segundo reportagem de Rodrigo Carreiro, o acervo conta com “tesouros escondidos”:

versões integrais, por exemplo, de três dos curtas-metragens dirigidos por Buster Keaton, entre 1920 e 1922, que o Silent Era lista como filmes preservados de forma incompleta, faltando trechos e fragmentos da narrativa. Convict 13 e The Frozen North estão preservados em bitola Super 8, enquanto Day Dream existe em 16mm. As versões integrais desses títulos são oficialmente consideradas desaparecidas, mas existem em Pernambuco, à espera de descoberta oficial. Na verdade, não existe registro de qualquer órgão de preservação cinematográfica no mundo que possua a coleção completa de todos os trabalhos dirigidos por Buster Keaton. O Instituto, porém, possui todo esse material.

Tem, também, 75 dos 81 filmes estrelados por Charles Chaplin, incluindo três filmes (Cruel Cruel Love, His Favorite Pastime e A Busy Day) que eram considerados desaparecidos até 1970 – e dos quais só se conhece uma única cópia preservada, nos EUA. No que se refere ao cômico francês Max Linder, a situação é ainda mais exótica: o Instituto guarda mais de 40 filmes do diretor, em quatro formatos (8mm, Super 8, 16mm e 9,5mm). O conjunto foi avaliado e considerado pela Cinemateca de Paris, em 1998, como a mais completa coleção de Max Linder fora de território francês.

Apesar desses dados, não é na lista dos filmes dos pioneiros internacionais que estão os títulos mais raros. O conjunto de

Page 45: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

45O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

trabalhos nacionais do período compreendido entre 1930 e 1960 ganha com folga essa primazia. Um levantamento realizado em 1995 pelo pesquisador Francisco Moreira, ex-curador de Preservação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, identificou no Instituto Lula Cardoso Ayres mais de 30 títulos brasileiros que eram considerados oficialmente desaparecidos pela comunidade de instituições brasileiras que lidam com preservação de filmes antigos.

Entre os títulos, há obras como o pioneiro O Caçula do Barulho (1949), um encontro de Oscarito com Grande Otelo; Também Somos Irmãos (1949), primeiro longa-metragem a abordar a questão do racismo, com Grande Otelo e Ruth de Souza; E o Mundo se Diverte, (1948), uma das primeiras chanchadas brasileiras, do diretor Watson Macedo; Sina de Aventureiro (1958), faroeste que foi o primeiro trabalho de José Mojica Marins, antes de virar Zé do Caixão; e Jerry e a Grande Parada (1967), um dos quatro longas protagonizados pelo cantor Jerry Adriani, que nem o próprio Adriani sabiam terem sido preservados – ele esteve no Instituto no final de 2003 e viu o filme, emocionado (CARREIRO, 2004, online).

O que torna a situação profundamente melancólica é a falta de recursos oficiais, a falta de compromisso com políticas públicas de preservação, uma realidade que Lula Cardoso Ayres Filho sempre enfrentou de perto. Pouca coisa mudou. A situação continua precarizada, ainda que nos últimos anos, a temática da salvaguarda de cópias e da restauração tenha aumentado no Brasil, especialmente por conta da criação da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual em 2008, por profissionais presentes no 3º Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais, e por ação independente de festivais como CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. “Nosso patrimônio vem sendo preterido. Não tenho esperança no poder público.” (Diário de Pernambuco, 15/01/2012), afirmou o próprio Lula, mantendo a ideia de que somos um país sem memória, o que o obriga enquanto conservador manter uma rotina irreal para com seu acervo:

Mais incrível do que a coleção em si, entretanto, é a falta de interesse das instituições que tentam preservar as obras. Basta dizer que,

Page 46: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

46 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

embora a Cinemateca do MAM tenha identificado na lista de filmes do Instituto Lula Cardoso Ayres, em 1995, todos esses títulos dados como perdidos, ninguém do órgão – ou de qualquer outro ligado à arte da preservação do celuloide – jamais fez cópias de nenhum desses filmes. Esse verdadeiro tesouro do cinema nacional de antigamente continua guardado em condições inadequadas de preservação. Sim, porque o Instituto Lula Cardoso Ayres nunca teve nenhum tipo de patrocínio, e sobrevive apenas graças à tenacidade do seu criador.

A ajuda oficial nunca chegou. Os projetos de patrocínio que tentou aprovar através das leis de incentivo à cultura também nunca foram aprovados. Para impedir que sua coleção se deteriore por inteiro, ele se entrega diariamente a uma tarefa quixotesca: revisar toda a coleção, encontrar os filmes cujo processo de desgaste já avançou demais e limpar cada rolo. Lula gasta oito horas diárias, de flanela na mão, passando cuidadosamente uma substância química chamada Percloro Etileno em toda a extensão das películas que ameaçam estragar.

A preservação dos filmes, apesar desse cuidado, está permanentemente sob risco. Acontece que a sede da instituição fica a 500 metros do mar, em uma cidade conhecida pelo alto índice de umidade (superior a 80%) e pelas temperaturas acima dos 30ºC. Por isso, qualquer pessoa que entra nas salas de armazenamento dos filmes vai sentir, imediatamente, um forte cheiro de vinagre. É o odor característico da película que começa a estragar, e um aliado do engenheiro aposentado: pelo cheiro, Lula identifica quais são os filmes que precisam de cuidados imediatos e parte para a limpeza. Claro que isso não é suficiente. Como não são guardados nas condições adequadas de preservação – precisariam estar em salas fechadas com umidade abaixo de 50% e temperatura menor do que 20ºC. Os filmes costumam “avinagrar” a cada dois meses.

Sozinho, Lula não consegue limpar todos eles, nem mesmo dedicando oito horas diárias à tarefa. O resultado é que, todo ano, ele perde irremediavelmente de 30 a 40 filmes da coleção. “A questão é escolher quais os que eu posso perder, e comprar novamente depois, e quais os que preciso manter limpos a qualquer custo”, revela. É um tesouro cinematográfico que se perde a cada dia, a cada mês, a cada ano (CARREIRO, 2004, online).

Page 47: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

47O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Por fim, inaugurada em 25 de março de 2018, a Cinemateca Pernambucana da Fundação Joaquim Nabuco é a mais recente iniciativa local no âmbito da preservação, investindo recursos na coleta, catalogação, preservação, restauração, formação, pesquisa e difusão das produções do cinema feito em Pernambuco. Além de filmes, reúne acervos com roteiros, cartazes, fichas de produção e fotografias. Seu foco principal é a preservação e difusão em formato digital, especialmente a partir da percepção que alguns curtas-metragens locais, lançados há menos de vinte anos, já estavam desaparecendo e sendo considerados perdidos. A Cinemateca Pernambucana é a concretização de um sonho antigo de várias pessoas, entre elas a coordenadora Ana Farache, e serve como um anexo das ações de salvaguarda da Fundaj para os novos formatos da contemporaneidade. A instituição conta atualmente com a adesão de mais de 50 realizadores/produtores, formando um acervo de quase mil produtos audiovisuais, dentre os quais 255 já se encontram disponíveis para consulta online. O próximo passo é ampliar a guarda das obras para toda região Nordeste. Sua grande ação até o presente momento foi a restauração de nove curtas-metragens, realizados entre 1973 e 1983, pelo jornalista e cineasta Geneton Moraes Neto. Várias outras iniciativas similares foram abertas nos últimos anos pelo país, como a Cinemateca Potiguar (Natal) e a Cinemateca Capitólio (Porto Alegre).

As cinematecas de forma geral acumulam três missões. A formação através de cursos e oficinas, uma ação que ganha uma importância notável em cidades periféricas que não contam com espaços formais de educação cinematográfica. No Brasil, por exemplo, a grande maioria dos cursos de cinema e audiovisual nas universidades públicas foi aberto nos últimos quinze anos, antes disso, as pessoas aprendiam fazendo, o que ainda acontece, mas precisavam elas mesmas oferecer oficinas e cursos. A segunda missão está relacionada à salvaguarda de cópias de filmes, mas também de vários outros elementos do universo cinematográfico, como câmeras, peças de figurino, roteiros, equipamentos de iluminação, projetores de diferentes bitolas – o que possibilita em raros casos a projeção de filmes em Super 8 ou 16mm, formatos quase não mais

Page 48: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

48 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

utilizados atualmente. Uma cinemateca precisa ser esse lugar que garante a sobrevivência não só de títulos, mas de materiais de memória para as gerações posteriores (e porque alguns filmes, enquanto não digitalizados, só poderão ser vistos em suas bitolas originais).

A missão que vem se consolidando como a mais ativa, contanto, é a difusão através da exibição de filmes no intuito de formar repertórios, uma vertente que ganha muita força nas cinematecas da América Latina, por conta da enorme limitação de espaços que ofereçam uma programação minimamente alternativa. A cinemateca, assim como um cineclube, é um espaço de convivência, de encontro de pessoas, de trocas, de partilha de referências, de um afeto construído sob a base de cinematografias. A ideia de guardar imagens, no entanto, só faz sentido se essas mesmas imagens encontram o mundo e o mundo reencontra essas imagens, uma forma de deslocar as imagens para o presente e nos deslocarmos para o passado, por vezes, retornando com respostas a perguntas ainda não formuladas. Uma cinemateca inacessível, fechada, não trabalha com guarda, com coleção, apenas com acúmulo. Além disso, as marcas nas películas precisam ser analisadas em si, pois são a textura do tempo passado, do tempo passando, são a textura do abandono, da falta de preservação. Elas nos obrigam a pensar sobre quem somos, o que lembramos e como preservamos.

Se um acervo permanece fechado, sem qualquer ação de divulgação, por que mantemos ele? Qual a diferença entre ele existir e ele não existir, se ninguém o acessa? As imagens devem ser guardadas, porque vemos um valor nelas, mas se a própria cultura historiográfica e memorialista se degrada, para além dos artefatos, é natural que tais espaços percam seus sentidos, sejam deixados de lado, só ganhando alguma comoção quando finalmente são arrebatados pelas chamas. Nossa consciência pode ser reconstruída, a partir dos restos, das sucatas, afinal “nosso refugo tornou-se arte. Nosso refugo tornou-se história” (SONTAG, 2004, p. 84). É fundamental reabilitarmos imagens antigas em novos contextos, conhecermos as histórias que as rodeiam, porque elas “são tidas como

Page 49: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

49O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

pedaços da realidade, parecem mais autênticas do que amplas narrativas literárias. Convencem mais, elas têm a autoridade de um documento” (IDEM, p. 89). Imagens, não há dúvida, são como objetos de memória.

Numa palestra no Rio de Janeiro em 2012, durante a reunião de diferentes instituições para discutir o futuro dos museus, mas também toda demanda de preservação do patrimônio cinematográfico, a política búlgara Irina Bokova, que foi diretora-chefe da UNESCO, declarou:

imagens em movimento, juntamente com gravações sonoras, são registros importantes de nossas vidas, contendo muito da nossa memória pessoal e social, o que é essencial para a identidade e o pertencimento. É por isso que esses elementos devem ser preservados e compartilhados como parte do nosso patrimônio comum. As histórias contadas por esse patrimônio são expressões poderosas das culturas e dos lugares. Esse patrimônio fornece uma âncora em um mundo em constante mudança. Promovendo a coesão, os arquivos também são essenciais para os debates sobre as prioridades futuras.

Atualmente, o projeto mais conhecido e com maior respaldo internacional na área de restauro e preservação de filmes é o The Film Foundation, instituição criada, em 1990, pelo cineasta norte-americano Martin Scorsese. Nesses quase trinta anos de atuação, já foram cerca de 850 obras restauradas, de diferentes nacionalidades, incluindo títulos como Rashomon (Japão, 1950), de Akira Kurosawa e Como era verde meu vale (1941), de John Ford. “Um filme é novo para uma plateia que nunca o viu antes”, destaca Scorsese que também atua na difusão dessas novas cópias, normalmente circulando em diferentes mostras e festivais ao redor do mundo. A fundação ajuda a restaurar, em média, de 20 a 30 filmes por ano, trabalhando em parceria com arquivos de filmes de todo o mundo (a grande parceira atual é a Cineteca di Bologna, na Itália). Os projetos são propostos anualmente com base na necessidade mais urgente e, mesmo sendo difícil estabelecer uma hierarquização, a instituição tende a considerar o significado cultural e histórico, assim como a condição física dos rolos encontrados. As películas mais degradadas são priorizadas.

Page 50: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

50 POR QUE GUARDAR IMAGENS?

Buscando ampliar seu campo de atuação, The Film Foundation criou a The World Cinema Foundation, anunciado em 2007 no Festival de Cannes, iniciativa capitaneada por cineastas de diferentes países, que alcançaram um relativo sucesso em Hollywood ou em grandes festivais internacionais. Basicamente, eles se juntaram para mapear a necessidade de restauração de cópias e projetos de preservação de acervos, tomando como território de busca os países em desenvolvimento, que não poderiam arcar com os custos (muitos custos) envolvendo a restauração da cópia. Alguns filmes podem demorar dez anos para serem encontrados; quinze para serem restaurados. Até agora, cerca de 40 filmes foram restaurados, incluindo Limite (1931), de Mário Peixoto e Pixote (1981), de Hector Babenco, os únicos títulos brasileiros da lista, perpassando países como Cuba, Indonésia, Egito, Marrocos, Senegal, Taiwan, Argélia, Índia, Irã, Turquia, México, Filipinas e Coréia do Sul. A iniciativa defende a restauração de cópias em 35mm por uma questão de segurança, pois o analógico ainda é a forma mais confiável de preservar por mais tempo.

O padrão digital carrega duas incertezas centrais. A primeira é comparativa, pois computadores e bases de armazenamento têm uma durabilidade limitada, não passando de uma década, enquanto filmes analógicos arquivados em condições ideias conseguem sobreviver algumas centenas de anos sem perdas consideráveis. Além disso, a segunda incerteza é em relação aos formatos digitais, pois vimos nos últimos anos uma mudança constante de “padrões” de exibição, de forma que essa necessidade de atualização coloca para as produções digitais mais antigas o risco de logo se tornarem obsoletas. Uma das saídas tem sido disponibilizar as obras na melhor qualidade na nuvem, mas, de certa forma, está lançado um desafio para toda uma geração dos últimos quinze anos, cujas obras já nasceram em formato digital: seus filmes, no formato que agora estão salvos, estarão aptos a serem exibidos daqui a vinte anos? E daqui a quarenta, cinquenta, cem anos?

Page 51: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

51O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

1.4UM DESLOCAMENTO NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA

Entre 2012 e 2015, estive envolvido em um profundo trabalho curatorial na cinematografia do estado de Pernambuco, envolvendo busca em acervos, contatos com cineastas, colecionadores e curadores, visionamento de cópias, revisão de materiais, organização de pareceres técnicos, digitalizações não profissionais e a anotação de muitos relatos. Foi um longo processo, cujo resultado se deu com o lançamento da Antologia do Cinema Pernambucano, uma majestosa coletânea de 20 DVDs, reunindo mais de uma centena de produções do estado, entre curtas, médias e longas-metragens, fincando-se como uma referência definitiva para instituições, cinéfilos e pesquisadores. A experiência colhida nesse trabalho me trouxe até aqui, especialmente pelo recorrente encontro com um material profundamente deteriorado, pela impossibilidade de assistir inúmeros títulos considerados perdidos por seus criadores (alguns destes títulos nem tão antigos, como foi o caso dos primeiros curtas de Cláudio Assis e Paulo Caldas), além de entender e constatar que, naquele momento, praticamente inexistia uma política pública sobre a preservação de nosso patrimônio audiovisual. Minha sensação era próxima da observada, ainda no início dos anos 1980, por Carlos Augusto Calil, autor do livro Cinemateca Imaginária: Cinema e Memória:

Todos conhecemos a impossibilidade de se reconstituir, no Brasil, o copioso acervo de filmes, aqui produzidos desde 1898. O descaso e a diversidade climática e a própria friabilidade da película cinematográfica são responsáveis pelo desaparecimento de quase toda a produção até nossos dias. O que sobreviveu foi obra do mero acaso. (CALIL, 1981, p.12)

Apesar de formalmente a categoria Preservação existir há alguns anos no certame, o primeiro projeto da área aprovado pelo Funcultura - Audiovisual aconteceu apenas no Edital 2016/2017. Dois projetos foram inscritos na categoria Preservação do audiovisual pernambucano: Acervo

Page 52: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

52 UM DESLOCAMENTO NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA

TVU: memória da televisão em Pernambuco (não aprovado) e Preservando o patrimônio audiovisual do Vídeo nas Aldeias (aprovado). A categoria se destina à restauração de obras audiovisuais, com garantia de acesso ao público, assim como a acervos audiovisuais, com tratamento técnico, acondicionamento e medidas de conservação, incluindo obras e/ou documentos, visando a sua preservação e/ou organização, catalogação, informatização e criação de bases de dados, com garantia de acesso público. No edital 2017/2018 foram inscritos os seguintes projetos: Revisitando os patrimônios: digitalização do acervo do Laboratório de Antropologia Visual (não aprovado) e Documentação museológica do MUCA – Museu de Cinema de Animação Lula Gonzaga (aprovado).

Menciono aqui também uma experiência traumática enquanto morava em Fortaleza, que aconteceu numa sexta-feira chuvosa em meados de novembro de 2016, quando estava entrando na reta final de organização do material para escrita da minha tese de doutorado: minha casa foi invadida e tive roubados meu computador, câmera, celular e dois HDs externos. Além das perdas materiais, precisei lidar com perdas impossíveis de serem reparadas financeiramente, a saber, fotografias, poesias, contos, registros audiovisuais, material bruto dos meus curtas, todo tipo de recordação ou intuição artística, assim como páginas escritas, livros com marcações, fichamentos, filmes, artigos, ensaios, ideias. Não seria exagero dizer que partes da minha memória e do meu suporte de reflexão foram abruptamente arrancadas naquela noite. De toda forma, consegui me recompor em poucos meses, defendi a minha Tese de Doutorado, até mesmo recuperei uma cópia legendada do meu primeiro curta, Casa Forte (2013), que dei como perdida depois do ocorrido. Estava guardada no acervo do Collectif Jeune Cinéma, uma cinemateca de curtas independentes que fica nos arredores de Paris. Tal evento me despertou para a função ética dessa pesquisa, para o dever em “preservar a memória, em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz, tradições, vidas, falas e imagens” (GAGNEBIN, 2006, p. 97).

Page 53: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

53O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

A proposta inicial dessa pesquisa era desenvolver um mergulho sobre filmes desaparecidos ou considerados perdidos ao longo de um século da trajetória cinematográfica do estado, proporcionando assim a revisão de um conjunto de imagens e histórias esquecidas. Minha atuação se daria por meio de diferentes referências de memória, entrevistas e consultas, recuperando uma materialidade perdida dos filmes, associando informações de produção, críticas, registros, impressões, matérias jornalísticas, fotografias, argumentos, roteiros. De alguma forma, minha intenção era trazer uma nova perspectiva para obras sobre as quais só “ouvimos falar muito vagamente” em pesquisas sobre o cinema pernambucano ou que foram vistas por poucas pessoas, apenas no período de lançamento, encontrando-se atualmente indisponíveis para o público. Confesso que, naquele momento, estava encantado com a possibilidade de me deparar com algo guardado, escondido; de abrir caixas ou latas esquecidas, como as que estavam as fotografias de Vivian Maier ou de Jacques-Henri Lartigue. Meu desejo era transportar para o presente um segredo deixado há muito tempo por alguém que já morreu.

No entanto, durante o processo de desenvolvimento, primeiro notei a pretensão descabida de dar conta de um período tão extenso quanto um século. Antes de tudo, precisava de um recorte. Seguindo essa intuição, com a certeza de que pesquisas se transformam em seu percurso (e que precisamos desconfiar justamente das que permanecem as mesmas ao longo dos vários anos), além de bastante influenciado por uma guinada epistemológica conduzida pelo contato crescente com o historiador da arte alemão Aby Warburg, comecei a entender que o Amargo Obituário do Cinema Pernambucano precisava se focar menos em filmes específicos e mais em histórias de imagens, atuando no campo cinzento e descontínuo do resgate do passado e da articulação entre diferentes tempos. Assim, a fim de refletir sobre diversos aspectos do circuito cinematográfico local, terminei me voltando às primeiras exibições itinerantes do cinematógrafo/mutascópio na região; passando pela carreira do transformista italiano conhecido como The Great Leopoldis, responsável por uma das primeiras filmagens na capital pernambucana;

Page 54: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

54 UM DESLOCAMENTO NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA

sem deixar de comprovar a relação de imigrantes italianos pioneiros do Ciclo do Recife com o Fascismo. Além disso, adentrei pela dificuldade de separar os filmes que nunca foram feitos dos que podem ser considerados desaparecidos na década de 1920, uma verdadeira metáfora da preservação local, até chegar na perda, num incêndio, da única cópia de O Coelho Sai (1942), dirigido por Firmo Neto e produzido por Newton Paiva, o primeiro longa-metragem sonoro nordestino. Desse filme, nem trechos chegaram até nós.

Essa incursão da pesquisa foi realizada quase que inteiramente nos jornais disponíveis no acervo online da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, com intuito de insistir também num caráter historiográfico mais rígido, para além do caráter memorialista que tanto marcou a grande maioria das investigações sobre cinema pernambucano. Sentia que precisava investir num enfrentamento das fontes diretas, passar da contemplação para a construção histórica, não como uma crítica aos que me precederam nos olhares sobre esse período, mas simplesmente pela possibilidade de vasculhar outros caminhos, fazer outras descobertas, aproveitando da facilidade instituída pela digitalização do acervo (que aceita pesquisas por época, periódico, termos, ampliando um alcance na distância de um clique impossível para indivíduos de gerações anteriores). Imagine que o pesquisador antes da referida digitalização precisava diariamente passar horas de seu dia dentro de uma cabine, visualizando jornal por jornal, lendo tudo em busca de termos e temas específicos. Era um trabalho hercúleo e sem qualquer garantia de resultado. Há de ser notado aqui um abismo entre a pesquisa analógica e a pesquisa digital, um deslocamento bastante recente, que vem provocando uma verdadeira revolução historiográfica.

Há, sem dúvida, ótimas pesquisas dentro desse regime memorialista e analógico, como as desenvolvidas por Paulo Cunha (Relembrando o cinema pernambucano; A utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia; A imagem e seus Labirintos: O Cinema Clandestino do Recife 1930 – 1960); Alexandre Figueiroa (O Cinema Super 8 em Pernambuco; Cinema em

Page 55: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

55O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Pernambuco: Uma história em ciclos), Luciana Correa de Araújo (A crônica de cinema no Recife dos anos 1950; Tensões, idealizações e ambiguidades: as relações entre campo e cidade no cinema em Pernambuco nos anos 1920) e Amanda Mansur (O Novo Ciclo do Cinema Pernambucano – A questão do Estilo), mas todos partilham de uma mesma metodologia que segue estudos anteriores, reprodução e repetição das mesmas matérias jornalísticas e um vasto apanhado de depoimentos/entrevistas. Nota-se que esse conjunto de trabalhos reforça a noção que “a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” (GAGNEBIN, 2006, p. 44). Proponho com minha pesquisa “outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas” (IDEM, p. 53)

Como vem se tornando uma marca em meus projetos acadêmicos, assumo por vezes um discurso labiríntico/fragmentado de idas e vindas, um percurso que me parece cada vez mais o único possível e cujos autores que mais admiro incorrem sem medo. Constatei ao consultar tais referências bibliográficas, que existiam inúmeros pontos cegos a serem explorados em nossa história cinematográfica. Nesse sentido, acompanhei os passos dados pelo escritor e cineasta Fernando Monteiro ao escrever a crônica Caselli, cineasta do terror suburbano (Revista Continente, fevereiro, 2005), sobre José Caselli, um rapaz que produzia filmes com as crianças do bairro de Afogados na década de 1960, inspirados nas produções exibidas nas salas dos cinemas de rua da região. Na impossibilidade de fazer cinema sonoro, montava a projeção num lençol no meio da praça e produzia os ruídos ao vivo durante a projeção para os colaboradores e vizinhos. Monteiro encerra sua crônica citando outras lembranças de personagens semelhantes a Caselli, figuras desaparecidas, para então concluir: “existe, quiçá, um cinema pernambucano subterrâneo debaixo da Pompéia de todos os nossos filmes ‘inacabados’” (IDEM). Minha intenção, destarte, é de remexer algumas dessas cinzas.

Page 56: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

56 UM DESLOCAMENTO NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA

Sem dúvida, essa pesquisa está alinhada a uma atual e sensível proliferação de estudos sobre arquivos de filmes, preservação audiovisual e diferentes aspectos a serem descobertos em obras consideradas perdidas ou desaparecidas. Basta ver as mais recentes comunicações do encontro da Socine - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, para perceber como esse tema vem ocupando cada vez mais espaço. Também é notável a proliferação de eventos, como o I Seminário de Preservação Audiovisual do Nordeste, ocorrido em 2017, que reuniu na capital pernambucana diferentes iniciativas da região. Marcamos isso porque diferentes vozes estão ecoando sobre a necessidade de investirmos na preservação, há um diálogo em processo de constituição. É inegável que se trata de uma tendência acelerada pelas tecnologias digitais, pelas trocas sucessivas de formatos, constituindo uma preocupação também sobre como iremos conservar e preservar imagens em movimento contemporâneas. Portanto, entrego aqui um projeto arqueológico, com o ímpeto de restaurar um imaginário cinematográfico mutilado, mas também um passo fundamental para quantificar as perdas no intuito de que erros do passado não sejam cometidos no futuro. Antes de tudo, essa pesquisa é um gesto de aprendizado, menos uma descrição, mais uma articulação a partir de uma época em que os filmes eram produzidos em uma ou duas cópias. Filmes que, infelizmente, nunca assistiremos.

Page 57: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

57

Page 58: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 59: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

PARTE II

O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Page 60: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

60

Page 61: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

61O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

2.1O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

Como alguém que sempre esteve envolvido na exibição de filmes, passei seis anos na organização do Cineclube Dissenso, dez anos fazendo curadoria para o Janela Internacional de Cinema do Recife, além de atuar direta ou indiretamente em várias outras mostras, ações de extensão e festivais, por vezes, me deparava com a dúvida sobre como haviam sido as primeiras sessões de cinema em Pernambuco. Meu primeiro farol, nesse sentido, foi descobrir a pesquisa desenvolvida pelo jovem historiador Felipe Davson, através de uma matéria de jornal, cuja manchete destacava que a primeira sessão de cinema no estado teria acontecido no dia 13 de setembro de 1896 em Caruaru. Organizada por Francisco Pereira de Lyra, um nome completamente desconhecido dos autos da história local, o evento teria ocorrido numa Fábrica de Roupas, que ficava ao lado da antiga Estação Ferroviária de Caruaru. O lugar foi decorado, foram cobrados ingressos e o conjunto de películas totalizavam cerca de meia-hora de exibição.

A menção ao nome de Francisco em jornais, segundo o pesquisador, começava em 18 de agosto de 1896, dizendo que o entusiasta estava em Paris para adquirir “um importante aparelho ilusionista” para exibições coletivas. Inicialmente, tentou emplacar seu cinematógrafo adaptado no Teatro de Santa Isabel, mas sem sucesso, talvez pelo risco de incêndio do maquinário primitivo. Seguiu, então, para uma semana de apresentações na capital do Agreste. Um ano antes, em 1895, Francisco havia adquirido um kinetoscópio, um aparelho rudimentar já conhecido no país para exibição de imagens em movimento, mas que tinha a limitação de só ser visto por uma pessoa a cada vez em microfilmes de quinze segundos. Não foi preciso muito para encontrar algumas contradições nas datas e informações dessa história inaugural, um processo absolutamente enevoado pelo comum senso ufanista do pesquisador, associado ao interesse sensacionalista do próprio jornal local.

Page 62: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

62 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

Numa breve busca, logo me deparei com uma matéria de 22 de setembro de 1896, que relatava a apresentação do kinetoscópio na cidade do Recife: “o público tem concorrido de modo animador, sendo para admirar a bela sociedade que se tem reunido para assistir o desempenho daquele tão maravilhoso quanto custoso aparelho. No sábado, deu-nos o Lyra uma linda vista da bailarina que agradou sobremodo” (Diário de Pernambuco, 22/09/1896, p. 3). A matéria continua de forma pouco crível, dizendo que Pernambuco era o primeiro estado a conhecer as maravilhas do kinetoscópio. Antes de tudo, constata-se que o cinematógrafo, um aparelho muito mais moderno e cuja vantagem era projetar imagens em tamanho real para uma plateia de inúmeras pessoas, transformando a experiência solitária numa experiência coletiva, havia chegado ao Brasil em julho de 1896, inicialmente no Rio de Janeiro, mas logo em seguida sendo registradas exibições em Salvador, Porto Alegre e São Paulo. O kinetoscópio, por sua vez, já estava no país pelo menos um ano antes dessas sessões mencionadas na matéria.

A segunda contradição é sobre as sessões em Caruaru: como essa mesma figura, Francisco Lyra, estaria no dia 22 de setembro fazendo exibições com um kinetoscópio em Recife, sendo noticiado, se cerca de uma semana antes estava no Agreste realizando sessões com uma versão desconhecida do cinematógrafo? Simplesmente não faria sentido ele apresentar uma tecnologia mais arcaica na capital pernambucana, o que nos faz pressupor, que em ambos os casos estavam sendo exibidos kinetoscópios, de experiências individuais, não cinematógrafos, de experiências coletivas. Faz-se necessário aqui reforçar um dos princípios básicos de maturação de qualquer pesquisa historiográfica: não podemos apenas reproduzir o que está escrito nos jornais da época como o real acontecido, como uma verdade; temos que desconfiar e, às vezes, até mesmo enfrentar o que está colocado. Digo isso, porque o ufanismo pernambucano (“o primeiro, o maior, o melhor e o único”), recorrente nas matérias de todo o período pesquisado nesse livro, de 1896 a 1943, ainda presente até hoje nos escritos que celebram o alcance notável do cinema local em festivais, repete-se de forma hiperbólica e apolítica nas palavras e direcionamentos de muitos dos pesquisadores contemporâneos do estado.

Page 63: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

63O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

De fato, é bastante complicado desenvolver uma pesquisa sobre esse período, porque as fontes em jornais são as únicas reminiscências possíveis; toda e qualquer matéria encontrada, por mais reveladora que pareça, mantém um espaço de realidade enorme sob a penumbra, um espaço praticamente impossível de ser desvendado. Não sabemos o que está por trás, ao lado, não sabemos o que deixou de ser noticiado. Há uma raspa de informação e um deserto de lacunas. Só para termos uma ideia, entre 1896 e 1902, havia ainda um frágil entendimento sobre o valor-notícia dessa invenção, chamada grosseiramente aqui de “cinema”9, porque tal aparato era visto como uma curiosa e banal máquina de variedades, o que por si só não justificaria sua presença ostensiva nas páginas locais. Além de que, não podemos negar, quanto mais distante de nossos dias, quanto menos contato direto tivermos, mais fácil e conveniente se torna esquecer.

Aliás, como observou o próprio Davson, podemos dizer que as exibições de cinema no Recife tinham um caráter temporário e itinerante até pelo menos 1909, quando as primeiras salas permanentes começaram a surgir. O que nos interessa aqui é entender: como se fundou esse primeiro momento, entre o hábito e a prática, isto é, como se deu esse nascimento de uma cultura cinematográfica local, passando pelo aumento gradativo da repercussão nos jornais, até culminar na abertura de espaços exclusivos de exibição? Como os sucessivos entusiastas, que traziam da Europa artefatos diversos de ilusionismo, conseguiram naturalizar o desejo no público local de ver imagens em movimento, de ver filmes, de ir ao cinema?

Há uma menção nos jornais locais à invenção do kinetoscópio e sua utilização nos Estados Unidos, especificamente na cidade de Nova York, que remonta ao ano de 1894: “aparelho que registra os movimentos [...] com a velocidade de 40 a 50 vistas por segundo. [...] O intervalo entre as fotografias é tão curto que não pode ser apreciado pela vista, esta percebe

9 O que colocamos como “cinema”, nessa época recebia inúmeros outros nomes dependendo da origem do artefato.

Page 64: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

64 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

apenas uma imagem contínua” (Jornal do Recife, 05/10/1894, p. 1). Importante notar que a matéria trata de dois aparelhos, o kinetofonógrafo (para registrar) e o kinetoscópio (para exibir), já antecipando uma captura que aliaria som e imagem, sendo a sincronização de ambas apenas uma questão de tempo. Tal informação confirma o desejo de um cinema sonoro, antes mesmo da invenção do cinematógrafo e mais de vinte anos antes do lançamento de O Cantor de Jazz (EUA, 1927), considerado o primeiro filme com som sincronizado à imagem.

O fonógrafo, inventado por Thomas Edison em 1877, surge no imaginário dos jornalistas como uma referência do universo do som para todas as invenções posteriores no campo da imagem. Uma espécie de primo tecnológico. Em 1891, o Diário de Pernambuco publicou um breve texto antecipando a invenção do kinetógrafo, máquina prometida por Thomas Edison para ser apresentada até 1893 na Exposição Mundial em Chicago: “a invenção fará para a vista o que o fonógrafo tem feito para a voz. [...] Esta invenção chama-se kinetógrafo. A primeira parte da palavra significa movimento, a segunda escrever, cuja junção significa escrever com movimento” (Diário de Pernambuco, 23/08/1891, p. 3).

Já alguns anos depois, em 1895, o Jornal do Recife publicou um enorme texto sobre a invenção de Thomas Edison, traduzido da Revista Comercial Americana, que detalhava a lógica do aparelho, a fim de sanar as dúvidas sobre o seu funcionamento, assim como estimular a curiosidade de ver com os próprios olhos na população local:

Pode-se dizer que desde a época da invenção do fonógrafo, nenhum instrumento, máquina ou aparelho elétrico, há causado tanta sensação e despertado tanto a curiosidade do público, como o kinestocópio (escrito errado aqui e nas seguintes menções). Antes da abertura da exposição universal de Chicago, se falava já do kinestocópio de Edison, e muitos dos visitantes daquele certamente acudiram à seção de eletricidade com o objetivo de conhecer o novo invento. Sem embargo, este não havia sido aperfeiçoado ainda, e, portanto, não pode figurar na Exposição. [...]

Page 65: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

65O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Já que temos mencionado, para que o leitor possa compreender bem a nossa descrição, diremos que entre o kinetógrafo e o kinestocópio existe a mesma relação que há entre o diafragma de impressão e o de reprodução de um fonógrafo comum. O olho humano pode distinguir e separar um máximo de quarenta impressões distintas durante um segundo, ou seja, duas mil e quatrocentas impressões durante um minuto. Claro está, pois, que se apresentam ante a retina mais de quarenta impressões distintas em um segundo, o olho farpa que essas impressões separadas apareçam em contínua sucessão com tal rapidez que formarão uma só impressão.

Pois bem, o kinetógrafo é, até certo ponto uma câmara escura, construída pelo inesgotável gênio de Edison; essa câmara escura recebe a impressão de quarenta e seis vistas distintas e separadas, em cada segundo. [...] Essas fotografias ficam impressas em uma comprida película, que é submetida aos processos ordinários da fotografia, e desde logo está pronta para sua reprodução e exibição no kinestocópio [...].

O aparelho funciona por eletricidade e reproduz ante a vista, por meio de uma série de fotografias, todos os movimentos, os detalhes do vestuário, a expressão e as ações da pessoa retratada. A máquina está numa caixa de madeira, com uma abertura na parte superior que permite a observação do que se passa. Debaixo dessa abertura está uma roda chata de ferro com quatro raios que gira à razão de 3 mil revoluções por minuto, com uma abertura na borda sólida, cuja abertura deixa ver completamente a fotografia. Debaixo da roda está a película com as impressões fotográficas, película esta que consiste em uma tira de celuloide, com cerca de cinquenta pés de comprimento com 800 impressões distintas, e debaixo da tira de celuloide está a luz elétrica e o refletir que lança luz através da película até chegar ao olho da pessoa que observa pela abertura [...]. Há também um motor dentro da caixa [...].

É necessário ver funcionar o kinestocópio com os próprios olhos para compreender seu valor. As descrições dão apenas uma ideia do que realmente é essa invenção, pois o kinestocópio reproduz as cenas da vida como tal e como se efetuaram, perpetuando assim os acontecimentos de sorte que nossos descendentes poderão ver a representação gráfica e animada de qualquer dos sucessos mais notáveis de nossa época.

Page 66: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

66 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

Assim como o fonógrafo nos faz ouvir a voz de parentes e amigos ausentes ou que hão deixado este mundo, o kinestocópio nos faz vê-los com a mesma naturalidade quando estavam vivos [...].

Mas o gênio de Mr Edison vai mais além: atualmente, ele estuda a maneira de combinar o fonógrafo com o kinestocópio – quando ambos aparelhos estiverem relacionados de tal sorte que a sua função seja sincrônica e praticável, as figuras animadas ficarão dotadas do uso da palavra pelo fonógrafo, e então não só veremos os personagens, como também os ouviremos falar, cantar, declamar, rir, chorar, etc. (Jornal do Recife, 20/04/1895, p. 2)

Em 27 de setembro de 1896, há a menção do evento, chamado de Raios X, organizado por Francisco Lyra em Caruaru. A matéria, no entanto, descreve não um cinematógrafo, como afirma o historiador Felipe Davson, mas uma diversão muito comum em Paris, conhecida como a fotografia através dos corpos opacos, mostrando “em 5 minutos o esqueleto completo de qualquer indivíduo, que se prestar a entrar num ataúde colocado em face do público” (Jornal do Recife, 27/09/1896, p. 2). Além dessa atração, o programa de variedades oferecia três vistas no Kinetoscópio. Dois dias depois, o mesmo jornal comenta o sucesso das apresentações, que foram acompanhadas de violinos e flautas, e frequentadas por “famílias distintas e cavalheiros ilustres” (Jornal do Recife, 29/09/1896, p. 3). O fato é que não se tratava nem de cinematógrafo, muito menos de radiografias ao vivo, mas de truques de ilusionismo, afinal, nesse período, esse universo e o dos primeiros artefatos de imagens técnicas em movimento dialogavam diretamente, confundiam-se, especialmente pelo princípio básico de enganar o olho.

Assim sendo, levando em conta que as primeiras radiografias foram feitas, de forma bastante rudimentar, entre 1895/1896 na Europa, é provável que, como chegam a afirmar os próprios jornais, Lyra oferecera, na verdade, um truque ilusionista, dando a impressão de que as pessoas estavam vendo os esqueletos dos voluntários. As sessões em Caruaru seguiram até o início de outubro, mas Lyra continuou apresentando o kinetoscópio no Recife, num armazém ao lado do antigo quartel dos

Page 67: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

67O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

bombeiros. Entre as vistas exibidas: Mercado das Couves, Chegada do Czar, Sussu me deixe e Duelo de Amor. No ano seguinte, Lyra pretendia levar seu kinetoscópio às praças e jardins da capital pernambucana, a fim de popularizar a invenção para diversas camadas da sociedade, mas, em maio, foi publicada uma resolução do prefeito municipal da época, Joaquim Fernandes da Costa, vetando a instalação de diversões como fonógrafo e o kinetoscópio em espaços públicos.

A primeira menção de uma sessão de cinema realmente coletiva na cidade do Recife remonta ao ano de 1898, por meio de um Motoscópio (referido em algumas publicações como Metascópio ou mesmo Metescópio), uma variante mais moderna do cinematógrafo, trazido da Europa pelo francês Georges Mornand. “Que o nosso povo, amante das novidades, aproveite essa que é palpitante de atualidade” (Jornal do Recife, 12/05/1898, p. 2), anuncia o jornal, apontando que o aparelho “está fazendo sucesso no mundo civilizado, porque consegue apresentar quadros com movimentos, mas sem a trepidação da luz. A visão é nítida e completa, pois os objetos apresentados movem-se clara e distintivamente” (Jornal do Recife, 10/05/1898, p. 2). À medida que as sessões foram se tornando mais constantes, os jornais passaram, gradualmente, a também publicar a programação das exibições, o preço não tão popular dos ingressos e até a repercussão dos filmes.

O público era composto essencialmente pelas famílias mais abastadas da cidade, uma certa elite econômica e cultural, já que era notável a presença de bondes após as exibições que levavam os espectadores para bairros como Apipucos, Várzea e Casa Amarela. Tal recorte mostra uma imensa diferença do que aconteceu nos Estados Unidos, em que esse cinema chamado de “primitivo” ou de primeiro cinema era consumido em larga escala por trabalhadores e imigrantes, ou seja, pela parcela mais pobre da população, que comumente enfrentava jornadas excessivas de 12 a 14 horas de trabalho, entrando antes de amanhecer e largando depois que o sol já havia caído. O cinema tarde da noite, nesse contexto, era a única oportunidade de lazer para quem muitas vezes não entendia/falava a

Page 68: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

68 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

língua inglesa, servindo como referência também para que essas pessoas pudessem presenciar a movimentação das cidades, afinal, perdiam o dia inteiro dentro das fábricas.

De toda forma, essa primeira sessão foi programada inicialmente para acontecer numa quinta-feira, 12 de maio de 1898, às 20h, no térreo de um prédio devidamente adaptado, onde antes existia o restaurante A Mascota, na Rua Larga do Rosário, nº 22, no Bairro de Santo Antônio (onde, hoje, existem duvidosas empresas de crédito que costumam abordar idosos na rua). No entanto, “por motivos imperiosos e alheios” (Jornal do Recife, 15/05/1898, p. 2), os pequenos quadros variados só começaram a ser exibidos na segunda-feira seguinte, dia 16: “há belos trechos de paisagens onde veem voar as aves, vultos humanos que se agitam em todas as direções, pontes curiosas, cenas cômicas e uma porção de mil cousas outras que estão mesmo pedindo a atenção do nosso público” (Jornal do Recife, 10/05/1898, p. 2). No dia 17, o mesmo periódico anunciou o sucesso e a satisfação dos convidados após a concorrida sessão do dia anterior: “destacamos uma bela marinha e a passagem dos bombeiros de Paris e outras vistas que foram de um bonito efeito. Em alguns, a luz era perfeitamente fixa, sem prejudicar, portanto, o efeito das vistas” (Jornal do Recife, 17/05/1898, p. 3).

Com alguma melancolia, que nos lembra os comentários gerais de um presente que se repete, da sensação de estar vivendo num tempo difícil, um jornalista se referiu a outra sessão, elogiando a invenção, como “incontestavelmente um desopilante para a época que atravessamos” (Jornal do Recife, 18/05/1898, p. 2). As sessões sempre lotadas seguiram até meados de junho, sendo retomadas durante uma breve temporada no mês de agosto, com muita concorrência e animação, passando de um para três horários por dia, algo que reverberou em mais escritos por parte dos colunistas. Alguns bastante irônicos entre si: “em primeiro lugar, não sabemos porque as artes de berliques e berloques escrevemos sempre – Motoscópio – e no dia seguinte lemos – Metoscópio – e até, que Deus nos perdoe, chega tal palavra a se transformar em – Metescópio”

Page 69: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

69O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

(Jornal do Recife, 19/05/1898, p. 2). O jornalista conclui: “Oh, poder do transformismo, cremos hoje em ti, cremos!” (IDEM).

Visto como uma das invenções mais formidáveis e luminosas do século da eletricidade, o Motoscópio era apresentado em sessões que duravam menos de meia hora, “a preços cômodos”, com quadros variáveis produzidos essencialmente na Europa: “Os banhos de Diana, A vista do Hyde Park na Inglaterra e As montanhas náuticas da Rússia” (Jornal do Recife, 25/05/1898, p. 2) ou “Os boulevard parisienses, Os rochedos de Pontillac” (Jornal do Recife, 29/05/1898, p. 2) ou “A panorâmica dos Alpes vista por uma portinhola de trem, o quadro cômico A volta de um boêmio para casa à noite” (Jornal do Recife, 02/06/1898, p. 2). Há ainda a inusitada indicação que algumas dessas sessões chegaram a ser sonorizadas por um gramofone. Um dos textos aponta para a reação dos espectadores:

E realmente vale a pena sair uma pessoa de seus cuidados para ir até a rua Larga do Rosário, nº. 22, ouvir a máquina que fala e canta, fazer discursos e cantar o Toreador da Carmen, de Bizet; e depois ver o bonito exercício de uma carga de cavalaria, uma sugestiva paisagem ou um quadro cômico, tudo através de uma ilusão perfeita, que já ouvimos um pobre homem entusiasmado, com os pulos dos banhistas dentro d’água, nos Banhos de Diana, gritar inconscientemente levantando-se da cadeira: upa, upa! E não é para menos: tem-se quase a sensação da queda daqueles pândegos no meio da água (Jornal do Recife, 29/05/1898, p. 2).

Em agosto, foi anunciada a volta do Motoscópio, mas a estreia que aconteceria no dia 15 precisou ser adiada para o dia 20, “pelo motor elétrico não ter sido montado corretamente, o que deu um grande prejuízo” (Pequeno Jornal, 15/05/1898, p. 2). O fim das sessões organizadas por Georges Mornand se deu de maneira violenta, no dia 25 de agosto de 1898, quando o público, que lotava a casa superando inclusive o limite de assentos, ávido por assistir vistas inéditas vindas da Europa e prometidas na divulgação dos jornais, se deparou com as velhas cenas exibidas nos dias anteriores. Um jornalista relata o que se sucedeu: “como o sr. Mornand não cumpriu o programa que anunciara na última

Page 70: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

70 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

sessão, os que lá estavam exaltaram-se, entrando para arrebentar os compartimentos de madeira, os móveis, tudo. Parece que o prejuízo foi completo, não escapando cousa alguma à cólera dos indignados” (Jornal do Recife, 26/08/1898, p. 2).

Um outro relato mais detalhado afirma que se tratava de uma proposta nunca experimentada pelo empresário francês na capital pernambucana, isto é, “uma sessão exclusiva para homens”, com exibição de “cenas sugestivas” (provavelmente, algumas imagens curtíssimas de mulheres despidas caminhando e dançando). Até então, as sessões promovidas acolhiam famílias pernambucanas, portanto, espectadores de ambos os sexos e diferentes idades que se divertiam com uma programação de até dez pequenos filmes, com entradas de mil ou dois mil réis. Porém, para essa sessão, Mornand estabeleceu um preço único (o mais caro), oferecendo para “os espectadores de um só sexo, mas de idades e posições diversas, apenas três únicas cenas das que mereciam tão extraordinário acolhimento” (Pequeno Jornal, 26/08/1898, p. 2). A reação masculina foi violentamente generalizada:

Efeitos de sugestão: [...] Julgaram-se logrados os que ali foram por não serem tão livres como esperavam, e fácil e rápido foi o extravasamento da indignação, chegada ao excesso, havendo pateadas, correrias, ameaças, destruição, pauladas, não tendo, porém, sofrido maiores prejuízos, o Sr. Mornand, que pode ocultar-se das iras populares indo depois para o hotel, onde está hospedado, com garantias da polícia. Não sabemos se continuarão a serem feitas as exibições do belo aparelho, mas se isto acontecer, a bem da ordem, as tais cenas sugestivas não devem ter mais lugar. O Sr. Mornand esqueça-as, lembrando-se do mal efeito da experiência de ontem, não compensador do efeito pecuniário obtido e continue a proporcionar às famílias as vistas que divertem sem queda e escárnio à moral pública. Julgamos dispensados de afirmar que merecem nossas censuras as selvagerias praticadas (Pequeno Jornal, 26/08/1898, p. 2).

Dois dias depois, o francês publicou uma nota afirmando ter cumprido com as suas obrigações, defendendo em particular o responsável pelos

Page 71: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

71O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

bilhetes, Domingos Mafra, dizendo ter provas por meio dos talões que não foram vendidos mais ingressos do que lugares. No dia 3 de setembro, sem grande alarde, ele seguiu para Belém do Pará no vapor brasileiro Guajará. Mafra, por sua vez, era um conhecido e respeitado secretário e organizador de eventos culturais no Recife, acolhendo especialmente companhias teatrais estrangeiras e de outros estados, circos franceses e realizando desde pelo menos junho de 1897, a “Grande exibição de quadros ilusionistas” no Teatro de Santa Isabel.

Em 16 de dezembro de 1899, um ano após o violento evento, Domingos Mafra que vinha se dedicando exclusivamente a peças de teatro, começou a organizar sessões com o Motoscópio no Hotel Comercial. Na ocasião foram exibidos, durante três sessões às 19h, 19h45 e 20h30, sete filmes: 1. Transporte de pedras monumentais para a Exposição de 1900; 2. As lutas extravagantes. Scena de transformações. 3. Viagem em comboio, dando ao espectador a perfeita sensação de que está viajando; 4. O restaurante diabólico, vista cômica; 5. Scena campestre numa aldeia suíça; 6. Polícia e Gatuno e 7. A célebre vista: “A lua a um metro” ou “O pesadelo do astrônomo. Comenta-se que essa última produção contava com mais de 6 mil fotografias sucessivas, tendo a duração de pouco mais de seis minutos, muito maior que a média da época de alguns segundos até no máximo 2 minutos. Curioso que nas primeiras sessões, havia ingressos mais baratos para pessoas que desejassem assistir aos filmes em pé.

Dois anos depois do violento evento, em 1900, há o registro da instalação de um Cinematógrafo Lumière na Rua da Imperatriz, nº 25, que teria funcionado entre janeiro e outubro: uma chamada convida os leitores a aproveitarem a “diversão moderna, com três sessões por noite” (Jornal do Recife, 10/01/1900, p. 2), cada qual com duração aproximada de dez minutos. Pouco tempo depois, o mesmo periódico afirma que tem “agradado as vistas coloridas exibidas na Rua da Imperatriz” (Jornal do Recife, 22/04/1900, p. 1), dentre as quais destacam-se “O grande cortejo do Jubileu da Rainha Vitória em Londres; A batalha de neve na América do Norte; Dragões a cavalo atravessando o rio Saone na França e Banhos

Page 72: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

72 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

de Diana em Milão” (Jornal do Recife, 02/09/1900, p. 3). No início de 1901, uma nova invenção, o Mirógrafo, inventado por Reulos e Goudean, chegou à cidade chamando a atenção pelo seu tamanho reduzido, pela portabilidade, sendo o primeiro aparato da história voltado para a produção amadora de imagens em movimento (seguindo um caminho aberto na fotografia pela Kodak pouco tempo antes):

pode-se trazer no bolso como um binóculo, pois mede 0,14 de altura, 0,10 de comprimento e 0,6 de largura. O mirógrafo tira vistas ou cenas. As fitas desdobram-se e o aparelho transforma-se em cinematógrafo, onde se animam as cenas e se admiram as paisagens tomadas. Cada fita pode encerrar 500 imagens, pois mede seis metros, a duração da projeção é de quarenta segundos. As imagens projetadas alcançam de 1 a 1,90m de altura. Com o aludido aparelho, todos podem tirar retratos animados de pessoas da família ou dos amigos, com seus gestos, movimentos e verdadeira fisionomia. Vindo a combinar-se o fonógrafo com o cinematógrafo, poderemos ter presentes e ouvir falar as pessoas queridas que tenham morrido, ou se hajam ausentado (Jornal do Recife, 29/03/1901, p. 1).

Em meados de março de 1904, menciona-se que chegará em breve um cinematógrafo para ser instalado no Teatro de Santa Isabel, informação que só volta a ser reiterada na segunda quinzena de agosto, com a chegada do aparato de propriedade de Edouard Hervet, capaz de montar dez ou mais espetáculos sem precisar repetir cenas. A primeira sessão aconteceu no dia 20 de agosto de 1904, com destaque para “Vida, paixão e morte de nosso senhor Jesus Cristo” em cores e com duração de 18 minutos. O anúncio informa que ao final da sessão haverá um trem para Olinda e bondes para todas as linhas, um serviço que poderia estar tanto sob a responsabilidade do poder público como dos empresários do entretenimento, e que logo se tornou uma marca permanente em todos os eventos dessa natureza. No dia 25 do mesmo mês, alegando que não estava tendo o retorno financeiro necessário, Hervet suspendeu as sessões. No dia 12 de outubro, no entanto, foi anunciado uma sessão do cinematógrafo ao ar livre no Café 15 de Novembro.

Page 73: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

73O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Em 1906, a partir de fevereiro, começaram as exibições sistemáticas e já há falas, nos periódicos, situando a concorrência entre o teatro convencional e as cenas apresentadas pelo cinematógrafo, a saber,

uma grande corrida de touros; índios e cowboys, episódios da Guerra Russo-Japonesa; a mala de Barnun e Fausto, grande composição cinematográfica em 15 quadros coloridos. O cinematógrafo falante será exibido na segunda parte. Os espectadores verão e ouvirão o célebre cantor monsieur Mercadier, do Cassino de Paris, interpretando a canção “Bonsoir, Madame La Lune” (Jornal do Recife, 15/02/1906, p. 1).

Diferentemente de sua tentativa dois anos antes, em meados de março de 1906, na sua décima quarta exibição, o cinematógrafo da empresa Hervet, divulgado como “Cinematógrafo Aperfeiçoado e Cinematógrafo Falante”, já era considerado um completo sucesso no Teatro de Santa Isabel. Eram oferecidos programas cada vez mais variados em diversos gêneros, geralmente divididos em três blocos que iam desde Recepção do rei da Espanha em Barcelona até A premiação de Santos Dumont na apresentação de seu dirigível nº 9, passando por “Johnston Blodgett, o campeão ciclista; O senhor e a senhora estão com pressa (cômico); O armário dos irmãos Davenport (mágico); A greve (drama em cinco atos coloridos); A casa sossegada (cômico); Maria Antonieta (peça histórica em cores); A caixa de malícia e o incendiário, vista sensacional de grande duração em cores” (Diário de Pernambuco, 11/03/1906, p. 2). É notável como muitos dos quadros apresentados são anunciados como coloridos, provavelmente coloridos a mão ou simplesmente através do processo de emulsão que deixava a película amarelada, azulada ou avermelhada. Além, claro, do anúncio do cinematógrafo falante, mais uma das tentativas primitivas de sonorização:

Espetáculos de primeira ordem. O melhor cinematógrafo que viaja pela América. O maior, o mais interessante e o mais escolhido repertório de vistas animadas que tem vindo ao Brasil. Cenas de grande duração e em cores. Cinematógrafo Falante! A grande novidade da época, a última perfeição, a ilusão completa pelo fonógrafo combinado com o cinematógrafo. Enorme sucesso

Page 74: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

74 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

em Paris e no Teatro Lírico no Rio de Janeiro (Jornal do Recife, 21/02/1906, p. 3).

Ainda nesse mesmo ano, na noite do dia 7 de setembro, um incêndio atingiu o Teatro Olympia (ou Park Olympia), um espaço de diversões variadas em Olinda, quando ao começar o terceiro ato do espetáculo de estreia, “as fitas de celuloide destinadas a prender as vistas foram atingidas por um foco elétrico” (Jornal do Recife, 11/09/1906, p. 2), ferindo alguns técnicos e provocando gritos e correria entre os presentes na plateia. O historiador Felipe Davson pontua em sua dissertação de mestrado, Novidade, imaginário e sedentarização: o espetáculo cinematográfico no Recife (1886-1909), que a partir de 1907, chegaram na capital pernambucana aparatos “aperfeiçoados” de diferentes marcas, como o da empresa francesa Joulie; máquinas normalmente instaladas por curtas temporadas de um mês, um mês e meio, no Teatro de Santa Isabel. A diversão costumava ser divulgada como a novidade “mágica” e “exuberante” vinda de Paris e, de fato, é notável a recorrência nas páginas dos periódicos de uma certa devoção colonizada pelo continente europeu como o lugar do bom, do civilizado, do que é necessário alcançar. Absolutamente todos os filmes desse período são estrangeiros, particularmente franceses; muitos são anunciados como coloridos e a duração das películas aumenta consideravelmente, popularizando as exibições de títulos de até vinte minutos.

Alguns dos comentários coletados:

Espetáculos morais, recreativos e instrutivos. Quadros e cenas de grande duração e em cores. A última palavra no gênero cinematógrafo (Jornal do Recife, 17/02/1907, p. 4)

Deixou excelente impressão o espetáculo de estreia do cinematógrafo Joulie, sábado último, no Santa Isabel. O teatro estava completamente cheio, sendo entusiásticos os aplausos do público às diversas vistas apresentadas. Entre estas agradaram imensamente as denominadas Amor de perdição e Cuidado com a pintura. O aparelho é um dos mais aperfeiçoados que tem aparecido nesta capital. Anteontem, teve lugar o segundo espetáculo, também bastante animado, agradando

Page 75: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

75O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

extraordinariamente. Para hoje está anunciado o terceiro com um programa variado e atraente. Das vistas que serão apresentadas é digna de menção a denominada Os apaches de Paris (salteadores e vagabundos) (sic), de grande sucesso. Em vista da grande procura de bilhetes, a empresa só respeitará as encomendas até às 2 horas da tarde (Jornal do Recife, 19/02/1907, p. 1)

Nos foram oferecidos alguns exemplares de O último beijo (impressões do cinematógrafo / fotografias), que a empresa Joulie está distribuindo entre os apreciadores do cinematógrafo que faz exibir no Santa Isabel. É a descrição de empolgantes cenas de uma história de sentenciados que, projetando uma fuga do presídio em que se acham, dão lugar a trágicos acontecimentos que trazem interesse ao espectador pelo desfecho. São quadros sensacionais que farão as delícias dos que assistirem, hoje, ao último espetáculo da empresa Joulie (Jornal Pequeno, 21/03/1907, p. 2).

Phono-Cinema Joulie. Grandiosa e fenomenal novidade cinematográfica de absoluta perfeição e naturalidade. Êxito colossal do Cirque D’Hiver, de Paris. [...] Brevemente estreará o Synchrophone Automático, a combinação mais perfeita até hoje conhecida. (Jornal Pequeno, 28/01/1909, p. 3).

A máquina falante, fabricada pela casa Gentlemone, com auxílio de um grande fonógrafo Columbia, também é o último modelo do gênero, apresentando as imagens bem trabalhadas e o som da voz ao natural por meio de uma câmara de ar comprimido que vem de um grande motor elétrico, de propriedade da empresa e do grande fabricante Astier. As films (no feminino), segundo estamos informados, são todas novas. [...] É de se esperar que a empresa com todos estes elementos possa dar bons espetáculos deste gênero, tão ao sabor do nosso público (Jornal do Recife, 21/01/1909, p. 3).

Foi assim que, no Recife, os teatros e salões do fim do século XIX se transformaram nas cenas e telas do século XX. Quando o Cinema Pathé foi aberto, na Rua Nova (antiga Barão da Vitória), nº 45, no dia 27 de julho de 1909, as bases de consumo cinematográfico já estavam fincadas na cidade, havia desejo forte o suficiente para lotar as 320 cadeiras, além do camarote especial para autoridades. A divulgação da abertura da sala

Page 76: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

76 O NASCIMENTO DE UMA CULTURA CINEMATOGRÁFICA

começou meses antes, gerando frisson, com matérias que destacavam o tamanho e luxo das instalações. Os sócios-proprietários eram Antônio Jovino da Fonseca e Francisco Guedes Pereira e os filmes exibidos pertenciam à Pathé-Frères, fundada por Charles Pathé. As sessões aconteciam no horário das 12h às 16h (matiné para crianças) e das 18h às 22h (destinada aos adultos) e há indícios de que, de 1910 até 1916, o espaço passou a exibir, além de filmes, alguns instantâneos/fotografias de jornais locais e flagrantes filmados pela própria empresa no Recife. Seriam supostamente os primeiros cinejornais pernambucanos, mas todos os fragmentos são considerados perdidos.

Poucos meses depois da abertura do Cinema Pathé, foi inaugurado o Cine Royal, também situado na Rua Nova, nº 47, pertencente à firma Ramos & Cia. Os dois espaços passaram a disputar o público recifense, “se o Royal exibia sete filmes, o Pathé colocava oito na sua programação” (GASPAR, 2009, online), enquanto os jornais foram gradativamente abrindo mais espaço para divulgação das respectivas programações. O Pathé, no entanto, fechou antes de 1920, enquanto o Royal teve uma vida de mais de 40 anos, fechando suas portas somente em julho de 1954. O espaço encontrou seu auge na década de 1920, acolhendo todas as estreias dos filmes do Ciclo do Recife, como Retribuição, Jurando Vingar, Aitaré da Praia e A Filha do Advogado. “O cinema era todo enfeitado com bandeirolas, folhas de canela no chão, além de patrocinar a exibição de bandas de música para o seu público” (IDEM). Para melhor entender essa sede pelo cinema, basta notar a proliferação de outras salas nos anos seguintes, como o Cine Helvética (aberto em junho de 1910) e o Cine Polytheama (aberto em outubro de 1911, “chamado pelos estudantes da época de Cine Polypulgas” (IDEM)).

Page 77: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

77O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

2.2THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

Enquanto pesquisava sobre esse período de formação de uma cultura cinematográfica na cidade do Recife, deparei-me com algumas breves menções a cinejornais produzidos ou mesmo fotografias projetadas em salas de cinema, isto é, algumas ações locais de filmagem que já haviam sido constatadas pelo pesquisador Paulo Cunha e pelo historiador Felipe Davson (esse último chega a listar oito “possíveis produções pernambucanas”, a partir da programação de anúncios publicados entre 1902 e 1908). Um pouco depois, outros pioneiros registros de cenas filmadas na capital pernambucana surgiram no que era chamado de Pathé-Jornal, um periódico realizado pela “grande distribuidora francesa, que estava se instalando no mundo todo. Tinha casas de exibição em vários países e produzia imagens em quase todos eles. Então, a gente presume que já em 1910, a Pathé filmou cenas em Pernambuco” (CUNHA, 2016, online).

Ele continua: “não existem mais essas cenas, todas elas se perderam, mas há registros nos jornais disso” (IDEM) e, de fato, alguns periódicos anunciaram a exibição desses noticiários antes dos filmes principais, mas pelas descrições que consegui localizar das imagens, tais como “chamamos a atenção para os penteados de Paris, no Pathé-Jornal de hoje” (A Província, 04/06/1911, p. 6) ou “diferentes cenas do mundo serão exibidas perante vossos olhos” (Diário de Pernambuco, 23/12/1916, p. 5), muitos desses produtos audiovisuais já vinham prontos de fora do país. Mesmo no Rio de Janeiro, numa busca superficial em periódicos da mesma época, só a título de comparação, acumulam-se descrições similares, como “representações das modas de Paris” (Jornal do Commercio, 25/05/1911, p. 52) ou “matiné com Pathé-Jornal trazendo as grandes novidades do mundo” (Jornal do Commercio, 19/07/1912, p. 17). As imagens filmadas pela Pathé no Brasil seguramente priorizaram a capital do país, mas dada a imensa quantidade de cinejornais difundidos

Page 78: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

78 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

e sempre numerados, é provável – mas eu particularmente não consegui comprovar em Pernambuco – que tais registros tenham se expandido para outras localizações.

De todo modo, sem deixar de lado esse período de sete anos, mas se apegando a uma constatação material mais detalhada, em 1917, há registros de um cinejornal em 35mm (com uma segunda edição no mesmo ano), totalmente rodado em Pernambuco, que se chamava Pernambuco Jornal, também mencionado na base de dados da Cinemateca Brasileira, como Jornal Pernambucano I e II, Jornal da Tela Pernambucana I e II ou mesmo Atualidades Pernambucanas I e II. A produção documental de duração desconhecida e considerada desaparecida, estranhamente surge no banco de dados da instituição como uma produção paraibana. Seja como for, ela serve de ponte para mergulharmos na trajetória de Italo Majeroni, responsável pela produção desse cinejornal e por centenas de filmes de atualidades gaúchas entre as décadas de 1930 e 1970. Majeroni foi um ator de teatro italiano, que desde os seus doze anos admirava e imitava o transformista também italiano Leopoldo Fregoli (famoso por sua versatilidade cênica, registrada no filme L’Homme Protée (1899), de George Méliès, em que interpretava vinte diferentes personagens).

Majeroni chegou ao Brasil em 1914, utilizando o pseudônimo Leopoldis em homenagem ao seu ídolo e iniciando sua carreira no país com uma extensa temporada de espetáculos em Porto Alegre. Depois das filmagens do longa Vivo ou Morto (1916), de Luiz de Barros, obra também considerada desaparecida, ele veio ao Recife onde apresentou regularmente, no Helvética, no Teatro do Parque e no Teatro Deodoro, o seu show The Great Leopoldis de “transformismo excêntrico (gênero ‘fregoli’) e um mundo de curiosidades imprevistas”, marcado por uma “mise-en-scène de luxo e um guarda-roupa deslumbrante” (Jornal do Recife, 16/02/1916, p. 9). Tratava-se de um espetáculo multifacetado de variedades, com até três horas de duração, que começou com uma presença tímida de pagantes, mas logo caiu nas graças do público, com um programa que misturava encenação de trinta personagens masculinos e femininos,

Page 79: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

79O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

com ilusionismo, prestidigitação, mágica, hipnose, telepatia, além de cantoria e passagens musicais acompanhadas de orquestra.

Vale destacar aqui que, nessa época, a prática de homens vestidos com “roupas femininas” era permitida apenas no palco e tida como crime contra moral nas ruas, ou seja, não podia ser vista no cotidiano, como estilo de vida. Basta ver a matéria Homens de Saias:

deu agora para aparecer esse negócio de homens de saias. Agora é modo de dizer, o hábito é já antigo, muito antigo mesmo [...] Indivíduos perversos, libidinosos, enroupam-se em trajes femininos para de modo melhor dar raias aos seus baixos limites. Penetram nos lares e os desrespeitam, enodoando para sempre a família, arrastando-a ao crime e à lama. Ontem, noticiamos que um conceituado cavalheiro ao retirar-se da festa no Clube Náutico. Deparou na Rua do Pires, um homem vestido de mulher, que fugiu ao avistá-lo. Hoje, pessoa que muito nos merece, contou-nos que há muitas noites no Espinheiro, transita pela madrugada, um outro em iguais condições. [...] Xadrez com eles! Estes bichos não mordem, são covardes (Jornal do Recife, 26/10/1909, p. 1).

Inspirado pelo crescente sucesso nos palcos, pela repercussão positiva de sua atuação em Vivo ou Morto, que entrou em cartaz no Teatro Moderno em março de 1917, e graças ao prestígio alcançado como representante da Guanabara Filmes no Recife, Majeroni/Leopoldis montou um pequeno laboratório e produziu um cinejornal, com pelo menos duas edições, para passar antes dos filmes da produtora/distribuidora carioca. Os jornais Diário de Pernambuco e A Província apontam que Leopoldis capturou com sua objetiva aspectos do cotidiano recifense, em especial datas comemorativas, “pegando muitas pessoas conhecidas em flagrante” (Diário de Pernambuco, 26/04/1917, p. 4), a saber, a parada militar de 24 de abril, que saiu do Derby e passou pela Rua da Aurora e pela Ponte da Boa Vista; o passeio da sociedade de atiradores Tiro 205; a saída da missa de domingo na Igreja do Divino Espírito Santo, no Bairro de Santo Antônio; a forte movimentação na Casa de Moedas; um meeting na Praça da Independência e os reflexos da moda parisiense em Pernambuco.

Page 80: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

80 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

O filme foi bem recebido e pode ser considerado um marco pioneiro da produção local, pois pela “primeira vez” o público recifense estava vendo a si mesmo e a sua cidade em imagens em movimentos numa tela, apesar da película utilizada ser bastante velha e desgastada (eram sobras que não foram utilizadas em outras produções), comprometendo a nitidez da reprodução desde sua primeira exibição no dia 11 de maio de 1917, antes do filme Coração de Gavroche/Os Miseráveis (EUA, 1917), de Frank Lloyd. Anunciou-se que o cinejornal teria periodicidade quinzenal, mas exceto pelas reprises, a segunda edição só foi exibida quase um mês depois, no dia 6 de junho de 1917, numa gravação realizada com películas novas vindas do Rio de Janeiro. A nitidez dessa segunda edição chamou a atenção dos jornais locais e Leopoldis foi bastante elogiado, especialmente por ter corrigido os ’defeitos’ cometidos na edição anterior, apresentando com “nitidez absoluta e movimentos firmes, um filme que pode rivalizar com os melhores importados do estrangeiro” (A Província, 08/06/1917, p. 4).

O italiano, dessa vez, captou especialmente embates da liga esportiva de futebol local, focando no jogo entre América e Torre, e cuja presença da câmera fez com que a torcida se mostrasse mais interessada em aparecer (e posteriormente se ver) nas imagens do que propriamente no que se passava no gramado. Alguns periódicos relatam brevemente essa fascinação dos recifenses pela câmera, entendendo que estariam se imortalizando caso fossem capturados. Além do futebol, o filme continha imagens do pintor Virgílio Maurício e suas telas de paisagens recifenses em seu ateliê, no nº 54 da Rua de Santa Cruz; e a grande procissão de encerramento do mês de maio, na Matriz da Boa Vista, com a presença de cerca de 3 mil pessoas. Diferente dos outros registros, circunscritos ao círculo da burguesia local e à presença de autoridades em clubes e encontros, este último caso involuntariamente capturou pela primeira vez pessoas das classes sociais mais diversas.

Há de se mencionar ainda que, na segunda edição do cinejornal, informações tão notáveis como questionáveis surgem nos jornais locais. Uma delas é a de que Leopoldis teria registrado uma visita à

Page 81: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

81O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Casa de Detenção do Recife, passando por seus interiores e exteriores, adentrando inclusive as celas, filmando diversos presos encarcerados ou fazendo exercícios no pátio. O destaque dessa sequência ficaria para o ‘famigerado’ cangaceiro Antônio Silvino, preso em 1914, manejando/encenando com “admirável destreza” um rifle descarregado, além dos “célebres sequazes” do Sertão Zé Duque e Cabeça Branca – o que sem dúvida seria propriamente o primeiro registro de imagens em movimento do cangaço pernambucano. O filme foi exibido durante quatro dias seguidos antes dos longas “com cores naturais”, no Teatro Moderno e no Cine Royal. Depois do dia 9 de junho de 1917, não há mais referências ao Jornal Pernambuco/Pernambuco-Jornal, o que nos leva a concluir que o projeto foi abandonado, ainda que no final de junho exista uma vaga menção de fotografias tiradas pelo artista durante o “ground” da liga esportiva pernambucana de futebol.

Entre 1916 e 1921, Leopoldis manteve suas apresentações teatrais esporádicas no Recife, indo e voltando de turnês que passaram pela Paraíba, Maranhão, Pará e outros estados do Norte e Nordeste. Nesse período, precisamente a partir do lançamento do longa-metragem Perdida, dirigido por Luiz de Barros, também da Guanabara Filmes, algumas sessões no Teatro Moderno foram seguidas de apresentações e debates, dando início a uma cultura da reflexão cinematográfica marcada essencialmente pela explicação da história, por um julgamento moral, cuja estética estava sempre à mercê de uma comparação com o teatro. Havia uma relação crescente entre espectadores e as pessoas envolvidas com a sétima arte. Leopoldis, inclusive, costumava mandar cartas para os jornais divulgando suas apresentações e enaltecendo o público local, “na minha longa carreira artística, tenho visitado quase todos os países da Europa e vários da América. Sinto-me bem em afirmar que nunca encontrei povo tão hospitaleiro e distinto quanto o pernambucano” (Jornal Pequeno, 03/02/1916, p. 3).

Essa intimidade fez com que parte da vida pessoal do artista ganhasse as páginas dos periódicos, como na ocasião em que Leopoldis foi convocado

Page 82: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

82 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

pela Itália para servir na Primeira Grande Guerra. A publicação afirma que Leopoldis, “um dos artistas mais simpáticos da cidade não está triste por medo das trincheiras, mas pelas saudades que leva do Brasil, onde veio encontrar uma segunda pátria” (Jornal Pequeno, 20/07/2016, p. 4). O caso é que se menciona mais uma ou duas vezes sobre a sua ida, mas tal informação repentinamente passa a ser ignorada, e quando seu nome volta a estampar as notícias é para informar que o italiano se tornara representante da Guanabara Filmes na capital pernambucana, onde fundou uma filial.

Depois de retornar e se instalar definitivamente em Porto Alegre, cidade onde decidiu viver até o fim de sua vida, Leopoldis/Majeroni fundou em 1921 a Leopoldis Filme (que depois se transformaria em Cinegráfica Leopoldis-som), empresa que traçou uma espécie de diário audiovisual da história gaúcha por meio de um cinejornal com 477 edições, além de investir na produção de longas-metragens de ficção que circularam por todo país. Infelizmente, quase toda produção anterior ao ano de 1961 foi perdida no verão de 1965, num incêndio de grandes proporções ocorrido nos depósitos em que estavam guardadas praticamente todas as cópias em nitrato de celulose, material de fácil combustão. A ironia do fato é que o espaço era relativamente recente, escolhido justamente para sanar a falta de segurança do espaço anterior. Essa é mais uma perda inestimável para a cultura cinematográfica brasileira.

A empresa lançou uma nota na ocasião para informar que perdera mais de cem milhões em filmes, ainda que pesquisadores acreditem que produções feitas sob encomenda possam ter cópias não catalogadas nos lugares mais improváveis. Não há informações concretas se as duas edições do Pernambuco-Jornal estavam nesse acervo ou se já haviam sido abandonadas/destruídas muito tempo antes. Italo Majeroni/Leopoldis faleceu em Porto Alegre no dia 21 de fevereiro de 1974. Sua chegada ao Recife não foi por acaso, afinal desde anos anteriores, assim como posteriores, a cidade recebeu inúmeros imigrantes europeus, especialmente franceses e italianos. Esses últimos, inclusive, atuaram

Page 83: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

83O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

como peças fundamentais para a produção que culminaria no Ciclo do Recife, pois estabeleceram uma íntima relação com a imprensa e com os políticos locais, ocupando sempre espaço nas matérias similares à coluna social.

Um desses imigrantes foi Ugo Falangola (por vezes, registrado como Hugo), que chegou ao Recife em dezembro de 1919, vindo do Rio de Janeiro, onde era um conhecido negociante, dono de um estabelecimento gráfico responsável por fundar várias revistas de literatura e artes. O italiano, autor do livro Álbum de serviços de navegação no Brasil, com fotografias de várias cidades brasileiras, e um amante da aviação, não só fazia parte de uma expressiva colônia italiana, tal qual Leopoldis, como presidia uma espécie de sociedade de imigrantes que existia na cidade, oferecendo luxuosos banquetes e sendo destaque permanente nas notas sociais dos principais jornais. Ele foi responsável, junto a outro italiano, J. Cambieri (que primeiro surge como Giovanni Cambieri, depois G. Cambieri, mais a frente J. Cambieri até que, por fim, João Cambieri), pelo cinejornal Atividades do Governo Sérgio Loreto, lançado em 1923. Pelo que foi possível remontar sobre a produção, a partir das pouquíssimas, quase inexistentes, referências, tratava-se de um documentário realizado após a eleição de Sérgio Loreto como governador de Pernambuco em 1922, mostrando o que seriam as primeiras ações de sua administração.

Portanto, são vistas obras como a conclusão do Quartel e da Praça do Derby; a construção da Avenida Beira-Mar (atual Avenida Boa Viagem); a dragagem do Porto do Recife e ampliação de alguns cais e armazéns para permitir a entrada e acostamento de grande navios; a construção da segunda linha adutora do Gurjaú, para ampliar o abastecimento de água da cidade. Aproveitando-se da presença dos estrangeiros com uma câmera na capital pernambucana, o político financiou essas filmagens para obviamente beneficiá-lo e registrar seu nome na história, mas indiretamente terminou por estimular a formação de um ímpeto produtivo que logo escaparia do fazer documental para a ficção. Menos de um ano depois, Ugo Falangola e João Cambieri fundaram a primeira

Page 84: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

84 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

produtora local: a Pernambuco Filmes. O Diário de Pernambuco publicou uma extensa matéria, chamada hiperbolicamente de A indústria cinematográfica no Recife, sobre a visita de um repórter às instalações da empresa:

Tivemos ontem o ensejo de visitar os ateliês da Pernambuco Filmes, à rua de São João, número 485, empresa recentemente fundada nessa capital pernambucana pelos srs. U. Falangola e J. Cambieri. Trouxemos dessa visita a impressão que mais uma indústria está auspiciosamente iniciada no Recife, contando com as melhores possibilidades de sucesso, pelo aparelhamento que dispõe e pelo esforço tenaz e inteligente dos seus diretores.

O sistema de trabalho adotado pela Pernambuco Filmes será talvez único em todo país, de acordo com os processos mais aperfeiçoados em uso na Europa e nos Estados Unidos. Os filmes são revelados e fixados por meio de teares de 28 milímetros em tanques adequados e depois postos para secar num depósito local por meio de ventiladores elétricos. A coloração é obtida com anilinas de primeira qualidade, por meio de viragem química, dando resultados iguais aos obtidos pelas grandes fábricas cinematográficas.

A “Pernambuco Film” propõe a editar películas de propaganda de nosso Estado. A primeira da série com dois mil metros de extensão e em seis partes, encontra-se com a confecção quase concluída. O Recife pitoresco abre o interessante filme, com as belezas naturais que Nabuco tanto exaltou: o céu leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas; o mar verde, vibrátil, luminoso; as areias tépidas e cobertas de relva; os coqueiros com seu espanador parecendo ao longe sacudir as nuvens brancas; o oceano a quebrar-se em branco lençol de espumas sobre o extenso recife que guarda a cidade como uma trincheira. (Diário de Pernambuco, 02/09/1924, p. 3)

Dois anos depois, há a informação da exibição em Salvador, na Bahia, para o governador do Estado, no Palácio da Aclamação, de um filme chamado Pernambuco de ontem e hoje, com as mesmas características da produção aqui citada, “o velho Pernambuco e o Pernambuco belo e moço de hoje. Um com arquitetura arcaica dos tempos coloniais e o outro cheio de vida e progresso, com prédios gigantescos, contrastando com o Pernambuco

Page 85: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

85O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

de ontem, desde suas linhas arquitetônicas modernas, até aglomerações de pessoas, ônibus, bondes e etc” (Diário de Pernambuco, 04/04/1925, p.1). O que nos leva a crer que existiram diversas versões preliminares e reduzidas (uma delas chamada apenas de Recife), por vezes, para atender às demandas de um determinado evento político, outros filmes como Recife no centenário da Confederação do Equador e A exposição de 1924 em Pernambuco ampliaram o conjunto de imagens, que ao final foram reunidas e lapidadas, a fim de formarem o longa-metragem Veneza Americana.

Lançado em 1925, esse filme foi o carro-chefe da produção publicitária do governo local, sendo exibido inclusive para o presidente da república no Rio de Janeiro: “ontem, num dos salões do Palácio do Catete, para o Sr. Dr. Arthur Bernardes e Exma. Família foi projetado o filme “Os encantos da Veneza Brasileira”, no qual se apreciam os mais lindos aspectos do Recife, com muita arte levada à película. O Sr. Presidente da República teve as mais elogiosas expressões para a Pernambuco Filmes, representada pelos senhores Ugo Falangola e João Cambieri, diretores da empresa” (Gazeta de Notícias, 10/05/1925, p. 6). Ao longo dos anos de 1923 a 1925, ambos realizaram inúmeros documentários, registrando fábricas de grandes industriais, colégios da elite local, plantações de algodão, sessões cívicas no Gabinete Português, além da agenda permanente do governador, como a visita a um transatlântico em passagem pelo Recife.

Na capital pernambucana, A Exposição de 1924 em Pernambuco - Centenário da Confederação do Equador estreou em 1924, numa sessão para convidados, autoridades e imprensa, só depois sendo exibida ao público: “é louvável a iniciativa destes empresários procurando instalar em Recife uma fábrica de filmes, que tendo em vista o nosso grau de adiantamento industrial e social, é já uma necessidade. Aliás, será a primeira do Norte do Brasil” (A Província, 15/10/1924, p.3). Encontrei ainda as seguintes informações na base de dados da Cinemateca Brasileira sobre o conteúdo: o parque de diversões e seus brinquedos.

Page 86: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

86 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

Da exposição são apresentados exemplares bovinos e equinos criados no estado, ressaltando-se os animais premiados com a Medalha de Ouro. Estavam presentes à exposição o governador do estado, Sérgio Loreto, e o Arcebispo D. Miguel Valverde. A exposição encerrou-se em 15 de novembro de 1924. O filme apresenta ainda a chegada ao porto em janeiro do ano seguinte do Vice-Presidente da República, Estácio Coimbra e demais autoridades.

Em 21 de outubro, há uma estranha nota da associação dos empregados no comércio, avisando que as imagens que foram captadas do edifício, dos móveis, dos alunos da academia de comércio de Pernambuco, feitas mediante pagamento, foram retiradas do filme sob a alegação de terem queimado quando foram exibidas para as autoridades. No entanto, o tom da matéria “o público que avalie e que faça juízo a respeito” (Jornal de Recife, 21/10/1924, p. 2) é de que as partes foram retiradas pela solicitação de algum político, como ato de censura. Nos jornais locais, talvez pela similaridade das imagens e da proposta estética, há uma confusão entre títulos, mas percebemos que primeiro foi lançado Recife no centenário da Confederação do Equador e depois A exposição de 1924 em Pernambuco, sendo que no primeiro “o governador Sérgio Loreto e políticos de seu gabinete posam para a câmera. Aparecem as comemorações do Centenário da Confederação do Equador: desfile da Força Pública (Infantaria, Cavalaria e Corpo de Bombeiros); missa campal celebrada pelo arcebispo D. Miguel Valverde; colocação da pedra fundamental do Palácio da Justiça” (Cinemateca Brasileira).

A pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo, responsável por vários trabalhos de cunho historiográfico e contato pioneiro com fontes diretas, destaca a estratégia:

Já o segundo aniversário do governo Loreto em 1924 foi comemorado em grande estilo. Adotou-se a estratégia bem-sucedida de interligar os dois anos da gestão às comemorações do centenário de um dos principais marcos da história de Pernambuco, a Confederação do Equador. A comemoração orquestrada pelo governo Loreto estava inserida no discurso da modernidade conservadora, que ao mesmo

Page 87: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

87O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

tempo procurava enaltecer o glorioso passado pernambucano de lutas e afirmar os progressos contemporâneos, reagindo ao crescente enfraquecimento econômico e político do estado diante da desvalorização do açúcar, alicerce da economia local desde o período colonial. As comemorações tiveram início no dia 2 de julho, data da proclamação da Confederação do Equador, quando foram realizados um desfile da Força Pública do Estado, uma missa campal, a solenidade de colocação da pedra fundamental do Palácio da Justiça e uma recepção no Palácio do Campo das Princesas, residência oficial do governador. Com exceção do último, todos os eventos foram registrados pela produtora Pernambuco Filmes, dos sócios Ugo Falangola e J. Cambieri (2013, online)

Nesse filme do qual sobreviveu apenas 12 minutos, o que se acredita que seja uma das nove partes do filme, já aparece que Ary Severo foi o operador da câmera, contratado pelos imigrantes italianos que assinam a direção. Nos jornais locais, no entanto, ressalta-se que Ugo Falangola era uma espécie de mecenas, enquanto toda parte técnica era coordenada por J. Cambieri. Todas as sessões especiais para autoridades eram acompanhadas antes e depois de banda de música da força policial. O que geralmente se esquece de dizer dentro da trajetória desses imigrantes italianos no Recife, numa tradição acadêmica provinciana e ufanista, é que Ugo Falangola não só participou como presidiu uma reunião, em novembro de 1922, na Câmara Italiana do Comércio, antes de produzirem seus primeiros filmes, em que os membros da sociedade expressaram seu “apoio e regozijo” ao advento do fascismo na Itália após a famosa Marcha sobre Roma.

Os presentes chegaram a redigir o seguinte telegrama direcionado a Benito Mussolini: “italianos de Pernambuco entusiasmados pela vitória fascista vibram gloriosos a pátria longínqua confiando em vosso iluminado governo” (A Província, 05/11/1922, p. 2). O que pode parecer apenas um acaso, revela também a aproximação com o fascismo, via imigrantes acolhidos como representantes da publicidade local, do próprio governador Sérgio Loreto. Para não termos dúvida sobre esse apoio, quatro anos depois, Falangola publicou um longo artigo intitulado

Page 88: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

88 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

Quatro anos de Regime Fascista na Itália (Diário de Pernambuco, 29/10/1926, p. 4) onde não só reafirma sua posição em defesa ao golpe de estado de Mussolini, como remonta à realidade do país antes da ascensão fascista.

Desse modo, Ugo lamenta as perdas coloniais por conta do advento da Primeira Guerra Mundial, alarma os perigos do discurso ideológico dos “fanáticos” comunistas que se alastrava no país europeu, “cujas ideias se difundiram rapidamente sem que os ministros fracos conseguissem conter a impetuosa onda subversiva que ameaçava arrastar a nação num precipício pavoroso, de onde nunca mais se levantaria” (IDEM). Não para por aí: ele se refere a Benito Mussolini como “o homem predestinado”, agradece pelo extermínio de rebeldes bolcheviques, “a hidra que foi perdendo uma a uma as mil cabeças”, e reforça, a cada linha, um anseio nacionalista, moralista e militarista, apontando para os que sofreram nas trincheiras, os camisas pretas liderados pelo Duce, a responsabilidade e o dever de tomar e controlar o poder no país.

Portanto, não há como negar que Ugo Falangola, pioneiro do Ciclo do Recife, figura que é celebrada em inúmeros dos livros históricos locais, era também um fascista autodeclarado. Na segunda metade do artigo, ele glorifica os feitos durante o período de governo de Mussolini, desde sua oratória em discursos para o povo até a prosperidade na agricultura, na indústria, na construção de novas estradas e linhas férreas, inclusive apontando que tais transformações haviam estancado a corrente migratória para o Brasil. Finaliza, criticando todos que estavam espalhando “informações falsas” sobre o que estava acontecendo na Itália, seja por “um consórcio da imprensa impregnado de mentiras”, seja através de telegramas que estavam rodando o mundo, alertando especialmente para a relação com os opositores, isto é, perseguição, prisão (como aconteceu com Antonio Gramsci) e extermínio. Ele chama isso de “antipatia”, que não é o caso de falar de “liberdades violadas e monopólio sindical: a grande reforma que está se realizando na Itália é um vasto programa de colaboração nacional” (IDEM).

Page 89: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

89O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Na opinião de Falangola, “a revolução fascista marca um grande período histórico, revendo tudo que de velho e atrasado existia. Mussolini é o exemplar representativo de uma nova geração italiana” (IDEM). Mais do que isso: “Deixemos que as notícias trágico-cômicas dos vários consórcios continuem o seu inútil, quão pérfido, trabalho de denigração (escrito assim). A verdade é potente como o sol e o sol, até hoje, não tem deixado de brilhar, apesar do petulante coaxar dos milhões de sapos que vivem enlameados em todos os pântanos, perdidos na imensidade da crosta terrestre” (IDEM). Não parece apenas coincidência a aproximação dos imigrantes italianos defensores do fascismo, a imprensa local pernambucana que os celebrava e os políticos da época que utilizavam de suas câmeras para produzir todo seu material publicitário: todos incorporavam, cada qual ao seu modo, uma defesa da autoridade e do patriotismo, um ufanismo ora italiano, ora pernambucano, que de certa forma instituía um espelhamento entre eles, durante os incansáveis relatos de banquetes no círculo italiano, além de festejos familiares, encontros formais, passando pela recepção de uma fragata italiana na cidade, pelo jantar oferecido pela colônia aos aviadores do Jahú e por eventos de todo tipo. A linguagem é clara:

Louvou a Itália, louvou a grande glória e a grande coragem [...] Num espírito de confraternização que ali juntava numa só emoção e num só anseio, o coração da Itália e o coração do Brasil. [...] Foi servido champagne aos aviadores e aos demais presentes, ouvindo-se mais uma vez o hino brasileiro e italiano. [...] Durante a recepção no Círculo Italiano, o sr. Edson Chagas, da Liberdade Filmes, nova promissora empresa cinematográfica dessa cidade, filmou os melhores aspectos do ambiente (Diário de Pernambuco, 07/06/1927, p. 4)

Ao champagne, ergueu-se o Sr. Francesco Cribari, chefe da seção do Fascio em Pernambuco. [...] Relembrou a simpatia e o interesse com que a imprensa pernambucana vem invencivelmente se ocupando da Itália, dos seus homens e das suas coisas [...] daí, a dívida de gratidão com que se sentiam os italianos de Pernambuco para com os jornais locais e o desejo de dedicar-lhes aquele banquete pelo prazer de tê-los, mais uma vez associados ao seu jubilo patriótico.

Page 90: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

90 THE GREAT LEOPOLDIS E UGO FALANGOLA

[...] Em nome da imprensa, falou o dr. Luís Delgado, que numa bela oração agradeceu a homenagem da colônia italiana, exaltando em palavras de calor e juventude a Roma eterna, berço da civilização latina, capital da arte do pensamento, glória da civilização a que nos honramos de pertencer. Pela Itália! Cessados os aplausos, orou o sr. Ugo Falangola, que teceu um hino à fraternização ítalo-brasileira. Foi igualmente aplaudido. Encerrando as saudações, falou Newton Braga [...] Em palavras de inspiração e entusiasmo, o ilustre observador do Jahu referiu-se não mais à Roma do passado, como tão lindamente fizera um dos oradores precedentes, mas à Roma de hoje, à Itália de nossos dias, ressuscitada de um aparente e lamentável torpor pela ação estupenda desse pro-homem que era Mussolini, o construtor da Itália maior, da Itália grande potência militar e maior ainda na sua atividade econômico-industrial, pesando no conserto das nações. Newton Braga recebeu calorosas palmas. E assim terminou essa linda festa de cordialidade ítalo-brasileira (Diário de Pernambuco, 19/06/1927, p.3)

Em 27 de julho de 1929, Ugo Falangola retornou à Itália, mas para uma viagem passageira, pois, apesar de mencionadas suas despedidas nas redações dos jornais locais, seu nome e de sua família continuou figurando permanentemente nos lembretes de aniversários da coluna social. Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, seu nome é apenas associado como representante comercial no Brasil de importantes firmas europeias, eventualmente são registradas viagens de negócios pelo Nordeste, assim como casamentos de familiares, em especial de seus filhos. Cessa em absoluto toda e qualquer manifestação de cunho político. Seu nome só volta a aparecer novamente através dos escritos memorialistas de Jota Soares sobre o Ciclo do Recife na década de 1960, que também transcreve ao final da matéria trechos de divulgação aqui já mencionados dos cinejornais realizados por Leopoldis:

Citemos para iniciar, a labuta de Ugo Falangola e J. Cambieri, produtores italianos e proprietários da Pernambuco Filmes, empresa instalada no Recife desde 1920, com incontáveis cintas documentárias, cintas bem feitas e melhor acolhidas. Mesmo depois da fundação da Aurora Filmes, eles continuaram a lançar novos investimentos, como se vê abaixo. No clichê que ilustra essa

Page 91: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

91O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

publicação, vemos um quadrinho de característica simbólica dos filmes de Ugo Falangola e J. Cambieri, extraído do documentário Veneza Americana, de longa-metragem e realizado para divulgar as soberbas realizações do Governo Sérgio Loreto. A garotinha que aparece rompendo as lâminas de papel que cobrem a série de letreiros de apresentação da Pernambuco Filmes é uma filhinha de Ugo Falangola, devendo ser, hoje, mãe de família. O velho Falangola é muito bem relacionado no Recife e reside no Derby. Cambieri já é falecido há muitos anos. (Diário de Pernambuco, 22/09/1963, p. 25).

Ugo Falangola faleceu no dia 30 de maio de 1964 e uma enorme nota de falecimento, assim como um aviso da missa de sétimo dia, foram publicadas por familiares nos principais jornais.

Page 92: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

92

Page 93: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

93O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

2.3DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

Ainda durante a primeira fase da pesquisa, acreditava ser possível escrever sobre todos os filmes desaparecidos em um século de cinema pernambucano, então passei alguns meses cascavilhando periódicos da Biblioteca Nacional e passando a limpo a base de dados da Cinemateca Brasileira. Pouco a pouco, fui acumulando menções a inúmeros filmes desaparecidos, incompletos ou nunca realizados, percorrendo um período de nove anos, entre 1923 e 1932. Algo que se sobressaiu nesse percurso, cruzando informações de uma base com a outra, foi que, em algum momento, não recordo exatamente qual, percebi que não tinha como provar se alguns daqueles títulos estavam realmente perdidos, desaparecidos ou se nunca haviam sido sequer realizados. Por que isso? Porque depois que os italianos abriram as portas para a produção audiovisual no Recife, passou a ser comum os periódicos locais anunciarem (no sentido de anúncio mesmo) grandes obras cinematográficas que viriam a ser lançadas. Era uma forma de despertar a curiosidade no público, mas essencialmente um dos principais caminhos para conseguir financiamento a partir do interesse e investimentos de empresários locais.

O caso é que alguns desses títulos eram anunciados e depois nunca mais voltavam a ser citados, quando não eram mencionados como produções que haviam sido deixadas de lado, que tinham sido abandonadas. Algumas dessas produções constam na base de dados da Cinemateca Brasileira como perdidas/desaparecidas, mas o fato é que não temos como comprovar que elas foram de fato realizadas. Em alguns casos, há uma observação ao final colocando essa possibilidade de o filme ter somente sido anunciado, outros tiveram filmagens iniciadas de poucas cenas, outros ainda foram filmados completamente, mas não revelados ou não montados. Basicamente, quase todos os filmes que sobreviveram do Ciclo do Recife foram restaurados desde a década de 1960 até 2008,

Page 94: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

94 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

graças ao projeto Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro da SAV – Secretaria do Audiovisual. Poucos são os títulos completos como A Filha do Advogado, de Jota Soares, dos restantes sobraram pedaços, trechos ou mesmo breves fragmentos.

É o caso, por exemplo, de Retribuição (1925), de Gentil Roiz, uma trama simplista em seis atos que emulava as narrativas de mocinho e vilão das produções clássicas norte-americanas. Segundo informações da Cinemateca Brasileira, as filmagens tiveram início em 1923 e aconteciam apenas nos finais de semana, estendendo, por mais de um ano, a realização do filme. A revelação era feita no quintal, sempre à noite, em banheiras de madeira instaladas ao ar livre, no espaço da produtora mais conhecida desse período, a Aurora Filmes (que pouco tempo depois comprou o equipamento dos italianos da Pernambuco Filmes). O orçamento da produção vinha de pequenas contribuições da própria equipe, além do aluguel da câmera e até da venda de outros equipamentos menores. O filme foi lançado em março de 1925, no Cine Royal, no Recife, permanecendo oito dias em cartaz e, aparentemente, sendo um sucesso de público, seguindo em sessões nos cinemas Helvética, Ideal, Odeon, Guanabara e Santo Amaro.

Adaptação de uma novela do próprio Gentil Roiz, Retribuição é considerado o primeiro filme de enredo do Ciclo do Recife, sendo o título que lançou a carreira da atriz Almery Esteves. Não há muitos comentários sobre o filme nos jornais, apenas anúncios e breves elogios, sempre marcados pela utilização de expressões hiperbólicas: “a pedido geral, reprise do colossal filme nacional, produção da Aurora Filmes, Retribuição, em seis lindos e bem encenados atos” (Jornal do Recife, 09/06/1925, p. 10). Nessa época, a programação dos cinemas locais, como o Moderno, o Ideal, o Helvética e o Royal, já ocupava páginas inteiras nos periódicos: alguns desses locais de exibição atuavam como cinemas e teatros, simultaneamente, apontando na divulgação o que haveria na “tela” e no “palco”. Notável que anos depois, quebrando o ufanismo e o autoelogio, há uma matéria sobre Retribuição que pontua o fato de ser “um filme cujo

Page 95: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

95O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

fracasso quase natural trouxe aos seus produtores um desânimo geral” (A Província, 20/12/1929, p. 2). Como veremos, há uma notável diferença de tom entre as matérias sobre os filmes até 1926, sempre elogiosas, e a partir de 1927, carregando muitas críticas pessimistas.

Há de se perceber aqui que os filmes de enredo (ficções) sempre foram considerados mais artísticos que os filmes naturais ou de cavação (documentários) e isso influenciou diretamente na sobrevivência de alguns deles. Além disso, como todos os naturais eram encomendados por políticos para uma determinada cerimônia, encontro, efeméride – com registros de reuniões, fazendas, indústrias, obras, escolas frequentadas pela elite, comerciantes –, depois que se passava o citado evento, a película perdia completamente seu valor e sentido, sendo naturalmente descartada. Mesmo o governador Sérgio Loreto, que em sua administração entre 1922 e 1926, atuou como um verdadeiro mecenas e investiu pesadamente em produções audiovisuais que destacassem as grandes reformas realizadas por ele, especialmente no Recife, não tinha uma visão prospectiva de deixar registrado tais feitos para a posteridade. Uma produção como As Grandezas de Pernambuco (1925), de Chagas Ribeiro, por exemplo, trazia aspectos da cidade do Recife com um breve histórico da região, passando por localidades, pelo cais do porto, por estabelecimentos comerciais e administrativos, igrejas, escolas e academias, por mercados, hospitais, pela estação ferroviária, por prédios públicos, além de mostrar banhistas na cidade de Olinda. Dos trinta minutos originais sobraram cinco.

A pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo aponta o “direcionamento oportunista” desse tipo de produção, no qual não por acaso se especializaram os italianos pioneiros Ugo Falangola e Giovanni/João Cambieri. Talvez a intenção deles fosse mesmo de fundar aqui uma espécie de Ministério da Propaganda, assim como se desenvolveu nos países totalitários na Europa. Pelos motivos apresentados, muitos desses títulos documentais foram perdidos completamente e praticamente apagados da história do cinema local. Alguns deles: Pela saúde (1924),

Page 96: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

96 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

de A. Grossi, que dedicava-se a mostrar o “progresso dos trabalhos de profilaxia no estado, sob a direção do dr. Amaury de Medeiros”, com imagens de obras de higiene pública na capital e em cidades do interior, além de registrar a inauguração do Departamento de Saúde e Assistência (Jornal do Commercio, 24/01/1924, p. 3); Olinda (1924, sem autor); Saída dos Frequentadores do Cinema São José (1924, sem autor); Pernambuco Journal (1924), de Aristides Junqueira; Passeio a Tejipió ou Inauguração da Vila Estância (1924), de Ugo Falangola e João Cambiere; Colégio Santa Margarida (1924), de Ugo Falangola e João Cambiere, Hospital Centenário (1925), de Pedro Neves e Edson Chagas, Filmes do interior do estado de Pernambuco ou Terra Pernambucana (1925), de Aristides Junqueira, O 3º aniversário do Governo Sérgio Loreto (1925), da Aurora Filmes, Um dia na fazenda (1925), de Ugo Falangola e João Cambiere, O Bairro do Arruda (1927, anônimo) e Higiene e Saúde (1927, anônimo).

A partir desse primeiro contexto, três questões precisam ser levantadas: a visibilidade, o memorialismo e a autoria. Primeiro, visibilidade, porque, de fato, os jornais locais acompanharam de forma crescente ao longo da década de 1920, as produções de alguns títulos que conhecemos ainda hoje e outros que não fazem parte de nosso imaginário, inclusive, por vezes, traçando todo o percurso de visitas ao set, entrevistas sobre cinematografia, anúncios diversos antes da estreia e depois críticas relativamente positivas sobre as obras. Essa visibilidade está diretamente ligada ao nível de influência dos realizadores e/ou produtores dentro da sociedade pernambucana. Alguns fazem parte da burguesia artística local, outros traziam consigo o respaldo da igreja, outros ainda eram amigos de políticos influentes. O memorialismo atua, no entanto, vertiginosamente sobre essa questão, porque basicamente quase tudo escrito sobre o Ciclo do Recife, exceto os trabalhos de Luciana Corrêa de Araújo, partiu das lembranças de Jota Soares, isto é, naturalmente ele destacava alguns nomes, assim como omitia ou esquecia de outros. De certa forma, a visibilidade criada na época passou pelo filtro da memória

Page 97: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

97O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

do realizador e somente as pessoas10 que trabalharam diretamente com ele permaneceram “vivas” na história.

Por fim, a questão da autoria também é bastante importante, antes de seguirmos em frente, porque num filme como Jurando Vingar (1925), por exemplo, apesar de dirigido por Ary Severo, nos jornais da época, apenas o nome de Gentil Roiz era mencionado, não só porque ele era o proprietário da empresa produtora, Aurora Filmes, mas também porque era geralmente o responsável por escrever os roteiros. Muitos dos títulos anunciados não colocavam os nomes dos diretores nas páginas dos jornais, apenas a produtora responsável e em seguida o nome do proprietário da produtora, de forma que se sugere que ele próprio seja o diretor do filme. Há, sem dúvidas, uma tensão entre as funções. Os donos e sócios das produtoras, como Ugo Falangola e João Cambieri, da Pernambuco Filmes, e Gentil Roiz e Edson Chagas, da Aurora Filmes, normalmente contratavam técnicos para realizar suas produções, em especial Ary Severo. Cambieri e Chagas tinham uma formação técnica, mas Falangola e Roiz eram apenas escritores e empresários. Em algum momento, para mim, fica confuso quando o “técnico” não é apenas um técnico, mas de fato o diretor e responsável pela mise-en-scène do filme.

Seja como for, a lista de produções desaparecidas continua. A pega do boi (1925), produzido pela Veneza Filmes (em alguns lugares consta direção de Gentil Roiz, mas é provável que ele tenha atuado, na verdade, como produtor), teve seu lançamento em outubro de 1925, no Cinema São José, mas apenas como uma prévia para a imprensa. A película filmada toda no interior, em cidades como Águas Belas, Bom Conselho e Canhotinho, tratava “sobre os costumes sertanejos. [...] Merecendo de todos que assistiram os mais francos elogios” (Jornal Pequeno, 07/10/1925, p. 3). Apesar de ter sido “apanhado na madrugada de um dia nevoento, pudemos observar nitidamente as belas paisagens, assim como

10 Por isso, notamos a presença de um circuito muito restrito de nomes, Gentil Roiz, Chagas Ribeiro, Edson Chagas, Ary Severo, Jota Soares, Almery Esteves, todos envolvidos com a produtora Aurora Filmes, em contrapartida do sumiço de outros tantos realizadores.

Page 98: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

98 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

interessantes cenas da vida sertaneja” (A Província, 03/10/1925, p.3). Mais ainda: “trata-se de um filme natural apanhado durante a pitoresca festa. Assunto puramente regional deve ser apreciado por todos aqueles que ainda não perderam a fibra de filhos do Nordeste e se interessam pela conservação dos costumes do nosso povo (Diário de Pernambuco, 02/10/1925, p. 3).

Nas diferentes matérias, comenta-se que A pega do boi seria uma película lançada ao público ainda naquele mês juntamente com o longa-metragem A profecia do moribundo ou As profecias do moribundo, uma adaptação do livro A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, que estaria em produção e seria o primeiro “photodrama” da empresa. No entanto, não consta em nenhum momento posterior que esse filme tenha sido finalizado e lançado, ele some completamente das páginas dos periódicos e não volta a ser mencionado, o que nos faz pensar que provavelmente esse evento prévio com o curta era parte de uma estratégia para levantar os fundos para conseguir produzir o longa. Como financeiramente não vingou, consta que apenas o curta fora exibido outras vezes, sozinho, no Cinema da Paz.

Outro filme considerado desaparecido é Filho sem mãe (1925), de Tancredo Seabra, um média de 30 minutos, com utilização de flashbacks e dividido em oito atos, que mostra o nascimento do relacionamento entre dois jovens, em meio aos conflitos entre militares e cangaceiros. O filme foi financiado por uma produtora pouco conhecida, a Planeta Filmes, sob a firma de Paulino Gomes, empresário que possuía grande prestígio junto ao governador Sérgio Loreto. Assim, a produção foi largamente divulgada nos periódicos locais, desde sua filmagem até sua finalização, além de ser anunciada constantemente sua futura sessão especial para imprensa e sessões para o público. Mesmo antes da sessão especial para imprensa, já saíam algumas notas exageradamente elogiosas: “trata-se de um intenso drama de comovente enredo, no qual se observam as mais belas paisagens dos nossos mais aprazíveis subúrbios, a par de fiel e impecável desempenho por parte dos seus intérpretes” (A Província, 11/08/1925,

Page 99: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

99O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

p.5). Continua: “Filho sem mãe é, pois, um filme que sentimentaliza e empolga ao mesmo tempo, porque tudo é pernambucano e através de suas cenas faz-se uma propaganda dos nossos melhoramentos” (IDEM).

Pela primeira vez, os jornais anunciavam a quantidade de pessoas envolvidas na produção, sendo vinte e cinco mulheres e cerca de cem homens. A sessão especial de Filho sem Mãe para imprensa aconteceu, às 20h, do dia 30 de agosto de 1925, no Cinema São José. Dez dias antes, o filme foi exibido em sessão exclusiva para o governador Sérgio Loreto no Departamento de Saúde e Assistência. O título, no entanto, foi considerado confuso por pessoas do próprio meio cinematográfico, como Pedro Neves e Gentil Roiz, colocando que se tratava de um conjunto de passagens sem conexões lógicas. Filho sem mãe começou a ser exibido para o público, durante seis dias seguidos, a partir de 18 de setembro de 1925, com larga propaganda apontando ser um “drama de fortes emoções” ou “o melhor filme pernambucano exibido até hoje” (A Província, 18/09/1925, p.8).

Algumas críticas chegaram a ser publicadas após a exibição, sendo notável que o filme não caiu no gosto dos jornalistas, mas no geral a posição adotada era a mesma: o filme não é bom, mas é pernambucano e foi feito com muito esforço, então valeria a pena assistir.

A nova fábrica caprichou em dar-nos cenas de nossos costumes e adornou as legendas (aliás, escritas direitinho), com lindos trechos de nossa capital. Descuidou-se, porém, do enredo que se tornou monótono com uma série de histórias contadas, podendo tê-lo encadeado de começo, o que seria de melhor efeito, e do serviço de operagem que tem falhas sensíveis. Isto, entretanto, é perfeitamente desculpável por se tratar da filmagem da primeira produção.

O enredo (e isto é preciso que seja tomado em linha de conta, também pela outra fábrica pernambucana na Aurora Filmes) se fosse entregue à autoria de pessoa mais competente ou extraído de alguns de nossos romances, o que seria fácil entrando as empresas em acordo com os autores, daria resultado plenamente satisfatório.

Page 100: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

100 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

O desempenho, por sua vez, tem falhas e pode-se desculpar por ser estreantes, principalmente quanto a Creuza das Neves, que é insinuante e promete muito se for bem aproveitada. Há dois intérpretes amadores do teatro e que já trabalharam na primeira cinta da Aurora Filmes, que são Barreto Junior e Tancredo Seabra, e tiveram papeis de centro, completamente em desacordo com suas possibilidades.

Destacamos, porém, uma ponta feita com perfeita naturalidade por uma lavadeira um papel de criada e diversos pequenos que se portaram acima da gente grande. (Diário de Pernambuco, 01/09/1925, p.4).

Outra produção que merece ser citada é História de uma alma (1926), roteirizado e dirigido pelo professor e devoto católico Eustórgio Vanderlei, integrante da Academia Pernambucana de Letras, filme de enredo em 14 partes, do qual sobraram apenas alguns fragmentos e fotogramas restaurados pela Cinemateca Brasileira. Trata-se do primeiro título que apelava para o cunho religioso, ramo já popular em diversos países, como forma de estimular a presença do público. História de uma Alma é uma adaptação da autobiografia manuscrita de Santa Terezinha do Menino Jesus, Santa de Lisieux, que havia sido canonizada pelo Vaticano em 1925. Apesar de filmada em Pernambuco, destaca-se que os cenários captados retrataram com muita semelhança os ambientes europeus. Segundo Luciana Corrêa de Araújo, no seu artigo Histórias de almas e milagres: a religião nos filmes silenciosos pernambucanos, essa produção lançada no início de 1926 pela primeira vez “envolveu a elite recifense em uma produção ambiciosa e amplamente divulgada, junto com A filha do advogado (1926), caracterizando como o momento de aproximação entre a burguesia e o meio cinematográfico; figuras da “boa sociedade” comparecem nesses filmes, seja como investidores, intérpretes ou personagens” (ARAÚJO, 2008, p. 26).

Assim como o filme anterior e talvez até de forma mais ostensiva, por conta de seu caráter sacro, por ser literalmente vendido como primeiro filme sacro pernambucano, também por carregar a aprovação

Page 101: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

101O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

da Igreja Católica dada diretamente pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Miguel Valverde, A história de uma alma recebeu ampla divulgação nos jornais locais, sempre enfatizando “o dinheiro investido na suntuosa produção” (IDEM). Muitas das cenas foram apanhadas nos templos locais, nos Colégios da Estância, nas capelas dos Colégios Salesianos e no, curiosamente chamado, Cine Elite da Graça. O filme teve exibições em diversos lugares, como no Cine Helvética e no Cinema Moderno e a base de dados da Cinemateca Brasileira indica também duas recusas de exibidores em programá-lo, na sala Guarani de Porto Alegre e na sala da Empresa Zambrano de Pelotas. Destaco um comentário sobre o filme antes mesmo de seu lançamento para melhor entendermos o nível da religiosidade presente no imaginário de nossa sociedade e que dimensão de ideologia conservadora estava sendo refletida nas telas:

Esta doce história de uma alma que anunciam para muito breve na tela dos nossos cinemas, toda ungida de óleo celestial deve ser uma espécie de prefácio de uma grande obra de regeneração cinematográfica. Um primoroso prefácio em que a vida desta cristalina fonte de graças que outrora jorrava pelos recantos religiosos de Lisieux e hoje esplende pelos repuxos do céu, seja toda reproduzida com limpidez maravilhosa dos seus meigos olhos, do seu puro coração, dos seus gestos primorosamente suaves, de todo o seu brilho santo e a sua santa beleza.

Ninguém ousará negar a influência poderosa do cinema na formação dos espíritos, desviando-os muitas vezes para trilhas perniciosas ou elevando-os muitas vezes para atitudes sagradas, atravessando continentes como grande corrente luminosa, para levar ao estrangeiro ou para trazer até nós as emoções sensatas e puras de uma doce história cristã, ou a semente crua das cenas de cabaré ou das grandes injúrias internacionais. [...] Atesto a imediata necessidade de uma nova orientação cinematográfica, para os primeiros sorrisos da regeneração social. (Jornal Pequeno, 17/04/1926, p. 1).

Um curta-metragem considerado desaparecido desse mesmo ano é Um ato de humanidade, filme propaganda comercial da Garrafada do Sertão, do Laboratório Maciel, que foi produzido pela Aurora Filmes a fim de

Page 102: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

102 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

acertar as contas negativas e saldar as dívidas acumuladas por conta dos filmes de enredo realizados anteriormente. Na trama, um jovem sifilítico, interpretado por Jota Soares, que estava em situação de rua mendigando, termina sendo levado para um médico, toma o remédio bastante popular na época e cura-se da doença. Além disso, ao final, ele volta bem vestido e rico, como se o remédio também tivesse sido responsável pela mudança de sua condição social. Segundo a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo, “os filmes de propaganda ajudaram a profissionalizar os jovens cineastas do período do Ciclo do Recife e também se tornaram o ganha-pão de muitos depois que o Ciclo terminou” (MONTELEONE, 2004, online).

Por sua vez, o filme Herói do século XX (também referenciado como Almofadinha do século XX), foi lançado em sessão exclusiva para imprensa em 2 de julho de 1926, sendo vendido como o primeiro filme cômico de Pernambuco. A produção contou com uma pequena divulgação nos periódicos, mas não consegui localizar nenhum texto mais substancial sobre a obra. Em outubro do mesmo ano, constam sessões do filme no Cinema São José, juntamente com o natural O carnaval de 1926 em Recife, ambos da Aurora Filmes, sendo o primeiro considerado desaparecido, enquanto o segundo teve alguns fragmentos que chegaram até nós. Herói acompanha as desventuras de Bilu (uma espécie de Buster Keaton recifense interpretado por Pedro Neves) que apesar de não ter dinheiro aparentava ser rico, usava roupas finas, gravata. Pela sinopse fornecida na Cinemateca Brasileira, o filme trabalhava o seu humor, para além dos pequenos acidentes cotidianos arquetípicos, em cima de piadas de cunho racista e antissemita, visto que são citados “os maus tratos ao criado negro” e “a ridicularização de um judeu barbudo e rabugento”. Nunca encontrei menção alguma a tais pontos nos livros sobre o Ciclo do Recife.

Em outubro de 1927, o escritor Ramon de Azevedo escreveu um longo artigo sobre a cinematografia pernambucana, que me dou ao direito de transcrever quase que integralmente, afinal trata de maneira certeira o contexto aqui trabalhado, além de contradizer muitos dos relatos e lembranças do próprio Jota Soares, que apontavam para uma recepção

Page 103: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

103O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

positiva dos títulos por parte de críticos e do público. O autor enfatiza a desunião dos produtores, a criação de inúmeras produtoras com poucos recursos cada uma, o que dificultava a realização dos filmes. Vale perceber que a essa altura, todos os clássicos do Ciclo do Recife já haviam sido lançados, a saber, Retribuição (1925) e Aitaré da Praia (1925), ambos de Gentil Roiz, Jurando Vingar (1925) e Dança, amor e ventura (1927), de Ary Severo, A Filha do Advogado (1926), de Jota Soares e Revezes (1927), de Chagas Ribeiro:

Agora que a indústria cinematográfica está tomando proporções fantásticas, não só nos Estados Unidos da América do Norte, berço, pode-se dizer, dessa sublime arte, como em outras nações e até mesmo no sul do nosso Brasil onde já se constam algumas pequenas fábricas produzindo dentro dos seus escassos elementos, é de lamentar que Pernambuco se deixe ficar no ostracismo furtando-se ao dever de cooperar eficazmente no cultivo e consequente aperfeiçoamento de uma arte que é bem uma escola necessária ao progresso da comunidade.

Digo, ser de lamentar porque, modéstia à parte, estamos em posição de poder concorrer com um bom contingente, dados os elementos de que dispomos, quer com referência a cenários que são os mais ricos e originais, quer em relação ao elenco artístico, pois em realidade existe entre nos um regular número de pessoas com tirocínio teatral capaz de lhes permitir o desempenho dos papeis que lhes sejam confiados ou distribuídos dentro dos seus gêneros, já se vê, porque é esta uma das principais questões, emprestando a esses papéis o maior cunho de naturalidade e tornando-o dignos de serem apreciados pelo público mais exigente e entendido do assunto.

É bem verdade que Recife já apresentou algumas pequenas produções, mas, com a franqueza que me é peculiar, devo dizer que elas se mostraram muito aquém do que realmente deveriam ser, quer pelo lado fotográfico, quer no que diz respeito ao desempenho artístico. Para ambas as partes, entretanto, há explicações.

Infelizmente, em nosso meio ambiente o orgulho e a vaidade predominam em relação a qualquer outro sentimento, tornando-se, pode-se bem dizer, o óbice das grandes ideias.

Page 104: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

104 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

O que temos observado? Destacados personagens possuidores de meia dúzia de contos de reis fundando cada um a sua empresa que, no final das contas, mal chega a entregar a apreciação do público a sua primeira produção, cujos defeitos materiais ressaltam à primeira vista, isso devido única e exclusivamente aos fundos monetários, que se tendo extinguido não ofereceram margem a corrigenda destas imperfeições.

Quanto a outra parte, qual o elemento de que se tem composto o elenco a quem se há confiado a interpretação dos papéis? Com raríssimas exceções de pessoas completamente estranhas ao teatro e que nunca tiveram a menor noção do que seja a divina arte da trama; de pessoas, enfim, que procurando esquecer a sua qualidade de leigos na matéria se julgam capazes de dar desempenho a qualquer papel sem distinção de gêneros como se isso dependesse da vontade de cada um ou ainda como se entre tais gêneros não existissem assombrosas diferenças. E apesar de tudo, é uma coisa que ainda chega a causar hilaridade: é declararem essas sumidades artísticas que um bom ator de teatro torna-se uma nulidade diante de uma objetiva. Irrisório!

Esqueceram essas notabilidades que a cinematografia é uma filha ou melhor ainda uma ramificação do teatro? Esqueceram também que os grandes astros e estrelas, verdadeiras celebridades cinematográficas de hoje tiveram seu início na carreira do palco. [...]

Voltemos, porém, ao assunto primordial.

Com a formação das várias empresas que entre nós têm surgido já algumas centenas de contos de reis foram consumidos sem, entretanto, nada nos autorizar a proclamarmos a existência de um trabalho sequer que corresponda à expectativa do observador de uma película que tenha sido moldada ou confeccionada com o rigorismo da arte.

Entretanto, se, ao contrário, tivesse havido a unificação desses elementos, certo que a cinematografia de Pernambuco estaria com um diferente incremento e nos outros, que intimamente nutrimos a grande esperança de um dia vermos o nosso esforço coroado do melhor êxito, não teríamos o dissabor de ouvir os mais sombrios comentários sempre que surge uma nova produção.

Page 105: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

105O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Em todo o caso, nunca é tarde para se corrigir uma falta, assim como tarde nunca será para se provar que Pernambuco é digno de ser colocado em lugar mais saliente, de maior destaque.

Assim, pois, desprezando a vaidade que até agora há dominado cada um dos que, com veemência, se tem dedicado ao cultivo deste sublime arte que é a cinematografia, procurem unificar-se esses elementos dispersos, formem uma só empresa, com uma organização rigorosa e então poderemos ter a convicção de que dentro de um curto espaço de tempo estaremos aptos a entregar à crítica do público, esse julgador severo, o produto da nossa atividade sem que nos assedie o receio de ouvirmos as desfavoráveis opiniões de hoje (Jornal do Recife, 16/10/1927, p. 7)

De fato, a essa altura, além da Pernambuco Filmes e da Aurora Filmes, já haviam também aparecido a Liberdade Filmes, a Planeta Filmes, a Veneza Filmes, a Vera Cruz de Recife, entre outras, e, alguns anos depois, surgiria ainda a Glória Filmes e a Spia Filmes. O artigo publicado pelo “patrício” e escritor Ramon de Azevedo repercutiu entre os trabalhadores de cinema da região, muitos cobrando do autor que o próprio entrasse para a produção cinematográfica. A Vera Cruz, então, o convidou para adaptar uma de suas três novelas para o cinema. Desafiando a Morte (1928), Um erro de Justiça (1928) e Nas Tempestades da vida (1928), apesar de constarem na base de dados da Cinemateca Brasileira como desaparecidos, de serem anunciados em alguns jornais, provavelmente não foram realizados. Primeiro porque a ideia era transformar um dos títulos em filme, segundo porque Ramon apareceu novamente nos jornais opinando sobre a cinematografia pernambucana, tocando novamente no assunto da criação de diferentes produtoras, algumas rixas foram superficialmente citadas e depois não há mais nenhuma menção à produtora, aos títulos e nem ao autor. Todos somem completamente:

o meu juízo sobre eles é o melhor possível e acho mesmo que são dotados de uma tenacidade a toda prova, entretanto, acredito que as nossas produções não irão muito além pelos motivos que já expus em meus comentários. Para podemos triunfar precisamos do que nos tem faltado até agora: união e bons elementos. [...] Tenho em

Page 106: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

106 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

mente um projeto que estou estudando detidamente e procurarei executar tão logo consiga os favores que são indispensáveis, alguns dos quais da parte dos governantes do nosso Estado. [...] Tenho empenhada a minha palavra com o proprietário da Vera Cruz Filme para dirigir o seu próximo filme a iniciar-se em princípios de janeiro vindouro. [...] Filmar uma das três novelas de minha autoria e com franqueza ainda não me decidi a fazer a escolha definitiva. Estou mais inclinado para montar Um erro de Justiça, entretanto como o serviço fotográfico do final do filme é bastante difícil e não vejo no momento um profissional capaz de desempenhá-la, talvez mude de opinião montando Desafiando a morte ou Nas tempestades da vida, cujas fotografias são relativamente mais fáceis (Jornal do Recife, 11/12/1927, p.5).

Em 1928, já há de forma recorrente, nos periódicos pernambucanos, textos reflexivos sobre a produção cinematográfica local e do mundo, como esse transcrito abaixo, infelizmente não assinado, que faz uma breve história da produção local, apontando as produtoras que anunciaram, mas nunca fizeram filmes, além da história da Aurora Filmes, o anúncio do filme Verônica, nunca lançado, entre outros detalhes:

Há três anos passados houve um prurido de organização de empresas de filmagens. Todos os dias os jornais noticiavam a fundação de novas fábricas, muitas das quais nem chegaram a produzir e outras que ficaram no primeiro filme, em geral uma produção mais do que medíocre. De todas essas tentativas, uma só vingou verdadeiramente, tendo existência proveitosa e algo duradoura: a Aurora Filme. Gentil Roiz, um esforçado estudioso da cinematografia, e Edson Chagas, competente operador com magnífico aprendizado feito no Rio, resolveram produzir filmes de enredo, em Pernambuco. E, não medindo sacrifícios, tomaram a ombros a pesada tarefa. Já com o auxílio de Ary Severo, um apaixonado do cinema, experimentando pequenos papeis em filmes franceses. Para dizer o que foi a existência da Aurora Filme basta citar as suas produções: Retribuição, Jurando Vingar, Aitaré da Praia, O Herói do Século XX e A Filha do Advogado, filmes que, embora imperfeitos, denunciavam um progresso constante. Certa vez, a Aurora, por dificuldades financeiras, esteve quase a perecer. Salvou-a desse desastre o Sr. João Pedrosa da Fonseca que, com a

Page 107: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

107O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

melhor boa vontade e arriscando capitais num negócio reputado como de lucros duvidosos, emprestou o seu valioso concurso à cinematografia pernambucana. Mais tarde, por circunstâncias que nem vale a pena relembrar, João pedrosa viu-se forçado a fechar as portas da Aurora Filmes.

O incansável Edson Chagas, o iniciador desse movimento cinematográfico entre nós, não quis deixar morrer a planta cuja semente lançava à terra. Teimou novamente na luta, organizando com o auxílio de Ary Severo, a Liberdade Filmes. O jovem produtor continua corajosamente a sua tarefa ao lado de Ary, valioso elemento, que, além de dirigir, “cenarizar” e representar, é um ótimo auxiliar técnico.

A produção da Liberdade filmes tem sido grande dado o pouco tempo de existência. Vários filmes naturais e um de enredo, Dança, Amor e Ventura, tendo como protagonista Almery Esteves, que, por ordem cronológica e por mérito artístico é, sem contestação, a primeira estrela de cinema no norte do Brasil. Transferindo a sua sede para a Rua Coronel Suassuna, a Liberdade melhorou extraordinariamente as suas instalações, com aquisição de vários refletores, máquinas, apetrecho de laboratórios, etc.

Tem atualmente em preparo o filme Verônica, novela de Luís Maranhão, adaptada ao cinema por Ary Severo, cuja filmagem terá início esse mês. [...] Edson Chagas obteve, por compra, os negativos de Aitaré da praia e está preparando atualmente uma nova cópia, com diversas modificações, inclusive o acréscimo de várias cenas que escaparam à primeira cópia. Além dessas modificações, Aitaré apresentará vários efeitos de técnica moderna. A nova cópia será distribuída no sul, por uma das agências empresas distribuidoras do Rio (A Província, 18/01/1928, p. 3).

O caso é que a Liberdade Filmes até o final de 1929 não produziu nenhum outro filme, “houve muita promessa, porém nenhuma se realizou” (A Província, 15/12/1929, p. 2), aparecendo nos jornais que estava dissolvida. Foi a partir daí que, sob a direção de Luís Maranhão e a direção técnica de Ary Severo, nasceu a Spia Filmes, cuja primeira produção O Destino das Rosas, havia sido iniciada ainda no final de 1929. No obituário de

Page 108: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

108 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

Edson Chagas, técnico que havia trocado o Recife pelo Rio de Janeiro em 1931, que faleceu em 1952, coloca-se tanto o filme O Destino das Rosas como No cenário da vida como produções da Liberdade Filmes. Isto é possivelmente resultado da fusão das duas produtoras, algo que chega a ser mencionado em alguns periódicos, além de ser uma tendência como última forma de sobrevivência, já apontada por Ramon Azevedo mais de um ano antes.

O Destino das Rosas também é considerado um filme desaparecido. A “história é inspirada no motivo da muito conhecida peça teatral Rosas de Nossa Senhora, mas a ação foi transportada para o interior do nosso Nordeste. Tivemos ocasião de assistir a filmagem de algumas cenas do filme, o que nos causou a melhor impressão” (A Província, 15/12/1929, p. 2). A passagem aponta para algo que surge em algumas matérias desde A história de uma alma, isto é, a presença de jornalistas nos sets de filmagem, agudizando a presença de matérias anteriores ao lançamento das obras. O filme aparece em matérias entre setembro e dezembro de 1929 como quase pronto, sendo novamente noticiado em fevereiro de 1930, numa chamada sobre a filmagem da última cena. Há contradições sobre a primeira produção da Spia Filmes, porque já em 1930 aponta-se que a trama se passa no bairro da Madalena, não no interior.

Também podemos apontar contradições em relação à direção, ora aparecendo o nome de Luís Maranhão, ora o de Ary Severo (reforçando a questão da autoria já apontada, envolvendo donos da empresas produtoras e os de fato diretores dos filmes). A produção basicamente relata o amor de um homem obrigado pela sua amada a dar uma prova “insofismável” desse amor, ou seja, ela exige, portanto, que ele roube as rosas sagradas que ornavam os pés de Nossa Senhora. Em novembro de 1930, quando surge a divulgação da exibição do filme, comenta-se que é um “romance nostálgico” que se passa “em nossos antigos engenhos”. Não localizei nenhuma matéria após o lançamento do filme, não há qualquer comentário além dos próprios anúncios de exibição. Antes, no entanto, há inúmeras matérias, quase todas positivas e deslumbradas, mas de

Page 109: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

109O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

ponto de partida uma se destaca pelo tom novamente desmerecedor da obra, mas defendendo-a por ser pernambucana. “assim foi com Aitaré da Praia, A Filha do Advogado e Dança, Amor e Ventura. Não que elas em si valham muito pela técnica ou como estudo social dos tipos que procura esboçar. Mas apresentam um esforço digno de aplausos para a criação do cinema pernambucano” (A Província, 10/04/1930, p. 2). Um mês e meio depois no mesmo jornal: “um filme digno, um esforço honesto”. (A Província, 25/05/1930, p. 2).

Na revista Pilheria, há uma longa crônica assinada por Bastos Moreno, acompanhada de uma imagem da equipe do filme ocupando a página inteira e falando sobre o casamento de dois integrantes durante as filmagens, numa não inédita aproximação entre produção artística e coluna social. A crônica em si demonstra apenas o encanto do jornalista diante da ideia de visitar um set e chegando no lugar, seu encanto maior ainda ao conhecer a atriz Rosa Maria. “Foi numa manhã radiante de janeiro que a convite de um amigo, fui assistir a filmagem de algumas cenas de Destino das Rosas, o novo filme pernambucano que está sendo confeccionado por um grupo de rapazes. A minha curiosidade era intensa. Sempre ansiei ver filmar e conhecer de perto alguns artistas; por isso contava os dias e horas, após o convite recebido. Finalmente amanheceu esse grande dia para mim. Sorvo um ligeiro café e pego o primeiro tranways rumando ao aprazível arrabalde da Madalena. Eis-me chegado ao lugar indicado. Debaixo de um grande alpendre achavam-se todos reunidos” (1930, edição 431). Não há, entretanto, qualquer informação sobre a técnica, sobre a trama, sobre a estética da película. Há um outro depoimento mais detalhado:

Ontem estive no Estúdio da Spia Filmes do Recife. Fui encontrar Ary Severo, atarefado com uns positivos excelentes de sua nova produção. “Destino das Rosas”, que já tive ocasião de citar nestas colunas. Fiquei maravilhado com toda sua bagagem cinematográfica. Que formidável concepção de trabalho. Ary, nesse seu filme, lutou com enormes dificuldades para a sua confecção. Mas também vai recomendá-lo para todo o Brasil. Filmagem excelente de uma grande nitidez. As Cenas de close-up e long shot são ótimas. [...] As

Page 110: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

110 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

expressões de Pedro Neves são apanhadas pela máquina de Ary Severo, que dirige e opera com Luiz Maranhão ao mesmo tempo. O cast de Destino das Rosas é bom.

Almery Esteves, que já conhecemos de outros filmes pernambucanos, está identificada com o seu novo papel. Regina Celia, Dustan Maciel, Rosa Maria e Fred. Jr trabalham bem. E, como eles, tomam parte no filme. O enredo é interessante. A colocação da máquina – o mais difícil da técnica cinematográfica – é admirável em todo o filme. E, creio, que não houve produção brasileira tão bem confeccionada (A Província, 03/05/1930, p. 2).

Em julho, A Província menciona uma paralisação nas filmagens por motivos de força maior, que “motivou tanto juízo desagradável por parte dos pessimistas e daqueles que não querem compreender as coisas como elas são” (A Província, 26/07/1930, p. 2). Há de se pensar que essa película, que encontrou tantas dificuldades para ser finalizada, que teve filmagens interrompidas, longos períodos de abandono, mudanças de equipe, uso de equipamentos diversos resultou num filme não acabado, provavelmente uma colcha de retalhos apresentada como foi possível no final do ano. Talvez essa insatisfação dos produtores com a própria película tenha definido o destino da provável única cópia existente. Certamente, não a destruíram, mas perderam o interesse, deixaram de lado, afinal, depois desse desgastante processo, pode-se dizer que a falência atingiu praticamente todas as produtoras locais, capazes, com muita dificuldade, de produzir apenas filmes mudos quando o sonoro já se tornara norma. A capacidade produtiva estava absolutamente anacrônica.

Segue, para finalizar, uma lista de filmes dos quais não consegui reunir muitas informações, seja porque constam como desaparecidos, seja porque foram inacabados ou mesmo o caso de nunca terem sido realizados: Dever Sagrado (1925), longa produzido pela Aurora Filme, foi anunciado como o próximo lançamento depois de Aitaré da Praia, mas imagina-se que as filmagens nunca foram concluídas e o filme nunca editado; Droga (1925), da Veneza Filme, curta sobre o qual não encontramos uma única

Page 111: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

111O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

menção, assim como nenhuma outra comprovação de sua realização; O Esqueleto (1926), curta inspirado no romance de Vilela Carneiro, provavelmente também não foi nem iniciado; Uma viagem de automóvel pelas estradas de rodagem de Pernambuco (1926, anônimo), provavelmente um filme feito pela associação responsável pela preservação das vias; Quando o amigo é amigo (1926), sem qualquer informação; Tal e qual Harold Lloyd (1926), uma tentativa de fazer uma comédia ao estilo do cineasta norte-americano, mas que provavelmente nunca chegou a ser iniciada; Depois da morte (1929), que seria a primeira produção da Glória Filmes, com Pedro Lima e Rose Marie como protagonistas, mas que provavelmente nunca chegou a ser iniciada.

Temos ainda: O destino da escolástica (1929), título que chegou a ser anunciado, mas que provavelmente também não foi iniciado; em 1929 a Vera Cruz fechou suas portas e deixou inacabados ou nunca iniciados dois filmes Miss Pernambuco e Órfãos do Circo; o mesmo se fala sobre A Feiticeira da Rua da Moeda (1930), da Liberdade Filmes, que seria dirigida por Jota Soares; Audácia de um Crime (1930), que seria ou foi dirigido por Fred Jr. e Dustan Maciel, mas sobre o qual não encontrei nenhuma informação; Mercador de Corações (1930), filme iniciado e inacabado da Glória Filmes que estaria em fusão com a Spia Filmes, cuja direção consta que era de Ary Severo e Luiz Maranhão ou de Dustan Maciel; Odisseia de uma vida (1930), anunciado pela Iate Filmes de Fred Jr., provavelmente mais uma produtora surgida que não conseguiu lançar nenhuma obra; Romance de Linda (1930), mais uma produção anunciada, provavelmente iniciada e não finalizada, com direção de Ary Severo, inicialmente seriam seis atos depois foram reduzidos para dois, contando a história de uma jovem órfã que vivia com seu irmão pequeno na casa de um tio viciado e de má índole, e que depois encontra a felicidade ao lado de um pescador.

E por fim: Paralelos da vida (1930), que seria a volta de Gentil Roiz e da Aurora Filmes ao campo da produção, porém, fontes indicam que o filme não foi finalizado e que as películas filmadas foram destruídas no incêndio da Ita Filmes; Um rapaz de valor (1932), também de Ary Severo e Dustan

Page 112: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

112 DESAPARECIDOS, INCOMPLETOS OU NUNCA REALIZADOS

Maciel, que consta que já tinha partes filmadas, mas também nos leva a questionar se essa noção de que o filme já estava em andamento também não foi uma última cartada para angariar fundos para o cinema silencioso local quando o cinema falado já estava dominando completamente os espaços de exibição; Um valente brasileiro (1932), cuja autoria não é identificada, sabendo apenas que a companhia produtora, Aurora Filmes, teria desistido da filmagem e que esse filme traria a novidade de ser apresentado como uma série e Crime da Várzea (1932), curta documentário sem autoria, provavelmente de tom jornalístico, sobre um crime cometido contra a doméstica Maria Firmina pelo epilético Lau.

Page 113: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

113O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

2.4 EM BUSCA DE “COELHO SAI”

Por ser referenciado em diferentes ambientes, de livros a palestras, passando por inúmeros cursos sobre cinema pernambucano, a priori, quando pensava na expressão “filme desaparecido”, o título que surgia automaticamente na minha cabeça era Coelho Sai (1942), primeiro longa-metragem sonoro nordestino, cuja autoria segue a mesma lógica confusa dos filmes citados no tópico anterior. Em alguns lugares, Newton Paiva aparece como diretor e produtor, Firmo Neto como cinegrafista. Em outros, Firmo Neto além da fotografia assina também a direção, sendo Newton Paiva o produtor e roteirista do projeto. Seja como for, essa recorrência memorialista de resgatar a experiência de Coelho Sai sempre teve o objetivo de amenizar o abismo produtivo local de ficções entre o fim do Ciclo do Recife (1931) e a realização de O Canto do Mar (1953), de Alberto Cavalcanti. Desse modo, mesmo sem qualquer resquício material, pois a única cópia do filme foi perdida num incêndio, popularizou-se entre cinéfilos uma espécie de áurea, não tanto pela obra em si, mas pelo esforço provavelmente envolvido na sua realização, tratando o resultado como uma vitória do fazer cinematográfico, da apropriação nordestina de novas tecnologias, diante das intempéries econômicas e sociais.

De fato, se levarmos em conta que a produção de ficção praticamente havia desaparecido no estado de Pernambuco, não podemos desprezar o fascínio e interesse por Coelho sai. Não que após 1931, todas as filmagens tenham sumido ou estagnado, como comumente nos é contado, mas havia apenas uma discreta produção de pequenas peças publicitárias, registros documentais políticos ou breves passagens de festejos culturais utilizados para futuras propagandas do governo. Seguindo essa última tendência, a película abordava uma de nossas festas mais populares, o Carnaval, tomando como ponto de partida um frevo homônimo, composto por Nelson Ferreira e com participação da cantora Violeta Cavalcanti, música que havia sido um sucesso nos primeiros anos da década de 1940.

Page 114: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

114 EM BUSCA DE “O COELHO SAI”

A letra: “O coelho sai, não sai / O coelho sai, não sai, não sai, não sai, não sai não / Segura o coelho, segura o coelho, segura o coelho que esse coelho é ladrão / Brincando de “coelho sai” / Na minha vida você entrou / Brincando de “coelho sai” / Meu coração você roubou”.

Trata-se localmente do primeiro caso de uma obra cinematográfica adaptada não de um romance ou conto, algo que era buscado para dar mais “respeitabilidade” ao filme, mas de uma brincadeira popular banal que havia inspirado também uma canção. A ideia era fazer um filme não apenas falado, mas musical, explorando toda riqueza cultural pernambucana por meio de um de seus ritmos mais tradicionais, o frevo, tomando como fio narrativo a saudade da cidade do Recife, sentida por uma jovem. Firmo Neto11, desde pelo menos 1939, já atuava como fotógrafo, cinegrafista, laboratorista e montador, quando começou a trabalhar na Meridional Filmes. Sua primeira cena foi o registro de alunos saindo do Ateneu Pernambucano; no ano seguinte, fez um documentário sobre o calçamento da Avenida Caxangá, também filmou a chegada do interventor Agamenon Magalhães ao Recife, além da inauguração do Museu do Estado de Pernambuco. Nesse mesmo ano, há uma matéria sobre a empresa produtora:

O cinema brasileiro deixou de ser um motivo de descrédito. Marcha vitoriosamente. Tem a indústria do celuloide contra si um grande obstáculo: o custo fabuloso de sua maquinaria, fator que por si só anula muita energia. Mas, contornando essa grande barreira, aí está

11 Vale mencionar, ainda que não seja nosso tema central, que Firmo Neto tem uma longa história com o cinema pernambucano. Ainda na década de 1940, depois da dissolução da Meridional Filmes, ele fundou sua própria empresa cinematográfica, onde inicialmente continuou produzindo filmes de caráter institucional, além dos chamados documentários científicos, registrando também todo tipo de evento político ou social para o qual era pago. Além disso, atuou na produção de cinejornais entre 1948–1954, trabalhou em documentários sociais na década 1950, filmou comícios de Francisco Julião e Miguel Arraes na década de 1960. Em 1962, Firmo Neto fundou com José Teixeira a Norte Filmes. Nos anos 1970, Firmo Neto se interessou pelo Super 8, atuou como diretor de fotografia de muitos títulos e logo montou um laboratório completo que deu a subsistência ao movimento local que se estendeu até a década seguinte. Em 1975, Firmo Neto iniciou um Curso de Cinema no Recife, sendo transferido para a Casa da Cultura em 1980 e em 1993 atingiu a marca de mil alunos. Ele faleceu em 1998.

Page 115: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

115O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

uma mocidade entusiasta, jovens cheios de vibração e de convicção, trabalhando sem cessar, e sem desfalecimento, pelo triunfo do cinema nacional.

A Meridional é um flagrante do que acabo de afirmar. Visitei-a sábado passado, alta noite, às pressas. [...] Não obstante minha rápida passagem pela Meridional, fiquei contente com o que vi. E a sua montagem não é luxuosa, se não lhe é suficiente o espaço onde é instalada, se a sua maquinaria não é a melhor que existe, muito embora tenha comprado há pouco uma objetiva por $80.000, tudo isso pouco importa, porque seu material humano é excelente.

Pelo menos, deixei na Meridional, 11h30 da noite, o dr. Newton Paiva ainda trabalhando, satisfeito, com os frutos do seu labor, orgulhoso do resultado que vem obtendo em seus naturais, sem embargo da campanha dos invejosos.

Deixei, o sr. Manoel Firmo da Cunha Neto, um técnico genuíno, vestido em seu macacão, modesto, calmo e produtivo, operando cheio de vida e de boa vontade, os arranjos finais para as gravações. (Jornal Pequeno, 30/11/1940, p. 3)

Em 1941, além de registrar a passagem de Getúlio Vargas por Pernambuco, fez sua primeira experimentação sonora, por meio de um pequeno documentário de dez minutos de uma festa de arte do Colégio Vera Cruz. Foi justamente a partir dessa experiência local, já que até então todos os filmes eram sonorizados no Rio de Janeiro antes de serem exibidos no Recife, que surgiu a vontade de fazer um longa-metragem totalmente sonorizado na própria capital pernambucana. Com a parceria de Newton Paiva, proprietário da Meridional Filmes, a produção contou com participação da dama do teatro pernambucano Geninha da Rosa Borges, que na época tinha apenas 17 anos, e nos números musicais apareciam a cantora Dirce Gonçalves, a dupla Alvarenga e Bentinho, o maracatu de Dona Santa e o caboclinho Tabajaras. Firmo Neto também foi responsável pela sonorização do filme que, pelo que consta em depoimentos do próprio e na base de dados da Cinemateca Brasileira, foi filmado sem um roteiro prévio bem definido, situação que dificultou a liberação do visto da censura por parte do Estado Novo.

Page 116: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

116 EM BUSCA DE “O COELHO SAI”

Uma das lendas envolvendo a produção de Coelho Sai é que Orson Welles, durante sua passagem pelo Recife, teria sido convidado a visitar o estúdio da Meridional Flmes, onde teria assistido parte do filme ainda em fase de montagem, ficando encantado com as imagens do caboclinho e do maracatu. Não há grandes registros sobre a realização do filme em si, apenas uma matéria assinada por Marlon Melo que comenta um pouco o contexto da empresa produtora e um convite para assistir ao filme em primeira mão:

Soube no começo do ano que a Meridional Filmes estava a organizar uma película de assunto pernambucano, de grande extensão. A Meridional já nos havia apresentado aspectos do Recife, em trechos pitorescos, passeantes, etc. Mas a organização de um filme, com desdobramentos – canto, música, diálogos – requeria esforços acima dos da Meridional. E a gravação do som, concomitante ao desenvolvimento das cenas? E a necessidade de várias máquinas para surpreendê-las?

Pensei em tudo isso, mas pensei também no capital de coragem de Newton Paiva que é, na cinematografia de Pernambuco, uma espécie de Oscar Pinto na Rádio Telefonia. Audácia que se confunde com loucura, sem temor do precipício. E passaram-se os tempos. A Meridional estava instalada numa casinhola nos mangues de Santo Amaro e nunca mais ouvi falar dela.

Ainda na parada de 7 de setembro ao ver o impressionante desfile do operariado, coisa que com tanta magnificência constituía espetáculo inédito, dizia-me o general Mascarenhas ser lamentável que não houvesse na ocasião um cinegrafista para documentá-lo. Meio penalizado, como nunca mais ouvira falar na Meridional, informei-lhe que houvera aqui uma sociedade de cinematografia, mas provavelmente morrera de inanição...

Qual não foi a minha surpresa quando, na sexta-feira, recebi um telefonema do Paiva, que eu julgava morto ou desaparecido, para ir à rua das Ninfas, 279, assistir ao Coelho Sai. Comprometi-me e fui à hora combinada. E julguei-me perdido, pois o número da casa era um palacete que dá impressão de prosperidade. Influência talvez da campanha contra o mocambo. A Meridional saiu da lama de Santo Amaro e veio para casa confortável na região saneada.

Page 117: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

117O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

E no palacete não mora ninguém. É simplesmente a sede da Meridional, onde instalada toda aparelhagem, inclusive uma sala para projeções, com aparelho tradutor do som. E assisti ao filme, que qualquer destes dias vai ser passado para o público, motivo porque não quero entrar em pormenores, certo de que todo pernambucano desejará vê-lo, ao menos para ficar com uma pontinha de orgulho, porque em todo o Norte não se fez coisa igual e não sei se no Rio ou em São Paulo já se fez coisa melhor. (Jornal Pequeno, 28/09/1942, p. 1 e 4).

Consta que a estreia do filme, “realizado em estúdios pernambucanos com gente nossa” (Jornal Pequeno, 05/11/1942, p. 3) aconteceu em 5 novembro de 1942 no Art-Palácio, seguindo, ao final do mês, para o Cinema Boa Vista e, em dezembro, para o Cine Torre, Duarte Coelho e Cine Eldorado, ainda entrando em cartaz em janeiro de 1943 no Cine Real e no Cine Ideal. O filme foi divulgado como “um filme revista pernambucano com um elenco numeroso no qual figuram os nomes mais em evidência nos nossos círculos sociais e artísticos. Com músicas de Capiba, Nelson Ferreira e outros compositores” (Jornal Pequeno, 06/11/1942, p. 3). O filme também foi programado em sessões especiais pela manhã aos domingos para que as crianças pudessem assisti-lo. Diferente de todo esse entusiasmo dos anúncios, assim como do ufanismo memorialista de pesquisadores, encontrei uma crítica publicada na época que mostra que a produção não foi assim tão bem recebida por alguns:

Dizem que esse filme (?) (a interrogação está presente no texto original, insinuando que o autor nem considera a obra como filme) custou muito esforço, muito dinheiro e muita canseira. Para que, finalmente, se de COELHO SAI nada resulta – nem arte, nem lucro, nem cinema?

Que é um esforço não há dúvida, mas desde quando esforço, por si só, já fez obra de arte? E desde quando o esforço é credencial de bondade? É possível que os interessados objetem que nunca tiveram intenção de fazer obra de arte com COELHO SAI. Mas, em tal caso, eles têm que arcar com as consequências decorrentes do erro de visão do sapateiro em frente à estátua.

Page 118: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

118 EM BUSCA DE “O COELHO SAI”

Seus realizadores não são absolutamente cinematografistas; e sim, maus ensaiadores de teatro, maus locutores de rádio e até maus compositores de frevos. O fato de escrever não dá a ninguém o privilégio de ser escritor; como o fato de lidar com uma câmera não dá a ninguém o direito de ser fotógrafo. Os homens que fizeram e inspiraram COELHO SAI, sem exceção, desconhecem as regras mais elementares de cinema.

Não, não podemos em sã consciência aplaudir – como fez o público – o esforço de COELHO SAI, isto equivaleria apoiar a curteza mental, incentivar a incapacidade, bater palmas à incompetência.

Esperemos que para o futuro e em proveito do lucro, do tempo e da canseira – seus realizadores façam menos esforços. Ou, então, não façam nada. (Diário de Pernambuco, 7/11/1940, p. 6)

No final do mesmo mês, quando o filme entrou em cartaz no Cine Boa Vista, a mesma coluna Mundo de Luz e Som, assinada por “L”, publicou um texto complementar, relatando uma atitude inusitada e irreverente por parte dos responsáveis pelo filme:

Quando afirmamos que o filme (?) não valia um caracol, seus realizadores vieram, em publicação solicitada, nos oferecer dinheiro, pelo que chamavam, enfaticamente, campanha contra a malograda tentativa. Alegavam que, depois da nota, a bilheteria aumentara, no primeiro dia, 50%, e no segundo, 100%.

Se oferecendo-nos dinheiro para atacar o filme (?), a diretoria da Meridional pensava que nos obrigava ao elogio – de vez que continuar no ataque equivaleria aceitar o pagamento com que tão ruidosamente nos acenava – perdeu e precisou tempo. E se agora voltamos ao assunto, fugindo da norma desta seção é porque desejamos que fique bem clara essa coisa simples: atacando o filme, o que estamos fazendo é uma obra de justiça. Se deu boas casas é porque todo mundo quis ver o “fenômeno”. O mesmo público que foi ver Coelho sai, há anos foi ver a santa do coqueiro e o burro canário e o bode de duas cabeças. Não há gente que sai de casa pra ver o cronista W. dançar valsinhas no Santa Isabel?

Page 119: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

119O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

Depois é preciso notar que as “boas fotografias” que o Sr. M.M. encontrou no filme, foram tiradas pelo etnógrafo Stamato para a DIP, e, por camaradagem, cedidas algumas cópias à Meridional, que as encaixou em seu “fenômeno”. Também o sr. L. L. louvou nos bravos cineastas indígenas, a coragem. Ora, eis uma coisa que também não nos cansaremos de reconhecer e elogiar nos produtores de Coelho Sai. (Diário de Pernambuco, 26/11/1942, p. 2).

Apesar dos comentários, podemos dizer que Coelho Sai fez relativo sucesso, basta ver que ficou em cartaz em diferentes cinemas locais de novembro até pelo menos janeiro. Houve uma sessão especial do filme em Itapissuma, em 1943, durante festejos de São Pedro para convidados, pescadores e familiares. O mesmo crítico volta a citar Coelho Sai, quase um ano depois da primeira matéria, a título de comparação, enquanto escreve sobre outra película: “é o filme mais infeliz do mundo, quase da classe daquele infeliz Coelho Sai” (Diário de Pernambuco, 23/11/1943, p. 6). Em 1945, o mesmo crítico, escreve um texto sobre o cinema nacional e mais uma vez menciona Coelho Sai:

Não somos contra o cinema nacional. Somos contra o filme nacional. Temos esperança de ver um dia a indústria do cinema brasileiro bem organizada e principalmente bem-intencionada. Pois até agora, a sombra do protecionismo oficial oferecido aos estúdios do país, o que se vê em atividade é a inércia de cinegrafistas de última hora, botando gogó nas galinhas dos ovos de ouro. Foi assim com a Meridional, de infeliz memória, empresa de cavação dirigida com mais descarados métodos de espírito de improbidade artística que já se viu no país. Todo mundo se lembra de como o público foi furtado com o Coelho Sai, uma coisa pífia e sórdida que só chegou a ser exibida nos cinemas da cidade, por falta de uma adequada guarda-noturna. Proteger o que, santo Deus? Pois se não temos técnicos e o que se faz nos estúdios corre por conta da improvisação e da ganância de ganhar dinheiro fácil ao custo da incurável ingenuidade do público pagante? (Diário de Pernambuco, 07/11/1945, p. 7)

Uma informação que me escapou durante a pesquisa foi sobre o incêndio que destruiu a única cópia do filme. Mesmo depois de dezenas de buscas e matérias, em diferentes épocas, não há qualquer menção específica de

Page 120: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

120 EM BUSCA DE “O COELHO SAI”

quando e onde a tal tragédia aconteceu. Trata-se de uma informação que se tornou popular, foi passada de boca em boca, de escrito em escrito, mas nunca se confirmou com datas específicas. Ainda que essa ausência possa estimular a ingênua imaginação, que talvez uma cópia poderia estar guardada em algum lugar, é improvável que haja qualquer resquício do filme para além do pedaço de fotograma a seguir, publicado numa matéria sem qualquer garantia de fonte nem nada, quase uma amarga imagem de santinhos e obituários de pessoas falecidas.

Page 121: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

121

Page 122: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

122

Page 123: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

123

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Rodrigo. Rasgos culturais: consumo cinéfilo e o prazer da raridade. Recife: Velhos Hábitos Ed., 2011.

ARAÚJO, Luciana. A Crônica de Cinema do Recife dos anos 50. Recife: Fundarpe, 1997.

_________________ Histórias de almas e milagres: a religião nos filmes silenciosos pernambucanos. Revista Significação, n. 30. São Paulo, 2008.

__________________ Os encantos da Veneza Americana e da propaganda pelo cinema: os filmes financiados pelo governo Sergio Loreto em Pernambuco (1922-1926). Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 26, n. 51, Jan./June 2013

__________________Tensões, idealizações e ambiguidades: as relações entre campo e cidade no cinema em Pernambuco nos anos 1920. Imagofagia – Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual, 2013.

BARROS, José D’Assunção e NÓVOA, Jorge. (orgs.). Cinema e História: teoria e representações sociais no cinema. 2a edição. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

BEHAR, Regina. Caçadores de imagem: cinema e memória em Pernambuco. São Paulo: o autor, 2002. [Tese de Doutorado]

______________ Labirintos da Memória no cinema pernambucano: o “ciclo”da década de 20. João Pessoa: ANPUH, 2003.

BLÜMLINGER, Christa. Memory and Montage. On the installation Anti-música. In EHMANN, Antje; ESHUN, Kodwo. Harun Farocki: Against What? Against Whom? London: Raven Row, 2010.

CALIL, Carlos Augusto M. Cinemateca imaginária: cinema & memória. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1981.

CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo et al. (orgs.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007.

Page 124: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARNES, Mark. Passado imperfeito: a história no cinema. Rio de Janeiro: Record, 1997.

CARREIRO, Rodrigo. Tesouros escondidos. Cine Repórter, 2004. Disponível em: https://cinerreporter.wordpress.com/2004/10/04/tesouros-escondidos/

CUNHA, Paulo. Relembrando o cinema pernambucano. Recife: Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco, 2006.

CUNHA, Paulo. A utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia. Recife: Ed. universitária, 2010.

CUNHA, Paulo. A imagem e seus Labirintos: O Cinema Clandestino do Recife (1930 – 1964). Recife: Nektar, 2014.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A Imagem sobrevivente: História da arte tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FIGUEIROA, Alexandre. Cinema em Pernambuco: Uma história em ciclos. Recife: Editora FCCR, 2000.

_______________________ A Cura do ócio dos filhos da classe média. Catálogo do Janela Internacional de Cinema do Recife, 2008.

GAGNEBIN, Jean-Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

______________________ História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva. 2011.

GASPAR, Lúcia. Cinemas antigos do Recife. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar.

HAGEMEYER, Rafael Rosa. História & Audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012 (Histórias e Reflexões).

HERSEY, John. Hiroshima. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Page 125: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

125O AMARGO OBITUÁRIO DO CINEMA PERNAMBUCANO

KOSSELECK, Reinhart. Et al. O conceito de história; tradução René Gertz. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

LEANDRO, ANITA. Da imagem pedagógica à pedagogia da imagem. Comunicação e educação, São Paulo, n. 21, p. 29-36, maio/agosto, 2001

MATUSZEWSKI, Boleslaw. Une nouvelle source de l’histoire du cinéma (Création d’un dépôt de cinématographie historique), Paris, [s.n.], 1898.

MONDAZIN, Mária José. Imagem, sujeito, poder. Entrevista com Mondzain. 2008. Disponível em: https://cultureinjection.wordpress.com/2014/03/28/entrevista-com-marie-jose-mondzain/

_____________________Pode a imagem matar? Lisboa, 2016.

MONTEIRO, Fernando. Caselli, cineasta do terror suburbano. Recife: Revista Continente, fev, 2006.

MONTELEONE, Joana. A Hollywood de Pernambuco. Pesquisa Fapesp, edição 100. São Paulo, 2004.

NIGRA, Fábio (org.). Visiones gratas del pasado: Hollywood y la construcción de la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Imago Mundi, 2012.

NOGUEIRA, AMANDA. O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo. Recife: o autor, 2009. [Dissertação de Mestrado].

NORONHA, Danielle de. Preservação e difusão: pela memória do cinema brasileiro. ABCine, sem data. Disponível em: https://abcine.org.br/site/preservacao-e-difusao-pela-memoria-do-cinema-brasileiro/

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.

PARENTE, André (org.). A imagem-máquina. A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2008.

PERINELLI, Humberto; PAZIANI, Rodrigo. Cinema, prática de ensino da história e geografia e formação docente: produção de curtas-metragens – experiências e estudos de caso. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.31ç n.04; p.279 – 304, 2015.

REIS, José C. A história entre a filosofia e a ciência. Belo Horizonte: Autêntica, 2004

Page 126: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

126 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RICOEUR. Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.

ROSENSTONE, Robert. Revisioning history: film and construction of a new past. New Jersey: Princeton University Press, 1995.

_____________________ História nos filmes / Filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

SILVA, Felipe Davson. Novidade, imaginário e sedentarização: o espetáculo cinematográfico no Recife (1896 – 1909). Recife: o autor, 2018. [Dissertação de Mestrado].

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

SOUZA, Carlos. A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil. São Paulo: o autor, 2009. [Tese de Doutorado]

WINEBURG, S. Historical thinking and other unnatural acts: charting the future of teaching the past. Philadelphia: Temple University Press, 2001.

XAVIER, Ismail. Alegorias da História IN RAMOS, Fernão (Org.). Teoria contemporânea do cinema. Pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Editora Senac, 2004.

PERIÓDICOS (1891 – 1945)

A Província (PE) Diário de Pernambuco (PE) Gazeta de Notícias (RJ) Jornal do Commercio (RJ) Jornal do Recife (PE) Jornal Pequeno/Pequeno Jornal (PE) Revista Pilheria (PE)

ESPAÇOS DE REFERÊNCIA

Cinemateca Brasileira Cinemateca do MAM Cinemateca Pernambucana

Page 127: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória

127

Page 128: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 129: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória
Page 130: velhoshabitosdotcom.files.wordpress.com...tempo e nos trazendo a própria história do cinema no Recife. Lançar esse livro em 2019 é, acima de tudo, demarcar a importância da memória